A IGUALDADE DE UM PAÍS DE DESIGUAIS: BRASIL E O SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS Michelle Felipe Camarinha de Almeida1 Antonio Carlos de Sousa Lessa2 Elaine Cristina de Oliveira3 RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise crítica do sistema de cotas para negros com enfoque no princípio constitucional da igualdade. Palavras-Chave: sistema de cotas; negros; igualdade. ABSTRACT: The actual study presents a critical study about fees system for black people with a focus on the constitution principle of equality. Keywords: fees system; black people; equality. INTRODUÇÃO Brasil, em versos e prosa, declamado aqui e internacionalmente como um país de intensas belezas naturais, de clima tropical e de homens e mulheres maravilhosos decorrentes da “miscigenação das raças”. Contudo, como é sabido, nosso “País Continente”, apresenta mazelas que, por muitas vezes, superam as “Garotas de Ipanema”, cantadas lindamente nos versos de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. 1 Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Sociais e Jurídicas Vianna Júnior em Juiz de Fora/MG, Pósgraduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá, de Juiz de Fora/MG. Professora do Curso de Bacharelado em Direito das Faculdades Sudamérica nas áreas penal e processo penal. E-mail: [email protected] 2 Graduando do Curso de Bacharelado em Direito das Faculdades Sudamérica de Cataguases/MG. Estudante do 10º período. E-mail: [email protected] 3 Graduanda do Curso de Bacharelado em Direito das Faculdades Sudamérica de Cataguases/MG. Estudante do 10º período. E-mail: [email protected] 1 É de conhecimento notório que vivemos em um Estado Democrático de Direito, detentor de uma Constituição Cidadã, promulgada em outubro de 1988, após anos de opressões e de vigência da ditadura militar. Nesse sentido, a Constituinte de 1988 buscou garantir a cada cidadão os principais direitos fundamentais, protegendo-os como cláusulas pétreas. O principal artigo da nossa Lei Maior, de 1988, sem sombra de dúvida, é o artigo 5º e seus setenta e oito incisos. Encontramos nesse imenso rol de direitos e garantias fundamentais o direito que mais interessa ao presente debate, qual seja: a igualdade4. A igualdade apresenta-se, ainda, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil5, sendo apontada como uma das metas a se buscar e a se alcançar em nossa sociedade. O princípio da igualdade encontra-se, portanto, como um dos principais desafios da vida moderna, pois a igualdade real não pode ser alcançada em uma sociedade em que a desproporção é visível, tendo em vista que, apesar de iguais em dignidade, os homens sempre serão profundamente desiguais – fisicamente, psicologicamente, etc. –, o que dificulta a efetivação da igualdade material. Assim, a ideia de igualdade está intimamente relacionada com a da própria justiça, "quando se trata de exigir de cada um aquilo que sua capacidade e possibilidade permitirem, e conceder algo a cada um, de acordo com os seus méritos (justiça distributiva)”. (CARVALHO, 2007, p.627). Observa-se, com isso, que a igualdade deve ser analisada como um princípio realista, no qual as políticas econômicas devem visar à realização da maior justiça possível, mantendo sempre 4 O artigo 5, da Constituição Federal de 1988, assinala que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”. (grifo nosso). 5 Segundo o artigo 3, da Constituição Federal de 1988, “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. 2 o cuidado de levar em consideração o fato de que uma igualdade radical pode ter consequências negativas, tanto do ponto de vista do respeito das liberdades como do ponto de vista da melhoria da sorte dos mais pobres. Nessa busca incansável pela igualdade é que surgem as medidas de desigualização, isto é, ações afirmativas6 que são vistas como ações positivas, porque visam a corrigir desvantagens que as minorias teriam sofrido no passado. Em sua brilhante obra, Carvalho (2007, p.630) ressalta que: As ações afirmativas envolvem um conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas públicas que têm por escopo favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competição na sociedade em razão, na maioria das vezes, da prática de discriminações negativas presentes ou passadas. São medidas que objetivam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que sejam eles neutralizados, concretizando-se mediante providências efetivas em favor daquelas categorias que se encontram em situação desvantajosa. E para a aplicação de tais medidas, as ações afirmativas se acham normalmente associadas à fixação de quotas, ou seja, estabelecimento de um número preciso de lugares ou da reserva de algum espaço em favor de membros do grupo beneficiado. Fala-se, por isso mesmo, entre outras, em quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso a cargos e empregos públicos, educação superior, reserva de vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino. Nesse contexto, o Brasil introduziu o sistema de cotas para negros ingressarem nas faculdades, tendo como fundamento o fato dos negros terem estado durante muitos anos à margem da sociedade, não obstante a “mestiçagem”, o que os impossibilitou o acesso ao ensino superior. Parte-se, portanto, da seguinte premissa: “geneticamente não há raças, mas socialmente elas existem: a discriminação é pela cor da pele A intervenção no sistema deve ser racial. Sem cotas, os negros continuarão fora do sistema” 7. 1 O SISTEMA DE COTAS A reserva de vagas nas universidades fez renascer um debate importante sobre o racismo no Brasil, um país onde o preconceito existe, ainda que de forma velada. 6 A expressão “ação afirmativa” (affirmative action), originária dos Estados Unidos, foi utilizada em 1961, numa ordem executiva do então Presidente John Kennedy, no sentido de promover a igualdade de oportunidades para negros e brancos. 7 SISTEMA DE COTAS para os negros amplia o debate sobre racismo. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens;negros/06.shtml>. Acesso em: 03 set. 2008. 3 É fato inegável que os negros trazidos como escravos, utilizados como meros instrumentos pelos senhores do café, foram tratados com absoluta crueldade, em tempos de "cegueira” da justiça humana. Outrossim, é fato que esses negros, pela sua força e pela sua luta, conseguiram conquistar seu originário e natural direito à liberdade como seres humanos que o são. Não há, portanto, como negar que o Brasil tem uma enorme dívida com estas pessoas que ajudaram a construir esta “maravilha de cenário”, e não apenas exportando nossas belas mulatas para abrilhantarem as festas estrangeiras ou mesmo, o que é um absurdo, serem presas fáceis para a prostituição e o tráfico internacional de mulheres. Hodiernamente, contudo, não são esses negros, embora, devam sim, ser lembrados pela sua coragem, seu sangue derramado no solo da nossa Pátria Mãe, que buscam não a liberdade de outrora, mas a igualdade de oportunidades para a tão sonhada inclusão social. São descendentes, muitos de uma linhagem guerreira, alguns até de príncipes e reis, porém, na sua grande e quase absoluta maioria, miscigenados, misturados com outras raças e cores. Mistura essa que dá a força e a beleza do nosso País, tanto cultural quanto humana. Desde sempre, nossa sociedade se vê como misturada. A introdução do sistema de cotas rompe, portanto, com esse ideário e produz uma sociedade que tem a obrigação legal de se classificar como “branca ou negra”. Nesse aspecto, assistimos ao surgimento de termos “politicamente corretos” para designar pessoas de suposta origem diferente. Enfatiza-se aqui a mais utilizada atualmente, “afrodescendente”, empregada para designar pessoas de pele escura. Vamos ter o bom senso ao empregarmos termos, como “afrodescendente”! Se essa moda pega, imaginemos a quantidade de variações de denominações que deveriam ser usadas como “politicamente corretas” no nosso país: “ítalo-descendente”, “nipônico-descendente”, “germano-descendente”, e, por que não, até “nativo”, “selvagem”, “índio-descendente”, dentre outras denominações possíveis. 4 É natural, ao indicarmos alguém à distância, observarmos as características individuais das pessoas, como, por exemplo: “aquele branco”, “aquele negro”, “aquele japonês”, “aquele careca”. No entanto, quando se toma um critério racial como base para a definição das cotas, fomenta-se o preconceito. São tais separações que nos fazem sentir vergonha gigantesca, ou melhor, dantesca. Porque, ao invés de um sistema de cotas, donde o que parece prevalecer é a cor da pele e não a competência do aluno, nossas políticas educacionais não privilegiam aqueles que menos oportunidades têm para um ensino de qualidade, oferecendo uma educação digna para que essas pessoas possam competir igualitariamente com os alunos “não-negros” ou, até mesmo, um maior critério avaliativo e socioeconômico para garantia de bolsas de estudos ou subsídios para projetos de iniciação científica? Nesse sentido, importa destacar a opinião de Demétrio Magnoli, disponível em uma matéria que discute a questão das cotas, ao visualizar a reserva de vagas para negros como ato contrário à democracia: As cotas são uma solução simplista, que rompe com o princípio republicano básico de igualdade entre cidadão. Os negros não têm acesso ao ensino superior porque, na maioria dos casos, são pobres e passaram anos estudando em escolas públicas arruinadas. Em vez de cotas, o Estado deveria aumentar os investimentos no ensino público. Em poucos anos, os negros passariam a ocupar as melhores vagas nas universidades.8 O professor e jurista Ives Gandra vai além. Segundo ele, o sistema de cotas é inconstitucional, porque fere o princípio fundamental de igualdade entre os cidadãos. Segundo o docente, É uma discriminação às avessas, em que o branco não tem direito a uma vaga mesmo se sua pontuação for maior. Reconheço que o preconceito existe, mas a política afirmativa não deve ser feita no ensino superior, e sim no de base.9 8 SISTEMA de Cotas para Negros amplia debate sobre <http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml>. Acesso em: 03 set. 2008. 9 SISTEMA de Cotas para Negros amplia debate sobre <http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml>. Acesso em: 03 set. 2008. racismo. Disponível em: racismo. Disponível em: 5 Desse modo, o sistema de cotas para negros, apesar de favorecer uma gama de pessoas desfavorecidas, possui falhas em relação a toda comunidade carente. O correto seria o governo aplicar investimentos em melhorias na qualidade do ensino público fundamental; políticas de redistribuição de renda; reforma tributária; reforma agrária, etc. Em especial, aplicar de forma efetiva e concreta os princípios contidos nos artigos. 20510 e 206, incisos I, V e VII11 da Constituição Federal, de 1988. Primeiramente, há que se propiciar estruturas às comunidades carentes, não só negros, como também brancos, mulatos, índios, visto que, não existem, pelo menos no Brasil, favelas só de negros. Essa diferença, ou melhor, essa desigualdade social de distribuição de renda e qualidade de vida, de falta de emprego, de saúde e oportunidades é que merece um sistema de cotas. O sistema público de educação está jogado às moscas, profissionais desmotivados pelo baixo salário e alunos com fome e preocupações outras, em vez de escolares. Não estamos aqui menosprezando, em hipótese alguma, o tratamento desumano ocorrido no passado com os negros trazidos da África para trabalhar como escravos. Colocamos em xeque sim o sistema de cotas para negros, por entendermos não ser ele isonômico, pois fere a igualdade constitucional e não resolve nem momentaneamente o problema. Esse sistema pode ser discriminatório, pois favorece em tese, a uma só “raça”. 10 O artigo 205, da Constituição Federal de 1988, atesta que: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. 11 O artigo 206, da Constituição Federal de 1988, assinala que “o ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I. Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; [...] V. valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; [...] VII. garantia de padrão de qualidade”. 6 Quando colocamos a palavra “raça” entre aspas é porque neste termo encontra-se a principal falha do sistema de cotas para negros. Nele está o fundamento e a prova de não ser possível essa distinção. Quem é negro no nosso país? Quem é originário da África? 12 O Brasil é um país de mistura de raças e atualmente não se pode falar em grupos de raças separados. Quando se trata de cotas para negros, todos se dizem negros. Estariam sendo eles falsos? Não, todos são negros: os negros, os mulatos, os morenos claros, os russos, e o mais impressionante, os de pele branca também seriam negros. É fácil entender. Com o passar dos anos, as raças aproximaram-se, uniram-se, mesclaram-se e tiveram filhos, netos e bisnetos. Com toda essa miscelânea, esses descendentes herdaram características do pai e da mãe. Alguns nasceram com pele mais clara, outros com mai escuras e outros com pele totalmente branca. Com uma nova mistura, esses de pele branca unem-se com outras pessoas de pele mais escura e seus filhos nascem com uma cor morena, cor esta símbolo nacional, símbolo do sol tropical. Esses descendentes se dizem negros quando se trata de cotas para universidades. No que estão corretíssimos, já que corre nas suas veias sangue dos guerreiros escravizados. Nesse sentido, está o grande equívoco do sistema de cotas para negros. O Brasil é um país de grandes desigualdades sociais, poucos ricos e muitos pobres, mas não pode ser separado em um país de brancos de um lado e negros do outro. Portanto, o sistema de “cotas” não é a solução do problema racial no Brasil, até porque tem todo um arcabouço social, cultural e econômico que envolve o problema de racismo no Brasil, esse sistema pode ou não ajudar, mas com certeza não é a solução do racismo em nosso país. Então porque desde já, não se começa a investir na educação de base, de forma que, todos tenham acesso a ela (negros, brancos, pobres, índios, imigrantes e descendentes), para que chequem ao ensino superior em igual condição a todos sem que sejam necessárias as “cotas” para que negros tenham possibilidades de frequentar uma universidade e para que quando terminem o curso superior o mercado de trabalho esteja aberto para os receberem, sejam ricos ou pobres, negros ou brancos, ou de qualquer linha social de que venha a sua descendência. Acredita-se que as “cotas” geram conflito entre as pessoas ao contrário do que se acha que facilitará a convivência entre “negros e 12 Quanto às compensações em favor dos negros, debate-se sobre a enorme dificuldade de se determinar quem é negro, já que especialistas indicam não haver critério que não deixe, em todas as hipóteses, dúvidas sobre a etnia do indivíduo, considerando-se, ademais, que a raça não é determinada apenas pela cor da pele (critério adotado pela legislação neste caso; além disso, é a manifestação da própria pessoa, que deve declarar-se negra, o que pode levar a desvirtuamentos). Deve-se levar ainda em conta que, no Brasil, país majoritariamente pobre, a imensa parcela de brancos também se encontra em situação aflitiva, muitos em piores condições do que as pessoas negras, circunstâncias que levam ao questionamento da utilização da quota de ação afirmativa para classes menos favorecidas. (CARVALHO, 2007, p. 630-631). 7 brancos” dentro de uma sociedade sem raça e sem cor, isso não se resolve e segundo a antropóloga Yonne Magie, professora da UFRJ afirma que no lugar de cotas para “negros” deve-se abrir vagas nas escolas para todos, e não é só vagas, mais sim, investir na educação de base para que se tenha uma educação de qualidade e não de quantidade. A antropóloga fala também que “falar em ‘raça’ é tentar apagar o fogo com gasolina, as ‘cotas’ é um cala-boca para a sociedade e a comunidade negra do país”, com tantos problemas sociais e econômicos no país querer resolver os problemas de racismo através das ‘cotas’ não é a solução podendo ser um paliativo, mas não resolverá a crise do racismo no Brasil, tendo em vista que as “cotas” podem servir como novo veículo de discriminação contra os afrodescendentes.13 Isto posto, não há como exigir, legal e socialmente, sem discriminação, sem ferir a Constituição Federal, sem que haja desigualdade de oportunidades, cotas para negros em universidade. Qual brasileiro pode afirmar que seja puramente negro, ou puramente branco no nosso país? E mesmo que seja puramente descendente de outros povos só caberiam cotas, se estas fossem para brasileiros, como todos nós somos de fato. Brasileiros menos favorecidos, brasileiros sem oportunidades, brasileiros famintos de comida e de conhecimento, brasileiros que estão e querem sair da marginalidade social, mas simplesmente brasileiros. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluímos, nesse contexto, que a luta contra o racismo é a luta pela igualdade e não desigualdade, na tentativa de afirmar que todos são iguais mesmo tendo em vista que todos são diferentes e individuais enquanto pessoas. Com isso, deve-se combater a ideia de raças na tentativa de uma igualdade social. Os negros estão para a sociedade como pessoas e não como raça, “coitadinhos” ou “incapazes”, mas, sim, como pessoas que têm a mesma capacidade que qualquer outra no meio social em que vive. 13 COTAS para negros nas universidades do Brasil. Disponível em: <http://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=75>. Acesso em: 03 set. 2008. 8 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2004. CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional: Teoria do Estado e da Constituição, Direito Constitucional Positivo. 13. ed. rev. atual. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. COTAS PARA NEGROS nas universidades do Brasil. <http://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=75>. Acesso em: 03 set. 2008. Disponível em: SISTEMA DE COTAS PARA NEGROS amplia debate sobre racismo. Disponível em: <http://www.comciencia.br/reportagens/negros/06.shtml>. Acesso em: 03 set. 2008. 9