UNIÃO ESTÁVEL DE PESSOAS CASADAS (BREVES COMENTÁRIOS AO ACÓRDÃO DO STJ PROLATADO NOS AUTOS DO RECURSO ESPECIAL Nº1.107.192 - PR) Mário Luiz Delgado Superior Tribunal de Justiça Paralelismo de Uniões Afetivas. Recurso Especial. Ação de Reconhecimento de União Estável Post Mortem e Sua Consequente Dissolução. Concomitância de Casamento Válido. Peculiaridades (STJ; REsp 1.107.192; Proc. 2008/0283243-0; PR; 3ª T.; Relª p/o Ac. Minª Nancy Andrighi; DJE 25/05/2010) Acórdão Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, por maioria, negar provimento ao recurso especial. Vencido o Sr. Ministro-Relator Massami Uyeda, que dava provimento ao recurso. Votaram com a Sra. Ministra Nancy Andrighi os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Vasco Della Giustina e Paulo Furtado. Lavrará o acórdão a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Brasília (DF), 20 de abril de 2010 (Data do Julgamento). Ministra Nancy Andrighi - Relatora 1 Voto-Vista A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se do recurso especial interposto por L.L.N., com fundamento nas alíneas a e c, da norma autorizadora, contra acórdão proferido pelo TJ/PR. Ação: (fls. 2/10): de reconhecimento de união estável, post mortem, e consequente dissolução, ajuizada por L.L.N., em face dos herdeiros de O.M.G., em que alega ter mantido relacionamento público, contínuo e duradouro, com intenção de constituição de família, pelo período de 30 anos - de 1970 até 04.03.00 - isto é, até a data do falecimento do aludido companheiro. Salienta que da referida união advieram 4 (quatro) filhos, O.L.N.M.G., O.N.M.G., C.A.N.M.G. e R.A.N.M.G., nascidos respectivamente em 1972, 1973, 1975 e 1977, todos maiores e com paternidade posteriormente reconhecida pelo falecido - em 16.12.83. Ressalta que trabalhou como secretária pessoal de O.M.G., desde 1968, relacionamento meramente profissional que se transformou em afetivo, culminando com o nascimento dos filhos, ao longo dos anos 1970. Acrescenta que O.M.G. separou-se judicialmente da primeira mulher, M.C., em 1983 (ano em que reconheceu a paternidade dos filhos). Por fim, assinala a comprovação da união estável perante o INSS, para fins de concessão de pensão por morte, a ela deferida na via administrativa. Contestação (fls. 155/166): apresentaram defesa apenas os 3 (três) netos de O.M.G. e de M.C. - C.S.F.M.G., M.S.F.M.G. e L.F.S.F.M.G., nascidos, respectivamente, em 1975, 1977 e 1983 -, mediante direito de representação do pai pré-morto, L.A.M.G. (óbito ocorrido em 29.09.97), filho único do matrimônio de O.M.G. e M.C., celebrado nos idos de 1946, pelo regime da comunhão universal de bens. Os filhos de O.M.G. com L.L.N. concordaram com o pedido inicial. Alegam, os netos, que o avô 2 "nunca viveu em união estável com a autora e sim em concubinato impuro, visto que nunca se separou de fato de M.C., com quem realmente conviveu até o seu falecimento (...) que sempre foi sua companheira, nas alegrias e nas tristezas, colaborando para que amealhasse o patrimônio de que pretende a autora locupletar-se ilicitamente" esclarecendo que "O. e sua mulher, muito embora separados judicialmente, conviviam como se fossem casados, dividindo o teto conjugal, que nunca se desfez". (fls. 156/157) Asseveram que a aludida separação judicial teve como único objetivo a preservação do patrimônio do casal, cujo acordo foi homologado em 04.01.83. Denunciam que a estirpe de herdeiros do avô, "advindos da autora, vem se apropriando ilicitamente dos bens que deveriam ser entregues a M.C." e que "durante a fluência do concubinato impuro que a autora viveu com O., este não teve seu patrimônio acrescido, sendo, em verdade, que houve sim diminuição deste". (fl. 158) Por fim, ressaltam que L.L.N. tinha conhecimento da natureza de seu relacionamento com O.M.G., com plena ciência de que o falecido preferia manter o lar conjugal com M.C. Dessa forma, seja antes ou depois da separação judicial, asseguram que jamais ocorreu separação de fato entre O.M.G. e M.C., o que obsta o pleito de L.L.N. Parecer do Ministério Público do Estado do Paraná (fls. 387/391): opinou o Parquet, pelo não reconhecimento da união estável, eis que ausentes os requisitos legais para sua configuração. Sentença (fls. 393/401): em contraposição ao parecer exarado pelo MP/PR, o pedido foi julgado procedente, para, "com fundamento no disposto nos arts. 1º e 5º da Lei nº 9.278/96, reconhecer a existência da sociedade concubinária entre as partes pelo período de 30 anos, entre 1970 e 2000, bem como sua dissolução há quatro anos, em face da morte do companheiro" (fl. 401), declarando, o i. Juiz, a caracterização da união estável, nos seguintes termos: 3 (fls. 399/400) - "O certo é que dos autos restou demonstrado que embora a situação vivenciada por O. e a autora, conquanto peculiar e inusual, deve ser tida como adequada ao conceito jurídico da união estável com o objetivo de formação de família, pois, não obstante não residirem no mesmo endereço, o desejo e a vontade de constituir família eram recíprocos, sendo que a alegação dos contestantes de que o falecido avô manteria na realidade união estável com a Sra. M.C., sua ex-mulher, não restou em momento algum demonstrada, restando dos autos apenas a constatação de que ele residia no mesmo endereço, contudo não mantendo relacionamento característico de pessoas casadas, tanto que sequer pernoitavam no mesmo quarto." Apelações (fls. 406/413 e 419/461): interpostas, respectivamente, pelo Ministério Público do Estado do Paraná e pelos recorridos. Parecer do Ministério Público do Estado do Paraná (fls. 527/534): pronunciou-se, a douta Procuradoria de Justiça Cível, pelo conhecimento e provimento de ambos os apelos, nos termos das seguintes conclusões: (fls. 533/534) - "Ao permanecer [O. M. G.] residindo com sua ex-esposa [M. C.] até a data de seu óbito, não se pode negar que quis transparecer a manutenção da sociedade conjugal, deixando inclusive de requerer o divórcio. Destarte, porquanto controvertida a prova dos autos - conforme reconhece o próprio magistrado singular - impõe-se concluir que não houve satisfatória demonstração da intenção do de cujus de construir com a apelada verdadeira entidade familiar com todas as peculiaridades que lhe são inerentes, requisito absolutamente essencial à caracterização de união estável, apta a ensejar sérias consequências jurídicas, sociais econômicas." 4 e Acórdão (fls. 563/572): acolhendo integralmente o Parecer do Ministério Público, o TJ/PR conferiu provimento aos recursos de apelação, "para julgar improcedente a ação de reconhecimento de sociedade de fato" (fl. 572), ao fundamento de que L.L.N. não comprovou a configuração de requisitos necessários à caracterização da união estável, em especial, a posse do estado de casados, tendo em vista a continuidade da vida conjugal entre O.M.G. e M.C. Embargos de declaração: interpostos pelos recorridos às fls. 598/604, foram rejeitados (acórdão às fls. 614/619); de igual modo, foram rejeitados, conforme acórdão às fls. 679/685, os embargos de declaração interpostos pela recorrente, às fls. 658/663. Recurso extraordinário: interposto às fls. 741/752. Recurso especial (fls. 689/701): interposto sob alegação de ofensa ao art. 1º da Lei nº 9.278/96, bem como dissídio jurisprudencial. Contrarrazões: apresentadas às fls. 795/818. Prévio juízo de admissibilidade recursal: às fls. 900/904. Parecer do Ministério Público Federal (fls. 913/918): da lavra do i. Subprocurador-Geral da República, Washington Bolívar Júnior, em que opinou pelo não conhecimento ou não provimento do recurso especial. Voto proferido pelo i. Ministro Relator: em 04.03.10, o i. Ministro Massami Uyeda conferiu provimento ao recurso especial, centrando a lide no fato de que a ausência de coabitação não constitui motivo suficiente para obstar o reconhecimento de união estável, tecendo ainda considerações acerca do fato de que, muito embora O.M.G. e M.C. 5 residissem sob o mesmo teto, ocupavam quartos separados e não mantinham relações sexuais. Em sequência, pedi vista dos autos. Pedido de assistência (fls. 591/599): deduzido pela Sra. M.C., por meio de petição protocolada em 15.03.10, fundamentada no art. 50 e ss. do CPC, ao argumento de que "a questão acessória deste feito é a pendência entre a estirpe N.M.G. (filhos da recorrente L.L.N. com O.M.G.) e S.F.M.G. (netos de O.M.G. com esta assistente M.C.), para a qual deverá promanar, sem dúvida, a decisão deste recurso especial, decidindo quem seria a convivente em união estável de O.M.G." Requer, outrossim, a urgência no processamento e julgamento deste recurso especial, porquanto é pessoa idosa, com 85 anos de idade, bem como "cardiopata e terminal" (fl. 599). Despacho prolatado pelo i. Ministro Relator (fl. 601): porquanto já iniciado o julgamento do recurso especial, asseverou o i. Ministro Massami Uyeda que a apreciação do pedido de assistência dar-se-á pelo Colegiado, quando do prosseguimento do julgamento. Reprisados os fatos, decido. I - Equívoco na Numeração dos Autos De início, observe-se equívoco na numeração dos autos, quando já em trâmite no STJ, a partir das fls. subsequentes àquela que recebeu numeração 910, na qual consta certidão de interposição de agravo de instrumento perante o STF, pelo que deve ser determinada a devida correção. 6 II - Da Preliminar de Pedido de Assistência Deduzido por M.C. Quanto ao pleito de assistência simples deduzido por M.C., casada com O.M.G. em 19.06.1946 e com o qual conviveu, conforme estabelece o acórdão recorrido, até a data do óbito deste, deve ser acolhido, porque evidente o interesse jurídico da peticionária, para intervir no processo como assistente dos recorridos, descendentes seus e do falecido. Ultrapassada a preliminar, passa-se à análise da tese recursal. III - Da Delimitação da Lide A lide, jungida aos fatos assim como estabelecidos no acórdão recorrido, consiste em aferir a possibilidade de configuração de união estável, mantida entre a recorrente e O.M.G., de 1970 a 2000 (30 anos), paralela a casamento válido que jamais foi dissolvido, mantido entre O.M.G. e M.C., de 1946 a 2000 (54 anos), com a peculiaridade de que, mesmo após a separação judicial, ocorrida em 1983, com a respectiva homologação de acordo apresentado pelos cônjuges, jamais houve, conforme descrição fática dada pelo TJ/PR, separação de fato entre O.M.G. e M.C., constando, expressamente do acórdão impugnado que "a despeito de ter mantido um relacionamento com a autora, o Sr. O. nunca deixou de conviver com sua ex-esposa e, mesmo tendo se separado judicialmente da Sra. M., nunca requereu o divórcio, morando na mesma casa que ela até a data de sua morte" (fl. 567). A par da mencionada ausência de coabitação entre a recorrente e O.M.G., que efetivamente não configura requisito essencial à caracterização da união estável, no que alicerça o i. Ministro Massami Uyeda a necessidade de reforma do julgado, o TJ/PR lançou, ainda, os seguintes fundamentos: 7 i) ausência de aparência de casamento: (fl. 566) - "No caso versado nos autos, é certo que a Autora e o falecido mantiveram relacionamento amoroso público e duradouro. Contudo, durante todo esse período, o de cujus não deixou a companhia de sua ex-esposa, de quem já havia se separado judicialmente, ficando evidente que não houve vida more uxorio entre os concubinos, donde se conclui que a autora manteve com o Sr. O. apenas um relacionamento amoroso prolongado que, não obstante ter resultado em 04 filhos, não tinha aparência de casamento." (...) (fl. 569) - "Assim, não seria leviano afirmar que, não provado nos autos o preenchimento do requisito da affectio maritalis, com um relacionamento revestido de aparência de casamento, não há se falar em união estável ou sociedade de fato (...)" ii) ausência de prova da intenção do falecido de com a recorrente constituir uma família, como se casados fossem: (fls. 566/567) - "No caso em tela, como bem lembrou o douto Procurador de Justiça, não se vislumbra essa intenção de constituir família, descuidando a autora de provar a intenção do de cujus de viver com ela como se casados fossem.” "A despeito de ter mantido um relacionamento com a autora, o Sr. O. nunca deixou de conviver com sua ex-esposa e, mesmo tendo se separado judicialmente da Sra. M., nunca requereu o divórcio morando na mesma casa que ela até a data de sua morte. Tal situação foi confirmada pela própria autora em seu depoimento de fl. 357: 8 (...) que a depoente nunca chegou a residir no mesmo endereço que O.; que tal não ocorreu porque O. era casado; (...) que, O. chegou a se separar judicialmente de sua esposa, segundo se recorda a depoente por volta do ano de 1980; que, mesmo após a separação judicial, O. continuou a residir na mesma casa de sua ex-esposa (...)." (...) (fls. 571) - "Uma questão foi bem lembrada pelo representante ministerial em seu arrazoado: Muito embora haja depoimentos dizendo que o Sr. O. visitava a autora todos os dias, que comprou uma casa para a mesma, ou até mesmo que a acompanhava no supermercado por alguns dias, não faz prova de que o mesmo tinha o objetivo de formar uma família, eis que, tendo filhos com a mesma, muito provavelmente tinha como objetivo acompanhar o crescimento dos mesmos e proporcionar-lhes uma vida confortável." (fl. 144) (...) (fl. 572) - "Sendo controvertida a prova dos autos, como reconheceu o próprio magistrado a quo, a ação deve ser julgada improcedente, eis que não houve demonstração da intenção do de cujus de construir com a autora verdadeira entidade familiar com todas as peculiaridades que lhe são inerentes." iii) manutenção do casamento de O.M.G. e M.C.: (fl. 567) - "Caso o Sr. O. tivesse realmente a intenção de constituir família com a Apelada não continuaria morando com sua ex-esposa durante tanto tempo (50 anos), deixando transparecer a manutenção da sociedade conjugal. 9 Provavelmente teria ido morar com a autora e com seus filhos comuns, vez que após a separação judicial do falecido, nada o impedia de tomar tal atitude (...)" iv) não comprovação dos fatos alegados na inicial: (fls. 571) - "Assim, não cumprindo a Apelante sua obrigação de demonstrar a existência dos fatos alegados, mediante produção de provas robustas e concludentes, não há como atender ao pedido formulado, razão pela qual imerece guarida sua pretensão." Conquanto corrobore o entendimento do i. Ministro Relator, no sentido de que "o art. 1º da Lei nº 9.278/96 não enumera a coabitação como elemento indispensável à caracterização da união estável" conforme decidido por este Órgão Colegiado, no REsp 275.839/SP, de minha relatoria p/ ac., DJe de 23.10.08, cuja ementa segue estabelecendo a respeito da coabitação que, "ainda que seja dado relevante para se determinar a intenção de construir uma família, não se trata [a coabitação] de requisito essencial, devendo a análise centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a fidelidade, a continuidade da união, entre outros, nos quais se inclui a habitação comum", percebe-se, dos trechos do acórdão impugnado, acima colacionados que, para não reconhecer a existência de união estável entre O.M.G. e L.L.N., não apenas repousa o TJ/PR na ausência de coabitação, tendo, outrossim, como principal fundamento, a ausência de prova da intenção do falecido de com a recorrente constituir uma família, com aparência de casamento, em outras palavras, ausente a demonstração da posse do estado de casados. 10 IV - Dos Requisitos para a Configuração da União Estável (Violação ao Art. 1º da Lei nº 9.278/96 e Dissídio Jurisprudencial) A declarada ausência de comprovação da posse do estado de casados, vale dizer, na dicção do acórdão recorrido, a ausência de prova da intenção do falecido de com a recorrente constituir uma família, com aparência de casamento, está intimamente atrelada ao fato de que, muito embora separados judicialmente, houve a continuidade da união de O.M.G. com M.C., que permaneceram juntos até a morte do cônjuge varão, o que vem referendar a questão, também posta no acórdão impugnado, de que não houve dissolução do casamento válido, ponderando-se, até mesmo, a respeito do efetivo término da sociedade conjugal, porque notória a continuidade da relação, muito embora não formalizado pedido de retorno ao status de casados. Nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, o casamento válido não se dissolve pela separação judicial; apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. Por isso mesmo, na hipótese de separação judicial, basta que os cônjuges formulem pedido para retornar ao status de casados. Já, quando divorciados, para retornarem ao status quo ante, deverão contrair novas núpcias. Esse entendimento, consagrado pela doutrina e jurisprudência, sob a vigência da Lei Civil anterior, apenas foi referendado pelo CC/02, o que permite a sua incidência na hipótese em julgamento. Considerada a imutabilidade, na via especial, da base fática tal como estabelecida no acórdão recorrido, constando expressamente que, muito embora tenha o falecido se relacionado com a recorrente por longo período, com prole comum, em nenhum momento o cônjuge varão deixou a primeira mulher, ainda que separados judicialmente - mas não de fato -, o que confirma o paralelismo das relações mantidas pelo falecido com M.C. (por meio século) e L.L.N. (por três décadas), deve ser confirmado o quanto decidido pelo TJ/PR, que, rente aos fatos, rente à vida, verificou a 11 ausência de comprovação de requisitos para a configuração da união estável, em especial, a posse do estado de casados, bem como a continuidade da vida comum entre O.M.G. e M.C. Como se vê, não se trata de mera continuidade da coabitação entre O.M.G. e M.C., foco no qual também se debruça o i. Ministro Relator em seu percuciente voto. Do quanto explicitado no acórdão recorrido, houve continuidade da vida conjugal como um todo, com extrema dedicação e respeito do falecido para com M.C. Observe-se que, se um casal, unido pelos laços do matrimônio ou em união estável, prefere dormir em quartos separados, tal fato não constitui relevância para o Direito e não significa ausência de amor, carinho, dedicação, cuidado e zelo. Isso porque, a esfera íntima, privada, dos consortes, só a eles diz respeito e não deve nela se imiscuir o julgador, notadamente quando amparado em meras suposições, extraídas de depoimentos testemunhais. Do mesmo modo, a simples conjectura de que entre os cônjuges ou companheiros já não haveria mais contato sexual, não tem o condão de modificar o raciocínio até aqui trilhado, porque os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inciso X, da CF/88 - o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada -, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área da manifestação existencial do ser humano (BASTOS, Celso Ribeiro e ALEXY, Robert apud GONZAGA, Andréa Neves, in Direito à intimidade e privacidade. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/31767 . Acesso em: 20 abr. 2010). 12 Este mundo de relações líquidas, fluidas, está saturado de relacionamentos que contemplam sexo, mas, não raras vezes, são destituídos de amor, afeto e ternura. Avistar uma situação diversa, em que o afeto subjaz perene, mas o sexo pode estar ausente, especialmente em relações contínuas e duradouras, na espécie mais de meio século, não pode consubstanciar perplexidade, e sim, compreensão. E, sob tal perspectiva pergunto: qual das situações citadas pode ser denominada de relação afetiva? Aquela que contempla o sexo e exclui o afeto? Ou a que pode não conter sexo, mas inequivocamente reveste-se de afetividade? Deve o juiz, portanto, ao analisar as lides de família que apresentam paralelismo afetivo, de acordo com as peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. Acrescente-se que, de um homem na posição em que o falecido ostentava no cenário social e econômico, espera-se sagacidade e plena consciência de suas atitudes, de modo que, acaso pretendesse extrair efeitos jurídicos, notadamente de cunho patrimonial, em relação à sua então concubina, promoveria em vida atos que demonstrassem sua intenção de com ela permanecer, na posse do estado de casados, afastando-se, por conseguinte, do lar conjugal. Se não o fez, não o fará, em seu lugar, o Poder Judiciário, contra a vontade do próprio falecido. Destaco, do parecer da lavra do i. Subprocurador-Geral da República, Washington Bolívar Júnior, o entendimento de que "nossa legislação está baseada no relacionamento monogâmico caracterizado pela comunhão de vidas, tanto no sentido material como imaterial. Assim, a relação paralela de uma mulher com homem legalmente casado e impedido de contrair novo casamento é classificado de concubinato impuro, sem 13 gerar qualquer direito para efeito de proteção familiar fornecida pelo Estado (art. 1.521, VI, c/c art. 1.723, § 1º, do Código Civil)" (fl. 516). Cumpre trazer à colação, porque em sintonia com o que até aqui estabelecido, relevante voto proferido, no âmbito da 1ª Turma do STF, pelo Ministro Marco Aurélio, no RE 397.762/BA, em 03.06.08 (publicado no DJe em 12.09.08), cuja ementa segue reproduzida, na parte que interessa: "COMPANHEIRA E CONCUBINA. DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel." "UNIÃO ESTÁVEL. PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato." No referido julgado, o i. Ministro Marco Aurélio assinalou que o concubinato não merece proteção do Estado por conflitar com o direito posto. A relação, para o i. Ministro, não se iguala à união estável que é reconhecida constitucionalmente e apenas gera, quando muito, a denominada sociedade de fato, no que foi acompanhado pelos i. Ministros Carlos Alberto Menezes Direito (in memorian), Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, este último que assinalou significar a palavra concubinato, do latim concubere, "compartilhar o leito", enquanto que a união estável significa "compartilhar a vida". A relação mantida entre L.L.N. e O.M.G., despida dos requisitos caracterizadores da união estável, acaso assim pleiteado pela recorrente em processo diverso, poderá ser reconhecida como sociedade de fato, para que o Poder Judiciário não deite em solo infértil, relacionamentos que efetivamente existem no cenário dinâmico e fluido dessa nossa atual sociedade volátil. 14 Virar as costas para os desdobramentos familiares, em suas infinitas incursões, em que núcleos afetivos se justapõem, em relações paralelas, concomitantes e simultâneas, seria o mesmo que deixar de julgar, com base na ausência de lei específica. Dessa forma, na hipótese de eventual interesse na partilha de bens deixados pelo falecido, deverá L.L.N. fazer prova, em processo diverso, de eventual esforço comum, considerado, desde já, que a própria recorrente assinalou que os bens adquiridos na constância do concubinato - uma casa e um carro -, foram adquiridos pelo falecido já em nome da própria concubina. Por fim, merece atenção o fato de que o autor de conduta reprovável, O.M.G., já falecido, é quem deveria suportar as penalidades pelo comportamento afetivo paralelo, e não a concubina, que, muito embora detivesse conhecimento da vida dúplice que ele ostentava, não logrou êxito em comprovar o direito subjetivo pretendido, conforme expresso no acórdão impugnado. Forte em tais razões, peço vênia ao i. Ministro Relator, para divergir do quanto decidido e, por conseguinte, negar provimento ao recurso especial, mantendo, portanto, incólume o acórdão recorrido. COMENTÁRIO 1 Introdução O Superior Tribunal de Justiça vem se firmando no cenário jurídico nacional como corte de vanguarda, sobretudo nas questões que envolvem direito de família e sucessões, contribuindo de forma contundente, não só 15 para a pacificação de controvérsias e uniformização do direito federal, mas para a própria evolução do direito legislado em nosso país, demonstrando, assim, o relevante papel desempenhado pela jurisprudência na adaptação evolutiva da lei. Tem produzido uma jurisprudência ágil e eficaz, capaz de atuar na integração e harmonização do sistema com perspicácia e flexibilidade. Muitos dos julgamentos do STJ considerados paradigmáticos vêm sendo conduzidos pela sensibilidade, perspicácia, tirocínio, acuidade e notável saber jurídico da Ministra Fátima Nancy Andrighi. Tem sido ela relatora ou voto condutor de decisões que estão a influenciar a doutrina e a produção legislativa neste país 1. No julgamento do Recurso Especial nº 1.107.192 - PR, conduzido pela Ministra Nancy, o STJ fixou a correta interpretação do § 1º do art. 1.723 do CC/02, no que se refere à constituição de união estável por pessoas casadas. Também lançou luzes sobre a questão da coabitação como elemento caracterizador da união estável. Deixou claro, por exemplo, que a coabitação, embora não constitua requisito essencial para o reconhecimento de união estável, representa dado relevante para se determinar a intenção de construir uma família, cujo maior indício é a convivência sob o mesmo teto, consoante demonstraremos no decorrer deste artigo. Outras questões que restaram decididas pelo STJ foram as seguintes: (i) se duas pessoas casadas, não obstante separadas judicialmente, mantêm a convivência marital, sob o mesmo teto, persiste o impedimento à união estável com outra pessoa (relação paralela), não se aplicando o disposto na cláusula final do § 1º do art. 1.723 do CC, que possibilita o reconhecimento de união estável entre separados, de fato ou de direito; (ii) Os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida 1 Algumas decisões extremamente polêmicas, como se deu no 992.749 - MS, no qual o STJ firmou posição no sentido de que o obrigatória de bens seria gênero que congregaria duas espécies: (ii) separação convencional, contrariando, assim, a literalidade 1.641 do Código Civil e a unanimidade da doutrina nacional. julgamento do REsp regime de separação (i) separação legal e dos arts. 1.829, I e 16 privada do casal, aí incluída a existência de relacionamento sexual, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, sob pena de violação ao direito fundamental à intimidade e à vida privada. 2 Histórico do Caso Trata-se de ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem, proposta pela mulher contra os herdeiros de seu suposto excompanheiro, com quem manteve relacionamento afetivo por mais de 30 anos e do qual advieram 4 (quatro) filhos. A peculiaridade desse caso é que o de cujus iniciou o relacionamento com a autora em 1970, enquanto casado, e mesmo após a separação judicial de sua esposa, ocorrida em 1983, jamais se ausentou do domicílio conjugal, onde continuou a residir até a data do óbito. A sentença de primeiro grau julgou procedente o pedido, reconhecendo a união estável havida no período de 1970 a 2000, e a subsequente dissolução em face da morte do companheiro. Submetida a recurso, a decisão veio a ser reformada pelo TJPR, para julgar improcedente a pretensão de reconhecimento de sociedade de fato, ao argumento de não se haver comprovado a configuração de requisitos necessários à caracterização da união estável, especialmente, a posse do estado de casados, uma vez que o homem, muito embora separado judicialmente de sua esposa, continuou a residir com ela, o que 2 descaracterizaria a segunda relação como união estável . 2 "No caso versado nos autos é certo que a autora e o falecido mantiveram relacionamento amoroso público e duradouro. Contudo, durante todo esse período, o de cujus não deixou a companhia de sua ex-esposa, de quem já havia se separado judicialmente, ficando evidente que não houve vida more uxorio entre os concubinos, donde se conclui que a autora manteve com o de cujus apenas um relacionamento amoroso prolongado que, não obstante ter resultado em 4 filhos, não tinha aparência de casamento." 17 Inconformada recorreu a autora, sustentando que o relacionamento que manteve com o falecido, de natureza duradoura, pública e contínua, implicou em efetiva constituição de família, pois dele advieram quatro filhos, reconhecidos, criados e educados com a colaboração do falecido. O Recurso Especial foi distribuído ao Ministro Massami Uyeda que o acolhia, por entender que "a coabitação entre pessoas casadas, separadas judicialmente e, principalmente, de fato, não pode conduzir à ideia de existência de casamento de fato, e, por consequência, impedir o reconhecimento da referida entidade familiar, nos termos propostos pelo Tribunal de origem". O relator ainda enfatizou que os cônjuges, mesmo residindo sob o mesmo teto, ocupavam quartos separados e não mantinham relações sexuais. Entretanto, após voto-vista da Ministra Nancy Andrighi, por maioria de votos, a Terceira Turma do STJ entendeu desconfigurada a união estável, julgando totalmente improcedente o pedido, negando, assim, provimento ao Recurso Especial. 3 União Estável de Pessoas Casadas: Separação de Direito e Separação de Fato O primeiro aspecto a ser destacado nesse julgamento diz respeito à própria peculiaridade do caso, ou seja, um separado judicialmente que permanece residindo sob o mesmo teto com a esposa e mantém relacionamento afetivo paralelo por cerca de 30 anos com outra mulher. Chama a atenção o tratamento dispensado pelo STJ ao caso, considerando o tribunal que não teria havido o rompimento do casamento, impossibilitando, por isso, a constituição de união estável, aplicando-se à relação paralela o tratamento legal de concubinato. Do voto-condutor, realçamos os seguintes excertos: "(...) muito embora separados judicialmente, houve a continuidade da união de O.M.G. com M.C., que permaneceram juntos até a morte do cônjuge 18 varão, o que vem referendar a questão, também posta no acórdão impugnado, de que não houve dissolução do casamento válido, ponderando-se, até mesmo, a respeito do efetivo término da sociedade conjugal, porque notória a continuidade da relação, muito embora não formalizado pedido de retorno ao status de casados. Nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, o casamento válido não se dissolve pela separação judicial; apenas pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. (...) Considerada a imutabilidade, na via especial, da base fática tal como estabelecida no acórdão recorrido, constando expressamente que, muito embora tenha o falecido se relacionado com a recorrente por longo período, com prole comum, em nenhum momento o cônjuge varão deixou a primeira mulher, ainda que separados judicialmente - mas não de fato -, o que confirma o paralelismo das relações mantidas pelo falecido com M.C. (por meio século) e L.L.N. (por três décadas), deve ser confirmado o quanto decidido pelo TJ/PR, que, rente aos fatos, rente à vida, verificou a ausência de comprovação de requisitos para a configuração da união estável (...)" Vê-se que o STJ, no voto que conduziu o julgamento, entendeu não ter havido "separação de fato" entre o falecido e a esposa, os quais, mesmo separados judicialmente, continuaram o convívio conjugal, o que impediria o reconhecimento, como união estável, da relação paralela mantida com a autora. Para o STJ, a permanência do varão no domicílio conjugal se equiparou à própria restauração do casamento ("(...) não houve dissolução do casamento válido, ponderando-se, até mesmo, a respeito do efetivo término da sociedade conjugal, porque notória a continuidade da relação"). 19 Registre-se, inicialmente, que o § 1º do art. 1.723 do Código Civil não considera a situação do separado de direito ou do separado de fato óbice ou impedimento à constituição de união estável. No caso concreto, se dúvida havia quanto à separação de fato, inquestionável que o de cujus se encontrava separado judicialmente da esposa. A separação judicial, não obstante ainda impeça o casamento, uma vez que dissolve apenas a sociedade conjugal, já habilita os separados a reconstruírem suas vidas sob o regime da união estável. Quem é separado de direito (judicialmente ou extrajudicialmente) não pode casar, mas pode constituir união estável. Essa, aliás, foi umas das grandes inovações do CC/02 em matéria de união estável, no sentido de alcançar as "pessoas separadas de fato ou judicialmente, que impedidas de casar, por não serem divorciadas, constituem, sabidamente, união com outrem, merecedora da tutela legal. Esse alcance da lei coloca o direito como instrumento palpitante da realidade circundante, não sonegando a esse significativo universo de pessoas separadas o amparo da entidade familiar compatível à situação convivencial por eles vivida com terceiros e digna das devidas 3 repercussões jurídicas" . O entendimento trilhado pelo STJ no julgamento ora em comento representou um passo importante na interpretação evolutiva do § 1º do art. 1.723, pois o tribunal fixou a posição de que não basta a "separação judicial", sendo imprescindível que cônjuge legalmente separado também esteja "separado de fato", para que possa, só então, iniciar convivência em união estável com outra pessoa 4. Não obstante o § 1º em questão se 3 Cf. DELGADO, Mário Luiz e FIGUEIREDO, Jones. Código Civil anotado. Inovações comentadas artigo por artigo. São Paulo: Método, 2005. p. 883. 4 Há quem entenda, como Silvio Neves Baptista, que, nesses casos, se deveria aguardar o prazo de dois anos da separação de fato do casal para se admitir o início da união estável subsequente: "Uma vez perpassado o biênio, o cônjuge, cujo matrimônio ainda não se desfez, pode constituir união estável com uma terceira pessoa, sem incidir na vedação do § 1º do art. 1.723 do Código Civil, em virtude da regra do art. 226, § 6º, da Lei Maior, que autoriza a quebra do vínculo conjugal após dois anos de separação de fato". (Cf. União estável de pessoa casada. In: Novo Código Civil: questões controvertidas. v. 3. DELGADO, Mário Luiz e ALVES, Jones Figueiredo - Coord. São 20 referir à pessoa casada "separada de fato ou judicialmente", a norma exige que o separado de direito a quem o Código Civil permite a constituição de união estável já esteja efetivamente "separado de fato" do cônjuge, mesmo porque esta normalmente precede àquela 5. Em outras palavras, o mais importante é a separação de fato, não se podendo admitir a união estável de pessoa casada, separada judicialmente, mas que ainda mantém convivência, sob o mesmo teto, com o cônjuge 6. A interpretação do STJ, na voz e pena da Ministra Nancy, nos parece absolutamente correta. A lógica da regra permissiva é beneficiar àqueles que já romperam efetivamente o relacionamento afetivo anterior, quer esse rompimento seja de direito e de fato ou apenas de fato, possibilitando-os a reconstrução da vida afetiva sob a tutela jurídica da união estável. A dissolução formal da sociedade conjugal, sem que os cônjuges rompam a convivência fática, impossibilita a aplicação da cláusula de exceção posta no § 1º do art. 1.723 do CC/02. A regra geral, portanto, é que as pessoas casadas não podem constituir união estável enquanto não dissolvido o casamento, salvo se separadas de fato (ou separadas de direito e de fato simultaneamente). Não havendo a separação de fato, a relação afetiva, não eventual, paralela ao casamento, será concubinato, nos moldes prescritos no art. 1.727. O Direito de Família no Brasil assenta suas bases no princípio da monogamia, que segundo Rodrigo da Cunha Pereira, "não é simplesmente uma norma moral ou moralizante. Sua existência nos ordenamentos jurídicos que o adotam tem a função de um princípio jurídico Paulo: Método, 2005. p. 312). Essa posição, no entanto, não tem sido acolhida, nem pela doutrina majoritária, nem pela jurisprudência do STJ. 5 É relativamente comum, especialmente em grandes cidades, o casal se separar ou mesmo se divorciar e continuar residindo sob o mesmo teto por razões econômicas. Entretanto, nesse caso, seguindo a linha de entendimento do STJ, não seria possível aos cônjuges constituírem união estável com outra pessoa. 6 Nesse sentido parece ser a doutrina de Paulo Luiz Netto Lobo: "A lei não exige que, para o início da união estável, o companheiro casado tenha antes obtido o divórcio, única hipótese de dissolução voluntária do casamento. Mas é necessário ao menos que esteja separado de fato de seu cônjuge, ou separado judicialmente. Assim, na hipótese de o relacionamento com o outro companheiro ter começado quando ainda havia convivência com o cônjuge, somente após a separação de fato se dá o início da união estável, pois antes configurava concubinato". (Cf. Direito Civil - Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 157). 21 ordenador. Ele é um princípio básico e organizador das relações jurídicas da família no mundo ocidental" 7 . Essas bases restariam abaladas a admitir-se a constituição de união estável sem o rompimento fático da relação casamentária anterior. Uma objeção que talvez possamos lançar ao acórdão, e que não compromete o embasamento da decisão, diz respeito à ponderação sobre o efetivo término da sociedade conjugal. Devemos lembrar que o casamento é um ato formal e solene, tanto na constituição como na sua dissolução. As formalidades enfeixam a grande distinção entre casamento e união estável. Este é um fato da vida e, como tal, não se compraz com a prova exclusivamente documental, como no casamento. O desfazimento do casamento validamente celebrado, por outro lado, também se submete a um processo formal e solene. O desfazimento da união estável, a seu turno, reclama apenas um fato: o rompimento da convivência. Dissolvido o casamento pelo divórcio ou dissolvida a sociedade conjugal pela separação de direito, o ato de dissolução produzirá todos os seus efeitos, independentemente do casal continuar convivendo ou não. Cessa, por exemplo, o regime de bens e os direitos sucessórios (CC, art. 1.830), mesmo que os cônjuges permaneçam sob o mesmo teto. Em suma, o fato de haverem continuado a residir sob o mesmo teto, no caso concreto, não implicou em restauração da sociedade conjugal, nem, de per si, representaria impedimento ao reconhecimento de união estável posterior do cônjuge varão com a autora. O problema foi que não teria havido a separação de fato e, sem a separação de fato, incide a regra geral proibitiva da união estável entre pessoas casadas. 7 Cf. Princípios fundamentais norteadores do Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 106-107. 22 4 Sexo e Afeto: Fatos que Não Devem Ser Analisados pelo Judiciário? Um outro ponto que nos chamou a atenção nesse acórdão foi a negativa do tribunal em examinar a natureza da relação mantida entre os cônjuges, ou seja, saber se o casal, mesmo separado de direito, encontrava-se separado de fato, tal como colocado no voto-vencido do Ministro Massami, o que implicaria, necessariamente, em averiguar se mantinham relação de natureza sexual. Para a Ministra Nancy tal averiguação implicaria em invasão do Judiciário na esfera mais íntima das pessoas, violando, assim, o direito fundamental à intimidade e à vida privada. Vejamos: "(...) se um casal, unido pelos laços do matrimônio ou em união estável, prefere dormir em quartos separados, tal fato não constitui relevância para o Direito e não significa ausência de amor, carinho, dedicação, cuidado e zelo. Isso porque, a esfera íntima, privada, dos consortes, só a eles diz respeito e não deve nela se imiscuir o julgador, notadamente quando amparado em meras suposições, extraídas de depoimentos testemunhais. Do mesmo modo, a simples conjectura de que entre os cônjuges ou companheiros já não haveria mais contato sexual, não tem o condão de modificar o raciocínio até aqui trilhado, porque os arranjos familiares, concernentes à intimidade e à vida privada do casal, não devem ser esquadrinhados pelo Direito, em hipóteses não contempladas pelas exceções legais, o que violaria direitos fundamentais enfeixados no art. 5º, inciso X, da CF/88 - o direito à reserva da intimidade assim como o da vida privada -, no intuito de impedir que se torne de conhecimento geral a esfera mais interna, de âmbito intangível da liberdade humana, nesta delicada área da manifestação existencial do ser humano. (BASTOS, Celso Ribeiro e ALEXY, Robert apud GONZAGA, Andréa Neves, in Direito à intimidade e privacidade. Disponível em: <http://jusvi.com/artigos/31767. Acesso em: 20 abr. 2010) Este mundo de relações líquidas, fluidas, está saturado de relacionamentos que contemplam sexo, mas, não raras vezes, 23 são destituídos de amor, afeto e ternura, avistar uma situação diversa, em que o afeto subjaz perene, mas o sexo pode estar ausente, especialmente em relações contínuas e duradouras, na espécie mais de meio século, não pode consubstanciar perplexidade, e sim, compreensão. E, sob tal perspectiva pergunto: qual das situações citadas pode ser denominada de relação afetiva? Aquela que contempla o sexo e exclui o afeto? Ou a que pode não conter sexo, mas inequivocamente reveste-se de afetividade?" Com relação a esse argumento, manifestamos entendimento um pouco diverso. Não há dúvida que sexo e afeto não se confundem e que, realmente, existem casais casados que optam por não se relacionarem sexualmente. A doutrina cita os casos de enfermidade de um dos cônjuges, de pessoas em idade avançada e ainda de casais que fizeram voto de castidade 8. No casamento, dada a robustez das formalidades de que se reveste o ato, a investigação sobre a existência de relacionamento sexual é pouco relevante e, por isso, plenamente válida a afirmação de não caber ao Judiciário se imiscuir em tal questão, salvo quando a ausência de sexo é invocada como causa para a anulação do casamento 9. 8 Sendo o dever de coabitação o dever principal de ambos os esposos disciplinado por normas de ordem pública, "pode haver tolerância entre os mesmos, quanto à sua dispensa, mas nunca renúncia ao direito de exigi-lo ou convenção que tenda a abolilo".(Cf. AZEVEDO, Álvaro Villaça. Dever de coabitação. São Paulo: Bushatsk y, 1976, p. 194). 9 A jurisprudência é praticamente pacífica no sentido de que a recusa de um dos cônjuges em manter relação sexual com outro dá ensejo ao pedido de anulação do casamento, por erro essencial sobre a pessoa do outro. Além do mais, "a recusa reiterada e injuriosa quanto à manutenção de relacionamento sexual acarreta o descumprimento do dever de respeito à integridade psicofísica e à autoestima do consorte, nos termos do ar 1.566, n. V, do Código Civil de 2002, podendo constituir causa de separação judicial (Cód. Civil de 2002, art 1.572, caput)". (MONTEIRO, W ashington de Barros. Curso de Direito Civil. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 152). No mesmo sentido, a doutrina de Maria Helena Diniz: "A infração do dever de coabitação pela recusa injustificada à satisfação do débito conjugal constitui injúria grave, implicando ofensa à honra, à respeitabilidade, à dignidade do outro consorte, e podendo levar à separação judicial (CC, art. 1.573, III)." (Curso de Direito Civil brasileiro: 20. ed. v. 5. São Paulo: Saraiva. p. 134). 24 Na união estável, a questão do relacionamento de cunho sexual deve ser analisada sob uma outra ótica. Como não existem formalidades e a união fática não se prova por papéis ou certidões, saber se o casal mantém um relacionamento sexual é indispensável à caracterização e à consequente tutela estatal da entidade familiar sob a moldura da união estável. Claro que existem entidades familiares constituídas por afeto e sem sexo. Basta citar a família monoparental. Mas na união estável essa aferição, ainda que por mera declaração das partes, através de prova testemunhal indireta ou mesmo indiciária, é indispensável. No caso dos autos, esse tipo de investigação teria sido relevante para aferir se houve a efetiva separação de fato entre os cônjuges. Confirmado que dormiam em quartos separados e que não mantinham relacionamento sexual, a princípio, comprovada estaria a separação de fato e possível seria o reconhecimento da união estável subsequente, desde que presentes os demais requisitos legais. A prevalecer o entendimento restritivo da intervenção do Judiciário manifestada no voto-condutor, ou seja, se o Judiciário não puder se imiscuir nessa questão, em nenhuma hipótese corremos o risco de assistir ao reconhecimento de "uniões estáveis", especialmente para fins previdenciários e sucessórios, decorrentes, por exemplo, de qualquer relacionamento afetivo entre amigos que dividam um apartamento ou entre uma senhora idosa e sua antiga empregada que lhe presta assistência por longo período, etc. Com a máxima vênia, união estável não é só afeto. É também coabitação 10 e esta, se modernamente não 10 requer, Apesar do Código Civil não se referir ao "dever de coabitação" na união estável, não temos dúvida em afirmar que, mais do que um dever, comum ao casamento e à união estável, trata-se de um requisito de configuração da própria união fática (O art. 1.723 exige "convivência"). Aliás, recorrendo novamente ao magistério de Villaça, a coabitação, "segundo os léxicos, é a convivência de duas pessoas, casadas ou não, é a vida íntima de casais, significando mesmo o ato da realização sexual (...) Aí a ideia de que a coabitação consiste nas íntimas relações entre homem e mulher, que vivem 25 necessariamente, convivência sob o mesmo teto, como veremos no tópico seguinte, pressupõe atividade sexual recíproca dos conviventes. Não é só a convivência afetiva que forma a união estável, mas a união carnal, como bem ensina Álvaro Villaca Azevedo 11 . Aliás, no entender desse ilustre professor das Arcadas, com apoio ainda na doutrina de Orlando Gomes, o próprio termo "coabitação" é apenas um "eufemismo empregado para significar o efetivo exercício das relações sexuais entre os cônjuges. Por outras palavras, conclui esse jurista, baseando-se em Jean Carbonnier, o modo pudico de designar as relações sexuais" 12 . Efetivamente a doutrina tradicional sempre tratou do dever de coabitação como compreensivo simultaneamente da convivência sob o mesmo teto e da prestação sexual recíproca 13 . Atualmente, mesmo admitindo-se a possibilidade de coabitação em residências diversas, por conveniência pessoal, posição com a qual não concordamos, continua a ser indispensável à coabitação o relacionamento sexual, salvo as situações excepcionais já exemplificadas, em que um ou ambos os cônjuges ou conviventes voluntariamente fazem outra escolha. 5 Necessidade da Vida em Comum sob o mesmo Teto para a Caracterização da União Estável O último aspecto do acórdão a ser destacado diz respeito à valorização feita pela Ministra Nancy da convivência more uxorio sob o mesmo teto. Ou seja, apesar de reconhecer que a vida em comum sob o conjuntamente, ou casados ou em concubinato. O sentido é o de viverem juntos, de conviverem sexualmente". (VILLAÇA, Álvaro. Dever de coabitação. São Paulo: Bushatsk y, 1976. p. 15-16) 11 Cf. VILLAÇA, Álvaro. Dever de coabitação. São Paulo: Bushatsky, 1976. p. 194. 12 Op. cit., p. 195. 13 Antonio Chaves, citado por Maria Helena Diniz, "distingue, no dever de coabitação, dois aspectos fundamentais: o imperativo de viverem juntos os consortes e o de prestarem, mutuamente, o débito conjugal, entendido este como o 'direito-dever do marido e de sua mulher de realizarem entre si o ato sexual'". (Curso de Direito Civil brasileiro, cit., p. 133). 26 mesmo teto não seria indispensável para a caracterização da união estável, no caso concreto, o STJ enxergou, na ausência dessa convivência, a prova de que não havia intenção de constituir família, esta, sim, condição inafastável ao reconhecimento da união estável. Confiram-se os seguintes trechos da ementa e também do voto-condutor: "Ainda que a coabitação não constitua requisito essencial para o reconhecimento de união estável, sua configuração representa dado relevante para se determinar a intenção de construir uma família, devendo a análise, em processos dessa natureza, centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a fidelidade, a continuidade da união, entre outros, nos quais se inclui a habitação comum. (...) Acrescente-se que, de um homem na posição em que o falecido ostentava no cenário social e econômico, espera-se sagacidade e plena consciência de suas atitudes, de modo que, acaso pretendesse extrair efeitos jurídicos, notadamente de cunho patrimonial, em relação à sua então concubina, promoveria em vida atos que demonstrassem sua intenção de com ela permanecer, na posse do estado de casados, afastando-se, por conseguinte, do lar conjugal. Se não o fez, não o fará, em seu lugar, o Poder Judiciário, contra a vontade do próprio falecido." Nesse ponto o acórdão merece aplausos e recebe a nossa irrestrita adesão. O elemento "convivência no mesmo domicílio" não pode ser relevado no exame de um relacionamento afetivo para fins de qualificá-lo juridicamente como união estável. Particularmente sempre entendemos fundamental à configuração da união estável a convivência sob o mesmo teto, salvo havendo motivo relevante que justifique a não coabitação. Esse motivo deve ser alheio à vontade "meramente egoística" das partes, vale dizer, não se trata apenas de "querer ou não querer" morar junto, mas 27 "poder ou não poder", levando em conta as contingências da vida 14 . Pressupõe-se que todo casal que inicie uma nova vida, que resolva constituir um novo núcleo familiar, deseje, a princípio, conviver sob o mesmo teto (diz o vulgo "quem casa quer casa"). Esse desejo, no entanto, nem sempre pode ser concretizado, como falamos no tópico anterior, máxime nos casos em que a profissão exige o afastamento de um dos dois (pense-se nas hipóteses de 2 juízes, residindo em comarcas diferentes, um casal de médicos cursando residência em cidades diversas, etc.) 15 . Mas se o casal não reside sob o mesmo teto por ato estritamente voluntário e pessoal, exclusivamente subjetivo, sem qualquer justificativa objetiva, parece-nos difícil, ou quase impossível, comprovar a intenção de constituir família. Por isso pensamos que, fora das situações de afastamento justificado, não é de se admitir o reconhecimento da união estável sem coabitação no mesmo endereço. No caso decidido pelo STJ, o fato do casal não possuir um endereço comum não foi justificado. Não se sabe quais os motivos que levaram o falecido a continuar a residir com a esposa, na mesma residência, depois de separado judicialmente. Depreende-se do voto, apenas, que não foram razões de ordem financeira, pois tratava-se de empresário bem posicionado na sociedade local. A não coabitação no mesmo endereço, nesse caso, deixou claro ao tribunal que o falecido não tinha intenção de constituir família com a autora, descaracterizando a alegada união estável. 14 Em sentido contrário, a doutrina de Paulo Luiz Netto Lobo: "(...) o princípio da liberdade familiar, de fundo constitucional, afeiçoa-se à escolha dos cônjuges em viverem em domicílios separados por conveniência pessoal". (Op. cit., p. 122). 15 O CC/02, "quando disciplinou o domicílio conjugal (art, 1.569), permitiu que o cônjuge possa dele ausentar-se 'para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes'. Por seu turno, o art. 72 admite a pluralidade de domicílios, relacionados ao lugar da profissão. O lugar onde se situa a comunidade de vida se chama atualmente 'residência' da família, e não mais 'domicílio conjugal' (...)"(Cf. LÔBO, Paulo Luiz Netto, op. cit., p. 122). 28 Ainda que a coabitação no mesmo teto não configure requisito indispensável, repita-se, a união estável não se caracteriza sem que haja a constituição de família, não bastando o mero objetivo, em que pese a redação atual do art. 1.723 do CC/02 fazer transparecer ao leigo o contrário 16 . Intenção ou objetivo de constituição de família os namorados e os noivos também podem ter, sem que com isso passem a estar sujeitos às consequências jurídicas, pessoais e patrimoniais, da união estável. Não basta que a relação seja pública, contínua e duradoura. Nem muito menos que seja caracterizada por forte vínculo afetivo. Aliás, união estável não é sinônimo de vínculo afetivo. Em resumo, é absolutamente indispensável que o casal tenha formado um núcleo familiar comum. E como a constituição de família revela-se por meio de dados concretos, somente quando os conviventes coabitam sob o mesmo teto é que pode ser constatada de plano a existência de uma nova família. Se cada um opta por manter o seu próprio núcleo familiar, cada qual com a sua prole, sem coabitação no mesmo teto, e sem motivo relevante e incontornável que justifique essa não coabitação, resta claro que não houve a constituição de um novo núcleo familiar, e sem isso não se configura união estável. Essa foi justamente a hipótese submetida ao julgamento do STJ, no qual corretamente se entendeu inexistente a união estável entre o de cujus e a autora. 16 "Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família." 29 6 Conclusões O STJ mais uma vez inova a interpretação do Código Civil, aclarando e estabelecendo o verdadeiro alcance da norma posta no § 1º do art. 1.723. Segundo o STJ, a norma jurídica que se extrai desse dispositivo é a seguinte: pessoas casadas não podem constituir união estável, salvo se "separadas de fato", independentemente de estarem ou não separadas de direito. Assim, o separado judicialmente, que não se ausente do domicílio conjugal, pressupondo-se, por isso, a continuidade da coabitação com o cônjuge, estará impedido legalmente de constituir união estável com terceira pessoa. Igualmente merece relevo, e nesse ponto também uma certa preocupação, a manifestação restritiva ao exame pelo Judiciário de questões afetas à intimidade e à vida privada dos litigantes, como é o caso da existência ou não de relacionamento sexual. Pensamos que em determinadas situações, sobretudo no Direito de Família, essa análise pelo Judiciário é indispensável. O julgamento prolatado pelo STJ realça, enfim, a importância da convivência sob o mesmo teto como prova da formação de novo núcleo familiar, para fins de caracterização da união estável. A moradia comum é configuração típica da vida de casados, e a união estável pressupõe a aparência de casamento. Os conviventes vivem como se casados fossem. Em qualquer relacionamento afetivo pode até existir entre o casal o objetivo de constituir uma família no futuro; na união estável, a constituição de família é fato presente, cujo principal meio de prova é o endereço comum. 30