Nota Técnica No 10 Análise do Anteprojeto da Lei Geral de Transação Tributária Elaboração: Departamento de Estudos Técnicos do Unafisco Sindical Brasília-DF, julho de 2008. Diretoria Executiva Nacional DIRETORIA DE ESTUDOS TÉCNICOS Presidente Pedro Delarue Tolentino Filho 1º Vice-Presidente Gelson Myskovsky Santos 2º Vice-Presidente Ildebrando Zoldan Secretário-Geral Rogerio Said Calil Diretor-Secretário Ricardo Skaf Abdala Diretor de Finanças Luiz Gonçalves Bomtempo Diretor-Adjunto de Finanças Iran Carlos Toneli Lima Diretora de Administração Ivone Marques Monte Diretor-Adjunto de Administração Mauricio Gomes Zamboni Diretor de Assuntos Jurídicos Wagner Teixeira Vaz Diretor-Adjunto de Assuntos Jurídicos Kleber Cabral Diretor de Defesa Profissional Rafael Pillar Junior Diretora-Adjunta de Defesa Profissional Renata Lobo Rossetto Diretor de Estudos Técnicos Luiz Antonio Benedito Diretor-Adjunto de Estudos Técnicos Roberto Barbosa de Castro Diretor de Comunicação Social João Ricardo de Araujo Moreira Diretor-Adjunto de Comunicação Social Alcebíades Ferreira Filho Diretor de Assuntos de Aposentadoria, Proventos e Pensões Clotilde Guimarães Diretor-Adjunto de Assuntos de Aposentadoria, Proventos e Pensões Amilton Paulo Lemos Diretor de Seguridade Social Carlos Antonio Lucena Diretor-Adjunto de Seguridade Social Jesus Luiz Brandão Diretor de Assuntos Parlamentares Eduardo Artur Neves Moreira Diretor-Adjunto de Assuntos Parlamentares João da Silva dos Santos Diretor de Relações Intersindicais Dagoberto da Silva Lemos Diretor de Relações Internacionais Robson Canha Ferreira Luiz Antonio Benedito Diretor de Estudos Técnicos Roberto Barbosa de Castro Diretor-adjunto de Estudos Técnicos Diretores-Suplentes Claudio Marcio Oliveira Damasceno Renato Augusto da Gama e Souza Agnaldo Néri Conselho Fiscal Membros Titulares Henrique Gehrke Humberto Guedes Acioli Toscano Benedito Giovaldo Freire Membros Suplentes Almerindo Arruda Botelho Domiciano de Oliveira Neto Valmir da Cruz Equipe Técnica que elaborou este estudo: Alvaro Luchiezi Jr. Natalie Cevallos Mijan Colaboração: Luiz Antonio Benedito Sindicato Nacional dos Fiscais da Receita Federal Auditores- SDS - Conjunto Baracat - 1º andar - salas 1 a 11 Brasília/DF - CEP 70392-900 Fone (61) 3218 5200 - Fax (61) 3218 5201 www.unafisco.org.br [email protected] É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. NOTA TÉCNICA Análise do Anteprojeto da Lei Geral de Transação Tributária 1. Introdução e Considerações Gerais Aristóteles, interrogado sobre o que havia aprendido com a filosofia, teria dito: “'A fazer, sem ser comandado, aquilo que os outros fazem apenas por medo da lei.” ("Citado em Diógenes Laércio, Vidas dos Filósofos, Aristóteles"). Olhando para nossos pretórios, além das instâncias de julgamento administrativo, coloca-nos a pensar que conhecimentos de filosofia deveriam ser matéria obrigatória para todo cidadão, especialmente quando se trata de matéria tributária. Todos se indignam com o malfeitor ao ver a prática de um crime ou o desrespeito às leis de um modo geral. Contudo, por uma estranha cultura desenvolvida ao longo do tempo, o desrespeito às normas tributárias, a sonegação, passaram a ser vistas na sociedade com normalidade e certa leniência do ponto de vista ético. É neste contexto que esta nota se propõe a analisar a idéia de implementação da transação em matéria tributária, a materializar-se em Projeto de Lei a ser proposto ao Congresso Nacional. A legislação tributária age com rigor, procurando assegurar que a obrigação tributária seja satisfeita de maneira plena, fazendo o infrator responder até mesmo com seu patrimônio. A incorporação da transação ao ordenamento tributário brasileiro representará um estímulo para que o contribuinte flagrado em práticas ilícitas tenha a oportunidade de “transacionar” a respeito. A cada programa de recuperação fiscal, tais como o REFIS, ouvem-se críticas dos bons contribuintes que asseveram, e não sem certo grau de razão, que estas práticas incentivam o não cumprimento pontual das obrigações com o Fisco. Deixar aberta a possibilidade de que o mau contribuinte vislumbre concessões futuras – e transação, em essência, trata disso – fará com que a propensão à desobediência das normas tributárias e ao inadimplemento aumente de forma significativa. Os programas especiais de parcelamento e recuperação fiscal já são instrumentos razoáveis para que os contribuintes que desejam regularizar sua situação fiscal o façam. Tais modalidades poderiam ser aperfeiçoadas para abarcar situações mais restritas de setores econômicos ou de contribuintes em determinada situação sem, contudo, desprezar o princípio da impessoalidade que deve nortear a atividade pública. Entendemos que um instituto de natureza “negocial” teria um convívio bastante difícil com os princípios norteadores da atividade pública, mormente o da impessoalidade, visto que sempre haverá certo grau de subjetividade sobre o que é razoável transacionar ou se essa transação atingiu ou não o interesse público. Desta forma, se a pretensão é de diminuir o “estoque” de créditos tributários incobráveis ou de difícil cobrança, o resultado seria absolutamente o contrário. Melhores resultados seriam obtidos com o aperfeiçoamento do processo de execução e a certeza da efetiva aplicação das leis de execução fiscal. 1 Afinal, infelizmente, não verificamos entre aqueles que sonegam e elidem o pagamento dos tributos o mesmo aprendizado que Aristóteles teria obtido com seus estudos filosóficos. Este texto discorre, tecendo alguns comentários pontuais, sobre o anteprojeto que “dispõe sobre transação e outras soluções alternativas de controvérsias tributárias” e que define a chamada Lei Geral de Transação – LGT, aqui chamado de anteprojeto da LGT e, incidentalmente, sobre o anteprojeto de lei que Lei Complementar que altera e acrescenta dispositivos à Lei 5.172 (Código Tributário Nacional – CTN), aqui chamado de anteprojeto de Lei Complementar que altera o CTN. Ambos foram encaminhados à Presidência da República em 21 de Maio de 2008, respectivamente, por intermédio das Exposições de Motivo 78 e 77 do Ministério da Fazenda. 2. Questões Conceituais e Alguns Comentários O anteprojeto da LGT prevê, em seu Artigo 1º, a transação administrativa e outras formas de solução de controvérsias tributárias, resultando em “prevenção, composição ou terminação de litígio para a extinção do crédito tributário”. Já o anteprojeto de Lei Complementar que altera do CTN acrescenta ao Artigo 171 do CTN a “transação... que importe em prevenção ... de litígio”. Ou seja, introduz a transação preventiva quando o que atualmente temos é o permissivo legal para a transação por terminação ou terminativa. Transação é uma a forma de extinção do crédito tributário prevista no inciso III do Artigo 156 do Código Tributário Nacional1. Numa transação os sujeitos envolvidos fazem concessões mútuas a fim de eliminar uma controvérsia jurídica entre eles existente. É, assim, essencialmente um negócio jurídico que pode acontecer tanto antes quanto durante um contencioso (TEODORO JÚNIOR, 2000). Para efeitos da análise que se segue é necessário definir claramente o significado do que venha a ser uma transação tributária. Diniz (1995) ensina que ocorre uma transação quando, havendo litígio entre as partes, manifeste-se também o desejo de encerrá-lo por meio de concessões recíprocas. O Artigo 6º do anteprojeto da LGT define que a transação “poderá dispor sobre todo ou parte do litígio existente” (grifo nosso). Ora, em ocorrendo transação que verse apenas sobre parte do litígio ele não estaria encerrado de todo. A eficácia de uma transação com essas características seria consideravelmente reduzida. O próprio uso do termo “litígio” no anteprojeto é dúbio. Pode tanto se referir à existência de um conflito de interesses mediados por critérios jurídicos quanto ao pagamento e arrecadação, sua forma e oportunidade. No primeiro caso trata-se do litígio jurídico e no segundo de litígio econômico. 1 Há outras dez formas de extinção do crédito tributário: o pagamento; a compensação; a remissão; a prescrição e a decadência; a conversão de depósito em renda; o pagamento antecipado e a homologação do lançamento nos termos do disposto no artigo 150 e seus §§ 1º e 4º; a consignação em pagamento, nos termos do disposto no § 2º do artigo 164; a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória; a decisão judicial passada em julgado; e a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e condições estabelecidas em lei. 2 Neste anteprojeto há prevalência do critério econômico sobre os critérios do sistema funcional do direito. Confunde, pois, litígio jurídico com litígio econômico e oferece uma solução econômica discricionária, diferentemente do ideal de uma legislação, a qual deveria ter como cerne o jurídico, e não o econômico. Litígios jurídicos resolvem-se por meios e critérios jurídicos e não por transação. Ou seja, a transação não soluciona litígios jurídicos. Juridicamente, não é possível negociar questões de fato, como a ocorrência de um fato gerador, ou questões de direito como a validade de um tributo. O crédito tributário, por decorrer da lei e não de vontade entre as partes, é objeto de cunho legal. Não se deve, aliás, não se pode negociar aquilo que é lícito. Algumas contradições sobressaem do anteprojeto da LGT. No inciso II do Artigo 7º ele veda a negociação do montante de tributos para em seguida, na alínea a, excetuar da negociação “as remissões autorizadas nesta ou em outras leis”. Aliás, e mais grave do que esta contradição, é o afrontamento à Constituição Federal, dado que ela exige que as concessões da Administração Pública que resultem em redução de tributo ocorram por meio de lei específica. Um outro importante questionamento ao anteprojeto diz respeito à necessidade da existência de concessões recíprocas. Para que se estabeleça a transação é necessário que o litígio se estabeleça após o lançamento de ofício do crédito tributário, tal como prevê o inciso I do Artigo 17. Do ponto de vista do erário é o valor total deste crédito lançado que deve ser recebido. Contudo, o requisito de concessões mútuas implica em dizer que o Estado deverá admitir a arrecadação de um crédito inferior ao lançado. A concessão por parte do contribuinte faltoso seria pagar menos do que o lançado e posteriormente ao que seria o seu dever e ao dos demais contribuintes que pagaram plenamente e em dia. Do ponto de vista do contribuinte faltoso seria melhor transacionar sempre. Este instituto constitui desestímulo ao cumprimento pontual das obrigações. O anteprojeto também propõe, no parágrafo 1º do Artigo 7º, condições mais favoráveis à extinção dos créditos tributários ao prever reduções às sanções pecuniárias (multas, juros de mora e outras sanções). Nosso ordenamento legal tributário prevê em alguns instrumentos a redução de multas e juros2. Os elevados percentuais de redução nas sanções pecuniárias induzem ao pagamento postergado de tributos, com evidentes prejuízos à arrecadação e desestímulo ao contribuinte bom pagador. Ademais, o anteprojeto não esclarece qual seria a motivação do ato de transação, especialmente no que se refere à redução do crédito. Caberá ao Poder Executivo, segundo o parágrafo 2º do mesmo artigo, definir as margens de redução dentro dos limites estabelecidos no parágrafo anterior. Há limites e margens, mas ainda assim restará um intervalo onde os percentuais variarão, deixando espaço para avaliações subjetivas. A transação mostra-se, assim, de pouco interesse para o erário. O pagamento deve ser sempre o objetivo buscado pelo agente público e o parcelamento uma alternativa viável para extinção ou suspensão do crédito tributário, conforme já previsto no Código Tributário Nacional, protegendo integralmente o interesse público. Existem, no Direito Civil, dois tipos de transação: a preventiva, com o fim de evitar o litígio; e a terminativa, com o fim de extinguir o litígio. 2 Vide, por exemplo, a Lei nº. 8.383, que concede em seu art. 60 “redução de 40% da multa ao contribuinte que requer parcelamento de débito no prazo legal de impugnação”, ou a Lei nº. 8.218 que em seu art. 6º concede “redução de cinqüenta por cento da multa de lançamento de ofício, ao contribuinte que, notificado, efetuar o pagamento do débito no prazo legal de impugnação”. 3 É importante entender um pouco melhor o que seria a transação preventiva, com previsão expressa no Art. 1º do anteprojeto de Lei Complementar que altera o CTN. Trata-se de um acordo realizado previamente à instauração do litígio, o que, no caso tributário, representaria um acordo realizado antes do lançamento tributário que, segundo o próprio CTN, é ato vinculado e obrigatório. Necessário observar que, no caso, o credor das obrigações é o poder público em face da incidência da norma instituidora do tributo. Em observância aos princípios da supremacia do interesse público sobre o particular e da indisponibilidade do interesse público, não é viável que se transacione antes mesmo de ocorrer o litígio, por ele não ser o titular do interesse da coletividade. Além disso, o instituto da transação tornar-se-ia uma atividade com alta discricionariedade, posto que as ações relacionadas aos cofres públicos merecem ser plenamente vinculadas às determinações legais. Deve prevalecer, portanto, a supremacia do interesse público sobre o privado. O princípio da eficiência da administração pública deve ser combinado com o princípio da indisponibilidade do interesse público. Não poderia, então, haver a transação preventiva no ordenamento jurídico tributário nacional por incompatibilidade com as regras do direito tributário. O anteprojeto de Lei Complementar que altera o CTN prevê, em seu artigo 1º, a modificação no parágrafo 3º do artigo 7º do CTN, in verbis (grifo nosso): “Art. 7º (...) §3º Não constitui delegação de competência o cometimento, a pessoas de direito privado, do encargo ou da função de arrecadar tributos ou de realizar, mediante o estabelecimento de alçadas de valor, a satisfação amigável de créditos inscritos em dívida ativa, nos termos da lei”. A passagem vai além de legitimar a realização da transação e da arbitragem na LGT. Ao inserir tal cometimento, a redação destacada deixa em aberto a possibilidade de que entes privados procedam à satisfação amigável de créditos inscritos na dívida ativa. Pode-se falar, assim, na privatização da transação e da arbitragem na medida em que agentes privados como, por exemplo, os bancos, que hoje compõem a rede arrecadadora, ficariam autorizados a transacionar diretamente com o contribuinte seus débitos com o erário. A arrecadação é, em última instância, de interesse da coletividade. Aos agentes públicos compete cuidar dos interesses públicos. A inserção deste complemento ao parágrafo viola, pois, o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Por fim, um outro conceito bastante importante para o entendimento das alterações que estão sendo propostas é o de tributo. De acordo com o Art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”. Verifica-se, mediante conceituação acima, que tanto a cobrança quanto a instituição de tributos devem ser realizados por meio de atos plenamente vinculados, ou seja, previstos na legislação. 4 Com a instituição da transação tributária nos termos do anteprojeto da LGT haveria uma relativização dos atos da Administração rompendo, pois, com a vinculação inicialmente prevista. Interessa à sociedade um aumento na discricionariedade dos aplicadores e executores da LGT, os quais poderão agir a partir da análise de conveniência e oportunidade da decisão a ser tomada? 3. O Anteprojeto da LGT e os Princípios Constitucionais e de Direito Administrativo O anteprojeto da LGT fere, ora implicitamente ora de forma mais explícita, diversos princípios gerais do direito. A seguir são tratados, dentre outros, alguns dos princípios expressamente previstos no Artigo 37 da Constituição Federal, a saber: legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência. O princípio da legalidade prevê que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, sendo a expressão maior do Estado Democrático de Direito como garantia de que a sociedade não está presa à vontade particular daqueles que a governam. Segundo Meirelles (2000, p. 82) “na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. Por este corolário, decorre outro princípio de cabal importância para as ponderações acerca deste anteprojeto da LGT, qual seja, o princípio da indisponibilidade dos interesses públicos pela Administração. Bandeira de Mello (2006, p.7) trata o princípio da indisponibilidade do interesse público como um “axioma reconhecível no moderno direito público”, segundo o qual se “proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último”. Assim, é um princípio que assegura não só os direitos da Administração Pública, mas também os direitos da coletividade como um todo. A indisponibilidade dos interesses públicos significa que sendo interesses próprios da coletividade, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, nem mesmo do próprio órgão administrativo que os representa, no sentido de que lhe incumbe apenas um poder-dever de curá-los. Não há, pois, outra opção ao agente público que não seja agir sempre em busca de se atender o interesse público da coletividade, sem qualquer discricionariedade a este respeito. Importante esclarecer, para melhor entendimento da indisponibilidade do interesse público, o que seria a discricionariedade na Administração Pública, conceito que se relaciona à existência de liberdade de atuação do administrador na execução da função pública. Para tanto, cumpre diferenciar ato discricionário de ato vinculado. Um ato vinculado refere-se àquele em que o agente público fica com sua possibilidade de atuação restrita à única hipótese veiculada pelo instrumento normativo. Já um ato é discricionário quando a lei confere ao agente público duas ou mais possibilidades de atuação, ou ao menos lhe dá uma margem dentro da qual possa atuar, 5 sendo que tal escolha deve ser realizada a partir da análise da conveniência e da oportunidade da decisão a ser tomada. Surge, neste momento, uma linha tênue entre a discricionariedade e a arbitrariedade, quando o ato é exercido de forma totalmente livre. No corpo do anteprojeto da LGT, há dispositivos que prevêem atos eivados de alta discricionariedade do agente público, o que pode facilmente desviar-se para a arbitrariedade. Alguns exemplos (grifo nosso): Art. 19 (...) §4º A autoridade administrativa competente é livre para admitir ou recusar a proposta de transação, bem assim para aceitar ou não (...). Art. 44 (...) §2º À autoridade administrativa competente caberá a aprovação, a rejeição ou a sugestão de modificação da proposta de termo de ajustamento de conduta apresentada pelo sujeito passivo. Pelos exemplos acima mencionados, e tendo-se em consideração que o tributo é considerado indisponível, não haveria espaços para discricionariedade do agente público resultando, nestes casos, em latente arbitrariedade. Outro princípio de grande importância é o princípio da impessoalidade, que possui duas conotações: a primeira decorre do princípio da igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal; e a segunda decorre da atuação da própria Administração Pública. A primeira leitura deste princípio requer que no desempenho das funções públicas o tratamento seja indistinto entre todos os administrados em obediência ao corolário: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Neste diapasão, deve haver um tratamento isonômico dos sujeitos de obrigações tributárias relativas às previsões do anteprojeto da LGT. Já a segunda leitura do princípio da impessoalidade roga que não seja a pessoa física do agente que atua, mas sim o próprio Estado, por ele representado. Assim, a atividade estatal deve ser pautada pela lei e deve levar em consideração os interesses individuais e coletivos de todos os administrados, e não de pessoas determinadas. Este princípio pode ser expresso também pela palavra imparcialidade, ou seja, a atuação do agente público não deve ser pessoal e parcial, conforme o caso. Observa-se, portanto, que o anteprojeto da LGT deixa de obedecer tal princípio quando em seu artigo 19 prevê, por exemplo, que a autoridade administrativa será livre para admitir ou recusar proposta de transação e aceitar ou não as concessões apresentadas. O terceiro princípio expresso na Constituição Federal é o da moralidade administrativa, segundo o qual o procedimento administrativo deve se desenrolar em conformidade de padrões éticos, consoante com a moral, os bons costumes, as regras da boa administração, os princípios de justiça e de equidade e a idéia de honestidade. A moralidade administrativa é princípio informador de toda ação administrativa, englobando o comportamento que a coletividade espera da administração pública quando da consecução dos interesses públicos. Refere-se a uma moral jurídica entendida como um conjunto de regras de conduta obtidas da disciplina interior da Administração, segundo a finalidade de sua ação, qual seja, o bem comum. Tendo em consideração que o princípio da moralidade está diretamente vinculado aos freios a serem impostos aos agentes públicos na execução dos poderes 6 discricionários, verifica-se, no anteprojeto da LGT como um todo, que o excesso de poder discricionário aos agentes públicos pode trazer brechas para o descumprimento do princípio da moralidade administrativa. O último dos princípios é da eficiência, segundo o qual a Administração Pública deve oferecer aos cidadãos mais serviços, com melhor qualidade e em menor tempo, mediante adequada organização interna e com uma redução dos custos por meio do melhor aproveitamento dos recursos disponíveis. O Anteprojeto da LGT também fere este princípio da Administração Pública ao prever o oferecimento de um novo serviço à sociedade, porém com aumento demasiado do custo de manutenção, especialmente os de arbitragem, como se verá na seção 5. Possui, portanto, baixa eficiência. Este princípio deve, entretanto, ser colocado ao lado de todos os demais princípios gerais do direito, com o intuito de não se burlar os demais princípios na busca de máxima eficiência. Por fim, importante destacar o princípio da segurança jurídica, ainda que ele não esteja previsto expressamente em nenhum dispositivo constitucional. Toda sociedade deve possuir uma ordem jurídica, sendo que o princípio da segurança jurídica está implícito ao seu valor de justiça social, devendo respeitar, dentre outras coisas, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. No âmbito da Administração Pública, este princípio visa a impedir que uma nova interpretação de norma administrativa retroaja para alcançar fatos passados já consumados. Di Pietro (2000, p. 84) assim se posiciona: “Se a Administração adotou determinada interpretação como a correta e a aplicou a casos concretos, não pode depois vir a anular atos anteriores, sob o pretexto de que os mesmos foram praticados com base em errônea interpretação”. Este princípio também seria ferido caso ocorresse aprovação do anteprojeto da LGT. Segue, a título exemplificativo, artigo 31 da LGT: Art. 31 Quando se apurar que o sujeito passivo concorreu com dolo, fraude ou simulação para sua insolvência ou falência ou não se utilizou da denúncia espontânea antes da conciliação tributária referida nesta Seção, a transação não poderá ser concluída ou será nula, caso já se tenha por encerrada, sem prejuízo das conseqüências penais cabíveis. Depreende-se do artigo supracitado que há uma violação ao princípio da segurança jurídica pelo fato de não existir um prazo limite para a eficácia do referido impedimento da conclusão ou nulidade da transação. 4. Modalidades de Transação O anteprojeto da LGT prevê quatro modalidades específicas de transação, a saber: conciliação em processo judicial; conciliação em caso de insolvência tributária; transação por recuperação tributária e transação por adesão. Conciliação em processo judicial é uma transação em que o juiz intervém na instrução da causa com o objetivo de obter um acordo e, por esta via, extinguir o processo (THEODORO JÚNIOR, 2000). Está prevista no Código de Processo Civil. A conciliação 7 tributária, conforme prevista no anteprojeto da LGT, para ter efeitos práticos e jurídicos precisaria estar prevista no CTN, o que não acontece hoje. O anteprojeto de Lei Complementar que altera o CTN não se incumbe desta tarefa. Acrescente-se que qualquer tentativa de conciliação, mesmo que extrajudicial, é de interesse do juiz. Portanto, basta que, em havendo interesse em conciliar, extrajudicialmente ou previamente à instalação do processo, bastaria que as partes peticionassem a sua homologação. Assim, a transação tributária por conciliação em processo judicial é um instrumento desnecessário em nosso ordenamento jurídico porque abundante. A conciliação por insolvência tributária ocorre quando, durante a execução fiscal, sobrevierem os casos de insolvência civil ou falência e prevê a extinção do crédito tributário via remissão, parcelamento ou dação em pagamento. Esta modalidade carece de previsão legal concreta, pois o instituto da insolvência tributária não existe em nosso ordenamento jurídico da mesma forma que existe a insolvência civil e a falência. Logo, a redação do Artigo 29 compromete a própria definição e aplicação jurídica desta modalidade de transação. Conforme reza o CTN, parcelamento é uma forma de suspensão e não de extinção do crédito tributário. Novamente, a redação compromete a aplicação prática do instituto. Quando se refere à falência, o parcelamento soa estranho e incoerente. Enquanto houver parcelamento não poderia haver encerramento da falência. Com relação à remissão, conforme reza o Artigo 150 da Constituição Federal, é necessário que ela seja regulada por lei específica, caso contrário não pode ser aplicada. Ou seja, neste caso o anteprojeto não observa, explicitamente, o imperativo constitucional. A transação por recuperação tributária está prevista para permitir a “superação de situação transitória de crise econômico-financeira do sujeito passivo” o qual propõe um plano de recuperação tributária, devidamente instruído. Os instrumentos de quitação do crédito neste caso são a dação em pagamento, o parcelamento e a imputação de débitos. Faz-se necessário, nesta modalidade de transação, delimitar o instituto da novação. Nos termos do artigo 360, inciso I, do Código Civil, ela ocorre “quando o devedor contrai com o credor nova dívida para extinguir e substituir a anterior”. Seria, portanto, a constituição de uma obrigação nova em substituição a outra que fica extinta a partir de então. Verifica-se que, se a obrigação principal fica extinta, também ficam abolidas as obrigações acessórias, tais como garantias ou privilégios. No caso da transação por recuperação tributária, se entendida como uma novação, o ente tributante perderá as garantias e privilégios conferidos a determinado crédito tributário em troca dos créditos comuns, posto que o crédito inicial, constituído por lançamento, é obrigatoriamente um crédito tributário, sendo que a dívida nova poderia não ser concebida como tal. Esta possibilidade pode trazer más implicações quando se observa o quadro-geral de credores da falência, em que os créditos tributários possuem privilégios na ordem de pagamento das dívidas, diferentemente dos créditos comuns. A recuperação tributária é, de fato, uma forma de parcelamento. Como esta já está prevista em nosso ordenamento jurídico-tributário, mais uma vez seria desnecessária uma legislação que, abundando sobre um tema, apenas corre o risco de prever regras que perigam de se apresentarem dúbias ou conflitantes com aquelas já existentes. 8 A transação administrativa por adesão não está definida no anteprojeto. Este limitase a prever que lei específica a autorize e defina procedimentos e requisitos necessários. Ao Procurador Geral da Fazenda Nacional caberá identificar as matérias passíveis de enquadramento nesta modalidade. Dentre as hipóteses possíveis de enquadramento o anteprojeto menciona de maneira vaga “as controvérsias jurídicas de repercussão geral”. De fato, da maneira como está, a transação por adesão apresenta-se de maneira muito genérica, aplicável a todos os litígios. Tal amplitude de possibilidades de enquadramentos reduz a eficácia deste instrumento dados os esforços necessários à identificação, análise e aceitação das matérias, em cujo processo também se envolvem tanto a CGTC – Câmara Geral de Transação e Conciliação e o Ministro de Estado da Fazenda. 5. Transação e Arbitragem A arbitragem está contemplada no direito brasileiro pela Lei nº. 9.307, aplicável apenas no campo do direito privado para solucionar litígios relativos a questões de fato e de direito sobre direitos patrimoniais disponíveis. O anteprojeto da LGT introduz a arbitragem no processo de transação quando uma das partes (sujeito passivo e Fazenda Nacional) a propuser de forma motivada ante a existência de “dúvida objetiva e razoável sobre questões de fato e de direito” e diante da imprecisão das normas sobre hipóteses e procedimentos. As partes deverão suportar todos os custos envolvidos, indicando até três árbitros, os quais decidirão sobre questões de fato ou de direito. Os árbitros indicados decidirão entre si quem será o árbitro de desempate. Subtende-se que poderão atuar até seis árbitros já que o anteprojeto da LGT não prevê nenhuma limitação ou escolha dentre este número máximo, exceto quem eles próprios definirão como árbitro de desempate. O objetivo da arbitragem, da maneira como está colocado, torna-se bastante impreciso. Como e quem definiria a objetividade e a razoabilidade da dúvida? Este é outro momento em que a redação do anteprojeto LGT fragiliza-se dada a pouca clareza dos termos ali definidos. Aliás, e de forma a sanar, aparentemente, a falta de clareza do caput, o parágrafo único do Artigo 48 tenta, ao definir o objetivo da arbitragem, dirimir a imprecisão de objetivos ao determinar que as questões encaminhadas aos árbitros pela proposta de arbitragem sejam “claras e objetivas (...) vinculadas à dúvida que lhe caracterize o objeto”. A arbitragem não aparece neste processo de forma autônoma, mandatória, mas sim incidentalmente. Ela é parte de um procedimento que poderá ocorrer. Conforme reza o Artigo 49 do anteprojeto da LGT, a arbitragem como o compromisso celebrado entre as partes, é “vinculante em todos os seus elementos”. Ou seja, este compromisso deveria ser juntado aos autos do processo e em caso de julgamento ele seria necessariamente observado. Ela é, assim, parte de um procedimento e não encerra em si mesma a própria transação. Portanto, ela tem um caráter complementar reduzindo assim a abrangência do instituto. O anteprojeto adota a pluralidade de árbitros o que, do ponto de vista financeiro é mais oneroso ao erário. Aliás, a propósito dos custos financeiros, os custos privados da arbitragem não oneram, obviamente, os cofres públicos, mas a Fazenda Nacional tem que incorrer em custos para estabelecer uma negociação que interessa mais ao contribuinte, principalmente se a arbitragem for proposta por ele. Afinal, e de uma forma ampla, a efetiva aplicação da lei e dos regramentos tributários defendem apropriadamente 9 os interesses do Estado nesta matéria e sem os custos adicionais, sejam da transação de maneira geral, ou da arbitragem de maneira particular. Há que se questionar também o fato de a arbitragem ocorrer após o lançamento do crédito tributário. A partir deste momento o tributo torna-se indisponível, já que estaria determinado. Assim, a arbitragem não teria efeito e seria inócua, pois comparece complementarmente a uma transação efetuada após a inscrição em dívida ativa, ou seja, após a Administração ter-lhe conferido os atributos de certeza e liquidez. Por fim, esta proposta de arbitragem fere também a supremacia e a indisponibilidade do interesse público. Em questões privadas há dois interesses privados sendo mediados e decididos. Aqui, há de um lado interesse público e de outro interesse privado. Voltamos, novamente, a uma questão mais ampla já abordada anteriormente. Se as normas e regulamentos vigentes defendem suficientemente o interesse público, o instrumento da arbitragem e um processo de transação dificilmente seriam mais eficientes, eficazes e efetivos. 6. Conclusões O anteprojeto de LGT caracteriza-se por afrontar alguns princípios constitucionais e de Direito Administrativo, principalmente pela sua pessoalidade e discricionariedade. Na medida em que atribui a alguns entes e agentes a capacidade de transacionar valores, deixa transparecer claramente o caráter subjetivo desta decisão. O instituto da transação tem natureza contratual, sendo, a priori, incompatível com o Direito Público, tendo em vista que um dos pilares deste ramo do Direito é a indisponibilidade do interesse público. A Administração Pública não é a titular dos interesses públicos, sendo de sua incumbência apenas o poder-dever de resguardar e representar o interesse da coletividade. O anteprojeto de LGT é permeado de algumas contradições, inconsistências e lacunas e sua redação o compromete em alguns momentos. Ademais, outras formas de extinção do crédito tributário, como o parcelamento, por exemplo, são mais eficazes e eficientes. Não restou dúvida que, na tentativa de agilizar processos judiciais de cobranças tributárias, o anteprojeto de LGT evidencia o interesse do contribuinte faltoso em detrimento do interesse público, este expresso pela arrecadação plena do crédito tributário lançado. As modalidades de transação, tal como definidas no anteprojeto da LGT, também apresentam problemas relacionados à ausência de previsão legal e ao seu uso inadequado ou incompleto. O uso da arbitragem como meio de transação, segundo o anteprojeto de LGT, apresenta-se mais oneroso ao erário e flexibiliza a supremacia do interesse público. Por todas as razões identificadas na presente análise, concluí-se que a aprovação de ambos os anteprojetos de lei resultará em grandes prejuízos aos direitos individuais dos contribuintes, introduzindo tratamento privilegiado ao contribuinte faltoso, e aos 10 direitos coletivos dos cidadãos, na medida em que resulta em redução da arrecadação do crédito tributário sem o abrigo de legislação específica. Os pretensos objetivos do anteprojeto da LGT podem ser atingidos de forma muito mais eficiente com o fortalecimento e aparelhamento da fiscalização. Desta forma, a atuação do fisco permanece fortalecida posto que ela acontece em momentos consideravelmente mais próximos da ocorrência do fato gerador. Evita, assim, que ao longo do tempo o patrimônio do contribuinte seja dilapidado ou ocultado, dando efetividade à aplicação da lei tributária. O que se busca é uma tributação justa e uma arrecadação eficaz, não uma forma de, na prática, renunciar aos interesses do Estado por meio de concessões, além do potencial incentivo à desobediência da legislação tributária. 11 REFERÊNCIAS BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. 20 ed. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2006. BRASIL. Lei nº. 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 out. 1966. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5172.htm Acesso em 17 jul. 2008 BRASIL. Lei nº. 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 nov. 1973. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5869.htm. Acesso em 17 jul. 2008. BRASIL. Lei nº. 8.218, de 2 de agosto de 1991. 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