REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA R454 Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística. Vol. I, n. 1 (junho 2002) - . - São Carlos, SP: UFSCar 2013. Volume XII, n.2 (jul./dez. 2013) Semestral ISSN 2178-7603 1. Linguística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral. 3. Palavra - Linguística. I. Universidade Federal de São Carlos. II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título. CDD: 415 Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548 REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA ISSN 2178-7603 REVISTA DA ABRALIN VOLUME XII NÚMERO 2 JUL/DEZ. DE 2013 REVISTA DA ABRALIN ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA CONSELHO EDITORAL Aryon Dall'Igna Rodrigues (UnB) Bruna Franchetto (UFRJ/Museu Nacional) Carlos Alberto Faraco (UFPR) Cesar Augusto Mortari (UFSC) Charlotte Marie C. Galves (UNICAMP) Daniel Vanderveken (Quebéc Trois-Rivières) Dermerval da Hora (UFPb) Didier Sheila Jean Marie Demolin (USP) Dino Preti (USP) Eduardo Roberto J. Guimarães (UNICAMP) Eleonora Cavalcante Albano (IEL-UNICAMP) Elza Gomez-Imbert (Université de Toulouse) Emilio Bonvini (CNRS-LLACAN-Paris) Eni de Lourdes P. Orlandi (IEL-UNICAMP) Esmeralda Negrão (USP) Fábio Alves (UFMG) Gessiane Picanço (UFPará) Gillian Sankoff (University of Pennsylvania) Gregory Guy (York University) Ida Lúcia Machado (UFMG) Ieda Maria Alves (USP) Ilza Maria de Oliveira Ribeiro (UFBA) Ingedore Grunfeld Villaça Koch (UNICAMP) Ingrid Finger (UFRGS) Ivone Panhoca (PUCCAMP) Kazué Saito Monteiro de Barros (UFPe) Laura Álvarez (ISPLA - Univ. de Estocolmo) Leda Bisol (PUC-RS) Leonor Scliar-Cabral (UFSC) Letícia Maria Sicuro Corrêa (PUC-RIO) REVISÃO E NORMALIZAÇÃO DE TEXTOS Rodolfo Ilari Roberto Leiser Baronas Teresa Cristina Wachowicz Lorenzo Teixeira Vitral (UFMG) Luiz Carlos Cagliari (UNESP Araraquara) Luiz Carlos Travaglia (UFU) Luiz Marcuschi (UFPE) Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ) Maralice de Souza Neves (UFMG) Márcia Cançado (UFMG) Marcus A. Rezende Maia (UFRJ/Mus. Nac) Margarida Basílio (PUC - Rio) Maria Aparecida Torres Morais (USP) Maria Bernardete Abaurre (UNICAMP) Maria Carlota do Amaral Rosa (UFRJ) Maria da Graça Krieger (UNISINOS) Maria Eugênia Lamoglia Duarte (UFRJ) Maria Helena Mira Mateus (Univ. de Lisboa) Maria Helena M. Neves (UNESP-Araraquara) Maria Izabel Magalhães (UNB) Maria Luiza Braga (UFRJ) Maria Manoliu (UC-Davis) Maria Marta Pereira Scherre (UnB) Maximiliano Guimarães (UFPR) Oswald Ducrot (EHESS - Paris) Palmira Marrafa (Univ. de Lisboa) Rosane de Andrade Berlinck (UNESP) Ruth Elisabeth V. Lopes (UNICAMP) Sérgio Moura Menuzzi (UFRGS) Teresa Cristina Wachowicz (UFPR) Tereza Cabré (Universidade de Barcelona) Thaís Cristófaro Silva (UFMG) Vanderci Aguilera (UEL) CAPA E PROJETO GRÁFICO - Lúcio Baggio FORMATAÇÃO - Patricia Mabel Kelly Ramos COMITÊ EDITORAL EDITOR CHEFE Teresa Cristina Wachowicz UFPR EDITOR ADJUNTO Roberto Leiser Baronas UFSCar EDITOR ADJUNTO E REPRESENTANTE JUNTO AO SER-UFPR Luiz Arthur Pagani - UFPR UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCAR CAMPUS SÃO CARLOS RODOVIA WASHINGTON LUÍS, KM 235 - SP 310 SÃO CARLOS –SP – BRASIL / CEP: 13.565-905 TELEFONE: +55 (16) 3351-8358 ( DEPARTAMENTO DE LETRAS) FAX: +55 (16) 3351-2081 - EMAIL: [email protected] NOTA DO EDITOR É com muita alegria e satisfação que disponibilizamos ao público leitor, sobretudo, o interessado em questões que dizem cientificamente a linguagem nos seus mais diversos sistemas significantes, mais uma edição semestral online da Revista da Associação Brasileira de Linguística – ABRALIN. Essa Edição, a 2013/02, referente ao período de julho a dezembro de 2013, está dividida em duas partes: na primeira, são dados a circular cinco artigos de pesquisadores, ligados a diferentes universidades brasileiras, que, tomando distintos objetos linguageiros de pesquisa, analisando-os e/ou teorizando-os, se inscrevem nos mais variados domínios e escolas das ciências da linguagem, praticadas em solo brasílico e, na segunda, outros cinco artigos, atinentes às falas das mesas redondas e conferências de pesquisadores na Abralin em Cena Mato Grosso. Evento realizado no Instituto de Linguagens, Mestrado em Estudos de Linguagem - MeEL, da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus de Cuiabá, no período de 10 a 13 de abril de 2012. Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que de uma maneira ou de outra e a seu modo contribuíram para a efetivação de mais essa edição. Sem esse apoio a Revista não seria publicada. Deixamos também um agradecimento muito especial ao Mestre Prof. Dr. Rodolfo Ilari da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – batalhador incansável pela linguística do/no Brasil, pelos relevantes e competentes serviços prestados a essa Revista durante o profícuo período em que esteve à frente da Editoria. Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Teresa Cristina Wachowicz (UFPR) SUMÁRIO ARTIGOS BRAZILIAN PORTUGUESE LÁ IN THE CP-DOMAIN: A CARTOGRAPHIC ANALYSIS .............................................. ............................................................................. 11 Bruna Karla Pereira - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) Jânia Martins Ramos - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) MANIFESTAÇÕES DO DEL (DÉFICIT/DISTÚRBIO ESPECÍFICO DA LINGUAGEM) NO DOMÍNIO DA SINTAXE À LUZ DE UM MODELO INTEGRADO DE COMPUTAÇÃO ON-LINE ......................................................... .. 35 Letícia Maria Sicuro Corrêa - Pontifícia Universidade Católica (PUC) -Rio/Lapal Marina R. A. Augusto- Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Lapal QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DA NEUROLINGUÍSTICA DE ORIENTAÇÃO ENUNCIATIVO-DISCURSIVA........................................................ 63 Amanda Bastos Amorim de Amorim - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) O CORPO EM CONTRADIÇÃO: O INDIGNO E O ANORMAL ..................... 97 João Carlos Cattelan - Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE) DENOMINAÇÃO DESCRITIVA: QUESTÕES DE UNIDADE E SENTIDO............................................................................................................................125 Cleber Conde – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) DOSSIÊ ABRALIN EM CENA MATO GROSSO PARA UMA ANÁLISE DE PROCESSOS TEXTUAL-INTERATIVOS ..............147 Lúcia Regiane Lopes Damasio - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) LER UM TEXTO UMA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA .................................... 189 Eduardo Guimarães - DL-IEL/Labeurb -Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) PARA A HISTÓRIA DO PORTUGUÊS PARANAENSE.......................................207 Joyce Elaine de Almeida Baronas - Universidade Estadual de Londrina (UEL) DA PANAFORIZAÇÃO À METAFORIZAÇÃO: O CASO DE UMA PEQUENA FRASE SEM EIRA NEM BEIRA TEXTUAL..............................................................219 Roberto Leiser Baronas- Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e CNPq CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DO 'EU' .........................................249 Renato Miguel Basso - Uniersidade Federal de São Carlos (UFSCar) ARTIGOS BRAZILIAN PORTUGUESE LÁ IN THE CPDOMAIN: A CARTOGRAPHIC ANALYSIS Bruna Karla PEREIRA Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) Jânia Martins RAMOS Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) RESUMO Neste artigo, desenvolvemos um estudo de ‘lá’ no PB em questões retóricas, imperativas, diretivas, assertivas enfáticas e predicativas. Propomos que, nessas estruturas, ‘lá’ ocuparia a posição de Spec em FocusP e ForceP na cartografia do CP. Esta proposta se fundamenta na teoria dos especificadores funcionais (CINQUE, 1999) e no projeto cartográfico (RIZZI, 1997; CINQUE & RIZZI, 2008). O primeiro propõe que AdvPs são inseridos por merge na posição de especificador de categorias funcionais. O segundo, por sua vez, identifica um domínio à esquerda do IP, composto por categorias que estão na interface do discurso e da sintaxe. ABSTRACT This paper aims at investigating Brazilian Portuguese ‘lá’ (‘there’) in structures with rhetorical question, imperative, directive, emphatic assertion, and predicative. We argue that, in these constructions, ‘lá’ is merged in the specifier of FocusP and ForceP in the CPcartography. This proposal is based both in the F-Spec Theory (CINQUE, 1999) and in the cartographic project (RIZZI, 1997; CINQUE & RIZZI, 2008). The former claims that AdvPs are merged in the specifier of functional categories. The latter identifies a domain to the left of the IP which is made up by a range of functional categories facing both discourse and syntax. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 11-33, jul./dez. 2013 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis PALAVRAS-CHAVE Especificador funcional. ‘Lá’ no português brasileiro. Periferia esquerda. KEYWORDS Brazilian Portuguese ‘lá’. Functional Specifier. Left Periphery. Introduction Several researchers have observed that the adverb lá, both in BP (MARTELOTTA & REGO, 1996) and in EP (MARTINS, 2010), has shown non deictic properties which allow it to perform an “emphatic marker” function in many different syntactic structures. For a matter of clarification, we may divide these researches in at least two groups. Roughly, the first one is concerned with the semantic and discursive values conveyed by lá, without developing a syntactic analysis. The second one provides these realizations of lá with a syntactic analysis, but does not offer means of examining the restrictions and identity of each realization of lá in BP. For instance, MARTINS (2010) claims that Spec,TP is the position where lá is merged in all the structures that she took into account in EP. Though this proposal is meant to be comprehensive, it seems to lack principles for explaining the singular syntactic and semantic features of each structure where lá occurs. Actually, this analysis puts together, in a sole category (Spec,TP), a bunch of different interface features, which seems to be problematic. Therefore, a unified analysis is needed, but it also has to fit with the peculiar properties of lá in its many realizations. In order to meet these requirements, which are not mutually exclusive, the ensuing analysis will pursue the following assumptions. Firstly, AdvPs are functional 12 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos specifiers (CINQUE, 1999). As such, they are expected to have a rigid order determined by the Universal Grammar and to check head features. Secondly, the IP (RIZZI, 1997) projects a domain dedicated to elements of interface, that is, the ones which have syntactic and discourse import. In this way, the left periphery or CP bears a space rich in functional categories, such as focus, force, finiteness, and so forth. Thirdly, syntax is governed by elementary mechanisms, such as merge and move (CHOMSKY, 1995), that can generate highly complex hierarchical blocks. Minimalism focuses on the elementary mechanisms which are involved in syntactic computations […] and cartography focuses on the fine details of the generated structures, two research topics which can be pursued in parallel in a fully consistent manner (CINQUE; RIZZI, 2008: 49). Based in these assumptions, we hypothesize that lá checks functional features in the IP periphery1. Therefore, this paper examines lá in rhetorical questions (1.1), imperatives (1.2), directives (2.1), emphatic assertions (2.2), and predicatives (2.3), arguing that, in these structures, lá would be merged in the specifier position of FocusP and ForceP. 1 Lá in Spec,FocusP This section investigates lá in rhetorical questions (1.1) and in imperatives (1.2). This proposal also applies to NP and VP peripheries covering other realizations of BP lá (PEREIRA, 2011). 1 13 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis 1.1 Rhetorical questions To study lá in these structures, we first give a brief explanation on the properties of rhetorical questions. Then, we argue for an analysis of lá as Spec,FocusP in the IP-periphery. Finally, we discuss MARTINS’s (2010) proposal for EP. In the meantime, we also intend to clarify the difference between lá as a rhetorical question marker, on the one hand, and as a negative marker, on the other hand. Let’s observe (1a). (1) a. Isso lá é atitude de um homem? This lá is attitude of a man ‘Is this a man’s behavior?’ b. This is not a man’s behavior. In (1a), lá belongs to a rhetorical question which, by definition, (i) “does not expect to elicit an answer” (HAN, 1998: 1) and (ii) has the capacity of inverting the polarity of a sentence. That is why (1b), a negative sentence, may be a paraphrase of (1a). In rhetorical questions, lá can be either pre-verbal (1c) or post-verbal (1d) and can be omitted, without changing the propositional content of a sentence, as follows: (1) c. Isso (lá) é atitude de um homem? d. Isso é (lá) atitude de um homem? This is lá attitude of a man ‘Is this a man’s behavior?’ Due to the fact that lá can be pre-verbal, it is situated higher than the position where the verb is located, that is, higher than IP, probably in the left periphery because lá conveys information with emphatic import. As a consequence, post-verbal position of lá would be explained by 14 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos V-raising to a position higher than the one where lá is located. For these reasons, we presume that in (1a) lá is merged in the CPdomain, specifically in Spec,FocusP. This position seems to be suitable because lá is usually pronounced with an emphatic intonation, is not compatible with focalized items (2), and allows topic recursion higher (3b, d) and lower (3c) than its position. (2) a. TUDO, o João comprou. Não faltou nada. Everything, the João bought. Not lacked nothing ‘João bought EVERYTHING. Nothing is missing’. b. *TUDO, o João lá comprou? EVERYTHING, the João lá bought (3) A: O João comprou um carro recentemente. ‘João has bought a car recently’. B: a. b. c. d. Você quis dizer: O PAI DO JOÃO comprou um carro recentemente. ‘You mean: João’s father has bought a car recently’. O João lá comprou um carro? Foi o pai dele. The João lá bought a car? Was the father of-him ‘Has João bought a car? It was his father who did it’. Lá um carro o João comprou? Aquilo é uma lata velha. Lá a car the João bought? That is an iron old. ‘Has João bought a car? That looks like scrap iron’. O João comprou lá um carro? Aquilo é uma lata velha. The João bought lá a car? That is an iron old. ‘Has João bought a car? That looks like scrap iron’. The underlined items, in contrast to what happens to o pai do João in (3Ba), carry given information, which means that they are available 15 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis in the discourse. That is why they can be interpreted as topics. We claim that o João (3b), um carro (3c), o João (3d) and comprou2 (3d) move to topic positions either higher or lower than the one where lá is situated, according to the derivations shown below. FIGURE 1: Lá in Spec,FocusP of rhetorical questions (3) b. O João lá comprou um carro? Foi o pai dele. 2 (3) d. O João comprou lá um carro? Aquilo é uma lata velha. V to C movement may raise some questions that we leave for future stages of this investigation. 16 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos According to MARTINS (2010), in European Portuguese (EP), lá is post-verbal, as given in the examples (4a, b). (4) a. “Eu doente? Ora essa! Eu sou lá criatura que adoeça!” Me sick? Now that! I am lá creature that gets-sick! ‘Me sick? What a silly idea! I’m not someone to fall sick’ (MARTINS, 2010: 12). b. “Há lá coisa melhor que estar na praia?” ‘Is lá thing better than be-INFIN in-the beach? ‘Could anything be better than staying in the beach?’ (MARTINS, 2010: 16). Surfacing in this position, lá is lower than the verb: while the latter is situated in ΣP, the former is in TP. Spec,TP in European Portuguese is a dedicated Utterance Time position […] non-argumental deictic locatives may give content to Spec,TP by external merge, in which case they act as emphatic markers devoid of locative meaning (MARTINS, 2010: 18). Nevertheless, in BP, lá in rhetorical questions can be pre-verbal, as seen in the example (1a), repeated below, which means that it is in fact higher than the verb. (1) a. Isso lá é atitude de um homem? This lá is attitude of a man ‘Is this a man’s behavior?’ Besides, according to the author, lá in (4a) is different from lá in (4b). The former is a negation marker while the latter is a rhetorical question 17 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis marker. This difference, however, does not apply to BP. In BP, (4a) is grammatical only if it is pronounced with an intonation of questions. It means that (4a) would be in fact a rhetorical question just like (4b). We still need to know, however, why both (1a) and (4a, b) are understood as negation in BP. It follows probably from a peculiar property of rhetorical questions which is the reversal polarity, that is, “a rhetorical positive question has the illocutionary force of a negative assertion” (HAN, 1998: 1) and other way round. As a matter of fact, if lá is left out, the sentence will still keep its negative interpretation. Therefore, a straightforward conclusion from this fact is that lá, in rhetorical questions, is not a negation marker. Negation derives purely from illocutionary force. Nonetheless, it turns out that, in sentences like (5a) and (5b) below, lá can be analyzed as a negation marker. In this case, there is no question intonation, lá is post-verbal3 only and can not be left out otherwise the negative interpretation is lost. In addition, lá, as a negation marker in BP, has some restrictions to be met, for instance, it has to appear with the verbs saber (‘to know’), as in (5a), and importar (‘to mind’), as in (5b). When it occurs with saber, it is also restricted either to 1st singular person (5a) or to 3rd singular plus arbitrary -se, as in (5c). (5) a. Sei lá! Know lá ‘I don’t know!’ b. Importa-me lá! Mind me lá! I don’t care! c. Sabe-se lá se ela casou. Know-se lá if she married It is not known if she has got married. 3 Taking into account its post-verbal position and other properties, Pereira (2011) suggests that lá as a negation marker, unlike lá in rhetorical questions, is rather in the low periphery, which means that the verb does not move all the way up to the CP-domain. 18 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos To sum up, we have pointed out that lá is not a negation marker in (1a), but only in specific contexts where the sentence does not have interrogative intonation and shows lexical and grammatical restrictions. In addition, at least in BP rhetorical questions, lá can be preverbal, which means that it is probably higher than Spec,IP. 1.2 Imperatives This subsection is concerned with lá in imperatives (6). (6) a. Olha lá, hein? Pare de acusar os outros. Look lá, huh? Stop of accuse-INF the others ‘Be aware of it, huh? Stop accusing people.’ In (6), lá can only be post-verbal and, as expected for imperatives, it is incompatible with conditionals (6b), embedded clauses (6c) and nonfinite clauses (6d). (6) b. *Se você olha lá, as pessoas não vão ficar bravas. If you look lá, the people not go-FUT stay-INF angry c. *Eu disse que olha lá. I said that look lá d. *Olhar lá é a chave para as pessoas não ficarem bravas. To-look lá is the key to the people not stay angry According to MARTINS (2010: 13), lá expresses “vehement requests, by which the speaker intends to grant a positive response from the interlocutor”, as in (7). (7) A: Dá-me um beijo. ‘Give me a Kiss!’ 19 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis B: A: Não. ‘No.’ Dá lá. ‘Please!’ (MARTINS, 2010, p. 13-14). Contrastively, in BP imperatives4, lá, besides indicating a kind request, as given in (8a), may also be used to indicate a threat, as given in (6a). (8) a. “Avisa lá que eu vou chegar mais tarde” Tell lá that I will arrive more late ‘Tell them please that I will arrive later’. According to MARTINS (2010), lá is situated in Spec,TP due to its post-verbal position. In our view, however, lá belongs to the IPperiphery, being merged probably in Spec,FocusP. This hypothesis takes into account that: firstly, lá does not seem to be compatible with focalized items (8b); secondly, lá is post-verbal (8c), which follows from the fact that V raises to Force in imperatives (PLATZACK & ROSENGREN, 1998); thirdly, lá is not only post-verbal but also adjacent to the verb (8d). That is why lá may be merged immediately below ForceP. (8) b. *Avisa VOCÊ lá. Tell YOU lá c. *Lá avisa! Lá tell d. *Avisa com atenção lá. Tell with attention lá Therefore, even though lá is merged in Spec, FocusP and act as a kind of ‘emphatic’ marker both in rhetorical questions and in imperatives, it belongs to two different structures. In rhetorical questions, there is no 4 Other examples of lá in imperatives are found in Pereira (2011). 20 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos V-raising to Force, contrary to what happens in imperatives. Furthermore, Force, in rhetorical questions, bears [+Interrogative] features, while in imperatives, Force is [+Imperative]. Considering these facts, a derivation for (6a) would be as follows: FIGURE 2: Lá in Spec,FocusP of imperatives (6) Olha lá, hein? 2 Lá in Spec,ForceP This section deals with sentences having the following types of illocutionary force: directive (2.1), assertive (2.2) and conditional (2.3). The hypothesis we have for them is that lá is merged in Spec,ForceP. 21 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis 2.1 Directives In order to analyze directive sentences, this subsection comprises a description of expressions such as French voilà/ci and English t/here you go/are, comparing them with BP lá vai (9). (9) Lá vai! Lá goes! ‘There you go!’ Comparing voilà and lá vai, we will be interested in what they are similar and what they are different in relation to the following properties: (i) syntactic function of the post-verbal NP; (ii) possibility to appear in embedded clauses; (iii) replacement of the NP for an embedded clause and (iv) replacement of lá by aí. Firstly, starting from the syntactic function of the post-verbal NP, in French (10a), the NP is an internal argument of voir (‘to see’), while in BP, the NP is an external argument of ir (‘to go’) (10b). (10) a. Voilà son sac (internal argument). ‘There is his bag’. b. Lá vai a bolsa (external argument). ‘There is the bag’. Secondly, while voilà may appear in embedded clauses, as in relatives (11a), lá vai seems to be restricted to main clauses (11b). (11) a. “L’homme que voilà est mon amant” (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 7). ‘The man (who is) there is my lover’ (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 7). b. *Esta é a bolsa que lá vai. This is the bag that lá goes 22 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos Thirdly, the realization of an embedded clause in the position of the NP is allowed with voilà (12a), but not with lá vai (12b). (12) a. Voilà que Marie part. (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 8). ‘There is Marie leaving’ (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 8). b. *Lá vai que a Maria desaparece. Lá goes that the Maria disappears Having pointed out the features which distinguish voilà and lá vai, we will show now the features which make them alike. Firstly, locative là may be replaced with ci (13a) in voilà and with aí (13b) in lá vai without changing the propositional content of the sentence. According to Bergen & Plauché (2001: 2), “voilà and voici were historically used to differentiate between proximal and distal relations, as ci and là still do […]. At present, voilà and voici are mostly interchangeable without semantic effect”. (13) a. Voilà/ci son sac. (Bergen; Plauché, 2001: 1). ‘There/Here is his bag’. b. Lá/aí vai a chave que você pediu. There/Here goes the key that you asked ‘There/Here is the key that you asked me’. Another common feature between voilà and lá vai is the realization of a speech act which results in an action from the listener. Following Bergen & Plauché (2001: 2), “Voilà and voici derive historically from imperative forms of the verb ‘to see’”, i.e., there is a request saying “look at that thing there” (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 6). Similarly, directive lá vai is usually uttered in a context where the speaker gives or sends something to his interlocutor, as in (14). (14) Scene: a girl replies to an e-mail message of her brother. a. Lá vai: Rua da Bahia, n. 16, CEP .... There goes: Street of Bahia, number 16, Postal Code … ‘T/here is my address: 16, Bahia Street, Postal Code …’ 23 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis Scene: a woman throws a key to her husband. b. Lá vai! There goes ‘T/here is the key!’ To sum up, on the one hand, (i) the syntactic function of the postverbal NP, (ii) the insertion into an embedded clause; and (iii) the replacement of the NP for an embedded clause establish a contrast between French voilà and BP lá vai. On the other hand, (iv) locative interchangeability makes them look alike. The comparison between BP lá vai and French voilà is aimed at showing that like voilà, lá vai performs a presentative function. So far, we investigated the similarities and differences between French voilà and BP lá vai. From now on, we will try to make a parallel between BP lá vai and English t/here you go/are. These expressions are “used when you are giving something to someone, or showing something to them”5, as in (15) and (16). (15) a. “There you are. I’ll just wrap it up for you”6. b. “Here you are. A box full of tools”7. (16) a. b. A cashier gives a customer the shopping already packed, saying: “T/here you go!”. “‘Here you go’. Callum handed her a glass of orange juice”8. Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011. Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/there_2>. Accessed in: 15th March, 2011. 7 Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011. 8 Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011. 5 6 24 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos We may observe that, in each of the examples above, lá vai may be replaced with a verb in the imperative form, such as tome (‘take’), receba (‘receive’) or pegue (‘hold’). Therefore, lá vai, just like voilà, conveys a directive speech act, because it elicits a reaction from the speaker. For example, in (14b), the husband is expected to be prepared to hold the key which will be thrown in his direction. This is the most striking similarity between there you go and lá vai: both has what we may call directive illocutionary force. In the examples above, we may also notice that there, as in (15a) and (16a), and here, as in (15b) and (16b), are sometimes interchangeable like là and ci in voilà. All of this means that, far beyond a locative import, the comparison with voilà, on the one hand, allows us to identify a presentative function in lá vai. On the other hand, the comparison with there you go allows us to identify a directive illocucionary force in the Brazilian Portuguese expression. Therefore, because there is a relevant matter of illocutionary force in the expression lá vai, and because lá is pre-verbal, we hypothesize that this adverb is merged in Spec,ForceP, in order to check [+directive] feature in Force, according to the following derivation. FIGURE 3: Directive lá in Spec,ForceP (9) Lá vai! 25 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis 2.2 Emphatic assertions In this subsection, we will examine the properties of lá in emphatic assertions (17B). (17) A: _A vida não tem sentido sem trabalho e fé. ‘Life is not worthy without work and faith’. B: _Lá isso é verdade. There this is true ‘This is definitely true’. Firstly, the fact that lá is fully compatible with aqui (‘here’), as showed in (18a), supports the idea that it is not deictic locative. Secondly, lá is rigidly pre-sentential (18b), which results in its high position in the syntactic hierarchy. Thirdly, lá is restricted to root clauses, which might be determined by the illocutionary force of emphatic assertions. As such, tests seem to confirm that lá is prevented from occurring in conditional (18c), embedded (18d) and non-finite (18e) clauses. Fourthly, lá may co-occur with positive polarity items (18f), which indicates that it does not belong to PolP. In addition, lá is not allowed to follow these items (18g), which confirms that this adverb is high, specifically, higher than PolP and, hence, situated in the CP-domain. Fifthly, lá may occur with topicalized (ficamos) and focalized (nós) items. In this case, lá precedes them (18h). (18) a. Lá isso é bem verdade aqui na região. Lá this is well true here in-the region ‘This is definitely true here in this area’. b. ≠Isso lá é bem verdade. This lá is well true c. *Se lá isso é verdade, ... If lá this is true, … 26 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos d. e. f. g. h. *Eu disse que lá isso é verdade. I said that lá this is true. *Lá isso ser verdade é a condição para o acordo. Lá this to-be true is the condition to the agreement Lá isso sim é verdade. Lá this yes is true. ‘Yes, this is definitely true’. ≠Isso sim lá (em São Paulo) é verdade. This yes there (in São Paulo) is true. Yes, this is true there (in São Paulo). Lá ficamos NÓS sem almoço. Lá stayed we without lunch ‘We finished by not having lunch’. In sum, lá precedes the whole sentence, positive polarity items, topic and focus and is restricted to root clauses. Therefore, there are at least five reasons to support the analysis of lá in Spec,ForceP. We claim that lá, in emphatic assertions, is directly merged in Spec,ForceP in order to check [+Declarative] features, according to the derivation below. FIGURE 4: Lá in Spec,ForceP of emphatic assertions (17) B: _ Lá isso é verdade. 27 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis 2.3 Predicatives The data in 19 (a - d) show that lá may appear in a predicative structure which is made up by different heads. (19) a. Seja lá qualquer pessoa que for, comporte-se. Be-PRES.SUBJ. lá any person that be-FUT.SUBJ., behaveyourself ‘No matter who s/he is, behave yourself ’. b. Seja lá que pessoa/quem/qual livro for, aceite. Be-PRES.SUBJ. lá any person/who/any book be-FUT.SUBJ, accept-IMPER. ‘No matter who s/he is, accept her/him’. ‘No matter which book it is, accept it’. c. Seja lá como/onde/por que razão/de que direção for, prossiga. Be-PRES.SUBJ. lá how/where/for any reason/from any direction be-FUT.SUBJ, go-IMPER. ‘Never mind how/why/where/which direction they will travel, just go’. d. Seja lá bonito como for, não compre. Be-PRES.SUBJ. lá beautiful how be-FUT.SUBJ, not buy ‘No matter how beautiful it is, don’t buy it’. d’. Seja lá quão bonito for, não compre. Be-PRES.SUBJ. lá how beautiful be-FUT.SUBJ, not buy ‘No matter how beautiful it is, don’t buy it’. The predicative structures in (19) belong to a complex wh-item made up by X + be-SUBJUNCTIVE such that X may be a DP, PP, NP, AP, QP, AdvP, and so forth. An evidence for claiming that this phrase is a functional wh-item comes from the fact that quem for, o que for, por que for, como for, onde for and bonito como for may be translated into English by wh-items, such as whoever, whatever/whichever, why, however, wherever and how 28 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos beautiful. Moreover, even in BP, (19d) may be paraphrased by (19d’) with a wh-item (quão bonito), though in a very literary style. Additionally, the predicative clauses in (19) can be compared with a subordinate clause like (20a). (20) a. Diga quemi ele é ti. Say-IMPER. who he is Tell me who he is. b. *Diga ele é quem. Say-IMPER he is who c. *Seja lá for quem, aceite. Be-PRES.SUBJ. lá be-FUT.SUBJ who, accept-IMPER. In (20a), “quem ele é” is a subordinate clause. It has the feature [+interrogative] in Forceº and requires wh-raising (20b). In (19), although there is also a requirement for wh-raising (20c), Force is [+conditional]. In order to illustrate this assumption, we may take a look in the example (19b). In this case, the root clause seja and the embedded one lá quem for together may be paraphrased by conditional clauses with se (‘if ’) (21), a conjunction which is usually described in ForceP. Of course, lá quem for does not have se, but it also bears conditional force because seja and for are in the subjunctive, which is a Mood dedicated to hypothetical situations. (21) Se for a Maria/o João/uma empregada/um palhaço, cumprimente. ‘If Mary/John/a servant/a clown appears, greet her/him!’ In sum, we suggest that lá is merged in Spec,ForceP, higher than wh-items. The latter raises from IP/VP to Spec,FocusP. Therefore, in these structures, wh-items, constituted by a diverse range of categories such as APs, AdvPs, PPs, and so forth, are moved to Spec,FocusP. Also, regarding lá, instead of being in the Spec of each one of these projections, it is in fact the Spec of a sole category, as follows: 29 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis FIGURE 5: Lá in Spec,ForceP [+conditional] (19) b. Seja lá que pessoa/qual livro for, aceite. 30 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos Final remarks In this paper, we worked on a formal analysis of BP sentences with lá. Following the cartographic approach, this research made it possible to recognize and to identify functional projections in the left periphery. Accordingly, the properties of lá so far considered as an “emphatic” marker were “syntacticized” (CINQUE; RIZZI, 2008: 52) in a way that this adverb was classified as specifier of FocusP and ForceP. In Spec,FocusP, lá belongs to rhetorical questions and imperatives. In this case, lá is usually high pitch accented and is prevented from occurring with focalized items, which indicates a possible dispute for the same position. However, these structures are clearly different. In rhetorical questions, Forceº is [+interrogative] and there is no V-raising to Forceº. In imperatives, V raises to Forceº which is [+imperative]. Moreover, in contrast to what is observed in EP, in BP there is a striking distinction between lá as a rhetorical question marker and lá as a negation marker. The latter can be neither pre-verbal nor omitted, besides being restricted in many other ways. In Spec,ForceP, lá belongs to directives, emphatic assertions and predicatives. In directives, lá vai looks like voilà and there you go, in that while lá may be replaced by aí, lá vai may be replaced by a verb in the imperative. In emphatic assertions, lá precedes focus, topic and positive polarity items. That is why it is situated in a high position in the hierarchical structure. In predicatives, we compared the complex structure lá X for with English wh-items. From this comparison, we concluded that, even though X may be categorically diverse (D, A, Adv, N, Q, etc.), it moves to Spec,FocusP. As lá precedes these items, we hypothesized that lá is merged in Spec,ForceP just above them and that Force would be [+conditional] for two reasons mainly: on the one hand, seja lá X for is paraphrased by a subordinate clause with se (‘if ’); on the other hand, seja and for in the subjunctive, like conditionals, represent irrealis Mood. 31 Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis In sum, this research has shown that it is possible to provide different realizations of lá with a relatively unified analysis, as this adverb seems to match properties of left periphery projections. References BERGEN, Benjamin; PLAUCHÉ, Madelaine. Voilà voilà: Extensions of deictic constructions in French. In: Cienki, Alan; Luka, Barbara; Smith, Michael (Eds.). 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Oxford University Press, 2010. (Forthcoming). 32 Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos PEREIRA, Bruna. A sintaxe cartográfica de lá no português brasileiro: um estudo da periferia esquerda. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais. 2011. PhD Thesis. PLATZACK, Christer; ROSENGREN, Inger. On the subject of imperatives: a minimalist account of the imperative clause. The Journal of Comparative Germanic Linguistics, Netherlands, 1998, v. 1, n. 2, p. 177 - 224. RIZZI, Luigi. The fine structure of the left periphery. In: HAEGEMAN, Liliane (Ed.). Elements of grammar: handbook of gererative syntax. Dordrecht, Boston, London: Kluwer Academic Publishers, 1997, p. 281 - 337. 33 MANIFESTAÇÕES DO DEL (DÉFICIT/DISTÚRBIO ESPECÍFICO DA LINGUAGEM) NO DOMÍNIO DA SINTAXE À LUZ DE UM MODELO INTEGRADO DE COMPUTAÇÃO ON-LINE 1 Letícia Maria Sicuro CORRÊA Pontifícia Universidade Catórica (PUC) Rio/LAPAL Marina R. A. AUGUSTO Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)/LAPAL RESUMO Este artigo focaliza as manifestações do DEL (Déficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no domínio da sintaxe à luz de um modelo integrado de computação on-line (Autor 2007). A computação de estruturas de alto custo, como interrogativas, relativas e passivas, é caracterizada do ponto de vista da compreensão. Possíveis fontes de dificuldade no processamento dessas estruturas em casos de DEL são apresentadas. Identificam-se as “pistas” de interface que promovem a implementação dos procedimentos de análise e considera-se seu possível papel na remediação das dificuldades na compreensão dessas estruturas. ABSTRACT This paper focuses on syntactic SLI (Specific Language Impairment) from the point of view of an integrated model of on-line computation (Autor 2007). The computation of high costly structures, such as interrogative, relative and passive sentences, is characterized in the context of comprehension. Possible explanations for processing difficulties in SLI children are presented. Interface “cues” triggering parsing procedures are singled out and their possible role in remediation procedures is considered. 1 A pesquisa a que este trabalho remete vem sendo conduzida no âmbito dos projetos CNPq (308874/2011) e FAPERJ (CNE) E-26/103.046/2011 da primeira autora, que contam com a colaboração da segunda autora. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 35-62, jul./dez. 2013 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line PALAVRAS-CHAVE Computação sintática. Custo de processamento. DEL (Déficit/Distúrbio Específico da Linguagem). Movimento sintático. KEYWORDS Processing cost. SLI (Specific Language Impairment). Syntactic computation. Syntactic movement. Introdução Sabe-se que a aquisição da linguagem é um processo natural, ou seja, que ocorre de forma espontânea e sem esforço, desde que não haja impedimentos de ordem neurológica ou isolamento social que o impeça, resistindo assim a várias condições ambientais adversas (Bishop & Mogford, 1988). No entanto, um percentual não irrisório de crianças em idade pré-escolar (cerca de 7%) tem sido identificado com um comprometimento linguístico sugestivo do DEL2 (Tomblin et al, 1997; Leonard, 1998). Essas crianças não apresentam comprometimentos neurológicos evidentes, déficit auditivo, como o decorrente de otite de repetição ou surdez congênita, ao mesmo tempo em que sua cognição não verbal encontra-se na faixa estabelecida como de normalidade. Não há, portanto etiologia conhecida para as manifestações de comprometimento linguístico, tendo-se, dessa forma, um diagnóstico de exclusão. Há, não obstante, evidências que apontam para determinantes 2 A sigla DEL entendida como Déficit ou Distúrbio Específico da Linguagem é usada como equivalente a SLI (Specific Language Impairment), termo introduzido por Fey & Leonard (1983), e que, na literatura psicolinguística em geral passou a substituir as designações afasia ou disfasia congênita ou de desenvolvimento, de modo a evitar conotações de ordem neurológica proveniente do efeito de lesões cerebrais adquiridas (Leonard, 1998). Em português, o termo Déficit Específico da Linguagem vem sendo utilizado pela Associação Brasileira de Pediatria para caracterizar um conjunto de manifestações que evidenciam comprometimentos linguísticos de diferentes graus. O CID-10 apresenta Transtornos Específicos da Fala e da Linguagem (F80), os quais incluem manifestações compartilhadas com o que é designado como DEL. No âmbito dos estudos fonoaudiológicos, o termo distúrbio é preferido. 36 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto genéticos nas manifestações do DEL (The SLI Consortium, 2002; Bishop, 2006), o que pode ser indicativo de um comprometimento nas bases biológicas do desenvolvimento linguístico. O diagnóstico de exclusão é o que define a especificidade do déficit de linguagem, independentemente da natureza específica ou não dos recursos e processos que venham a ser identificados como pertinentes à implementação do uso da língua, em nível cerebral (Bishop, 2006; Ullman & Pierpont, 2005). Um déficit específico do domínio da língua, mantendo-se outros domínios da cognição preservados, é compatível com pressupostos da teoria linguística gerativista (Chomsky, 1965; 1986; 1995), e pode explicar o crescente interesse de linguistas e psicolinguistas de formação gerativista no DEL (Clashen, 1989; Hamann, 2000; Marinis & van der Lely, 2007; Friedmann & Novogrodsky, 2004; Tuller et al., 2011; Jakubowicz et al. 1998; Jakubowicz, 2003). À luz desse arcabouço teórico, o DEL vem sendo investigado no que concerne, particularmente, à possibilidade de haver déficits seletivos e, mais recentemente, uma tipologia foi proposta em que se consideram os vários níveis de análise da língua como possíveis loci dessa síndrome: DEL-sintático, DEL-lexical, DEL-fonológico e DEL-pragmático, cujas manifestações podem ser concomitantes ou não (Friedmann & Novogrodsky, 2008).3 O presente artigo se detém no que seriam manifestações características do DEL no domínio da sintaxe, focalizando especificamente, dificuldades na compreensão e na produção das chamadas estruturas de alto custo computacional: passivas, interrogativas QU e QU+N, e relativas (em particular, as relativas e interrogativas de objeto). O objetivo deste artigo é caracterizar a computação sintática As evidências empíricas que sustentam a proposta de déficits seletivos por domínio da língua são ainda limitadas. Independentemente de haver um número expressivo de crianças cujo déficit se restrinja a um dado subdomínio da língua, as manifestações do DEL restritas ao domínio da sintaxe parecem ser as mais resistentes, permanecendo, na adolescência, quando outras manifestações podem ter sido superadas (Levy & Friedmann, 2009; Befi-Lopes & Rodrigues, 2005). 3 37 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line de estruturas tidas como de alto custo computacional, as quais são particularmente afetadas em casos de DEL. Explicita-se, dessa forma, o modo como a computação sintática dessas estruturas pode ocorrer em tempo real, tomando-se como referência uma derivação sintática minimalista. Remete-se à proposta apresentada em Autor(2006; 2007), qual seja, caracterizar um modelo de computação on-line em que se demonstre a possibilidade de articulação entre uma teoria linguística nos moldes do minimalismo e a caracterização de modelos de processamento. No presente contexto, essa caracterização possibilita que se identifiquem as “pistas” de interface que promovem a implementação imediata (automática) dos procedimentos de análise dessas estruturas, os quais, conduzidos de forma eficiente, viabilizam a compreensão. Partindo-se do pressuposto de que crianças com DEL têm dificuldade no reconhecimento dessas pistas, ou na condução eficiente dos procedimentos que estas possam desencadear, argumenta-se que salientar-se o papel dessa informação de interface, em procedimentos de intervenção, pode contribuir para o desenvolvimento de estratégias de análise, por parte das crianças, que contribuam para a remediação das dificuldades na compreensão de estruturas de alto custo. Este artigo está organizado da seguinte forma: na seção 1, apresentase uma concepção de computação on-line que tem como referência uma derivação linguística minimalista, adaptada de forma a inserir-se nos processos de produção e de compreensão de enunciados linguísticos. Na seção 2, identificam-se possíveis fontes de manifestações do DEL, levando-se em conta o modelo de computação on-line acima referido e uma teoria procedimental de aquisição da linguagem (Autor 2009). A seção 3 focaliza especificamente a computação em tempo real de estruturas de alto custo, quais sejam, passivas, interrogativas QU e QU+N de objeto e relativas de objeto, na compreensão. Ressalta-se a importância da atenção às “pistas” provenientes das interfaces da língua com os sistemas de desempenho no desenvolvimento de estratégias que possam compensar dificuldades no processamento sintático. A última 38 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto seção apresenta as considerações finais e os direcionamentos da pesquisa a partir das presentes conclusões. 1 Computação on-line na produção e compreensão de enunciados linguísticos Computação on-line diz respeito ao processamento sintático conduzido na produção e na compreensão de enunciados linguísticos. Partindo-se de um esquema básico de produção de sentenças (ver Fig. 1), a computação sintática na produção da linguagem corresponde, grosso modo, ao que é tradicionalmente denominado codificação gramatical em modelos psicolinguísticos, o que inclui a recuperação de elementos do léxico a partir de uma “mensagem”, ou representação de natureza semântica, e o posicionamento destes em estruturas sintáticas que servem de base para a codificação morfofonológica que antecede o planejamento articulatório (Levelt, 1989). FIGURA 1: Esquema básico de produção de sentenças 39 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line No caso da compreensão, pode-se conceber uma inversão do esquema acima, como na Fig. 2. Nesse caso, a partir do reconhecimento lexical dá-se início ao posicionamento dos elementos reconhecidos em sequência em uma estrutura hierárquica (parsing), dando origem a uma representação sintática que admite uma interpretação semântica compartilhada pelos falantes da língua, a qual é integrada às bases de conhecimento do ouvinte. FIGURA 2: Esquema básico de compreensão de sentenças A concepção de computação on-line aqui assumida pressupõe que toda a informação necessária para o parsing e a interpretação semântica de um enunciado linguístico se faz visível nas interfaces da língua com os sistemas que atuam no processamento linguístico. Esse conceito de interface advém de uma concepção minimalista de língua, segundo a qual uma derivação sintática resulta em dois níveis de representação – Forma Fonética (PF – do inglês Phonetic Form), que faz interface com os sistemas perceptuais-motores, e Forma Lógica (LF, do inglês Logical Form), que 40 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto faz interface com os chamados sistemas de pensamento, ou sistemas conceptuais-intencionais. A informação codificada na PF, do ponto de vista de um modelo de produção da fala, corresponde ao resultado de um planejamento articulatório a ser executado na fala. Este, por sua vez, toma por base o resultado da computação sintática conduzida em tempo real, no qual elementos do léxico se apresentam linearmente em correspondência com sua posição hierárquica. A informação codificada em LF corresponderia, grosso modo, à representação proposicional da mensagem na qual se inclui informação que possibilita o estabelecimento da referência a partir do mapeamento de DPs e TPs a entidades e eventos. Do ponto de vista da compreensão, a informação em PF seria acessível ao processamento do sinal acústico da fala, enquanto a informação em LF corresponderia, em um modelo de compreensão, à interpretação semântica decorrente do parsing. O reconhecimento lexical a partir do processamento do sinal acústico da fala possibilita o acesso ao léxico mental, a partir do qual informação relevante para o processamento sintático e interpretação semântica é recuperada. A informação a ser usada pelo parser (processador sintático) é codificada no lema, em modelos psicolinguísticos (Levelt, 1989), o que corresponde, grosso modo, ao que a teoria linguística caracteriza como traços formais de elementos do léxico.4 Assim sendo, pode-se descrever a computação sintática conduzida em tempo real na produção de enunciados como decorrente da recuperação de elementos do léxico mental e da ativação de seus traços formais. Do ponto de vista da teoria linguística, um sistema computacional universal opera exclusivamente sobre a informação codificada nos traços formais dos elementos do léxico. São estes que disparam a atuação de operações responsáveis pela concatenação de elementos do léxico (disponíveis em um arranjo inicial) - Merge, pelo pareamento de elementos e valoração 4 A informação sintática contida nos elementos do léxico a ser utilizada no processamento sintático tanto na produção quanto na compreensão de enunciados linguísticos será, a partir de agora, referida como traços formais. 41 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line de traços compartilhados - Agree, assim como pelo deslocamento de elementos já inseridos no marcador frasal – Move. Do ponto de vista de um modelo psicolingúistico de produção, o acesso aos lemas (ou conjunto de traços formais) é motivado por uma intenção de fala e decorrente da conceptualização de uma mensagem por parte do falante. Na compreensão, a recuperação dos lemas (dos conjuntos de traços formais dos elementos do léxico que se apresentam em sequência) seria feita a partir do reconhecimento lexical, que pressupõe a segmentação do sinal acústico da fala. Os traços formais se associam a categorias lexicais e funcionais do léxico. Os traços formais associados a categorias funcionais definem o tipo de referência a ser feito a entidades (em D – determinantes) e a eventos (T – tempo e Asp – aspecto) e o tipo de força ilocucionária (C – complementizador) do enunciado. Do ponto de vista do modelo de computação on-line de Autor(2007; 2011a), explora-se a constatação de que categorias funcionais codificam informação referente a intencionalidade. Na emissão de um enunciado, o falante seleciona valores dos traços formais das categorias funcionais de acordo com a maneira como pretende inserir o enunciado a ser produzido em um dado contexto discursivo (considerando a situação, o destinatário, as informações compartilhadas etc). Na compreensão, esses valores podem ser recuperados a partir do reconhecimento lexical, do parsing e da interpretação semântica do enunciado. Assim sendo, uma vez que os traços formais de categorias funcionais codificam informação pertinente à referência e à força ilocucionária do enunciado, propõese, no MINC, que o acesso a esses elementos deflagra a construção de esqueletos estruturais básicos de forma top-down. Por outro lado, as categorias lexicais (N - nome, V – verbo, Adj – adjetivo, P – preposição), diretamente relacionadas à conceptualização da mensagem, dada sua natureza predicadora ou argumental, geram estruturas derivadas bottom-up a partir das exigências sintático/semânticas de subcategorização e atribuição de papéis temáticos dos núcleos aos 42 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto elementos com que se combinam. Criam-se, assim, espaços derivacionais paralelos nos quais se encontram esqueletos sintáticos, derivados topdown, e estruturas geradas bottom-up que a eles se acoplam para satisfazer os requisitos sintáticos dos núcleos funcionais. Desse modo, NPs deverão se acoplar a Ds em DPs gerados top-down. VPs/vPs, por sua vez, seriam inseridos no esqueleto estrutural gerado de forma top-down a partir de C/T. Na computação de uma sentença, os DPs plenamente constituídos seriam associados a VP, vP e TP, dados os requerimentos temáticos e sintáticos destes últimos. O MINC adota, portanto, uma direcionalidade mista para a geração de marcadores frasais.5 FIGURA 3: Geração top-down de categorias funcionais e geração bottom-up a partir de categorias lexicais Em se tratando de computação on-line, torna-se imprescindível distinguir os diferentes tipos de movimento sintático gerados pela aplicação da operação Move, em uma derivação linguística (atemporal) Uma alternativa seria assumir que, para um falante adulto, o processamento ocorra com base em informação de padrões oracionais reconhecidos na língua a partir dos predicadores verbais. Assim, seria possível considerar a presença de templates associados aos Vs no léxico, os quais seriam ativados durante o parsing ou a formulação de sentenças, o que pode ser implementado via a adoção de um formalismo como o da Tree Adjoining Grammar (Joshi, Levy & Takahashi, 1975; Joshi, 1985), de base fortemente lexicalista. 5 43 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line (cf. Autor 2005; Autor 2007). O movimento de constituintes que caracteriza demandas de discurso específicas impõe um custo computacional mensurável, se comparado a movimentos sintáticos que, na teoria linguística, caracterizam o posicionamento de elementos para se obter a ordem canônica de determinada língua, uma vez que se assuma uma ordem básica universal (Kayne, 1994). Assim, associa-se a esse último tipo de movimento uma automaticidade que seria adquirida a partir da fixação de parâmetros de ordem da língua, o que parece ocorrer desde muito cedo no processo de aquisição (Wexler, 1998; Nespor, Guasti & Christophe, 1996). A fim de diferenciar os movimentos, tem-se considerado a distinção entre a formação de cópias simultâneas durante a derivação sintática, as quais não acarretariam custo computacional, em oposição à formação de cópias sequenciais, as quais implicariam custo computacional considerável (Autor 2007). Uma vez que a computação sintática pode ser tida como essencialmente semelhante na produção e na compreensão de enunciados, observa-se que o posicionamento de itens lexicais numa estrutura hierárquica (a construção de objetos sintáticos) promove a implementação de uma operação tal como Agree (concordância sintática). Na produção, essa operação pode ter consequências para a codificação morfofonológica (uma vez que afixos flexionais sejam recuperados do léxico a partir do resultado desta operação). Na compreensão, por outro lado, o reconhecimento desses afixos e seu pareamento em um dado domínio sintático, por exemplo, o pareamento do afixo de número do determinante com o afixo de número do nome, ou o pareamento da pessoa do sujeito com o afixo de pessoa do verbo em línguas como o português, fornecem as bases sintáticas para sua interpretação semântica. Nesse sentido, é possível identificar alguns pontos de complexidade para o processamento de dadas estruturas. Por exemplo, o número de elementos funcionais a serem selecionados para a computação de um enunciado seria uma medida de complexidade computacional (Jakubovicz, 2003; 2011). A presença de valores marcados em oposição 44 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto aos default/não marcados pode implicar a presença de categorias funcionais adicionais (GenP, para gênero marcado, AspP, para imperfeito etc). Essas especificidades teriam maior custo não só de um ponto de vista cognitivo, mas também demandariam uma computação mais custosa e uma expressão morfofonológica mais específica (Autor 2011). Estruturas vinculadas a demandas discursivas específicas, que podem impor alterações na ordem canônica da língua, também podem ser vistas como altamente custosas, de um ponto de vista computacional. O MINC, aqui caracterizado em linhas gerais, é tomado como base para se fazerem previsões em relação ao que poderia estar comprometido no DEL. 2 Possíveis fontes de manifestações do DEL A concepção de língua assumida pelo MINC pressupõe um estado inicial no qual um sistema computacional universal, entendido como Faculdade da Linguagem em sentido estrito, estaria inserido em uma Faculdade da Linguagem em sentido amplo (Hauser, Chomsky & Fitch, 2002), ou seja, que possibilita a constituição de um léxico sobre o qual tal sistema computacional poderá atuar. No estado inicial da aquisição da linguagem, pode-se conceber um léxico potencial passível de abrigar qualquer traço de ordem semântica, fonológica e formal que possa vir a constituir léxicos de línguas particulares, em função da experiência linguística. Ou seja, tudo o que é cognoscível, articulável e gramaticalizável é, potencialmente, um traços semântico, fonológico ou forma de elementos do léxico de línguas naturais. A constituição de um léxico consequentemente pressupõe interação entre o domínio da língua e os demais domínios da cognição. Essa interação é requerida para que as expressões geradas pelo sistema computacional sejam passíveis de articulação/percepção, interpretação semântica e referência, levando em conta o aparato cognitivo humano. 45 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line Em Corrêa (2009), a proposta de uma teoria procedimental da aquisição da linguagem foi apresentada, a qual parte da hipótese do boostrapping fonológico, adicionando a questão, ainda não explicitamente tratada, da inicialização do parser, entendida, em termos minimalistas, como inicialização do sistema computacional universal. A hipótese do bootstrapping fonológico propõe que a entrada da criança na sintaxe da língua se faz via segmentação do sinal acústico da fala em unidades prosódicas e via a identificação de padrões recorrentes, os quais são submetidos a uma análise probabilística e distribucional. Uma série de pistas prosódicas e distribucionais serve de base para a segmentação de unidades sintáticas (orações, sintagmas), assim como de palavras/ morfemas. No entanto, essa hipótese não deixa suficientemente explícito de que modo a criança seria direcionada para estas pistas e de que modo estas viriam a possibilitar a representação de unidades linguísticas para a análise sintática. Corrêa (2009) propõe que a ideia de aprendizagem guiada por fatores inatos, presente em estudos que exploram as habilidades perceptuais e analíticas de crianças durante o primeiro ano de vida, no processamento do sinal da fala (Jucszky. 1997; Jusczyk & Bertoncini, 1988), pode ser entendida à luz dos pressupostos minimalistas como aprendizagem vinculada a uma faculdade de linguagem em sentido amplo. Nesse sentido, a identificação de padrões recorrentes, passíveis de serem representados em termos de elementos de classes fechadas (em oposição a elementos de classes abertas) daria origem à constituição de categorias funcionais e lexicais. Observa-se que tudo o que é gramaticalmente relevante se faz visível na interface fônica em termos de padrões recorrentes correspondentes a elementos ou traços de categorias funcionais, assim como padrões de ordem, os quais deverão vir a ser interpretados semanticamente. Distinções pertinentes a classes fechadas e abertas, assim como padrões de ordem, dariam origem aos primeiros traços formais do léxico em constituição na aquisição de uma língua. A presença dos mesmos seria condição suficiente para a inicialização do parser, possibilitando o início do processamento 46 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto sintático do input linguístico. A partir de então, a faculdade da linguagem em sentido estrito passaria a viabilizar a combinação de elementos do léxico de forma hierárquica e assimétrica, ou seja, um dos elementos combinados (merged) – o núcleo –, tem seus traços projetados para um nó sintático que domina ambos. Essa análise sintática seria instrumental para a progressiva especificação de traços formais de categorias funcionais, cujas propriedades são identificadas uma vez que distinções entre padrões recorrentes na interface fônica são percebidas como gramaticalmente relevantes, o que induz o estabelecimento de contrastes de natureza semântica/formal, via o pressuposto de que enunciados linguísticos fazem referência a entidades e eventos. Diante dessa visão do processo de aquisição de uma língua e da computação on-line, podem-se considerar as seguintes possíveis fontes para manifestações do DEL (Autor 2011): dificuldades na inicialização do sistema computacional linguístico, com base na distinção classe aberta/ fechada, acarretando um desenvolvimento defasado; na atribuição de relevância gramatical a padrões recorrentes na interface fônica, o que acarretaria a representação de categorias funcionais subespecificadas; na progressiva especificação desses traços, mediante processamento na interface semântica; no acesso aos mesmos para a computação on-line; nas demandas específicas desta última, nos processos pós-sintáticos pertinentes à codificação morfofonológica e sua eventual realização em termos fonético-articulatórios. Quais destas seriam mais características dessa síndrome, exclusivas da mesma e/ou compartilhadas com outras condições é uma questão empírica. No que diz respeito às demandas específicas da computação online, a compreensão de estruturas de alto custo computacional será aqui enfocada. As estruturas geradas via movimento por demanda discursiva compõem um grupo de sentenças que tem sido comumente identificado como comprometido no quadro do DEL: as passivas, as relativas e as interrogativas-QU. 47 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line Na próxima seção, apresentamos a computação on-line requerida na compreensão dessas estruturas, identificando pontos de dificuldade, como a necessidade de manutenção de elementos na memória de trabalho por meio de estratégias de ensaio6, deflagradas a partir do reconhecimento de “pistas” específicas. No caso de relativas e interrogativas, considerase, ainda, a possível interferência da informação de traços semelhantes de outros elementos durante a computação. No caso das passivas, informação de ordem lexical e sintática, como a proveniente de morfemas de particípio ou mesmo de um PP-agente é vista como relevante para o desencadeamento do uso da operação computacional em questão. Vale salientar que a dificuldade com o processamento de estruturas de alto custo computacional pode caracterizar um déficit linguístico primário (ou seja, DEL), mas também pode refletir comprometimentos linguísticos secundários, tais como os decorrentes de dificuldades de atenção a pistas específicas para a solução de uma dada tarefa-problema, como uma tarefa linguística. Sendo assim, custo computacional na implementação do parsing desse tipo de estrutura deve ser tomado como indicativo de comprometimento na condução de determinadas tarefas linguísticas, cuja natureza deverá ser objeto de investigação. 3 A computação on-line de estruturas de alto custo na compreensão O movimento gerado por demandas discursivas, o qual requer cópias sequenciais para sua implementação on-line, com base no MINC, permite prever que as estruturas de maior custo trariam dificuldades para o desenvolvimento linguístico típico e desviante. Cada uma das estruturas de alto custo, tipicamente comprometidas no DEL, será caracterizada a seguir. Entende-se aqui por estratégias de ensaio, procedimentos destinados à manutenção de informação “literal” (forma fônica e traços formais, minimamente) no que, no modelo de memória de trabalho de Baddeley (Baddeley & Hitch, 1974; Baddeley, 1997), é caracterizado em termos de um loop fonológico, no qual a informação pode ser repassada de forma iterativa até que seja utilizada e sua manutenção liberada. 6 48 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto 3.1 Interrogativas A Figura 4 ilustra os passos da computação sintática conduzida durante o parsing de uma estrutura interrogativa do tipo Qu+N, tal como (1): (1) Que menino a atriz viu? O sintagma Que menino constitui a primeira parte do input a ser processado: um DP é gerado, o qual, por ser interrogativo, permite a geração, de forma top-down, de um CP, marcado como interrogativo, e de um TP, prevendo-se uma sentença com tempo gramatical especificado. O procedimento default seria manter o elemento QU na memória de trabalho de modo a vir a preencher a primeira posição sintática disponível (a de sujeito, de objeto direto, indireto, etc), a qual é caracterizada no modelo como uma cópia fonologicamente não especificada do elemento movido (no caso de uma interrogativa de sujeito, essa posição pode ser imediatamente identificada, mediante o reconhecimento do verbo; no caso de uma interrogativa de objeto, a presença de um DP (sujeito) seguido de um verbo é indicativa de que deve haver uma posição sintática vazia no VP). O elemento QU deve se manter ativo até que uma posição vazia seja identificada, na qual seu papel temático poderá ser atribuído. Esse modo de funcionamento do parser pode explicar a assimetria entre estruturas de movimento de sujeito e de objeto, amplamente atestada na literatura psicolinguística (cf. revisão ampla em Miranda, 2009). Nos termos do modelo, manter esse elemento ativo implica que cópias sequenciais serão geradas enquanto a estrutura é computada. A computação dessa estrutura envolve a geração de um DP sujeito por meio de cópias simultâneas. Há, portanto, a presença de elementos com traços semelhantes gerados e mantidos em espaços derivacionais paralelos, o que torna o processo custoso. 49 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line FIGURA 4: Sentença interrogativa QU+N de objeto No caso de estruturas QU+N, além da semelhança de traços, há estruturas semelhantes, quando o sujeito da sentença se apresenta como um DP ramificado, adicionando custo ao processamento (cf. Friedman, Belletti & Rizzi, 2009).7 Do ponto de vista do MINC, a geração de elementos semelhantes, em termos de estrutura e traços formais pode acarretar interferência de traços, aumentando a necessidade de os elementos envolvidos serem mantidos integralmente na memória de O maior custo atribuído à presença de um elemento interveniente encontra, no MINC, uma caracterização derivacional do Princípio Estendido da Minimalidade Relativizada, proposto por Friedmann, Belletti & Rizzi (2009), em termos representacionais. O Princípio atribui às crianças, em fase de aquisição da língua, uma dificuldade em considerar a associação de um elemento movido à determinada posição sintática, sempre que um elemento interveniente, geralmente um sujeito do tipo DP pleno, esteja presente na representação sintática, ou seja, para as crianças, elementos de mesmo tipo estrutural se configurariam como potenciais candidatos para o estabelecimento de relações locais, independentemente de todos os traços relevantes estarem compartilhados. No processamento on-line, tal como caracterizado no MINC, essa dificuldade encontra uma explicação procedimental. O custo computacional é atribuído ao fato de haver dois elementos com traços semelhantes em espaços derivacionais paralelos, ou seja, computados de forma independente e mantidos na memória de trabalho, para que ocupem as respectivas posições hierárquicas no marcador frasal principal (o esqueleto funcional gerado a partir de CP/ TP), quais sejam, o DP a ser identificado como sujeito, e o DP-QU que deverá preencher um gap na posição de objeto. 7 50 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto trabalho possivelmente, por meio de estratégias de ensaio. Não é evidente, no entanto, se o custo total do processamento dessa estrutura pode ser atribuído apenas à necessidade de recuperação do sintagma bifurcado QU + N na posição de objeto. Nesse caso, a operação semântica implicada na interpretação de um elemento interrogativo desse tipo pode acarretar demandas cognitivas adicionais, uma vez que haveria uma operação de restrição de conjunto sobre o qual a variável operaria. Para a compreensão de uma interrogativa QU, é necessário, portanto, assumir-se um traço +/- interrogativo, cujo valor (+), na compreensão tem de ser identificado. Diante da distinção entre cópias sequenciais e simultâneas no MINC, pode-se dizer que o reconhecimento do valor desse traço no elemento que se apresenta na periferia esquerda da sentença cria a expectativa pela presença de uma cópia, o que acarreta a manutenção do elemento QU ativo na memória de trabalho. 3.2 Relativas No caso de estruturas relativas, pode-se verificar a maior carga de processamento associada a essa estrutura pela exemplificação, a seguir, da computação sintática requerida na compreensão de uma relativa de objeto ramificada à direita: (2) O elefante abraçou o urso que o leão chamou. O parsing da sentença matriz seria iniciado pelo DP, possibilitando a identificação de uma entidade, fazendo prever uma proposição declarativa, o que levaria à geração de CP, TP e do próprio DP, em espaços derivacionais paralelos. A presença do verbo permitiria criaremse cópias simultâneas do DP a serem associadas à posição de Spec, TP, como sujeito sintático, e Spec, vP, como sujeito lógico/agente. A necessidade de um objeto lógico também seria prevista. A presença do DP “o urso” no input atenderia a essa exigência do verbo. O fechamento desse constituinte seria, de todo modo, adiado até a inspeção do elemento 51 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line seguinte na sequência. Em línguas como o português, a identificação de um adjetivo, de um PP ou de um pronome relativo sinalizaria para o parser a necessidade de manter ativado na memória o DP recémanalisado para que a estrutura a ser processada seja a ele integrada (cf. Autor 1986; 1995). No caso da relativa, o que sinaliza a necessidade de se gerar um CP/TP top-down ao qual se acopla a estrutura projetada pelo verbo da relativa. O DP mantido ativo na memória pode então ser automaticamente recuperado para o preenchimento de uma posição vazia (de sujeito, objeto, etc) nessa estrutura. A Figura 5 apresenta a estrutura da relativa. Note-se que a primeira expectativa seria considerar qu-urso como o sujeito da sentença relativa, mas a presença de “o leão” no input o impede, forçando a geração de um novo DP e a manutenção da cópia de qu-urso em uma “caixa de memória” para identificação de seu papel sintático e semântico no interior da estrutura relativa, o que implica um custo de processamento mais alto. O DP (projetado em espaço derivacional paralelo), dada a presença do verbo, é identificado como o sujeito sintático, com acoplamento de cópias simultâneas em Spec, TP e em Spec, vP. A expectativa por um objeto permite que o DP qu-urso mantido ativo na memória preencha essa posição, reconhecida como uma lacuna. FIGURA 5: Geração de uma sentença relativa de objeto ramificada à direita 52 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto Deve-se considerar que a geração de um DP interveniente entre o núcleo da relativa e sua posição de origem impõe uma demanda adicional. Esse elemento precisa ser gerado, ao mesmo tempo em que é necessário manter-se o DP qu-urso em uma ”caixa de memória” (por meio de estratégias de ensaio) a ser reativado assim que a lacuna em posição de objeto seja detectada. 3.3 Passivas No que diz respeito à passiva, é importante apontar que a identificação de uma forma participial do verbo é relevante para que esta seja reconhecida como tal. A impossibilidade de atribuição de caso ao objeto semântico da forma participial é o que, do ponto de vista da produção, promove o movimento deste elemento para a posição de sujeito sintático, a ser reconhecido pelo parser. Outra característica da passiva é, opcionalmente, codificar o agente na forma de um PP. (3) O gato foi carregado pela vaca. Do ponto de vista da computação on-line de uma estrutura passiva, é possível prever três procedimentos distintos de análise: (i) processamento de um DP seguido da análise da sequência AUX+Forma participial do verbo, reconhecida em uma janela consideravelmente ampla, no processamento do enunciado da esquerda para a direita; análise do DP em questão como sujeito, em concordância com o auxiliar; manutenção do mesmo na memória de trabalho até que a relação de dependência de longa distância entre auxiliar e particípio seja estabelecida, o que acarreta a atribuição do papel temático tema ao sujeito; 53 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line (ii) processamento da esquerda para a direita, palavra por palavra, com a identificação de um DP e da forma verbal foi, em concordância com este; análise do DP como sujeito sintático de foi, tomado como verbo principal, com a concatenação de cópias simultâneas associadas a [Spec, TP] e a [Spec, vP]; atribuição do papel temático agente a este DP. Esse procedimento irá requerer reanálise quando do reconhecimento da forma participial do verbo – informação necessária à atribuição do papel de tema ao sujeito; (iii) uso de uma estratégia de atribuição imediata da função de sujeito e do papel temático agente a um DP em posição inicial. Este procedimento irá acarretar interpretação equivocada das relações temáticas, caso a informação fornecida pela forma participial do verbo não seja tomada como evidência de relação de dependência desta com o auxiliar de modo a inibir a interpretação semântica derivada do uso da estratégia. A condução do procedimento em (i) necessariamente acarreta alto custo, dado que uma sequência semi-analisada tem de ser mantida por algum tempo na memória de trabalho até que relações semânticas sejam estabelecidas. A condução do procedimento em (ii) traz o custo decorrente da necessidade de reanálise somado ao da análise em (i) a ser requerida. A possibilidade do uso da estratégia em (iii) acarreta erro e custo adicional, uma vez que teria de ser inibida, caso fosse privilegiada como primeira opção de análise. Observa-se, portanto, que o processamento da passiva é custoso, independentemente do procedimento adotado. O DP sujeito tem de ser reativado em posição de objeto para que seu papel temático seja atribuído mediante a informação veiculada pelo AUX+Part. Adicionalmente, o 54 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto agente deve ser identificado a partir do processamento do PP, ainda que previsto em função da estrutura argumental do verbo (o que, na proposta da análise estrutural de Boeckx (1998), requer que se assuma um pronome nulo). FIGURA 6: Estrutura passiva 3.4 Custo de processamento A caracterização da computação on-line das estruturas aqui apresentadas, no parsing, permite vincular seu custo diferenciado à necessidade do uso do recurso de cópias sequenciais. Atenção a determinada informação das interfaces é crucial para que a estrutura seja computada de forma adequada: a presença de um elemento-QU, seja em uma interrogativa ou em uma relativa, sinaliza a necessidade de se identificar uma cópia fonologicamente vazia, o que leva à criação das cópias sequenciais; a presença de uma forma participial, associada a um verbo auxiliar, sinaliza voz passiva, o que implica haver uma alteração na posição canônica do objeto do verbo (expressa no modelo em termos de uma cópia). Dificuldades na implementação da análise ou o não reconhecimento das “pistas” que sinalizam o tipo de análise a 55 Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line ser conduzida podem acarretar o uso de estratégias de esquiva e/ou de menor custo. Nesse caso, as relações semânticas entre os participantes dos eventos codificados linguisticamente por meio desse tipo de estruturas são estabelecidas com base em informação sintática mínima (não suficiente para uma análise adequada), ocasionando interpretações equivocadas. Por exemplo, passivas são processadas como ativas, ou seja, o sujeito é tomado como agente, relativas de objeto tendem a ser interpretadas com base em relações de adjacência ou a interpretação da lacuna se faz em termos de estratégias para a interpretação de formas pronominais (de Villiers & de Villiers, 1973; Autor 1995). Um modelo de computação on-line em que se incorpora uma concepção de língua, segundo a qual toda a informação relevante para o parsing e a interpretação semântica de sentenças se encontra disponível nas interfaces com os sistemas de desempenho, torna evidente a importância de determinadas “pistas” linguísticas para identificação dos traços formais relevantes para a condução do parsing. Conclusão Um melhor entendimento das manifestações características do DEL no domínio da sintaxe pode ser alcançado quando se articulam teorias linguística e psicolinguística, uma vez que a primeira parta do pressuposto de que a forma e o funcionamento das línguas humanas respondem às pressões das interfaces da língua com sistemas que atuam no processamento linguístico, e que modelos psicolinguísticos busquem explicitar o modo como a computação sintática se inscreve nos processos de produção e de compreensão da linguagem. Em particular, a articulação entre modelos psicolinguísticos que incorporem uma caracterização da computação sintática de base minimalista aliada a uma teoria procedimental de aquisição da linguagem permite prever possíveis fontes de comprometimento no que diz respeito ao domínio sintático. 56 Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto Neste artigo, foi feito um esforço na direção de se explicitar o procedimento de análise sintática de estruturas previstas como sendo de alto custo de processamento, nos termos do MINC. No que diz respeito às relativas e às interrogativas, uma possível fonte de comprometimento estaria na identificação das propriedades dos traços formais do elementoQU, que seriam desencadeadoras de movimento sintático na língua. No que diz respeito às passivas, o reconhecimento de dependência descontínua entre o auxiliar e o particípio sinalizaria a impossibilidade de atribuição de Caso ao objeto lógico, o que desencadeia movimento sintático. Em todos os casos, a criação de cópias sequenciais deflagrada pelo reconhecimento desses elementos acarreta uma sobrecarga na memória de trabalho que pode ser uma das fontes de dificuldade no DEL. Outra possibilidade reside no próprio reconhecimento da pertinência da informação veiculada por esses elementos na pronta implementação dos procedimentos de análise requeridos. Diante disso, a possibilidade do uso desse tipo de informação de interface em procedimentos de intervenção em casos de DEL pode ser considerada. Nessa direção, tarefas linguísticas em que se exploram essas pistas foram utilizadas em um procedimento piloto de estimulação da produção e da compreensão dessas estruturas por parte de crianças com dificuldades de linguagem de ordem sintática (Autor 2011; Autor 2011b). Os resultados, ainda que preliminares, sugerem que este pode ser um direcionamento promissor para intervenção em casos de DEL. Referências BADDELEY, A.D. Human memory: Theory and Practice, revised edn. Hove: Psychology Press, 1997. ______; HITCH, G.J. Working memory. In G.A. Bower (ed.), Recent Advances in Learning and Motivation, Vol. 8 (pp. 47–89). 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ABSTRACT In this paper, issues of epistemological basis for researches which adopt an enunciativediscursive approach in the studies of language in pathologies will be listed and discussed, among which the relationship between sign/symptom and syndrome and the relationship between normality and pathology, as well as the notions of brain, subject and language that permeate researches conducted in this area. PALAVRAS-CHAVE Afasia, Linguagem nas patologias, Neurolinguística KEYWORDS Aphasia, Language in pathologies, Neurolinguistics O presente texto deriva de minha pesquisa de mestrado, concluída em 2011, cujo título é A semiologia das afasias: contribuições de uma abordagem enunciativo-discursiva. 1 © Revista da ABRALIN, v.12, n.1, p. 63-95, jul./dez. 2013 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Introdução A Neurolinguística encontra-se em um campo híbrido de conhecimento, pois recorre tanto às Neurociências quanto à Linguística para o estudo de seus objetos. Neste artigo, nos ateremos aos estudos de linguagem nas patologias e, em sua maior parte, nos basearemos nas discussões sobre afasia. É fundamental, entretanto, compreender que as questões epistemológicas aqui levantadas são pertinentes ao estudo de linguagem nas patologias em geral. A semiologia atualmente utilizada para a classificação das afasias, na literatura em Neuropsicologia e Neurolinguistica, é basicamente a mesma do século XIX, quando se acreditava numa relação direta e unívoca entre áreas especificas do cérebro e as funções superiores, dentre as quais a linguagem. Segundo Foucault (1998), a semiologia tem uma relação estreita com a vontade de verdade da época e, consequentemente, com a relação entre ver e dizer. Causa estranhamento que, apesar do avanço no conhecimento do funcionamento cerebral e mesmo do próprio funcionamento da linguagem, a semiologia permaneça imutável. Uma explicação para isso seria, de acordo com Novaes-Pinto e Santana (2009: 20), que “como o conhecimento de uma área vai sendo construído das propostas dos antecessores, a semiologia acaba sendo cristalizada ao longo do tempo, mesmo que os conceitos sejam criticados e reformulados”. Tradicionalmente, a afasia é definida como uma patologia de linguagem provocada por uma lesão focal. Coudry (1986/1988) altera significativamente essa definição: A afasia se caracteriza por alterações de processos linguísticos de significação de origem articulatória e discursiva (nesta incluídos aspectos gramaticais) produzidas por lesão focal adquirida no sistema nervoso central, em zonas responsáveis pela linguagem, podendo 64 Amanda Bastos Amorim de Amorim ou não se associarem a alterações de outros processos cognitivos. Um sujeito é afásico quando, do ponto de vista linguístico, o funcionamento de sua linguagem prescinde de determinados recursos de produção ou interpretação. A autora, além de dar relevância ao aspecto linguístico, evidencia o fato de a patologia estar associada a um sujeito real, fato que não deve ser ignorado no processo de diagnóstico e terapia, menos ainda nas pesquisas que envolvem afásicos. Podemos observar em algumas pesquisas recentes (cf. Cytowic, 1996, Canoas-Andrade, 2009) que alguns autores já vêm tratando – tanto na Neuropsicologia quanto na Neurolinguística – a afasia independente do tipo de lesão. Ou seja, na literatura mais recente, podemos encontrar indícios de uma reformulação no conceito de afasia, redefinindo-a como uma patologia de linguagem que pode estar associada e até mesmo ser sinal de outras patologias, como demências e epilepsia. Se nosso foco é o estudo da linguagem e se, conforme afirma Foucault (1994), “o corpo é um lugar de sobreposições”, tal reformulação é válida. Portanto, quando utilizarmos o temo afasia neste artigo, é sob esta ótica que estamos observando. 0 estudo das afasias foi radicalmente questionado a partir de meados dos anos 80, quando começou a ser desenvolvida uma Neurolinguística de orientação enunciativo- discursiva, se opondo à Neurolinguistica tradicional, tanto pelas concepções mais fundamentais - como as de sujeito, cérebro e linguagem - quanto pelos métodos adotados na pesquisa, privilegiando abordagens qualitativas e dados que emergem em situações dialógicas, a partir do acompanhamento longitudinal dos sujeitos. Tal método de acompanhamento, que ocorre tanto nas sessões dos grupos de convivência, quanto em sessões individuais, permite visualizar o funcionamento da linguagem desses sujeitos em diferentes momentos e, 65 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva dessa forma, podemos compreender a instabilidade do quadro afásico e o fato de certos fenômenos, como as parafasias, também ocorrem nos enunciados de sujeitos não-afásicos que participam da sessão, o que vem a corroborar a crítica que fazem Canguilhem (1995) e Sacks (1997) sobre a noção de “patologia”. Em geral, a literatura posiciona o normal e o patológico em pólos opostos e estáveis. Essa concepção tem implicações para a semiologia, uma vez que qualquer sinal ou sintoma é tomado como uma alteração de um processo normal e deve ser imediatamente enquadrado em uma síndrome. 0s parâmetros para avaliar normalidade e patologia são tomados como universais e independentes de elementos externos ao individuo - localização geográfica, a cultura local ou seus hábitos particulares. Vygotsky (1984) cunha o termo extracortical - em seguida adotado por Luria - para se referir aos fatores considerados exteriores ao cérebro e sua interferência no seu funcionamento (Kotik-Friedgut, 2006). Com isso, o autor expande a própria noção de cérebro, que não seria constituído somente pelos níveis sub-cortical e cortical, mas sim a partir da sua relação com o meio, com o outro e com a cultura. Essa noção é usualmente referida na literatura neuropsicológica como influência epinenética (Annunciato, 1995), compatível com nossa abordagem, justamente porque é de natureza sócio-histórico-cultural. A observação dos fenômenos em relação a um ideal e deslocada do contexto de produção se tornou habitual na clínica e nas pesquisas que se pretendem científicas, justamente pelo rigor metodológico2. As categorias advindas desse método se constituíram como moedas linguísticas para as trocas entre profissionais. Entretanto, conforme a epígrafe desta primeira parte, a semiologia não deveria permanecer sempre a mesma, pois o conhecimento que se tem de um fenômeno não é estanque. Ao contrário, sempre se atualiza e se reformula. 2 Incluindo grande número de sujeitos, uso de testes-padrão e aproximações estatísticas que foram e serão criticadas de diversas formas nesta pesquisa, como meio justamente para avaliar uma linguagem ideal, que não corresponde, de fato, a sujeito algum, mas se pretende universal. 66 Amanda Bastos Amorim de Amorim Uma vez que a semiologia utilizada atualmente data do século XIX, é preciso investigar também por que ela se constituiu dessa forma. Segundo Foucault, como vimos anteriormente, cada época se relaciona a uma vontade de verdade, que condiciona a relação entre ver e dizer em diferentes momentos históricos. Novaes-Pinto (1999, 2009) relaciona a tradição nominalista do século XIX ao fato de as categorias passarem a ser prévias às observações, quando o papel do clinico era apenas o de encaixar nelas os sujeitos e as patologias, chegando aos diagnósticos que a instituição (clínica) requer. 1.2 Relações Fundamentais Neste subitem, apresentaremos algumas discussões caras à Neurolinguística de orientação enunciativo-discursiva e que estão, implícita ou explicitamente, em todos os trabalhos desenvolvidos na área. 1.2.1 Sinal/sintoma & síndrome Foucault (2008: 18) afirma que a vontade de verdade, quando apoiada em uma instituição - como a clinica -, “tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um poder de coerção”. Podemos pensar, portanto, que, como as primeiras classificações da afasia vieram de um campo já institucionalizado a Medicina -, seja mais difícil que classificações advindas de outras áreas, como a Linguística, penetrem nesse campo. Além disso, quando penetram, muitas vezes são tomadas de forma superficial ou mesmo equivocada. De fato, é possível observar a ocorrência dessas imprecisões em relação, por exemplo, aos conceitos de neologismo e jargão, que são inadequadamente utilizados, de acordo com Morato & Novaes-Pinto (1997, 1998) para se referirem à produção de parafasias nas afasias fluentes. 67 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Na literatura neuropsicológica, as síndromes são conjuntos estáveis de sintomas e estes - no caso das afasias - são avaliados por meio de testes metalinguísticos. Caplan (1987) afirma que há uma noção mais fraca e uma mais forte de síndrome. Uma noção forte é encontrada em Caramazza (apud Novaes-Pinto, 1999). Uma síndrome poderia ser considerada como a unidade mínima de analise para a identificação do(s) módulo(s) que se suponha afetado(s) em um paciente. Em outras palavras, uma síndrome deveria ser definida como o conjunto de todos os sintomas que refletem o distúrbio de um componente de processamento específico. Esta definição de síndrome tem como consequência implícita a existência de complexos não-dissociáveis de sintomas que correspondem ao distúrbio de um único componente. [...] Portanto, uma outra consequência desta abordagem é a de que a co- ocorrência necessária de sintomas define a identificação de módulos de processamento cognitivo, e seu funcionamento interno, enquanto que a dissociação de sintomas reflete a independência de componentes de processamento. De acordo com essa noção mais forte, que exige a co-ocorrência, em todos os casos, de um conjunto de sintomas, a tendência é que se force um enquadramento dos déficits dos sujeitos em categorias estanques. A noção fraca de síndrome, a que Caplan (1987) se refere, requerer que os sintomas co-ocorram numa frequência “acima da média”, ou seja, é uma definição que abrange uma certa variação embora ainda conceba as síndromes em termos dos déficits (NovaesPinto, 1999). Um dos objetivos da pesquisa que originou este artigo, realizada sob a orientação enunciativo-discursiva é precisamente o de “questionar 68 Amanda Bastos Amorim de Amorim nossa vontade de verdade” (Foucault, 2008: 51). Foucault afirma, a esse respeito, que “é preciso também que nos inquietemos diante de certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares” (Foucault, 2005: 24). Os trabalhos desenvolvidos sob perspectivas sócio-históricoculturais (dentre as quais nos identificamos) se constituem como discursos de resistência (Foucault, 2009) frente ao modelo biomédico hegemônico. Vontade de verdade, poder e resistência são elementos fortemente relacionados, já que a resistência é constitutiva do poder e este é parte integrante das instituições que apoiam a vontade de verdade que, por sua vez, exerce uma pressão coercitiva - conferida pelo poder da instituição - sobre a sociedade, gerando pontos de resistência (Foucault, 2009). Isso indica, portanto, o caráter cíclico dessas relações de poder. Considerar o sujeito na sua relação com a linguagem, o uso efetivo da língua e não uma língua como sistema fechado e estável ou uma competência de um falante-ideal, por sua vez, constitui-se também como um discurso de resistência em relação a uma certa Linguística - a das formas. 0 que defendemos não é a extinção de categorias, mas uma análise crítica e um diagnóstico em termos do que o sujeito consegue produzir e como ele consegue produzir, apesar dos limites impostos pelas afasias. 1.2.2 Normal & patológico Canguilhem (1995) critica a abordagem polarizante e binária observada na Medicina, citando exemplos essencialmente fisiológicos e mostrando o quanto os costumes alteram a ideia do que é normal ou não para um individuo. De acordo com o autor: Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se essas normas forem inferiores - quanto à estabilidade, à fecundidade e à variabilidade da vida - às normas 69 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes - no mesmo meio - ou superiores - em outro meio - serão chamadas normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade. 0 patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma diferente, mas comparativamente repelida pela vida. Trazendo para o campo especifico da Afasiologia, essa polarização faz perder de vista o fato de os quadros das afasias não são estáveis ou permanentes. 0s estudos realizados sob orientações sócio-históricoculturais vêm mostrando que um afásico não apresenta sempre a mesma afasia, nem o mesmo grau de severidade todo o tempo. Em alguns episódios, a fala do afásico pode facilmente ser confundida com uma fala de um não-afásico (Novaes-Pinto, 1999). A fim de exemplificar, reproduziremos abaixo dois dados do sujeito P, que, segundo a literatura tradicional, seria considerado agramático: o primeiro data de 1984 (Coudry, 1986) e o segundo data de 1996 (Novaes-Pinto, 1997). [1984: Investigador e P observam a foto de um casal jantando à luz de velas] Inv.: 0 que estão fazendo? P: Homem, mulher, lâmpada. [1996: Investigador pergunta a P sobre o final de semana] P: “0lavo, 0rdalia e eu fomos lá no shopping comprar um presente” 0s dados ilustram que o quadro afásico não é sempre o mesmo e que, nas afasias, ocorre a movimentação no eixo entre normalidade e patologia, conforme Canguilhem (1995) postula. Além disso, dada a distância cronológica na produção dos dois dados, é impossível ignorar os efeitos terapêuticos da perspectiva defendida por Coudry (1986/1988). Segundo Novaes-Pinto (2006: 1733), 70 Amanda Bastos Amorim de Amorim A linguagem do afásico, em certas situações dialógicas, fica mais indeterminada. Com relação ao eixo normalpatológico, é na dificuldade de determinar o sentido [...] que a alteração causada pela afasia afasta os enunciados dos parâmetros normais (da média típica, proposta por Quetelêt, assumida por Canguilhem para um sujeito possível). Como há um movimento constante nesse eixo, explica-se também o fato de que o afásico não é afásico o tempo todo. Portanto, o grau de severidade não é o mesmo para o mesmo sujeito afásico o tempo todo. A semiologia correntemente adotada patologiza elementos da fala dita normal, como as trocas lexicais - que, no âmbito das patologias, são chamadas parafasias - ou a simples presença de pausas e hesitações. Quer dizer, segue em sentido oposto ao que postula Canguilhem quando afirma que não ha fato normal ou patológico em sua essência. 0 autor retoma a proposta de Quetelêt e reforça a necessidade da adoção de uma metodologia que privilegie o conceito de média típica para a observação de fenômenos. Segundo essa noção, um mesmo sujeito deve ser comparado a si mesmo em diversos momentos - o que só é possível em um estudo de natureza longitudinal. Não é descartada a noção de um grupo tipo (tratado na literatura contemporânea também como grupo controle), tão caro às pesquisas quantitativas, mas essa noção é ressignificada, de forma que esse grupo deixa de ser um ideal, algo a que o sujeito deva equivaler para ser considerado normal. A clara vantagem desse método em relação à tomada da média aritmética é que, dessa forma, chega-se a um valor real, dado que o resultado é um valor que existe. Na média aritmética, o valor a que se chega tende a não coincidir com nenhum dos valores dados, gerando uma noção de norma a que nenhum dos dados corresponderia. 71 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva A busca por uma norma que se aplique a todos os sujeitos é baseada em métodos quantitativos de pesquisa. Na vertente tradicional da Neurolinguistica, o instrumento mais amplamente utilizado é o testepadrão, que visa o diagnóstico de alterações de linguagem ou outras disfunções cognitivas nas patologias. Há diversas baterias validadas, traduzidas e aplicadas geralmente da mesma forma, em todo o mundo, tanto para fins de pesquisa como na pratica clinica de avaliação e acompanhamento terapêutico. Analises quantitativas advindas dos resultados dos testes, aliadas a exames de neuroimagem, constituem grande parte da literatura prestigiada e considerada cientifica. Um dos maiores problemas desse modelo é a descontextualização das tarefas. Novaes-Pinto (1999: 138) traz um exemplo disso quando cita a Bateria de Boston, de Goodglass & Kaplan (1986): “pede-se ao sujeito, entre outras coisas, que ‘dê duas batidinhas em cada ombro, com dois dedos e com os olhos fechados’” (Novaes-Pinto, 1999). A autora argumenta que a tarefa é ambígua e que, mesmo na aplicação do teste em sujeitos não-afásicos, houve grande variabilidade em sua execução. Os testes-padrão são amplamente utilizados também no diagnóstico e acompanhamento terapêutico de outras patologias. No exemplo abaixo, extraído de um trabalho de Novaes-Pinto (2007, p. 315-316), trazemos um dado do sujeito NB, avaliado - segundo a perspectiva tradicional - como provável Alzheimer em estágio inicial. Na atividade em questão, pretende-se avaliar se a capacidade de categorização esta preservada ou não. Esta tarefa se relaciona, na literatura neuropsicológica, à função executiva, por sua vez ligada a um dos principais papéis dos lobos frontais - a regulação da própria linguagem e a capacidade de abstração. As perguntas são feitas no seguinte modelo: “How are X and Y alike?”. 0 sujeito marca 5 pontos se “acerta” e 0 se “erra”. Abaixo reproduzo a tabela formulada pela autora, com os escores do sujeito: 72 Amanda Bastos Amorim de Amorim Palavras a categorizar Respostas do sujeito NB Escore atribuído e palavra-alvo piano x drum They both make noise 0 Instrumentos musicais orange x banana same color, fruit, tropical, tasty, buy them in a grocery store 5 Frutas eye x ear both detect from your surroundings 0 Órgãos do sentido boat x automobile transport, take people to operate go on a surface 5 Meios de transporte table x chair sit on both actually, 4 lens, stable (it has to be), can be connected 0 Mobília work x play How do you make work into play? That should be the question... How are they alike? They can both be fun... 0 Atividades sociais humanas steam x fog Basically the same. When the humidity is high, you can’t see through. 0 Água em estado gasoso egg x seed They are both eatable 0 Dão origem à vida democracy x monarchy They are both ruled by despots both serve for controlling the people... 0 formas de governo poem x statue They can both be beautiful 0 formas de arte praise x punishment They both make you feel good; result of a behavior 0 resultado de um julgamento fly x tree hibernation x migration enemy x friends 5 seres vivos Ways to avoid the winter, the bad 5 weather, seasonal birds do it don’t know comportamentos em if fish função do tempo 0 They are both your neighbors, people that pessoas que você have attitude that might change conhece/convive Living creatures, air movement 73 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Podemos observar que, para pontuar no teste, não basta o sujeito categorizar, mas ele precisa encaixar na categoria semântica especifica que o teste propõe. De acordo com Novaes-Pinto (2007: 317), as respostas de NB revelam que o sujeito consegue abstrair e fazer inferências extremamente complexas. Esse trabalho linguístico/ cognitivo do sujeito também pode ser verificado quando [...] ele pede para que o examinador lhe explique como é possível, por meio das perguntas dos testes, saber como ele esta por dentro (referindo-se ao cérebro). 0 estagiário respondeu que compara os resultados dos testes anteriores com os atuais. NB, então, infere rapidamente, brincando: So... the trick is not to do so well on this one, do better next time... Pelas razões aqui defendidas, podemos dizer que o resultado dos testes não equivale às reais dificuldades dos sujeitos. Entretanto, têm objetivos como os indicados por Goodglass & Kaplan (1986 apud Novaes-Pinto, 1999, p. 126): 0 exame da afasia pode dirigir-se a um dos três objetivos gerais: 1. Diagnóstico da presença e tipo de síndrome afásica, possibilitando inferências com respeito à localização cerebral. 2. Avaliação do nível de rendimento, tanto para a determinação inicial, como para detectar mudanças através do tempo. 3. Avaliação global das dificuldades e possibilidades do paciente, em todas as áreas da linguagem, como guia para o tratamento. 74 Amanda Bastos Amorim de Amorim Embora os autores façam ressalvas em relação ao teste e recomendem que o mesmo não seja tomado como um resultado absoluto, observamos que a sua aplicação serve tanto para fins de pesquisa quanto para trabalho clínico com a linguagem. 0 primeiro objetivo caracteriza a posição localizacionista, ainda valorizada nas pesquisas atuais em Neurociências. Com a tecnologia de imagens de que atualmente dispõem os profissionais dos grandes centros urbanos, já não se torna mais necessário correlacionar a lesão com o déficit linguístico supostamente causado por ela, a partir da avaliação neuropsicológica tradicional. 0s outros dois objetivos mencionados acima na citação de Goodglass & Kaplan também não são plenamente alcançados pela utilização do teste, especialmente pela descontextualização das tarefas. Por outro lado, Coudry (1986/1988) mostra como atividades contextualizadas apresentam resultados mais significativos para a compreensão do funcionamento real da linguagem. Um exemplo dessa abordagem é o estudo de caso do sujeito N, que falha no teste de nomeação, mas acerta quando ela ocorre no contexto enunciativo: INV. - 0 senhor esta sentado onde? N. - Cadera. (E acrescentou:) Se você tivesse perguntado o nome, eu nao sabia. Mas assim lembro. Se pergunta “o que é isso”, não sai. 0bservando um exemplo como este, é possível notar que, em situação dialógica, a avaliação se torna muito mais relevante para se inferir a respeito dos processos linguístico-cognitivos envolvidos. A literatura neuropsicológica moderna também esta repleta de exemplos. Goldstein (1933) relata um episódio no qual seu paciente, durante um teste de nomeação, não conseguiu dizer “guarda-chuva”, mas responde ao autor: “Não posso me lembrar como isso é chamado, porém tenho diversos guarda-chuvas em casa”. Jackson (1884) narra 75 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva que muitos pacientes não conseguiam dizer “não» quando era pedido, mas muitas vezes respondiam “Não, doutor, eu não consigo dizer não”. Esses dados indicam que muitas vezes os testes podem gerar falsos positivos devido à descontextualização das tarefas. As unidades privilegiadas pelos testes - palavras e orações -, como aponta Bakhtin (2003), são abstrações, recursos da língua que só têm valor no enunciado, este sim a unidade real da comunicação verbal, o que reforça o argumento da artificialidade das tarefas metalinguísticas, quando o objetivo seria compreender o funcionamento da linguagem. Nas palavras do autor: Quando se analisa uma oração isolada, destacada do contexto, os vestígios do direcionamento e da influência da resposta antecipável, as ressonâncias dialógicas sobre os enunciados antecedentes dos outros, os vestígios enfraquecidos da alternância dos sujeitos do discurso, que sulcaram de dentro o enunciado, perdem-se, obliteram-se, porque tudo isso é estranho à natureza da oração como unidade da língua. Todos esses fenômenos estão ligados ao todo do enunciado, e onde esse todo desaparece do campo de visão do analisador deixam de existir para ele. A crítica de Bakhtin não incide especificamente sobre os modelos, desde que esses sejam tomados apenas como modelos, tendo em vista os limites explicativos dos mesmos. Caso contrário, se eles têm como objetivo referir-se ao todo da linguagem, transformam-se em ficção cientifica (2003). De acordo com Novaes-Pinto (2006), A análise do processo dialógico e dos recursos alternativos dos quais se utiliza [o afásico] [...] nos revelam muito mais sobre sua afasia e sobre aspectos do 76 Amanda Bastos Amorim de Amorim processamento linguístico e do grau de severidade que a afasia impõe para sua atividade de produção. Destacamos da citação anterior a importância conferida ao estudo dos processos. Segundo Vygotsky (1984), é a analise dos processos - em oposição à tradicional analise dos objetos - que permite a compreensão da essência dos fenômenos. 0 autor defende que essa analise também é objetiva e não menos “cientifica” do que os métodos puramente descritivos de analise dos objetos. Como alternativa às abordagens predominantemente quantitativas, Coudry (198ó/1988) propõe que as alterações de linguagem nas patologias sejam estudadas em situações interativas entre os sujeitos, sendo essas interações as unidades de analise para a compreensão dos fenômenos na normalidade e nas patologias. Essa metodologia possibilita a emergência de enunciados singulares que dão visibilidade precisamente aos processos, como defende Vygotsky (1984) e se assemelha à proposta de Ganguilhem, que postula que, em lugar do uso da média aritmética para se chegar a um valor equivalente à normalidade, seja utilizada a média típica, que indica o que seria a normalidade para um dado sujeito a partir do que tende a ser mais frequente para o mesmo, naquele caso, naquele momento da avaliação. Somente a partir do conhecimento desses dados é possível avaliar os desvios em relação a uma norma. Em outras palavras, seria possível concluir se haveria ou não comprometimento da linguagem ou de outras funções. A visão não-dicotômica dos fenômenos, ou seja, quando entendemos a relação normal/patológico como um processo dinâmico e continuo, possibilita compreender fenômenos patológicos como alterações de processos normais subjacentes, que revelariam a busca dos sujeitos por um estado de equilíbrio, próprio da relação contínua e não radicalmente polarizada entre normal e patológico. 77 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva 1.2.3 Moedas linguísticas Se as questões semiológicas e teórico-metodológicas parecem tão problemáticas, podemos nos perguntar se ha explicação para a sua manutenção. De acordo com Porter (1997: 365), o nome para uma doença serve como moeda linguística, ou seja, como uma forma de viabilizar a comunicação entre médico e paciente: A terminologia médica fornece um bom exemplo das múltiplas funções que a linguagem tem de desempenhar. É um jargão técnico, exclusivo, e ainda assim deve servir para a comunicação (ou, às vezes, a descomunicação) entre médico e paciente, e para possibilitar a este compreender a doença. Ainda segundo o autor (Porter, 1997: 366), [...] ao dar um rótulo ao problema espera-se diminuir a ansiedade da ignorância. A nomeação de doenças envolve classificação, promove o prognóstico e indica a terapia. Como diz o velho ditado, uma doença nomeada é uma doença quase curada. Essa última passagem aponta para uma necessidade que o paciente e sua família têm de obter uma resposta que nomeie e explique a doença. Nos casos que requerem um trabalho interdisciplinar, como no estudo da afasia, seria desejável a comunicação entre médicos e outros profissionais envolvidos, seja na clínica ou na pesquisa (fonoaudiólogos, fisioterapeutas, psicólogos e linguistas). Talvez essa característica - da interdisciplinaridade - seja a principal justificativa para a permanência de uma semiologia já tão antiga. 78 Amanda Bastos Amorim de Amorim Por outro lado, os diagnósticos, quando passam a servir tão somente como rótulo, revelam também um lado perverso. Morato et al. (2002) afirmam que os sujeitos afásicos são vitimas de preconceito linguístico, sendo muitas vezes excluídos dos momentos de interação no contexto familiar ou são mal compreendidos por interlocutores que não são qualificados. Essas questões não são exclusivas do campo das afasias e têm sido abordadas, mais frequentemente, por pesquisadores que se dedicam às dificuldades de linguagem ou de aprendizagem em crianças com ou sem patologias. Em publicação recente, Coudry (2010: 98) afirma que, no Brasil, a frequência com que crianças de sete anos são diagnosticadas com algum “distúrbio” tem aumentado significativamente: Se a criança trocar letras, não escrever ortograficamente, não entender um enunciado matemático ou se distrair durante a cópia da lousa tem algum problema, que logo terá um rótulo de patologia, como dislexia ou o chamado transtorno do déficit da atenção com e sem hiperatividade (TDAH), alteração do processamento auditivo, dificuldade de aprendizagem e, mais recentemente, transtorno desafiador opositor (TD0). Welsh et al. (2007) revelam um lado econômico que afeta diretamente a epidemia de diagnósticos que observamos atualmente: A epidemia de diagnósticos tem muitas causas. Mais diagnósticos significa mais dinheiro para a indústria farmacêutica, hospitais, médicos e advogados. [...] Se, por um lado, uma falha no diagnóstico pode ser objeto de uma ação judicial, por outro não existe qualquer punição para diagnósticos exacerbados. 79 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Com relação ao excesso de patologização, acreditamos que seja relevante citar os trabalhos desenvolvidos desde 2004, quando passou a funcionar, no IEL/UNICAMP, o Centro de Convivência de Linguagens (CCAzinho), um espaço que acolhe crianças com diagnóstico das mais diversas patologias relacionadas às dificuldades com leitura e escrita. No CCAzinho, as crianças são reavaliadas a partir de uma abordagem enunciativo-discursiva e percebe-se, em muitos casos, que elas não têm patologia alguma. Muitas das dificuldades são comuns no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Caso essas crianças não tivessem chegado ao CCAzinho, permaneceriam com o rótulo, mesmo equivocado, o que certamente teria repercussões durante toda a vida acadêmica e social. Um dos exemplos que revelam o estigma que um diagnóstico promove na vida de um sujeito pode ser encontrado em Freire (2005), que realizou um estudo de caso com o sujeito AL, com síndrome frontal. A autora apresenta o caso da seguinte forma (Freire, 2005: 19): AL conta que sempre apresentou dificuldades na escola. Não conseguia ler e escrever como seus pares. Passados os primeiros anos escolares - durante os quais os erros de leitura e de escrita são tolerados - suas dificuldades ficaram mais evidentes. Recorda-se de sua professora que o chamava, publicamente, de “burro”, “indisciplinado” e que batia em sua mão. A família, orientada pela escola, procurou auxilio de um especialista. 0s testes revelaram que AL era “disléxico”. Sem saber como proceder em relação às obrigações escolares e sem condições financeiras de manter um atendimento especializado, a família pouco pode fazer quando AL abandonou os estudos na 7ª série do ensino fundamental. Escrita e leitura se tornaram uma doença que o impedia de prosseguir na vida escolar. 80 Amanda Bastos Amorim de Amorim Nesse caso, em especial, a falha no diagnóstico foi reconhecida somente em decorrência do encaminhamento decorrente da síndrome frontal. Segundo a autora, AL jamais foi disléxico e o trabalho com a escrita - ao qual o sujeito resistiu inicialmente, devido ao estigma foi fundamental para a melhora da autoestima e o engajamento com as atividades propostas. Segundo a autora (Freire, 2010: 136): Dada a multiplicidade de objetivos da diagnose, a avaliação clínica que a produz deve se pautar em praticas sociais que fazem parte da história do sujeito, sob risco de ver o que não existe ou nomear o que só se dá a conhecer em condições ideais. A observação/análise do homem comum/real visa informar que aspectos podem estar interferindo no curso das funções que se mostram em desajuste/desequilíbrio, ponto de partida a ser continuamente revisitado no trabalho clínico. Bordin (2010) indica um problema ainda mais grave: muitas vezes, os diagnósticos são realizados apenas verbalmente e guiados por tabelas ou questionários encontrados em sites como o da ABD - Associação Brasileira de Dislexia. Não raro, são os professores ou os próprios pais que realizam esse “diagnóstico”, enquadram a criança numa categoria e impõem a ela um rótulo. Atualmente, observa-se uma valorização dos diagnósticos obtidos por meio de métodos quantitativos, sejam eles os testes-padrão, as neuroimagens ou associações entre esses dois métodos. Podemos dizer que a metodologia proveniente das ciências naturais é mais bem aceita pela comunidade cientifica. Como a Neurolinguistica é uma área de interface, há um conflito entre a validação conferida pelos métodos quantitativos/estatísticos e as análises qualitativas. 81 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva 1.3 Linguagem e cérebro: relação compreendida a partir de um sujeito real Conforme dito anteriormente, a Neurolinguistica de orientação enunciativo- discursiva surge se opondo à Neurolinguistica tradicional em suas concepções mais fundamentais. Apresentaremos, a seguir, as regularidades conceituais encontradas no corpus da pesquisa que origina o presente artigo, que foi composto por 23 teses, dissertações, artigos ou capítulos de livros desenvolvidos desde a tese de Coudry (1986) e que se situam majoritariamente sob uma perspectiva sócio-históricocultural. Como o primeiro trabalho - Diário de Narciso: afasia e discurso (Coudry, 1986) é aquele ao qual hoje nos referimos como fundador da área, é nele que encontramos as concepções fundamentais: (i) relevância conferida ao sujeito na pesquisa; (ii) concepção de linguagem e (iii) funcionamento cerebral. Percebemos, também, um movimento que se inicia como negação do modelo biomédico, mas não se resume a isso: as pesquisas propõem a mobilização de outros conceitos que, como veremos, passam a dar conta de fenômenos que os modelos tradicionais não abarcavam. 1.3.1 Concepção de sujeito e outras a ela relacionadas Uma das primeiras preocupações que surgem nos estudos - e isso está presente na maioria dos trabalhos da área - é a concepção de sujeito que será mobilizada para dar conta dos aspectos teóricos e metodológicos das pesquisas. Apresentam-se, inicialmente, duas opções extremas e mutuamente excludentes: (i) o sujeito assujeitado - que é falado pela língua e pelos outros, assim concebido em algumas linhas da Análise do Discurso ou (ii) o sujeito fonte do sentido, destacado de qualquer lugar social, histórico ou ideológico. No estudo das afasias, nenhum desses extremos serve adequadamente à pesquisa, pois é necessário, para compreender os impactos na 82 Amanda Bastos Amorim de Amorim linguagem e nos próprios sujeitos, considerar a sua constituição em meio à dimensão sócio-histórica-cultural, bem como no plano individual, único. 0s trabalhos em Neurolinguistica de abordagem enunciativodiscursiva, desde Coudry (1986), negam esses extremos, bem como negam a postura da Neurolinguistica tradicional de apagamento do sujeito e de tudo aquilo de singular que emerge dos dados (Coudry, 2001: 68) No caso dos afásicos, o modo como eles têm sido tradicionalmente avaliados, revela sempre o ponto de vista de quem reproduz um sistema de regras e categorias fixas em que inexiste um lugar para o exercício subjetivo da linguagem. 0 afásico é sempre quem recebe os comandos do sistema e, nesse sentido, não passa pela experiência de constituir-se como locutor, perspectiva de quem produz um discurso sob a cobrança de uma “falta” sob o parâmetro do sistema A partir de Novaes-Pinto (1999), os conceitos bakhtinianos ganharam expressão nos trabalhos da Neurolinguistica de orientação enunciativo-discursiva. Como estão profundamente relacionados entre si, ao pinçar de sua obra um deles, os outros necessariamente vêm junto. Portanto, para compreender em sua obra a concepção de sujeito, por exemplo, seria necessário apresentar o que o autor entende por dialogia/dialogismo, alteridade, identidade e, perpassando essas questões, as noções de ética e de ato responsável. A concepção bakhtiniana de sujeito é adequada ao estudo das afasias porque apresenta uma solução dialética para a questão. Nao se trata, como vimos, nem do sujeito fonte dos sentidos e nem do sujeito assujeitado (Novaes-Pinto, 2009). Sobral (2005a: 22) sintetiza a concepção bakhtiniana de sujeito, caracterizando-a como um sujeito situado: 83 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua construção como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido quanto um sujeito assujeitado. A proposta é a de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido. Dessa forma, quando analisamos os dados sob uma orientação enunciativo- discursiva, estamos considerando o sujeito em situação dialógica, quando é estabelecida uma relação de interlocução e a língua é abordada em seu funcionamento. Segundo Bakhtin, “o ato de fala e seu produto, a enunciação, não podem ser explicados somente a partir das condições do sujeito falante, mas também não podem dele prescindir” (Novaes-Pinto, 2007: 19). A fim de mobilizar a noção bakhtiniana de sujeito, é necessário explicitar algumas das outras que estão relacionadas a ela e como se interligam3. Novaes-Pinto (1999) chama a atenção para a noção de dialogia como fundamental quando tratamos de qualquer conceito bakhtiniano. De acordo com estudos realizados pelo GEGE (2009), “dialogia é atividade do diálogo e atividade dinâmica entre Eu e 3 Como os conceitos bakhtinianos são muito abertos e se interconectam, não é possível defini-los sem mobilizar muitos outros e, assim, entraríamos num loop infinito. 0 GEGe (Grupo de Estudos em Gêneros do Discurso), que vem se dedicando aos estudos da obra de Bakhtin e à mobilização de seus conceitos para diversos estudos, lançou, em 2009, Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. 0 livro traz verbetes que introduzem os conceitos sem, entretanto, pretender esgotá-los (por isso chama-se glossariando, ao invés de glossário). 84 Amanda Bastos Amorim de Amorim 0utro em um território preciso socialmente organizado em interação linguística”, ou seja, essa noção liga identidade e alteridade. Segundo Bakhtin, o sujeito se constitui na interação com o outro - na dialogia - e, frente a esse outro, deve agir de forma responsável (Bakhtin, 2010). 0 0utro tem papel essencial na teoria bakhtiniana, pois é em relação à alteridade que se constitui a identidade. Segundo Bakhtin (2003), “é impossível alguém defender sua posição sem correlacioná-la a outras posições”, pois as identidades são constituídas de contrapalavras, que são discursos outros/de outros. É importante, no entanto, destacar que não é porque as identidades são constituídas na relação com o 0utro e a partir dos enunciados dos 0utros que o sujeito se exime de responsabilidade. Bakhtin (2010) afirma que não há álibi para a existência, para o aqui e agora. À medida que nos aprofundamos nos estudos das obras de e sobre Bakhtin, não há como escaparmos de adotar posições ético-filosóficas em relação ao objeto de estudo. Novaes-Pinto mobiliza a noção de excedente de visão para defender que devemos nos posicionar eticamente frente aos sujeitos: Nosso excedente de visão de linguistas ou terapeutas (ou talvez seja mais adequado assumir que isso seja consequência da visão neurolinguística que temos), guiado por princípios éticos, permite que possamos ao mesmo tempo avançar no conhecimento dos fenômenos, que é um dos objetivos da nossa pesquisa, e ao mesmo tempo nos constituirmos como verdadeiros interlocutores dos sujeitos afásicos. 1.3.2 Cérebro como Sistema Funcional Complexo (SFC) A concepção tradicional de cérebro, privilegiada pela ciência positivista, é constituída por modelos baseados em cálculos estatísticos 85 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva que postulam um cérebro médio, que não corresponde ao cérebro de um sujeito real. Autores que se contrapõem a essa visão e que se tornaram fundamentais nas pesquisas em neurolinguística de abordagem enunciativo-discursiva são Mecacci e Luria. Mecacci (1984) apresenta uma critica contundente à noção tradicional de cérebro e que se relaciona à discussão sobre normalidade e patologia apresentada em 1.2.2: Ha um “outro” cérebro que a ciência não estuda, ou só considera marginalmente. É, em primeiro lugar, o cérebro de cada indivíduo, cada um diferente do outro; e, depois, o cérebro de indivíduos pertencentes a culturas diferentes. [...] A variedade do cérebro dos homens é a fonte do predomínio dessa espécie de animais sobre as outras espécies e a origem das relações sociais e da cultura. A variedade do cérebro humano, porém, é ignorada. Estuda-se um cérebro “normal” que, na realidade, não existe. As pesquisas consultadas, justamente por se interessarem por sujeitos reais, não ideais - ou médios - filiam-se a uma concepção sócio-histórico-cultural também com relação à concepção de cérebro, tal como defendida por Luria (197ó), que propõe que as funções mentais [...] não estão “localizadas” em estreitas e circunscritas áreas do cérebro, mas ocorrem por meio da participação de grupos de estruturas cerebrais operando em conjunto, cada uma das quais concorre com a sua própria contribuição particular para a organização desse sistema funcional. 86 Amanda Bastos Amorim de Amorim As funções superiores não podem, portanto, ser vistas como faculdades isoladas no cérebro, às quais se relacionariam certos grupos bem definidos de células, mas como um Sistema Funcional Complexo (SFC). Segundo essa noção, o cérebro é um sistema dinâmico e flexível, capaz de se reorganizar em casos de lesão cerebral. As suas partes são solidarias e, dessa forma, áreas não tão específicas para uma determinada função passam a colaborar para compensar o trabalho daquela que foi comprometida, princípio da chamada plasticidade cerebral. Se consideramos, portanto, que o cérebro é um SFC, não podemos adotar um modelo que relaciona direta e univocamente determinadas lesões a dificuldades especificas apresentadas pelos sujeitos, conforme a Afasiologia tradicional tem feito. É fundamental ressaltar, conforme afirma Sacks (1997) em entrevista ao programa Roda Viva, que: Dentro de certos limites, a experiência constantemente molda o cérebro e, assim, o cérebro também é um reflexo de experiências, pois as pré-determina. Como resultado, nossos cérebros se tornam pessoais. Pode-se fazer um transplante de coração, de fígado e haver problemas de rejeição, de identidade imunológica entre o coração e o fígado, mas não há identidade pessoal. Por outro lado, não creio que possa haver um transplante de cérebro, porque o cérebro é seu. 0 cérebro é você. Dessa forma, modelos que homogeinizem os sujeitos, tornandoos ideais, portadores de cérebros médios, não se sustentam. Dentre as pesquisas consultadas, aquela que mostra de maneira mais contundente as influências epigenéticas - de natureza sócio-cultural -, é a de CanoasAndrade (2009), que realizou um estudo de caso do sujeito AJ, que apresenta uma afasia fluente progressiva. A pesquisadora somente teve acesso às neuroimagens e aos laudos de exames neurológicos após um ano de desenvolvimento do estudo de caso (Canoas-Andrade, 2009: 7): 87 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Ao tomarmos contato com as imagens e com os laudos dos exames radiológicos, fomos surpreendidas, em primeiro lugar, pela singularidade do caso, que põe em xeque a correlação entre afasia do tipo fluente e lesão posterior. As tomografias revelam lesão mais extensa em região anterior, incluindo a região de Broca. Mais surpreendente ainda é o fato de, apesar dos impactos de AVCs hemorrágicos e isquêmicos, cirurgias de clipagem de aneurismas e atrofias corticais e sub-corticais, AJ continua se constituindo como sujeito social e da linguagem. A autora defende que os elementos ainda preservados na linguagem de AJ se devem ao fato de ele estar inserido em práticas discursivas - frequentando as sessões do Centro de Convivência de Afásicos (CCA) e pelo apoio familiar (Canoas-Andrade, 2009: 136): Tendo em vista o caso de AJ, não é possível contestar os efeitos das interações sociais e afetivas com a família, no grupo do CCA e por meio das intervenções fonoaudiológicas, na plasticidade do sistema nervoso, ou seja, nos processos de arranjos e rearranjos neurais, o que também pode nos ajudar a compreender porque mesmo apresentando tantos comprometimentos cerebrais bilaterais decorrentes de AVCs isquêmicos e hemorrágicos, clipagens de aneurisma e a própria atrofia resultante do envelhecimento, AJ resista como sujeito. Podemos concluir que se AJ não tivesse a família que tem e se estivesse sendo acompanhado nos modelos tradicionais, provavelmente apresentaria um quadro completamente diverso. 1.3.3 Concepção de Linguagem Desde Coudry (1986), os trabalhos desenvolvidos na Neurolinguistica enunciativo-discursiva têm concordado que o estudo das afasias e 88 Amanda Bastos Amorim de Amorim de outras alterações de linguagem não cabe nos preceitos teóricometodológicos formulados pelo estruturalismo e pelo gerativismo. A esse respeito, a autora (Coudry, 2001: 29), afirma que esses modelos teóricos, pelos propósitos particulares que os animam, tiveram que conceber-se mediante recortes epistemológicos que reduzem a complexidade da linguagem e a multiplicidade de seus fenômenos. Não podem, pois, ser aplicados diretamente a um domínio como o da neurolinguistica, muito menos fornecer instrumentos para uma atuação na prática de avaliação e acompanhamento de sujeitos afásicos. A concepção de linguagem que norteia os estudos em Neurolinguistica de abordagem enunciativo-discursiva é explicitada por Franchi (1977: 33): Não há nada imanente na linguagem, salvo sua função criadora e constitutiva, embora certos “cortes” metodológicos e restrições possam mostrar um quadro estável e constituído. Não há nada universal salvo o processo - a forma, a estrutura dessa atividade. A linguagem, pois, não é um dado ou um resultado, mas um trabalho que “dá forma” ao conteúdo variável de nossas experiências, trabalho de construção, de retificação do “vivido” que, ao mesmo tempo, constitui o simbólico mediante o qual se opera com a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em que aquele se torna significativo. Um trabalho coletivo, em que cada um se identifica com os outros e a eles se contrapõe, seja assumindo a história e a presença, seja exercendo suas opções solitárias. 89 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Destaca-se, assim, a concepção de linguagem como uma atividade constitutiva do sujeito e do próprio sistema da língua. Segundo Coudry: “não se pode escamotear o sujeito, fonte de origem dos dados, com quem vou constituir o modo de avalia-lo e acompanha-lo, em sua peculiaridade e especificidade” (2001: 195). Com relação aos efeitos desta concepção no acompanhamento fonoaudiológico, no trabalho com a linguagem, Fedosse (2008:22) afirma que: são raros os profissionais que assumem a linguagem como atividade constitutiva que sustenta e que é sustentada na interação social, a maioria deles concebe a linguagem como código de comunicação; o sujeito lesionado cerebral é visto como aquele que tem dificuldades ou que não consegue mais falar ou escrever segundo as regras gramaticais da língua. A autora realizou o estudo de caso do sujeito SL, um poeta afásico que escrevia antes e depois do episódio neurológico. É um caso exemplar dessa noção de linguagem como trabalho. Considerações Finais Ao longo deste artigo, buscamos apresentar reflexões acerca de questões epistemológicas, tomando por base as pesquisas em Neurolinguística desenvolvidas no IEL/UNICAMP nos últimos 25 anos. Na base dos grandes problemas encontrados em aparatos teóricometodológicos tradicionais estão as dicotomizações, ferramentas didáticas que visam simplificar fenômenos complexos os quebrando em partes menores, conforme indica Cytowic (2002), e resultam em categorizações que se configuram como moedas linguísticas para trocas entre profissionais, como apontou Porter (1993). 90 Amanda Bastos Amorim de Amorim Os estudos de casos desenvolvidos ao longo da história da Neuropsicologia como ciência possibilitaram verificar que, por exemplo, apenas cerca de 50 a 60% dos pacientes com lesão na área de Broca apresentam “afasia de Broca persistente” e apenas 30% dos pacientes com lesão na área de Wernicke são afásicos de Wernicke crônicos. Esses dados são trazidos por Dronkers (2000, apud Mansur & Radanovic, 2004). Segundo o autor, há ainda aproximadamente 15% de pacientes com afasia de Broca crônica que não apresentam lesão na área de Broca e 35% com afasia de Wernicke que não possuem lesão na área correspondente. Tais dados apontam para a ineficiência de uma correspondência direta entre as alterações cerebrais e os itens semiológicos. Dessa forma, denunciam a ineficácia da semiologia e, sobretudo, dos modelos descritivos tradicionais. Uma noção de cérebro como um sistema funcional complexo não pode ser comportada por dicotomias. Pelo contrário, como o próprio nome sugere, as funções linguístico-cognitivas estão imbricadas e só podem ser explicadas em suas relações. As pesquisas realizadas sob orientações sócio-histórico-culturais contribuem para resgatar autores que não são privilegiados pelos estudos neurolinguisticos tradicionais (como Luria, Jakobson e Freud) e para indicar contraexemplos e incompatibilidades entre concepções tradicionais e o funcionamento da linguagem. Não é tarefa simples, entretanto, fazer que essas reflexões cheguem aos espaços onde a semiologia e os aparatos teórico-metodológicos tradicionais estão fortemente arraigados - conforme discutimos ao falar da Clínica como uma instituição e das relações de poder nela implícitas. Tais termos se constituíram como moedas linguísticas para a troca de informações entre profissionais e, portanto, qualquer mudança - tanto a ressignificação quanto a reformulação de itens semiológicos, modelos e métodos - são processos lentos, porém imprescindíveis para o estabelecimento e a validação da Neurolinguística de abordagem enunciativo-discursiva em tais espaços. 91 Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: João e Pedro Editores, 2010. CANGUILHEM, G. 0 normal e o patológico. 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Neste trabalho, em especial, buscarse-á observar como enunciados contrajuntivos opõem partes de enunciado, quando a temática se refere à corporalidade física do homem. ABSTRACT This study is dedicated to the observation of ordinary discourse (a type of discourse present in the discursive order, in the reiteration of its practices, in the triviality, in the ephemerality, and in the injunction for the maintenance of the game) by taking a specific point of view: the analysis focuses on utterances constructed with contrajunctive connectives, in particular, the adversative mas (but). The aims are to elucidate what these connectives, by means of discursive transversality, reveal about the interdiscourse with the established imaginary; to retrieve what was previously said, produced before, elsewhere and independently, which perpendicularly crosses the discourse produced in the deictic axis of the here and now; and to access the supporters that guide the joints between parts of an utterance. In particular, this study aims at examining how contrajunctive statements oppose propositions when the topic refers to the physical embodiment of man. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 97-124, jul./dez. 2013 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal PALAVRAS-CHAVE Contrajunção. Corporalidade. Discurso Ordinário. Transversalidade. KEYWORDS Contrajunction. Embodiment. Ordinary Discourse. Transversality. Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 1999, p. 18). Introdução Os enunciados com operadores contrajuntivos1 possuem dois blocos de sentido: um é o tema e outro a negação da conclusão, se não houvesse a contradição. Um enunciado contrajuntivo encadeia as partes A e B de um enunciado, destinando-se uma delas a negar a conclusão que a outra torna possível. Busca-se, pois, elucidar o que permite as conclusões de A, negadas por B. Frente à contrajunção, dada a parte A do dito e o suporte em crenças, o interlocutor pode fazer inferências que, se não forem negadas, são A noção de operadores contrajuntivos situa, quase que obrigatoriamente, a reflexão no terreno da Pragmática. No entanto, aqui, apesar do recurso a esta categorização, não se quer colocar a discussão neste lugar, mas no da Análise de Discurso (em sentido amplo), pois se entende que o locutor pertence a uma conjuntura social e histórica, é clivado pelo inconsciente e é afetado por formações discursivas que o antecedem. 1 98 José Carlos Cattelan possíveis. Sendo dito A e havendo noções comuns, ele pode concluir B, pois o encadeamento sobre C, à sombra, como evocação lateral, indica conclusões possíveis. Entretanto, na contrajunção, dito A, há uma conclusão que não pode ocupar o espaço de B, pois não é válida, embora uma “verdade” seja ratificada. No limite, a parte encabeçada pelo contrajuntivo cria uma ressalva tênue frente a uma crença dogmática. 1 O discurso ordinário: um estudo [do] trivial Tem-se, assim, o ângulo pelo qual o objeto de estudo (corpo) será focado. Além disso, este estudo se origina de uma pesquisa que toma o Discurso Ordinário como tema. Para a sua definição, um dos apoios vem da distinção feita por MAINGUENEAU (2008) entre tipos de discurso, “relacionados a certos setores de atividades da sociedade: publicitário, administrativo, político etc., com as subdivisões que quisermos” (p. 16-17), e gêneros do discurso (grifos do autor), “entendidos como dispositivos sócio-históricos de comunicação, como instituições de palavras socialmente reconhecidas” (p. 17). Para o autor, “tipos e gêneros são tomados em uma relação de reciprocidade” e “a noção de tipo de discurso é heterogênea, trata-se de um princípio de agrupamento de gêneros que pode corresponder a duas lógicas diferentes: a do copertencimento a um aparelho institucional e da dependência de um mesmo posicionamento” (p.17) (grifos do autor), mas a distinção ajuda a situar este tipo discursivo. Quanto aos tipos de discurso, o autor os relaciona a setores de atividades da sociedade, o que os localiza numa esfera envolta por compromissos e cria tipificações limitadoras: o discurso jurídico, o publicitário, o econômico e o pedagógico, relacionando-os à atividade social que os produz, faz circular e os legitima: o co-pertencimento, aqui, refere-se a uma instituição. Isso não ocorre com o discurso ordinário, pois ele não tem uma instituição que o ancore, já que se serve de todas elas e as faz suporte, rompendo sua rigidez monolítica, usando-as por um tempo e as 99 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal deixando a seguir. A sua unidade não vem de um suporte institucional, mas do seu uso, à revelia de autorização. O discurso ordinário não é jurídico, religioso ou político, mas se encontra entremeado aos corpora que emanam deles. Ele aparece na voz do padre, sem ser religioso; na do juiz, sem ser jurídico; na do candidato, sem ser político. Mas, apesar de camaleônico, pode ser encontrado, também, nas conversas informais e nos diálogos efêmeros. O discurso ordinário também não possui um posicionamento, como o discurso socialista, neoliberal, católico ou médico. Ele se alimenta de vários, pois reafirma enunciados sobre temas, juízos e valores. A unidade do discurso ordinário vem da ordem a que pertence e da sua contribuição para reforçá-la. O discurso ordinário não se baseia num aparelho institucional ou num posicionamento, mas transita pelas instituições, usando-as. Sua sobrevivência é parasitária e se vale de posicionamentos múltiplos; às vezes: paradoxais. Sua unidade vem da ordem que o habita e que impede que malhas sejam rompidas. Se o que constitui um tipo discursivo é o fato de pertencer a uma atividade social, o discurso ordinário não seria um tipo. A sua unidade não provém de instituição social, mas da atitude renitente de manutenção de posicionamentos. Embora pertença à atividade social, não está circunscrito a uma. Ele habita esferas diferentes, indica crenças de paragens distintas e se mescla aos discursos canônicos. Ele tira seu sustento das esferas existentes. A unidade do discurso ordinário (como concebido aqui) vem da ratificação das crenças do imaginário2: das verdades, desejos, sonhos, medos e tentações que perduram para além do gesto fundador. Ele Apesar de os conceitos de imaginário e ideologia poderem (e deverem) ser tidos como distintos, a aproximação entre eles não parece algo inusitado ou inconciliável, já que o primeiro, conforme Castoriadis (1982), é o responsável pela criação da segunda. Dito de outro modo: tudo que é ideológico tem uma origem calcada no imaginário, mas nem tudo que pertence ao imaginário é necessariamente ideológico: é uma questão de escopo e primazia. Em face da delonga que a discussão traria, dá-se o tema como estabelecido. 2 100 José Carlos Cattelan atualiza vozes cuja autoria se perdeu. Insidiosas, elas fazem valer o que afirmam, criando um hiato entre o que é e o que dizem ser. Ele reitera a ordem, reafirma o “imutável”, impõe o “desejável” e instila “crenças”. O discurso ordinário se vale de uma profusão de dispositivos sóciohistóricos e de palavras socialmente reconhecidas. Ele se acha no anúncio que ratifica um valor social; no aviso que reafirma uma crença sobre a higiene; no turno de fala que reitera a obrigação do professor de cumprir o horário; na afirmação da criança que impõe que a mãe atenda a uma obrigação; nas “sentenças” na parede da igreja dizendo como a criança deve se comportar; na conversa de bar em que o que é ser homem é reafirmado; na propaganda em que a imagem de mulher é confirmada; na carta em que o modo de ser filho é estipulado. Os gêneros utilizados podem ser qualquer um, pois ele não tem pudor de fazer uso de gêneros “impróprios” para validar a ordem estatuída. Mas, há um lugar peculiar para que ele seja observado: a réplica curta do diálogo cotidiano3. Ele se imiscui em suas entranhas e faz com que posicionamentos pareçam peculiares e deneguem a força anímica e o imaginário que o assombram. Ele se abastece da ordem e da injunção e as cadeias aprisionadoras, às vezes, não estão ajustadas para impedir que penetre por suas frestas. O discurso ordinário não tem território, por não ter uma unidade que o renda ou espaço ‘pré-delineado’ (p. 16) que o circunde. Ele se revela pelo uso de espaços, tempos e lugares diversos. Ele é o discurso da “lei”, da “norma” e da “prescrição”. Parece mais adequado considerar o discurso ordinário como o princípio de fixação do pensável, dizível e “sensível”. A unidade que o constitui conjuga trivialidade e injunção, efemeridade e tradição, fugacidade e memória, evanescência e durabilidade: a sua força vem de outro lugar; se aparece, traz à memória um modo de ser aceito e praticado: às vezes, pranteado. 3 Esta réplica ocorre em interações face a face, mas também em reproduções de nível secundário. Mas, substancialmente, elas não são distintas, embora se deva reconhecer, é óbvio, que, no segundo caso, há uma enunciação sobre a enunciação, uma voz sendo sobredeterminada por outra, enquanto, no primeiro, a enunciação é oriunda de primeira instância. 101 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal Cabe considerar, ainda, a lição de MAINGUENEAU (2008) de que a unidade hipotetizada impõe apresentar “hipóteses de trabalho argumentadas” para justificar a associação de “diversos conjuntos discursivos em uma mesma configuração sem, porém, reduzir sua heteronímia” (p. 20), as quais se busca delinear, para ter um parâmetro de concepção que selecione o que pertence ao (des)território constituído. Se um enunciado como nossa cozinha está à sua disposição para uma visita pode ser reunido a outro como ela é mulher, mas é competente, ou a outro como eu não tenho dó. Eu falei, minha mãe falou, até a psicóloga falou ou a outro, ainda, como o pote de mel quebrou, isto é possível, pois as suas características são a trivialidade e a efemeridade que agem de modo imperativo e indiciam a aceitação e a punibilidade da transgressão. É do discurso ordinário o que pertence à ordem do discurso, contribui para ratificá-la, ocorre em situações triviais4, pouco se vale de pompa ritual e faz o jogo definido. Ele dita o que deve ser pensado, dito e sentido: atende à ordem; sedimenta crenças e valores; ratifica o imaginário; é efêmero, trivial e corriqueiro: um sopro que simula apatia; nega sua importância: sua efemeridade revela sua durabilidade; e, por fim, atende à estagnação. 2 Circunscrição da motivação do estudo Vê-se, pois, que o discurso ordinário é escapadiço, pois não é um tipo pautado numa instituição ou posicionamento. Deseja-se ter mostrado que a sua unidade advém do compromisso com o imaginário e com a efemeridade. Objeto de contornos instáveis, pode ser concebido como um sistema de dispersão que aborda temas infindos e, ao fazê-lo, revela o solo que o alimenta. O discurso ordinário revela que o que o sustenta se encontra no terreno do pressuposto, interdito ou não sabido e, se não for abordado, continuará pertencendo ao terreno do desconhecido e não combatido. 4 De primeiro ou de segundo nível: produzidas ou reproduzidas. 102 José Carlos Cattelan Ignorar o que ancora os enunciados é “ignorar a eficácia material do imaginário. O imaginário [seria], então, como o equivalente do irreal e reduzido a um efeito psicológico individual de natureza ‘poética’” (PÊCHEUX, 1995, p. 119). Os alicerces da enunciação que criam o dizível são valores, crenças, concepções e um solo de partilha que revela a “cumplicidade entre o locutor e aquele a quem ele se dirige, como condição de existência de um sentido” (p. 114) (grifo do autor). As citações de PÊCHEUX mostram as razões para o discurso ordinário ser estudado. A primeira se refere ao fato de que o imaginário, às vezes, ligado à imaginação criativa, deveria ser concebido como regulador da atividade social. As atitudes que se devem ter, com as suas sanções, mais do que resultado de um conhecimento racional, que revela o mundo em transparência, resultam da autoinstituição imaginária da sociedade, que, tendo alcançado uma fase de cristalização, denega a historicidade que a constitui. Criando efeitos de naturalização e de ontologização, o imaginário anula a sua força motriz e pretende que o movimento típico seja a estagnação: é esse paradoxo que o torna eficaz. A segunda remete à questão de que a desistoricização demanda “uma espécie de cumplicidade” entre os interlocutores e pede a pressuposição de um solo de valores, mesmo que ele ocorra no terreno da inconsciência; talvez, por isso, o imaginário tenha a eficácia esclerosadora que possui. Age-se como se, embora não se saiba de onde vêm conceitos e noções, tomando por natural o costume: “conduta inercial, habitual e induzida” (THOMPSON, 1998, p. 14). Para o autor, as rodas do costume regulam os homens, levando-os a “fazer o que sempre fizeram”. Para isto, é preciso que os locutores, sem saber, partilhem um imaginário e contribuam para que ele se reforce e dite o que pensar. O discurso ordinário revela fragmentos do imaginário. Nele, trivial, corriqueiro, espontâneo, “oral” e simples, o solo que o sustenta pode ser detectado. Nele, encontram-se traços “de um inconsciente ao mesmo tempo coletivo e individual, traço incorporado de uma história coletiva 103 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal e de uma história individual que impõe a todos os agentes, homens e mulheres, seu sistema de pressupostos imperativos” (BOURDIEU, 1999, p. 70). Um enunciado se ancora num conjunto de pressupostos, mas eles ocorrem em silêncio, pois, já que estão “acordados”, não precisam ser enunciados: participam do “conhecimento”. Concorda-se que é assim porque sempre foi assim. O estudo do discurso ordinário deve revelar bases imaginárias do dizível, que CASTORIADIS (1982, p. 154) considera como “alguma coisa ‘inventada’ – quer se trate de uma invenção ‘absoluta’, ou de um deslizamento, de um deslocamento de sentido”. Para ele, os locutores se pautam no imaginário, que produz a alienação, ou seja, “a autonomização e a dominância do momento imaginário [...] (frente) à sociedade” (p. 159). O discurso ordinário revela traços desses processos e permite achar “o passado vivido como presente, os fantasmas mais poderosos do que os homens de carne e osso” (p. 160). A razão para o discurso ordinário ser objeto de estudo se deve ao fato de se alicerçar num imaginário limitador, que impõe as condições do discurso e do silêncio, sendo preciso interrogá-lo sobre suas condições, para que o não-dito seja desencavado. Há um modo de o imaginário que impõe o discurso ser combatido: apreender os princípios que ratifica e confirma nos enunciados triviais. Trata-se de tirar-lhe a autonomia, revelar suas invenções, interrogá-lo sobre sua força, amenizar sua eficácia, revelar a cumplicidade em que se ancora; trata-se de desarmálo, fazendo com que os mortos deixem de se apoderar dos vivos. 3 O imaginário em réplicas de relações dialógicas Para BARTHES (2000, p. 46), “meu corpo é bem mais velho do que eu, como se conservássemos sempre a idade dos medos sociais com os quais o acaso da vida nos pôs em contato”; para BOURDIEU (1998, p. 38 - grifos do autor), “tudo leva a crer que as instruções mais 104 José Carlos Cattelan determinantes para a construção do habitus se transmitem sem passar pela linguagem e pela consciência, através de sugestões inscritas nos aspectos aparentemente mais insignificantes das coisas” e “as práticas da existência comum são carregadas de injunções tão poderosas e tão difíceis de revogar por serem silenciosas e insidiosas, insistentes e insinuantes”. Assim, nas réplicas curtas de relações dialógicas, vozes imemoriais se imiscuem, revelando que o locutor é porta-voz de enunciadores. Nos enunciados curtos do cotidiano, de um modo transversal, estão vozes que atravessam os séculos. Este estudo busca analisar réplicas curtas de relações dialógicas e apreender o que se pensa para dizer o que se diz. Entende-se, com THOMPSON (1998, p. 14), que “Os homens professam, protestam, comprometem-se, pronunciam grandes palavras, para depois fazerem o que sempre fizeram. Como se fossem imagens mortas, instrumentos movidos exclusivamente pelas rodas do costume”. Um exemplo é o enunciado de um senhor que, ao apresentar um vizinho ao outro, o fez afirmando “Este é o João: ele é professor, mas é um cara legal”. Grosso modo, ele produziu dois enunciados, unidos pelo mas. Há, porém, outro enunciado (professores não são legais) que aceita a contrajunção; sem ele, o discurso não seria proferido. Este enunciado ajuda a ilustrar o discurso ordinário, o gênero réplica curta de relações dialógicas e o estudo que se pretende realizar: desvendar parte do solo imaginário que ancora os discursos. Ele permite afirmar que este solo imaginário perpassa os discursos, sem o locutor ter consciência, pois, quando o professor indagou o que o outro pensava dos professores, a resposta foi: “são necessários para que a população tenha educação”. Contradição, falha de raciocínio, ingenuidade? A lacuna vem do descompasso entre o que se sabe que se sabe e o que não se sabe que se sabe, mas que, embora não se saiba, atua sobre o discurso. Pensa-se que esse estudo se justifique, porque contribui para perceber crenças que se tem sem saber que se é constituído por elas. Não 105 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal se pretende a desalienação, pois “o fato de conhecer-se como tal não faz [o homem] sair de seu modo de ser, como dimensão do fazer socialhistórico. Mas pode permitir-lhe ser lúcido a respeito de si mesmo. O que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar o que fazem e saber o que pensam” (CASTORIADIS, 1982, p. 14). O que se busca é a elucidação de aspectos do imaginário que sustenta a sociedade, a percepção de por que se pactua com eles e a quem tal conivência beneficia. A aposta é que se pode dar conta dos valores que se professam e optar por mantê-los, mas, se as atitudes se pautarem neste grau de percepção, ter-se-á algo de autonomia. Trazer à luz princípios discursivos contribui para que o homem se torne mais lúcido, no sentido de saber o que lhe foi dito. “Nada é sagrado; tudo pode ser dito” é o título de um livro de VANEIGEM (2004), o que não significa que, tendo sido dito, deva ser aceito; a premissa é a de que tudo deve ser dito para ser combatido. Há, pois, um tipo discursivo que implica, para BAKHTIN (1992, p. 279), “uma esfera da atividade humana relativamente estabilizada”, com organização, temática e composição mais ou menos fixa. Pode-se supor que ele remete às interações face a face, em primeiro ou segundo grau. Outra hipótese se refere ao discurso ordinário ter um solo comum de crenças para que o silêncio se transforme em profusão de enunciados. Outra, ainda, refere-se ao fato de afirmar que, entre a materialidade do texto, o jogo dos significantes, a estrutura resultante e o imaginário cultural, há uma relação intrínseca e constitutiva. Mas a hipótese maior a ser considerada é que, nas atividades verbais cotidianas, podem ser percebidas crenças que orientam os discursos sem os envolvidos perceberem e, se não se percebe o imaginário que dita o que se deve dizer, o discurso continuará pautado no que julga a verdade e a forma adequada de enfocar o mundo. Os enunciados ordinários levam a perceber as premissas de crença que os sustentam. 106 José Carlos Cattelan Manipulação, mistificação, mitificação, estereótipo, arquétipo, ilusão, falsa crença, ideologia, representação e conspiração são termos que a linguagem cotidiana usa para o fenômeno. Cada um aponta para um descompasso entre o que se diz ser e o que é. Não é neste prisma que se pretende se colocar, já que estes conceitos supõem uma verdade ao fundo, como se o locutor soubesse o que é e o que se espera que seja, vivendo papéis que não se relacionam ao seu “verdadeiro” eu. Pretendese perceber quais são as forças que lhe permitem sair do silêncio. Trata-se de estudar o discurso ordinário por meio do gênero “réplicas curtas de relações dialógicas”, sob a ótica da Análise de Discurso, e compreendêlo quanto à sua sustentação imaginária, já que o homem não se iça do pântano pelos próprios cabelos. Os enunciados, ouvidos no que apagam porque tomam como evidente, desencravam-se crenças que produzem compreensões e negam a atividade que as gerou. Pode-se trazê-las à tona por meio da análise dos dizeres das ruas, dos bares e dos lares; dos enunciados que se proferem sobre os corpos, o tempo e o espaço; dos escritos que se encontram em placas, banners... 4 Mas, e o Imaginário? Em Semiologia Literária, no Colégio de França, BARTHES fez uma afirmação programática que permite um projeto maciço de pesquisa. O francês (1997, p. 14) dizia: “a língua como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. A tese, levada à radicalidade na Aula, alerta que os recursos da língua se explicam à luz dos grupos sociais e das concepções culturais que os afetam. Para ele, deve-se orientar o olhar para a maneira de produzir os enunciados, pois o modo produz efeitos de sentido. Poder-se-ia, assim, ter uma diretriz para um programa de pesquisa: por que se diz o que se diz 107 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal do modo que se diz? Tem-se, por meio da atividade, acesso à “cultura” de um grupo social. É o que se objetiva aqui, em relação ao uso do mas, quando ele articula enunciados. Neste estudo, observa-se esse operador sob a ótica discursiva, analisando-o quanto ao fato de unir enunciados contraditórios (que contradição é essa, já que os enunciados articulados não parecem contraditórios?) e à possibilidade de perceber se o seu uso permite acesso à parte de um imaginário cultural. 4.1 Sobre a natureza contra-silogística do contrajuntivo Um lugar que denuncia que a civilização ocidental é clássica e, logo, lógica e (pretensamente) racional reside no funcionamento dos operadores argumentativos. É possível perceber o silogismo que os sustenta, mesmo que a articulação crie conexões de outra natureza. Seja por meio do idealismo platônico ou do empirismo aristotélico, os raciocínios revelam uma atitude “racional” que, às vezes, não partilha da natureza “conceitual” que aparenta ter. Os preconceitos, as fofocas, os chistes e as gafes mostram a busca da submissão do mundo a uma ordem canônica. É o que ocorre com os adversativos: a ressalva que fazem se pauta num silogismo implícito que evidencia um caso sobre o qual a regra não se aplica, ratificando-a para os outros casos. A contrajunção possui um princípio imaginário que faz com que, afirmando A e sabendo C, o locutor profira B, para impedir que o interlocutor, partícipe da comunidade, aplique o silogismo canônico, evitando deduções que faria em outras situações. Uma reflexão contrajuntiva se ancora num encadeamento silogístico, evitando que, num caso, a norma social seja aplicada. As partes de enunciados com operadores contrajuntivos não invalidam regras gerais, mas as tornam ainda mais rígidas. Elas indiciam que, num caso, a implicação “dedutiva” não deve ser feita, pois não se aplica ao caso excedente. Os contrajuntivos têm uma natureza contrassilogística, já que o silogismo que os ancora deve ser negado em, pelo menos, um 108 José Carlos Cattelan caso. Isto revela um perfil paradoxal da contrajunção, já que, enquanto nega a aplicação da norma, ela a ratifica em bem maior extensão. Os enunciados contrajuntivos, dada a sua natureza paradoxal, explicitam por que um caso contrassilogístico não ratifica um silogismo normalizado. Observando em que um adversativo vai contra a crença geral, acede-se a um princípio do imaginário. Aqui, pretende-se fazê-lo sobre como a corporalidade é percebida: e exigida: este é objetivo específico e geral deste estudo. 5 A contrajunção e o corpo anormal Como os enunciados não definem o corpo normal (afirma-se o que ele não deve ser apenas), mas se referem aos equívocos da corporalidade indigna, o foco recairá sobre os preceitos que se referem ao corpo indesejável, não sancionado pela coletividade. Este estudo observa o discurso ordinário, que atende à ordem discursiva, reitera práticas, é trivial, é efêmero e coopera com a injunção à manutenção do jogo, fazendo-o sobre enunciados contrajuntivos, em especial, com o mas adversativo, buscando elucidar o que revelam sobre o interdiscurso com o imaginário, resgatar o saber que travessa o discurso e ter acesso a suportes que organizam as articulações. Em especial, observar-se-á como enunciados contrajuntivos opõem partes de enunciado sobre o corpo. Os enunciados provêm de fontes heterogêneas e o seu liame se dá pela pertença ao discurso ordinário e ao tema em foco. Eles são “ordinários” por atenderem aos requisitos e não por chegarem ao interlocutor direta ou indiretamente. (A) Num episódio da série Two and a Half Man, Alan discute com o irmão, Charlie, sobre como deve agir com a namorada, já que pretende terminar o romance. Durante o diálogo, ocorreu a troca de turnos transcrita a seguir: (1) – Ela tem alguma foto comprometedora? – Há uma em que estou nu, mas de capa e máscara. 109 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal Alan se refere à nudez corporal que seria um problema (uma foto comprometedora), caso viesse a ser pública e fosse relacionada ao portador do corpo nu, o que indica que a nudez pode existir em espaços fechados, mas não pode ser revelada, sob pena de comprometer quem a mostra por “atentado violento ao pudor”. Ratificando o princípio de que a nudez é penalizável (talvez por isso quem posa nu para revistas denomina essa atividade de nu artístico), Alan revela que, na foto, ele veste uma máscara, o que evitaria o problema, pois não seria relacionado à nudez exibida. Alan ratifica o preceito de que, em público, o corpo deve estar coberto (ditame vivido de modo radical por culturas islâmicas) e não pode ser objeto de apreciação, estranhamento ou escândalo: pudor. A falta de ocultação do que é íntimo se instala na zona do impuro, do imoral e do pecaminoso, uma vez que toda forma de nudez remete à sensualidade, ao erotismo e à sexualidade: tema de tabus e preconceitos. (B) Na revista Caras, número 14, ano 16, edição 804, de 3 de abril de 2009, Nathalia Timberg, falando sobre a vida de artista e as opções que essa escolha profissional teria imposto, disse: (2) Nunca quis ter filhos. Foi uma escolha minha. Mas tenho uma família unida e amigos. O foco incide sobre a obrigação de a mulher ser mãe e não poder deixar de cumprir a “vocação” para a maternidade. A atriz indica uma opção inaceitável, que a opção natural seria ter filhos e que não deveria ter uma família unida e amigos, pois essas são sanções aplicáveis à mulher que opta pela não maternidade. O amparo de crenças dita que deveria, por ser mulher, ter filhos e não o contrário. É este suporte que permite as relações que ela realiza, fazendo-o como forma de poder negar que a implicação “lógica” valha para si, pois, ao contrário de outras que optaram por não ter filhos, ela tem uma família estruturada e amigos. 110 José Carlos Cattelan Dado o modo como a locutora encadeia o enunciado, pode-se afirmar que o preceito social sobre a mulher ter a obrigação de ser mãe é ratificado, não se aplicando ao seu caso, o que justifica o contrajuntivo. A mulher, cuja opção foi oposta, parece ser portadora de uma incompletude que se deve ao fato de indicar alguma rebeldia, com isso, deixando de gozar dos “benefícios” que as bem comportadas recebem como prêmio. (C.1) No corredor de uma universidade, em 17 de julho de 2008, durante a troca de turnos de dois docentes, dentre outras coisas faladas, o foco de atenção incidiu sobre o novo estagiário. Parte do diálogo ocorrido aparece transcrita a seguir: (3) – A estagiária Priscila saiu. Entrou um moço no lugar dela. – Eu vi! – Você viu que ele é estrábico? – Mas parece bem gente boa: ele é bem solícito. Neste caso, o tema se refere a uma questão física, traços que o corpo apresenta sem que o portador os tenha escolhido. O estrabismo do estagiário é congênito, o que não o desculpa, pois se aplica uma sanção sobre o defeito físico. A contrajunção se justifica, na medida em que o diálogo toma a anormalidade física como problema que teria consequências sobre as atitudes e os comportamentos: como se, entre questões de ordem física e moral, houvesse uma relação lógica. O encadeamento silogístico pode ser explicitado como segue: o preceito geral de crença é pessoas estrábicas não são gente boa e nem são solícitas. O estagiário apresenta estrabismo. Ele seria, pois, uma pessoa antipática. Mas o silogismo é contradito, pois o estagiário foge às expectativas sobre pessoas que têm um defeito físico. Percebe-se como, amparando o locutor, existe um princípio de crença: perfeccionista (seria um exagero chamá-lo de nazista?) que exige que os corpos sejam perfeitos. Como “os olhos são os espelhos da alma” 111 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal e “quem que não sustenta o olhar do outro é falso”, parece justo inserir o estagiário no caso das pessoas que não têm uma relação interpessoal agradável. (C.2) O diálogo a seguir ocorre entre Leda e Alceo, no filme The Stones Merchant, à 1:26’00. A discussão incide sobre Leda ser amante de Numiat Ulah, envolvido com o fundamentalismo e, em tese, ser um terrorista e suicida. Alceo foi vítima de uma mina e perdeu as duas pernas, tornando-se aleijado. (4) – Leda, olhe para mim, olhe para mim, por favor. Sou só meio homem. Você está fugindo com um terrorista. O mercador está envolvido com a Al Qaeda. Mas não posso impedir uma mulher linda como você de fugir com outro homem. – Não é verdade. Só diz isso porque está com ciúme e porque não sabe lidar com a situação. A impossibilidade de evitar que Leda fuja com Vicedomini se deve a Alceo ser só meio homem e não poder impedi-la de fugir com um terrorista que está envolvido com a Al Qaeda. A relação entre estes encadeamentos revela a resignação frente à imperfeição física. A impotência adviria da condição física que o faria renunciar à mulher, por não ter a força necessária para retê-la nem a beleza física que poderia impedir uma mulher linda como [ela] de fugir com outro homem. Alceo possui duas limitações para ser marido e homem: tem um corpo mutilado sem a beleza necessária. A oposição contrajuntiva se torna plausível, quando se percebe que considera a fuga da normalidade física uma deficiência que impede o homem de reter a esposa, por não possuir o padrão de beleza “desejável”. A imperfeição física impediria atividades que demandam força e impediria a realização afetiva. A relação contrajuntiva de Alceo é uma entoação de resignação que condescende com a norma. Ele assume uma impotência que deriva da sua condição física e que está atrelada às duas rupturas em relação à 112 José Carlos Cattelan “normalidade”. Se homens pela metade e feios não podem ter prazeres, é previsível a aceitação passiva de Alceo. (C.3) Em 3 de agosto de 2009, às 22’15, no canal 32 da Warner Bros, em The Mentalist, enquanto se investigava a morte de um homem carbonizado, a mulher, à entrada de Thommy, que tinha problemas psíquicos, proferiu o seguinte enunciado: (5) – Ele é deficiente, mas muito independente, graças a Deus. Neste caso, aborda-se a deficiência psicológica ou cognitiva. Thommy, que finge querer um pedaço de bolo, é o assassino que simula ser deficiente, ter distúrbios de maturidade e receber tratamento distintivo, em virtude da suposta debilidade que o marginaliza e o põe sob cuidados especiais. Como se percebe, o enunciado não atribui uma denominação ao problema: Thommy é deficiente. Assume-se que a insuficiência é um problema que repercute sobre o caráter. Pela falta de nome técnico, o locutor se refere a toda e qualquer imperfeição que remeta a alguma insuficiência frente ao padrão humano normal e espera que todos atendam ao que esse padrão estabelece. Que o portador escolhesse atender ao padrão não importa, quando se trata de discriminar os que não se encaixam no modelo. A deficiência de Thommy é a causa para ser dependente e a aplicação do silogismo o coloca como precisando de tratamento, menosprezandose as possibilidades, se a relação se baseasse na confiança. O discurso revela a arrogância da normalidade, que impõe a expectativa do mundo. No episódio, o rapaz simula ser deficiente, para tramar assassinatos para vingar um amigo. Seja pelo isolamento dos imperfeitos fisicamente ou dos que portam insuficiência psicológica, a normalidade fixa limites entre quem pode viver em paz (em silêncio), embora sob vigilância, e aqueles que devem ser regulados, discriminados, distinguidos, controlados e alertados sobre a fuga à ordem. Narcisismo (e nazismo) é o que conduz as apreciações 113 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal valorativas, impondo que tudo se faça à imagem do mesmo, para evitar a ameaça que a diferença representa para a fraternidade convencional. (D) O enunciado a seguir ocorreu num almoço familiar, em 3 de fevereiro de 2008, quando alguém falava sobre a viagem. Passando por Santa Catarina, ele teria visitado um parente seu. (6) – Eu não vim direto. Parei em Chapecó. Tenho uma tia lá. É a única tia que eu ainda tenho. Ela tem noventa e um anos, tá véia, mas tá firme na parada! O foco incide sobre a longevidade do corpo. A tia do locutor seria o único parente que ainda visita, por causa da idade dela. Se um misto de autoimagem positiva e de precaução de crítica se acha em jogo, deve-se notar que a questão da velhice é um tema relevante. A contrajunção se ancora num entimema que, frente às conclusões “óbvias”, não permite afirmar que a mulher esteja fraca, doente ou debilitada. É por não aplicar os traços “inerentes” à velhice à tia que o locutor usa o adversativo. Eis o encadeamento contrajuntivo: pessoas que têm determinada idade apresentam problemas; a tia é uma pessoa que tem noventa e um anos e, portanto, está velha; o interlocutor sabe disso e pode ser levado à conclusão de que não está “firme”; ele deve ser levado a saber que ela está bem de saúde e contraria o senso em relação à velhice. O enunciado possui, pois, uma baliza que estabelece que os corpos devem se manter saudáveis, sob pena de rejeição por indícios pouco simpáticos. Contrariamente a culturas em que a velhice significa sabedoria, na ocidental, por ser capitalista (não só, pois a religião assombra com o presságio da vida eterna), a velhice é descartável, por ser improdutiva e indiciar sofrimento. (E) Num jogo de vôlei do campeonato italiano, na ESPN, o comentarista proferiu o enunciado transcrito a seguir e que se referia à jogadora Simonetti: 114 José Carlos Cattelan (7) – Ela é a libero do time do Pésaro. Ela chega e toca em todas as bolas. Ela é baixinha, mas é muito enjoada, viu!!! O enunciado permite perceber que a jogadora realizava acima do esperado a sua função, pois chegava e tocava em todas as bolas e era muito enjoada, inibindo a construção de pontuação satisfatória. Nada contra o desempenho, pois está fazendo o que é esperado. Mas algo incomoda o narrador e o faz inferir que a atleta não poderia ter esse desempenho. O enunciado permite entrever que Simonetti não poderia ser líbero, não deveria chegar e tocar em todas as bolas e nem ser muito enjoada, pois era baixinha. A surpresa se refere à contradição observada entre o porte e o desempenho. Considerando que enjoada tem o efeito de eficácia e isto se deve ao fato de ser uma boa líbero e por chegar e tocar em todas as bolas, o encadeamento da reflexão considera que jogadoras baixinhas não chegam e tocam em todas as bolas, dada a sua inferioridade física; que Simonetti é uma jogadora baixinha; e que não poderia ser enjoada e nem chegar a todas as bolas. Mas a atleta feria a regra aplicável ao seu caso, sem invalidar o lastro de crença geral. Que uma estatura baixa possa gerar dificuldade para o menor, já que o que se confronta é a conformação física, até se poderia conceder, com ressalvas. Porém, à luz de comparações físicas, fazem-se derivas que imbricam altura e desempenho intelectual, o que não deveria ocorrer, pois, entre estatura e desenvoltura psicológica, não existe relação implicativa. (F) O enunciado a seguir pertence a Sara Sarada, de Uma Escolinha Muito Louca, da Bandeirantes, apresentado por Sidney Magal. Ele foi coletado no dia 1º de maio de 2009, às 20’55. (8) – Pode perguntar, professor, porque eu sou loira, sou gorda, mas sou inteligente. 115 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal Sara é uma pessoa cujo corpo se encaixa no padrão estético, com contornos delineados e aparência saudável, sem gostar de si mesma. A discussão gira em torno de a personagem possuir um corpo escultural, mas achar que está fora de forma. O humor do enunciado se deveu ao fato de se dizer gorda: este é o bordão. Que se dissesse gorda cumpriria os fins do quadro, sem precisar enunciar o restante. Mas, dizendo o que disse, abriu espaço para que efeitos de sentidos circulassem. O problema é por que, entre ser loira e gorda e ser inteligente, há uma relação contraditória. A relação entre as propriedades não tem um princípio racional, sendo a premissa geral falaciosa, pois pessoas loiras e gordas não são limitadas cognitivamente; nem mais nem menos do que as que têm outra cor de cabelo e um corpo que não seja gordo. O “defeito” deriva de um corpo que não se encaixa nos padrões da normalidade física pregada e, por isso, não seria desejável. Sobre o silogismo se basear na obesidade, lembre-se que ela é associada a problemas indesejáveis. Por um lado, ela toma como referência o corpo de modelos que posam para revistas, desfilam ou são mostradas em novelas. Exceto atores consagrados que não precisam provar talento, a seleção de novos rostos e corpos parece se pautar num rosto bonito e num corpo de acordo com os padrões televisivos. Basta observar os rostos que ocupam espaços em novelas, programas de auditório ou filmes exibidos. Por outro, cria-se uma imbricação entre obesidade e morbidade: o corpo gordo é associado a um quadro propício para distúrbios cardiovasculares, ameaça desagradável. Deve-se notar que loiro e gordo não são causa de insuficiência cognitiva. Por sobredeterminação, um problema físico sustenta a afirmação de disfunções psicológicas. Loiros ou gordos estão fora e são suspeitos. Que uma loira cative os olhares não parece pesar frente às relações que se fazem sobre a cor do cabelo e a suposta pouca intelectualidade. A resposta salvadora, talvez, seja a atribuição ao voyeurismo: denunciação do desejo. 116 José Carlos Cattelan (G) O diálogo a seguir acontece no filme A Liberdade é Azul (Three Colors Blue) entre a síndica e Julie e incide sobre a moradora do prédio, que é prostituta. (9) – Vim pedir que assine aqui. – O que é isso? – Todos já assinaram. Não queremos mulheres que recebem homens aqui. A vizinha ... – Lamento. Não me meto nisso. – Mas é uma puta. – Não é da minha conta. Aqui, a contrajunção reitera a tese que comanda a “dedução”, reportando-se ao caso que rompe com o “axioma” e fazendo decorrer a sanção prevista para o uso do corpo pela puta. Neste caso, a contrajunção apresenta o caso da vizinha, que, por ser prostituta, deve ser expulsa. Contra a recusa de Julie de assinar o manifesto de expulsão, o mas introduz o argumento para superar a reticência frente ao princípio que prostituta fica à margem da sociedade, já que constitui um mau exemplo. O fato de os moradores assinarem o documento revela que a comunidade partilha uma grade de valores. Como se encontra frente à recusa, a síndica se vale do mas para provoca a adesão, justificar a aplicação do silogismo e negar a “omissão” de Julie. O mas encabeça a premissa contradiz a atitude da moradora que não concorda com os preceitos sociais sobre prostitutas. O mote da discussão é a atividade da vizinha que faz um uso indigno do corpo. Não estão em jogo marcas visíveis do corpo. O tema se refere ao uso dele para uma destinação indigna. Que isto seja feito na periferia das cidades ou que prostitutas existam não é tematizado: trata-se de fazer com que não se misturem. Não se exige mais que os corpos sejam marcados a ferro para ostentar o estigma do “pecado”: mas se produz uma segregação que é mais violenta do que carne marcada por metal em brasa. 117 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal Arma-se, pois, um palco que põe, de um lado, a crença de que as pessoas fazem escolhas, não cabendo julgá-las, e, de outro, a visão de que se deve aplicar a punição prevista a elas. Há dois imaginários em “diálogo” e cada um, dado o princípio de crença que o sustenta, é responsável por cadeias inferenciais distintas: um determina que a prostituta seja exilada; o outro, que viva a vida escolhida. Pontos de vista distintos, conclusões diferentes; princípios imaginários diferentes, atitudes concretas distintas. E o costume em comum vence, pois Julie é a única a não assinar o pedido de despejo e a não se submeter à norma. (H) O enunciado a seguir foi proferido por um entrevistado sobre o tema da infidelidade. A entrevista foi feita numa casa de swing e foi ao ar no dia 5 de junho de 2009, às 23’30. Os casais se encontravam aos pares. (10) – Esta é a nossa primeira vez. É um pouco estranho e a gente não está muito à vontade. Estamos um pouco nervosos e preocupados. Mas estamos gostando. Defende-se que as sensações alegadas se devem ao fato ocupar um espaço impertinente, embora, mais do que estar num espaço inesperado, a pouca usualidade da situação instaure medos. Seja pela localização geográfica repreensível ou pela disposição para uma prática sexual ilegítima, anseios e temores são confessados, embora não sejam fortes para demover os curiosos. Eis duas experiências do corpo que são postas sob suspeita: a colocação em lugar indevido e a disposição para a prática sexual marginal. Embora a primeira vez possa gerar os sentimentos mencionados, entende-se que é a experiência a que se refere que se incumbe de instaurar os ânimos descritos. Não é por ser iniciante, ou só por isso, que o calouro sente o que diz, mas por estar em confronto com a normalidade do mundo erótico. À luz de um imaginário que dita um modo de viver e de experimentar a sexualidade, as sensações são óbvias. Um palco inadequado e a disposição para viver uma sexualidade ilegítima não poderiam causar bem estar. 118 José Carlos Cattelan Mas conta, em maior grau, o imaginário que fixa que corpos em locais suspeitos e em relações anormais se sintam estranhos e preocupados. Dada a previsão social, nada mais óbvio do que a afirmação de não estar gostando da experiência. Porém, contra a previsão social e a certeza de uma conclusão, o locutor afirma se sentir bem. Não faltam discursos que se pronunciam sobre o tema, seja moralista, jurídico, científico ou religioso, levantando hipóteses sobre o desvio do “bom senso” e sobre a sedução por algo desviante como relações extraconjugais. Que a atitude seja imoral, pecaminosa, ilegal ou explicável a partir de uma visada teórica não evita que seja tida como desviante, pois essas vozes serem chamadas a se manifestar sobre o que está acontecendo é sintoma de que o desvio está a caminho. (I) O enunciado a seguir foi dito por um membro do grupo de apoio da irmã de Rachel, Kim, no filme O casamento de Rachel (Rachel Getting Married), quando falava sobre a sua adicção. (11) – Eu não me achava adicta. Levei um ano para admitir que era adicta. E durante anos eu era só isso. Era uma adicta. É um fato que temos que aceitar, como tantos outros, mas posso ser isso e outras coisas. O depoimento de Kim se refere ao fato de não admitir que é adicta e de não aceitar que a dependência seria incontornável e, por fim, de constatar que, apesar de ter que viver com o eterno controle sobre a doença, poder aceitá-la de modo submisso ou combatê-la, podendo, embora sendo adicta, não se submeter ao poderio da droga. O enunciado se baseia em três princípios que são correntes em relação à adicção: o dependente não reconhece a doença; depois, aceita-a e convive com o problema; e, às vezes, é conduzido à superação: eis os grupos de apoio. Seja porque o consumo de tóxicos gera problemas; porque o adicto, em face de suas atitudes, é estigmatizado; ou porque ele associado a uma pessoa fraca e doente, um conjunto de prismas é criado, fazendo-o, pela 119 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal pressão a que é submetido, agir para a ratificação da sua condição, ou para a busca da superação e da escolha de outro caminho. A expectativa das pessoas que têm relações com o adicto se dá no sentido da superação. É neste diapasão que a personagem organiza o seu sistema de referência. Verifica-se uma crença impregnada de impotência que fixa que o homem pode aceder aos males de que padece, mas nada pode fazer sobre a dependência química. Mais poderosa do que ele, a droga não admite confronto. Frente a este quadro de aceitação passiva, a personagem se posiciona no sentido de afirmar que é possível se render ao inimigo ou buscar ser outras coisas. Mas, contrariamente à posição determinista farmacológica (por que não psiquiátrica?), a personagem, por meio da contrajunção, afirma que, contra a aceitação da condição, buscará a ruptura por meio do grupo, sugerindo a legitimação dessa perspectiva de compreensão, assumindo um discurso favorável à existência dos grupos de autoajuda e levando o espectador a concordar com uma visada discursiva: frente à fatalidade mecânica, apresenta-se a defesa da solidariedade, do voluntarismo e do livre arbítrio. O discurso de Kim, como contradiscurso à posição fatalista, é gerado por um prisma que desenha uma corporalidade indigna: o uso dela para consumo de drogas. Mais do que constituir uma ressalva sobre um princípio, uma voz é assumida contra a outra, o que é feito de forma restrita. Mais do que resguardar um caso particular, a contrajunção se faz ao sabor de uma injunção que ordena como o mundo deve ser. São dois discursos, duas vozes, duas formações discursivas ou duas ideologias que digladiam, supondo uma mais esclarecida que a outra. No bojo de ambas, a contradição a um uso corporal, o que amplia ainda mais o leque das proibições sobre o que não deve constituir a corporalidade. 120 José Carlos Cattelan Algumas Ponderações Seja porque traz sobre o corpo marcas inscritas que o tornam diferente, seja porque faz um uso corporal não sancionado pelo grupo, seja porque padece de males que o afastam do consenso, seja porque não pode ocupar um espaço, seja porque apresenta uma compleição física que excede o padrão, seja porque exibe mutilação, seja porque determinadas diferenças podem ser tidas como deficiência, o mundo da normalidade categoriza e define os limites entre os que podem e os que não podem ser deixados em paz, entre aqueles que têm que ser discriminados, porque não se encaixam no tipo dado como aceitável. Trata-se a cada momento de fixar as linhas que demarcam os corpos conformes e disformes, quer seja em termos de imagética física ou de expectativa comportamental. Os episódios analisados revelam que há um discurso que se produz ao sabor da trivialidade, da efemeridade, da reiteração da ordem, da injunção de visadas e da reiteração de práticas, que, apesar de pouco memorizável, porque parece pouco importante, ratifica uma memória que apresenta pouca consistência racional, mas constitui a criação de um corpo indigno. Os enunciados trazidos para a discussão não têm compromisso com a tentativa, inglória, de arrebanhar tudo o que é o corpo indigno e não deveria trazer enquanto marca que o põe sob a suspeição da sociedade. Eles buscam, menos do que isso, indicar um lugar de observação e de possibilidade da efetiva aceitação da diferença, por meio do aprendizado da tolerância. De acordo com BOURDIEU (1999, p. 83), “o mal-estar, a timidez e a vergonha são tanto mais fortes quanto maior a desproporção entre o corpo socialmente exigido e a relação prática com o próprio corpo imposta pelos olhares e as relações dos outros”. Considerando-se o que afirma o autor, poder-se-ia, enganosamente, ser levado a pensar que se pode estar numa das margens do rio: de um lado, aquela em que estão arrebanhados os anormais, cuja travessia depende da redenção que pode 121 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal ou não acontecer, que é possível ou terá que ser vivida até o fim dos tempos; do outro, aquela em que se encontram reunidos os que atendem ao padrão estabelecido e podem ser deixados em paz e viver em silêncio benéfico e apaziguador: ao abrigo do mundo. Porém, percebe-se que a violência que se abate sobre os disformes também se aplica sobre os conformes, pairando como ameaça sobre a possibilidade de cada um deixar de pertencer à margem direita do rio, sendo conduzido para o outro lado e passando a ser um desvio que deve ser discriminado. A violência exercida sobre os diferentes não são distintas das que se abatem sobre os iguais, embora o silêncio recompensador possa levar a pensar que se está imune às ofensas, porque se está no modo certo de ser. Por se fazer mais ruidosa sobre uns do que sobre outros, não significa que a força da injunção social deixe de atingir a todos, cobrando continuamente que os conformados continuem dentro do padrão e que os anormais se redimam e se enquadrem. Como afirma FOUCAULT (1999, p. 25)5, “o corpo está mergulhado num campo político; as relações de poder [é bom lembrar, microfísicas] têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais”. Seja por “sugestão mimética”, “injunções explícitas” (ou, sobretudo, implícitas, dever-se-ia acrescentar, dada a observação do funcionamento da contrajunção) ou “construção simbólica da visão do corpo biológico”, produz-se um “habitus [...] diferenciado e diferenciador” (BOURDIEU, 1999, p. 70 - grifo do autor), que fixa sistemas de referência a partir dos quais os corpos são julgados, sancionados e punidos, cabendo a cada um dos partícipes da comunidade a vigília e a observação, para que as transgressões sejam reconduzidas (se possível) ao bom senso. Que os transgressores tenham marcada a ferro em brasa sobre a omoplata a letra 5 A referência brevíssima a Foucault não deve levar a concluir que se esteja pretendendo adentrar ao campo epistemológico do autor ou se aproximar miradas teóricas “inconciliáveis”. A referência ao autor é feita em virtude de vir dele um dos estudos mais sistemáticos sobre a corporalidade. 122 José Carlos Cattelan escarlate é uma prática que deixou de ser usada, mas isso não significa que o olhar que separa e isola o aceitável do inaceitável, o elogiável do repreensível, o digno do indigno deixe de imprimir estigmas sobre os que se desviam, ocorra isto por meio de gestos voluntários ou incontroláveis. Referências BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. (Trad. Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 1992. BARTHES, Roland. Aula. (Trad. Leyla Perrone-Moisés). 6.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1997. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. (Trad. Maria Helena Kühner). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. (Trad. Guy Reynaud). 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ECO, Umberto. Lector in fabula. (Trad. Attílio Cancian). São Paulo: Perspectiva, 1986. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. (Trad. Raquel Ramalhete). 19.ed. Petrópolis: Vozes, 1999. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. (Org. Sírio Possenti e Maria Cecília Pérez de Souza-e-Silva). São Paulo: Parábola Editorial, 2008. PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. (Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995. 123 O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. (Trad. Rosaura Eichemberg). 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. VANEIGEM, Raoul. Nada é proibido, tudo pode ser dito: reflexões sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. 124 DENOMINAÇÃO DESCRITIVA: QUESTÕES DE UNIDADE E SENTIDO Cleber CONDE Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) RESUMO Este artigo pretende iniciar uma discussão sobre as denominações descritivas como formas híbridas de designação, tentando compreender, primeiramente sua unidade. Por exemplo: como um segmento tal qual “Operação Cavalo de Tróia” pode se constituir como sentido para um dado objeto na realidade, ou ainda, como esse item não lexicalizado se constitui em uma unidade de sintagma nominal e, além disso, como essa unidade promove um sentido não diretamente calculado em forma de predicado, mas que se comporta como se assim o fosse, demonstrando que sua constituição unitária é complexa. ABSTRACT This article intends to start a discussion about descriptive denominations as hybrid ways of designation, trying, at first, to comprehend its unit. For instance: how a segment such as “Trojan Horse Operation” can constitute itself as meaning for a given object in reality, or even, how this non lexicalized item constitutes itself as a noun phrase unit and, besides that, how this unit promotes a not directly constructed meaning as a predicate, but that behaves as if it were one, demonstrating that its unit constitution is complex. PALAVRAS-CHAVE Denominação. Denominação Descritiva. Designação. Sentido. Referente. KEYWORDS Descriptive Denominations. Denomination. Designation. Meaning. Referent. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 125-144, jul./dez. 2013 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido Introdução Haveria alguma circunstância em que um nome próprio pudesse ser descritivo em termos metalinguísticos? As teorias descritivistas1 dos nomes próprios (Npr) enxergam que um nome pode ter uma descrição definida ou um feixe de propriedades a ele associados. Curiosamente, alguns sintagmas nominais (SN) como “Operação Medusa”, “Projeto Rondon” e “Programa Minha casa Minha Vida” são exemplos de um modo muito peculiar de designação que mescla um componente descritivo (operação, projeto, programa) e um núcleo nominal que pode conter um Npr, um outro nome comum (Nc), ou ainda um sintagma mais complexo (S). Tais denominações funcionam de modo semelhante ao procedimento de descrição definida, ao mesmo tempo em que singularizam um ente por procedimento de denominação. Nosso objetivo, neste artigo, será tão somente levantar alguns dados e hipóteses sobre esse modo especial de denominação, observando dois aspectos a serem considerados: a) há uma indivisibilidade do SN (aspecto semântico-sintático interno); b) a denominação desse tipo de objeto individualiza-o para além dos procedimentos de “etiquetagem”, dando-lhe uma identificação especificamente codificada. Neste artigo, pretendemos lançar as bases para a discussão sobre esse fenômeno semântico específico desse tipo de denominações, reconhecendo desde início que há muito a se percorrer sobre esses casos, uma vez que muitos contraexemplos ainda surgirão, pois a lista de candidatos aos ditos itens de denominação descritiva é bastante flexível, no entanto, ainda nos faltam subsídios para uma descrição com maior propriedade. Apesar do risco da imprecisão, podemos dizer que existe um grupo de aproximadamente vinte e dois NCs, ou seja, vinte e duas formas de denominação diferentes2 que precisariam ser melhor examinadas, o que pretendemos fazer em outra oportunidade. 1 Para uma breve abordagem, ver Costa 2009 ; abordagens mais detidas ver Brito (2002), Kleiber (1981 e 1995). 2 Eis a lista: operação, projeto, programa, CPI, caso, chacina, massacre, missão, lei, batalha, guerra, levante, revolta, revolução, golpe, ataque, atentado, movimento, coluna, plano, efeito, doutrina. 126 Cleber Conde Para os objetivos aqui propostos, iremos retomar algumas noções básicas sobre as relações de denominação e designação, bem como a discussão entre nome próprio e descrição definida o que nos permitirá, então, tentarmos construir algumas explicações sobre o mecanismo específico de denominação que estamos abordando. A princípio, acreditamos que essa forma de denominar se constitui de um procedimento híbrido de descrição definida e de nome próprio, ao que Kleiber (1985, pp. 4 e 7) chamou de denominação descritiva em oposição à descrição denominativa. 1 A unidade da denominação descritiva Primeiramente é imprescindível entendermos que a estrutura de uma denominação descritiva é bastante diversificada em sua natureza sintática e semântica, uma vez que o resultado dessa composição é sempre um SN que pode ser constituído de estruturas preposicionais, como, por exemplo, “Chacina da Candelária”, em que há a preposição (Prep) no primeiro nódulo imediato ao primeiro item, ou também em nódulos subsequentes como em “Operação Cavalo de Tróia”. Nesses dois exemplos, têm-se características denominativas distintas enquanto objetos denominados e, portanto, naturezas também diversas no que tange ao modo de designar ou de denominar. Se compararmos outros exemplos, veremos que alguns NCs exigem preposição (atentado, massacre, chacina), fato esse que ainda pretendemos explicitar como mecanismo inerente a esse tipo de designação, pois há neles uma preferência para uso em toponímias e crononímias (por exemplo: Massacre da Candelária, Atentado de 11 de Setembro). O feito disso é que as preposições surgem no nódulo mais próximo da “cabeça”, ou seja, próximoas do Nc. Em casos mais complexos, há nomes como “Programa Minha Casa Minha Vida” que possuem uma estrutura oracional completa, com a supressão do verbo “ser”: Minha Casa É Minha Vida, ou ainda, Programa Universidade 127 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido [É] Para Todos. Observados esses aspectos mais complexos, podemos isolar o nosso objeto de análise sem nos preocuparmos, neste momento, com seu interior, sendo um procedimento metodológico para efeito de nosso objetivo: entender a sua suposta unidade. Ressaltamos que esse isolamento não significa que ignoremos sua constituição interna, mas assumimos que ainda nos falta reflexão suficiente para tentarmos qualquer entendimento plausível de seu funcionamento externo que possa explicar com melhor propriedade. Por isso, as explorações sintáticas dar-se-ão de modo bastante superficial para pensarmos na unidade das denominações descritivas. A fim de iniciarmos nossa discussão, precisamos também entender que as denominações a serem exploradas possuem uma estrutura argumental bastante fixa, em que se tem um nome comum (Nc) e um espaço “argumental” (X): “Nc + X” (cf. Kleiber 1985). Em Nc podem figurar: operação, projeto, programa, massacre, chacina, batalha, plano, entre vários outros termos, podendo ainda existir casos como o da sigla CPI (CPI do Narcotráfico), em que “Comissão Parlamentar de Inquérito” já é uma lexia complexa (cf. as lexias complexas de Pottier 1974, apud Kleiber, 1995: 266). A título de recorte do objeto e exemplificação, aternos-emos apenas aos casos de “operação”, “programa” e “projeto”. Passemos então a alguns testes para entender o comportamento da unidade das denominações descritivas: (1) a) A Operação Guilhotina prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. b) ? A Guilhotina prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. c) ?A Operação prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. (2) a) Integrantes do Projeto Rondon visitaram cinco municípios do Acre. 128 Cleber Conde b) ?Integrantes do Rondon visitaram cinco municípios do Acre. c) ?Integrantes do Projeto visitaram cinco municípios do Acre. O que tornaria a frases correspondentes 1b, 1c, 2b e 2c no mínimo incompletas? Como dissemos há pouco, os nomes descritivos, cuja estrutura é “Nc + X”, estão constituídos de forma complexa e, pelo que pudemos observar, tanto Nc quanto o X dessa estrutura podem figurar isoladamente apenas em contextos anafóricos. Isso já nos dá pistas de seu funcionamento integral, ou seja, seu primeiro uso em qualquer enunciado deverá surgir integralmente, o que nos leva a inferir que o sentido para o referente é a composição toda Nc + x. Tal relação também lembra uma importante definição da natureza denominativa dos nomes. Como lembra Kleiber (1984), a denominação é uma relação estável entre signo e coisa, depende de uma aprendizagem, ao contrário das descrições definidas que requerem sempre um contexto para sua atualização. Esse argumento corrobora com a perspectiva de que as denominações descritivas estão no rol do que pode ser um nome próprio ao mesmo tempo em que contêm descrições definidas, logo, trata-se de um híbrido. Os testes apontam para essa característica, o que nos leva a crer que as denominações que ora observamos carregam essencialmente um pouco de descrição definida e um quanto de rigidez do Npr. Tal afirmativa pode parecer contraditória,; no entanto, uma forma híbrida como essa revela uma terceira forma diferente da designação por descrição definida e por denominação por Npr. Além disso, há que se levar em conta a existência de uma estrutura de função por conta de sua categorização: projeto, programa, operação (Nc(x))... como veremos adiante. Pelos testes realizados acima, pudemos verificar que há um princípio de unidade nesse tipo de relação denominativa, o que já cumpre parte de nosso propósito aqui. No entanto, vamos para outros testes, modificando, por exemplo, a constituição de X a fim de verificar seus resultados: 129 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido (3) a) b) c) d) e) Operação Cavalo de Tróia Operação Cavalo *Operação Cavalo de (?) Operação de Tróia Operação Tróia Observamos que, ao se alterar um item componente de X, temse uma alteração que pode tornar o SN à agramaticalidade ou levar a um outro referente, como por exemplo 3.b e 3.e. Esse teste nos leva a mais uma constatação de unicidade e nos impele a afirmar que o SN nominal composto por Nc + X só vale para cada entidade que referencia, característica inerente ao nome próprio. Há, então, unidade e integralidade necessárias para que a denominação descritiva se efetive como tal. Enfim, a estrutura Nc + X não é uma simples lexicalização, mas se constitui em uma forma própria de denominação e mantém sua unidade. Como lembra Matushansky (2009: 574), há uma composição complexa dos nomes e das posições argumentais das quais eles desfrutam. No entanto, devemos observar que, para além da posição argumental que um SN ocupa em uma oração, parece existir dentro de sintagmas como “projeto+X” também uma posição argumental. De que natureza seria então essa posição argumental? Como o item “projeto” pode ser um predicado e qual o resultado desse tipo de construção, em termos semânticos? Até o momento, os testes realizados demonstraram uma relação de função que pode ser explicitada especificamente em termos de uma denominação que estabelece a individualidade do item denominado, ao mesmo tempo em que lhe confere a pertença a um grupo. Vimos claramente que a força de um Nc por outro, de outro modo designa, consequentemente, outro objeto, como veremos mais adiante. Concluímos, então, que o SN composto de Nc + X possui uma unidade bastante estável, comprovada pelos testes em que provocamos 130 Cleber Conde a descontinuidade dos componentes em X,. Além disso, pelas suas peculiaridades, aferimos que os itens desmembrados também podem fazer referência ao objeto em situações anafóricas. Desse modo, podemos concluir que a unidade toda serve de sentido para um referente,; no entanto, essa unidade possui internamente características semânticas mais complexas como veremos no tópico a seguir. 1.1 Estatuto semântico das designações descritivas e seu hibridismo Kleiber (1984, p. 77) afirma que a “linguagem tem por vocação primeira falar sobre o real” (não entramos no mérito de discutir o que seja o “real”). Assim, as relações de designação e representação constituem a principal característica do signo linguístico: não basta estar no lugar de algo, mas é necessário representar esse algo, funcionar como referencial de algo. (...) a função de designação, de representação constitui a característica principal do signo linguístico. A relação de denominação é uma parte constitutiva dessa dimensão referencial. Ela se inscreve no processo que coloca em relação os signos com as coisas e se posiciona ao lado das relações referenciais: referir a, remeter a, designar, representar, denotar etc. respondem ao esquema X (signo) ↔ x (coisa). O autor lembra que a designação tem um estatuto geral, enquanto a denominação não,. Esta, por sua vez, é uma forma específica de designar, de modo que toda denominação seja uma designação, mas nem toda designação seja uma denominação. A exterioridade em relação sobre o “real”, ou pelo menos, o mundo percebido é ponto chave na perspectiva 131 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido de que a língua tem como princípio falar do que não é linguagem, aquilo que tomamos genericamente como “extralinguístico3”. Segundo Kleiber, o ato de denominação prévio tem por consequência a aquisição de uma competência referencial, aquela de utilizar X por x. A associação referencial X ↔ x é uma associação memorizada, logo codificada. Isso acarreta que um signo X, de uma relação de denominação, apenas pode ser igualmente uma unidade codificada, simples (por exemplo: cão, Bernardo) ou complexa, como, por exemplo, um complexo industrial, sinal de trânsito, lembrando Pottier já citado acima. As expressões complexas como pequeno cão, comer rápido, ou cão que eu vi no campo etc. não constituem conjuntos lexicais codificados, nem podem ser considerados como nomes e por isso estão excluídos da relação de denominação. A relação de designação autoriza, por sua vez, tais expressões complexas, pois ela não pressupõe qualquer codificação anterior, portanto, podemos ter uma relação de descrição definida como modo de designação. Fica bastante clara a distinção entre denominação e designação, como visto acima,; no entanto, é preciso revisitar a questão do nome próprio e da descrição definida, tentando observar qual é o desafio ao se tentar compreender como as nomeações aqui exemplificadas se comportam. A estrutura Nc + X, ao mesmo tempo em que satisfaz a verdade de uma proposição, também descreve que tipo de evento está sendo descrito/referenciado. De modo que os mais de vinte Ncs que listamos especializam algum tipo, ou melhor, servem de predicadores específicos de uma função de conjunto: operação {ações investigativas, repressoras, de impacto, militares...}; projeto {ação institucional de prazo variável}; programa {conjunto de ações institucionais}. Tal especialidade pode ser demonstrada por meio de alguns testes: (4) a) A Operação Mãos Limpas é a ação que promoveu... b) O Projeto Mãos Limpas é a iniciativa que promoveu... c) O Programa Mãos Limpas é a iniciativa que promoveu... 3 Recomendamos a leitura de Kleiber (1997). 132 Cleber Conde O teste demonstra que há uma determinada especificação para os Ncs e que a sua mudança diante de um X leva a outra natureza de objeto referenciado, o que será explicado logo a seguir. Ressalta-se, ainda, que o exemplo 4 só se sustenta pela decorrente pressuposição existencial provocada pelo princípio da Máxiama de Qualidade de Grice4, pois há documentação que atesta a existência de uma “Operação Mãos Limpas”, mas não se sabe se existiram “Projeto Mãos Limpas” e “Programa Mãos Limpas”. O fato é que enunciar os Ncs pressupõe uma categorização de X e pressupõe existencialmente algo com um nome, por exemplo:, “Operação Mafagafos”, muito embora essa ação jamais tenha sido documentada. Em todo caso, sendo factual ou não o sentido se estabelece do mesmo modo como um nome próprio entre interlocutores que acatem ou que extrapolam a Máxima de Qualidade,; nesse caso, ter sentido e não ter referência não rompe com as regras de uso dessas denominações, logo seria irrelevante colocar em X um Npr mítico, inventado, ou qualquer outro Nc que não tivesse correspondente na realidade que não romperia com a regra de uso. Muito embora assumamos que a língua fale de um “real”, podemos lidar com um real modalizado e pressuposto pelo dizer, de modo que nomes com sentido mas sem referência (no sentido Fregeano) sejam aceitáveis em denominações como as analisadas. O que poderia ser o caso em “Operação Mafagafos” ou no caso da pura descrição definida, tomando um exemplo clássico: “a estrela mais distante da Terra”. Muito embora, percebamos que haja uma nítida diferença entre Operação Guilhotina e ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais corruptos, sendo a primeira uma forma que nos leva a tomá-la por um Npr e a segunda forma um nítido exemplo de descrição definida, as coisas não se apresentam de modo tão simples para o fenômeno em tela. Obviamente que a composição “Operação + X” possui, em virtude de seu Nc, um caráter descritivo, sem, no entanto, ser uma descrição, pois se utilizássemos apenas “x” (Guilhotina) esse nome não iria satisfazer 4 Levinson (2007) 133 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido a verdade tanto em “a” e “b”, como demonstram seus pares “c” e “d” respectivamente: (5) a) A Operação Guilhotina é a ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais corruptos. b) A ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais corruptos se chama “Operação Guilhotina”. c) (?) A Guilhotina é ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais corruptos. d) (?) A ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais corruptos se chama “Guilhotina”. Curiosamente em 5.d, o SN “ação investigativa” toma feições de Nc: Ação Investigativa Guilhotina, mas tal exemplo não se encontra no uso, inclusive porque parece haver uma restrição para que o Nc seja ocupado por mais de um item. Os dados levantados até o momento têm corroborado para essa suposição, muito embora necessitemos de mais testes e análises. Essa restrição de mais de um item para a posição Nc pode ser também observada em estruturas como “Programa Nacional de Alimentação Escolar” (sigla PNAE). Esse tipo de nome parece não fazer parte do rol dos fenômenos que estamos analisando. Façamos alguns testes: (6) a) O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação a alunos de toda a educação básica matriculados em escolas públicas e filantrópicas. b) O Programa de Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação... c) *O Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação... 134 Cleber Conde d) e) f) (?) O Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação... O Programa de Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação... O Programa Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação... Os testes podem nos levar a considerar duas novas estruturas i. ii. Nc + Prep + X, Nc + SAdj + Prep + X Sobre essas duas possibilidades gostaríamos de observar alguns aspectos. Primeiramente, a manipulação no exemplo 6.c parece demonstrar que o segmento “Programa Nacional de Alimentação Escolar” não tem o mesmo comportamento de um exemplo como o “Programa Minha Casa Minha Vida”: (6) O Minha Casa Minha Vida é um programa do governo federal que tem transformado o sonho da casa própria em realidade para muitas famílias brasileiras. Em geral, o Programa acontece em parceria com estados, municípios, empresas e entidades sem fins lucrativos. (Caixa Econômica Federal, 2012) O exemplo acima demonstra que há um comportamento diferente entre uma denominação descritivas de Nc + X e uma em que a Prep ou o SAdj surgem entre o Nc e o X. Tal fato ainda deverá ser estudado de modo mais detido em outro momento, o que nos levará a outras considerações a respeito de denominações com os Ncs “massacre”, “atentado” etc. que parecem exigir preposição. Um segundo aspecto a ser destacado sobre essas estruturas e que também merecerá um olhar mais detido é o fato de que em Nc + SAdj há uma necessidade sempre da presença da preposição logo em seguida. 135 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido Admitimos que essas observações parecem óbvias se considerarmos as estruturas formativas dos SNs em português,; contudo, tais designadores não têm comportamento de simples descrição definida, ou seja, muito embora se constituam como SNs reconhecíveis como descrição definida, referencialmente não funcionam como tal por possuírem também aspecto de denominação. Tal assunto ainda requer um pouco mais de olhar, o que nos faz mais uma vez adiar o assunto para outra oportunidade, restando somente as estruturas Nc + X como apresentadas no início deste texto. Feitas essas observações, passemos a pensar sobre o hibridismo das estruturas Nc + X. Kleiber (1994: 67) relembra que a questão do Npr já fora objeto de debate, e uma possível solução para o debate seria a agrupação posicionamentos sob três perspectivas: a) solução do nome próprio como descrição do referente (G. Frege, B. Russel, P.F. Strawson, J. Serale, etc., através da versão forte, e P. Geach, E. Buyssens, F. Kiefer, M. Gross, etc, pela versão fraca); b) solução do nome próprio vazia de sentido (S. Mill), que, por um designador rígido, remete a seu referente graças à uma ligação casual (S. Kripk, M. Devitt, F. Récanati, 1983); c) solução do nome próprio como predicado de denominação (ser chamado Npr) em favor da qual argumentamos fortemente em 1981 (Kleiber, 1981). No entanto, tal divisão não implica que uma esteja certa e outras não; também não impede que algumas soluções sejam compartilhadas entre si por diferentes pontos de vista, e ainda também nada impede que surjam outras soluções a serem cogitadas. Se tentarmos aplicar cada uma dessas soluções ao problema dos nomes próprios de ações institucionais, teríamos que tipo de resposta? Eis um desafio. Isso é claro, se chegarmos à solução da primeira questão: seriam as designações 136 Cleber Conde de ações institucionais nomes próprios, descrições definidas ou algo de natureza híbrida? Dentre as várias questões que ainda estão por serem discutidas, precisamos entender como esse procedimento de denominação funciona, não a partir da busca das suas origens, nem pela busca do “legislador”5, mas sim da sua constituição na relação mundo-linguagem. A título de problematização, tomemos um exemplo de nomeação bem diferente do nosso objeto de pesquisa, a nomeação de obras de arte, em especial pinturas. Ao estudar como se dá o processo de nomeação de quadros, Bosredon (1997) relata estar diante de um objeto cuja cisão entre linguístico e o não-linguístico fica bastante clara mas não menos complexa. Proponho considerar essa atividade [nomeação de quadros] como uma atividade fortemente controlada, em um campo ao mesmo tempo individual e coletivo; individual porque os sujeitos são compelidos a certas escolhas, coletivo porque essas escolhas são fortemente condicionadas pelo uso e o controle trazido por este é, em grande parte, inconsciente. (p. 7) E mais adiante ele continua Denominei signalética esses campos específicos de identificação conforme os domínios dos objetos identificados que permitem pensar que não se nomeia uma tela como se intitula um livro, um filme ou uma fotografia artística, que se não nomeia o que por si já é nominável, ou o que é do já intitulável, segundo, precisamente, uma signalética de domínio sempre linguisticamente marcado. A existência de signaléticas 5 Lembrando do conceito constante em Crátilo (Platão 1988). 137 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido obriga, por consequência, que se considere que toda operação de identificação, procedendo por chamamento ou denominação, não pode ser analisada sem que se leve em conta a especificidade dos domínios físico-culturais aos quais ela se aplica. A partir da definição de signalética, como poderíamos interpretar a “signalética” das operações institucionais? Em que consistiria o “domínio sempre linguisticamente” marcado de tais objetos? Se colocados em paralelo, uma operação policial parece não ter relação alguma com uma pintura, uma vez que esta tem uma determinada existência, talvez mais “estática” (obra de arte), enquanto que a outra tem uma existência cuja natureza e a dinâmica são altamente complexas (relações sociais; jurídicas; tem começo, meio e fim, não sendo um evento, mas eivada de eventos etc.). No entanto, a obra de arte e a operação policial têm em comum a existência de um designador para cada um, cujos procedimentos constitutivos são deveras distintos, permitindo-nos supor que estejam sob regras de denominação distintas. Em todo caso, poderíamos dizer que existem diferentes signaléticas operando sobre os mais diversos referentes, por exemplo, uma sigla capaz de tomar o papel de Nc, como no caso de CPI, que acaba por ser mais um argumento a favor da singularidade da posição Nc, ou seja, ao invés de “Comissão Parlamentar de Inquérito do Mensalão” se tem “CPI do Mensalão”. Muito embora a formação de siglas e acrônimos sejam formas bastante comuns nos usos linguísticos, o que nos chama a atenção é justamente o fato de ela ocupar o Nc, reforçando a ideia de um item apenas nessa posição. Provavelmente, o conceito de signalética explicar o fato da possibilidade de uma lista Nc e o de que os itens da lista tenham se cristalizado em determinados usos, por exemplo, há maior aplicação do termo “operação” para referenciar ações militares, policiais e fiscalizatórias, como mencionamos anteriormente, levando por vezes a um efeito prototípico (Kleiber, 1994) desses conceitos. 138 Cleber Conde Observamos até aqui que as denominações descritivas têm uma unidade baseada na estrutura Nc + X, que apesar de X ser uma espécie de núcleo, a categoria apresentada por Nc pressupõe uma pertença, mas ainda resta-nos observar que tipo de relação denominativa existe nesse SN considerando a realização de testes a partir de verbos e perífrases de denominação (cf. os exemplos de Kleiber, 1984) com chamar-se, denominarse, nomear, ter o nome de: (7) Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de OPERAÇÃO GUILHOTINA a operação que prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. (8) Chama-se /denomina-se/nomeia-se/tem o nome de GUILHOTINA a OPERAÇÃO que prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. (9) Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de OPERAÇÃO GUILHOTINA o que prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. (10) *Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de GUILHOTINA o que prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia. (11) ‒ Como se chama /se denomina /se nomeia operação que prendeu dez suspeitos de envolvimento com a milícia? ‒ OPERAÇÃO GUILHOTINA / GUILHOTINA. (12) ‒ Como se chama /se denomina /se nomeia o que prendeu dez suspeitos de envolvimento com a milícia? ‒ OPERAÇÃO GUILHOTINA / *GUILHOTINA. (13) ‒ O que tem nome de GUILHOTINA?/ O que se chama /se denomina /se nomeia GUILHOTINA? 139 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido ‒ A OPERAÇÃO que prendeu dez suspeitos de envolvimento com a milícia. b) ‒ Um mecanismo utilizado para execução de condenados a) Vimos, através dos exemplos acima, que não é possível enunciar a uma denominação descritiva sem que o Nc, em algum momento, também seja enunciado e possa dar conta da referência, o que aponta para duas possíveis interpretações do fenômeno: (i) (ii) em denominações descritivas o Nc jamais surgirá sozinho; apesar de X ser o núcleo da denominação, conforme sua natureza referencial diversa (objetos, nomes próprios, frases nominais), não pode ser empregado de forma não-anafórica, sem prejuízo de sua referência (cf. ex.: 11 e 12). A relação entre Nc e X tem um caráter semântico-referencial bastante específico, convencionado pela natureza determinante da função Nc, por exemplo: (14) a) OPERAÇÃO GUILHOTINA é o nome da operação que... b) PROJETO GUILHOTINA é o nome do projeto que... c) PROGRAMA GUILHOTINA é o nome do programa que... Não é possível empregar as denominações descritivas sem que se utilize então o seu Nc, seja em frases afirmativas ou interrogativas e, se alterarmos o Nc, temos uma alteração na referência ao referente. Poderse-ia questionar a validade desse argumento, dizendo que as supostas denominações descritivas sejam formas assemelhadas a: 140 Cleber Conde (15) O PROFESSOR JOÃO esteve aqui. (16) O PROFESSOR que se chama JOÃO esteve aqui. (17) JOÃO esteve aqui. Na verdade, em 15 não temos um denominação descritivas, mas uma descrição denominativa que funciona diferentemente da sua oposta. Segundo Kleiber (1985, p. 8), a utilização referencial das descrições denominativas se inscreve entre dois pólos designativos que são o Npr e as descrições definidas, mas como tais servem para uma identificação unívoca, e que funciona melhor sobre operação com Npr corriqueiros e têm uma liberdade situacional bastante grande como em;: (18) O ZAGUEIRO João esteve aqui. (19) O SINDICALISTA João esteve aqui. Se considerarmos que “zagueiro” e “sindicalista” também sejam atributos de JOÃO, além de “professor”, temos o mesmo referente em situações sociais distintas. Por outro lado, não há como atribuir ao mesmo objeto OPERAÇÃO GUILHOTINA mais de um atributo, e se alteramos algum item da denominação descritiva isso alterará a referência, como vimos nos exemplos em 4 e 14. Se observarmos os exemplos a seguir, veremos que demonstram não ser possível que uma denominação descritiva possa figurar nos mesmos moldes de um Npr convencional,; tomando os exemplos a seguir em paralelo com 17, 18 e 19. (20) A OPERAÇÃO GUILHOTINA terminou. (21) A OPERAÇÃO que se chama GUILHOTINA terminou. 141 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido (22) *A GUILHOTINA terminou. (23) (?) Guilhotina é uma operação da Policia Federal. Os exemplos mais uma vez corroboraram com a indicação também da diferença entre denominação descritiva e descrição denominativa. Finalmente, tais exemplos e peculiaridades revelam a produtividade em termos de identificação por denominação de alguns grupos de objetos, ou seja, ao invés de identificarmos tais objetos por números, como acontece em diferentes instituições, passamos da mera sequência para uma individualização do ente que permite, dentre várias possibilidades a identificação unívoca. Além disso, há produção de sentidos possíveis de serem observadas em outras perspectivas como a da pragmática e da análise do discurso. Conclusão Como todas as demais conclusões, esta só dará conta de encerrar este texto, pois o tema ainda está repleto de dúvidas, e carente de melhores explicitações mais acuradas do funcionamento das denominações descritivas. Apesar de suas lacunas, este breve artigo nos permitiu visualizar um aspecto do fenômeno denominacional constituinte dos designativos Nc + X, levando-nos a algumas conclusões provisórias: a) que tais estruturas são unidade de denominação e, portanto, não são lexias complexas; b) que tais unidades possuem um funcionamento especializado e codificado (operação para ações policiais, militares; programa para ações institucionais relativamente a longo prazo; projeto ações de prazo menor, ou mais pontuais); c) que essas estruturas ainda estão sujeitas a outras especificações ou ainda classificações (Nc + X; Nc + Prep + X; Nc + SAdj + X); d) e que tais formas são denominações 142 Cleber Conde descritivas em oposição às descrições denominativas. Como tal, as denominações descritivas são itens híbridos cujo funcionamento e constituição apontam para características de procedimentos designativos por denominação por nome próprio e identificação por descrição definida. Enfim, a melhor compreensão desses fenômenos há de nos permitir um melhor entendimento de procedimentos de referenciação capazes de aclarar a sempre tensa, polêmica e enigmáticas relação mundo-linguagem. Referências BOSREDON, B. Les titres des tabreaux. Paria: PUF, 1997 BRITO, A. N. Nomes próprios: semântica e ontologia. Brasília: UNB, 2002. CAIXA ECONÔMICA FEDERAL – Disponível em: http://www. caixa.gov.br/habitacao/mcmv/index.asp, acessado em: 17 ago. 2012. KLEIBER G. Problèmes de référence. Descriptions définies et noms propres. Paris: Klincksieck, 1981. ______. Dénomination et relations dénominatives. In Langages, Paris, n° 76, p. 77- 94, 1984. ______. Sur la semantique e pragmatique des SN LE PROJET DELORS et LA CAMARADE CATHERINE. In L’information grammaticale, Paris, n. 27, p. 3-9, 1985. ______. La sémantique du prototype. Paris: PUF, 1990. ______. Nominales: essais de sémantique référentielle. Paris: Armand Colin, 1994. ______. Sur la définition des noms propres: une dizaine d’années après. In NOAILLY M. (éd.), Nom propre et nomination, Paris: Klincksieck, 1995, pp. 11-36. 143 Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido LEVINSON, S. C. Pragmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007 MATUSHANSKY, O. On the linguistic complexity of proper names. In Linguist and Philosophy, 21, p. 573–627, 2009. PLATÃO. Teeteto – Crátilo. Trad. Carlos Aberto Nunes. E. Ed. Belém: UFPA, 1973 144 DOSSIÊ ABRALIN EM CENA MATO GROSSO 2012 PARA UMA ANÁLISE DE PROCESSOS TEXTUALINTERATIVOS Lúcia Regiane LOPES-DAMASIO Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) RESUMO Este trabalho tem como objeto de estudo o item assim, em contextos de parêntese, paráfrase, correção, repetição e hesitação, e objetiva analisar, sob a perspectiva teórica textual-interativa, o funcionamento desse itemnesses processos de construção textual. O corpusdeste trabalho é constituído por textos do período correspondente aos séculos XVIII ao XXI. Os resultados revelam um apontamento de relações entre o funcionamento do item nesses contextos e seu processo de mudança. ABSTRACT The present paperwork has the item assim as its object of study, in contexts of parenthesis, paraphrase, correction, repetition and hesitation, and it aims at analyzing, under the textualinteractive theoretical perspective, the functioning of this item in these processes of textual construction. The corpus of this research is constituted of texts, dating from the eighteenth to the twenty-first centuries. The results show an indication between the functioning of the item in these contexts and its process of change. PALAVRAS-CHAVE Correção. Hesitação. Paráfrase. Parênteses. Repetição. KEYWORDS Correction. Hesitation. Paraphrase. Parenthesis. Repetition. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 147-187, jul./dez. 2013 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Introdução Analiso, neste artigo, o funcionamento de assim em contextos de parentetização, paráfrase, correção, repetição e hesitação, de acordo com a perspectiva textual-interativa, com o intuito de estabelecer uma relação entre o funcionamento desse item, no contexto desses processos de constituição e de processamento textual, e o de seus usos fora desses domínios funcionais. O objetivo desta investigação é confirmar a hipótese de existência de uma relação entre o funcionamento do item, no que tange a essas estratégias textual-interativas, e seu processo de GR (TRAUGOTT, 1982, 2003; TRAUGOTT; KÖNIG, 1991, entre outros), de modo a sustentar uma nova possibilidade de abordagem dos contextos favorecedores desse tipo de mudança. Os corpora deste trabalho organizam-se em: (A) diacrônicos: carta e editorial jornalístico. O corpus de carta dividese em: (i) Administração Privada: cartas de aldeamento de índios (séculos XVIII e XIX); (ii) Documentos Pessoais: cartas de pessoas relacionadas com: (a) José Bonifácio (primeira metade do século XIX); (b) Washington Luiz (final do século XIX); (c) Prof. Fidelino de Figueiredo (final do século XIX e século XX); e (iii)Cartas de leitores e redatores de jornais (séculos XIX e XX). O corpus de editorial compõe-se por textos do jornal O Estado de S. Paulo desde a sua fundação, quando se intitulava A Província de S. Paulo,até 1964; e (B) sincrônicos, compostos por inquéritos do Banco de dados IBORUNA (amostras de fala do Noroeste Paulista). O presente artigo está organizado em três seções, além desta introdução e das conclusões. Na seção 1, apresento os fundamentos teóricos do estudo. Na seção 2, focalizo o item assim, discorrendo sobre seus diferentes valores funcionais em dados sincrônicos do Português. Tendo em vista essa multifuncionalidade, em 3, analiso o item em segmentos tópicos do corpus que configuram contextos de parêntese, 148 Lúcia Regiane Lopes Damasio paráfrase, correção, repetição e hesitação, para, a partir dos resultados dessa análise, estabelecer, na seção 4, as relações entre o funcionamento de assim, nesses processos constitutivos do texto, e os seus usosem dados sincrônicos. 1 A perspectiva textual-interativa Baseada em uma concepção pragmática de texto e de linguagem, a perspectiva teórica textual-interativa elege uma visão de linguagem como “forma de ação e de interação social” (JUBRAN, 1996a, 1996b, 1999, 2006a).Segundo essa ótica pragmática, aspectos textuais e interacionais encontram-se imbricados: o interacional está inscrito no texto, tornandose inerente a ele. A partir desses pressupostos, o texto, como objeto de estudo, é considerado um processo dinâmico que congrega e sinaliza, ao mesmo tempo, processos de formulação textual e interacional, que não resultam em dicotomias de funções textuais e interativas, mas na conjugação delas, de acordo com umprincípio de gradiência (JUBRAN, 2004, 2006a), segundo o qual não há funções excludentes ou dicotômicas: toda função textual deve ter, em contrapartida, algum traço interacional, sendo o inverso também verdadeiro. No âmbito dessa definição de texto, o tópico discursivo é adotadocomo unidade analítica, definindo-se a partir das propriedades de centração e organicidade. A primeira abrange os traços de: (i) concernência,relação de interdependência semântica entre os enunciados de um segmento textual, pela qual se dá a integração desses enunciados em um conjunto específico de referentes; (ii) relevância,proeminência desse conjunto como decorrência da posição focal assumida por seus elementos; e (iii) pontualização,localização do conjunto focal em momento específico do texto. Aorganicidade manifesta-se por relações de interdependência tópica (JUBRAN, 2006a). 149 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Nessa perspectiva, o processo de parentetização é definido como uma inserção, no segmento tópico (ST), capaz de interferir em sua centração e, por isso, ser identificado como desvio tópico. Juntamente com as marcas de natureza formal, esse desvio tópico torna-se básico para a identificação e delimitação do segmento parentético. Segundo Jubran (2006b, p.39), a operacionalização do primeiro critério identificador do parêntese, o desvio tópico, depende do reconhecimento da sua natureza relacional, uma vez que o fato parentético só pode ser reconhecido em relação à unidade de análise – tópico discursivo –, dentro da qual ocorre. A definição do segmento parentético apóia-se analiticamente no princípio da centração tópica (cf. JUBRAN, 2006b), para que se possa verificar a suspensão tópica efetuada por ele. Por sua vez, o segundo critério, relativo às marcas formais de inserção parentética, pode ser observado no segmento parentético e no segmento-contexto. Essas marcas, de natureza textual e prosódica, englobam aspectos como a ausência de conectores, pausas nos limites do parêntese e/ou aceleração de velocidade e rebaixamento de tessitura. Aparáfrase(P) corresponde a um enunciado linguístico que reformula, na sequência textual, um enunciado anterior, matriz (M), mantendo com ele uma relação de equivalência semântica determinada em graus. Segundo FUCHS (1994, p. 129 apud HILGERT, 2006) essa relação deve ser entendida como parentesco semântico, não manifestável como equivalência absoluta, mas como equivalências maiores ou menores. GÜLICH e KOTSCHI (1983 apud HILGERT, 2006) estabelecem ainda o critério da predicação de identidade, observada quando a construção de dois enunciados permite que sejam compreendidos como semanticamente semelhantes. Assim, a relação parafrástica é dinamicamente concebida e determinada pelas relações semânticas locais, i. é, construídas no e pelo jogo da interpretação (HILGERT, 2006), podendo ser focalizada nos níveis: (a) semântico, abordando os deslocamentos de sentido que ocorrem na passagem da M à P; (b) formal, destacando as reformulações, 150 Lúcia Regiane Lopes Damasio lexicais e sintáticas, que podem ocorrer nessa passagem; e (c) funcional, a partir do apontamento das funções gerais e específicas da P. Definida por FÁVERO, ANDRADE e AQUINO (2006, p. 258) como “um enunciado linguístico que reformula um anterior, considerado ‘errado’ aos olhos de um dos interlocutores”, a correção constitui, por sua vez, um processo de formulação retrospectiva. A diferença entre a correção e a paráfrase – que, como destaquei, também tem a função de assegurar a intercompreensão – está no tipo de relação semântica que liga os enunciados reformulador e fonte: enquanto na P há uma relação de equivalência semântica, na correção, essa relação é de contraste; na correção os interlocutores pretendem apagar o enunciado fonte, por considerá-lo inadequado, substituindo-o pelo enunciado reformulador, na P, aquele será M da implementação de movimentos semânticos, que determinam novos sentidos e, assim, a progressão textual. O processo de repetição é definido por MARCUSCHI (2006b, p. 221) como “a reprodução de segmentos textuais idênticos ou semelhantes, duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”. A primeira entrada do segmento tópico, que opera como base para a produção de outro segmento, construído à sua semelhança/identidade, é também designada como matriz e condiciona a repetição nos níveis fonológico, morfológico, sintático, lexical, semântico ou pragmático, de modo que essa repetição não é caracterizada pelo autor como um espelhamento automático, já que expressa algo novo, em relação a um ou mais desses níveis. A hesitação,estudada pelo mesmo autor (2006a), é definida como fenômeno específico da oralidade, caracterizador de uma atividade de processamento, cuja função é ganhar tempo para o planejamento/ verbalização do texto. É condicionada por pressões situacionais de diversas ordens a que estão sujeitos os interlocutores e constitui rupturas evidentes, na linearidade material da fala, como manifestação de atividades discursivas que introduzem, no próprio discurso, seu 151 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos processo de formulação prospectiva. As hesitações materializam-se por meio de fenômenos prosódicos, expressões, itens funcionais e lexicais, marcadores discursivos s e fragmentos lexicais. 2 A multifuncionalidade sincrônica de assim Em LOPES-DAMASIO (2011a, 2011b), foram depreendidos, na perspectiva sincrônica, sete padrões de uso de assim, desempenhando, respectivamente, as funções de: Complemento Adverbial; Adjunto a SV; Predicativo do Sujeito; Modificador de SN; Modificador de SAdj. com função intensificadora; Sinalizador de Mudança da Instância Discursiva; e Marcador Discursivo (MD). Os usos do MDassim englobam aqueles considerados MD por excelência, com interpretação pragmática, e também os considerados menos prototípicos, que, embora apresentem traços contextuais dessa categoria, ainda mantêm características do advérbio modal. Esse padrão subdivide-se em quatro subfunções, a saber:MD assim Indicador de Conteúdo Expressivo;Atenuador;Metadiscursivo eSinalizador de Construção de Quadro Mental. Há, ainda, os usos em que o item, sozinho, ou na constituição de locuções, desempenha função juntiva. Nesse âmbito, foram depreendidos outros quatro padrões: P assim Q (conclusivo); P assim como Q (comparativo, aditivo e conformativo); Assim que Q, P (temporal); e P, mesmo assim Q (contrastivo). Para o estabelecimento das relações funcionais objetivadas, neste artigo, chamo a atenção para as funções do item enquanto MD e para uma de suas funções juntivas, conforme Quadro 1, abaixo, que apresenta a identificação desses padrões de uso, sua funcionalidade, características semântico-formais e uma ocorrência exemplificativa. 152 Lúcia Regiane Lopes Damasio QUADRO 1: A multifuncionalidade sincrônica de assim Padrões Função Características semântico-formais Exemplos (1) Constituinte facultativo; P(1) MD assim Indicador de conteúdo expressivo (2) Sinaliza porções textuais; (3) Indica a expressividade do conteúdo acrescentado; ... coloca... éh duas colheres de... ACHOCOLATADO... uma lata de LEITE CONDENSADO e uma colher... de manteiga e faz... só que assim eu gosto de co/ aí eu gosto de comê(r) ele mole... (AC-056/ RP407) (4) Sofre esvaziamento da acepção modal; P(2) P(3) MD assim Sinalizador de metadiscursividade MD assim Atenuador (1) Constituinte facultativo; (2) Sinaliza porções textuais; (3) Sinaliza a modalidade explicitadora do metadiscurso; (4) Sofre esvaziamento da acepção modal (1) Constituinte facultativo; (2) Marcador de atividade cognitiva; (3) Marcador de incerteza/ imprecisão; (4) Sofre esvaziamento da acepção modal mesmo quando localizado em construções. 153 [...]onde tinha:: umas meninas assimcomo (posso) dizê(r)? FÁceisné? ((risos))... (AC-049/NR003) o D. acabô(u) nem fican(d)o com ninguém porque ele nem curtiu as meni::na achô(u) as meninas meio feia assim... e num quis ficá(r) com ninguém [...] (AC-049/NR006) Para uma Análise de Processos Textual-Interativos P(4) MD assim Sinalizador de construção de quadro mental P assim Q P(5) (1P x 2Q) (1) Constituinte facultativo; (2) Sinaliza porções textuais; (3) Atua em contextos descritivos como dêitico inferível. num esqueço aquele céu a/ aquele:: MAR aZUL... cristaLINO com aqueles pe(i)xinho assim... foi muito bonito...(AC-051/DE108) (1) articula ST ou oração; (2) co-ocorrência de outras conjunções; (3) posição inicial/ medial de Q; (4) impossibilidade de incidência adverbial sobre toda a construção; (5) possibilidade de apresentação de formas verbais reduzidas; (6) impossibilidade de inversão da ordem; (7) relação de independência entre P e Q; (8) não compartilhamento de estruturas; (9) relação de sentido: causa-consequência. [Doc.: (ah)] aí... beleza falei – “num vô(u) mais” – aí... melhorei... aí na hora de í(r) embora esse amigo ofereceu carona falei... – “ótimo né?” – eu chego mais cedo em casaassimdá tempo de corrê(r) no cursinho Alternativo antes da cinco e vê se eu pego ela lá...(AC-085/NE527) Tendo em vista a multifuncionalidade sincrônica de assim, e, mais especificamente, os usos destacadas acima, parto para a análise desse item em contextos dos processos constitutivos do texto aqui focalizados. 154 Lúcia Regiane Lopes Damasio 3 A funcionalidade de assim em contexto de processos textual-interativos 3.1 Assim e o processo de parentetização Em todas as ocorrências, assim é responsável pelo caráter remissivo do parêntese no qual se insere. Dessa forma, isoladamente, sua função restringe-se a esse aspecto fórico. No entanto, em dados extraídos de textos diacrônicos, o item é sempre parte integrante de E2: (1) A Facçaõ ainda alardea manobra as eleiçoẽs da ma- | neira a mais escandaloza, e em todas as partes: chama soldados | para diligencias de S.A.: (assim ao menos se diz) trama por tudo a | intriga: ameaça só assassinios aos que pensa nas Villas A=Agentes da reacçaô: mil outras coizas faz, entretanto que os cha- | mados bons da Capital nem mais falhaõ, eté por isso já se fazem | suspeitos.(BNXIX-11/04) Em (1), a inserção parentética é indicada pelo sinal característico dessa estratégia,na escrita. O parêntese localiza-se em contexto de listagem, em que,assim, em E2,1 é responsável pela instauração de um movimento: (i) anafórico, que sinaliza toda a porção textual configuradorado contexto tópico em que ocorre a inserção – E1 como um todo; e (ii) catafórico, já que a continuidade da listagem, em E3, não permite limitar o alcance desse parêntese apenas à porção tópica que lhe é anterior. E2 integra a classe dos parênteses com foco no locutor, apontando para o seu descomprometimento com a veracidade do conteúdo comunicado. A função textual-interativa desse parêntese é atribuir pontos de vista sobre o assunto a fontes não identificadastextualmente, i. é, o escrevente procura se eximir da responsabilidade do que é dito, a partir da fundamentação desse 1 Cf. DELOMIER e MOREL (1986 apud JUBRAN, 2006b, p. 317), o trecho tópico em que o parêntese é observado pode ser segmentado em: E1, correspondente ao segmento anterior ao parêntese, E2, correspondente ao parêntese em si e E3, correspondente ao segmento posterior ao parêntese. 155 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos conteúdo no “ouvir dizer”, num processo de modalização epistêmica via estratégia de parentetização. Dessa forma, a função interativa desse parêntese soma-se à sua função textual, já que incide na significação proposicional estabelecida a partir do momento de sua inserção no tópico. Em outras palavras, as informações transmitidas pelo escrevente adquirem nova perspectiva proposicional com o parêntese agindo na construção do ST. No tópico (2), assimencerra o segmento parentético. Também aqui há um sinal gráfico, indicando o estatuto textual-interativo de E2: (2) Depois sera precizo aproporSsão do Povodo Povo, e daneceSsidade Crear mais Capitaens, e mesmo Crear Companhias deMeleciannos, taõ neceSsarios para Civilizar o Povo egradualmente Sugeitar aSubordinacaõ aquelles homens creados / posso dizer assim / sem Ley nem Religiaõ. (AIXVIII-28/64) Assim escopa E3 como um todo em segmento parentético que apresenta foco na elaboração tópica, relacionado à formulação linguística do tópico, uma vez que focaliza a própria construção do texto, apontando para a caracterização da forma como aquelles homens eram creados. O escrevente, por meio da parentetização, imprime, no texto, a necessidade interativa de indicar para seu destinatário que a caracterização realizada em E3 é resultado de uma construção figurativa intrínseca ao contexto. O parêntese mostra, na materialidade do texto, essa avaliação em curso. Na inserção parentética, em (3), assim, encerrando o parêntese,incide sobre o verbo sinto, conforme sua função de advérbio modal, e realiza uma sinalização catafórica, escopando E3 como um todo: (3) Não sei qual é a sua concepção da Vida. Eu te- nho a minha, que aliás não é minha, que bebi na literatura ori- ental, e 156 Lúcia Regiane Lopes Damasio que (sinto assim) foi a única felicidade que tive nes- ta minha atribulada existência. É o resultado do estudo da mi- nha vida inteira. (FFXX-56b/121) Esse segmento parentético também integra a classe de parênteses com foco no locutor, mas, nesse caso, sinaliza informações proposicionais que estão diretamente ligadas à manifestação de sentimentos do escrevente. Portanto, não se associa à modalização das colocações tópicas. A função desse parêntese é evidenciar, para o destinatário, o caráter extremamente subjetivodo conteúdo tópico. A dificuldade em separar a atitude do escrevente da avaliação que ele faz do conteúdo do tópico que constrói fundamenta a sugestão de que esse tipo de parêntese represente uma classe não-discreta, em que, concomitantemente, ocorre a focalização da manifestação atitudinal do locutor e do conteúdo tópico, sendo que a primeira ocorre em consequência da natureza da segunda. Assim, a função interativa do parêntese (sinalização do alto grau de subjetividade do conteúdo tópico) está associada à sua função textual, já que é a natureza desse conteúdo que torna necessária tal sinalização. Nas ocorrências (4) e (5), assim integra o segmento parentético sinalizado, graficamente, por vírgulas e permite paráfrase por digamos assim: (4) A extensão d’este artigo seria razão para que com elle não entretivessemos nossos Leitores, se sua importancia, se seu objecto, se o enxame de verdades, e de vistas novas que encerra, nôs não forçassem, por assim dizêl-o, a isso.(LRXIX-430/77) (5) Durante mais de um mês, o antigo secre-tario do PCB foi, por assimdizer, o “homem do dia”. [...] (OESPXX-1958/176) 157 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Em (4), assim não sinaliza E1 como um todo, mas, especificamente, um item desse enunciado, forçassem, anterior à inserção parentética. Em (5),sinaliza o SN o homem do dia, mas, agora, cataforicamente. Ao empregar o verbo e o SN referidos, o escrevente apresenta, via parêntese, uma avaliação voltada para essa formulação. Essa avaliação, que pode realizar-se pré ou pós o segmento sinalizado, denota a preocupação do escrevente em expressar a pertinência desses empregos. Assim, caracterizam-se parênteses com foco na elaboração tópica, relacionados à formulação linguística do tópico, cuja função textual-interativa é indicarpara o interlocutor que determinado emprego lexical é expressivo. O tópico (6) traz novo parêntese voltado para a elaboração tópica: (6) És um felisardo; sem solicitares cou- sa alguma, vaes te deixando levar - assim com [s]eus ares de Napo- | leão no Egyptopara o ponto almejado e p[corroído] [c]aminhos da ma-xima conven[iencia]. Seguir a oppor- tunidade é u[ma] [g]rande cousa ..... (CPXIX-16/24) Assim inaugura o parêntese e realiza sinalização anafórica e catafórica. A anafórica indica o trecho vaes te deixando levar de E1 e focaliza uma informação de natureza modal, conformea função adverbial de assim, enquanto a catafórica aponta para o interior do parêntese, em E2, e explicita a informação modal relevante para E1. Trata-se de um parêntese com foco na elaboração tópica, voltado para o conteúdo tópico, cuja função é esclarecer informação apresentada em E1. Esse tipo de parêntese representa um caso considerado limite, cujo reconhecimento do segmento como parentético depende das suas marcas formais, dado que sua outra propriedade identificadora, a do desvio tópico, encontra-se atenuada.2Assim, o aspecto decisivo para a análise Nas ocorrências do IBORUNA, a análise desses casos baseia-se na observação de marcas de natureza prosódica. Nessa direção, o escopo de sinalização de assim, em contextos de parênteses com foco no conteúdo tópico, só pode ser definido a partir de uma análise prosódica eentoacional,cf. os pressupostos de NESPOR e VOGEL (1986) e de TENANI (2002) e FERNANDES (2007). A esse respeito ver LOPES-DAMASIO (2009). 2 158 Lúcia Regiane Lopes Damasio desse segmento como parentético são os sinais formais que delimitam E2. Nesses casos, a função textual está em evidência, já que o conteúdo da inserção parentética encontra-se no limiar da centração tópica, o que não quer dizer que a interacional seja suprimida. Nessa ocorrência, ela pode ser constatada na criação de uma maneira informal de promover o esclarecimento, a partir da introjeção de dados ilustrativos no tópico, o que garante a eficácia do ato comunicativo. No tópico (7), assim integra uma oração condicional, realizando sinalização retrospectiva e escopando E1 como um todo. E1 desempenha função metadiscursiva voltada para a sinalização da estrutura textual: (7) Aqui fico por ora (se assim qui- | zerem) dando no em tanto os para- | bem ao Senhor Doutor Getulio, pelos elo- | gios, (se os acceitar) que lhe tece | aquelle homem, declarando porém, | que muito me glorio, em têl-o por | meu inimigo, [...] (LRXIX-451/80) Ao sinalizar E1, o parêntese materializa a presença do(s) destinatário(s) no texto, justificando sua classificação como parêntese com foco no interlocutor. Sua função é instaurar a conivência com o interlocutor, uma vez que o escrevente deposita no(s) seu(s) destinatário(s) a exigência de ter que finalizar sua carta, comprovada pela configuração condicional do parêntese. Embora acentuadamente interacional, esse parêntese tem sua implicação textual: indica o processo de construção do tópico ao desviar seu conteúdo “para, nesse intervalo, colocar em proeminência informações sobre o papel discursivo do interlocutor” (JUBRAN, 2006b, p. 345). Nas ocorrências extraídas do IBORUNA, assimocupa a posição préparêntese, sinalizando segmento de E1 e o próprio enunciado parentético. A maior parte das ocorrências(89,47%) apresenta foco na elaboração tópica, voltada para o conteúdo tópico, com as funções deesclarecer eexemplificar. 159 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Na função de esclarecer, observam-se dois parâmetros de comportamento: (i) correspondente àquele constatado em dados diacrônicos, cf. (6), em que assim sinaliza, anaforicamente, um segmento de E1, focalizando informação de natureza modal, e, cataforicamente, o próprio E2, sinalizando o esclarecimento da informação modal relevante para o bom entendimento de E1: (8) é:: ele chegô(u) já logo foi brincan(d)o né? quando viu que eu era de::... Rio Preto... ele já foi brincan(d)o dizen(d)o que ia... que ia me/ me:: me ferrá(r) assimem tema de brincade(i)ra... um tipo cablocão né?... um cara bacana pra chuchu... né?... (AC147/NE1078) (ii) ocorrências em que, embora o esquema fórico do item continue o mesmo, deixa de ser observado o esclarecimento de uma informação modal. De fato, apenas focaliza-se à esquerda do parêntese, em E1, uma informação que necessita, segundo avaliação do falante, de um esclarecimento para o bom entendimento do tópico, cf. (10): (9) era assim... era dos MEUS pesadelos... sabe?... a impressão é que se você che/ caísse ali... você ia... SUMÍ(r) e... e nunca mais ia... ia... então isso na cabeça da gen::te assimcriança... era uma fantasia vivê(r) naquele espaço... (AC-150/DE1187) A função deexemplificar,observada naocorrência (10), também não está relacionada à informação de caráter modal. Nesse caso, em relação a E1, a sinalização catafórica aponta para o parêntese, em E2, onde há a exemplificação, a partir de uma comparação: (10) é como se fosse um prédio de quatro andares... só assim a pedra... e você pode í(r) subin(d)o escalan(d)o ela assimé como se fosse os/ um tobogã... e a onda é TÃO forte... que ela bate e ela sobe aqui [...] (AC-087/DE668) 160 Lúcia Regiane Lopes Damasio Diferentemente das ocorrências analisadas, principalmente na perspectiva diacrônica,3nos dados extraídos do IBORUNA, por meio do parêntese, o falante assevera o que diz e compromete-se com sua palavra. Em (11), há uma avaliação epistêmica em relação à veracidade de E1, apontando para a asseveração, a partir da evidencialidade do que é aí afirmado: (11) tinha uma cobra l/ lá::... que comeu um boi... só que assim a gente SAbe? que cobra come boi [normal]beleza... assim já ouvi mesmo já vi:: fatos jornalísticos... só que ela num/ só que aí a cobra come boi mas a cobra::… maceta o boi [né?] quebra tudo os ossos e maceta ele dentro dela... só que meu avô fala que boi ficô(u) inte::(i)ro e o boi até mugia dentro da cobra [...] (AC-054/NR303) Algumas observações são pertinentes enquanto resultados dessa análise: (i) Em relação à localização: assim apresenta distribuição equilibrada em todas as possibilidades de localização (antes do parêntese [pré-par], no início do parêntese, encerrando-o e em outras posições, denominadas de posições de integração). (ii) Em relação à sinalização: assim pode realizar sinalização de natureza: (a) anafórica, escopando E1 como um todo; (b) anafórica, escopando segmento de E1; (c) catafórica, escopando E3 como um todo; (d) catafórica, escopando segmento de E3; (e) catafórica, escopando o enunciado parentético E2 e E3 como um todo; (f) anafórico-catafórica, escopando E1 como um todo e E3 como um todo; Em que esse tipo de parêntese estava associado à modalização epistêmica (cf. (01)) ou a sentimentos do escrevente em relação ambígua com o conteúdo tópico (cf. (03)). 3 161 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos (g) (h) anafórico-catafórica, escopando o enunciado parentético E2 e E3 como um todo; anafórico-catafórica, escopando segmento de E1 e o enunciado parentético E2. (iii) Em relação à correlação localização e sinalização: não é possível a correlação diretada localização do item com o tipo de sinalização realizada por ele. Entretanto, em todos os casos analisados na perspectiva diacrônica, seu funcionamento, ainda que em contextos de início de parêntese, não equivale à função de sinalizar o segmento parentético. Em todas as ocorrências, ele faz parte de E2, auxiliando seu funcionamento a partir de sua sinalização e significação modal, diferentemente do que se observa nas ocorrências extraídas de textosque representam a sincronia atual, nas quais se constata a função exclusiva do item de sinalizar o segmento parentético, sem integrá-lo e sem compartilhar de sua funcionalidade dentro do tópico discursivo. Nesses casos, o item, enquanto MD, funciona como marca formal de parêntese voltado para o conteúdo tópico.4 3.2 Assim e o processo de parafraseamento Nos tópicos que manifestam ocorrências de assim em contexto de paráfrase (P),o item apresenta função fórica, retro-propulsora, em que retoma o segmento matriz (M) e aponta o desenvolvimento da P.A sinalização retrospectiva, realizada pelo item, tem a função de servir como 4 Nesse tipo de funcionamento, uma análise a partir dos pressupostos da fonologia prosódica (NESPOR e VOGEL, 1986)e entoacional (TENANI, 2002; FERNANDES, 2007) mostra que o item associa-se à porção textual à direita e constitui sozinho uma frase entoacional (I), o que motiva a interpretação de que, embora esteja associado a E2, não integra E2, mas apenas o sinaliza. O contorno entoacional revela uma curva descendente, no final da oração que antecede assim, seguido por uma pausa, evidenciando a existência de uma fronteira prosódica, e por um contorno ascendente no item, que é seguido, novamente, por breve pausa ou simplesmente pela percepção de um novo I (quando essa pausa não é percebida acusticamente). Na sequência, parece haver um tom ascendente, seguido por um contorno descendente no final de E2 (LOPES-DAMASIO, 2009). 162 Lúcia Regiane Lopes Damasio “gancho” que atua na manutenção do assunto no tópico em questão, ao mesmo tempo em que sua sinalização prospectiva direcionapara a introjeção de novas predicações em relação a esse assunto. Portanto, ocorre, na M, o desenvolvimento de um tópico específico e, na P, o mesmo assunto como foco da reformulação, o que constitui forte indício da centração tópica. Levando em conta essa consideração, a análise focalizará a funcionalidade geral da relação parafrástica observada em contexto do item: (12) Queira o Prof. Fidelino de Figueiredo desculpar este seu amigo e admirador que é o Cruz Costa, por não haver elle passado M novamente, em tempo opportuno, pela Tudor House, afim de pedir-lhe a carta de apresentação para a directoria do Gabinete Portuguez. É que a minha viagem foi resolvida á ultima hora e executada com grave rapidez. Em todo caso, servi-me, verbalmente, de sua apresentação. Assim, apresento-lhe as minhas desculpas e muito agradeço a gentileza P que Teve, escrevendo ao Snr. Presidente do Gabinete Portuguez de Leitura(FFXX-41b/117) Nesse tópico, o escrevente enfatiza, via P adjacente, seu pedido de desculpas ao destinatário, em proposta de compreensão voltada à recuperação, por parte daquele, dessa sua intenção comunicativa. Assim, a P não interrompe o fluxo da comunicação para apontar qualquer falha no conteúdo do que foi dito, mas para enfatizar determinado traço desse conteúdo, especificamente,o pedido de desculpa, e para acrescentar novo conteúdo proposicional, relativo ao agradecimento. Portanto, à função metaformulativa da P, soma-sea de fazer o texto progredir. A relação de equivalência semântica entre M e P é mediada pela predicação de identidade entre os segmentos. No que tange ao deslocamento de sentido, o movimento de generalização evidencia redução sintático-lexical, configurando uma P redutora, com função deresumir. 163 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Na P adjacente, em (13), há uma equivalência semântica predicada a partir de movimento especificativo: a abrangência semântica da M é mais geral do que a da P, que atualiza traços semânticos implícitos naquela: (13) Comparando Ouro Preto com o M Recife vemos que são complatamen= te oppostos. Assim o que lá é pedra e tijolo aqui é taboa e muitas vezes de caixão; lá existem casas muito altas, aqui ao contrario são casas P que mal cabem um homem de pé, e assim por diante.(CPXIX-27/31-32) A especificação semântica traduz-seem umaexpansão formal da P em relação à M, caracterizandoumaP expansiva em contexto de assim, que, cf.(12), ocorre encabeçando o segmento P,cuja função é precisar a informação contida na M (Pexplicitadora). Assim, a relação parafrástica não está, novamente, voltada à correção de uma falha na formulação da M, mas à explicitação do que foi afirmado. Segue, em (14), ocorrência de assim em contexto de P observada em editorial: (14) [...] E respondendo assim, calmamente, com documentos M valiosissimos, que não podem ser contestados, a uma parte do virulentissimo artigo que contra nós hontem publicaram os collegas do Correio para provar que houve violencias no pleito do dia 30. [...] Só aqui temos mil e seiscentos votos, muito mais de mil, portanto. E o Correio espere pelo resto, que ha de apparecer em breve, porque a apura- ção official se fará no sabbado. [...] 164 Lúcia Regiane Lopes Damasio P E assim, calmamente, com documen- | tos e argumentos que não têm resposta, | destruimos todas as accusações do viru- | lentissimo artigo que contra nós hon- | tem publicaram os amigos do Correio Paulistano (OESPXIX-1891/155) O ST inserido entre a M e a P, portanto, não-adjacente, está relacionado à explanação da forma como, por meio da exposição de argumentos, o jornal A província de S. Paulo destrói as acusações realizadas, contra ele, pelo Correio Paulistano. Alto grau de equivalência semântica pode ser observado entre M e P, além da configuração formal simétrica da P, o que a aproxima de um caso de repetição. Apesar disso, há aí um movimento semântico de generalização com função de resumir, se considerado todo o contexto tópico, incluindo o ST inserido, que permite a interpretação do segmento parafrástico como responsável pela função de fechar a argumentação realizada no editorial a partir da recomposição do conteúdo tópico. No corpus sincrônico, são frequentes as ocorrências de assim em contextos parafrásticos. Em 95,5% dos casos, o item ocorre em posição inicial de P. No que tange ao tipo de P, a maior parte das ocorrências revela P expansivas (64,4%); seguidas pelas P simétricas (26,6%); e, por fim, pelas P redutoras (apenas 8,8%). Relativamente aos deslocamentos de sentido, a totalidade dos casos de P expansivas e simétricas relaciona-se ao movimento semântico de especificação (cf. (15)) e a totalidade dos casos de P redutoras, à generalização(cf. (16)):5 (15) ele fazia tarefa e ele se tornô(u) um aluno maravilhoso... ele éh::... M Em (15) e (16), apresentam-se traços associáveis aos usos de assim no padrão (4), equivalente à sinalização de construção de quadro mental, intrínseco a contextos descritivos, cf. Quadro 1. 5 165 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos P assim ele é bem agita::do ele é bem participati::vo... é um aluno que às vezes ele dá um po(u)co de trabalho porque ele fica todo agitado ele qué(r) andá(r) ele qué(r) passeá(r) ele qué(r) saí(r) ele qué(r) í(r) no banhe(i)ro ele vai ele volta ele é bem... bem ativo mesmo...(AC-088/NE717) (16) Inf.:[não] ... a maioria do serviço era MANUAL... a maioria do serviço de M alfaiate naquele tempo... só à maquina na hora de costurá(r)... fazê::(r)... a:: a ca::lça... calça assimusava muito a máquina... mas o maior parte era manual...(ACP 151/RP1211) Em relação a seus funcionamentos específicos: (a) as P expansivas revelam, em 96,5%, a função de explicitar(17). Essa funcionalidade mostrou-se prototípica também nos dados diacrônicos: (17) –... aí deu certo tudo que eu entrei né? fiquei em quarto... ma::s... aí foi legal num sei eu acho assim num sei se foi cedo d’eu entrá(r) na faculdade porque eu tava sain(d)o do colegia::l... P então é um/ uma coisa assim... é um... trunca/ um truncamento assim na vi/ na vida né? no M nos tipos de coisas... nas vida que você leva... (AC-054/NE297a) (b) as P redutoras revelaram, em 75%, a função de resumir (18) e, em 25%, a função de denominar(19). Também essa funcionalidade prototípica já havia sido apontada pela análise das ocorrências de P na perspectiva diacrônica: (18) M P eu LEMbro de alguns FAtos que aconteceu sabe? alguns relâm::pagos assim eu num lembro de tudo... 166 Lúcia Regiane Lopes Damasio eu sei que a gente fo::i andô::(u)... continuô(u) andan(d)o na avenida do:: do Teixeirã::o o estádio... até que eu parei numa praça e sentei num banco... foi aí que eu comecei vomitá(r) [...] (AC-055/NE379)6 (19) Inf.: é éh eles se sente assim que::... é por exemplo em São José do Rio Preto... a:: alguns cursos que eles gostariam de fazê(r)... M escola pública universidade assim faculdade pública ...(AC-149/RO1132) P (c) as P simétricas revelaram, em 50% das ocorrências, a função de adequar o vocabulário(20), em 33,3%, a função de explicitar7(21) e, em 16,6%,a de definir(22). Não foram observadas as funções de resumir e denominar: (20) Inf.: não... o/ o:: mestrado ele:: funciona assim óh... você entra... [Doc.: hum] pelo menos é AQUI M em alguns campus assim em algumas instituições P muda né?... aqui você en::tra... você... no primeiro ano cê vai cumprí(r) os créditos...(AC-053/NE241) (21) atrás as/ aí na p/ na porta tem um um um desenho assim de um carinha... meio... meio chapado assim [Doc.: aham ((concordando))] é:: desenhado (no) giz de ce::ra e mais M uns uns símbolos da paz assim vários símbolos da paz do lado... (AC-054/DE339) P Nas ocorrências (17) e (18), representativas das funções de explicitar e resumir, há associação ao padrão (4). Em (18), esse funcionamento, sugerido pela composição interativa de um quadro mental descritivo, depende do ST que dá continuidade ao tópico, imediatamente após o segmento P transcrito. 7 Apenas esse tipo de funcionamento parece associável ao padrão (4). 6 167 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos (22) Inf.: éh... minha cama... não é bem de casal ((ruído)) M é de viúva... assim... quase de casal...(AC-052/DE209) P De modo geral, a função de explicitar, em relação à P expansiva ou simétrica, é a mais significativa (71,1% do perfil funcional das P em contexto do item assim). A partir dessa análise, algumas observações são pertinentes: (i) Em relação à localização: o item ocorre, na maioria dos casos, inaugurando a P (podendo seguir imediatamente e, sendo grafado com ou sem “espaço”). (ii) Em relação à sinalização: o item realiza sinalizações anafóricocatafóricas, ao mesmo tempo, retomando o segmento M e apontando o desenvolvimento da P. (iii) Em relação à correlação localização e sinalização: é possível correlacionar a sua localização, em início de P, e o tipo de sinalização que realiza, retropropulsora. 3.3 Assim e o processo de correção De modo geral,assim desempenha função fórica retro-propulsora de marcador de correção(MC), indicando a inserção do enunciado reformulador (ER), cataforicamente, em relação ao enunciado fonte (EF), retomado, sempre nessa sequência (EF – MC – ER), em distribuição adjacente (no mesmo turno/frase).Em relação à operacionalização das correções, a totalidade das ocorrências corresponde a autocorreções auto-iniciadas, cf. (23): (23) ah mas num é possível... senão a cobra ia ficá(r) com três metro de altura[assim] [Doc.: aham ((concordando))] de:: de comprimen::to né?... (AC-054/NR304) 168 Lúcia Regiane Lopes Damasio No que tange aos aspectos linguísticos e interativos, observam-se: (i) correções lexicais; em que ocorre a substituição de uma seleção léxica não pretendida por outra, avaliada como mais pertinente pelo falante, cf. (24) e (25): (24) e ele tinha:: comprado éh:: compradoassimganho né?... do:: do filho que mora em São Paulo... um Passat...(AC-115/NE854) (25) um dia é/ um dia pra arrumá(r)... éassimuma semana né? pra arrumá(r) e um dia pra desarrumá(r)...(AC-056/DE402) Em (25), o itemdia alavanca a repetição de um segmento tópico para sua correção. Assim, essa ocorrência se distingue da anteriorem complexidade porque, embora o EF seja um item lexical, todo o ST que ele integra é repetido no processamento de sua correção, por semana. (ii) correções morfossintáticas; em que se constata a má-formação da frase em relação específica a problemas de regência, concordância etc., cf. (26), em que assim marca o ER que estabelece a correção da concordância verbal: (26) tinham lançado trinta pessoas na lista de espera e eu fiquei em dezesseis praticamente no meio da lista de espera... aí veio::... assimeu vim de manhã:: (AC-087/NE633) (iii) correções sintático-semânticas; em que é corrigida a máformação da frase do ponto de vista sintático e/ou semântico, cf. (27), (28) e (29): (27) Doc.: tem muitos cursos? Inf.: HÁ muitos cursos háassim/ na verdade tem seis ou sete eu acho [...] (AC-081/DE430) 169 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos (28) agora aquele que num tem o apoio da família... num adianta você... sê(r) um professor brilhan::te tê(r)... um/ sabe? a escolaassim/ a melhor escola... se ele num::... num tem certos valores...(AC-116/RO929) (29) com mo::/assimbastante molho... assim sabe ficá(r) bastante::... aquele creme né?(AC-087/RP691) Em (27), a correção do EF HÁ muitos cursos é acarretada por seu conteúdo, reavaliado e reformulado na construção sintático-semântica do enunciadona verdade tem seis ou sete. Já em (28), a motivação da correção do EF a escola é a inserção do modificador no ER, que garante a infirmação da formulação sintática do EF ter a escola,insuficiente para estabelecer o paralelismo sintático-semântico pretendido pela falante, em num adianta você... ser um professor brilhante, ter a melhor escola.... Em ambas, embora haja distinções relacionadas às motivações, ora mais sintáticas ora mais semânticas, assim marca a inserção do ER sem interromper, sintagmaticamente, o processamento do EF, que é, portanto, concluído nos dois casos. Por outro lado, em (29), como em muitas ocorrências presentes nos dadosdo IBORUNA, há uma interrupção sintática ou um falso início, para usar a terminologia de MARCUSCHI (2006b), causado pela inserção do marcador que sinaliza o ER.O segmento realizado do EF, ainda que não completo linguisticamente, é suficiente para garantir a relação retrospectiva da correção. Foi encontrada apenas uma ocorrência de contexto corretivo fora da perspectiva sincrônica, a saber, emuma carta.Em relação às marcas de correção, em dados de escrita, observa-se que pode haver ou não o aproveitamento de segmentos do EF no ER, podendo a correção ser acompanhada de rasuras ou de sinais (traços) que anulam letras, sílabas, palavras ou segmentos, representando graficamente a infirmação. Vejamos: 170 Lúcia Regiane Lopes Damasio (30) Aconselhei ao Chico estudar pharma- cia aqui, pois quee assim fazendobaseava- me na facilidade d’esteestudo aqui –(CPXIX-28/34) Nessa ocorrência, assim segue uma correção, em que não há aproveitamento do EF, sinalizada por um traço que anula esse segmento no texto. No entanto, assim não funciona, como nas demais ocorrências analisadas, como um MC. Não se trata, portanto, de um uso prototípico do item, que ocorre numa construção maior (e assim fazendo) em que a correção é marcada pelo sinal gráfico que anula o EF (traço). Entretanto, percebe-se que o escrevente inicia, mas não termina, sintagmaticamente, um segmento (pois que), que atuaria, no texto, como justificativa para o aconselhamento realizado por ele ao Chico, e o anula para que seja inserido o ER [e assim fazendo] baseava-me na facilidade d’este estudo aqui, que estabelece a relação de causa-consequência, avaliada como mais pertinente. Embora numa estrutura de reformulação diferenciada, graças à inserção de assim na construção, sugiro uma aproximação dessa ocorrência com aquelasconstatadas sincronicamente nos dadosdo IBORUNA, em que a há o abandono de uma construção iniciada, para a inserção da correção, numa construção que sintático-semanticamente é avaliada como mais apropriada aos objetivos comunicativos do escrevente. Dessa forma, depreende-se, diacronicamente, um contexto de co-ocorrência de assim com a correção que pode ser indiciário do desenvolvimento de seus usos mais atuais nessa estratégia. 3.4 Assim e o processo de repetição Apesar de a repetição (R) ter sido constatada, nesse contexto específico, apenas nos dados do IBORUNA e em baixa frequência,mostrou-se reveladora de aspectos importantes do uso de assim.8 Dessa forma, seguem as ocorrências: Chamo atenção, aqui, para a relevante frequência do item em contexto de repetição hesitativa, analisada juntamente ao processo de hesitação, cf. seção seguinte. Caracteriza-se, desse modo, uma especialização de assim em contextos que evidenciam esse tipo de R. 8 171 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos (31) ... e à noite tem as FEStas né? que toca forró::assim... forró:: todo tipo de música... (AC-051/DE118) (32) aí fui chegá(r) aqui em Rio Preto:: dez:: e: meia... assim::... no::/ na:: sexta-fe(i)ra... assim... c’a flor da pele esperan(d)o até terça-feira pra fazê::(r) a inscrição da UNESP assim vai passa o domin::go... e vô(u)/ ia chegá(r)assim óh::/ ia chegá(r) a outra semana mas nunca ia chegá(r) terça-fe(i)ra [Doc.: ((risos))]... (AC-087/NE632) (33) Doc.: a senhora ficô(u) saben(d)o assim de algum assalto assim no nosso bairro Inf.: assaltoassimno nosso bairro não na o(u)tra semana teve [Doc.: ahm]... faz quinze dias mas é aqui o começo no fim da Potirendaba né? [Doc.: hum::] no dia da do daquele homem o casal que ia saindo com os dois filhos pra viajá(r) no feriado né?... e:: chegaram dois ladrão né?... (AC-152/NR1230) As R são produzidas em posição adjacente à matriz (M). Quanto à produção, (31) e (32) correspondema auto-repetições, e (33) evidencia uma heterorrepetição. As ocorrências representam casos de segmentos repetidos integralmente, com identidade total de forma e padrão de realização prosódica.Sob o ponto de vista da categoria linguística do segmento repetido, há R de item lexical (forró::), em (31), de construções suboracionais (SV ia chegá(r), em (32), e de estrutura completivaassalto assim no nosso ba::irro, em (33)). Especifico, no esquema abaixo, uma diferença importante entre a construção suboracional repetida em (32) e a em (33), no que diz respeito às suas relações comassim: (32) (33) M R1 R2 M R assim óh::/ mas nunca ia chegá(r) ia chegá(r) a outra semana ia chegá(r) terça-fe(i)ra Doc.: assalto assim no nosso bairro Inf.: assalto assim no nosso bairro 172 Lúcia Regiane Lopes Damasio Em (32),assimrealiza uma sinalização retro-propulsora que estabelece um “gancho” entre o segmento M e sua R, numa relação de marcação M – MR – R (cf. contextos de ocorrência do item em correção). A coocorrência de oh:: corrobora a sinalização realizada por assim. Em (33), o itemnão desempenha esse tipo de função associada à sinalização da R, integrando a M. No que tange à funcionalidade das Rs, constatam-setrês aspectos distintos: em (31), a R apresenta foco funcional na coesividade; em (32) na argumentatividade; e, em (33), na coesão tópica. Especificamente, em (31), a R do item lexical forróestabelece um elo coesivo, a partir da retomada do complemento do verbo toca, para acrescentar a ele mais um item; todo tipo de música. Diferentemente, o foco funcional da R da construção suboracional (SV ia chegá(r)), em (32), volta-se para a reafirmação de um argumento, a partir de uma construção desse argumento em uma estrutura de paralelismo sintático, ilustrando o fato de que a R, marcada/sinalizada por assim não equivale apenas a “dizer a mesma coisa”. Aqui, a forma como esse dizer se faz, na estrutura sintática repetida, é muito mais eficiente, argumentativamente, do que se se dissesse apenas: [...]ia chegá(r) a outra semana mas nunca a terça-fe(i)ra [...]. Por fim, a R de construção suboracional, em (33), focaliza a organização tópica, especificamente a introdução de um novo tópico. Antes de desenvolver o novo tópico proposto pela documentadora, a falante lança mão dessa estratégia de construção textual, para marcar o referencial do tópico que será construído, garantindo, com isso, um ganho de tempo para as próximas formulações na constituição de seu texto. A análise de assim em contexto de R revelausos mais abstratos, relacionados à marcação/sinalização da R; e mais concretos, relacionados a aspectos proposicionais do segmento M repetido. Esse resultado evidencia estágios distintos de gramaticalidade do item em relação a esse processo de construção textual. 173 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos 3.5 Assim e o processo de hesitação Aponto, de início, duas especificidades do funcionamento deassim em contextos de hesitação, em dados extraídos do IBORUNA: (i) o itemdesempenha genericamente a função de preenchimento de pausa hesitativa, em contexto de co-ocorrência com outros tipos de fenômenos indicativos de hesitação, sendo observado, mais raramente, desempenhando, sozinho, essa função; e (ii) os traços do funcionamento fórico modal deassim são esvaziados, i. é, não é possível especificar o direcionamento da sinalização realizada pelo item, o que, consequentemente, inviabiliza a comprovação dessa sua função.Nessa direção, todas as ocorrências, transcritas e analisadas, exemplificam (ii), com exceção daocorrência (34), que ilustra (i): (34) ... se eles... TIVEREM assim uma... uma coisa bem... éh:: programada um... projeto bem feito...(AC-053/RO270) Em (34), ocorrerepetição hesitativa do item funcional uma, intermediada por pausa não preenchida, seguida pela expressão hesitativa éh, realizada com prolongamento vocálico. O núcleo do SN “uma coisa bem” com determinante repetido, em função da hesitação, constitui o primeiro alvo de busca de adequação da seleção lexical pretendida, seguido pelo segundo alvo, o modificadorprogramada desse SN, também marcado pela expressão hesitativa éh. Constata-se, na sequência, uma P simétrica que materializa no texto a “resolução” do problema de formulação sinalizado pelas hesitações, via função de adequação vocabular. Todo o segmento M, da P em questão, émarcado como hesitativo por assim, cf. esquema: M P assim uma... uma coisa bem... éh:: programada um... projeto bem feito... 174 Lúcia Regiane Lopes Damasio Em (35),assimmarcaa hesitação em contexto permeado por outros tipos de marcação desse fenômeno: (35) e ela faz um trabalho até muito interessante na Cruz Vermelha que ela... aceita::... que ela ela:: acolhe... mulheres... éh::... perseguidas pelos governos... [Doc: hum] principalmente do lado assim... dos árabes... (AC-150/NE1167b) Além da função textual-interativa genérica de preenchimento de pausa, os usos deassim relacionam-se, especificamente, a funções metadiscursivas que concretizam aspectos da textualização desdobrados em mecanismos variados de focalização da atividade discursiva, cf. (36): (36) e a minha mãe sempre foi uma pessoa bem:: severa nunca deixô(u) a gente assim... é é... saí(r) pra é brincá(r) brincá(r) fora [...] (AC-120/DE1040) Essa ocorrência, seguindo o funcionamento mais frequente entre os usos deassim em hesitação, sinaliza o processamento de seleções lexicais. Por sua vez, (37)depreende o uso do item relacionado a unidades tópicas mais amplas: (37) Doc.: e seus pais apoia::vam? não::? Inf.: ah minha/ minha mãe assim... apoiava muito gostava muito dele[...] (AC-056/NE389) Nessa ocorrência, juntamente aos demais recursos que indicam hesitação,assim relaciona-se à determinação do foco do novo subtópico sugerido pela documentadora, a partir da pergunta e seus pais apoia::vam?. Observa-se, portanto, um acúmulo de hesitações no início do desenvolvimento dessenovo subtópico, estejam elas relacionadas ao “plano formal das estruturas sintáticas ou ao plano discursivo-textual da formulação enunciativa” (MARCUSCHI, 2006a, p. 69), como parece ser o caso de (37). 175 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos A ocorrência (38) exemplifica um uso de assim, menos recorrente, em que o item sinaliza a inserção de um ST que relativiza/modaliza as colocações anteriores, apresentando traços do MD assim atenuador: (38) mas aí depois a ca/ as famílias acabaram tendo uma certa relação de amizade... e e/ eles frequentavam minha casa assiméh:: algumas vezes... e:: até um/ até uma certa idade quando ela tinha uns dez anos e depois... eu nunca mais a vi assim a/ sumiu... (AC-083/NE481) 4 Relações funcionais A partir da descrição e análise do item em contextos de parêntese, paráfrase, correção, repetição e hesitação,algumas relações funcionais relevantes podem ser identificadas. (I) Em relação àfunção fórica de assim, responsável pela sinalização dos ST que estão sob o escopo funcional dosprocessos de construção textual: (a) PARÊNTESE:o escopo incide, cf. as possibilidades de sinalização, sobre o tópico como um todo, ou apenas termos e ST. Essa sinalização concorre para particularizar o desvio tópico do processo de parentetização configurado em contexto de assim, uma vez que é exatamente essa ligação entre E2 e E1 e/ou E3, instanciada por meio da foricidade do item, que caracteriza um desvio em pequenas proporções, em que se observa E2 no limiar da centração tópica. Esse aspecto reflete-se nas funções dos parênteses constatados no contexto do item. (b) PARÁFRASE: a sinalização representa traço importante para o processo, já que atua na correlação entre os enunciados constitutivos da M e da P, via elo anafórico-catafórico. 176 Lúcia Regiane Lopes Damasio (c) CORREÇÃO e REPETIÇÃO:a sinalização retro-propulsora, realizada por assim,também constitui um importante papel na marcação dos enunciados reformuladores (ER) ou repetidos (R) em relação aos enunciados fonte (EF) ou matriz (M). Nesses processos, o funcionamento fórico de assim concorre para a instauração da propriedade de centração tópica. (d) HESITAÇÃO: diferentemente, em contextos de hesitação, assim perde seus traços fóricos, deixando de estabelecer sinalizações de porções tópicas. (II) Em relação à integração ou à marcação de assim nos ST que constituem os processos textuais focalizados: (a) PARÊNTESE:o item, atuando foricamente: (i) integra, ao mesmo tempo, os ST que constituem o parêntese, ou seja, sua foricidade desempenha papel importante para as funções parentéticas, mostrando que o item faz parte dos contextos tópicos que constituem esse processo textual;9 ou (ii) marca/sinaliza o segmento parentético, sem integrá-lo e sem compartilhar de sua funcionalidade dentro do tópico discursivo (MD com função de marcar formalmente parênteses prototipicamente voltados para o conteúdo tópico). (b) PARÁFRASE:a função de assim está integrada à do segmento que configura essa estratégia textual, i. é, o item sempre faz parte do segmento P, funcionando como elo explícito entre ele e o segmento M. A integração de assim a E2 foi constatada exclusivamente nos dados extraídos dos corpora diacrônicos. 9 177 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos (c) CORREÇÃO e REPETIÇÃO: em relação ao processo de correção, diacronicamente, o item integra o ER, enquanto, sincronicamente, funciona como um marcador de correção (MC), marcando/sinalizando o ER, sem integrá-lo, em construções adjacentes do tipo EF – MC – ER. Semelhantes são os casos de repetição, em que assim também funciona como um marcador de repetição (M – MR – R). (d) HESITAÇÃO: a hesitação, enquantoindicadora do processamento textual, revela assim não apenas integrando, mas constituindo, em si mesmo, um tipo de marca hesitativa. (III) Relações funcionais: o resultado mais expressivo deste estudo é o de que as funções dos processos textual-interativos, com os quais o item assim relaciona-se, a partir da integração ou da marcação/sinalização, apresentam fortes associações com as funções desempenhadas por esse item, na sincronia atual, fora desses contextos específicos. Quanto a isso, apresento as seguintes constatações: (a) PARÊNTESE: apesar de terem sido constatadas três dentre as quatro classes de parênteses existentes (cf. JUBRAN, 2006b), apenas funções específicas foram observadas: (i) atribuição de pontos de vista sobre o assunto a fontes não identificadas; (ii) manifestação de atitudes do escrevente em relação ao tópico; (iii) sinalização da elaboração tópica; e (iv) instauração de conivência com o destinatário. Os parênteses que desempenham a função (i) estão relacionados ao descomprometimento do locutor/escrevente em relação àquilo que está sendo dito/escrito. Esse tipo de função é desempenhado pelo P(3) – MD assim “atenuador” (cf. Quadro 1, na seção 2). 178 Lúcia Regiane Lopes Damasio Os parênteses voltados para (ii) e (iii) relacionam-se a diferentes papéis metadiscursivos, como apresentar foco na elaboração tópica, voltando-se para a formulação linguística do tópico, ou no conteúdo tópico, evidenciando, no segmento inserido, a construção textual. Esse tipo de função é desempenhado sincronicamente pelo P(2) – MD assim “sinalizador de metadiscursividade”. Aqueles parênteses que focalizam a manifestação atitudinal do locutor em relação a um determinado conteúdo tópico, representando, dessa forma, um caso de ambiguidade entre as funções (ii) e (iii), são responsáveis pela sinalização de informações proposicionais diretamente associadas à manifestação de sentimentos do escrevente em relação ao conteúdo tópico. Trata-se da função exercida pelo P(1) – MD assim “sinalizador de conteúdo expressivo”. Por fim, os parênteses que realizam a função (iv) representam traços de outras diferentes funções, dado que, ao instaurar conivência com o destinatário, o escrevente, ao mesmo tempo, divide com ele a responsabilidade pela maneira como está construindo seu tópico. Nesse caso, há tanto a função do P(3) – MD “atenuador”como a do P(2) – “sinalizador de metadiscursividade”. (b) PARÁFRASE: nos dados diacrônicos de carta e editorial, a natureza retro-propulsora da sinalização, realizada por assim, e a localização prototípica do item, na porção inicial da P, favorecem a emergência de relações semântico-cognitivas verificadas em seus usos com valor conclusivo (P(5)).10 Embora tais relações não estejam convencionalizadas, nesses contextos diacrônicos de P, elas podem surgir daí, via convencionalização de implicaturas, a partir de inferências conclusivas pertinentes e recorrentes nos contextos de P com funções de precisar/explicitar ou resumir. 10 O contexto e+assim, recorrente nos dados de P, representa importante papel, baseado na reinterpretação induzida pelo contexto, no desenvolvimento do P(5) – juntor coordenativo conclusivo (cf. LOPES-DAMASIO, 2011). 179 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Um aspectomerece destaque: nos dados sincrônicos, embora as possibilidades de localização, sinalização e função mantenhamse, em relação ao que se verificou nos dados do corpus diacrônico, não se constatam mais quaisquer relações entre M e P, em contexto de assim, e a coordenação de orações com valor conclusivo, realizada por esse item. Entretanto, nessa perspectiva, os contextos em que as P relacionam-se com as funções observadas diacronicamente (explicitar e resumir) caracterizam o uso de assim voltado para a construção de um quadro mental, relativo à descrição, equivalente ao P(4) – MD “sinalizador de construção de quadro mental”. (c) CORREÇÃO: de modo geral, contextos de correção não configuram ambientes propícios para a preservação da face do falante. Dessa forma, subjacente à função de marcar o ER frente ao EF, há uma função atenuativa de assim, voltada para o abrandamentodo risco que o processo de construção textual implantado representa à face do falante em relação ao ouvinte. Nessa direção, o uso deassimmarcador de correção revelaria características dos usos do P(3) – MD assim “atenuador”, representativo de seu comportamento comohedge de imprecisão/ incerteza que sinaliza a atividade cognitiva de planejamento verbal on line, atenuando os riscos que uma correção representa à face do falante. A co-ocorrência extremamente frequente do MD né?, nesses contextos de correção marcados por assim, funcionando como marca do pedido de aprovação do interlocutor, corrobora essa leitura. (d) REPETIÇÃO: o processo de repetição, enquanto estratégia de formulação textual, contribui para a organização discursiva, implementando sequências textuais mais compreensíveis e resultando numa textualidade menos densa e num maior envolvimento interativo. Nesse sentido, caracteriza um 180 Lúcia Regiane Lopes Damasio planejamento on line que acarreta a produção e reprodução, uma ou mais vezes, de segmentos inteiros, ou quase inteiros, motivadas por vários fatores, entre eles o cognitivo. Dessa forma, nos casos em que assim co-ocorre com esse processo, identifica-se a sua associação funcional aos procedimentos metadiscursivos que concretizam aspectos de textualização que se desdobram, juntamente com os mecanismos da repetição, focalizando a própria atividade discursiva. Portanto, a funcionalidade do itemnos contextos de repetição está associada ao P(2) – MD assim “sinalizador de metadiscursividade. (e) HESITAÇÃO: as ocorrências de assim relacionadas à hesitação, revelam o item desempenhando, de modo geral, a função de preencher pausa hesitativa, frequentemente em contexto de co-ocorrência com outros fenômenos indicativos de hesitação, e, de modo mais específico, as funções: (1) metadiscursiva, que concretiza aspectos da textualização desdobrados em mecanismos de focalização da atividade discursiva, como a hesitação em contexto de seleção lexical, de introdução de um novo tópico/subtópico ou manutenção tópica; e (2) atenuativa, que, embora menos frequente, é identificada em usos do item, em contextos marcados pela hesitação, antes da inserção de ST que relativiza/modaliza colocações/afirmações anteriores. Depreendem-se, portanto, relações desse uso de assim,ligado a contextos de hesitação, com outros usos do item, associados ao P(2) – MD assim “sinalizador de metadiscursividade”, no que tange à função em (1), e ao P(3) – MD assim “atenuador”, em relação à função em (2). 181 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Conclusões A partir de uma análise pormenorizada dos processos deparêntese, paráfrase, correção, repetição e hesitação, este trabalho revelou não apenas o comportamento do item assim frente à implementação de tais mecanismos textual-interativos, mas, por meio desse comportamento, as relações funcionais existentes entre os contextos em que o item atua nesses mecanismos e seus padrões de uso, especificados no Quadro 1. A partir desses resultados,duas afirmações são pertinentes: (i) assim revela papel funcional significativo em contextos de processos interativos de construção do texto, constituindo-se, inclusive, como marca da heterogeneidade constitutiva da escrita, nos moldes de CORRÊA (1997), em relação à parentetização e ao parafraseamento; e (ii) o funcionamento do item, nesses contextos, tem muito a dizer sobre seu processo de mudança, tanto na indicação de caminhos propriamente ditos dessa mudança, no caso de relações de derivação, verificadas ao longo do tempo, como na indicação de estratificações e especializações de usos na perspectiva sincrônica. Nessa linha, esse tipo de análise direciona o olhar para uma forma específica e nova de tratamento contextual, como base para algumas generalizações e implicações referentes a processos de GR, nos moldes do de assim, a partir da constatação das relações funcionaisexistentes entre os processos de parentetização, parafraseamento, correção, repetição e hesitação, que ocorrem em contexto do item,e os funcionamentos de seus usos em determinados padrões mais abstratos/gramaticalizados. Essas relações são retomadas, brevemente, no Quadro2: 182 Lúcia Regiane Lopes Damasio QUADRO 2: Relações entre os processos textual-interativos e padrões mais gramaticalizados de assim Processos textuaisinterativos (1D) Parentetização Padrões relacionados P(1) MD assim “indicador de conteúdo expressivo” P(2) MD assim “indicador de metadiscursividade” P(3) MD assim “atenuador” (2D) Parafraseamento (1S) (2S) (3S) Correção Repetição (4S) Hesitação P(5) “juntor coordenativo conclusivo” P(4) MD “sinalizador de construção de quadro mental” P(3) MD assim “atenuador” P(2)MD “indicador de metadiscursividade” P(2)MD “indicador de metadiscursividade” P(3) MD assim“atenuador” De início, especifica-se que as siglas (D) e (S) significam diacronia e sincronia, respectivamente. Em relação a (1D) e (2D), os contextos integrados por assim, observados em dados dos séc. XVIII a XX, favorecem a reinterpretação metonímica em direção à mudança categorial e semântico-cognitiva do item (de advérbio modal, constituinte de E2 > MD; e de advérbio modal, constituinte de P > juntor conclusivo). Dessa forma, os contextos de parêntese e paráfrase colaboram para a emergência das funções dos padrões relacionados, a partir dos funcionamentos explicitados na análise. A perspectiva diacrônica, além da relação de gramaticalidade, sugere também a relação de origem dos respectivos padrões apontados a partir dos usos em que o item integra as construções que desempenham os processos de parentetização e parafraseamento. 183 Para uma Análise de Processos Textual-Interativos Por outro lado, (1S), (2S), (3S) e (4S) apresentam processos textualinterativos, em co-ocorrência com o item sincronicamente. Aqui, observam-se contextos que colaboram para o processo de mudança que leva à emergência de aspectos específicos do funcionamento de assim nos padrões indicados e que colaboram, ao mesmo tempo, para a implementação de seus respectivos funcionamentos.11 Chega-se à conclusão de que o processo de mudança pelo qual emergem os usos mais gramaticais e abstratos de assim lança mão de contextos diferenciados para sua implementação. Esses contextos podem ser caracterizados por aspectos semântico-pragmáticos associados aos distintos processos interativos de constituição do texto, conforme expostos aqui. De formas diferentes, esses contextos colaboram para a incorporação dos novos funcionamentos do item, mediante o desbotamento de alguns aspectos semântico-formais e a persistência de outros. Para fechar este trabalho, a Figura 1 sistematiza as relações estabelecidas aqui: FIGURA 1: Escala de GR do padrão (7) de assim Esses padrões correspondem, na grande maioria, àqueles relacionados aos processos de parentetização, observados diacronicamente, o que leva à afirmação de que a mudança encontrase em curso, i. é, que os usos dos diferentes padrões do MD assim não estão estabilizados. 11 184 Lúcia Regiane Lopes Damasio Referências BARBOSA, A.; LOPES, C. Cartas de leitores e de redatores. Cópia digital, 2002. ______ . Críticas, queixumes e bajulações na Imprensa Brasileira do século XIX: cartas de leitores. Rio de Janeiro: UFRJ, Pós-Graduação em Letras Vernáculas; FAPERJ, 2006. FÁVERO, L. L; ANDRADE, M. L. C. V. O .A.; AQUINO, Z. G. O. A. Correção . In: JUBRAN, C. C. A. S.; KOCH, I. G. V. (orgs.)Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Vol. I – Construção do texto falado. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p. 255-276. FERNANDES, F. R. 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Campinas:Universidade Estadual de Campinas, 2002. 187 LER UM TEXTO ENUNCIATIVA UMA PERSPECTIVA Eduardo GUIMARÃES Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) DL-IEL/Labeurb RESUMO O objetivo desse texto é refletir sobre o que é analisar textos e como fazê-lo. Do ponto de vista aqui adotado considera-se que o acontecimento de leitura não é o mesmo acontecimento em que se enunciou o texto. Isso vai na direção de se pensar que o lugar de leitura não é, simplesmente, o correlato de um lugar como falante ou locutor. Utilizam-se procedimentos de análise da semântica da enunciação chegando-se à indicação de que o lugar de leitura (de interpretação) não é o lugar de Alocutário (no sentido que Ducrot dá a esse termo). É um lugar social de alocutário que não é, por sua vez, um correlato direto de um lugar social de locutor. Ler (interpretar) está envolvido com o lugar em que se é tomado para a interpretação. ABSTRACT The aim of this text is to reflect on what is to analyze texts and how to do it. From the point of view adopted here it is considered that the event of reading is not the same event in which the text is enunciated. This goes in the direction of thinking that the place of the Reader is not simply the correlate of places such as those of Speaker or Locutor. Procedures of analysis proper to the Enunciative Semantics lead to the indication that the place of reading (of interpretation) is not the place of Alocutary (as Ducrot defines this term). It is a social place of Alocutary which is not, in turn, a direct correlate of a social place of Locutor. Reading (interpreting) is involved with the place in which one it is taken in order to interpret. PALAVRAS-CHAVE Acontecimento. Enunciação. Interpretação. Leitura. Semântica. Texto. KEYWORDS Enunciation. Event. Interpretation. Reading. Semantics. Text. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 189-205, jul./dez. 2013 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa Introdução Nosso objetivo é refletir sobre o que é analisar textos e como fazêlo. Ou seja, nosso objetivo é refletir sobre o que é ler um texto ou como ler um texto. Estou utilizando aqui o verbo ler e os nomes leitor e leitura, tal como se faz largamente, não no sentido específico de relação com o escrito, mas no sentido de uma relação de interpretação com um acontecimento de enunciação qualquer. Colocar a questão da análise de um texto põe de saída a necessidade de levar em conta que o acontecimento desta leitura não é o mesmo acontecimento em que se enunciou o texto. Isso vai na direção de se pensar que o lugar de leitura não é, simplesmente, o correlato de um lugar como falante, locutor, enunciador (ou outras figuras assemelhadas), como se poderia representar como segue: Falante ------------------------------- ouvinte Locutor ------------------------------ alocutário (interlocutor) Enunciador-------------------------- destinatário Correlações como estas são próprias da cena enunciativa do acontecimento de enunciação do texto. Para responder a perguntas como “o que é analisar um texto?” ou “como analisar um texto?” vou tomar uma posição a partir da semântica da enunciação que permite, segundo penso, indicar percursos interessantes para a prática da leitura, no sentido que dou a ela aqui1. Se consideramos as posições encontradas largamente na bibliografia sobre o que é analisar ou como analisar um texto, poderíamos levar em conta de modo geral três relações: 1 Nossa questão não se identifica com o que conhecemos como linguística textual, em qualquer das suas apresentações. A linguística textual não tem como objeto a interpretação de textos. Para minha questão preciso pensar, de um lado, num modo de analisar o sentido de enunciados e de outro num procedimento de interpretação de texto (já que a semântica da enunciação não é também ela própria uma teoria ou método que tenha como objeto a interpretação de textos) no qual jogue um papel importante uma análise enunciativa do sentido. Sobre isto ver Guimarães (2011). 190 Eduardo Guimarães 1) TEXTO ------LEITOR Nesta posição a análise deve decifrar o que um texto diz, pois tudo que dele se possa compreender está no próprio texto. 2) LEITOR ---- TEXTO A análise, neste caso, é a projeção de uma compreensão do leitor sobre o texto, o que poderia levar a que teríamos tantas leituras de um texto quantos os leitores que a ele se reportassem, os sentidos do texto seriam uma relação do texto com cada leitor em particular. 3) AUTOR ----- TEXTO ----- LEITOR Neste caso ao leitor cabe encontrar o que o autor do texto nele significou. O Leitor aparece assim como um correlato do autor. Analisar um texto, neste caso, seria encontrar o que o autor disse a seus leitores. Aqui, tal como no caso 2, a leitura envolve uma exterioridade posta por figuras como leitor, num caso, e autor e leitor no outro. No entanto, há uma diferença importante para os casos 2 e 3. Em 2, à relação de análise cabe dizer tudo sobre o sentido do texto. Em 3 há uma relação entre o movimento de leitor e o do autor. Vamos procurar mostrar como nossa posição, de uma perspectiva enunciativa, é diversa das duas primeiras, e tem uma particularidade no âmbito da terceira. Tal posição, espero mostrar, leva a consequências interessantes no modo de analisar e no modo de ensinar a analisar um texto. 1 Figuras da enunciação Para refletir sobre esta questão vou, inicialmente, e de modo rápido, caracterizar as relações entre as figuras do que podemos chamar, 191 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa genericamente, as relações de interlocução no acontecimento da enunciação. Para apresentar aqui estas figuras, das quais já tratei em muitos outros lugares, partindo e modificando as colocações de Ducrot (1984), vou tomar o funcionamento de enunciados vocativos. Tomemos dois enunciados bem conhecidos: (1) Brasileiras e brasileiros Enunciado que inicia o discurso do então presidente José Sarney em 18 de maio de 1987. Enunciado que se repete no interior do texto por mais 4 vezes. (2) Prezado Senhor Vocativo que vou tomar de uma carta encaminhada à Fapesp por um pesquisador. Reproduzo o início da carta, omitindo nomes: (2a) Ilmo sr. Prof. Dr. XXXXX YYYY ZZZZZ Diretor Científico da Fapesp Prezado Senhor, Sem me deter muito no processo da descrição, apresento a seguir alguns aspectos relevantes deste processo e que interessam ao objetivo deste trabalho. 1. Podemos considerar que tanto “o prezado senhor”, em (2), quanto “brasileiras e brasileiros”, em (1), significam como sendo enunciados assumidos por quem os diz, vamos chamar este lugar enunciativo, tal como Ducrot (1984), de Locutor (L) e chamaremos seu correlado de Alocutário (AL). 2. Por outro lado encontramos uma diferença importante, o enunciado vocativo (1) só significa como significa na medida em que este Locutor, que se mostra responsável por ele, não é alguém em abstrato, 192 Eduardo Guimarães mas é alguém tomado pelo lugar de presidente da república (no próprio texto ele vai afirmar sua disposição de reduzir seu mandato para 5 anos). Vamos chamar este lugar enunciativo de locutor-x (ou lugar social de locutor). Este x é a variável que a análise deve preencher, no nosso caso o locutor-x é um locutor-presidente. Se observamos o enunciado vocativo (2), veremos que neste caso o Locutor que encaminha algo à Fapesp, ao seu diretor científico, não poderia ser considerado da mesma maneira que no caso do enunciado (1). Para o enunciado (2), vemos que podemos dizer que o lugar social de locutor é o lugar de pesquisador. Assim o locutor-x é um locutor-pesquisador. O correlato do locutor-x é o alocutário-x. 3. Um outro aspecto a considerar é que, quando o locutorpresidente diz (1), isto se formula, nos textos que integra, com um sentido de universalidade, o Locutor diz de um lugar que se significa como universal, e correlatamente é um dizer para todos. Diferentemente disso, no caso de (2), o locutor-pesquisador, se apresenta como um indivíduo específico, que assinou, no final, a carta. E diz isso para um interlocutor caracterizado por um lugar específico, que poderá lhe dizer sim, poderá lhe dizer não, segundo certos procedimentos envolvidos no caso. Trata-se de um dizer que se apresenta do lugar individual. A esta diferença de perspectiva do dizer, que constitui o que chamo lugar de dizer, vamos chamar de enunciador. Neste caso teríamos, para o enunciado (1) um enunciador universal, e para o caso do enunciado (2) um enunciador individual. Nos meus trabalhos2 tenho também considerado dois outros enunciadores, ou lugares de dizer, o enunciador genérico, próprio, por exemplo, de provérbios e ditados populares, e o enunciador coletivo, ligado a um lugar, diríamos, corporativo, de um conjunto, que o dizer apresenta como um todo específico. Ao correlato do enunciador, chamamos de destinatário. Ou seja, consideramos que a cena enunciativa não é unívoca, Nela devemos considerar: 2 Ver Guimarães (2002), por exemplo. 193 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa Locutor (L) -------------------------------- Alocutário (AL) locutor-x (l-x) ----------------------------- alocutário – x (al-x) enunciador (E) ---------------------------- destinatário (D) 2 O Leitor e as Figuras da Enunciação Segundo as colocações acima sobre a cena enunciativa, podemos nos perguntar, de que lugar se analisa um texto? Para isto vou deixar de lado a relação enunciador destinatário e fazer atenção às relações Locutor – Alocutário e locutor-x – alocutário-x: Locutor------------------------------------------------------Alocutário Locutor-x (lugar social de locutor) -------------- alocutário-x (lugar social de alocutário) Qual é o lugar de leitor (daquele que analisa um texto), se levamos em conta as duas relações consideradas acima? O de Alocutário ou de alocutário-x (lugar social de alocutário)? Antes de responder voltemos a algo que já dissemos antes. De certo modo poderíamos considerar que este lugar de leitor é o correlato do lugar da relação de autor. No entanto é necessário precisar como entendemos o que é a relação de autor e o que é ser leitor relativamente a esta relação. Do nosso ponto de vista, a relação de autor se caracteriza como um engajamento do lugar social de locutor (locutor-x) com o todo do texto. O correlato deste lugar de autor, enquanto lugar social, é o lugar social do alocutário. Isto tem uma importante repercussão. Na medida em que a relação de autor é tomada como uma relação do lugar social do locutor com o texto e não uma relação do Locutor com o texto, estamos levando em conta que o todo do texto, com o qual se engaja o autor, não se caracteriza pela propriedade do uno, pela unicidade. O texto, de nosso ponto de vista, é uma unidade de significação não linear, não segmental, não 194 Eduardo Guimarães unívoca, não lógica. A relação de autor se caracteriza como díspar do Locutor (garantidor da unicidade do texto). Assim analisar um texto é ser tomado por esta disparidade, é levar em conta o caráter não uno do texto, não linear, não unívoco, não lógico. É ser tomado pelas relações do texto consigo mesmo e com o que lhe é exterior, os lugares de autor e leitor. Deste modo nossa posição, de certo modo, se relaciona com a terceira configuração do sentido de leitura apresentada há pouco, no entanto, como procuraremos mostrar, nossa concepção enunciativa do agenciamento da leitura apresenta uma caracterização específica neste cenário. Para avançar, vejamos a questão por outro ângulo. A relação de leitor com o texto não corresponde, portanto, ao lugar do Alocutário. Ou seja, ser leitor (analisar um texto) não é ler no texto o que nele está estritamente marcado, como seu sentido, pelo Locutor. O sentido de um texto, como tantas posições hoje assumem, não está todo no texto. Em outras palavras, a análise de um texto não está toda prevista nas formas linguísticas que o Locutor apresenta e organiza, de um certo modo. Ou seja, como dissemos acima, a análise do texto não se dá na relação Locutor ---------------------------------------------------Alocutário A relação de leitor com o texto se faz a partir do lugar do alocutário-x (lugar social de alocutário), Está tomado na relação Lugar social de locutor -------------------lugar social de alocutário ou seja, ser leitor é estar num lugar social, portanto histórico, no intercurso enunciativo. O que isto significa é que a relação de interpretação com o texto abre um novo jogo de cena enunciativa, que precisa, é verdade, dar conta de encontrar, descrever e interpretar como estão configuradas as cenas pela 195 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa relação de autor. Se a representação de unidade (da unicidade, do uno) do texto se dá do lugar do Locutor, a relação de autor é um engajamento relativamente ao todo do texto a partir do lugar social de locutor. O todo do texto significa assim por uma relação com o fora do texto, com o múltiplo, portanto. Deste modo a relação de análise de texto (de “leitor”), coloca em cena diretamente a relação do texto com o que está fora dele, exatamente porque não se dá na relação com o Locutor, mas com o lugar social de locutor (locutor-x). Mas se fosse só isso estaríamos ainda muito próximos de considerar, mesmo sem tomar o texto como uno, que o leitor é um correlato direto do autor. Vejamos como não é este o caso. O lugar de autor não vincula necessariamente o lugar de leitor. Não estamos tomados como leitores no lugar que o texto prevê para seus leitores. Este lugar “previsto” pelo texto é parte dos seus sentidos, mas não é de onde nós vamos, necessariamente, analisá-lo, lê-lo. Analisar um texto não é assumir o alocutário-x que o texto significa. Um mesmo texto pode ser lido de lugares que agenciam lugares de alocutários diferentes. Tomemos como exemplo um texto que já analisei em outra ocasiões, “Ultima Canção do Beco” de M. Bandeira3. A leitura deste texto pode se fazer do lugar do historiador. Se feita deste lugar, ela traz para o processo de leitura aspectos particulares próprios de uma concepção do que seja o objeto da História. Não se trata aqui de considerar, por esta colocação em cena dos interesses do lugar do leitor, as motivações pessoais, psicológicas, simplesmente. A relação de leitor não é uma relação de vontade de uma pessoa, é um lugar constituído pela cena enunciativa. Ou seja, a relação de leitor não se dá como uma relação falante/ouvinte, pragmática. É por isso que estas duas categorias, falante – ouvinte (tal como se definem na pragmática como a pessoa que fala e a quem se fala), são insuficientes para considerar o processo de interpretação das enunciações. 3 Ver Guimarães (2011), p. 113 – 122. 196 Eduardo Guimarães Voltando à cena enunciativa, na relação locutor-x ----------------------------alocutário-x compreender o que um falante (no sentido, agora, que dou a este termo) ou Locutor disseram não é assumir o lugar de alocutário-x, projetado pelo autor ao assumir o todo múltiplo do texto. Ser leitor é ser tomado por um lugar social de leitor, em outro acontecimento (em outra temporalidade) que não é o acontecimento da enunciação do texto. O lugar social de leitura é, diríamos, um alocutário-y a partir do qual se interpreta, inclusive, as relações da cena enunciativa que o lugar de autor projeta. Ou seja, não se pode analisar um texto sem levar em conta seu próprio modo de enunciação e aquilo que ele estabelece pelo funcionamento de suas formas de linguagem, mas o lugar de leitor não é o lugar projetado no texto pelo autor. 3.1 Analisando um texto: um exemplo Feita a escolha de um texto para análise, no nosso exemplo o poema “Última Canção do Beco” de Bandeira, esta deve, dada a posição que aqui assumimos, ser feita passo a passo. 3.1.1 Passo 1 – o Contato com o texto O primeiro passo será sempre, obviamente, entrar em contato com o texto pela sua leitura atenta. Como parte deste passo, pode-se, eventualmente, fazer uma pesquisa sobre, no caso de nosso exemplo, Manuel Bandeira, sua poesia e especificamente sobre as canções do Beco que ele escreveu. Se estivermos pensando no ensino, esta pesquisa deve, como sabemos, variar de nível de exigência segundo a série da turma a que o texto for apresentado. Este aspecto, o contato com o texto e uma pesquisa sobre sua história e do autor, que é uma etapa simplesmente preparatória, tem importância, pois terá desdobramentos no próprio processo de interpretação e compreensão do texto e poderá ajudar a que se faça uma interessante 197 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa discussão a partir da melhor compreensão do texto. Esta atividade de pesquisa pode ser ou não combinada com um professor de história, ou outro, segundo o caso. Este passo é importante no sentido de que ele deve mostrar que analisar um texto envolve o interesse por outros textos que podem ajudar a melhor compreendê-lo. No caso do ensino, o professor conversa com o grupo mostrando certos aspectos que chamam a atenção no texto, por razões diversas, que podem ser observadas pelo modo como o texto está constituído por sua linguagem. O professor pode rapidamente indicar alguns destes aspectos e depois passar a cada passo4. Quanto ao poema considerado no nosso exemplo, deve-se observar que ele faz parte de uma série de poemas sobre “o Beco”, que a palavra Beco está no título e é repetido no decorrer do poema, etc. A partir destas observações preliminares pode-se chegar a escolher um conjunto de aspectos para análise, e isso independentemente da linearidade do texto (início, meio, fim). Para o nosso exemplo, escolhamos aqui dois aspectos: o sentido da palavra beco no poema, a relação locutor interlocutor no poema (Uma análise minimamente desenvolvida deste texto envolve mais que isso, sem dúvida). 3.1.2 Passo 2 – os sentido de Beco Cumprida a etapa inicial do Passo 1, vai-se para um segundo passo, o de analisar os aspectos identificados como de interesse. Para o nosso exemplo, tomemos o primeiro aspecto referido há pouco (o sentido da palavra beco). Esta análise leva a encontrar dois caminhos de determinação do sentido da palavra. A palavra se repete (se reescritura)5, várias vezes e nesta repetição vai recebendo predicações como as que estão nas estrofes 1 e 2 (minhas tristezas, perplexidades). Nesta linha de retomadas beco é o beco da casa e do quarto. Observa-se ainda que nas Sobre questões relativas ao ensino da “leitura” ver o ultimo capítulo de Guimarães (2011). Reescritura-se por repetição, para usar uma terminologia mais específica que tenho utilizado. A reescritura é um procedimento que em certa medida rediz o que já se disse (Guimarães, 2007). 4 5 198 Eduardo Guimarães estrofes 4 e 5, encontramos também uma repetição da palavra e outras predicações (rua de mulheres, convento das carmelitas, pobres, etc). E nesta sequência Beco se reescritura (é retomada) por Lapa, por exemplo. Desse modo podemos ver que, no primeiro caso, Beco, sendo reescrito por esta casa e meu quarto leva a uma relação em que Quarto ┤ casa ┤beco ┤Lapa6 Por outro lado, como vimos, beco é reescrito por Lapa, por generalização e assim se tem Lapa ┤ beco ┤casa ┤quarto. Assim, a análise da designação de beco nos dá, no primeiro caso, uma passagem do íntimo ao social e, no segundo, a passagem do social ao íntimo. No primeiro caso o lugar do poeta (“o quarto que vai ficar na eternidade”, como memória) dá sentido à Lapa. No segundo a Lapa (bairro de mulheres, carmelidas, etc) dá sentido ao lugar do poeta. 3.1.3 Passo 3 – a quem o poeta fala O outro aspecto (recorte) que escolhemos no caso do nosso exemplo foi a relação de interlocução do poema. Observando, inclusive, o próprio processo de determinação do sentido de Beco, acima indicado, encontramos um deslizamento pelo qual ora Beco é aquilo a que o poeta se refere (por exemplo, versos 1, 3, 8, 15) e ora Beco é o interlocutor do poeta (por exemplo, versos 7, 23, 24, 27, etc). Ou seja, considerando somente a relação do lugar social de locutor teríamos: (1) Locutor-poeta fala ao alocutário-que lê 6 O sinal ┤ se lê determina (atribui sentido a). 199 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa (2) Locutor-poeta fala ao Beco Em (1) as características de beco são relativas à vida íntima do poeta. Em (2) as características do beco são relativas às características sociais do beco. Ou seja, enquanto referido pela palavra Beco, o Beco se caracteriza pelos estados de espírito do poeta; enquanto alocutário do poeta, o Beco é predicado relativamente à sua população, que na história, vai da religião ao pecado, passando por, e incluindo, a pobreza. Em outras palavras, quando o Beco é referido, as características que o determinam são afetivas, quando o Beco é o interlocutor, suas características são objetivas, sociais. A análise do poema vai se desenvolvendo pela consideração de aspectos que vão se tornando relevantes a partir destas primeiras análises, ou por que tenham sido escolhidos desde o começo. A interpretação do poema se fará pela projeção da análise de cada um dos aspectos sobre a análise dos outros aspectos, de modo a se ir chegando a uma compreensão cada vez mais sustentada do que se analisa, a partir de uma tomada de posição. Com este tipo de procedimento, que se faz sem nenhuma remissão necessária à linearidade do texto, é possível fazer uma reflexão sobre o texto observando aspectos muito específicos. E isto está sustentado em aspectos do texto, e não simplesmente em opiniões pessoais. É evidente que, a partir da análise, pode-se tomar posições para além do texto, motivados pela análise feita, mas isto é já outra coisa. Uma análise como esta pode ser finalizada com uma boa síntese do conjunto das descrições e interpretações específicas realizadas. Não é muito difícil ver como estas análises são diversas, e como a análise semântica é capaz de ajudar a chegar a uma compreensão do poema relativamente a sua significação, e não simplesmente como um documento, uma pista da história, um sintoma de algo7. 7 Para uma análise mais desenvolvida deste texto ver Guimarães (2011), p. 113-122. 200 Eduardo Guimarães 4 O lugar do analista do texto Além dos aspectos gerais postos até aqui, o principal, nesta questão, é que mesmo que o poema, cuja análise apresentamos como exemplo, tenha como locutor-x um locutor-poeta, e a autoria do poema se dê pelo engajamento deste lugar de poeta ao todo múltiplo do poema, o lugar do qual esta análise é feita não se dá como simples correlato deste locutorpoeta. A interpretação do texto não se dá do lugar do leitor de poesia, simplesmente. É preciso tomar uma posição que nos permita escolher o que queremos analisar e assim fazer uma descrição e interpretação a partir dos procedimentos que esta posição de leitura trouxer. Foi o que fizemos no exemplo apresentado logo acima. A posição de semanticista que assumimos neste exemplo permite que façamos análises sem reduzir o texto ao que ele refere simplesmente, ou a seus aspectos de coerência interna capazes de sustentar a posição que um certo tipo de historiador buscaria. Pela posição de semanticista podemos escolher aspectos de linguagem, não estou dizendo gramaticais, estou dizendo de linguagem, e proceder a análises que vão se projetando uma sobre as outras e levando a uma interpretação sustentada do texto. E como podemos caracterizar enunciativamente este lugar do analista do texto? Primeiro aspecto importante, o falante, no sentido que dou a este termo, como figura do espaço de enunciação, é agenciado em leitor enquanto alocutário-y e não enquanto Alocutário. A análise do texto (a interpretação), feita do lugar de leitor, é ela própria um outro acontecimento, é de um outro tempo. Um tempo que é projetado pelo acontecimento de enunciação como uma relação do presente ao futuro: o futuro é, no acontecimento do texto, o tempo da interpretação. Deste modo fica posto que a análise de um texto, a relação de leitura, de interpretação, é sempre uma relação que não consegue escapar a certos traços de anacronismo. Não se interpreta do lugar correlato ao do Autor. Isto seria uma mera e impossível reprodução de suas intervenções 201 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa no processo de construção do texto. A relação de leitor vem de outro lugar, de outro acontecimento, e faz funcionar a temporalidade do acontecimento de modo particular. O que procuramos desenvolver aqui foi como é possível estabelecer um procedimento, de um lugar de leitor-semanticista, capaz de levar em conta o processo enunciativo (de caráter histórico-político) de constituição do sentido e assim dizer que sentidos são produzidos num texto e como compreender este processo de produção de sentido, para que a análise do texto não seja, simplesmente, a simples “decodificação” do que a posição do Locutor (no sentido que Ducrot (1984) já dava a esta figura da enunciação) constitui como unicidade textual8. Do lugar de semanticista, poderia me perguntar que ganho este tipo de análise pode trazer. Para isto a análise não pode ser a reprodução pura e simples do que faz um falante (porque seria inútil), mas não pode ser algo que simplesmente desconhece o que faz o falante quando lê, por exemplo, e os sentidos que ele encontra no texto. É preciso interpretar os sentidos do texto não como se estivéssemos, simplesmente, no lugar do falante. É preciso fazer com que a interpretação seja objetivamente direcionada por um procedimento expressamente estabelecido para que assim se tenha um ganho de compreensão que mostre o que o texto significa e não necessariamente o que pessoas específicas dizem que o texto significa. Isto significa dizer que a análise do texto não se dá na correlação AUTOR−−−−−− LEITOR Nem mesmo na relação AUTOR ----TEXTO ---- LEITOR A relação que se tem, vou representá-la como segue 8 Sobre o sentido do que seja compreensão no processo de interpretação, valemo-nos aqui da análise de E. Orlandi (1987, 1996, entre outros), mesmo que esta noção esteja aqui deslocada para o quadro de uma análise enunciativa. 202 Eduardo Guimarães Autor −−−−−− TEXTO ¦¦ Leitor A não colocação do autor e do leitor na mesma sequência horizontal da linha indica, neste diagrama, um outro tempo, um outro acontecimento, indica a disparidade do lugar do leitor relativamente ao lugar de autor. Ser autor e ser leitor são relações constituídas por acontecimentos diferentes relativamente ao mesmo texto, e isto por si significa a não univocidade dos sentidos para um texto, significa a abertura do texto a interpretações segundo os lugares de leitor que se constituírem para a análise. Se colocamos isso levando em conta que analisar um texto não é simplesmente interpretá-lo deste lugar de alocutário-leitor tomado no intercurso cotidiano da linguagem, temos que considerar que ao analista, tal como faço aqui, cabe apresentar seu lugar de leitor, seu lugar de interpretação. Trata-se nesse caso de considerar a leitura como um procedimento próprio à linguagem, mas também como um processo que procura dar à interpretação uma sustentação própria de procedimentos cientificamente estabelecidos. É preciso constituir um procedimento específico que, ao lado de levar em conta a disparidade entre relação de autor e relação de leitor, não se descure daquilo que é a relação de autor e não se transforme a interpretação numa prática própria da onipotência do sujeito. Ler é dispor de um procedimento que estabelece uma distância e ao mesmo tempo exige uma descrição do material analisado. Quanto à questão do ensino, da posição que tomei para análise, podemos ensinar um modo de interpretar textos que pode ser constituído passo a passo. Escolhido o texto podemos escolher alguns aspectos e mostrar a análise para os alunos. Em um cenário mais complexo, escolhido o texto podemos pedir que os alunos analisem os aspectos que 203 Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa escolhemos. Em um cenário ainda mais complexo, podemos pedir que os alunos indiquem que aspectos devem ser analisados. Depois fazem as análises e esta análise pode ser discutida. Ao final se pode pedir que cada um faça um texto apresentando a análise a que chegou a partir da escolha dos aspectos a serem considerados. CONCLUSÃO Como vemos, deste ponto de vista, a relação AUTOR ------TEXTO ¦¦ LEITOR é uma relação constituída por uma disparidade. Esta disparidade se constitui porque o acontecimento da leitura não é do mesmo tempo que o acontecimento de enunciação do texto. A relação de autor expõe o acontecimento de enunciação a um memorável, àquilo que de uma história de enunciações significa num acontecimento específico. A relação de leitura, naquilo em que ela está prevista pelo acontecimento da enunciação do texto, se dá como uma relação do presente ao futuro deste acontecimento, na medida em que, e somente nesta medida, ela está prevista pela futuridade própria do acontecimento da enunciação do texto. A futuridade do acontecimento o expõe a outros acontecimentos (de leitura, inclusive). A leitura está projetada pelo acontecimento do texto, por sua futuridade, mas se dá como outro acontecimento, em outra temporalidade. 204 Eduardo Guimarães Referências DUCROT, O. (1984) “Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação”. O Dizer e o Dito. Campinas, Pontes, 1988. GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas, Pontes. (2002) ______. “Domínio Semântico de Determinação”. A Palavra: Forma e Sentido. Campinas, RG/Pontes. (2007) ______. Análise de Texto. Procedimentos, Análises, Ensino. Campinas, RG. (2011) ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. São Paulo, Cortez/Editora da Unicamp. (1988) ______. Interpretação. Petrópolis, Vozes. (1996) 205 PARA A HISTÓRIA DO PORTUGUÊS PARANAENSE Joyce Elaine de Almeida BARONAS Universidade Estadual de Londrina (UEL) RESUMO O presente estudo objetiva apresentar as pesquisas realizadas pelo projeto “Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos em manuscritos dos séculos XVII a XIX (PHPPR), vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Trata-se de pesquisas efetuadas sob diferentes abordagens; (i) descrição do trabalho com os manuscritos; (ii) análise do corpus sob a perspectiva funcionalista; (iii) estudo do processo de escolarização no Estado, (iv) abordagem diacrônica do ensino de língua portuguesa. O corpus da pesquisa se compõe de 730 manuscritos produzidos no Paraná, entre os anos de 1693 (Fundação de Curitiba) a 1853 (emancipação do Estado, 5a. Comarca de São Paulo), armazenados em CD ROM e disponibilizados para os pesquisadores, docentes e discentes de cursos de pós-graduação e iniciantes em pesquisa. Tais documentos estão em fase final de edição, de forma que parte já está publicada. Pretende-se, no projeto PHPPR, estudar a linguagem presente em manuscritos paranaenses em seus aspectos sintáticos, semânticos e lexicais do ponto de vista diacrônico; além disso, constituem objetivos de trabalho: traçar a sócio-história do português paranaense, estudando a ocupação demográfica e a formação das variedades culta e popular; contribuir para melhor compreensão das dificuldades de aprendizagem da Língua Portuguesa a partir de dados diacrônicos; estudar a mudança gramatical da variedade paranaense do português brasileiro; reconstruir o léxico estudando suas alterações fonológicas, morfológicas e ortográficas; e organizar e disponibilizar o Corpus Diacrônico do Português Paranaense, de forma a estimular novas pesquisas sobre essa variedade. ABSTRACT The present study aims to present the research carried out by the project “Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos em manuscritos dos séculos XVII a XIX” (PHPPR), linked to Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 207-217, jul./dez. 2013 Para a História do Português Paranaense Estadual de Londrina . It is research conducted under different approaches: (i) description of the work with the manuscripts, (ii) analysis of the corpus under the functionalist perspective, (iii) study of the schooling process in the State, (iv) diachronic approach of teaching Portuguese. The research corpus consists of 730 manuscripts produced in Paraná, between the years 1693 (Foundation of Curitiba) to 1853 (emancipation of the state 5th. District of São Paulo), stored on CD ROM and made available to researchers, teachers and students of postgraduate courses and beginners in research. These documents are in final editing, so that part is already published. It is intended, the project PHPPR, study the language in this manuscript from Paraná in their syntactic, semantic and lexical diachronic point of view, moreover, work objectives are: to trace the history of the Portuguese from Parana, studying the demographic occupation and the formation of varieties cultivated and popular; contribute to better understanding of the difficulties of learning Portuguese from diachronic data, to study the grammatical change of Paraná variety of Brazilian Portuguese; reconstruct the lexicon studying their phonological, morphological and orthographic, and organize and to provide the diachronic corpus of Portuguese from Paraná in order to stimulate new research on this variety. PALAVRAS-CHAVE Estudos diacrônicos. História da linguagem. Manuscritos do Paraná. KEYWORDS Diachronic studies. History of language. Manuscripts from Paraná. Apresentação O presente artigo pretende apresentar estudos sobre o português brasileiro, realizados no projeto de pesquisa Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos de manuscritos dos séculos XVII a XIX, vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina. Num primeiro momento será apresentado o projeto aliado à metodologia e fundamentação teórica norteadora e, em seguida, serão expostos alguns estudos já realizados no projeto. 208 Joyce Elaine de Almeida Baronas 1 O projeto Para a História do Português Paranaense O projeto Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos de manuscritos dos séculos XVII a XIX, hoje na fase II, ligase ao projeto nacional e interinstitucional Para a História do Português Brasileiro – PHPB -, sob a coordenação do Dr. Ataliba Teixeira de Castilho (USP). Este trabalho dá continuidade a uma investigação iniciada em 2001, na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Para a história do português paranaense: nas veredas do Atlas Linguístico do Paraná, sob a coordenação da professora Vanderci de Andrade Aguilera, cujo interesse voltava-se para o vocabulário rural paranaense registrado no ALPR - Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), nos documentos do Boletim do Archivo Municipal de Curytiba (NEGRÃO, 1908), volumes I a VI e na base de dados do projeto ATEPAR - Atlas Toponímico do Paraná. Neste primeiro projeto, os estudos foram baseados no corpus constituído por manuscritos do Boletim do Archivo Municipal de Curytiba buscando a correlação com dados da história social do Paraná, interessado em buscar elementos para compor a História do Português Brasileiro no Paraná. Atualmente, o projeto desenvolvido na Universidade Estadual de Londrina propõe uma pesquisa sobre a história do português brasileiro, baseada nos seguintes documentos: a) Documentos escritos durante os séculos XVII, XVIII e metade do XIX, nas antigas vilas que hoje se constituem municípios do estado do Paraná. Tais manuscritos fazem parte do acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo e são, em sua maioria, documentos enviados pela Câmara dos vereadores dessas primeiras vilas fundadas no litoral da então capitania de São Vicente - como Paranaguá, Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Vila Nova do Príncipe e Castro – às autoridades maiores, como governadores e bispos. 209 Para a História do Português Paranaense b) Documentos advindos da Casa da Memória (Curitiba - PR) e do Arquivo Público do Estado do Paraná – acervo de conta com os documentos pós-emancipação do estado do Paraná. Esta proposta de estudos dos documentos paranaenses se justifica pela necessidade de pesquisas dedicadas aos estudos linguísticos diacrônicos nas Instituições de Ensino Superior do Paraná. Em vista disso, há um número incalculável de manuscritos, oficiais ou não, à espera de uma edição confiável e de estudos linguístico-filológicos, que possam complementar as pesquisas que hoje buscam lançar luzes à história do português brasileiro. Objetivamente, este projeto propõe-se a efetuar a edição, feitas em duas etapas, de: a) b) 730 manuscritos produzidos no Paraná, entre os anos de 1693 (Fundação de Curitiba) a 1853 (emancipação do Estado, 5a. Comarca de São Paulo), 750 manuscritos produzidos no estado após a emancipação, chegando a documentos datados do início do século XX. Todo o material vem sendo armazenado em CD ROM e será disponibilizado para os pesquisadores, docentes e discentes de cursos de pós-graduação e iniciantes em pesquisa, na forma de publicações de Opúsculos, além de ser objeto de estudo de inúmeras monografias, dissertações e teses. 2 Fundamentação O projeto Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos em manuscritos dos séculos XVII a XVIII objetiva contribuir para a história do português brasileiro, em particular paranaense, registrando, descrevendo, analisando e comparando dados oriundos de um corpus diacrônico referente à documentação manuscrita produzida no Paraná já referida acima. 210 Joyce Elaine de Almeida Baronas O projeto busca, ainda: i) organizar um banco de dados com manuscritos sobre a História do Paraná referentes aos séculos XVII a XIX; ii) editar os documentos coletados; iii) produzir obras lexicográficas sobre o léxico paranaense; e iv) viabilizar o acesso da comunidade científica aos dados diacrônicos, extraídos dos manuscritos. Para a execução desse projeto, além do corpus constituído de cerca de 750 documentos oficiais coletados junto ao Arquivo Público do Estado de São Paulo, em fase de transcrição e edição, o projeto, como já mencionado, incorporou novos documentos coletados em arquivos públicos do estado e da Casa da Memória do município de Curitiba e outros manuscritos obtidos de várias fontes, salientando-se uma dezena de cartas pessoais (CYRINO, 2003). Nesta primeira etapa os documentos são transcritos com o objetivo de fazer um levantamento de dados importantes para os comentários linguístico-filológicos, tais como: local, data, destinatário, escriba, assunto ou tema de cada manuscrito. A edição dos documentos segue as normas estabelecidas pelo PHPB e orientações filológicas de pesquisadores da área, como o Drs. Heitor Megale e Manoel Mourivaldo S. Almeida (USP) e Dr.ª Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBA), como o modelo do anexo. Seguiu-se a edição dos manuscritos a composição de um glossário com termos arcaicos1 (que marcam certo conservadorismo) constantes Sobre os arcaísmos, é preciso assinalar que sua definição depende da observação de fatores, tais como: i) a palavra pode não estar presente no vocabulário ativo de falantes de determinada região e ser muito produtiva em outras regiões; ii) a palavra pode ter perdido o status de padrão culto e ser mais frequente no falar rural ou inculto, neste caso, arcaísmo e falar rural se confundem; iii) em outros casos, em vez de perda de status há uma ascensão, pois, passa a ser frequente na linguagem literária, científica ou técnica; iv) as palavras não desaparecem do dia para a noite, elas vão sendo substituídas pouco a pouco dentro da comunidade de fala, pelas gerações mais novas, por diversos fatores: desaparecimento do objeto (referente); modernização do objeto; evolução da técnica, da ciência, mudanças na organização da sociedade, entre outros. 1 211 Para a História do Português Paranaense dos documentos editados. É importante sinalizar que os trabalhos posteriores de análise linguística serão norteados pelos pressupostos teóricos da Sociolinguística (Labov, Tarallo), no que se refere à relação linguística e sociedade, e da Linguística Histórica (Mattoso Câmara, Silva Neto, Spina, Teyssier, Huber, Coutinho, Alckmim, Mattos e Silva, Faraco, dentre outros), no que se refere à análise dos fatos linguísticos à luz da diacronia. A transcrição de textos antigos exige atenção especial, principalmente quando estes textos são destinados a estudos de caráter linguísticofilológico. Para isso, é necessário um refinado tratamento de certos aspectos que, para estudos de outra natureza, poderiam estar em segundo plano. Somente uma transcrição fidedigna e cuidadosa pode deixar transparente todos os traços linguísticos possíveis de serem analisados nos originais manuscritos. Dessa forma, tanto o êxito do trabalho quanto a solidez dos resultados seguramente estão condicionados à qualidade da edição dos textos que estão na base desse estudo linguístico. Em verdade, é a natureza dos textos e sobretudo a finalidade da edição que, de certa forma, determinam os métodos e normas de transcrição. Para a edição dos manuscritos do corpus foi preciso elaborar algumas normas próprias de transcrições, como também utilizar as normas eleitas para o projeto Para a História do Português Brasileiro - PHPB, apresentadas e discutidas durante o segundo seminário, realizado em Campos do Jordão, no período de 10 a 16 de maio de 1998, pela comissão de pesquisadores composta por Heitor Megale (USP), César Nardelli Cambraia (USP), Gilvan Muller de Oliveira (UFSC), Marcelo Módolo (mestrando-USP), Permínio Ferreira (UFBa), Sílvio de Almeida Toledo Neto (USP), Tânia Lobo (UFBa) e Valdemir Klamt (UFSC). Dessa forma, decidiu-se aplicar a edição semidipomática, com reprodução justalinear e acompanhada do fac-símile. 212 Joyce Elaine de Almeida Baronas 3 Subprojetos O projeto PHPP mantém como proposta o desenvolvimento de subprojetos que analisam o corpus dentro das grandes linhas de pesquisa sugeridas pelo PHPB – História Social, Mudança Gramatical e Tradições Discursivas. Desta forma, os participantes do projeto desenvolvem pesquisas sob orientação dos docentes (pesquisadores) da equipe, havendo trabalhos de diferentes abordagens, como: (i) descrição do trabalho com os manuscritos; (ii) análise do corpus sob a perspectiva funcionalista; (iii) estudo do processo de escolarização no Estado, (iv) abordagem diacrônica do ensino de língua portuguesa. Todos estão vinculados ao projeto e fazem parte, nos diversos níveis do ensino superior – projetos da graduação (IC) e da pós-graduação desenvolvidos na UEL e nas universidades em que há pesquisadores do projeto. 4 Trabalhos realizados Nesta seção serãor serão apresentados trabalhos resultantes de estudos vinculados ao item (iv) abordagem diacrônica do ensino de língua portuguesa 4.1 A escrita de alunos do ensino fundamental: uma visão diacrônica. Este trabalho constitui uma monografia de Especialização de Vanessa Lini, concluída em 2008, na Universidade Estadual de Londrina. O estudo buscou traçar uma paralelo entre a escrita de alunos do ensino fundamental e a escrita registrada em manuscritos do século XVII, buscando melhor compreender os chamados “erros escolares” e as dificuldades do aluno do ensino fundamental em relação à aquisição da norma padrão para, finalmente, propor uma contribuição aos professores de Língua Portuguesa sobre as dificuldades de escrita. 213 Para a História do Português Paranaense Para a realização deste estudo, a autora realizou as seguintes etapas: (i) observação de ocorrências de desvios da norma em produções de alunos do ensino fundamental; (ii) observação das características de escrita de documentos manuscritos do século XVII; (iii) estudo sobre as mudanças da Língua Portuguesa no decorrer do tempo; (iv) estudo comparativo entre a escrita atual e a antiga. Como resultado da pesquisa, a autora constatou muitas semelhanças na escrita atual e a antiga, no que diz respeito aos desvios da norma, o que implica afirmar que, se no século XVIII, o escriba não tinha acesso ao ensino, hoje, no século XXI, o aluno, mesmo tendo tal acesso, tem muita dificuldade de assimilar a norma padrão, pelo distanciamento existente entre ela e a sua maneira própria de se expressar. 4.2 Ensino de língua portuguesa no Paraná: um olhar diacrônico Este estudo constitui uma dissertação de mestrado realizado por Juliana Fogaça, concluída em 2009, na Universidade Estadual de Londrina. O estudo buscou verificar as mudanças ocorridas no ensino, principalmente o de Língua Portuguesa, no estado do Paraná. Além disso, foram objetivos do trabalho: (i) analisar a concepção de linguagem que perpassava o ensino no Paraná, no século XIX, comparando-a com a concepção de linguagem atualmente defendida pelos PCNs e Diretrizes Curriculares do Paraná; e (ii) traçar o percurso histórico do processo de escolarização no traçar Brasil e, especificamente, no Paraná. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e interpretativo, visto ser o foco principal a análise histórico-social da instrução pública paranaense. A autora estudou documentos dos séculos XVI ao XIX, com maior ênfase no século XIX. Mais especificamente, os corpora analisados foram: (i) manuscritos de documentos sobre o Paraná, produzidos entre os anos de 1693 e 1853, que constam do Arquivo Público de São Paulo, além de manuscritos coletados no Arquivo Público do Paraná, datados a 214 Joyce Elaine de Almeida Baronas partir de 1853; (ii) relatórios dos presidentes da província, especificamente os relatórios do presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos, primeiro presidente da província do Paraná. (iii) legislações referentes à instrução pública paranaense; (iv) Parâmetros Curriculares Nacionais (1998); (v) Diretrizes Curriculares para a Educação Pública do Estado do Paraná (2007). Como resultado da pesquisa, a autora verificou a mudança de concepção de língua nos documentos analisados, ou seja, enquanto que no século XVII, a concepção de língua que vigorava no ensino era a linguagem como expressão do pensamento, no século XIX a concepção já havia se alterado para a linguagem como objeto de interação. Cabe ressaltar que o estudo focou especificamente os documentos, o que implica afirmar que tal percepção de mudança não se estende à prática escolar, o que exige outro estudo mais detalhado. 4.3 Perspectivas para o ensino escolar da história do português brasileira: manuscritos paranaenses do século XVIII Este trabalho constitui uma dissertação de mestrado concluída em 2012, na Universidade Estadual de Londrina, em que se buscou (i) analisar a variação histórica que envolve os manuscritos setecentistas verificando as mudanças ocorridas na língua portuguesa; (ii) analisar as coleções de livros didáticos do ensino fundamental, aprovadas pelo PNLD/2011Plano Nacional do Livro Didático; e (iii) elaborar atividades didáticas que possam ser úteis para o estudo da variação linguística na escola. Os corpora do estudo se dividem em um corpus atual, composto de 16 coleções de livros didáticos, aprovados pelo PNLD e em um corpus antigo, composto de manuscritos do século XVIII, pertencentes à Vila de Guaratuba – PR, que compõem a obra “Scripturae nas Villas de São Luiz de Goaratuba e Antonina: manuscritos setecentistas e oitocentistas. 215 Para a História do Português Paranaense Como resultado da pesquisa, a autora identificou nas coleções de livros didático a carência de propostas didáticas sob a perspectiva diacrônica e elaborou uma unidade de estudos diacrônicos com os manuscritos novecentistas. Considerações finais O presente estudo buscou apresentar o projeto de pesquisa Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos de manuscritos dos séculos XVII a XIX além de estudos realizados no citado projeto. Trata-se de um trabalho que busca melhor compreender a língua e o ensino da língua em terras brasileiras. Espera-se que os resultados desta pesquisa possam ser úteis a demais pesquisadores que se interessam pela diacronia da língua. Referências AGUILERA, V. de A. (Org.). Para a História do Português Brasileiro: (Vozes, Veredas, Voragens). 1. ed. Londrina: EdUEL, 2009, v.II, p.800. AGUILERA, V. de A.; ALMEIDA BARONAS, J. E. (Orgs.): Scripturae nas Villas de São Luiz de Goaratuba e Antonina: manuscritos setecentistas e oitocentistas. Londrina: Eduel, 2007, v.1. p.132. ALVES, Silvane Luceli de Andrade. Perspectivas para o ensino escolar da história do português brasileira: manuscritos paranaenses do século XVIII. 2012. 146f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2012. ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Seleção de manuscritos paranaenses. CD ROM, inédito. 216 Joyce Elaine de Almeida Baronas CASTILHO, A. T. Português Brasileiro: descrição, história, teorização. Linguistica (Madrid), v. 24, p. 77-100, 2010. CYRINO, S. M. L. Para a história do português brasileiro: a presença do objeto nulo e a ausência de clíticos. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 38, n. 1, p. 31-47, 2003. LINI, Vanessa. A escrita de alunos do ensino fundamental: uma visão diacrônica. 2008. Monografia. (Especialização em Língua Portuguesa) Universidade Estadual de Londrina. Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2008. SIMM, Juliana Fogaça Sanches. Ensino de língua portuguesa no Paraná: um olhar diacrônico. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2009. 217 DA PANAFORIZAÇÃO À METAFORIZAÇÃO: O CASO DE UMA PEQUENA FRASE SEM EIRA NEM BEIRA TEXTUAL Roberto Leiser BARONAS Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Universidade Federal de Mato Grosso – (UFMT) Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq RESUMO Neste artigo, apoiados na Análise de Discurso de base enunciativa, mais especificamente em Maingueneau (2010, 2011a, 2011b e 2012), procuramos analisar a irrupção, a retomada, a transformação e a circulação do enunciado de curta extensão “A esperança venceu o medo”, dado a circular pelos mais diversos suportes midiáticos brasileiros a partir do segundo semestre de 2002. De forma não tão exaustiva, estabelecemos como recorte temporal o período compreendido entre os anos de 2002 a 2012. Inicialmente, procuramos definir as características linguísticas e discursivas da expressão enunciado de curta extensão, diferenciando-o, por exemplo, de outros como slogan, provérbios, máxima, fórmula. Num segundo momento, descrevemos as características enunciativas desse fenômeno linguísticodiscursivo. A seguir, discorremos sobre as características linguístico-discursivas que favorecem a retomada, a transformação e a circulação do enunciado. Em conclusão, por um lado, comentamos acerca dos determinantes genéricos e semióticos mobilizados pela mídia na retomada, transformação e circulação do enunciado em questão e, por outro, discutimos os diferentes acontecimentos discursivos engendrados por tais retomadas e circulação, entendendo o enunciado “A esperança venceu o medo”, por conta não só da sua ampla circulação, mas pelo fato mesmo de designar ao longo de mais de uma década, os mais diferentes acontecimentos discursivos, enquanto uma metaforização, que difere do conceito de panaforização, proposto por Maingueneau 2010. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 219-248, jul./dez. 2013 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual ABSTRACT In this article, supported in Discourse Analysis of enunciative basis, specifically in Maingueneau (2010, 2011a, 2011b and 2012), we seek to analyze the eruption, recapture, transformation and circulation of the short extension phrase “Hope overcame fear”, given into circulation in several Brazilian media places, since the second semester of 2002. In a non-exhaustive manner, we established as time frame the period comprehend between 2002 and 2012. Initially, we seek to define linguistics and discursive characteristics of the expression short extension phrase, differentiating it from, for example, others as slogan, proverbs, maximum and formulas. Secondly, we describe the enunciative characteristics of this linguistic-discursive phenomenon. Next, we descant about linguistic-discursive characteristics that benefits recapture, transformation and circulation of the phrase. In conclusion, in one hand, we point out the generic and semiotics determinants mobilized by the media in recapture, transformation and circulation of the phrase, in the issue and, in the other hand, we discuss the different discursive events that begotten by these recaptures and circulation, comprehending the phrase “Hope overcame fear”, by not only in its huge circulation, but by the fact itself of designate during one decade, the most different discursive events, as a metaphorization, that differs from the concept of panaphorization, proposed by Maingueneau 2010. PALAVRAS-CHAVE Discurso. Enunciação aforizante. Metaforização. Mídia e política. Panaforização. KEYWORDS Aphorizating phrase. Discourse. Media and politics. Metaphorization. Panaphorization. Primeiras palavras... Numa rápida procura pelo enunciado “A esperança venceu o medo”, no site de buscas Google, é possível observar que irrompem pelo menos 822000 ocorrências. Essas ocorrências estão presentes nos mais diversos campos do saber: político, midiático, religioso; nos mais variados suportes: jornais e revistas impressas e digitais, vídeos, outdoors; nos mais variados 220 Roberto Leiser Baronas gêneros discursivos: editoriais de jornais e revistas, artigos de opinião, propaganda política, letras de músicas, caricaturas, charges; na voz de diferentes sujeitos enunciadores: políticos, jornalistas, marqueteiros, religiosos e também são destinadas aos mais diferentes interlocutores. A alta recorrência do enunciado em questão nos mais variados campos do saber, suportes, gêneros; enunciadores e interlocutores evidencia que se trata de um fenômeno linguístico-discursivo digno de ser tornado objeto de estudo. Neste texto, apoiados na Análise de Discurso de base enunciativa, mais especificamente em Maingueneau (2010, 2011a, 2011b e 2012), procuramos analisar a irrupção, a retomada, a transformação e a circulação do enunciado de curta extensão “A esperança venceu o medo”, dado a circular pelos mais diversos suportes midiáticos brasileiros a partir do segundo semestre de 2002. De forma não tão exaustiva, estabelecemos como recorte temporal o período compreendido entre os anos de 2002 a 2012. Inicialmente, procuramos definir as características linguísticas e discursivas da expressão enunciado de curta extensão, diferenciando-o, por exemplo, de outros como slogan, provérbios, máxima, fórmula. Num segundo momento, descrevemos as características enunciativas desse fenômeno linguístico-discursivo. A seguir, discorremos sobre as características linguístico-discursivas que favorecem a retomada, a transformação e a circulação do enunciado. Em conclusão, por um lado, comentamos acerca dos determinantes genéricos e semióticos mobilizados pela mídia na retomada, transformação e circulação do enunciado em questão e, por outro, discutimos os diferentes acontecimentos discursivos engendrados por tais retomadas e circulação, entendendo o enunciado “A esperança venceu o medo”, por conta não só da sua ampla circulação, mas pelo fato mesmo de designar ao longo de mais de uma década, os mais diferentes acontecimentos discursivos, enquanto uma metaforização, que difere do conceito de panaforização, proposto por Maingueneau 2010. 221 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual 1 Sobre a enunciação aforizante... Poucas pessoas hoje em dia contestam a ideia de que o texto constitui a única realidade empírica com a qual os linguistas lidam: unidades como a frase ou a palavra são necessariamente retiradas de textos. O texto é, de fato, a contraparte do gênero do discurso, que é o quadro de toda a comunicação imaginável. Maingueneau utiliza aqui o termo “gênero do discurso” para atividades como o registro de nascimento, o debate televisivo, o sermão, etc. O teórico francês associa frequentemente essa posição a Mikail Bakhtin, em particular a seu artigo intitulado “Problemas dos gêneros do discurso”, escrito em 1952-19531. Todavia um problema se coloca quando é preciso tratar de enunciados que se apresentam fora do texto, geralmente constituídos de uma única frase. Esses enunciados são chamados por Dominique Maingueneau de “enunciados destacados”. Eles são de tipos muito diversos: slogans, máximas, provérbios, títulos de artigos da imprensa, dicções, intertítulos, citações célebres, etc. Para o pesquisador francês, devem-se distinguir duas classes bem diferentes, segundo o seu “destacamento”: 1) é constitutivo: é o caso em particular das fórmulas (provérbios, slogans, divisas...) que por sua própria natureza são independentes de um texto particular; 2) ou resulta da extração de um fragmento de texto: quando nos encontramos em uma lógica de citação. Essa extração não acontece de maneira indiferenciada sobre todos os constituintes de um texto, pois frequentemente o enunciador sobreassevera alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacáveis. A sobreasseveração é uma modulação de enunciação que procura alçar um fragmento como candidato a uma des-textualização. Trata-se de uma operação de destaque do trecho que é realizada em relação ao restante dos enunciados, por meio de marcadores diversos: de ordem aspectual (generecidade), tipográfica (posição de destaque em uma NT. Tradução brasileira. BAKHTIN, M. “Gêneros do Discurso”. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 1 222 Roberto Leiser Baronas unidade textual), prosódica (insistência), sintática (construção de uma forma pregnante), semântica (recurso aos tropos), lexical (utilização de conectores de reformulação)... A comparação entre os enunciados destacados e sua contraparte – sobreasseverados ou não – no texto em que são extraídos mostra que na maioria das vezes o enunciado quando é destacado sofre uma alteração. Essa alteração pode ser mais ou menos importante. Nesse sentido, quando em seu editorial, o jornal Estadão destaca da propaganda eleitoral de Marta Suplicy, nas eleições municipais de São Paulo em 2008, duas das nove perguntas que a locutora fez ao seu oponente Gilberto Kassab, essas perguntas, sobreasseverações na fala da então candidata, se transformam numa aforização com ampla circulação nos mais diversos suportes midiáticos: FIGURA 1: Propaganda eleitoral de Marta Suplicy: eleições municipais de São Paulo - 2008 223 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual FIGURA 2: Editorial do Estadão de 25/10/2008 No entendimento de Maingueneau, essas divergências entre o contexto fonte e o destacamento são reveladoras de um estatuto pragmático específico para os enunciados destacados. Esses últimos revelam, com efeito, um regime de enunciação que o teórico francês propõe chamar “enunciação aforizante”. Nesse sentido, no entendimento de Dominique Maingueneau entre uma “aforização” e um texto não existe uma diferença de tamanho, mas de ordem. Esquema a seguir ilustra as duas ordens enunciativas propostas por Maingueneau: 224 Roberto Leiser Baronas Por meio da aforização o locutor se coloca além dos limites específicos de um determinado gênero do discurso. O « aforizador » assume o ethos do locutor que fala do alto, de um indivíduo em contato com uma Fonte transcendente, ele não se dirige a um interlocutor colocado no mesmo plano que ele e que poderia responder, mas a um auditório universal. Ele supostamente enuncia a sua verdade, subtraindo toda a negociação, exprime uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou uma certa concepção de existência. Por intermédio da aforização vê-se coincidir sujeito da enunciação e Sujeito no sentido jurídico e moral: alguém que se coloca como responsável, afirmando valores e princípios diante do mundo, se dirigindo a uma comunidade para além dos locutores empíricos que são seus destinatários. Entretanto, este é o ponto central do problema, o aforizador não é um locutor, o suporte da enunciação, mas uma consequência do destacamento. Quando se extrai um fragmento de texto para fazer uma aforização, convertemos ipso facto seu locutor original em aforizador. 225 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual 2 A panaforização... O desenvovimento recente de uma configuração midiática totalmente nova, que associa diretamente a mídia impressa, o rádio, a televisão, a internet e a telefonia móvel permitiu aumentar para níveis sem precedentes o destacamento e a colocação em circulação das aforizações. Com efeito, um certo número de aforizações são tomadas em um processo de tipo pandêmico: durante um período curto é possível observar a circulação dessas aforizações em todas as mídias e às vezes com uma frequência muito elevada, com estatutos muito diversos: título de um artigo de jornal ou de uma página da internet, frase que circula na parte de baixo do monitor de um canal de informação televisiva, título de um vídeo sobre o Youtube, etc. Como exemplos Maingueneau cita o enunciado « Que vergonha, Barack Obama »2, proferido por Hillary Clinton nas eleições presidenciais americanas de 2008, e o enunciado de Sílvio Berlusconi: « Obama é jovem, belo e bem bronzeado »3 (06 de novembro de 2008). Nesses casos, segundo Maingueneau, pode-se falar de uma « panaforização », termo que combina o pan « pandemia » e « aforização ». A panaforização figura nas manchetes dos jornais, se infiltra nas conversaçãoes ordinárias, suscita debates de todas as espécies nas mídias : sobre os fóruns, os talk-shows televisivos, no correio dos leitores, etc. Antes de desaparecer é substituída por outras. A efemeridade e amapla circulação são os seus traços mais marcantes. Em regra geral, a panaforização passa pelas notícias das agências de imprensa. O texto a seguir é uma notícia da Agência Reuteurs, consagrada a aforização de Berlusconi. Para Maingueneau ela consagra triplamente o estatus de panaforização do enunciado destacado: pelo título da notícia, pela relativa, «que é jovem, bonito e também bronzeado»4, colocada em final de citação e pela conclusão: «sua observação rapidamente apareceu No original em inglês « Shameonyou, Barack Obama ». No original em italiano (E giovane, bello, e ancheabbronzato »). 4 No original em ingles who is handsome, young and also suntanned. 2 3 226 Roberto Leiser Baronas em áudio e impressa em grandes sites de mídia ao redor do mundo»5. Isso possibilita, de fato, o efeito de aumentar ainda mais a difusão dessa panaforização. Berlusconi da Itália elogia “bronzeado” de Obama6 Qui, 06 de novembro de 2008 16:45 EST MOSCOU (Reuters) – O primeiro ministro italiano, Silvio Berlusconi, fez uma entusiasmada, senão original saudação, na quinta, à eleição de Barack Obama, citando entre seus atributos, a juventude, a boa aparência e o bronzeado. Falando em uma conferência de imprensa conjunta com o presidente russo, Dimitry Medvdev em Moscou, o magnata da mídia de 72 anos, também disse que a eleição de Barack Obama à Casa Branca foi “saudada pela opinião pública mundial como a chegada de um messias” “Tentarei ajudar as relações entre a Rússia e os Estados Unidos, onde uma nova geração chegou ao poder, e não vejo problemas para Medvdev estabelecer boas relações com Obama, que é bonito, jovem e também bronzeado,” disse ele. 5 NT. No original em ingles “his remark quickly appeared in print and audio on major media websites around the world”. 6 No original em inglês: Italy’s Berlusconi hails “suntanned” Obama Thu Nov 6, 2008 4:45pm ESTMOSCOW (Reuters) - Italian Prime Minister Silvio Berlusconi gave an enthusiastic, if unconventional, welcome on Thursday to the election of Barack Obama, citing among his attributes youth, good looks and a suntan. Speaking at a joint news conference with Russian President Dmitry Medvedev in Moscow, the 72-year-old media tycoon also said Obama’s election to the White House had been “hailed by world public opinion as the arrival of a messiah.” “I will try to help relations between Russia and the United States where a new generation has come to power, and I don’t see problems for Medvedev to establish good relations with Obama who is handsome, young and also suntanned,” he said. Berlusconi, who prides himself on being a friend of outgoing U.S. President George W. Bush, shrugged off a barrage of criticism in Italy as his remark quickly appeared in print and audio on major media websites around the world. 227 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual Berlusconi, que se orgulha de si mesmo por ser amigo do presidente que se afasta, George W. Bush, não se importou com a enxurrada de críticas na Itália à sua observação, que apareceu rapidamente impressa e em áudio nos maiores sites de mídia ao redor do mundo. Outro exemplo que ilustra bem o funcionamento da panaforização é a frase “Vada a bordo, cazzo”, dita pelo comandante Gregório De Falco da capitania do Porto de Livorno na Itália ao capitão do navio Costa Concórdia Francesco Schettino em 11 de janeiro último quando do naufrágio da embarcação. Depois de proferida, em instantes essa frase foi destacada de seu contexto original de produção e passou a circular nos mais diversos gêneros e suportes midiáticos mundiais. FIGURA 3: Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em 18/01/2012 228 Roberto Leiser Baronas A matéria anterior, que fala da transformação do enunciado “Vada a bordo, cazzo” em bordão de camiseta, publicada no site da Folha Online em 18/01 deste ano, nos dá uma boa dimensão do quanto essa frase do capitão Gregório De Falco ganhou rapidamente em circulação, se constituindo numa panaforização. Entretanto, poucos dias depois de proferida essa frase deixou de frequentar os suportes midiáticos. Outro exemplo de panaforização pôde ser observado a partir da ampla circulação no cenário midiático brasileiro e internacional da música “Aí se eu te pego”, de Michel Teló: alguns dias após o naufrágio do navio Costa Concórdia, Ai Se Eu Te Pego Michel Teló Nossa, nossa Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego Delícia, delícia Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego Sábado na balada A galera começou a dançar E passou a menina mais linda Tomei coragem e comecei a falar Nossa, nossa Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego Delícia, delícia Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego Sábado na balada A imagem acima foi veiculada no site do UOL em janeiro de 2012 e referese a um dos protestos realizados pelos moradores da comunidade do Pinheirinho em São José dos Campos – SP, após a violenta reintegração de posse do terreno dessa comunidade, realizada pela Polícia Militar de São Paulo em janeiro de 2012. O enunciado “Polícia, polícia, assim você me mata! Aí se eu te pego! Ai, Ai se eu te pego”, destacado da música de Michel Teló se constitui numa aforização, cujo efeito de sentido é um gesto de resistência em relação à atitude truculenta da PM de São Paulo. 229 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual A galera começou a dançar E passou a menina mais linda Tomei coragem e comecei a falar Nossa, nossa Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego Delícia, delícia Assim você me mata Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego. Abaixo, a matéria publicada no site www.asmelhoressertanejas.com. br, em outubro de 2011, na qual é possível observar a coreografia realizada pelos jogadores do Real Madrid para comemorar gol frente ao Málaga a partir do hit Ai se eu te pego de Teló. Essas diferentes manifestações do hit de Teló evidenciam o seu status de panaforização. FIGURA 4: Matéria publicada no site www.asmelhoressertanejas. com.br em 01/10/2011) 230 Roberto Leiser Baronas 3 Adentrando nas análises: um pouco de metodologia... Segundo Courtine (2007, p. 125), em Análise do Discurso de orientação francesa há basicamente “duas possibilidades de tratamento de corpora”. Por um lado, é possível trabalhar com corpus de base experimental, ou seja, com questionários dirigidos a um interlocutor em uma situação específica, por exemplo, e, por outro, com corpus de base arquivística, isto é, com um conjunto de textos institucionais, semelhantes aos mobilizados pelos historiadores. Importante salientar que os corpora em Análise do Discurso não são dados a priori. A questão de pesquisa é que determina a maneira mesmo como os corpora serão montados e frequentados. Ampliando a discussão sobre o tratamento de diferentes tipos de corpora em Análise de Discurso, Maingueneau (2007) nos diz que as unidades fundamentais com as quais trabalham os analistas do discurso são formação discursiva, gênero de discurso e posicionamento. Entretanto, na grande maioria das vezes a articulação dessas unidades – e mesmo sua compatibilidade – não são explicitadas pelos analistas. No intuito de melhor compreender tais unidades, Dominique Maingueneau (2007) propõe pensá-las em dois grandes grupos: Unidades Tópicas e Unidades Não-Tópicas. Das primeiras fazem parte as Unidades Territoriais e as Unidades Transversas das segundas fazem parte as Formações discursivas e os Percursos. Das Unidades Territoriais, por sua vez, fazem parte os tipos e os gêneros de discurso, subdivididos em gêneros de campo e gêneros de aparelho e, das Unidades Transversas fazem parte os registros: linguísticos, funcionais e comunicacionais. O quadro a seguir, retirado de Maingueneau (2007), resume os diferentes tipos de unidades com as quais trabalham os analistas do discurso. 231 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual Unidades tópicas Territoriais Unidades não-tópicas Transversas Fo r m a ç õ e s discursivas Percursos Tipos / Gêneros de discurso -----------------------a) Gêneros dependentes de campos b) Gêneros dependentes de - Registros linguísticos - Registros funcionais - Registros comunicacionais aparelhos Nosso trabalho trata então, por sua de sua temática mesmo, de unidades não-tópicas. Todavia, não de formações discursivas, pois unidades como “o discurso sobre a pedofilia”, «o discurso racista», «o discurso pós-colonial», «o discurso patronal», por exemplo, não podem ser delimitadas por fronteiras que não sejam as estabelecidas pelo pesquisador (MAINGUENEAU, 2007, p. 32.). Trabalhamos com os percursos. Por essa categoria Maingueneau (2007, p 32-3) entende: Os analistas do discurso podem ainda construir corpus de elementos de diversas ordens (palavras, grupos de palavra, frases, fragmentos de textos) extraídos do interdiscurso, sem buscar construir espaços de coerência, ou seja, sem procurar constituir totalidades. Nesse caso, deseja-se, ao contrário, desestruturar as unidades instituídas por meio da definição de percursos inesperados: a interpretação se apóia, assim, sobre a explicitação de relações imprevistas no interior do interdiscurso. Esses percursos são hoje consideravelmente facilitados pela existência de softwares que permitem tratar conjuntos de textos bastante vastos. Podemos prever percursos de tipo formal(certo tipo de metáfora, uma dada forma de discurso relatado, de derivação sufixal, etc.); porém, nesse caso, se 232 Roberto Leiser Baronas não trabalhamos com um conjunto discursivo bem especificado, recaímos na análise puramente linguística. Podemos igualmente prever percursos baseados em materiais lexicais ou textuais: por exemplo, a retomada ou as transformações de uma mesma expressão em uma série de textos, ou então as diversas recontextualizações de um «mesmo» texto. Com base na categoria metodológica de percurso, procuramos analisar a irrupção, a retomada, a transformação e a circulação do enunciado de curta extensão “A esperança venceu o medo”, dado a circular pelos mais diversos suportes midiáticos brasileiros a partir do segundo semestre de 2002. Conforme já enunciado, de forma não tão exaustiva, estabelecemos como recorte temporal o período compreendido entre os anos de 2002 a 2012. 4 As análises... A emergência desta pequena frase no cenário político brasileiro está a princípio ligada à irrupção do enunciado “Estou com medo” e se deu no segundo semestre de 2002. À época o candidato do PT, Luís Inácio Lula da Silva e o candidato do PSDB, José Serra disputavam o segundo turno das eleições presidenciais de 2002. Na reta final de campanha, poucos dias antes das eleições, num dos programas de José Serra, no horário eleitoral gratuito, veiculado tanto na televisão quanto no rádio, a atriz Regina Duarte da Rede Globo de Televisão aparece em um vídeo de 59 segundos dizendo estar temerosa pelo fato de que o então candidato Lula poderia retroceder em relação às conquistas do Plano Real e de que não tirasse do papel nenhuma promessa social. A respeito desse medo disse Regina Duarte: 233 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual FIGURA 5: Vídeo disponível em www.youtube.com/ watch?v=DEeNSkXn5mY “Estou com medo. Faz tempo que eu não tinha esse sentimento, porque sinto que o Brasil nesta eleição corre o risco de perder toda a estabilidade que foi já conquistada. Eu sei que muita coisa ainda precisa ser feita, mas tem muita coisa boa que já foi realizada. Não dá pra ir tudo pra lata do lixo. Nós temos dois candidatos presidência: um eu conheço que é o Serra; é o homem do genérico, do combate à AIDS. O outro eu achava que eu conhecia, mas hoje eu não conheço mais. Tudo o que ele dizia mudou muito. Isso dá medo na gente. Outra coisa que dá medo é a volta da inflação desenfreada. Lembra? 80% ao mês. O futuro presidente vai ter que enfrentar a pressão política nacional e internacional. E vem muita pressão por aí. É por isso que eu vou votar no Serra. Ele me dá segurança, porque dele eu sei o que esperar. Por isso eu voto 45. Voto Serra. Voto sem medo”. (grifos meus). Após a veiculação da fala de Regina Duarte houve na mídia uma grande polêmica. Muitos artistas da própria Rede Globo de Televisão e outros atores sociais se manifestaram tanto contraria quanto positivamente em relação ao posicionamento de Regina Duarte. Para além e aquém das manifestações acerca da fala de Regina Duarte, a questão do medo da eleição de Lula se textualiza mais uma vez, sobretudo, por conta da potência da locutora, Regina Duarte, namoradinha do Brasil, atriz global... 234 Roberto Leiser Baronas FIGURA 6: Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em 27/10/2002 O discurso do medo de Regina Duarte começa a ser polemizado, após a vitória de Lula. Tal tensão discursiva pode ser flagrada quando a Folha de S. Paulo publica como título da matéria “A esperança venceu o medo”, destaque da fala de Lula em pronunciamento’ em SP em 27/10/2002. Nesse caso, temos uma enunciação aforizante. Trata-se de uma aforização, pois a fala do enunciador Lula: “mais importante, a esperança venceu o medo e hoje posso dizer para vocês que o Brasil mudou sem medo de ser feliz” é destacada de forma sintetizada de seu cotexto original e transformada em título da matéria. Rapidamente essa frase passou a frequentar os mais diversos suportes. É preciso levar em consideração, entretanto, que as condições interdiscursivas de produção da frase “A esperança venceu o medo” são o resultado de um diálogo não só com a fala de Regina Duarte no programa eleitoral de José Serra em 2002, mas também de uma conversa tanto com o slogan e o jingle de campanha do então candidato Lula do Partido dos Trabalhadores em 1989 quanto de uma série de discursos da grande mídia brasileira que à época (1989 e 2002) colocaram em circulação o discurso do medo. 235 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual Os textos a seguir nos mostram esse diálogo interdicursivo da frase em análise com o slogan e o jingle de campanha de Lula, bem com alguns textos da mídia que diziam do medo da eleição de Lula. FIGURA 7: Cartaz de campanha de Luís Inácio Lula da Silva: eleições presidenciais 1989 Brilha uma estrela Passa o tempo e tanta gente a trabalhar De repente essa clareza pra votar Sempre foi sincero de se confiar Sem medo de ser feliz Quero ver você chegar Lula lá, brilha uma estrela Lula lá, cresce a esperança Lula lá, o Brasil criança Na alegria de se abraçar Lula lá, com sinceridade Lula lá, com toda a certeza pra você Um primeiro voto Pra fazer brilhar nossa estrela Lula lá, muita gente junta Valeu a espera Lula lá, meu primeiro voto Pra fazer brilhar nossa estrela FIGURA 8: Capa da Revista Veja edição publicada em 02/10/2002 236 Roberto Leiser Baronas Os textos acima atestam que a irrupção da frase “A esperança venceu o medo” possui uma relação muito estreita com a memória interdiscursiva tanto do slogan e jingle de campanha de Lula em 1989 quanto dos discursos do medo propalados pela grande mídia: “Muito bem-feita a reportagem de capa sobre a possível e tenebrosa eleição de Luís Inácio Lula da Silva” e “Lula assusta não só porque mudou a “embalagem” e o conteúdo.” Com efeito, observemos mais um texto, desta vez a matéria da Folha de S. Paulo sobre o discurso de posse de Lula em 01 de janeiro de 2003. FIGURA 9: Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em 01/01/2003 Um exame um pouco mais minucioso acerca da fala de Lula presente na matéria acima: “A esperança finalmente venceu o medo e sociedade brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos”, nos 237 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual mostra entre outras questões que o advérbio finalmente evoca a memória interdiscursiva tanto do slogan e do jingle de 1989 quanto dos discursos do medo sobre a eleição de Lula. Esse dado linguístico, aparentemente pouco significativo, nos mostra a memória interdiscursiva beliscando a língua, fazendo o já-dito do medo e da esperança irromperem no dito. De lá para cá essa pequena frase “A esperança venceu o medo” passou a ter na mídia brasileira uma frequência elevadíssima. Tanto que é possível verificar a sua presença em contextos como o slogan de campanha da então candidata Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo em 2008 ou mesmo na fala do governador da Bahia Jacques Wagner quando da greve dos policiais em fevereiro deste ano. FIGURA 10: Cartaz de campanha de Marta Suplicy, eleições municipais de São Paulo - 2008 238 Roberto Leiser Baronas FIGURA 11: Matéria publicada na Agência Estado em 09/02/2002 O slogan de campanha de Mata Suplicy “A esperança vai vencer de novo” e a fala de Jacques Wagner acerca da greve dos policiais baianos “A democracia venceu o medo”, para além da recorrência e transformação do enunciado em análise, nos mostra que ele designa os mais variados acontecimentos discursivos, isto é, com base em uma estrutura linguística quase invariável, ele possui uma capacidade discursiva ímpar de ser transportado para nomear os mais variados eventos. Essa capacidade quase camaleônica de se transformar na designação dos mais diferentes eventos discursivos nos se(in)duz a asseverar que se trata de uma panaforização no sentido que Dominique Maingueneau dá a este conceito. Ou seja, uma frase que é tomada em um processo de tipo pandêmico: durante um período curto vê-se circular em todas as mídias e às vezes com uma frequência muito elevada, com estatutos 239 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual muito diversos: título de um artigo de jornal ou de uma página da internet, frase que circula na parte de baixo do monitor de um canal de informação televisiva, título de um vídeo sobre o Youtube, etc. Embora muito sedutora a proposta de Maingueneau para explicar a pandemia de certas frases na mídia em geral, cremos que a panaforização não dá conta de explicar a frase em questão. Cremos que o enunciado « A esperança venceu o medo » seja uma aforização de outra natureza. Dizemos isso pelo fato de que a panaforização possui um prazo de validade muito pequeno, ela é invariavelmente efêmera. Tomemos a frase proferida pelo comamandante do Porto de Livorno na Itália, Gergório De Falco « Vada a bordo, cazzo » embora tenha frequentado os mais variados textos em diferentes suportes midiáticos pelo mundo inteiro seu prazo de validade foi curto. Três meses depois da sua irrupção, já não se falava mais nessa frase. Ou mesmo a frase destacada da música de Teló, Ai se eu te pego, embora com uma circulção extremamente grande num certo período, ganhando inclusive outras materialidades como a coreografia realizada pelos jogadores do Real Madrid, poucos meses depois da sua irrupção, ela deixou de ser objeto constante de enunciação. Ao passo que a frase « A esperança venceu o medo » por ser de uma outra natureza, se mantêm no cenário midiático por quase 10 anos, significando os mais diferentes eventos discursivos. A matéria abaixo, publicada em 08 de novembro de 2008, atesta o anteriormente exposto. 240 Roberto Leiser Baronas FIGURA 12: Matéria publicada no site www.bloguerbyblogspot.com em 08/11/2008 Embora entre a eleição de Lula em 2002 e a eleição de Obama em 2008 seja possível identificar alguns traços de sentido similares, as diferenças entre os dois pleitos é bastante acentuável. Todavia, a frase que a mídia destacou do pronunciamento de Lula, logo após a sua vitória em 2002, é transportada para outro contexto e passa a dar sentido a este último contexto com os mesmos valores positivos da irrupção inicial: “A esperança venceu o medo”; “Obama é o primeiro presidente negro da história dos Estados Unidos”. Sloganizadas conclusões : a metaforização... Diante das diferenças expostas propomos que a frase em análise « A espernça venceu o medo » se constitui numa metaforização: uma palavra valise que une metáfora e aforização. Trata-se de uma pequena frase que 241 Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual assume o caráter de uma metáfora com intensa circulação, ou seja, uma frase que se presta por conta da sua constituição linguístico-discursiva (pregnância linguística e de sentidos) a estabelecer uma analogia de sentidos entre diferentes acontecimentos discursivos. Assim, “A esperança venceu o medo”, metaforiza tanto a vitória de um operário, ligado ao Partido dos Trabalhadores, nas eleições presidenciais 2002, quanto as eleições municipais de São Paulo em 2008, enquanto slogan de campanha ou mesmo a eleição de Barak Obama nos Estados Unidos. No nosso entendimento trata-se de uma frase prét-a-désignér, pois está pronta a significar diferentes acontecimentos discursivos. Nesse sentido enquanto a panaforização é fruto do rumor e da agitação momentâneas a metaforização é o resultado de uma constância enunciativa, que permanece circulando por muitos anos. Desse modo, de acordo com heteroreferencialidade acontecimental da frase em análise, propomos repensar o esquema vetorial proposto por Maingeneau 2010. 242 Roberto Leiser Baronas A grande circulação da pequena frase “A esperança venceu o medo”, em diferentes contextos e na boca de distintos enunciadores, inscritos nos mais variados posicionamentos ideológicos e destinada aos mais diversos interlocutores, nos permite propor algumas alterações na teoria de Maingueneau (2010) sobre a Enunciação Aforizante. Nesse sentido, propomos que a enunciações destacadas por natureza sejam pensadas enquanto aforizações, já as destacadas de um texto sejam pensadas enquanto aforizações, panaforizações (Maingueneau, 2011) e metaforizações. Como efeito de fim, retomo o título deste artigo “Pequenas frases sem eira nem beira” para dizer que não se trata de um recurso retórico em meu texto, que visa despertar a curiosidade do leitor, mas de uma resposta a uma questão anterior: como podemos lidar como uma frase que durante quase dez anos vem frequentando os mais diversos textos sem se prender a nenhum deles? Que recursos linguísticos e discursivos ela mobiliza para frequentar distintos acontecimentos discursivos significando-os? Defendo que essa frase é um bom exemplo de metaforização: um enunciado que possui uma capacidade quase proverbial, tal qual o sem eira nem beira, de se referir a distintos acontecimentos discursivos ao longo da história sem se prender definitivamente a nenhum deles. Referências AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. ARGENMÜLLER, J. L’analyse du discours en Europe. In: BONNAFOUS, S. & TEMMAR, M. 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Ueber die Rolle des Gedächtnisses als interdiskursives Material, Das Argument Sonderband 95, 1983. 248 CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DE ‘EU’ Renato Miguel BASSO Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)1 RESUMO O item ‘eu’ é tradicionalmente analisado como um dêitico ou um indexical, i.e., uma expressão que recebe seu valor a partir de um elemento contexto, no caso, do agente (falante, escrevente) do contexto. Depois de apresentar a teoria de Kaplan (1989) sobre esse item – certamente a mais bem sucedida das teorias até agora propostas –, mostramos vários usos de ‘eu’ que não são capturados por esse teoria. Na sequência, apresentamos uma outra proposta para análise de ‘eu’ que dá conta dos insights da teoria de Kaplan e captura todos os usos aqui apresentados. ABSTRACT Traditionally, ‘eu’ (‘I’) is analyzed as a deictic or indexical word, i.e., an expression which obtains its reference from some contextual elements, in this particular case, from the agent (speaker, writer) of the context. Firstly, we present Kaplan’s theory (1989) about indexicals and the first person pronoun – certainly the most well known and successful theory about indexicals. Secondly, we show various uses of ‘eu’ which do not conform to Kaplan’s theory. In the sequence, we propose a different theory of indexicals which can handle all the uses of the pronoun ‘eu’ that we present in this paper. PALAVRAS-CHAVE Descrição definida. Indexicais. Pragmática. Pronomes pessoais. Semântica. 1 Gostaria de agradecer à Raquel Darelli Michelon por discutir comigo várias das questões aqui tratadas, à Lovania Roehrig Teixeira pela atenciosa leitura de uma versão preliminar e vários comentários que em muito melhoraram o texto; finalmente, agradeço à Roberta Pires de Oliveira por acompanhar e discutir as ideias aqui expostas. © Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 249-280, jul./dez. 2013 Considerações sobre a semântica do 'eu' KEYWORDS Definite descriptions. Indexicals. Pragmatics. Personal pronouns. Semantics. Introdução A palavra ‘eu’ é um exemplo prototípico de “dêitico” ou “indexical”, ou seja, um item que tem, entre outras propriedades, uma grande dependência contextual, ou seja, o referente de ‘eu’, sua contribuição linguística, é o falante e ela muda cada vez que um novo falante pronuncia ‘eu’. Tomemos os exemplos abaixo, em que temos como falante o João em (1) e a Maria em (2); a representação usando os parênteses angulares (<,>) mostra qual proposição (ou pensamento) está sendo expressa: (1) (1’) (2) (2’) (João:) Eu tô com fome <João, estar com fome> (Maria:) Eu tô com fome <Maria, estar com fome> Dado que (i) em (1) e (2) temos as mesmas palavras envolvidas – i.e., a sequência ‘eu tô com fome’ –, (ii) o predicado envolvido não muda (‘estar com fome’), e (iii) ainda assim essa mesma sequência expressa duas proposições diferentes a depender de quem fala, podemos concluir que (iv) o item ‘eu’ é sensível a quem é o falante e o designa, ou seja, o referente de ‘eu’ é o falante. Para podermos capturar num modelo lógico as diferenças e semelhanças entre o par (1)-(2), uma saída é postular que proposições são o resultado de proferimentos, e que proferimentos são sentenças (i.e., sequências de sons, sintatica e semanticamente bem formadas) relativizadas a um contexto de proferimento, algo que pode ser representado pelo par <s, c>, em que ‘s’ está por sentença e ‘c’ por 250 Renato Miguel Basso contexto. No caso de (1) e o (2), a sentença ‘s’ é a mesma, i.e., ‘eu tô com fome’, mas o contexto ‘c’ é diferente, porque num deles (c1) temos o João como agente ou falante e no outro (c2) temos a Maria desempenhando esse papel. Dado que os pares <s, c> para o caso de (1) e (2) são diferentes – temos <s, c1> para (1) e <s, c2> para (2) – conseguimos capturar o fato de que a mesma sentença (s) pode ser usada para veicular duas proposições diferentes, e que o item sensível ao contexto é ‘eu’. Essa maneira de capturar essas intuições é relativamente simples e bem sucedida, porém ela gera consequências de longo alcance que nem sempre se conformam à nossa intuição. Um dos objetivos deste texto é mostrar que a análise esboçada acima não dá conta de todos os usos que fazemos da palavra ‘eu’, e é necessário uma outra teoria para lidar com esse item. Para atingir esses objetivos, o presente texto se organiza da seguinte maneira: na seção 1 apresentaremos a teoria de indexicais postulada por Kaplan (1989), por ser, atualmente, a mais abrangente e elegante teoria para lidar com esses itens; na seção 2 analisaremos os diversos usos de ‘eu’, mostrando os limites da teoria de Kaplan; na seção 3 proporemos uma organização dos usos de ‘eu’ que os agrupa em usos referencias, usos descritivos e usos como variável; na seção 4 apresentamos uma proposta para ‘eu’, baseada no trabalho seminal de Nunberg (1993); finalmente, na seção 5 resumiremos o caminho percorrido e faremos um balanço dos problemas em aberto. 1 A teoria de Kaplan para o item ‘eu’ A teoria de indexicais de Kaplan (1989) foi formulada pela primeira vez em 1977, mas foi publicada apenas em 1989. O autor tentou dar conta da semântica, da epistemologia e da metafísica que envolve os chamados itens indexicais – justamente os itens que, para receberem uma interpretação, dependem de informações contextuais. Ao lidar com 251 Considerações sobre a semântica do 'eu' esses termos, Kaplan acabou por definir termos básicos da filosofia da linguagem e da semântica, que são ainda hoje usados conforme ele propôs. Na Introdução deste texto, já tivemos oportunidade de lidar com as definições de sentença (sequência de sons ou palavras sintatica e semanticamente bem formadas), proposição (pensamento veiculado por um proferimento, que pode ser avaliado em termos de suas condições de verdade) e proferimento (sentença dita num dado contexto); o próximo passo é entender melhor a noção kaplaniana de contexto. Obviamente, o que Kaplan entende por contexto é algo bastante preciso que cumpre certas funções; em sua teoria, contexto nada mais é do que uma série de informações nas quais os falantes podem se apoiar ao usar certas expressões linguísticas (os indexicais). Um contexto é então uma unidade informacional que contém um agente (ca), um ouvinte (co), um tempo (ct), um lugar (cl) e um mundo possível (cw), e é representado como uma ê-nupla ordenada da forma <ca, co, ct, cl, cw>. Para lidar com as informações contextuais, Kaplan propõe a função caráter – uma função que toma um contexto e resulta num conteúdo; por sua vez, conteúdo é uma função que toma mundos possíveis e resulta em valores de verdade (para o caso de sentenças) e referentes (para o caso de termos singulares). Podemos pensar também que o caráter é uma regra de uso associada a um dado item lexical, ao passo que o conteúdo é a contribuição proposicional do item lexical (como o sistema kaplaniano é composicional, as mesmas considerações se aplicam a sentenças). Segundo a teoria de Kaplan, todos os itens linguísticos são interpretados pela função caráter e pela função conteúdo, porém, apenas os indexicais dão resultados diferentes com relação ao caráter (porque são sensíveis ao contexto). Para o caso do indexical, ‘eu’, por exemplo, seu caráter é uma função que resulta, a cada contexto, no falante ou agente daquele contexto, ou seja, [[eu]] = falante/agente de c = ca; foi o que vimos com os exemplos (1) e (2), que repetimos abaixo usando a terminologia introduzida (no que segue, ignoraremos tempo e local do contexto): 252 Renato Miguel Basso (1) (João:) Eu tô com fome Caráter de (1): <s, c1> = <‘eu tô com fome’, c1> = <‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>> Conteúdo de (1): <‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>> = <João estar com fome> (2) (Maria:) Eu tô com fome Caráter de (2): <s, c2> = <‘eu tô com fome’, c2> = <‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>> Conteúdo de (2): <‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>> = <Maria estar com fome> Para sabermos se as proposições expressas em (1) e (2) são verdadeiras ou falsas, é preciso considerá-las com relação aos mundos possíveis acessíveis; nesse caso, (1) é verdadeira se e somente se (sse) João estiver com fome no mundo de consideração; o mesmo vale, mutatis mutandis, para (2). Assim, se considerarmos os mundos abaixo: w1 João, Pedro, Tiago, Maria estão com fome; w2 João e Pedro estão com fome w3 Maria está com fome obteremos que a proposição expressa em (1), com o proferimento <s, c1>, é verdadeira nos mundo w1 e w2; e que a proposição expressa em (2), por sua vez, é verdadeira nos mundos w1 e w3. Com a teoria de Kaplan, temos então duas funções que têm como objetivo fornecer a proposição veiculada pelas sentenças das línguas naturais. Essa teoria pode ser representada graficamente pelo esquema abaixo, adaptado de Schlenker (2009): 253 Considerações sobre a semântica do 'eu' Usando o operador-lambda, e um sistema extensional conforme proposto por Schlenker (2009) podemos escrever as funções caráter e conteúdo, conforme abaixo, e desenvolver o cálculo até chegarmos à proposição sendo expressa no caso de (1) e c1: (1) (João:) Eu tô com fome Caráter (1) = λc [ca está com fome] Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome]] Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome] (c1)] Conteúdo (1) = λw [<João, estar com fome>] Assim sendo, a proposição expressa por (1), considerando w1, w2 e w3, será verdadeira em w1 e w2. Há várias nuances que a teoria de Kaplan apresenta, como, por exemplo, diferenciar indexicais como ‘eu’, ‘aqui’, ‘hoje’, etc. dos demonstrativos, chamando os primeiros de indexicais puros, pois sua interpretação depende simplesmente de informações contextuais, dos segundos, chamados de indexicais impuros, pois sua interpretação depende também de apontamentos ou gestos de ostensão para objetos presentes no contexto visual – mas não é possível expormos todas as nuances da teoria aqui (cf. BASSO et al., no prelo; BRAUN, 2012). 254 Renato Miguel Basso Porém, é importante chamar a atenção para duas características básicas dessa teoria, que serão desafiadas nas seções seguintes: a ideia de que os indexicais são termos diretamente referenciais e a ideia de que o único contexto mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de fala, em contraste, por exemplo, com o contexto de fala relatada. Com a primeira dessas ideias, Kaplan captura o fato de que a contribuição proposicional de um indexical (que é um termo singular) é um indivíduo e nada mais, ou seja, para uma sentença que contém a palavra ‘eu’, por exemplo, a contribuição proposicional de ‘eu’ será o agente/falante do contexto e nenhum de suas propriedades (descritivas). Essa concepção acarreta que os indexicais são termos rigidamente referencias no sentido de Kripke (1981). Ainda segundo Kaplan, o único contexto que pode ser utilizado para o estabelecimento da contribuição proposicional de indexicais é o contexto de proferimento – qualquer operador que controla o contexto de avaliação dos indexicais, segundo o autor, é um operador-monstro, e Kaplan diz que tais operadores não existem. Essa assunção foi criticada por inúmeros autores e será novamente aqui. Em resumo, para Kaplan o item ‘eu’ tem a seguinte representação: F: [[eu]]c f w = ca o item ‘eu’, com relação, a uma função de interpretação f, um contexto c, e um mundo possível w, tem como referente o agente do contexto (cA) Com a teoria de Kaplan, um poderoso instrumento para o entendimento dos indexicais nas línguas naturais, passemos aos diversos usos de ‘eu’, mostrando os limites dessa teoria. 2 Os vários usos do ‘eu’ e a teoria padrão O emprego de ‘eu’ que vimos para os casos em (1) e (2) não é o único que encontramos para esse item. Na verdade, é possível, em princípio, identificar (pelo menos) 7 diferentes usos de ‘eu’, que chamaremos 255 Considerações sobre a semântica do 'eu' de “uso referencial”, “uso impróprio”, “uso metaficcional”, “uso metonímico”, “uso descritivo”, “uso como variável” e “uso genérico”; esse usos serão analisados, na ordem em que foram apresentados, nas seção 2.1 a 2.7, juntamente com uma avaliação de como a teoria de Kaplan poderia dar conta deles – argumentaremos que, sem maiores complicações, essa teoria dá conta apenas do uso referencial. Na seção 3, conforme dissemos na introdução, reduziremos esses 7 usos a apenas 3, que são encontrados também nos outros pronomes. 2.1 Uso referencial O uso referencial é aquele exemplificado pelas sentenças (1) e (2) e é, talvez, o uso mais comum de ‘eu’. Podemos identificá-lo em todos os exemplos abaixo, lembrando que sua característica principal é referir-se ao agente, falante ou escrevente do contexto: (3) Eu não quero tomar banho. (4) Eu não estou com vontade de estudar. (5) Deixa eu quieto! (6) Me passa cola pra prova... Para todos esses casos, seguindo a teoria de Kaplan, saber quem é o agente, falante ou escrevente do contexto basta para determinar quem é o ‘eu’ e ele se refere ao agente, falante ou escrevente do contexto devido ao seu caráter e não por conta de alguma propriedade ou característica de seu referente. Em outras palavras, a fórmula [[eu]]c f w = ca esgota o uso referencial; todos os casos que veremos na sequência, por sua vez, não cabem nessa fórmula. 256 Renato Miguel Basso 2.2 Uso impróprio Usos impróprios são aqueles em que o agente, falante ou escrevente do contexto – aquele que realiza o item ‘eu’ – não é seu referente. Um exemplo particularmente claro é aquele em que alguém (João) escreve um bilhete com os dizeres ‘ME CHUTE’ e cola nas costas do Pedro. Mesmo para os que viram João escrever o bilhete, e, portanto, empregar o ‘eu’, ser seu agente, o referente de ‘eu’ será Pedro – é ele que receberá os chutes caso as pessoas resolver seguir o que está escrito. Outro exemplo, um pouco mais elaborado, é o seguinte: suponhamos um corredor com salas de professores, de modo que as portas fiquem de frente uma para a outra. O professor João não está em sua sala, a sala A. Por sua vez, o professor Pedro, cuja sala, a B, que fica de frente à sala do professor João, está e gosta de trabalhar com a porta aberta. A partir de um certo momento, estudantes começam a bater na porta da sala A, na esperança de conversar com o professor João, sem saber que ele está viajando. Isso ocorre algumas vezes até que acaba irritando o professor Pedro que então escreve o seguinte recado num pedaço de papel e o cola na sala A: ‘Eu não estou aqui agora’. A ideia funciona e os alunos, ao lerem o bilhete, vão embora sem bater à porta e sem incomodar o professor Pedro2. Intuitivamente, tudo parecer funcionar bem e concordamos que o referente de ‘eu’ para o bilhete em questão é João, ou ao menos concordamos que é assim que os estudantes se comportariam. Porém, a teoria de Kaplan não nos dá esse resultado: se a função caráter de ‘eu’, ao tomar como argumento um contexto, resulta no agente do contexto (ca), é óbvio que o agente é Pedro, e logo o conteúdo (referente) de ‘eu’ nesse contexto é Pedro e não João – algo que claramente não captura nossa intuição e interpretação. Para tornar as coisas ainda mais complicadas para a teoria de Kaplan, suponhamos também que Pedro não esteja sozinho em sua sala, mas está trabalhando com um aluno, o José. Suponhamos que José tenha acompanhado tudo o que descrevemos; notadamente, ele 2 Exemplo adaptado de Corazza et al. (2002, p. 5). 257 Considerações sobre a semântica do 'eu' viu que foi Pedro que escreveu o bilhete e o colou na porta da sala do professor João. É interessante notar que, mesmo do ponto de vista de José, é contra-intuitivo dizer que o referente de ‘eu’ é Pedro, ou seja, é contra-intuitivo dizer que a sentença colada na porta da sala A expressa a proposição (estruturada) <Pedro, não estar aqui agora>. Fundamentalmente, o que temos aqui é que o referente de ‘eu’ não é ca, ou seja, o agente/falante/escrevente do contexto, e a fórmula F não funciona para esses casos. Há, porém, diversas formas de resgatar a teoria kaplaniana, mas todas elas têm que dissociar o referente de ‘eu’ do agente/falante/escrevente de ‘eu’ e estabelecer, de alguma outra forma, como sabemos quem é o referente de ‘eu’, já que ele não é mais o agente do contexto. Seja qual for a melhor saída, ela levará a uma reformulação da teoria de Kaplan para o caso do item ‘eu’. Mais sobre esse uso pode ser encontrado em Basso (2010), Corazza et al. (2002), Predelli (1998), Perry (2003) e Romdenh-Romluc (2006). 2.3 Uso metaficcional O uso metaficcional de ‘eu’ foi extensamente analisado por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), e aqui nos interessa apenas apontar sua existência, seus contornos gerais e os problemas que coloca à teoria padrão sobre os indexicais. Como sempre, imaginemos o seguinte contexto: depois de uma peça de teatro, que envolvia apenas duas atrizes, uma repórter perguntar para uma das atrizes ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’; a atriz responde ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’. O ponto interessante é que o segundo ‘eu’ da resposta da atriz tem como referente não a atriz, mas a personagem que ela interpreta. Para que isso fique mais claro, vamos imaginar que as atrizes se chamam Ana e Maria, e as personagens que elas interpretam se chamam, respectivamente, Sandra e Sonia. Considerando isso, e supondo que a pergunta tenha sido feita à Ana, podemos parafrasear a pergunta da repórter e a resposta de Ana como abaixo: 258 Renato Miguel Basso pergunta: ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’ ‘O que Ana (=co) acha que poderia mudar na peça para que ela fosse mais engraçada?’ resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’ ‘Ana (=ca) acha que Sandra (=??) podia ser mais rica’ O problema é que essa paráfrase e a interpretação que ela revela não estão disponíveis para a teoria padrão: justamente porque ‘eu’ é ca, e o contexto tem Ana como agente/falante, a única interpretação possível é a abaixo: resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’ ‘Ana (=ca) acha que Ana (=ca) podia ser mais rica’ Essa interpretação, apesar de possível, não faz muito sentido ou não é uma resposta relevante para a pergunta da repórter. Seja como for, a primeira paráfrase está disponível, mas a teoria de Kaplan não tem como gerá-la, simplesmente porque a teoria postula que o único contexto possível mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de proferimento, e em tal contexto Ana é sempre o agente/falante. Uma saída possível, adotada por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), é postular um operador-monstro, que manipula o contexto de modo que o primeiro ‘eu’ é fixado no contexto de proferimento e tem como referente seu agente – Ana; mas o segundo ‘eu’ é fixado no contexto da ficção relevante (a peça de teatro) e tem como referente seu agente – Sandra. A explicitação formal dessa proposta e suas consequências não são totalmente óbvias e têm ramificações bem interessantes, mas que fogem aos objetivos deste texto. Porém, mais uma vez, resta notar que a fórmula F não pode ser a palavra final sobre o ‘eu’, desta vez porque o contexto, às vezes e sob certas condições, pode ser controlado3. Seria possível argumentar que o uso metaficcional é, na verdade, uma instância do uso descritivo, que veremos na seção 2.5. Contudo, essa saída não é viável pois a aplicação do uso descritivo 3 259 Considerações sobre a semântica do 'eu' 2.4 Uso metonímico O uso metonímico do item ‘eu’ é ilustrado pela sentença abaixo: (7) Eu tô estacionado na garagem. Com (7), sabemos que o falante, através de ‘eu’, refere-se ao seu carro. Há diversas explicações para que o acontece aqui, e mesmo o uso do termo “metonímico” não é consensual, pois há autores que acreditam que a interpretação sugerida para (7) não envolve um processo metonímico. Seja como for, novamente, e de modo semelhante ao que vimos para o “uso impróprio”, a interpretação de ‘eu’ para esse caso não resulta da simples aplicação de F. Nunberg (1993, 2004) e Mount (2008) apresentam interessantes discussões sobre este uso de ‘eu’. 2.5 Uso descritivo Os usos descritivos colocam sérios problemas para um dos principais pilares da teoria de Kaplan: a ideia de que a contribuição proposicional de um indexical (sendo um termo singular) é um indivíduo, ou seja, eles são termos diretamente referenciais que se referem a indivíduos sem levar em conta nenhuma propriedade ou característica desses indivíduos. Tendo isso em mente, tomemos a sentença abaixo, dita em 2012 por Dilma Rousseff, e a analisemos segundo a teoria kaplaniana: (8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final. A Constituição dá a palavra final a ca=<Dilma Rousseff, a Constituição dar a palavra final> Num primeiro olhar, essa análise parece correta e a proposição expressa é verdadeira nos mundos possíveis em que a Constituição dá geraria, para ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’, a seguinte paráfrase ‘Ana acha que a atriz que interpreta Sandra (e Ana é uma dessas atrizes) pode ser mais rica’, que não captura nossa interpretação da sentença. 260 Renato Miguel Basso a palavra final para Dilma Rousseff. Consideremos então os seguintes mundos possíveis: w1 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w2 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja w3 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w4 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja O ponto interessante é que, segundo a teoria de Kaplan, a proposição expressa pela sentença (8) é verdadeira nos mundos w1 e w2, e falsa nos mundos w3 e w4, pois basta que a Constituição dê a palavra final ao indivíduo nomeado Dilma Rousseff para que a proposição seja verdadeira, independentemente de quaisquer características de Dilma Rousseff4. Ora, isso claramente vai contra nossa intuição, pois diremos que apenas o mundo w1 deve ser levado em consideração, diremos que a Constituição dá a palavra final para Dilma Rousseff porque ela é a presidente do Brasil, ou enquanto ela for a presidente do Brasil. Mas, como esperamos ter mostrado, não é esse o resultado a que chega a teoria tradicional. Uma paráfrase mais adequada para (8) seria como abaixo: (8) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final. A constituição dá a palavra final ao presidente do Brasil e Dilma Rousseff (quando profere (8)) é a presidente do Brasil 4 É importante lembrar que isso se dá porque, na teoria de Kaplan, o contexto de proferimento determina, exclusiva e exaustivamente, o referente, que em todos os casos do exemplo (8) será Dilma Rousseff porque ela é ca. 261 Considerações sobre a semântica do 'eu' Para dar conta dessa paráfrase, precisamos de uma teoria de indexicais que leve em conta as propriedades dos referentes desses itens, pelo menos em alguns casos. O mesmo ponto pode ser feito através do exemplo de Nunberg (1993), adaptado abaixo. Imagine um prisioneiro condenado à morte, chamado João; em sua última noite, ele diz ao guarda de plantão: (9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição. A análise kaplaniana resulta, muito grosso modo, na proposição: <é tradicional <João, ter direito a uma última refeição>> Essa proposição expressa que João, tradicionalmente, tem direito a uma última refeição – algo que simplesmente não faz sentido, pois ninguém, por definição, faz tradicionalmente uma última refeição, já que se trata de uma última refeição. Uma paráfrase mais razoável para (9) seria: (9) Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição. Os condenados à morte têm, tradicionalmente, direito a uma última refeição e João é um condenado à morte. É interessante notar que a paráfrase que oferecemos para (9) segue, em linhas gerais, o caso em (8), e ambas mostram que a fórmula F estabelece uma relação direta demais: é necessário levar em conta, em alguns casos, as propriedades dos referentes. 2.6 Uso como variável O uso de ‘eu’ como uma variável aparece na literatura desde 1989 (cf. PARTEE, 1989), e desde então tem sido tratado de diversas maneiras. Para entender esse uso, imaginemos um contexto em que temos João, 262 Renato Miguel Basso Pedro e Maria, e que cada um deles tenha filhos; a Maria diz (10), cuja análise kaplaniana é mostrada logo abaixo – grosso modo, em (10’) temos uma representação com o caráter do indexical, e em (10’’), o conteúdo. (10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos. (10’) Só ca pode tomar conta dos filhos de ca= (10’’) Só Maria pode tomar conta dos filhos da Maria Nessa interpretação, o João não pode tomar conta dos filhos de Maria e nem o Pedro, pois somente a Maria pode tomar conta dos filhos da Maria. Contudo, há uma outra interpretação para a sentença (10) proferida pela Maria, cuja paráfrase está em (11): (10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos. (11) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios filhos Nessa interpretação, Maria pode tomar conta dos filhos de Maria, e João e Pedro também podem tomar conta dos filhos de Maria, mas João não pode tomar conta dos filhos de João e nem Pedro pode tomar conta dos filhos de Pedro. Os esquemas abaixo ajudam a visualizar essas duas interpretações – note que representamos apenas algumas das intepretações possíveis para não poluir demais a imagem: INTERPRETAÇÃO (10’’) tomar conta Maria João Pedro X filhos da Maria X filhos do João filhos do Pedro 263 Considerações sobre a semântica do 'eu' INTERPRETAÇÃO (11) tomar conta filhos da Maria Maria João Pedro X X filhos do João filhos do Pedro As análises presentes na literatura advogam por algum tipo de apagamento ou não interpretação dos traços-φ5 presentes no item ‘eu’, como [[primeira pessoa]] e [[singular]] (cf. Kratzer, 1998, 2009; Heim, 2008; Rullman, 2004; Przyjemski, 2008), e o resultado de tal apagamento geraria uma variável como o ‘x’ que figura na fórmula abaixo, que tem por como único objetivo capturar grosseiramente a interpretação (11): (11’) [Ser o único x] x[x toma conta dos filhos de x] (Maria); Seja como for, mais uma vez, a fórmula F não tem como gerar a interpretação em (11), que, de resto, está disponível também para a sentença (12) e inúmeras outras com a mesma estrutura: (12) Só eu tenho uma pergunta que eu sei responder. 2.7 Uso genérico O uso genérico pode ser exemplificado pelas sentenças abaixo: assistindo uma partida de futebol, alguém diz, depois de ver um gol feito perdido: (13) Esse gol até eu fazia! como comentário sobre o desempenho de um time que jogou muito mal, alguém diz: Traços responsáveis por informações como gênero e número presentes num pronome ou determinante; voltaremos a eles na seção 4. 5 264 Renato Miguel Basso (14) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado... Os ‘eu’s presentes em (13) e (14) podem receber uma interpretação segundo a qual não se referem ao falante (agente do contexto) nem a ninguém em particular, mas sim a qualquer um – para (13), não interessa quem seja, faria o gol, e para (14), não interessa quem seja, se quiser ganhar esse alguém tem que entrar motivado. A teoria de Kaplan não tem meios de capturar essa interpretação sem alterações drásticas simplesmente porque a única coisa que diz sobre ‘eu’ é a fórmula F. Mais sobre o uso genérico de ‘eu’ pode ser visto nos trabalhos de Zobel (2010, 2011). 2.8 Pequeno balanço Seis dos sete usos que vimos nas seções 2.1-2.7 desafiam a teoria de Kaplan, pois (i) o referente de ‘eu’ não é (simplesmente) o agente do contexto (seções 2.2 e 2.4); (ii) o contexto relevante para a fixação do referente de ‘eu’ não é (unicamente) o contexto de proferimento (seção 2.3); (iii) o estabelecimento do referente de ‘eu’ e das condições da verdade da proposição expressa levam em conta propriedades ou características do referente (seção 2.5), o que fere um dos princípios fundamentais da teoria kaplaniana; e finalmente, (iv) ‘eu’ não se refere a nenhum indivíduo mas sim funciona como uma variável ligada, seja porque expressa uma propriedade ou atua numa sentença genérica (seções 2.6-2.7). É importante salientar que as interpretações de 2.1 a 2.4 podem ser “salvas” numa teoria kaplaniana desde que certos ajustem sejam feitos, o que, em parte, descaracteriza essa teoria. Os casos em 2.5 a 2.7, por sua vez, apresentam desafios mais sérios à teoria e demandam outro tipo de ajuste, o que dificulta sobremaneira qualquer tentativa de explicar com a teoria de Kaplan todos os usos de ‘eu’. Dado que concluir que há mais de um ‘eu’ na língua não é a melhor alternativa dos mundos, 265 Considerações sobre a semântica do 'eu' a situação descrita até aqui pede por uma outra teoria sobre indexicais e sobre ‘eu’ em particular, e é para uma tal teoria que nos voltamos na sequência. Porém, antes disso, mostraremos que os usos de ‘eu’ podem ser reduzidos a três e que esses três usos podem, também, ser observados em todos os pronomes. 3 Reduzindo os usos de ‘eu’ e as interpretações dos pronomes pessoais A proposta que faremos nesta seção é que os usos 2.1 a 2.4 podem ser agrupados sobre o rótulo de “uso referencial”, o que vimos em 2.5 é o “uso descritivo” e o que vimos nas seções 2.6 e 2.7 são o “uso como variável”. A ideia é que com o uso referencial o que há como contribuição proposicional é simplesmente um indivíduo, ainda que ele não seja o agente do contexto (pode ser um outro indivíduo, como nos casos de 2.2 e 2.4, ou pode ser o agente de outro contexto que não o de proferimento, como em 2.3); por sua vez, no uso descritivo, a contribuição proposicional não é simplesmente um indivíduo, mas também uma propriedade ou característica exemplificada pelo indivíduo (caso 2.5); finalmente, no uso como variável o pronome ‘eu’ contribui para a proposição com uma variável. Se isso estiver correto, o que precisamos é de uma teoria que conceba o item ‘eu’ de modo que ele possa receber essas três interpretações. Porém, não seria interessante ter uma teoria apenas para o item ‘eu’, e é por isso que analisaremos rapidamente na sequência os pronomes ‘ele’ e ‘você’, com o objetivo de mostrar que esses três usos também são encontrados para esses pronomes, com a expectativa – a ser ainda verificada – que é possível estender as considerações feitas aqui também para os pronomes plurais. No que segue, não faremos uma apresentação exaustiva, que passe pelos 7 casos vistos na seção 2, mas apenas por alguns deles. 266 Renato Miguel Basso 3.1 As interpretações de ‘ele’ e ‘você’ As sentenças (15) e (16) abaixo ilustram usos referencias canônicos, ao passo que as sentenças (17) e (18) são exemplos de uso metonímicos: (15) Olha o João ali! Ele chegou cedo hoje! (16) Presta atenção no que eu falo pra você! (alguém apontando para a chave de um carro:) (17) Ele tá lá atrás, na saída da loja. (18) Onde você está estacionado? O uso descritivo desses pronomes pode ser um pouco mais difícil de visualizar. Um caso famoso na literatura aparece em Recanati (2005) e Elbourne (2008), e se dá no seguinte cenário: duas pessoas estão conversando e uma delas aponta para o atual Papa, Bento XVI, que é alemão, e diz: (19) Ele costumava ser italiano. Ora, a paráfrase correta para (19) não é (20), mas sim (21): (20) Bento XVI (i.e., Joseph Ratzinger) costumava ser italiano. (21) O Papa costumava ser italiano. O que temos aqui, grosso modo, é o acionamento da propriedade ou característica que o referente representa; logo, a contribuição proposicional de ‘ele’, em (19), não pode ser simplesmente um indivíduo. Para o caso de ‘você’, podemos imaginar uma situação em que há uma empresa, cujo presidente é sempre o membro mais velho da família 267 Considerações sobre a semântica do 'eu' que é dona dessa empresa, e é o presidente quem toma as decisões importantes; numa reunião, um dos executivos aponta para o (atual) presidente e diz: (22) É sempre você quem toma as decisões importantes. Mais uma vez, a paráfrase mais adequada para (22) não é uma que envolva somente o indivíduo que é o presidente atual, mas também a propriedade de ser presidente, como sugerido pela paráfrase em (23): (23) É o presidente que sempre toma as decisões importantes. Para o caso do uso como variável (genérico ou não), podemos tomar as sentenças abaixo: (24) Todo homem sabe o que ele deve fazer. (uma professora diz, em tom de bronca, para seus alunos) (25) Para conseguir um bom emprego, você precisa saber ler e escrever direitinho. ‘Ele’ e ‘você’ em (24) e (25) não são nem referenciais nem descritivos. Sendo assim, vejamos na seção abaixo uma proposta de teoria que dê conta dos três usos vistos até aqui. 4 Uma outra teoria sobre ‘eu’ e os pronomes pessoais Em um trabalho de 1993, Geoffrey Nunberg propõe uma estrutura para os indexicais radicalmente diferente do que encontramos no trabalho de Kaplan. Para Nunberg, os indexicais têm uma estrutura mais complexa e resultam sempre numa descrição definida, ou seja, diferentemente da teoria de Kaplan, Nunberg propõe que (i) os indexicais não são termos diretamente referenciais e (ii) que possuem uma estrutura interna, o que 268 Renato Miguel Basso quer dizer que, para o caso de ‘eu’, por exemplo, sua interpretação não é simplesmente o resultado da fórmula F. A ideia é que tanto as descrições definidas canônicas (sintagmas da forma ‘o N’) quanto os indexicais são expressões que envolvem propriedades. No entanto, a diferença entre esses dois tipos de expressão é que numa descrição definida a propriedade é pronunciada (é o ‘N’), ao passo que nos indexicais a propriedade é estabelecida a partir de elementos contextuais. Sendo assim, existem, na verdade, duas maneiras de se construir uma descrição definida, ou via propriedades pronunciadas (descrições definidas) ou via elementos contextuais (indexicais). Nunberg (1993) esboça sua proposta, mas não chega a concretizá-la. A formalização de sua proposta é feita posteriormente por Elbourne (2008) para lidar com demonstrativos; abaixo, apresentamos a fórmula para o caso de ‘eu’6: H: [eu [R i]] Como podemos ver, ‘eu’ envolve os elementos R e i, que são primeiramente combinados, e então se combinam com o terceiro elemento, ‘eu’, resultando numa interpretação. O elemento i representa um índice extralinguístico, algo que é tomado do contexto e a partir do qual a interpretação do indexical é gerada; R está por uma relação que toma como argumento um índice para resultar numa propriedade; e, finalmente, ‘eu’ tem o mesmo papel que o artigo numa descrição definida; o resultado final da composição será uma expressão que denota um indivíduo. Os tipos semânticos mobilizados, considerando uma semântica de situações, são como abaixo (o tipo <se> é um conceito individual, ou seja, uma função que toma uma situação e resulta num indivíduo): 6 Zobel (2010, 2011) lança mão de ideias semelhantes, mas, apesar de se apoiar em Nunberg (1993) e Elbourne (2008), propõe que ‘eu’ é, na verdade, uma descrição indefinida. Porém, as motivações de Zobel para tanto não são claras e ela não dá conta de todos os usos que apresentamos aqui. 269 Considerações sobre a semântica do 'eu' i índice contextual; um objeto extralinguístico; uma expressão do tipo <e>; R relação que toma como argumento i e resulta em uma expressão do tipo <se,st>; é, portanto, do tipo <e,<se,st>>; eu tem o mesmo tipo de um determinante, <se, <se,st>>, e toma uma propriedade (<se,st>) para resulta num (conceito) individual, tipo <se> O resultado da fórmula será então uma expressão do tipo <se>, o mesmo que teríamos para uma descrição definida como ‘o N’. É importante notar que a contraparte da propriedade ‘N’ de uma descrição definida na fórmula H é o resultado da composição de R e i, como indicam os colchetes. Dado que o ‘eu’ da fórmula em H e o ‘o’ tem o mesmo tipo semântico, é preciso saber qual é a diferença entre esses dois itens. Uma ideia interessante é apelar para o que os sintaticistas chamam de traços-φ, ou seja, as informações responsáveis pela concordância nominal de gênero, número etc., presentes nos pronomes e determinantes. Podemos entender esses traços-φ como pressuposições (que seriam funções parciais de identidade aplicadas ao conjunto de indivíduos) carregadas pelos próprios itens; sendo assim, o item ‘eu’ teria como traços-φ os seguintes: [[singular]]: λxe: x é um átomo. x [[primeira pessoa]]: λxe: x inclui o falante (do contexto). x Na fórmula H, os traços-φ são responsáveis delimitar o que pode servir como índice i; ora, dado que ‘eu’ pressupõe que o índice seja [[singular]] e [[primeira pessoa]], o único candidato possível para i será o falante. Além disso, como para o caso do artigo definido, o ‘eu’ contribuirá também com a informação de unicidade. 270 Renato Miguel Basso Qual seria, por fim, a relação R? Baseados numa sugestão de Recanati (2005), vamos considerar que R pode expressar duas relações diferentes, e a escolha entre elas é uma manobra pragmática: ou (i) R expressa identidade ([[R]] = λx. λu<s,e>. λs. u(s) = x; note que a identidade se dá entre um elemento extralinguístico (x), de tipo <e>, e um conceito individual (u), de tipo <se>), ou (ii) R expressa o papel (“role”) desempenhado pelo índice (e nesse caso, temos o seguinte: i R). Isso ficará mais claro ao desenvolvermos a fórmula diante dos exemplos. Resumindo, a interpretação do pronome ‘eu’ leva em conta o estabelecimento de um índice extralinguístico, i, que combinado como uma relação R, que pode ser identidade ou papel, resulta numa propriedade que, por sua vez, ao se combinar com o (determinante) ‘eu’ resulta num conceito individual. Vejamos então como essa teoria pode dar conta dos casos vistos em 2.1 a 2.7. 4.1 Usos referenciais Tomemos a sentença abaixo, para analisá-la segundo a fórmula H e as considerações que vimos acima: (26) Eu nasci em Tegucigalpa. Dado os traços-φ associados ‘eu’, a única coisa que servirá como índice i, para qualquer contexto, será o falante – no caso, João –; a relação R será a de identidade, e o cálculo todo está apresentado abaixo: (26) Eu nasci em Tegucigalpa. (27) [eu [R i]] pelos traços-φ de ‘eu’, i é João, uma expressão do tipo <e> 271 Considerações sobre a semântica do 'eu' [eu [R João]] a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade, [[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] = λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](João) [[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = João a propriedade de ser o conceito individual igual ao João, uma expressão do tipo <se,st> [eu [= João]] ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [= João], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, ao único indivíduo que é igual ao João, logo, João7. Com esse cálculo, a proposição expressa por (26), ignorando o tempo verbal, é: <João, nascer em Tegucigalpa>; o que está de acordo com nossa intuição. Além disso, ao estabelecermos como referente de ‘eu’ o único indivíduo que é igual ao João, mimetizamos os efeitos de referência direta porque o índice i é um elemento extralinguístico que, uma vez estabelecido, continua sendo o mesmo em qualquer variação modal; dado que a interpretação é uma descrição definida que é igual ao índice (i.e., João), a rigidez referencial do índice é herdade pela interpretação final. A derivação que apresentamos em (27) encontra exatamente os mesmos problemas que temos para o caso da teoria padrão ao lidar com os demais usos referencias, o impróprio, o metonímico e o metaficcional. Ou seja, para que a estratégia em (27) possa capturar as interpretações 2.2 a 2.4, é necessário apelar para mecanismos semelhantes aos necessários para que a teoria de Kaplan dê conta desses mesmos casos. A vantagem é que a teoria até aqui esboçada não esbarra em problemas como operadores-monstros e as soluções podem ser mais “orgânicas”. 7 A combinatória de tipos se dá do seguinte modo: <e, <se,st>>/<e> <se,st>; <se, <se,st>>/<se,st> <se> (i.e., R/i; ‘eu’/R). Essa mesma combinatória vale para os casos nas seções 4.2 e 4.3. 272 Renato Miguel Basso Seja como for, pareceria que a teoria baseada nas ideias de Nunberg não apresenta muitas vantagens com relação à teoria padrão; contudo, esse não é o caso justamente porque essa nova teoria consegue dar conta dos casos 2.5, 2.6 e 2.7 de maneira natural, como veremos na sequência. Nunca é demais lembrar, esses últimos casos simplesmente não “cabem” na teoria de Kaplan. 4.2 Usos descritivos Para poder dar conta dos usos descritivos, basta considerarmos que a relação R da fórmula H captura o papel (“role”) desempenhado pelo índice i e que isso só pode ser o caso porque i R. Tomemos novamente a sentença (8), repetida abaixo como (28), seguida da derivação de sua interpretação em (29). (28) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final. (29) [eu [R i]] pelos traços-φ de ‘eu’, i é Dilma Rousseff, uma expressão do tipo <e> [eu [R Dilma Rousseff]] a relação R, do tipo <e,<se,st>>, resulta no papel desempenhado pelo índice i – no caso, ‘ser o (atual) presidente do Brasil’ – de modo que i R, ou seja, R só pode ser a propriedade ‘ser o (atual) presidente do Brasil)’ se Dilma Rousseff (que é o índice i) pertencer a essa relação; o resultado é uma expressão do tipo <se,st>; [eu [‘ser o (atual) presidente do Brasil’ (e Dilma Rousseff o é)]] ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [‘ser o (atual) presidente do Brasil’], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, ao único indivíduo que é o única presidente (atual) do Brasil. 273 Considerações sobre a semântica do 'eu' Levando em conta os mundos possíveis que vimos na seção 2.5, repetidos abaixo, chegamos à conclusão correta de acordo com nossa intuição, qual seja: a proposição expressa por (28) só é verdadeira no mundo w1: w1 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w2 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja w3 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a presidente do Brasil w4 a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é balconista de loja Um ponto importante é saber quando a relação R é identidade e quando ela é papel; uma saída para esse problema é apelar para pragmática: se a relação R resultar numa contradição ou numa sentença malformada quando for identidade, usamos a estratégia de considerá-la como papel. Se esse for o caso, a interpretação padrão de R é identidade e papel é uma estratégia de “resgate” pragmático. É importante, contudo, notar que essa mesma estratégia está presente para o caso de ‘ele’ e ‘você’, que vimos, respectivamente, com os exemplos (19) e (22), mas também atua quando consideramos outros indexicais, como o caso abaixo: (30) Amanhã é a festa mais importante do ano. Basta imaginar uma situação em que ‘amanhã’ não se refere ao dia depois de hoje, mas sim a um dia específico do calendário acadêmico, como, por exemplo, o dia de recepção dos calouros. 274 Renato Miguel Basso 4.3 Usos como variável A estratégia usada para dar conta dos usos como variável ligada de ‘eu’ é a mesma empregada para dar conta desses mesmos usos para o caso de ‘ele’, e é, como mencionamos, o apagamento ou não-intepretação dos traços-φ presentes nos determinantes. Há várias propostas de como tal não-interpretação ou apagamento pode ocorrer (cf. HEIM, 2008; KRATZER, 1998, 20098), e não nos interessa aqui optar por uma delas, mas sim mostrar que, uma vez adotada uma das alternativas, a fórmula H dá conta dos casos vistos em 2.6 e 2.7. Os traços-φ associados a ‘eu’ são: [[singular]]: λxe: x é um átomo.x e [[primeira pessoa]]: λxe: x inclui o falante (do contexto).x. Como notamos acima, esses traços podem ser interpretados como funções parciais de identidade que têm como domínio e contradomínio o conjunto de indivíduos. O resultado do apagamento ou não-interpretação desses traços (ou funções) é simplesmente um elemento do conjunto de indivíduos, não importa qual seja – ora, isso é exatamente o que faz uma variável que encontra sua interpretação no conjunto dos indivíduos: estar por um indivíduo qualquer, não importa qual seja. Isso significa que o índice i não será (necessariamente) o falante, mas sim qualquer elemento do conjunto de indivíduos. Numa situação como essa, a relação R só pode ser de identidade: como não sabemos qual é o indivíduo a que i remete, não temos como estabelecer um papel para esse indivíduo sem ferir a exigência i R; logo, o que temos é a função de identidade se aplicando à própria variável. A aplicação de ‘eu’ resultará num único indivíduo do domínio ou conjunto de indivíduos. Essa descrição dá conta do caso (11), que tem sua interpretação repetida abaixo como (31), seguida da derivação em (32) (11) (Maria diz:) Só eu posso tomar conta dos meus filhos. Segundo as autoras, o aparecimento de ‘ele’, ‘ela’ ou ‘eu’ na forma superficial é resultado de processos morfológicos de concordância, mas de relações semântico-interpretativas. 8 275 Considerações sobre a semântica do 'eu' (31) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios filhos (31’) [Ser o único x] x[x toma conta dos filhos de x]) (32) [eu [R i]] pelo apagamento dos traços-φ de ‘eu’, i é qualquer elemento do conjunto de indivíduos, x [eu [R x]] a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade, [[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] = λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](x) [[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = x a propriedade de ser o conceito individual igual a um indivíduo do domínio, x, uma expressão do tipo <se,st> [eu [= x]] ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a propriedade [= x], resulta numa expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma dada situação, a um único indivíduo do domínio. Finalmente, para dar conta do caso (14), repetido abaixo como (33), basta prefaciar a fórmula com um operador genérico, GEN, que provavelmente é acionado pelo imperfeito presente no verbo: (33) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado... GEN[[ser pra x ganhar] [x entra motivado]] Obviamente, o que mostramos nesta seção é apenas uma primeira elaboração de como dar conta dos usos como variável de ‘eu’, que precisa ser elaborada mais detalhadamente de posso de uma teoria sobre como lidar com os traços-φ; é importante notar, contudo, que tal teoria tem, em princípio, meios para lidar com essa interpretação. 276 Renato Miguel Basso 5 Considerações finais O objetivo principal deste trabalho é propor uma análise para o item ‘eu’ que dê conta dos usos vistos em 2.1 a 2.7, sem apelar para algum tipo de ambiguidade associada ao ‘eu’. Para tanto, mostramos que a teoria padrão, proposta por Kaplan, não dá conta, sem alterações substanciais, de 6, dos 7, casos analisados, além de não levar em conta informações como os traços-φ presentes nos pronomes. Diante dessas limitações, propomos uma outra análise para ‘eu’, baseada nas ideias de Nunberg (1993). Esse autor considera que ‘eu’ (e os demais indexicais) tem muito mais estrutura interna do que afirma a teoria de Kaplan e, a partir dessa concepção, sua abordagem consegue capturar as interpretações mostradas na seção 2. Essa proposta não é, obviamente, isenta de problemas. Entre eles podemos citar a dificuldade de lidar com os casos 2.2, 2.3 e 2.4; porém, essas dificuldades são rigorosamente as mesmas enfrentadas pela teoria de Kaplan, o que colocaria as teorias em pé de igualdade não fosse o fato de a teoria de Kaplan ser muito mais econômica. A (aparente) falta de economia da teoria aqui avançada é compensada pela possibilidade de ela lidar com os casos em 2.5, 2.6 e 2.7, casos para os quais a teoria de Kaplan, em sua forma original, simplesmente não tem o que dizer. Além disso, essa nova teoria captura a rigidez referencial de certos usos de ‘eu’, usa de maneira elegante os traços-φ, e unificada, não apenas os usos de ‘eu’, mas também os usos dos pronomes através da ideia que sua interpretação é, na verdade, muito próximo às das descrições definidas. As derivações que propomos na seção 4 são apenas esboços de como fazê-las e precisam ser mais bem desenvolvidas. No entanto, como cada uma delas merece um estudo em separado, aqui nos limitamos a mostrar como seria possível unificar os usos de ‘eu’. 277 Considerações sobre a semântica do 'eu' Referências BASSO, R. M. Sobre a Semântica de ‘eu’. Anais do IX Encontro do CELSUL, http://www.celsul.org.br/Encontros/09/artigos/ Renato%20Basso.pdf, 2010. BASSO, R. M. & TEIXEIRA, L. 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