TV C ul tu ra . O cheirinho do amor Lu is An to ni o G iro n – O que é a vida, afinal? É o que se pergunta um personagem do Philip Roth no romance Pastoral americana, providenciando ele mesmo a resposta: a vida não passa do curto período de tempo no qual estamos vivos. Grande sacada ou suprema obviedade? As duas coisas ao mesmo tempo, acho, e nisso se revela a genialidade de um grande escritor como o Roth. Grandes sacadas qualquer escriba razoável volta e meia tem uma ou duas ao longo de sua obra. Supremas obviedades qualquer escritor medíocre também comete às dúzias em cada parágrafo que fatura. Mas uma grande sacada que pode ser confundida com uma suprema obviedade, e vice-versa, isso é coisa de gênio, nada menos. Em todo caso, posso afirmar, sem grande margem de erro, e sem ter muito o cu a ver com as calças, que, nesse curto período de tempo em que, digamos, um português ou descendente de portugueses permanece vivo, ele há de comprar bacalhau para ser comido em algumas efemérides do ano, seja porque é sexta-feira da Paixão, seja porque é aniversário de alguém, seja porque lhe deu gana de comer bacalhau só pra comemorar o fato de que ele ainda está vivo — o português, não o bacalhau. Tal cons 185 Lu is An to ni o G iro n – TV C ul . tu ra tatação pode ser taxada de óbvia, admito, apesar de que o bacalhau, ele mesmo, poderá se revelar genial iguaria, se de boa qualidade e preparado por mãos competentes com o auxílio luxuoso de um azeite extravirgem. Ocorre que meu avô materno, que era português, permaneceu vivo tempo suficiente para introduzir o bacalhau na minha avó, ops, no cardápio da família que ele gerou com vovó, digo. Suas três filhas, uma das quais viria a ser minha mãe, também entronizaram o bacalhau na mesa de suas respectivas famílias em dias especiais. No meu caso, o bacalhau podia aparecer de surpresa à mesa em qualquer dia, se calhasse de papai, também ele descendente de antigos portugueses, ter passado um dia antes em frente a uma tradicional mercearia de secos e molhados no centrão paulistano, a Casa Godinho, sendo esse Godinho outro imigrante português, que fundou o estabelecimento em 1888. Dizia meu velho que ao passar ali defronte sentia irremediável atração pelo cheiro do bacalhau seco pendurado inteiro e aberto na porta do estabelecimento, como se usava antigamente. Papai gostava de salientar seu apreço pelo cheiro do bacalhau, com óbvias segundas intenções que acabei captando com o tempo e com a aquisição de certas experiências olfativas. O bacalhau entra aqui porque, justamente na última páscoa, fui encarregado pela família da minha mulher, também ela de ascendência lusa, de comprar o famoso lombo do gadus morhua, o melhor e mais caro bacalhau do mercado, naquela mesma mercearia frequentada pelo velho cinquenta anos atrás. Há muito tempo já que não penduram o bacalhau na porta, onde, hoje, não duraria dois minutos antes de ser surrupiado por algum tubarão ou tubarinho na correria, dado seu alto valor monetário, 186 Lu is An to ni o G iro n – TV C ul . tu ra além do nutritivo. Baratíssimo antigamente, o bacalhau era item da culinária popular e havia até um ditado muito comum aplicado a pessoas consideradas desimportantes demais pra merecer prenda de valor, boa remuneração pelos serviços prestados ou alguma deferência especial: “Pra quem é bacalhau basta”, se dizia. E foi assim que me vi na mercearia a sopesar os bitelões da iguaria embaladas em bandejinhas de isopor envolvidas em filme transparente, decidindo qual deles levar. A embalagem do bicho, longe de ser hermética, deixava um pouco do sal do peixe e muito de seu cheiro se transferirem para os meus dedos, algo que só percebi cruzando o viaduto do Chá, ao levar distraidamente a mão ao nariz. Cheirei, senti, pirei. Aquele cheiro me falava direto à libido, pá. Se me perdoam mais uma vez certa rudeza vernacular nestas páginas, eu diria tratar-se do inconfundível e genérico cheiro de buceta, de buceta saudável, cônscia de si mesma, passível de pronta excitação se devidamente provocada. Pra mim, naquela hora morna da tarde, aquele odor era nada mais, nada menos, que o cheirinho do amor. E como estes olhos meus que algum bacalhau há de comer um dia, depois de escoadas minhas cinzas pro mar, não haviam perdido o senso da visão, acontecia de se verem a todo instante atraídos por vários dos exemplares femininos em circulação à minha volta no vasto oceano humanoide da Pauliceia, o que só acentuava a conotação sexual do bodum de bacalhau impregnado em meus dedos. Ali estavam, naquele intenso aroma, os inequívocos vestígios da vulva arquetípica herdada das formas aquáticas ancestrais de onde viemos. E assim caminhava a humanidade, e eu no meio dela, pelo viaduto do Chá, de olho naquela parcela da 187 Lu is An to ni o G iro n – TV C ul . tu ra dita humanidade capaz de secretar em suas partes íntimas o perfume essencial que eu trazia agora nas mãos e dentro da sacola plástica com a posta de bacalhau. Eu olhava as meninas ao mesmo tempo em que cheirava a ponta dos dedos e seguia viajando forte na libidinagem olfativa e ocular, feito um Leopold Bloom capaz de operar a transformação sinestésica de cheiro de bacalhau em sexo feminino, em pleno fluxo de consciência deambulatório pelas ruas da minha São Paulo dublinesca. Secretárias, executivas, comerciárias, bancárias, faxineiras, estudantes, professoras, golpistas e malabaristas, negras, brancas e orientais, eu olhava pra cada uma delas e lhes aspirava a flor do sexo sem a menor cerimônia. E o cheiro de cada uma, que eu trazia na ponta dos dedos, era o cheiro sexual de todas elas, sendo também o perfume do divino bacalhau dos mares do norte. Até uma PM que passou por mim em seu lento passo de patrulha, toda justinha no uniforme, com uma carinha morena de boneca séria debaixo da aba curta do quepe, lábios discretamente batonados, ostentando peitos capazes de abater sem misericórdia bandidos armados até os dentes, até essa bela militar eu cheirei profundamente na ponta dos meus safadedos embucetados de bacalhau. A profunda conclusão que tirei desse episódio banal é que, enquanto tem olfato, o ser humano tem tesão. Pode anotar essa frase no mármore das verdades eternas, meu amigo. Em outras palavras, enquanto o sujeito se deleitar com o cheirinho de bacalhau salgado em seus dedos, seja ele proveniente do gadus morhua ou das meninas do viaduto do Chá, o bicho continuará pegando em sua libido, isso é batata — batata, aliás, que, corada ao forno ou cozida na água, costuma acompanhar o bacalhau à mesa com grande sucesso. 188 Lu is An to ni o G iro n – TV C ul . tu ra E como os peixes também têm olfato, precioso meio de orientação para eles, aliás, e também se dividem em machos e fêmeas, um necessitando do outro pra reproduzir a espécie, a exemplo do que acontece com todas as outras espécies interessantes do planeta, não seria descabido aventar a hipótese de que até os bacalhaus sentem-se atraídos pelo cheiro de bacalhau — das bacalhoas, no caso —, equiparando-se por esse viés nasal ao gênero humano. E antes que eu me anime a tirar mais assunto de uma simples posta de gadus morhua, digo apenas que o bacalhau comprado naquele dia no centrão, feito no forno da minha sogra, com as postas já devidamente dessalgadas, recobertas de farinha de rosca com alho espremido e nadando em azeite, aquele bacalhau ficou “de gritos”, como teriam dito, se vivos fossem, o seu Godinho da mercearia, o meu vovozinho de Trás-os-Montes e o meu saudoso sogro, igualmente português, grandes apreciadores, todos os três, tanto do bacalhau quanto do seu cheirinho inebriante e evocativo do sexo feminino, o qual também souberam desfrutar no curto período em que permaneceram vivos, como diria com platitudinal sapiência o Philip Roth. 189