Revista Adusp Outubro 2004 A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR Maria Victoria Benevides Professora da Faculdade de Educação da USP Daniel Garcia Movimento dos Sem-Educação exige da Fuvest mais isenções para vestibulandos pobres. Setembro de 2003 A importância das chamadas políticas afirmativas no quadro atual do ensino superior brasileiro é imensa. São políticas compensatórias e, como tais, podem ser abandonadas quando não se fizerem mais necessárias. Hoje, elas são parte da solução 21 E Outubro 2004 Revista Adusp ntre os obstáculos Para os poucos que estudam atuais vestibulares são horríveis: que se impõem ao nos colégios do Estado e ven- avaliam quem sabe decorar e reestudante brasileiro cem a barreira do vestibular, a solver pegadinhas e acabam desem seu caminho à realidade continua cruel. São cartando possíveis alunos mais universidade pública péssimas as condições para o interessados numa verdadeira estão, em primeiro desempenho adequado daqueles formação (no sentido mais forte lugar, aqueles que existem, desde estudantes que precisam traba- do termo), ou mais talentosos, e sempre, para a garantia aos mais lhar; as bolsas de estudo são pou- beneficiam alguns CDFs que têm pobres do direito fundamental a cas, muito disputadas e com crité- como meta principal se formar todos os bens e serviços públicos rios, às vezes, estapafúrdios, como em algo que “dê uma boa grana”, numa sociedade tão desigual como impedir que bolsistas dêem aulas como já ouvi tantas vezes. De a nossa. Tais problemas decorrem remuneradas; o horário noturno é que adianta festejar o garoto que da própria situação de pobreza e prejudicado, com reduzido núme- tirou os primeiros lugares nos de subcidadania, agravada pela vestibulares mais concorridos, se falta de informação ou, quando esele próprio confessa, em entreta existe, informação manipulada; vista à revista Veja, que não leu A entrada na por preconceitos e discriminações livro algum, apenas os resumos de toda sorte e a extrema predados pelo colégio de elite? O universidade pública cariedade de acesso aos bens vestibular tem que ser radicalé terrivelmente dependente culturais, desde os livros e mamente mudado, e cada área teriais necessários para acomdeve ser responsável pela dos sábios que inventam os panhar os estudos até roupa sua seleção. vestibulares. Os atuais vestibulares ou condução adequada. A cobrança de taxas para Na esteira de tais problea inscrição nos vestibulares beneficiam CDFs que resolvem mas, chegamos àqueles que também precisa ser revista. pegadinhas, e descartam alunos decorrem da especificidade Os alunos de escolas públicas mais interessados ou mais do acesso ao ensino superior, deveriam ficar automaticaque vêm também da negação do mente isentos, assim como outalentosos direito fundamental à educação. tros que demonstrem qualquer É bem conhecido o gargalo que impedimento financeiro, como representa o ensino médio (apesar ter sido bolsista em escola privada dedicação de tantos docentes, da e morar em favela, por exema formação de professores deixa plo. Estes são problemas urgentes muito a desejar), além da falta ro de disciplinas optativas e ou- a serem enfrentados dentro de de condições adequadas para a tras atividades (como seminários um programa de curto, médio e manutenção dos estudantes mais e debates), e a infraestrutura é longo prazo, para conquistarmos, desprotegidos nas universidades e precária, sem os serviços de secre- enfim, a sonhada democracia no o próprio sistema de vestibulares. taria, biblioteca etc., às vezes até ensino superior. Já é lugar-comum afirmar que só sem possibilidade de alimentação, As principais ações em curto aqueles que fizeram um bom se- além do serviço de transporte in- prazo são exigir verbas das autogundo grau, geralmente privado, suficiente à noite. ridades pertinentes, redefinir o ou podem pagar cursinhos prepaA entrada nas universidades sistema de bolsas para estudantes ratórios, chegam às boas univer- públicas também é terrivelmen- “carentes” (ou outra palavra mesidades públicas, sobretudo nas te dependente dos sábios que lhor para identificar os realmente áreas mais concorridas. inventam os vestibulares. Os necessitados de ajuda), implantar, 22 Revista Adusp Outubro 2004 Daniel Garcia Estudante acorrentada ao portão da Fuvest: protesto do Movimento dos Sem-Educação. Setembro de 2003 já, um sistema de ação afirmativa, por cotas, com critério de metas para o acesso, e reduzir ou eliminar taxas para os “carentes”. Em médio prazo, precisamos melhorar as condições do ensino noturno, assim como abrir mais vagas em faculdades que até hoje não o fazem por puro preconceito. Isso significa investir na infraestru- tura e na contratação de docentes e funcionários. Outra necessidade é modificar o vestibular, como já falamos acima. E para curto, médio e longo prazos precisamos ter, como prioridade, o compromisso com a expansão do ensino médio com qualidade, o que requer política pública da melhor qualidade, vontade política e pressão da so- ciedade organizada. Para isso, será necessário investir radicalmente na formação de professores de primeiro e segundo graus, exigência para tudo em educação neste nosso país onde encontramos professores semi-analfabetos, e garantir a todos os professores acesso facilitado aos bens e serviços culturais, questão que deve ser contemplada por políticas municipais e estaduais. A importância da adoção das chamadas políticas afirmativas no quadro atual do ensino superior brasileiro é imensa. São políticas compensatórias e, como tais, podem ser abandonadas quando não se fizerem mais necessárias. Hoje, eu diria que são parte da solução. É uma porta de entrada, que deve ser acompanhada de medidas concretas para garantir que os beneficiados consigam manter-se e acompanhar os cursos. Volto à questão das bolsas para pesquisa, da moradia estudantil, das bolsastrabalho etc. Não se trata de dar um curso precário para quem já vem da precariedade. Isso seria uma crueldade: por cima da queda, o coice. Os beneficiados por cotas não podem ser vistos e tratados como sub-alunos. Assim como o governo deve apoiar a pequena e a média empresa, visando ao desenvolvimento nacional, o mesmo raciocínio deve ser aplicado à Universidade. Pensando desta forma, creio que o sistema de cotas por meta seria o ideal. Exemplo: quero que, em dez anos, tenhamos na USP 20% de alunos negros, ou oriundos de escolas públicas; uma determinada porcentagem de mu- 23 Outubro 2004 lheres negras; uma determinada porcentagem de deficientes. As ações afirmativas nos EUA contribuiram para a formação de uma ampla classe média negra e hoje o sistema de cotas talvez não seja mais necessário. No caso dos negros é bom afirmar que o objetivo é dar visibilidade acadêmica àqueles que, pelo simples fato de terem certo tom da pele ou do formato da boca e do nariz, são discriminados e, portanto, não têm como ascender às carreiras de status na sociedade. Só poderemos reduzir o preconceito quando houver negros médicos, engenheiros, juízes, arquitetos, professores universitários, jornalistas, músicos clássicos, diplomatas etc. em número compatível com a presença negra na sociedade. Portanto, as cotas para negros não significam a mesma coisa que as cotas para pobres em geral — que também têm direito, evidentemente. A pobreza é um problema social grave; os negros, que também são majoritariamente pobres, são vítimas também de racismo. Queremos universidades policrômicas e democráticas. Os impactos favoráveis de uma mudança dessa amplitude serão também gigantescos. Em primeiro lugar, ela irá contribuir para a efetiva democratização da Universidade, pela inclusão social e étnica, o que dará uma nova feição à formação de cidadãos. Em seguida, a qualidade de ensino, ao contrário do que os críticos das políticas afirmativas afirmam, pode melhorar no sentido de que os 24 Revista Adusp Daniel Garcia Acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na USP. Novembro de 2003 atuais docentes estarão rios ou outras expressões diante de um desaque tragam para a fio novo e certavida acadêmica As cotas mente serão novos olhares, para negros não são cobrados novas formas pelos antigos de pensar e a mesma coisa que as cotas e novos alutrabalhar. para pobres em geral. A pobreza nos, no senChamo tido de que a atenção é um problema social grave; os os cursos para um negros, majoritariamente pobres, não sejam projeto, já “rebaixaaprovado na são vítimas também de racismo. dos” com a Faculdade de Queremos universidades desculpa da Educação da policrômicas e entrada dos USP, da criação “cotistas”. de um curso de democráticas A diversidade graduação (quatro sempre provoca quesanos) para membros do tões, problemas e encaminhaMST, que serão professores de mento de soluções, o que sempre suas escolas. A seleção terá critérios é enriquecedor. Alunos com próprios, e não feita pela Fuvest, e experiências de vida diversas da a clientela é de assentados ou filhos maioria “elitista” das universida- de assentados, e que terão o diplodes (vida rural, cultura de outras ma para trabalhar nas escolas do regiões, como o Nordeste), assim MST, que são escolas públicas. Este como com traços da cultura afri- curso, de Pedagogia da Terra, certacana, podem contribuir para dis- mente lançará a semente de novos cussões em sala de aula, seminá- projetos no gênero.