A heterogeneidade dos discursos Todo discurso é constitutivamente heterogêneo, podendo ou não apresentar marcas dessa heterogeneidade. Mesmo que essas não apareçam, “toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra, aquele do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade” ( Maingueneau, 1993). A heterogeneidade mostrada diz respeito a manifestações da linguagem que indiciam de forma marcada a presença de outro discurso em sua constituição. Na heterogeneidade mostrada e marcada, a alteridade aparece indiciada por determinadas marcas linguísticas. Discurso Relatado A presença de diferentes vozes nos textos fica clara quando se trata do discurso relatado, isto é, quando se insere a fala de outros enunciadores. Ao contrário do que se poderia pensar, não se trata apenas de apresentar essas outras falas (os discursos citados) para compor o texto, de inseri-las com neutralidade: o enunciador do texto avalia e interpreta essas falas. “Sabe-se que a AD dedica grande atenção aos fenômenos ligados à citação para descobrir, por exemplo, o contraste entre diferentes formas de relatar a mesma enunciação, ou ainda o distanciamento muito variável que o discurso, ao citar, introduz com relação ao discurso citado” (Maingueneau, 1993, p.85). Observe os enunciados abaixo: O presidente afirmou que não há crise no país. O presidente acredita que não há crise no país. O presidente reiterou: “Não há crise no país”. A negação 1. 2. Distinguem-se dois tipos de negação: uma chamada polêmica, e a outra, descritiva. Essa distinção é muito importante para a AD, que mantém laços privilegiados com a negação polêmica. Considerem-se os enunciados abaixo: Não há uma nuvem no céu. O Brasil não está em crise. Ao enunciar 1, o locutor descreve um estado de coisas, seu enunciado pode ser parafraseado com o auxílio de um enunciado positivo do tipo o céu está absolutamente limpo: trata-se de uma negação descritiva que serve para falar do mundo. É bem diferente o funcionamento do enunciado 2, que contesta, opõe-se a uma asserção anterior, explícita ou não, segundo a qual “O Brasil está em crise”: trata-se de um verdadeiro ato de negação, de refutação de um enunciado positivo correspondente e fala-se, neste caso, de negação polêmica. As palavras entre aspas Os lógicos distinguem a menção de um termo, que consiste em uma remissão autonímica (“Cão é um substantivo masculino”) e seu uso (“O cão é preto”). A palavra entre aspas (ou itálico) apresenta a particularidade de acumular uso e menção. No enunciado A mulher que interrompe a gravidez não é uma “doente”, a palavra doente é, ao mesmo tempo, mostrada, marcada como estranha e integrada à sequência do enunciado. O valor semântico das aspas e o interesse que representam para a AD estão ligados a seu caráter imprevisível como também à sua relação com o implícito. Ao colocar palavras entre aspas, o enunciador chama a atenção do co-enunciador para o fato de estar empregando exatamente as palavras que ele está aspeando; salientando-as, delega ao co-enunciador a tarefa de compreender o motivo pelo qual ele está assim chamando sua atenção. As aspas indicam uma espécie de lacuna, de vazio a ser preenchido interpretativamente. Metadiscurso do locutor: construção pelo locutor de níveis distintos no interior de seu próprio discurso; trabalho de ajustamento. Diz respeito aos múltiplos fenômenos que resultam das glosas que acompanham o que o locutor diz. “Do ponto de vista da AD, o metadiscurso do locutor apresenta um grande interesse, pois permite descobrir os ‘pontos sensíveis’ no modo como uma FD define sua identidade em relação à língua e ao interdiscurso” (Maingueneau, 1993, p.93). J. Authier-Revuz classifica esses comentários que o locutor faz sobre sua própria enunciação de não coincidências do dizer. O Fórum Social Mundial é uma festa, no bom sentido da palavra. (fala de um dos organizadores) Parafrasagem Entre as operações metadiscursivas, deve-se atribuir um lugar privilegiado à parafrasagem. A AD articula a parafrasagem às coerções de uma FD: trata-se de uma “tentativa para controlar em pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo interdiscurso” (Maingueneau, idem, p.95). “um crescimento sadio, isto é, um crescimento sem inflação e ancorado sobre um aparelho modernizado e fortalecido de produção”. Heterogeneidade mostrada e não marcada: formas mais complexas em que a presença do outro não é explicitada por marcas unívocas no enunciado, a heterogeneidade deve ser construída a partir de índices variados. Discurso Indireto Livre: relata alocuções fazendo ouvir duas vozes diferentes inextricavelmente misturadas, dois enunciadores (Ducrot). O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem a outro, e não é possível separar no enunciado as partes que dependem univocamente de um ou de outro. Muitas vezes saía de casa sem saber aonde ir, sentava-se no banco da praça Nossa Senhora da Paz e observava os frequentadores da igreja em frente retirandose em bandos da missa. Não faria isso, não iria se tornar um carola depois de velho. (“Anjos das marquises”, Rubem Fonseca, ed. Companhia das Letras, Contos reunidos) Ironia “um enunciado irônico faz ouvir uma voz diferente da do locutor, a voz de um enunciador que expressa um ponto de vista insustentável. O locutor assume as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam” (Maingueneau, idem, p.99). Ele é tão gentil. O locutor só é responsável pelas palavras, sendo o ponto de vista nelas manifestado atribuído a um E. “Enquanto a negação pura e simplesmente rejeita um enunciado, utilizando um operador explícito, a ironia possui a propriedade de poder rejeitar sem passar por um operador dessa natureza. A partir daí, pode-se compreender as dificuldades colocadas pela transcrição da ironia, pois não é possível recorrer à entonação ou à mímica para desvendá-la. Torna-se obrigatória, então a diversificação dos meios utilizados: caráter hiperbólico do enunciado, explicitação de uma enunciação (“diz ele ironicamente”), aspas, ponto de exclamação, reticências. Na ausência desses índices, resta confiar no contexto para nele recuperar elementos contraditórios”. (M., idem, p.99) Fim de tarde. No céu plúmbeo A lua baça Paira Muito cosmograficamente Satélite. Desmetaforizada, Desmitificada, Despojada do velho segredo de melancolia, Não é agora o golfão de cismas, O astro dos loucos e enamorados, Mas tão-somente Satélite. Ah Lua deste fim de tarde, Demissionária de atribuições românticas, Sem show para as disponibilidades sentimentais! Fatigado de mais-valia, Gosto de ti assim: Coisa em si, Satélite. (Satélite,Manuel Bandeira) Há tantos olhos nelas arroubados, No magnetismo de seu fulgor! Lua dos tristes e enamorados, Golfão de cismas fascinador. (Estrofe do poema “Plenilúnio” de Raimundo Correia) Marcas de heterogeneidade mostrada e marcada: a negação, indicada pelo prefixo des e pelo advérbio não, implica a presença de duas vozes, dois posicionamentos sobre a lua, a saber, um que a vê como uma fonte e um repositório de sentimentos, de mitos e de metáforas, e outro que a concebe em sua realidade nua indicada pela palavra satélite. É importante destacar, também, que o advérbio não (junto ao agora) instaura um pressuposto (pré-construído nos termos da AD), qual seja, o de que antes a Lua era um golfão de cismas. Há, ainda, a citação de um trecho do poema “Plenilúnio” de Raimundo Correa. “Satélite” nega o sentidos afirmados por esse poema. Por meio das negações, e da negação de um texto poético, o eu poético de “Satélite” circunscreve dois posicionamentos a respeito da poesia. Contesta uma poesia que idealiza a realidade e assume como sua uma concepção de poética como busca da essência da realidade.