IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO E DE EXECUÇÃO NO BRASIL Francisco Victor Bouissou No Brasil, desde a vigência da Constituição Federal de 1988, a competência para conciliar e julgar os conflitos existentes entre os trabalhadores e seus empregadores, aí incluídas as entidades de direito público externo, a exemplo das missões diplomáticas estrangeiras e dos organismos internacionais, passou a ser a Justiça do Trabalho, nos termos do artigo 114 da nossa Carta Magna, ao contrário do que acontecia anteriormente quando tais conflitos eram de competência da Justiça Federal. Vale ressaltar que, no período compreendido entre 1990 e 2001, segundo dados do Tribunal Regional do Trabalho, da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins), um total de 350 reclamações trabalhistas foram propostas contra diversas representações diplomáticas estrangeiras acreditadas em Brasília. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (“STF”) nos indica que uma disputa envolvendo um contrato de trabalho celebrado entre um particular e uma representação diplomática estrangeira pode perfeitamente ser submetida à jurisdição territorial, sem que essa submissão configure uma violação ao direito internacional público (ver leading case “Genny de Oliveira” – STF, Apelação Cível nº 9.696-SP, julgada em 31.05.1989, Relator: Ministro Sydney Sanches), consagrando, decisivamente, a orientação restritiva da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro (dispondo na ementa do acórdão unânime do referido caso: “não há imunidade judiciária para Estado estrangeiro em causa de natureza trabalhista”), senão vejamos o voto do então Ministro do STF Francisco Rezek a respeito: “(...) O que mudou foi o quadro internacional. O que ruiu foi o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida –quando ela o era-, e que assegurava a imunidade em termos absolutos”. Verifique-se, ainda, que o mesmo entendimento prevalece na doutrina brasileira, como demonstra, por exemplo, o Professor Osíres Rocha quando sustenta, em seu trabalho publicado na Revista LTr (37/600-602) que “é de justiça, portanto, que tais contratos sejam submetidos à lei brasileira, à nossa CLT e à nossa Justiça, porque, não se tratando de contratos visando a serviço diplomático, escapam à incidência das normas de imunidade(...)”. Embora pareça pacífico o entendimento vigente no Brasil de que, em matéria trabalhista, não há imunidade de jurisdição à missão diplomática estrangeira acreditada no País, cumpre observar, necessariamente, a diferença existente com respeito à imunidade no processo judicial (em matéria trabalhista) entre as distintas fases do processo denominadas de processo de conhecimento e processo de execução. “(...) É preciso que se faça uma distinção, de caráter obrigatório, entre a imunidade de jurisdição do Estado para o processo de conhecimento e para o processo de execução. Para aquele, a imunidade caiu em matéria trabalhista, mas, para este, há uma questão que não se pode ultrapassar (pelo menos enquanto em vigor as Convenções de Viena), que é a inviolabilidade dos bens da Missão, especificamente prevista nos tratados aqui indicados e pelos quais o Brasil se obrigou, inclusive com a concorrência do Congresso Nacional”.1 Nota-se, portanto, uma distinção entre imunidade de jurisdição (visa subtrair um Estado à competência de um Tribunal de outro Estado) e imunidade de execução (visa subtrair um Estado às medidas executórias forçadas, tais como a penhora, promovidas por outro Estado), constituindo categorias autônomas e juridicamente inconfundíveis, pois, embora, possuam relações estreitas entre si, traduzem realidades independentes e distintas. De fato, a Convenção de Viena sobre Representações Diplomáticas, de 1961, deixa resguardada a inviolabilidade do Estado estrangeiro no tocante aos seus bens (aos bens afetos à sua representação diplomática), ou seja, a Convenção de Viena garante tão-somente a imunidade de execução aos bens afetos à missão diplomática estrangeira, nos termos estipulados pela própria Convenção de Viena, e não a imunidade de jurisdição, em si. O artigo 22 da Convenção de Viena assegura a inviolabilidade dos locais da missão diplomática, seu mobiliário, bem como os demais bens neles situados, assim como os meios de transporte da missão diplomática, que não poderão ser objeto de busca, requisição ou medida de execução. Faz-se necessário, portanto, definir que tipo de bem pertencente a uma representação diplomática estrangeira poderia ser objeto de execução, tendo em vista as garantias estabelecidas pela Convenção de Viena. A princípio, a medida de execução somente poderia eventualmente recair sobre bens que, comprovadamente, não estejam comprometidos com a realização da função pública do Estado estrangeiro vencido no processo de conhecimento, em matéria trabalhista, submetido à jurisdição local. “Argumenta-se que é possível eventual execução sobre bens ou contas bancárias não afetas à função pública do Estado faltoso. Assim, os bens inequivocamente destinados pelo Estado estrangeiro ao desenvolvimento de atividades industriais ou comerciais não estariam isentos. Demonstrado, no entanto, que a execução recairá sobre bens que se destinam a cobrir, por exemplo, as despesas da legação, não é possível dar seguimento ao processo executório. O problema aqui está na comprovação de que tal ou qual bem pode responder pela condenação”2. Tanto a jurisprudência predominante no STF, quanto a doutrina brasileira a respeito da imunidade de execução reforçam essa tese. O Ministro do STF, Francisco Rezek, sustenta (“Direito Internacional Público”. São Paulo: Saraiva, 7ª edição, 1998, pp.176/177): “A execução forçada de eventual sentença condenatória, entretanto, só é possível na medida em que o Estado estrangeiro tenha, no âmbito especial de nossa jurisdição, bens estranhos à sua própria representação diplomática ou consular, visto que estes se encontram protegidos contra a penhora ou medida congênere pela inviolabilidade que lhes asseguram as Convenções de Viena de 1961 e 1963, estas seguramente não derrogadas por qualquer norma ulterior(...)”. Nesse mesmo sentido, há a posição do Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (“TST”), Emmanoel Pereira, na votação do AG 62268/2002, envolvendo a penhora de bens do Consulado Geral da República da Coréia, em São Paulo, deixando evidente que “denota-se que encontramos certa dificuldade, que é adicional, de realização prática do título executivo judicial condenatório, representada pela prerrogativa da imunidade de execução, mesmo em se tratando de litígio de natureza trabalhista (...) inexistindo nos autos qualquer notícia de que houve renúncia por parte do Consulado à imunidade de execução, e resultando nítido tratar-se da residência do Cônsul, cujo bem está integrado ao patrimônio estrangeiro, o ato apontado como coator vulnerou o direito líquido e certo do impetrante, que goza da imunidade de execução, segundo a normatização inserta nas Convenções de Viena”. Dessa forma, entende-se que, quando não houver renúncia do Estado estrangeiro à sua imunidade de execução, a sentença condenatória trabalhista só poderá ser executada de duas formas, a saber: (i) espontaneamente pelo Estado faltoso (o que, de fato, aconteceu em muitos casos recentes. Das 350 ações judiciais trabalhistas propostas junto ao Tribunal Regional do Trabalho, da 10ª Região, contra representações diplomáticas estrangeiras acreditadas em Brasília, entre 1990 e 2001, observe-se que um total de 115 delas resultaram em acordos homologados entre as partes); ou (ii) forçadamente, caso o Estado faltoso possua no local da execução bens não relacionados à sua missão diplomática, isto é, bens que, embora pertencentes ao Estado estrangeiro, não tenham nenhuma vinculação com as finalidades essenciais inerentes às missões diplomáticas/consulares mantidas em nosso território. O Próprio Brasil já enfrentou essa situação quando, bens do Instituto Brasileiro do Café e do Lloyd Brasileiro, bens do Estado brasileiro, porém não afetos ao serviço diplomático e consular, foram penhorados para garantir a execução eficaz proposta contra o Brasil no exterior. A recente posição adotada pela Justiça do Trabalho, em casos como o de um país membro da União Européia, que determinou o bloqueio de conta bancária da representação diplomática como forma de garantir a execução de sentença condenatória de natureza trabalhista, nos remete à norma convencional de que esta penhora só seria possível se a conta bancária bloqueada não tivesse nenhuma relação com a atividade diplomática da missão, o que não parece ser o caso, uma vez que priva a representação diplomática estrangeira do numerário existente em sua conta bancária para a consecução do objetivo de sua presença neste país. No entanto, a referida decisão judicial comprova a existência em alguns setores na Justiça brasileira de um sentimento que para não propiciar ao empregador estrangeiro faltoso a possibilidade de furtar-se ao cumprimento das decisões trabalhistas, vêm entendendo que não cabe imunidade de execução nesses casos, fazendo valer o princípio de que “Justiça pela metade não é Justiça”, criando, por conseguinte, mecanismos que obriguem ao pagamento das indenizações que advenham das demandas trabalhistas, muito embora tal entendimento ser totalmente contrário às Convenções de Viena, ratificadas pelo Brasil por meio dos Decretos 56.435/65 e 61.078/67, que não foram derrogadas por nenhuma norma ulterior. Isto posto, conclui-se que algumas medidas podem ser adotadas pelas representações diplomáticas estrangeiras acreditadas em Brasília, de forma a minimizar os impactos desse tipo de decisão, que desconhece o direito à imunidade de execução garantido pelas normas convencionais em vigor, tais como: (i) organizar um treinamento para os representantes do corpo diplomático sobre a legislação trabalhista brasileira, explicando a forma de pagamento dos salários aos empregados locais, bem como os impostos decorrentes do contrato de trabalho, garantindo, dessa forma, a correta observância da legislação aplicável para evitar futuros litígios trabalhistas; (ii) avaliar a possibilidade de transferência de suas contas bancárias locais para países vizinhos, a exemplo do que vem sendo feito pelas representações diplomáticas brasileiras no exterior, com base no princípio da reciprocidade; e (iii) realizar uma due diligence interna em seus respectivos contratos de trabalho com empregados locais para examinar a forma como estão regulados, identificando possíveis imperfeições e adaptando-os às normas aplicáveis o quanto antes. Caso a representação diplomática atingida por uma medida executória discricionária da Justiça do Trabalho, consubstanciada no bloqueio de sua conta bancária, deseje ingressar, imediatamente, no Poder Judiciário para garantir a imunidade de seu patrimônio contra eventuais medidas dessa natureza, então uma solução jurídica adequada para cada caso específico, a exemplo de um mandado de segurança, poderá ser discutida e implementada, como forma de garantir os seus direitos estabelecidos na legislação nacional e, por conseguinte, o respectivo desbloqueio de sua conta bancária. Nota-se, portanto, que cada caso deverá ser tratado individualmente, na busca da solução ideal adequada para a garantia eficaz dos direitos à imunidade de execução, que estão plenamente em vigor. As Convenções de Viena de 1961 e 1963, tendo sido ratificadas pelo Congresso Nacional e incorporadas, por meio de Decreto, ao ordenamento jurídico interno, estando, portanto, em vigor, preconizam a inviolabilidade dos bens afetos à missão diplomática estrangeira, aí compreendidos todos os bens necessários ao cumprimento do seu desiderato. (Endnotes) 1 CALSING, Maria de Assis. “Distinção entre a imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro e das organizações internacionais, em matéria trabalhista”. Palestra apresentada no Seminário “A Imunidade de Jurisdição e o Judiciário Brasileiro”, em 26.04. 2002. 2 GARCIA, Marcio. “Imunidade do Estado: Quem disse que o Rei não erra”. Palestra apresentada no Seminário “A Imunidade de Jurisdição e o Judiciário Brasileiro”, em 26.04. 2002.