202 A inversão do humano num mundo às avessas em Budapeste, de Chico Buarque de Holanda Carina Dartora Zonin* 1 Considerações iniciais Com um estilo próprio, Chico Buarque compõe um texto que nos faz ver o desvendar do ser-humano através de labirintos que o cercam e o anulam enquanto sujeito, através de percursos que o levam a ver-se refletido no outro, numa relação que tende a omissão de traços particulares, deixando-nos a mostra uma identidade multifacetada e abalada por esferas sociais que a estigmatizam. Neste estudo, propomos evidenciar esses caminhos através da trajetória do personagem José Costa, revelando, especialmente, as constantes projeções do outro sobre o eu na obra Budapeste. Os abalos que sofre o humano nos revelam caminhos que o eu percorre na busca de sua autoafirmação, perpassando relações autoritárias entre sujeitos. Dessa relação de poder, importa pensarmos na complexidade que envolve a questão da identidade no mundo moderno. Para isso, as reflexões de Bauman (2005), especialmente no texto Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi, serão de grande valia. Para este estudo, pensaremos a condição humana num espaço em que as transformações atingem sua voltagem máxima, havendo a perda da permanência e uma aceleração para a descoberta do novo. Neste contexto, os laços humanos se fragilizam e o sujeito se sente aflito por se descobrir no mundo, como se tivesse que construir sua identidade para não perecer no tempo. Assim, a modernidade instala um conflito existencial e um enfrentamento entre indivíduo e sociedade numa constante que oscila entre ser, numa esfera de espaço e tempo, e não-ser, isto quando as esferas espaciotemporais se mostram superiores e tendem ao apagamento do eu. Tais esferas perpassam o meio social, cultural, político, econômico, num determinado momento histórico. Na obra, o personagem central vive num espaço-tempo desarticulado e em constante oscilação, sentimos a inconstância e o desapego como traços particulares do *Carina Dartora Zonin é especialista em Estudos Lingüísticos do Texto (2005) e Literatura Brasileira (2008), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Atualmente (2009), realiza mestrado em Literatura Brasileira na referida instituição. Dentre suas publicações, destaca-se Realidade e imaginação: uma (re)descoberta do ser em narrativas lygianas, Revista Nau Literária, vol. 4, n. 1 Dossiê: Literatura, oralidade e memória - UFRGS. E-mail: [email protected]. 203 comportamento de José Costa. Ao mesmo tempo, tais características abalam o sujeito que busca, aflitivamente, algo em que se apegar para se revelar enquanto tal. Assim, surgem encruzilhadas que povoam a vida do protagonista: as mulheres e as cidades (Vanda e Kriska; Rio de Janeiro e Budapeste), ou seja, as relações inter-humanas e o contexto histórico-social e cultural. Dessa envoltura, vemos sobressair José Costa e Zsoze Kósta, nomes que representam a busca pela individualidade, por uma identidade que se perdeu nas faces do outro. Afinal, quem é o nosso personagem em estudo? Como podemos vê-lo e qual é a sua verdadeira face? Quais são as esferas que a definem e/ou a estigmatizam? Para tanto, neste primeiro momento, centraremos nosso olhar na trajetória do protagonista, tencionando revelar as diversas tentativas de construção da identidade na trama para, assim, elaborarmos uma reflexão sociológica acerca da trajetória do protagonista, segundo o pensamento de Bauman. 2 Um e outro - José Costa e Zsoze Kósta – facetas de um mesmo eu? A instauração do personagem na transitoriedade de suas relações se mostra através de um fator central, a saber, a questão da linguagem. Efetivamente, a fala identifica e forma indivíduos, é um traço de identidade, é um meio que permite ao serhumano limitar-se enquanto sujeito no mundo. José Costa representa a força inventiva e criativa, é a voz literária que vê o meio através da escrita, da linguagem e, é através dela, que veremos sua projeção no mundo, suas constantes tentativas de se ver e ser visto, lidas, é claro, pelo viés do outro. Levando em conta que o eu se constitui através do outro e sendo essa uma relação necessária para a nossa autoafirmação, passamos a ler Budapeste como um texto que explora essa relação e que a constitui, muitas vezes, por laços capazes de negar o humano e de disfarçar e/ou aniquilar o verdadeiro e mais puro eu dos sujeitos. Nosso personagem é, constantemente, influenciado por forças alheias que, para caracterizá-lo enquanto sujeito no mundo, acabam tornando-o reflexo dessas projeções e deixando-o vazio de si, posto que é colocado a serviço do outro, numa relação mais de exploração do que de mútuo crescimento. Os recursos narrativos permitem que o narrador aluda a fatos-chave sem se ater a desenvolvê-los linearmente, permitindo-nos enxergar, com maior profundidade, os constantes desmascaramentos das relações intersubjetivas. O início do texto in media 204 res, lança o leitor num dos conflitos centrais da trama, a saber, a eterna busca de identificação na e pela linguagem. Assim, logo no início, percebemos uma força negativa agindo sobre o eu, dada pela relação entre José Costa e Kriska: Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano [...] telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença. Aí estou chegando quase... Havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone (HOLANDA, 2003, p. 5). Sem rodeios, a narrativa já nos coloca no percurso que norteará a reflexão do personagem central acerca de sua condição no mundo. A linguagem é o meio pelo qual ele se identifica como sujeito e, ao mesmo tempo, é o meio que apaga os seus próprios contornos. Ela representa uma projeção de si através do outro, uma imagem que se vê pela sombra do outro e que, por isso mesmo, não pode ser reconhecida como tal, não pode existir sozinha, formando, no desenrolar da narrativa, um movimento circular, de eterna dependência. Os personagens que o cercam fortalecem a ideia de apagamento do eu frente ao outro, já que representam forças negativas para a percepção das potencialidades que garantiriam a José Costa uma aparição no mundo. Álvaro e Vanda representam um universo desprovido da lucidez capaz de enxergar no outro valores humanos. São, antes de tudo, indivíduos estereotipados imersos numa sociedade que se volta para o ter em detrimento do ser; são incapazes de reconhecer no outro valores que potencializem o humano, sentimento que percorre o pensamento de nosso personagem: [...] Para mim valiam como exercício de estilo aquelas monografias e dissertações, as provas de medicina, as petições de advogados, as cartas de amor, de adeus, de desespero, chantagens, ameaças de suicídio, textos que eu mostrava ao Álvaro antes de limpar o arquivo. Ele espiava a tela e falava gênio, gênio, pensando noutras coisas, o Álvaro nunca pensava exatamente no que estava olhando. E a Vanda implicou com ele logo no início do nosso namoro, referia-se ao Álvaro como o vampiro, porque chupava meu talento [...] Dizia isso por me querer bem, não aos meus escritos, que ela não lia, Vanda nem sabia direito que espécie de escritor era eu (HOLANDA, 2003, p. 15). Através da voz de José Costa é que percebemos o caráter fragmentário e frágil das relações entre sujeitos1; é através do seu dizer que observamos as constantes peripécias pelas quais é envolvido, levando-nos a ver a tessitura complexa que tende a 1 As relações inter-humanas não se sustentam por elos de afetividade, o que nos remete à liquidez dos laços humanos de que nos fala Zygmunt Bauman (2004) em seu texto Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. 205 subversão do que temos de mais intrínseco, a nossa capacidade de expressão. Na tentativa de Ser, a trajetória de José Costa nos revela uma força contrária que entranha o mundo e a alma dos personagens que, ao não reconhecer o humano são, também vítimas de um sistema fechado que encerra em si qualquer chance de vitória do sujeito. José Costa vive num mundo que não o reconhece, mas que aproveita e desvirtua suas potencialidades, causando, inevitavelmente, sua frustração, já que é impossível sua realização numa relação de compra e venda: [...] Discursos de campanha remuneravam bem, mas me deixavam insatisfeito, infeliz mesmo. Muitas vezes o orador atropelava as passagens que eu mais prezava, não hesitando em saltar parágrafos inteiros caso a agenda estivesse cheia ou o sol forte. E intrometia de supetão uns arrebatamentos da cabeça dele, que os populares aplaudiam, depois largava a papelada no palanque para o vento levar (HOLANDA, 2003, p. 16). José Costa é o indivíduo desajustado, desadaptado, que procura valores autênticos num mundo degradado, num um espaço subvertido pelas relações de troca que tendem a omissão do sujeito potencial, destinado à sombra, já que o humano é entendido como objeto frente a um jogo de interesses. Ele se lança numa eterna busca que, a priori, já está condenada ao fracasso, caracterizando o caráter problemático do romance de que nos fala Goldmann (1990). Na voz de nosso personagem, é possível perceber a pressão do meio que leva o sujeito a uma tentativa de se enquadrar no espaço, mesmo sentindo o quanto perde de sua individualidade: “[...] Meu nome não aparecia, lógico, eu desde sempre estive destinado à sombra, mas que palavras minhas fossem atribuídas a nomes mais e mais ilustres era estimulante, era como progredir de sombra” (HOLANDA, 2003, p. 16). É o meio que subverte os sentimentos reais em benefício de recompensas que não alcançam satisfazer o humano, pois são, por natureza, destituídas de essência, são ocas e levam o Ser ao nada, ao ser-não-sendo. José Costa é tragado por esse mundo do não-ser tanto que lhe incomoda estar em evidência; supostamente, prefere o anonimato, vive a passividade de quem não contraria um sistema pré-estabelecido. É o mundo de pessoas-objetos que impede a desenvoltura do humano e faz com que nosso personagem viva uma projeção de si através do outro, numa relação de subordinação: “[...] ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito quem se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele” (HOLANDA, 2003, p. 18). Costa é absorvido por esta engrenagem e não reage ou, ao menos, não encontra 206 forças para tanto. As relações humanas são passageiras e banais, entrecortadas por propósitos individuais. No dia do aniversário de Vanda, José Costa viaja para o congresso anual de escritores anônimos; nas férias de Vanda, um viaja para Budapeste e outro para Londres; Álvaro deixa de se importar com o amigo quando seus serviços já não o interessam mais. As relações humanas são frágeis e se marcam mais pelo desencontro, pois se desfazem a qualquer preço. Ironicamente, é no encontro de escritores anônimos que José Costa se revela, fortalecendo a ideia de apagamento do eu frente ao outro. É, inevitavelmente, tempo de homens sós e pela metade, vazios de qualquer essência capaz de os manter vivos enquanto sujeito no mundo: [...] Já era uma compulsão, eu fervia, falava, falava, teria falado até o amanhecer se não desligassem a aparelhagem de som. Ao ver a sala vazia e o elevador lotado, subi de um fôlego sete lances de escada; eu estava leve, eu estava magro, lá em cima me veio a sensação de ter ficado oco (HOLANDA, 2003, p. 21). José Costa vive em função de um meio que o estigmatiza e que subverte valores intrínsecos do ser humano a fim de favorecer relações de interesse, sejam elas econômicas, políticas, mercadológicas, etc. Isto se reflete nas ações de Álvaro que, ao admitir José Costa na Cunha & Costa, parece monopolizar as habilidades que lhes são inerentes na tentativa de estereotipá-las: [...] o Álvaro adestrava o rapaz para escrever não à maneira dos outros, mas à minha maneira de escrever pelos outros, o que me pareceu equivocado. Porque minha mão seria sempre a minha mão, quem escrevia por outros eram como luvas minhas, da mesma forma que o ator se transveste em mil personagens, para poder ser mil vezes ele mesmo. A um aprendiz, eu não me negaria a emprestar meus apetrechos, vale dizer meus livros, minha experiência e alguma técnica, mas o Álvaro tinha a pretensão de lhe transmitir o que era mais que propriedade minha (HOLANDA, 2003, p. 23). Efetivamente, estamos no mundo da reprodução, da cópia e da coisificação do ser-humano imerso num espaço que apaga os traços individuais. Nesse momento, José Costa passa a escrever autobiografias numa tentativa de manutenção de sua autonomia, o que é inconcebível para um mundo corrompido e inautêntico. É tempo do homem objeto do homem que se move num espaço em que o eu é absorvido pelo outro, submetendo-se à engrenagem do mundo contemporâneo. Se no Rio de Janeiro, José Costa sofre constantes mutações que ora distinguem ele-em-casa buscando superar a rotina e reconstituir elos de afetividade abalados por relacionamentos distantes e pouco sólidos, ora ele-no-trabalho sendo um homem 207 instrumento do homem que, facilmente, apaga-se para outro brilhar, em Budapeste não será diferente. O aprendizado de uma nova língua representa uma chance de sua (re)constituição enquanto sujeito, numa relação de construção-anulação de identidade, já que para ser Zsoze Kósta terá que deixar de ser José Costa, terá que apagar de sua interioridade os contornos que o delimitam para poder ser outro: “[...] Quando de noite começo a murmurar sozinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige” (HOLANDA, 2003, p. 6). Budapeste nos fala acerca da construção de nossa identidade, das diversas faces que congregam um sujeito e das várias possibilidades de as mesmas representarem máscaras que escondem a essência do humano, mais do que a mostram. José Costa simboliza esses eus que povoam o ser-humano e que o perturbam na busca de uma autoafirmação. Em nossa análise, veremos que a obsessão pela linguagem, meio de expressão que promove sua estagnação enquanto sujeito, representa sempre uma chance de libertação do eu em face do outro. José Costa é um ser de múltiplas faces e, ao mesmo tempo, é um ser-não-sendo, é alguém que se mostra através do outro, que se omite para realçar o outro e incorpora, no dizer de Wisnik (apud CARVALHO, 2005, p. 36), “[...] a carreira secreta do escritor anônimo, profissional-serviçal da imagem alheia”. Em nosso estudo, buscaremos as diversas tentativas de projeção do eu e, ao mesmo tempo, as constantes forças que tendem a estagnação e a omissão do sujeito em detrimento da supremacia do outro. As constantes oscilações entre as cidades e seus entornos permitem-nos ver o descortinar dos tempos, fazendo ressurgir o peso da confidenciabilidade, de forças autoritárias que mascaram a liberdade do sujeito, submetendo-o a comportamentos préestabelecidos. É um sistema rígido que não admite a ascensão individual. Surgem, então, dois mundos fechados, constituídos por Zsoze Kósta, Kriska e Pisti e por José Costa, Vanda e Joaquinzinho. Estes espaços individuais reproduzem as mesmas tensões sociais e o protagonista parece (re)viver as mesmas peripecias numa espécie de espelhamento delas, o que reforça o caráter circular da obra e a sensação de que vivemos num tempo em que tudo o que é sólido se torna líquido e, como tal, não se mantém vivo; é uma espécie de líquido que tende à evaporação, à inexistência. José Costa sofre por seu anonimato e lhe fascina ser outro, como uma espécie de nascer de novo. A linguagem é a porta de entrada e ele se sente seduzido por ela através de sua atração por Kriska. Esta representa o poder da sedução, do envolvimento, da diplomacia, o que o faz Zsoze Kósta: 208 Fora da Hungria não há vida, diz o provérbio, e por tomá-lo ao pé da letra Kriska nunca se interessou em saber quem tinha sido eu, o que fazia, de onde vinha. [...] No meio de uma aula podia me acontecer de pensar no Pão de Açúcar, digamos, [...] ou na Vanda chegando de viagem, [...] mas se Kriska me surpreendesse desatento, batia palmas e dizia: a realidade, Kósta, volta à realidade (HOLANDA, 2003, p. 68-69). Ao dominar a nova língua, o mundo se fecha e volta ao movimento circular como uma espécie de espelhamento do vivido. Ironicamente, nosso personagem continua vivendo desajustado com o agravante de que, literalmente, está num espaço que não lhe pertence e, portanto, não lhe reconhece como ser autêntico. No Rio compôs a autobiografia de Kaspar Krabbe intitulada O Ginógrafo e, em Budapeste, escreveria poemas em húngaro que levou a autoria de Kocsis Ferenec, sob o título de Tercetos Secretos. Dessa trajetória, o que fica é o anonimato contraposto à necessidade constante de autoafirmação, que é, no mínimo, impraticável. As relações são frágeis e, por isso, não se fixam no tempo, seja em relação ao espaço, seja em relação aos indivíduos. Tudo parece estar à solta: os elos que o prendem à Kriska e à Vanda não se sustentam, dando a impressão de uma história incompleta. O que o cerca é o cotidiano que não lhe oferece saída: no Rio, temos a Vanda lhe oferecendo, constantemente, um prato de sopa; em Budapeste, Kriska lhe oferece, repetidas vezes, um espaguete à bolonhesa. Tanto no Rio como em Budapeste, nosso personagem vive condenado à sombra. Os sentimentos, bons e ruins, ele os vive através do outro, de um personagem que aqui representa o sujeito que ele não é, ou que não pode ser. Sente ciúmes ao ver estampado em O Ginógrafo uma dedicatória de Kaspar Krabbe à Vanda, ou melhor, à Wanda. Esta suposta intimidade, dada pela admiração de Vanda pelo livro, era para ser sua e aqui fica claro que nem tudo é passível de ser objeto de troca: [...] Daí meu estupor ao saber da sua boca que ela lera meu livro, não uma, mas três vezes. E menos mal que estivesse tão apressada, e nem me olhasse ao dizer o que disse, porque naquele instante me portei como um amador. Devo ter enrubescido, mordi meu lábio inferior, meus olhos se encheram de água, tive pena e orgulho de mim, era como se duas palavras dela reparassem sete anos de descaso [...] absolutamente admirável (HOLANDA, 2003, p. 103-104). As relações de poder se constituem por critérios perenes e que tendem a se deteriorar. A força superior está para o mais rico economicamente, enquanto que os valores intelectuais e humanos servem, muitas vezes, à moeda de troca. Movido pela afetividade e pelo ciúme, é que Costa revela à Vanda o segredo da autoria: “[...] 209 Naquele instante oco, com uma voz que não era a minha, lhe comuniquei: o autor do livro sou eu” (HOLANDA, 2003, p. 112). A aflição e a agonia aumentam. A cidade não o reconhece; o mundo não o vê. De volta à Budapeste, tampouco é visto. Kriska o ignora, representa a força de um novo sistema que exclui o diferente. Neste caso, o estrangeiro José Costa: [...] cheguei me arrastando ao portão de Kriska. Toquei o interfone, rezei para que ela me respondesse, chovia forte e eu estava ensopado. [...] Crispei o rosto, cerrei os olhos, meti o queixo no peito, enquanto tivesse fôlego eu poderia baforar meu peito, aquecê-lo um pouco com meu vapor. A friagem nas pernas também se acentuava, porque eu não sentia mais as pernas, que de repente se dobraram, não sei como. Caí de joelhos e dei com a testa nas grades de ferro do portão, mas o choque não me doeu, somente seu som repercutiu dentro da minha cabeça. Depois tive a sensação do sangue morno me descendo pela cara, e pensei que naquela posição daria para dormir um pouco. Assim estava quando ouvi às minhas costas um motor de carro, portas batendo, umas risadas, passos, ouvia a voz de um homem: e isso agora o que é?, e uma voz de mulher: é o indivíduo de quem te falei, e o homem: a infeliz criatura está a beira da morte, e ela: está à beira da morte o indivíduo em meu portão (HOLANDA, 2003, p. 122). Nesta passagem, a desconsideração pelo outro é mais chocante. Ao invés da sensibilização de sentimentos, o que prevalece é o descaso. O acolhimento de Kriska reforça a total repulsa pelo diferente e o estrangeiro é acometido a viver, precariamente, na despensa de sua casa. Aqui, a representação percebe o homem como objeto descartável, especialmente, quando este não atingir os requisitos mínimos para viver em sociedade. A liberdade pressuposta pela modernidade é escamoteada pela presença viva de um sistema rígido, fixo e excludente. À margem, Kósta vai sobrevivendo em direção a novas ilusões, de reconhecimento e ascensão: agora não mais na Cunha & Costa e, sim, no Clube das Belas-Letras. Uma nova esperança é acometida pela mesma precariedade. Aos poucos, Kósta domina o húngaro e ganha a confiança de Kriska, mas a sua aparição em sociedade é, novamente, escamoteada. A mesmas peripécias retornam a sua vida em voltagem máxima. Escreve textos que não são seus, numa cidade que não é a sua. Da prosa à poesia, de Budapeste a Budapest, a possibilidade de ascensão continua inacessível, pois o tempo é o mesmo, degradado e inumano. Sua primeira redação no idioma foi uma dissertação em dialeto székely e, aos poucos, sua escrita ia ganhando feição de poesia. Zsoze Kósta passa a se expressar em nova língua e em nova forma, parece imobilizar o poeta Kocsis Ferenec e, com isso, protagoniza o final do livro de poesias: Tercetos Secretos. É Zsoze Kósta poeta através de Kocsis Ferenec. 210 Mais uma vez, é num encontro de escritores anônimos que Zsoze Kósta se revela, é num mundo à parte que diz ser o autor de Tercetos Secretos. Mais uma vez, sente-se mal: “[...] minha cabeça rodava, o poema rodava na minha cabeça e eu não queria mais saber de poema algum” (HOLANDA, 2003, p. 146). A situação irregular no país faz com que nosso personagem volte ao Rio de Janeiro. Em sua fala, percebemos o atravessamento de várias linguagens, de vários mundos que o habitam e o deixam com facilidade: [...] com maior espanto me vi resignado, depois desafogado, depois quase feliz por estar me despedindo da língua húngara. Guanabara, murmurei, goiabada, Pão de Açúcar. Falei arrivederci, falei alemão no meio da rua, até do turco relembrei umas palavras. Eu bicava palavras aqui e ali de línguas que conhecera, um pouco assim como um recém-solteiro sai a revisitar antigas namoradas (HOLANDA, 2003, p. 147). Na despedida, o descaso de Kriska. Na volta ao Rio, o descaso da cidade que o rejeita e não o reconhece: “[...] tive a sensação de haver desembarcado em país de língua desconhecida, o que para mim era sempre uma sensação boa, era como se a vida fosse partir do zero” (HOLANDA, 2003, p. 155). A ideia do novo é um dos fascínios do indivíduo no mundo moderno, uma das crenças que move a sociedade veloz, em que o novo logo passa a ser velho e descartável. José Costa segue seu percurso e, agora, é estrangeiro em sua própria terra: seu filho não o reconhece e, talvez apegado ao desamor e embebido da ferocidade do tempo, segue o percurso do pai. Tampouco, Álvaro o acolhe e Costa passa de um ser-objeto-útil para um ser-objeto-descartável. O progresso econômico e social é uma das ambições do indivíduo moderno que, com isso, passa a conquistar a ascensão ilusória, que o legitima perante o outro: “[...] Do Álvaro, soube que se estabelecera em Brasília, trabalhava na assessoria de um deputado parente seu” (HOLANDA, 2003, p. 157). É o mundo que o repulsa, não há mais espaço para quem não produz, para quem não tem um papel a cumprir na sociedade, parece ser o fim da linha para o nosso personagem. Ele procura reaver o seu espaço, os objetos que o identificariam diante do meio; busca nas salas da Cunha & Costa os materiais que poderiam lhe devolver sua identidade, ao menos, a esperança de conquistá-la: “[...] Deixei o prédio desiludido, seria impossível reaver os livros que eu guardava à chave na gaveta da escrivaninha. Eu tinha encasquetado que, se os fosse copiando um por um à mão, recobraria o pulso para novos romances de encomenda” (HOLANDA, 2003, p. 159). As idas e vindas do personagem, entre Rio de Janeiro e Budapeste, reforçam as 211 inquietações forjadas pelo mundo moderno, em que o indivíduo deixa de ser simplesmente e necessita, a todo o momento, de um amparo ou outro para vir-a-ser. Tampouco sobrevivera O Ginógrafo nas prateleiras das livrarias, faltam-lhe motivos reais, concretos que o dignifiquem enquanto sujeito no mundo. José Costa está fora do sistema, inexiste para a sociedade capitalista, é um ser nulo e improdutivo. No hotel, vive à margem e corre o risco de ser despejado por não pagar as diárias: “[...] Não utilizava o telefone, não acendia mais meu abajur, o 707 vivia às escuras” (HOLANDA, 2003, p. 161). Em nada parece terminar sua trajetória no Rio. Os laços se deterioram com o tempo: o trabalho, a família, os amigos, nada permaneceu. São os tempos líquidos2 de que nos fala Bauman (2005). Ironicamente, recebe um telefonema do cônsul da Hungria e, mais uma vez, ressurge a esperança de reviravolta, mas o desfecho não desmente o peso da realidade. O que lhe aguardava era um mundo ao contrário, que se anunciava por voz alheia: José Costa, ou melhor, Zsoze Kósta era autor de Budapest. O nosso personagem é inserido no mundo da glorificação e do espetáculo, passa a ser reconhecido, a ser visto e admirado como sujeito não por características próprias, mas pela suposta imagem que fazem dele. Em seu íntimo, sobrevivia a sensação áspera e cruel de um ser negado, vivendo num mundo degradado, incapaz de enxergar o humano: “[...] Eu não sabia o que estava acontecendo, aquela gente à minha volta, eu não tinha nada a ver com aquilo. Eu queria devolver o livro, mas não sabia a quem, eu o recebera da Lantos Lorant & Budai e fiquei cego” (HOLANDA, 2003, p. 167). Há para Kósta um falso autor, alguém que lhe toma o papel para escrever sua própria história, falsifica o vocabulário e dá vida a autobiografia de nosso personagem. É num mundo às avessas que se desenvolve a identidade de José Costa, ou melhor, de Zsoze Kósta e, definitivamente, é através do outro que se manifesta quer para o anonimato, quer para a glorificação de si. De nada adiantou esperar pelo reconhecimento devido, pelas autorias anônimas; nada adiantou falar que não era o verdadeiro autor de Budapest e, outra vez, seguia, maquinalmente, o percurso: “[...] Meus passos se tornaram vagarosos, eu ia aonde me conduziam, eu já sabia o que me esperava, era como se meu livro continuasse a ser escrito” (HOLANDA, 2003, p. 171). Kriska o reconhece graças ao livro, muito mais do que a percepção de sua 2 Sobre a modernidade líquida, observar também as considerações do autor nos textos Tempos Líquidos (2007), Vida Líquida (2007) e Modernidade Líquida (2001). 212 interioridade. Kósta atende um pedido seu e passa a ler o livro que não é de sua autoria e, aos poucos, vai incorporando a história, adaptando-se a um mundo que só existe em virtude do outro, de uma voz alheia que lhe dita o caminho... Nosso personagem é, definitivamente, um autor anônimo, que vive às escuras e que na sombra projeta o que tem de mais pessoal e intrínseco: a sua capacidade de expressão. É através dela que revela o seu jeito peculiar, o seu eu mais verdadeiro e puro num mundo condenado a enxergar estes traços por caminhos antagônicos e que, muitas vezes, não reconhece além da sombra: [...] E a sós com ela, na meia-luz do quarto esfumaçado, cheguei mesmo a me convencer de ser o verdadeiro autor do livro. Eu usufruía os fraseados, a melodia do meu húngaro, eu me deliciava com minha voz. [...] Rápido, Kósta, mais rápido, falava Kriska [...] Então moveu de leve uma perna sobre a outra, deixando nítido o desenho de suas coxas debaixo da seda. E no instante seguinte se encabulou, porque agora eu lia o livro ao mesmo tempo que o livro acontecia [...] (HOLANDA, 2003, p. 174). No final, fecha-se o círculo e, outra vez, retomamos o movimento de luz e sombra, de libertação e opressão, de revelação e apagamento, de ascensão e estagnação, a que se submete o sujeito no mundo contemporâneo. O indivíduo e a busca por sua identidade é o centro da história; as diversas facetas - José Costa e Zsoze Kósta; Rio de Janeiro e Budapeste, Vanda e Kriska; Joaquinzinho e Pisti; O Ginógrafo e Tercetos e Secretos; Kaspar Krabbe e Kocsis Ferenec; Budapeste e Budapest – reforçam este enfrentamento do eu na busca de sua identificação no mundo. Há, ainda o contraste entre realidade e fantasia, que permeia todos os episódios, revelando-nos, de um lado, um mundo real, sem alicerces e desajustado e, de outro, um mundo possível, em que a subjetividade se realiza. Ao que tudo indica, os sujeitos parecem completos, mas sempre falta alguma coisa... “[...] eu pensava que Budapeste fosse cinzenta, mas Budapeste era amarela” (HOLANDA, 2003, p. 11). 3 Da ordem à desordem ou muito antes pelo contrário: uma reflexão sociológica acerca da obra Budapeste A leitura do romance, através da trajetória de José Costa, permite-nos pensar nas relações que este mantém com a modernidade. Para tanto, o pensamento de Bauman parece ilustrar o que vimos tangenciado na trama. O espaço-tempo retratado em Budapeste absorve as tensões e inquietações pelas quais passa o indivíduo em sociedade. O mundo não é mais o das relações sólidas e duradouras e, sim, são tempos 213 líquidos que, “[...] diferentemente dos sólidos não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo” (BAUMAN, 2001, p. 08). Os laços humanos não se constituem mais por afetividade. É tempo de homens sós que, como José Costa, alimentam relações frágeis, baseadas em trocas de favores e que sofrem oscilações, de aproximação ou distanciamento, dependendo do interesse de quem se aproxima. Segundo as reflexões de Bauman, entendemos a representação das relações indivíduo-sociedade, entremeada pela liquefação dos sentimentos humanos: [...] ‘Derreter os sólidos’ significava, antes e acima de tudo, eliminar as obrigações ‘irrelevantes’ que impediam a via do cálculo racional dos efeitos; como dizia Max Weber, libertar a empresa de negócios dos grilhões dos deveres para com a família e o lar e da densa trama das obrigações éticas; ou, como preferiria Thomas Carlyle, dentre os vários laços subjacentes às responsabilidades humanas mútuas, deixar restar somente o ‘nexo dinheiro’ [...] (BAUMAN, 2001, p. 10). Nesta perspectiva, a sociedade líquida de que nos fala Bauman é, também absorvida por Holanda em sua narrativa, já que os laços humanos se constituem e se mantém muito mais por interesse do que por afetividade. O caráter ético da vida social é, constantemente, absorvido e descartado das relações individuais. Assim, sentimos os abalos e as inquietações que povoam o sujeito num universo em tensão. O pensamento de que o indivíduo já nasce sujeito e cidadão parece esquecido em prol da necessidade de construção da identidade, pois “os seres humanos não mais ‘nascem’ em suas identidades” (BAUMAN, 2001, p. 40). Assim como José Costa, vivemos numa época em que persiste a constante busca por tornar-se alguém para, assim, conquistar uma identificação perante a sociedade. Um indivíduo nasce à solta; o ser, simplesmente, não garante nada e a segurança que se procura é atestada pela identidade, esta que, para Bauman (2005), é uma convenção socialmente necessária. A identidade deixa de ter uma importância individual para ter uma dimensão social. Nesta busca, surgem conflitos que impedem o indivíduo de tornar-se alguém, como acontece com o personagem em estudo. Isto parece explicar os movimentos circulares que movem a narrativa, o que sufoca e angustia ainda mais o sujeito que busca sua autoidentificação. Em pólo oposto da hierarquia social, dos que constituem e desarticulam as suas identidades, mais ou menos, à própria vontade, estão, conforme Bauman (2005, p. 44), os “[...] que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros – identidades de que eles 214 próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar”. Desta relação de poder, resta pensar para o mundo moderno a degradação em quaisquer dos pólos, pois, especialmente, Kriska, Vanda e Álvaro não sofrem dominação diretamente e têm suas identidades mais preservadas, embora não autênticas. Já, José Costa e/ou Zsoze Kósta representa o indivíduo dominado pelo sistema e que, sem voz, procura sobreviver, sufocando-se sob o peso da confidenciabilidade. O mundo fechado é o da passagem das relações sólidas e duradouras para as líquidas e momentâneas; dos padrões de segurança, alicerçados pela tradição, aos tempos de liberdade total. Mas, o que fazer quando a liberdade não traz segurança? José Costa vive numa sociedade cujos laços humanos se constituem por conveniências e se desmancham ao passo que deixam de importar. Ele é um ser livre num mundo sem limites, desajustado e que, portanto, descarta o verdadeiro eu dos sujeitos, aquele capaz de conservar os traços mais intrínsecos e característicos do ser humano. Essa mudança de base social, que transita do sólido ao líquido, dos tempos de forte incidência de costumes à contemporaneidade, foi motivada pela ruptura com a tradição, privilegiando o apego ao novo. A rigidez da ordem cede espaço para a liberdade, ou melhor, para uma ilusão de liberdade. José Costa representa um indivíduo solto num espaço-tempo flexível em que a fluidez está tanto para o indivíduo quanto para as relações sociais, tornando estratificada toda e qualquer ação que se mova em direção de uma constância. Conforme Bauman (2001, p. 14): “[...] os poderes que liquefazem passaram do ‘sistema’ para a ‘sociedade’, da ‘política’ para as ‘políticas da vida’ – ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social”. Assim como o mundo moderno, a narrativa oscila entre liberdade e estagnação, entre o apego ao novo e a desistência logo em seguida. José Costa busca ser livre numa época em que os valores autênticos são substituídos por valores degradados, impedindo a sua ascensão em qualquer espaço. Assim, segue sobrevivendo numa espécie de rodaviva, em que para sentir-se sujeito tem que abrir mão da realidade. Conforme Bauman (1998, p. 10): “você ganha alguma coisa e, em troca, perde alguma outra coisa [...] Entretanto, você precisa mais do que falta”. Na busca constante por encontrar-se enquanto sujeito, os elos que prendem o protagonista às esferas espaço-temporais denotam um apego que se desfaz e se refaz, sempre, pela ansiedade de se ver e ser visto, levando-o, seguidamente, ao ponto zero, tendo que recomeçar. Ou seja, o mundo contemporâneo não considera os valores intrínsecos do sujeito e estes sucumbem em prol do real ou são vividos num plano que 215 desconsidera a realidade. Bauman (2005, p. 18-19) reflete acerca do mundo estratificado em que vivemos: “[...] Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados”. As relações interpessoais são frágeis e não se constituem seguras para alicerçar a vida e as ações de nosso personagem a qualquer uma das instâncias, Rio de Janeiro ou Budapeste. José Costa parece sofrer de outro mal, a que se liga a noção de identidade pelo sonho de pertencimento. Afinal, em qual das fronteiras espaciais, nosso personagem se distingue como sujeito? Para esta discussão, Bauman problematiza questões relevantes: [...] Estar total ou parcialmente ‘deslocado’ em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa ‘se sobressaiam’ e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. [...] Pode-se até começar a sentir-se chez soi, ‘em casa’, em qualquer lugar – mas o preço a ser pago é a aceitação de que em lugar algum se vai estar total e plenamente em casa (BAUMAN, 2001, p. 19-20). Esta sensação de desconforto e desajuste se reflete na conduta de José Costa. Sentimos nele a ânsia pelo reconhecimento nas duas instâncias e, em ambas, as possibilidades de ascensão vêm entrecortadas por forças contrárias que a jogam em segundo plano. Ele vive sua ascensão pelo viés dado pelo mundo degradado. Aqui, não há como sentir-se, total ou plenamente em casa, visto que o momento tira do sujeito qualquer referência concreta. Da comunidade de vida, Rio de Janeiro, à comunidade de destino, Budapeste, o personagem central passa por mutações que o fazem José Costa e Zsoze Kósta. Duas facetas de um mesmo eu que tendem mais a ocultá-lo do que a libertá-lo, o que no faz pensar que, em lugar algum, sobreviveu sua subjetividade, efetivamente. Vivemos num tempo em que não interessa o verdadeiro eu dos sujeitos, mas, sim, o que vai ser de sua condição no mundo e, segundo Bauman: [...] a ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, um ‘objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre as alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta (BAUMAN, 2001, p. 21-22). Esta é a vocação que José Costa vive no texto, ora ele necessita construir sua identidade a partir do zero, momentos de esperança, tais como suas idas e vindas entre 216 Rio de Janeiro e Budapeste que representam uma nova chance de ascensão; ora pela aceitação de uma conjuntura dada e, através dela, busca sua plenitude, tal como ocorre nas vezes em que escreve pelo outro e nas vezes em que participa dos encontros de escritores anônimos. De um modo mais geral, interessa para a discussão a questão da identidade nacional. Esta que, segundo os estudos de Bauman (2005), teria nascido da crise do pertencimento e que, para nós, faz todo o sentido se recordarmos o contexto romântico de pensamento. No entanto, na contemporaneidade globalizada, em que prevalece um mundo sem fronteiras esta discussão é relativizada. Na obra, sentimos que o personagem não se vê por inteiro em nenhuma das instâncias e, embora haja uma identificação maior com o espaço nacional, ele procura se desprender para adquirir nova feição, em um novo contexto: [...] No meio de uma aula podia me acontecer de pensar no Pão de Açúcar, digamos, ou num menino careca fumando maconha, ou na Vanda chegando de viagem, a Vanda perguntando por mim, a Vanda enrolada numa toalha branda, mas se Kriska me surpreendesse desatento, batia palmas e dizia: a realidade, Kósta, volta à realidade (HOLANDA, 2003, p. 68-69). Este desprendimento caracteriza o comportamento moderno, contribuindo para a ideia de liberdade que, muitas vezes, volta como problema. A ideia de nacional vinculase ao particular, ao pitoresco, enquanto que, no mundo moderno, estes traços são apagados pela ideia de universalidade. Neste mundo vasto e ilimitado é que José Costa procura se encontrar. Falta-lhe, pois, um princípio a que se apegar para a construção da identidade, tal como rege o mundo moderno. Para tanto, o critério de nacionalidade é pouco viável, assim como são os de família, estado, igreja, etc. José Costa encontra os valores deteriorados e, assim, não se constitui perante nenhum deles; é justamente a falta de vigência de um princípio e/ou crença que acarreta os atuais problemas de identidade e, segundo Bauman (2005, p. 30): “[...] Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer ‘natural’, predeterminada e inegociável, a ‘identificação’ se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um ‘nós’ a que possam pedir acesso”. O ser já não existe mais para o natural e o simples e, sim, busca se encontrar no mundo artificial e complexo que o envolve. Os grupos sociais dos quais participa nosso personagem são frágeis, em que é fácil entrar e logo ser abandonado. Tampouco podem essas relações dar substância à identidade pessoal e, pelo contrário, segundo Bauman (2005), elas tornam mais difícil para a pessoa chegar a um acordo com o próprio eu. Os 217 laços de afetividade que unem os grupos sociais funcionam, no dizer do autor (2005, p. 37), como comunidades guarda-roupa, que “[...] são reunidas enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os expectadores apanham os seus casacos nos cabides”. Diferentemente dos vagabundos urbanos de Simmel, como posteriormente os flâneurs de Baudelaire/Foucault, conforme nos mostra Bauman, nós, indivíduos do mundo moderno, vivemos em busca de um espaço de identificação, enquanto que em outros tempos, isto já estava posto, mesmo para os mais simples personagens: [...] A corporificação comunal da identidade, contudo, os ‘alguéns’ que ‘os desejavam e precisavam deles’, e aos quais retribuíam esses sentimentos, estavam esperando por eles, sedentários e de certa forma prontos para servirem e serem usados, no abrigo seguro de seus lares ou locais de trabalho (BAUMAN, 2001, p. 32). Na nossa sociedade líquida não há espaço para permanência de valores e/ou princípios e ao indivíduo cabe acompanhar o movimento acelerado, procurando assegurar, mesmo que não por muito tempo, a sua identificação com um determinado grupo social. No mundo novo, das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente, não funcionam. Conforme Bauman (2005, p. 35), “[...] As identidades ganharam livre curso, e agora cabe a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-las em pleno vôo, usando os seus próprios recursos e ferramentas”. Em José Costa, a busca por sua identidade pressupõe segurança, esta também ilusória e de duração limitada. A sua influência por Kriska e Budapeste representa o que Bauman (2005) nomeia de o ‘identificar-se com...’, que significa dar abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar. Isto é o que sentimos à medida que José Costa se torna Zsoze Kósta e Budapeste se torna Budapest e, ironicamente, a própria história de nosso personagem. Afinal, quem é José Costa? Poderíamos dizer, seguindo pensamento de Bauman (2005), que é um indivíduo moderno, totalmente desapegado aos valores e que deseja sentir-se sujeito nas relações que estabelece. O moderno aqui desconsidera o ser brasileiro, nacional3 e as relações não pretendem e nem podem constituírem-se no tempo como laços duradouros. Vivemos na era da globalização, em que os valores de identidade tanto para o 3 Diferentemente, do pensamento romântico do século XIX e, depois, dos ideais modernistas da Semana de 22, que buscava valorizar o nacional como critério essencial para a identificação do país e do povo, hoje a ideia de pertencimento não assegura mais ao sujeito ter uma identidade. Para esta discussão, o pensamento de Antônio Candido (2000), em seu texto Formação da Literatura Brasileira, é de fundamental relevância. 218 país como um todo (seus bens materiais e culturais) quanto para o sujeito sofrem quando intimados a estabelecer fronteiras para sua auto-definição. Há um problema de falta de consenso entre o que considerar nacional já que estamos em plena globalização e, por conseguinte, falta substância para a constituição dos laços humanos e sociais que venham a promover um acordo da pessoa com o próprio eu. Nesta perspectiva, estar fixo, ser identificado de modo inflexível, é algo impraticável em nossos dias. Uma das saídas, segundo os estudos de Bauman (2005), estaria para a rejeição de identidades que não são impostas, evitando, assim, estereótipos, estigmas, rótulos. Na trama, José Costa se liberta da opressão no encontro de escritores anônimos, fortalecendo a ideia de que no plano real isto é impraticável e que a vida autêntica está para um segundo plano, o da ficção. Holanda problematiza o indivíduo, totalmente, preso à engrenagem do mundo moderno e que dela não pode desprender-se, isto por não ter-lhe concedido a chance de ser ouvido. Justamente pela negação do que lhe é mais intrínseco, podemos pensar o personagem como pertencente a ‘identidade da subclasse’ que, segundo Bauman (2005), envolve os que foram abolidos de individualidade, são pessoas sem rosto, sujeitas ao desrespeito ético e moral. Um dos bens mais particulares lhe é concedido por caminhos inautênticos, subvertendo o reconhecimento digno de quem escreve: a autoria. A rejeição do humano pelo não reconhecimento da individualidade é uma das tônicas do romance e, ao mesmo tempo, constitui uma crítica feroz ao sistema capitalista moderno, alicerçado pelos ideais republicanos. Efetivamente, vivemos num mundo democrático e excludente, livre e hierárquico, que inspira igualdade, fraternidade, humanidade, mas que se deixa envolver pela ambição, pelo individualismo e pelo movimento acelerado da máquina. Neste contexto, em que a esperança logo se transforma em degradação e a ordem em desordem, será possível construir um tempo de todos os homens? É para isto que caminha José Costa, mas quantas vezes terá ainda que recomeçar? 4 Da implicância entre literatura e sociedade: algumas reflexões conclusivas Em nossa leitura, procuramos perceber como se revela a trajetória do personagem central de Budapeste, tendo-a como representativa das tensões sofridas pelo indivíduo no mundo moderno. Para tanto, consideramos a relação literatura-sociedade sob a luz do pensamento crítico de Zygmunt Bauman. Efetivamente, constitui-se numa 219 obra viva, que nos (re)coloca, constantemente, em curso, na busca angustiante por reconhecimento e que, a todo o momento, nos faz pensar se nos encontramos ou se nos perdemos, afinal, onde estamos? Conforme Bauman (2005, p. 49), “[...] não há como dizer quando uma sucessão de eventos chegou ao fim, ou em que ponto termina: a história humana permanece obstinadamente incompleta e a condição humana, subdeterminada”. Pensar o indivíduo imerso no mundo exige uma racionalização complexa que varia num continuum que vai da estagnação à emancipação, podendo encontrar, entre estes pontos, uma posição mediana. Nesta hipótese, José Costa representa o ser consciente de sua estagnação no mundo, buscando, muitas vezes, a emancipação no mundo imaginário. Podemos, ainda esquematizar um percurso que vai da estagnação a uma emancipação ilusória e que logo volta à estagnar-se, quando retoma o percurso real. O personagem em estudo representa a consciência do mundo atrasado, é o indivíduo pensante que, tampouco, é ouvido. A velocidade do mundo impede que se realizem reparos essenciais e, pelo caminho, muitos Josés são deixados para trás, com suas individualidades problemáticas e sujeitas ao apagamento definitivo. Vanda e Kriska, por não reagirem contra o sistema, representam a total estagnação, pois são vítimas sem ser dar conta que o são. Vale pensar, também que o indivíduo emancipado, completo e com suas características intrínsecas respeitadas e valorizadas é utópico para o mundo moderno e está mais para os ideais românticos que inspiraram o movimento nacionalista, no século XIX. Conforme Bauman (2005, p. 49), a ideia de liberdade em oposição à opressão é ainda inspiração para o mundo moderno que, tampouco, a concretizou; ainda quando a referimos é como uma condição que, no entanto, está longe de acontecer: “[...] uma vez livres, as pessoas se tornariam politicamente interessadas e ativas, e por sua vez promoveriam efetivamente a eqüidade, a justiça, a proteção mútua, a fraternidade...” Para o mundo moderno, vale pensar a liberdade como superação dos costumes tradicionais, das autoridades imutáveis, das verdades inquestionáveis, próprias do mundo conservador e burguês, muito bem retratado por Machado de Assis, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1999). De uma sociedade vigiada passamos para um mundo sem fronteiras, em que o ser livre não encontra limites e vive à solta, na fluidez do tempo e, em palavras de Bauman (2005, p. 57-58), “[...] não se deve esperar que as estruturas, quando (se) disponíveis, durem muito tempo. Não serão capazes de agüentar o vazamento, a infiltração, o gotejar, o transbordamento – mais cedo do que se 220 possa pensar, estarão encharcadas, amolecidas, deformadas e decompostas”. Dessa instabilidade, muitos reproduzem a condição donjuanesca e se apegam ao viver espontâneo, totalmente, desprendido e apegado ao novo como alguém que procura, a cada momento, uma auto-definição. E é contra este mundo efêmero e volátil que José Costa procura reagir. Ele representa o ser autêntico, que sofre as peripécias de quem se coloca contra a corrente, pois, conforme Bauman (2005, p. 35): “em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, ‘estar fixo’, - ser ‘identificado’ de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto”. Efetivamente, convivem no líquido mundo moderno forças antagônicas que, a cada momento, nos (re)colocam em pleno curso na busca desenfreada por um eu a quem nos identificar. José Costa é o indivíduo imerso nesta busca efêmera, que representa um mundo que também é nosso. Ele expõe o medo de ser descartado pela sociedade e busca restituir os valores perdidos para não perecer no jogo autoritário. Enquanto isso, a trama se esforça em prol da esperança e o personagem sofre uma espécie de mutação: José Costa renasce Zsoze Kósta, refazendo a esperança que, mesmo por caminhos inversos, insiste em manter viva a luz que procura ver no mundo velho e caduco, traços de modernidade e desenvolvimento, de coletividade e humanidade, de liberdade e fraternidade, prontas a serem vividas num amanhã, quem sabe. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ______. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. ______. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. ______. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. ______. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. Souza, Antônio Cândido de Mello e. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 9. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. 221 CARVALHO, Vivian C. Alves. O romance de Chico Buarque. Trabalho de Conclusão de Curso em Letras. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. HOLANDA, Chico Buarque de. Budapeste. 2 ed. Companhia das Letras: São Paulo, 2003. MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. Ática: São Paulo, 1999.