Parte Geral – Doutrina A Autofalência Como Dever: Reflexos do Descumprimento do Disposto no Artigo 105 da Lei nº 11.101/2005 ANDRÉ FERNANDES ESTEVEZ Mestrando em Direito Privado pela UFRGS, Administrador Judicial em Falências e Recuperações Judiciais, Advogado. RAFAEL FRITSCH DE SOUZA Pós-Graduando pela PUCRS, Advogado. SUMÁRIO: Introdução; 1 Formas de liquidação da sociedade; 1.1 Liquidação da sociedade (artigos 1.102 e seguintes do Código Civil e artigos 210 e seguintes da Lei nº 6.404/1976); 1.2 Autofalência (artigos 105 e seguintes da Lei nº 11.101/2005); 2 A autofalência e a palavra dever – Entre a mera faculdade e a ilicitude; 3 Ação de responsabilidade; 4 Relação entre o dever de autofalência e a responsabilidade pessoal; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO A autofalência é a abertura de concurso de credores por iniciativa do próprio devedor, mediante requerimento ao juízo falimentar, quando se ache em crise econômico-financeira que entenda não satisfazer os requisitos para requerer a recuperação judicial. A falência requerida pelo devedor já se encontrava prevista no revogado Decreto-Lei nº 7.661/1945, nos arts. 8º e 140, II, como um dever passível de sanção1. Com efeito, aquele que não requeresse ao juízo falimentar a declaração de sua falência dentro de 30 dias do inadimplemento de obrigação líquida ficava impedido de impetrar concordata. A execução concursal – entre elas a falência – foi concebida no período romano como uma medida punitiva contra o devedor2, uma vez que o submetia à pena de prisão e até mesmo a penas infamantes, chegando a ser considerado como morto3. 1 2 3 O STF mitigou a sanção com a edição da Súmula nº 190, a qual assim dispõe: “O não pagamento de título vencido há mais de trinta dias, sem protesto, não impede a concordata preventiva”. BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952. p. 47. Para Rubens Requião: “O primitivo direito romano refletia, porém, a barbárie do princípio de que o corpo do devedor respondia pelas suas dívidas. Não se exigia a intervenção do Estado, pois o credor tinha o poder de, fazendo justiça pelas próprias mãos, sujeitar o devedor inadimplente” – como consta em REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 7. ZANINI, Carlos Klein. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 337. 90 .................................................................................................................. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA A atual legislação não recepcionou, de forma explícita, uma sanção ao devedor que não requer sua falência, mas deixou expressamente consignado que é dever de assim proceder, como consta no art. 105 da Lei nº 11.101/2005. Embora a expressão dever posta na lei, face à ausência de sanção explícita, a doutrina passou a compreender que existe mera faculdade do exercício da autofalência4. O objetivo, neste momento, é demonstrar que a ausência do pedido de autofalência, combinado com outros elementos, pode gerar sanções específicas aos sócios, administradores e controladores da sociedade. 1 FORMAS DE LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE A sociedade pode ser extinta por quaisquer das hipóteses previstas nos arts. 1.0335 e 1.0446 do Código Civil, que expõem: o vencimento do prazo de duração da sociedade; o consenso unânime dos sócios; a deliberação absoluta dos sócios nas sociedades por prazo indeterminado; a falta de pluralidade de sócios; a extinção de autorização para funcionar; a falência. Para o caso das sociedades anônimas, a Lei nº 6.404/1976 prevê as hipóteses de dissolução da sociedade no seu art. 2067. Há clara distinção entre as fases de dissolução, liquidação e extinção das sociedades, consoante se depreende, respectivamente, dos arts. 1.033, 1.102 e 1.109 do Código Civil. A dissolução consiste no encerramento das atividades habituais da sociedade – o seu objeto social –, sem que haja o término da sua personalidade jurídica, a qual permanece para fins de liquidação. Realizadas essas duas etapas, ocorre a extinção da sociedade8. 4 5 6 7 8 Por todos: COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 294. “Art. 1.033. Dissolve-se a sociedade quando ocorrer: I – o vencimento do prazo de duração, salvo se, vencido este e sem oposição de sócio, não entrar a sociedade em liquidação, caso em que se prorrogará por tempo indeterminado; II – o consenso unânime dos sócios; III – a deliberação dos sócios, por maioria absoluta, na sociedade de prazo indeterminado; IV – a falta de pluralidade de sócios, não reconstituída no prazo de cento e oitenta dias; V – a extinção, na forma da lei, de autorização para funcionar. [Omissis]” “Art. 1.044. A sociedade se dissolve de pleno direito por qualquer das causas enumeradas no art. 1.033 e, se empresária, também pela declaração da falência.” “Art. 206. Dissolve-se a companhia: I – de pleno direito: a) pelo término do prazo de duração; b) nos casos previstos no estatuto; c) por deliberação da assembleia-geral (art. 136, X); d) pela existência de 1 (um) único acionista, verificada em assembléia-geral ordinária, se o mínimo de 2 (dois) não for reconstituído até à do ano seguinte, ressalvado o disposto no art. 251; e) pela extinção, na forma da lei, da autorização para funcionar. II – por decisão judicial: a) quando anulada a sua constituição, em ação proposta por qualquer acionista; b) quando provado que não pode preencher o seu fim, em ação proposta por acionistas que representem 5% (cinco por cento) ou mais do capital social; c) em caso de falência, na forma prevista na respectiva lei; III – por decisão de autoridade administrativa competente, nos casos e na forma previstos em lei especial.” OLIVEIRA, Celso Marcelo de. Tratado de direito empresarial brasileiro: teoria geral do direito societário. Campinas: LZN, v. II, 2004. p. 39-40. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA.................................................................................................................... 91 Alfredo de Assis Gonçalves Neto precisa que as situações previstas nos arts. 1.033 e 1.044 do Código Civil referem-se a causas de dissolução da sociedade9. Nesses casos, a sociedade pode ser dissolvida, para posteriormente entrar em sua fase de liquidação e posterior extinção. Dissolvida a sociedade por qualquer das causas elencadas no art. 1.033 do Código Civil, será nomeado liquidante que dará início à fase de liquidação e deverá seguir o procedimento previsto nos arts. 1.102 e seguintes do Código Civil. Ocorrendo a hipótese do art. 1.044 do Código Civil – declaração de falência –, a liquidação se dará por meio do processo falimentar. Como será visto adiante, a diferença marcante entre as duas formas de liquidação da sociedade está na suficiência de patrimônio para o pagamento dos credores. 1.1 LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE (ARTIGOS 1.102 E SEGUINTES DO CÓDIGO CIVIL E ARTIGOS 210 E SEGUINTES DA LEI Nº 6.404/1976) Uma vez dissolvida a sociedade, deve ser nomeado liquidante10 para que seja dado início à fase de liquidação do patrimônio (art. 1.102 do CC). Trata-se de fase na qual serão praticados atos visando à conversão do patrimônio da sociedade em dinheiro, a fim de que seja possível, posteriormente, pagar aos credores e, em caso de saldo, finalmente distribuí-lo entre os sócios. Pode ocorrer a liquidação sem a conversão do patrimônio em dinheiro, como, por exemplo, é o caso em que os valores do caixa sejam suficientes para cobrir o passivo e os bens sejam divididos entre os sócios. Pode um ou mais sócios ficar com os bens, desde que assuma o passivo social11. O ponto mais relevante a observar diz respeito à suficiência de ativos para a extinção da sociedade. Na hipótese dos arts. 1.102 e seguintes do Código Civil, percebe-se, claramente, que a liquidação ali tratada visa a colocar fim à sociedade que efetivamente tenha ativos suficientes para pagar todo o passivo. Fosse o caso de sociedade com passivo maior que o ativo, estaria se tratando de uma so9 10 11 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 259. Conforme dispõe o art. 1.102 do Código Civil, o liquidante poderá ou não ser administrador da sociedade. Normalmente é um dos sócios. Eventualmente pode ocorrer liquidação judicial, conforme disposto no art. 1.111 do Código Civil. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 465. 92 .................................................................................................................. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA ciedade em estado pré-falimentar ou insolvente, cuja forma de liquidação e extinção não segue o procedimento da legislação civil, mas sim o da Lei de Falências – no caso do devedor empresário. No art. 1.103, constam os deveres do liquidante do patrimônio da sociedade, incluindo-se no rol o inciso IV para “ultimar os negócios da sociedade, realizar o ativo, pagar o passivo e partilhar o remanescente entre os sócios ou acionistas”, demonstrando claramente a ideia de suficiência de ativos. Também consta, no parágrafo único do art. 1.106, que, “se o ativo for superior ao passivo, pode o liquidante, sob sua responsabilidade pessoal, pagar integralmente as dívidas vencidas”. Nos arts. 1.107, 1.108 e 1.110, extraem-se alguns trechos que geram a mesma ideia de suficiência de ativos: Art. 1.107. Os sócios podem resolver, por maioria de votos, antes de ultimada a liquidação, mas depois de pagos os credores, que o liquidante faça rateios por antecipação da partilha, à medida em que se apurem os haveres sociais. Art. 1.108. Pago o passivo e partilhado o remanescente, convocará o liquidante assembleia dos sócios para a prestação final de contas. [...] Art. 1.110. Encerrada a liquidação, o credor não satisfeito só terá direito a exigir dos sócios, individualmente, o pagamento do seu crédito, até o limite das somas por eles recebida em partilha, e a propor contra o liquidante ação de perdas e danos. (grifos nossos) Observa-se que consta no art. 1.110 do Código Civil que o credor poderá requerer perdas e danos contra o liquidante caso o crédito não tenha sido regularmente pago, isto porque se espera que a liquidação pague a todos os credores. Alfredo de Assis Gonçalves Neto afirma que a regra supõe culpa e excepciona a hipótese em que o liquidante “agiu com toda a diligência imposta no desempenho de suas funções e, mesmo assim, não logrou conhecer a existência do crédito ou da parte impaga”12. Também é possível observar tal obrigação no art. 1.103, VII, do Código Civil, quando menciona o dever do liquidante de “confessar a falência da sociedade e pedir concordata, de acordo com as formalidades prescritas para o tipo de sociedade liquidanda”. Nesse sentido, esclarece Alfredo de Assis Gonçalves Neto: Se a sociedade estiver insolvente e não puder cobrir as dívidas correntes, o liquidante é obrigado a pedir a declaração de sua insolvência ou confessar sua falência, se a tanto estiver sujeita. Embora paradoxal, 12 Idem, p. 474. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA.................................................................................................................... 93 não existe vedação a que o liquidante promova, respaldado em deliberação dos sócios, a recuperação judicial ou extrajudicial da sociedade para evitar a sua quebra. Sociedade em liquidação não é uma sociedade falida e serão as particularidades do caso concreto que irão justificar, ou não, providência dessa natureza [...].13 É possível encontrar disposição similar no art. 210, VII, da Lei nº 6.404/197614, que impõe obrigação ao liquidante da sociedade anônima de pedir falência nos casos previstos em lei. Neste ponto, esclarece Modesto Carvalhosa que a distinção entre a liquidação da sociedade e o pedido de falência está na suficiência ou insuficiência de ativos da sociedade para pagar todo o seu passivo: Ao dever do liquidante de requerer a autofalência ou a concordata preventiva acrescenta-se o de requerer a intervenção administrativa ou mesmo a intervenção ou liquidação extrajudicial nos casos previstos em leis especiais. Ao ser acolhido o pedido de falência, deixa a liquidação de ser o meio de pagamento de credores para o fim da partilha do remanescente entre os acionistas para transformar-se em concurso universal de credores na presunção legal de insuficiência de recursos para o pagamento de seus créditos, ainda que o patrimônio social possa hipoteticamente superá-los.15 Diante dessas considerações, na autofalência a principal diferença é tentativa de tratamento igualitário dos credores (pars conditio creditorum), fundado na suposição de ausência de ativo suficiente para pagar todo o passivo. 1.2 AUTOFALÊNCIA (ARTIGOS 105 E SEGUINTES DA LEI Nº 11.101/2005) O empresário16 ou a sociedade empresária que se ache em crise econômico-financeira que impossibilite pagar seus credores e que seja insuscetível de recuperação judicial passa a se encontrar em situação que pode ser denominada de estado de insolvência17. A autofalência18 é a abertura do concurso universal de credores por iniciativa do devedor “em crise econômico-financeira que julgue não aten13 14 15 16 17 18 Idem, p. 458. “Art. 210. São deveres do liquidante: [...] VII – confessar a falência da companhia e pedir concordata, nos casos previstos em lei; [...].” CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. IV, t. I, 2002. p. 117. Diz-se empresário porque a lei não restringe a sua aplicação às sociedades, podendo incidir sobre o empresário individual. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova lei de falências e recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 187-188. Entende Fábio Ulhoa Coelho que o termo autofalência é equivocadamente utilizado, posto que toda falência decorre de uma decisão judicial, e somente com o aval do juízo falimentar será decretada a falência daquele 94 .................................................................................................................. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA der aos requisitos para pleitear sua recuperação judicial”19. Note-se que, para requerê-la, o devedor tem que estar “num iminente estado de insolvência ou de falta previsível de liquidez” que torne inviável o prosseguimento da atividade empresarial e saldar as dívidas exigíveis contraídas com seus credores20. Trata-se de uma forma distinta da liquidação prevista no art. 1.102 do Código Civil justamente devido à presumível insuficiência de ativos que possam fazer frente a todo o passivo do devedor21. A confissão da falência em juízo e sua consequente decretação é obrigação legal imposta ao devedor pelo art. 105 da Lei de Falências, até para que torne público sua situação econômico-financeira e permita a liquidação de seu patrimônio de forma a salvaguardar os interesses dos credores (pars conditio creditorum) e “evitar a desagregação patrimonial e dispersão prematura de ativos”22. Para Waldo Fazzio Júnior, “a equidade é um princípio geral de Direito que, aqui, se manifesta em toda a sua intensidade. O tratamento equitativo dos créditos é a máxima regente de todos os processos concursais, considerado o mérito das pretensões antes que a celeridade na sua dedução”23. Afirma Alfredo Buzaid, ipsis litteris: Por outro lado, como observou Liebman, “as leis em todo tempo estiveram e ainda mais estão agora inclinadas a subtrair o andamento do processo, e muito especialmente da execução, ao arbítrio dos interessados diretos, elevando-a a figura de procedimento que progride sob impulso quase sempre oficial, em benefício de interêsses mais amplos que a simples satisfação do direito do exeqüente; muito mais justo afigura-se, pois, assegurar igualdade de condições a todos os credores”. Segundo êsse princípio, é justo, portanto, que o devedor, reconhecendo a sua própria insolvência, promova o concurso universal, a fim de serem distribuídos aos credores, segundo as preferências ou rateio, todos os bens (ou o produto) do seu patrimônio.24 19 20 21 22 23 24 que o requerer, como consta em COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 292. Em complemento, pode-se dizer que é do juízo falimentar a competência de declarar e decretar falência, posto que assim define o art. 3º da Lei nº 11.101/2005 – note-se que não se confunde autofalência com pedido de autofalência. TEPEDINO, Ricardo. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles de; ABRAÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de recuperação de empresas e falências. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 335-336. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova lei de falências e recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 245. Há raras hipóteses em que pode ocorrer a autofalência do devedor e que se apure, ao final, uma suficiência de ativos, como, por exemplo, a ausência de interesse dos credores em apresentar habilitação. FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova lei de falências e recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 246. Idem, p. 34. BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952. p. 282. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA.................................................................................................................... 95 Como o limite de ação dos credores desde o direito romano alcança tão somente o patrimônio do devedor, com o qual seriam satisfeitos, os valores alcançados pela execução concursal deveriam ser distribuídos igualitariamente entre todos, o que se traduziu no princípio da pars conditio creditorum25. Na Idade Média, muitas legislações, como a germânica e a portuguesa, permitiram que o credor que fosse mais “aflito” ou “diligente” e procedesse à penhora antes dos demais adquiria direito real e tinha preferência no pagamento. Mas foi com o Código francês de 1673 que se fez preponderar o princípio de igualdade entre todos os credores26. Luiz Inácio Vigil Neto aponta que as bases estruturais da falência moderna são o limite patrimonial, a condição de igualdade entre todos os credores e a natureza pública e judicial27. Assim, a falência tem diversos aspectos relevantes, mas tem como cerne a paridade de tratamento dos credores28. Pelo que se observa, a máxima de qualquer falência, e naturalmente também na autofalência, é o tratamento igualitário dos credores29 face ao pressuposto de insuficiência de ativos para pagar todos os credores. 2 A AUTOFALÊNCIA E A PALAVRA – ENTRE A MERA FACULDADE E A ILICITUDE A liquidação prevista no Código Civil e na Lei nº 6.404/1976 difere da Lei de Falências na medida em que aquela supõe suficiência de ativos para o pagamento de todos os credores, enquanto que esta tem como pressuposto a impossibilidade de satisfação de todo o passivo. A falência, embora por forma diferente, também é meio de liquidação da sociedade. Não obstante seja evidente a distinção entre os institutos, a Lei nº 11.101/2005 impôs o dever de se pedir a autofalência sem expressamente impor uma sanção: Art. 105. O devedor em crise econômico-financeira que julgue não atender aos requisitos para pleitear sua recuperação judicial deverá requerer ao juízo sua falência, expondo as razões da impossibilidade de prosseguimento da atividade empresarial [...]. (grifo nosso) 25 26 27 28 29 Idem, p. 54. REQUIÃO, Rubens. Curso de direito falimentar. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 11. VIGIL NETO, Luiz Inácio. Teoria falimentar e regimes recuperatórios. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 54. ESTEVEZ, André Fernandes. Das origens do direito falimentar à Lei nº 11.101/2005. Revista Jurídica Empresarial, Porto Alegre: NotaDez, n. 15, p. 40, jul./ago. 2010. Não existe contradição entre tratamento igualitário dos credores e a existência de ordem de preferência de pagamento dos créditos, na forma dos arts. 83 e 84 da Lei nº 11.101/2005. 96 .................................................................................................................. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA Vera Helena de Mello Franco afirma que, “cuidando-se de sentença declaratória de falência requerida, quer por terceiros credores, quer confessada, as consequências são as mesmas, e idênticos os deveres que incumbirão ao falido”30. Ricardo Tepedino aponta que “o legislador de 2005, não obstante tenha também empregado o verbo dever na redação do caput do art. 105, deixou de impor qualquer sanção para o desatendimento do preceito nele contido, confirmando a orientação pretoriana e o moderno entendimento doutrinário de que a confissão é uma faculdade do devedor”31. Fábio Ulhoa Coelho chega a expressar que a autofalência é instrumento posto à disposição do devedor para que deleguem ao Estado as atribuições de liquidação da sociedade sobre a qual se queira o encerramento: Qual o interesse, então, do pedido de autofalência? Se o devedor conclui que a empresa por ele explorada não tem mais recuperação, ou não tem ele o mínimo interesse em tentá-la, a autofalência – caso não tenha cometido nenhuma irregularidade à testa do negócio – pode-se apresentar como alternativa mais rápida de pôr fim a ela e, em certo sentido, desincumbir-se das tarefas de liquidação. O empresário honesto, em outros termos, tem o direito de transferir ao Estado a liquidação de sua empresa frustrada, por meio do pedido de autofalência.32 A jurisprudência do STJ orienta no mesmo sentido e aponta que a autofalência é faculdade posta à disposição do devedor33. Discussão semelhante encontra-se no direito italiano, conforme acentuam Bonfatti e Censoni: 30 31 32 33 FRANCO, Vera Helena de Mello. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 427. TEPEDINO, Ricardo. In: TOLEDO, Paulo F. C. Salles de; ABRAÃO, Carlos Henrique. Comentários à lei de recuperação de empresas e falências. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 336. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 294. A jurisprudência foi firmada nas bases do antigo Decreto-Lei nº 7.661/1945, mantendo-se a mesma posição sob a vigência da Lei nº 11.101/2005. Exemplificativamente: STJ, REsp 212.033/SC, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, J. 28.09.2004, publicado em 16.11.2004: “TRIBUTÁRIO – EXECUÇÃO FISCAL – REDIRECIONAMENTO – RESPONSABILIDADE DO SÓCIO – FALÊNCIA – SOCIEDADE LIMITADA – 1. Esta Corte fixou o entendimento que o simples inadimplemento da obrigação tributária não caracteriza infração legal capaz de ensejar a responsabilidade prevista no art. 135, III, do Código Tributário Nacional. Ficou positivado ainda que os sócios (diretores, gerentes ou representantes da pessoa jurídica) são responsáveis, por substituição, pelos créditos correspondentes às obrigações tributárias quando há dissolução irregular da sociedade – art. 134, VII, do CTN. 2. A quebra da sociedade de quotas de responsabilidade limitada, ao contrário do que ocorre em outros tipos de sociedade, não importa em responsabilização automática dos sócios. 3. Ademais a autofalência não configura modo irregular de dissolução da sociedade, pois além de estar prevista legalmente, consiste numa faculdade estabelecida em favor do comerciante impossibilitado de honrar os compromissos assumidos”. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA.................................................................................................................... 97 Começaremos do pedido do devedor. O empresário que se dá conta de que está em estado de insolvência está obrigado a dar início ao processo concursal; pode postular a concordata preventiva, caso preencha as condições; do contrário, deve pedir a autofalência (parte da doutrina configura, no entanto, um direito de falir), se não desejar correr o risco de incorrer no delito do art. 217, § 1º, da Lei de Falências, que pune por bancarrota simples seja o empresário que fez operações com grave imprudência para retardar a falência, seja aquele que agravou o seu próprio estado “abstendo-se de pedir a declaração de autofalência” ou com culpa grave.34 Cumpre observar que a autofalência não é instrumento criado em favor do devedor como tem sido entendido ao longo dos anos pela doutrina e pela jurisprudência, mas justamente em favor dos credores com a finalidade de garantir o tratamento igualitário – pars conditio creditorum – com a premissa de insuficiência de ativos. Vale dizer, a falência não é instrumento que busca favorecer o devedor, mas apenas proteger os credores. Desta forma, reitera-se que, havendo suficiência de ativos, cabe a liquidação da sociedade nas formas previstas no Código Civil ou na Lei das Sociedades Anônimas, conforme o caso. Não havendo suficiência de ativos, cabe a decretação da falência da sociedade empresária35. Adiante se verá que a sanção do descumprimento do dever de autofalência se resolverá pela responsabilidade pessoal dos sócios, administradores ou controladores, conjugando ilicitude e danos causados a terceiros. Contudo, para tal conclusão, é imprescindível concordar que, no momento em que a Lei nº 11.101/2005 estabelece que há dever, aqui reside uma obrigação sobre a qual, no caso de descumprimento, importa em ilicitude. Existem hipóteses adiante mencionadas em que haverá ilicitude e não ocorrerão possíveis danos causados e não se falará propriamente em sanção pelo descumprimento do dever, o que é comum no Direito36. De toda for34 35 36 BONFATTI, Sido; CENSONI, Paolo Felice. Manuale di diritto fallimentare. 3. ed. Pádua: Cedam, 2009. p. 50-51. (Original: “Incominciamo dalla richiesta del debitore. L’impreditore commerciale che si renda conto di essere in stato di insolvenza è tenuto ad attivarsi per l’apertura di una procedura concorsuale; può chiedere di essere ammesso al concordato preventivo, se ne sussistono le condizioni; diversamente deve chiedere il proprio fallimento (parte della dottrina configura, però, anche un diritto di fallire), se non vuole rischiare di incorrere nel reato di cui all’art. 217, comma 1º l. fall., che punisce per bancarotta semplice sia l’impreditore che ha compiuto operazioni di grave imprudenza per ritardare il fallimento, sia quello che ha aggravato il proprio dissesto, ‘astenendosi dal richiedere la dichiarazione del proprio fallimento’ o con altra grave colpa”.) Ou a insolvência da sociedade simples. ROMANO, Santi. L’ordinamento giuridico. Florença: Sansoni, 1951. p. 86: “Si è già avuto occasione di accennare (§ 8) alla dottrina, secondo la quale la sanzione non potrebbe considerarsi un elemento essenziale del diritto, e abbiamo visto come la dimostrazione di tale veduta si sia fondata sul concetto che il diritto non sia che norma di rapporti fra più subbietti, per i quali stabilisce doveri e diritti. Altri, partendo da considerazioni analoghe, non ha negato che l’ordinamento giuridico poggi su un sistema di sanzioni o coazioni, ma ha ritenuto che ciò possa essere importante pel filosofo, non pel giurista. In altri 98 .................................................................................................................. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA ma, a doutrina se inclina em afirmar que a palavra dever posta no art. 105 não é dever só porque não visualiza sanção. Em vez de reconhecer que é um ilícito sem sanção, retira-lhe a condição de ilicitude, por não observar a que fim poderia servir tal norma. A controvérsia está inequivocamente deslocada e não se encontra propriamente em saber se a palavra dever importa em obrigação – ou gera ilícito –, mas em saber qual é a sanção possível de tal descumprimento. Assim, passa-se ao exame da responsabilidade pessoal dos sócios, administradores e controladores, para a análise de possível ligação entre os dois institutos. 3 AÇÃO DE RESPONSABILIDADE Quanto à responsabilidade pessoal dos sócios, as sociedades empresárias37 podem ser divididas em ilimitada e limitada. Na primeira hipótese enquadra-se, exemplificativamente, a sociedade em nome coletivo, pela qual todos os sócios sempre respondem ilimitadamente por todas as obrigações contraídas pela sociedade38. Na segunda hipótese enquadra-se, exemplificativamente, a sociedade limitada, pela qual os sócios respondem até o limite de valor das suas quotas sociais quando totalmente integralizadas39. Alguns tipos de sociedades de responsabilidade ilimitada não admitem a transferência da administração para pessoa que não seja sócia, como é o caso da sociedade em nome coletivo40. A sociedade simples, que, em razão de seu objeto social, poderá ser simples ou empresária41, pode admitir a responsabilidade pessoal dos sócios42 e pode ser adminis- 37 38 39 40 41 42 termini, la sanzione sarebbe extragiuridica, appunto perché essa, ‘come garanzia dell’ordine giuridico, sarà da dedursi astrattamente dal complesso delle norme obbiettive’, e pel giurista non vi sono che tali norme, singolarmente considerate rispetto ai doveri e ai poteri che ne derivano, indipendentemente dalla loro finalità riguardo al sistema giuridico. L’osservazione ha quel fondo di verità, che anche noi abbiamo cercato di mettere in rilievo; soltanto è evidentemente inaccettabile la conclusione che se ne trae e che, partendo da un diverso concetto del diritto, si elimina da sé”. As sociedades simples não são tratadas especificamente porque não lhes cabe a falência, mas sim a insolvência. Código Civil de 2002: “Art. 1.039. Somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade em nome coletivo, respondendo todos os sócios, solidária e ilimitadamente, pelas obrigações sociais”. Código Civil de 2002: “Art. 1.052. Na sociedade limitada, a responsabilização de cada sócio é restrita ao valor de suas quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social”. Código Civil de 2002: “Art. 1.042. A administração da sociedade compete exclusivamente a sócios, sendo o uso da firma, nos limites do contrato, privativo dos que tenham os poderes necessários”. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 160-161. Código Civil de 2002: “Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: [...] VIII – se os sócios respondem, ou não, subsidiariamente, pelas obrigações sociais”. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA.................................................................................................................... 99 trada pelos sócios ou por terceiros43. A sociedade limitada também pode ser administrada por pessoas que não integram o quadro de sócios44. Dispõe a Lei nº 11.101/2005, em seu art. 81, que a falência das sociedades de responsabilidade ilimitada importa, automaticamente, na falência dos sócios45. No art. 82, consta que deverá ser apurada a responsabilidade pessoal dos sócios, controladores ou administradores da sociedade em processo próprio para tal fim46. Duas são as hipóteses de responsabilidade pessoal, a saber: (a) prática de ato ilícito; (b) descumprimento do dever de integralizar o capital social47. Entre as duas hipóteses, aqui interessa focar aquela atinente ao ato ilícito. Para a hipótese antes vertida, dois são os requisitos para a imputação de responsabilidade pessoal: a existência de ato ilícito e a existência de dano. O ato ilícito passível de responsabilização pessoal pode ser imputado por ato do sócio – ou acionista –, do administrador ou do controlador48. A existência de dano e a apuração de sua extensão fazem-se conforme a lei material específica que rege a sociedade falida49. Embora a redação dos artigos antes mencionados não seja “das mais felizes”50, verifica-se que os sócios da sociedade de responsabilidade ilimitada sempre respondem pessoalmente por todos os débitos da sociedade. Os sócios da sociedade de responsabilidade limitada respondem subjeti43 44 45 46 47 48 49 50 Código Civil de 2002: “Art. 1.010. Quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas por maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um”. No mesmo sentido, ao comentar o art. 1.012: GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 2. ed. São Paulo: RT, 2008. p. 201. Código Civil de 2002: “Art. 1.061. Se o contrato permitir administradores não sócios, a designação deles dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de dois terços, no mínimo, após a integralização”. Lei nº 11.101/2005: “Art. 81. A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem”. Lei nº 11.101/2005: “Art. 82. A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabelecida nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil”. ZANINI, Carlos Klein. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 354. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (Coord.). Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 528. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 207. ZANINI, Carlos Klein. In: SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de; PITOMBO, Antônio Sérgio A. (Coord.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 353. 100 ............................................................................................................... RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA vamente, conforme as hipóteses acima mencionadas. Os administradores e controladores respondem subjetivamente, com fundamento na prática de ato ilícito, tanto para os casos de sociedades de responsabilidade limitada e ilimitada. Verificadas as hipóteses da responsabilidade pessoal, nos seus pontos relevantes a este estudo, convém entrelaçar de forma direta e clara este instituto com o dever de autofalência. 4 RELAÇÃO ENTRE O DEVER DE AUTOFALÊNCIA E A RESPONSABILIDADE PESSOAL Firmada a compreensão de que o descumprimento do dever de pedir autofalência importa em ato ilícito e que a ação de responsabilidade exige ato ilícito e dano, este a ser apurado mediante critérios de direito material, o dissenso poderia ainda residir em saber quando o descumprimento do dever de autofalência gera dano passível de ser imputado ao sócio, ao controlador ou ao administrador. A jurisprudência do STJ tem reiteradamente afirmado que cabe a responsabilização pessoal “quando reste demonstrado que este agiu com excesso de poderes, infração à lei ou contra o estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa”51. Nas leis societárias, não há menção de proibição de liquidação pelas formas mencionadas no Código Civil ou na Lei das Sociedades Anônimas. E isto porque somente se observa uma distinção entre a falência – ou insolvência – em relação aos meios ordinários de liquidação, e na falência é que se observa um dever imposto de autofalência. Naturalmente, não pedir a autofalência não causa, por si só, danos reparáveis pela ação de responsabilidade pessoal. Por outro lado, trata-se de premissa vital para tal conclusão, devendo apenas ser observadas as hipóteses em que há danos a terceiros para atrair a hipótese. Ao sócio – ou administrador – que descumpre a ordem de reconhecer a sua autofalência cabem duas possibilidades: deixar de reconhecer a falência e não liquidar a sociedade ou promover a liquidação por suas próprias forças e pagar os credores da forma que entender cabível. Ao sócio que deixa de reconhecer a autofalência e não liquida a sociedade, a jurisprudência já tem se manifestado pela sua responsabilização 51 STJ, REsp 901.282/SP, 1ª T., Rel. Min. Luiz Fux, J. 20.08.2009, publicado em 10.09.2009: “3. A responsabilidade patrimonial secundária do sócio funda-se na regra de que o redirecionamento da execução fiscal, e seus consectários legais, para o sócio-gerente da empresa, somente é cabível quando reste demonstrado que este agiu com excesso de poderes, infração à lei ou contra o estatuto, ou na hipótese de dissolução irregular da empresa”. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA................................................................................................................. 101 pessoal sob o fundamento de que se trata de forma irregular de encerramento das atividades por ausência de cumprimento do dever de pedir autofalência: Aliás, em 18 de setembro de 1998, ou seja, antes da decretação da quebra, o perito contábil referiu, nos autos do pedido de falência, que, ao comparecer ao local da sede da falida, constatou que esta se encontrava fechada, não se encontrando qualquer pessoal, a não ser a própria vizinhança, que pudesse dar informações sobre a empresa (fls. 63 e 64). Tal situação denota claramente que os apelantes, ao invés de efetuarem o pagamento de seus débitos e darem baixa da sociedade perante a junta comercial, optaram por, de forma irregular, encerrar suas atividades, fechando as portas e abandonando as mercadorias que se encontravam em estoque, as quais se perderam. Outrossim, inobstante a situação de insolvabilidade, deixaram, os recorrentes, de requerer a autofalência da sociedade, descumprindo a determinação legal – art. 8º do Decreto-Lei nº 7.661/1945. Ora, em havendo a constatação da impossibilidade de pagamento da dívida assumida pela empresa, deveriam, os sócios, ter requerido a decretação de sua quebra, providência que não adotaram. Dessa forma, tendo os apelantes, que exerciam as funções de representantes legais da empresa, a dissolvido irregularmente, bem como deixado de requerer sua autofalência, em evidente prejuízo aos credores e infringindo a lei, devem responder pessoal e ilimitadamente para com os débitos da falida, nos termos do disposto no art. 10 do Decreto nº 3.780/1919, combinado com os arts. 6º e 50, § 1º, do Decreto-Lei nº 7.661/1945, razão pela qual se impõe o improvimento do recurso.52 No caso antes mencionado, o prejuízo decorreu da perda dos bens que integravam a sociedade falida. Não é diferente a posição adotada para o caso do sócio que “liquida” por suas próprias forças o patrimônio da massa falida, antes da decretação da quebra, situação que afronta o princípio da pars conditio creditorum e, sobretudo, admite que o devedor dê preferência para classes de crédito menos privilegiadas, como é o caso do quirografário em detrimento do trabalhista, além de tornar impossível a verificação de que os ativos foram vertidos em favor dos credores: APELAÇÃO CÍVEL – FALÊNCIA – AÇÃO DE RESPONSABILIDADE CONTRA OS SÓCIOS – DISSOLUÇÃO IRREGULAR DA SOCIEDADE – DILAPIDAÇÃO DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA NO PERÍODO DE INSOLVÊNCIA – PREJUÍZO AOS CREDORES DA EMPRESA FALIDA A responsabilidade pessoal dos sócios pode ser perquirida em ação própria, quando configurada a prática de atos prejudiciais aos interesses dos credores da empresa falida. 52 TJRS, AC 70031694409, 6ª C.Cív., Relª Desª Liége Puricelli Pires, J. 06.05.2010. 102 ............................................................................................................... RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA A dissolução irregular da empresa, com a venda de todo o seu patrimônio, sem o ajuizamento de ação própria, sobretudo autofalência, em virtude do seu estado de insolvência, acarreta a aplicação do art. 82 da Lei nº 11.101/2005, com a responsabilização pessoal dos sócios administradores. Sentença mantida. Apelo desprovido. [Omissis] No corpo do acórdão consta: ainda que a venda dos bens tenha sido realizada para a quitação das rescisões trabalhistas, conforme sustentado pelos apelantes, referido ato se deu em desconformidade com a lei, uma vez que o esvaziamento do patrimônio da empresa ocorreu em detrimento de inúmeros credores, cuja dívida importava, aproximadamente, em R$ 300.000,00. Sinalo que, embora as dívidas trabalhistas gozem de privilégio na ordem de classificação dos créditos na falência, nos termos do art. 83, I, da Lei nº 11.101/2005, é preciso que as normas legais sejam observadas para a regular quitação dos débitos, o que inocorreu no caso em tela.53 Nos dois casos antes mencionados, os danos causados derivaram de desaparecimento dos bens da empresa e da venda de bens para suposto pagamento de credores sem obedecer ao procedimento previsto na Lei nº 11.101/2005. No entanto, outras hipóteses podem ser postas, como os efeitos do retardo no reconhecimento da falência de uma sociedade e os danos que podem ser causados aos credores. Suponha que a sociedade “A” tenha encerrado as suas atividades, e o devedor, em vez de reconhecer a autofalência, busca fazer pedidos protelatórios em pedido de falência que é movido contra a sua empresa. Em razão das circunstâncias narradas, a sociedade posterga o reconhecimento da insolvência para dois anos após o momento em que, de fato, encerrou as atividades com sabida insolvência. Neste período, o sócio acabou por postergar em dois anos a arrecadação de um veículo, o qual se desvalorizou em 30% no período. Ainda, deixou de encerrar contrato de locação de imóvel, o qual não se justificava, face ao encerramento de suas atividades. Ao que tudo indica, o retardo no reconhecimento da falência da sociedade gerou dois prejuízos diversos, os quais, não fosse o dever de pedir autofalência, seriam meros atos de má gestão, não se confundindo com atos ilícitos propriamente ditos. Assim, como se observa, a obrigação de pedir autofalência possui íntima ligação com o instituto da responsabilidade pessoal, servindo esta como a sanção possível ao descumprimento deste dever. 53 TJRS, AC 70036291532, 5ª C.Cív., Rel. Des. Romeu Marques Ribeiro Filho, J. 15.09.2010. RDE Nº 21 – Jul-Ago/2011 – PARTE GERAL – DOUTRINA................................................................................................................. 103 CONCLUSÃO Após uma abordagem sistemática da autofalência e da responsabilidade pessoal dos sócios, administradores e controladores da sociedade empresária, tem-se claro que existe um dever do devedor em confessar a sua falência, e não mera faculdade, como sustentado maciçamente pela doutrina pátria. A dificuldade da doutrina em reconhecer a existência de ilícito no descumprimento do dever de pedir autofalência está em não se localizar quais sanções seriam aplicáveis. Vê-se que a discussão encontra-se deslocada na medida em que não se questiona a ilicitude propriamente, mas os seus efeitos jurídicos. O dever de requerer autofalência é efeito da provável insuficiência de ativos para pagamento dos credores como forma de garantir o atendimento ao princípio da pars conditio creditorum. Assim, decorrente do descumprimento desse dever, impõe-se a responsabilização pessoal dos sócios, administradores e controladores da sociedade empresária pelos prejuízos daí originados a serem apreciados em ação autônoma. REFERÊNCIAS BERTOLDI, Marcelo; RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 4. ed. São Paulo: RT, 2008. BONFATTI, Sido; CENSONI, Paolo Felice. Manuale di diritto fallimentare. 3. ed. Pádua: Cedam, 2009. BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, v. IV, t. I, 2002. COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (Coord.). Comentários à nova lei de falência e recuperação de empresas: Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009. ESTEVEZ, André Fernandes. 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