Lançamento no ISCTE -Centro de Estudos Africanos, Lisboa, no 4 de Outubro 2011 do livro:
Porque prevaleceu a paz-Moçambicanos respondem
da Lucia van den Bergh
Intervençao da Lucia van den Bergh
Bem vindo a todos,
Hoje é um dia especial para os Moçambicanos, 19 anos depois do Acordo Geral de paz, o
acordo, assinado depois duma guerra civil brutal. O processo de transição da guerra para paz
em Moçambique é geralmente considerado como um sucesso. Uma das poucas guerras civis
em que depois do acordo a violência não voltou, e onde o sistema democrático que foi
estabelecido neste periodo está a funcionar razoavelmente até agora. Isso tudo numa situação
dum país pobre e destruído, com uma população traumatizada, com milhares de mortes e
deslocados depois duma guerra extremamente violenta. Conquistar uma paz durável nesta
situação na verdade é extraordinário. Mas também não foi tão simples.
Eu trabalhei em Moçambique seis anos durante a guerra, e seis anos depois. De 92 a 98 fui
representante da AWEPA, a Associação de Parlamentares da Europa pela Africa Austral. A
AWEPA foi formado por deputados dos Parlamentos Nacionais nos anos oitenta, durante as
discussões na Europa sobre o boicote ao apartheid sul africano. O objectivo foi apoiar as
forças democráticos em Africa Austral, e informar as suas Assembleias e o público sobre a
agressão directa e indirecta do regime do Apartheid na região.
Depois do Acordo, O Governo Moçambicano, pediu a AWEPA, que tinha ganho confiança
por causa do suporte durante a guerra, para apoiar no período de transição e durante o
estabelecimento da primeira Assembleia multipartidário. Foi me dada a missão de coordenar
este trabalho. A informação que já existia na Europa estava na base do empenho com que
membros parlamentares europeus e africanos queriam apoiar os programas pedidos pelos
Moçambicanos. Foi possível organizar formação e troca de experiencias nos programas de
reconciliação, educação cívica e na formação dos parlamentares na primeira Assembleia
multipartidário depois das eleições. Os Portugueses também participaram nisso, entre eles o
João Cravinho, o ex-secretario de Estado para o desenvolvimento. Outros fizeram parte de
delegações parlamentares com o objectivo de informar as Assembleias em Europa e Africa,
entre eles o deputado Laurentino Dias aqui presente. Mais pessoas aqui presentes, como a
Ana Mendonça e Olga Iglésias, fizeram parte de programas de formaçao na educação cívica,
um programa muito intensivo com as organizações de mulheres, os jovens, os sindicatos, as
igrejas e a imprensa. As próprias organizações queriam e mesmo insistiram em desempenhar
um papel para a paz. Resultou num grande trabalho com envolvimento dos seus membros em
todas as províncias e distritos. Sem isso, a participação nas eleições não teria sido igual. Os
Moçambicanos sabiam o que queriam, o processo foi deles, mas faltava capacidade e
experiencia, especialmente em aspectos novos. Dos novos parlamentares eleitos, os da
Renamo não tinham experiencia nenhuma de política e de um parlamento. E também a
Frelimo nunca tinha trabalhado num parlamento multipartidário. Assim fiquei envolvida
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nestes programas, e não só, deu me a opportunidade assistir de perto um dos periodes mais
interessantes na história de Moçambique.
Eu fiquei impressionada com a maneira como os Moçambicanos conseguiram gerir esta nova
realidade, e a minha pergunta foi: como eles puderam ter sucesso numa situação em que
outros países falharam? Porque falhou a paz em Angola depois das eleições de 1992, e
Moçambique conseguiu manter a paz?
Muitas perguntas actualmente surgem sobre processos de paz, sobre dialogar ou não com o
inimigo, sobre justiça em periodos de transição, o que fazer com os crimes de guerra, sobre a
introdução do nosso sistema de democracia, mesmo num país com uma tradição diferente.
Qual é o papel dos diferentes lados no conflito? Qual é o papel da comunidade internacional?
Temos direito de intervir? Ou temos a obrigação? O que fazer no Egypte, na Lybia, no Sudão
do Sul, no Afeganistão? E a pergunta mais esquecida é: a democracia institucional que
gostaríamos de ver nestes países, é capaz de resolver a pobreza?
Estes perguntas fazem me sempre pensar no processo de paz em Moçambique. Cada pais é
diferente, e nada pode servir como modelo para simplesmente copiar. Mas o que podemos
aprender dos Moçambicanos, dos aspectos positivos, das soluções criativos, do envolvimento
da população, dos problemas e erros.
Voltei para Moçambique em 2008 e entrevistei mais de 40 Moçambicanos envolvidos no
processo na altura, negociadores, políticos e parlamentares, cidadãos, igrejas, sindicatos e
organizações civis. O livro está escrito principalmente com base nestas opiniões, nestas
análises, e nas minhas experiencias e pesquisa adicional.
Nao posso entrar agora em todos os aspectos que contribuíam. Só vou mencionar alguns.
A guerra foi extremamente brutal. Moçambique foi uma das vítimas do regime do
apartheid e da guerra fria, mas também alguns elementos internos apoiaram a desenvolver a
guerra.
A ideia de Africa de Sul e da Renamo foi destabilizar o país, destruir os sucessos do governo,
fazer parar a economia, e criar medo, ninguém podia ter certeza de ainda viver amanha. A
estratégia consciente foi de atacar a população, queimar aldeias, escolas, hospitais. Doentes
internados, queimados na sua cama, ou cortados os genitais foram assim punidos por ficar
num hospital do governo. O recrutamento geralmente foi forçado, principalmente por raptar
pessoas das aldeias atacadas. Raptar crianças também tornou- se uma prática regular. As
estradas tornaram se um alvo particular, mulheres foram violadas e os homens e crianças
forçados para integrar e matar. Embora inicialmente houvesse uma estratégia deliberada por
detras da violência e da crueldade, no fim degenerou mais ao ponto de Moçambicanos matar
Moçambicanos. O balanço em 1992: um milhão de mortes, 5 milhões de refugiados, milhoes
de deslocados, e um pais destruído.
O Acordo geral de Paz.
Com o fim da guerra fria e do apartheid, também em Moçambique cresceu o espaço para
mudanças. As igrejas tinham um papel importante em convencer os dois lados a negociar e
parar uma guerra que não podia ser ganha por ninguém. Disseram: ‘não importe donde vem as
balas, os Moçambicanos estão a morrer. Dialogar não é legitimar o terror, é simplesmente
reconhecer o sofrimento’. As negociações em Roma começaram em 1990 e, mesmo com
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pressão de fora, ficaram nas mãos dos próprios Moçambicanos, eles não aceitaram liderança
exterior, o que é diferente das negociações em muitos outros países. Foram 4 do governo e 4
da Renamo, que durante os 2 anos de negociações nunca foram substituídos, junto com um
observados da igreja catolica Moçambicana e alguns observadores Italianos. Cada detalhe foi
discutido ate chegar a um consenso, ate o acordo ser aceitável para os dois lados. O acordo foi
extremamente detalhado, e isso varias vezes salvou o processo em momentos de tensão.
O Representante das NU, Aldo Ajello, coordenou uma grande missão de paz (mais de 8000
indivíduos). Ele foi uma pessoa criativa e flexível, que promoveu soluções práticas. Um
exemplo é a integração de ex-militares, através de 2 anos de vencimento, recebido na sua área
de origem. Assim não se criou uma nova classe de jovens marginalizados, que só tinham
experiencia em fazer guerra.
Avaliações independentes constataram que depois de 2 anos 87% ficou mais ou menos
integrado, eles estavam bem vinda na comunidade, porque tinham meios para sobreviver,
apoiavam a família, abriram uma machamba, fizeram um bebe, e conseguiram uma vida
razoavelmente organizada. Ajello aprendeu da situação da Angola, onde a desmobilização
não foi concluído, nem os ex-militares integrados na altura das eleicões de 1992, e isso deu à
Unita a possibilidade de recomeçar a guerra depois de ter perdido as eleições.
Numa entrevista 10 anos depois, Ajello deu 5 pontos que ele achava importante para o
sucesso.
1. Todos tem que estar convencidos de que não há solução militar
2. depois das negociações não deve haver vencidos
3. O acordo de paz deve ser muito detalhado. Se não é, haverá enormes problemas quando
está a ser implementado.
4. As tropas para a manutenção de paz tem de estar lá para a população. Se não, transforma-se
em tropas de ocupação.
5. A maior parte de apoio deve ir para os rebeldes e não para o governo.
E isso é o que aconteceu. Para um movimento de rebeldes é arriscado de sair do mato e
abandonar a sua posição lá. Então muito dinheiro foi dado, e não só isso, casas na cidade,
carros etc. Ajello, bem como o governo Moçambicano acharam importante que eles tinham
uma posição em que foi possível competir dentro do novo sistema política e nas eleições.
Amnistia geral foi o ponto de partida nas negociações. Ninguém questionava isso. Nem os
Moçambicanos, nem a comunidade internacional.
Uma das entrevistadas disse: ‘aceitamos tudo, incluindo amnistia para crimes de guerra. Não
queríamos olhar para o passado; não pedimos nem vingança nem a verdade. Conhecíamos a
verdade , mas exigir ouvi-la teria obstruída o processo’.
Perguntei então:
Mas pode esquecer?
Não, nos nunca podemos esquecer.
E perdoar?
As vezes ainda é dificil.
E uma outra senhora disse: mataram o meu pai, um homem inocente, e nunca ninguém nos
diz desculpa.
Reconhecer o que aconteceu, pedir desculpa foi essencial no processo de reconciliação em
Africa de Sul.
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Mas Moçambique não tinha uma Comissão da Verdade , nem tribunais para os crimes de
guerra. ‘se vamos punir, onde vamos parar’ disse uma mulher. ‘E quem sabe quem fez o que’?
A reconciliação foi fortemente promovida.
Uma mulher da Beira conta: ‘nos de repente podíamos falar livremente, as igrejas, as
organizações, todas estavam envolvidas num movimento para a paz. Existia educação cívica
em todos os lados. Era sobre aceitar o inimigo, aceitar a nova situação, conhecer o sistema
multi-partidário, as eleições que tinham que incluir todos. Uma activista da organização de
mulheres, OMM, conta: ‘nos íamos de aldeia em aldeia, a pé, quase não havia transporte ou
comida, mas queríamos divulgar a mensagem. Nos mesmo fomos para as áreas ainda sob
controlo da Renamo para falar com as mulheres lá, que nem sabiam que a guerra tinha
acabado’. O forte envolvimento da população foi um elemento importante em todo o processo
de transição e democratização. Um pastor na Beira disse: em Moçambique é dificil acontecer
o que está a acontecer em Zimbabwe. Nos incluímos a população. Este envolvimento não vai
ser perdido.
Ceremónias tradicionais por curandeiros forneceram a possibilidade de na família e na
comunidade integrar os que tinham cometido crimes de guerra. Na altura perguntei: ‘É
possível que os filhos voltam, eles que mataram aqui na aldeia?’ ‘Si, são os nossos filhos. Não
falamos em voz alto do mal, se fazemos, o mal pode voltar. Nos temos as nossas maneiras
tradicionais de limpeza.’
Mas o silêncio em público sobre o que aconteceu tinha o seu preço, ninguém ouviu as estórias
das vítimas, nada foi documentado, ninguém pediu desculpas as vítimas. Os programas de
educação cívica que foram executados deram a oportunidade a falar entre eles. Isso foi o
melhor que podia acontecer. O medo de falar em público sobre o que aconteceu apoiou
manter a paz, mas deu, e ainda dá, espaço para a história a ser re-escrita. Não é estranho ouvir
que a Renamo lutou para a democracia.
Muitos processos de paz actuais estão a lutar com o dilema: amnistia ou não, tribunais ou não,
reconhecer as crueldades numa comissão de verdade, pedir desculpas. A maneira como
Moçambique resolveu isso funcionou para manter a paz, mas as traumas ainda existem.
(O sistema democrático)
O passo a seguir tinha de ver com as eleições e o funcionamento das instituições
democráticas. O sistema multi-partidário era novo, diferente das tradições, do regime colonial
e do sistema mono-partidário. Foi um processo de aprendizagem constante.
Olhando para a situação actual podemos dizer que as instituições democráticos funcionam,
também nos municípios. Mas o sistema é complicado, e as vezes cria mais confusão do que
soluções. Algumas pessoas falaram com saudades sobre discussões com conteúdo, discutir os
problemas reais em vez de ouvir promessas de partidos que combatem um a outro, ou de
partidos que ninguém conhece. A distancia entre os eleitores e os deputados é grande, e o
sistema é caro e implica dependência constante de doadores.
Pobreza
Ha mais um problema que não está resolvido: a pobreza. E isso poderá ser a maior ameaça no
futuro para a estabilidade. Pobreza e o crescimento da diferença entre os ricos e pobres são os
maiores desafios de hoje em dia. Como um entrevistado disse: se a democracia é só para os
que tem comida na mesa, então não funciona.
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A paz ficou, e ainda existe orgulho sobre isso. Mas os jovens já não estão interessados na
história, eles querem um futuro.
Obrigada
'Porque prevaleceu a paz - Moçambicanos respondem'
Lucia van den Bergh
O livro pode ser descarregada livremente do website: www.awepa.org
A versão Portuguesa: 'Porque prevaleceu a paz-Moçambicanos respondem':
http://www.awepa.org/index.php/en/resources/doc_details/90-porque-prevaleceu-a-paz-mocambicanos-respondem.html
A versão Inglesa: 'Why peace worked- Mozambicans look back' : http://www.awepa.org/index.php/en/resources/doc_details/27why-peace-worked-mozambicans-look-back.html
Para distribuição, venda ou comentários: [email protected]
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