REVISTA DA
ABRALIN
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
R454
Revista da Abralin / Associação Brasileira de Linguística.
Vol. I, n. 1 (junho 2002) - . - São Carlos, SP: UFSCar 2013.
Volume XII, n.2 (jul./dez. 2013)
Semestral
ISSN 2178-7603
1. Linguística - Periódicos. 2. Gramática comparada e geral.
3. Palavra - Linguística. I. Universidade Federal de São Carlos.
II. Associação Brasileira de Linguística. III. Título.
CDD: 415
Bibliotecário: Arthur Leitis Junior - CRB 9/1548
REVISTA DA
ABRALIN
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
ISSN 2178-7603
REVISTA DA ABRALIN
VOLUME XII
NÚMERO 2
JUL/DEZ. DE 2013
REVISTA DA
ABRALIN
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LINGUÍSTICA
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REVISÃO E NORMALIZAÇÃO DE TEXTOS
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FAX: +55 (16) 3351-2081 - EMAIL: [email protected]
NOTA DO EDITOR
É com muita alegria e satisfação que disponibilizamos ao público
leitor, sobretudo, o interessado em questões que dizem cientificamente a
linguagem nos seus mais diversos sistemas significantes, mais uma edição
semestral online da Revista da Associação Brasileira de Linguística –
ABRALIN.
Essa Edição, a 2013/02, referente ao período de julho a dezembro de
2013, está dividida em duas partes: na primeira, são dados a circular cinco
artigos de pesquisadores, ligados a diferentes universidades brasileiras,
que, tomando distintos objetos linguageiros de pesquisa, analisando-os
e/ou teorizando-os, se inscrevem nos mais variados domínios e escolas
das ciências da linguagem, praticadas em solo brasílico e, na segunda,
outros cinco artigos, atinentes às falas das mesas redondas e conferências
de pesquisadores na Abralin em Cena Mato Grosso. Evento realizado no
Instituto de Linguagens, Mestrado em Estudos de Linguagem - MeEL,
da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus de Cuiabá,
no período de 10 a 13 de abril de 2012.
Gostaríamos de agradecer a todas as pessoas que de uma maneira
ou de outra e a seu modo contribuíram para a efetivação de mais essa
edição. Sem esse apoio a Revista não seria publicada. Deixamos também
um agradecimento muito especial ao Mestre Prof. Dr. Rodolfo Ilari
da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP – batalhador
incansável pela linguística do/no Brasil, pelos relevantes e competentes
serviços prestados a essa Revista durante o profícuo período em que
esteve à frente da Editoria.
Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e
Teresa Cristina Wachowicz (UFPR)
SUMÁRIO
ARTIGOS
BRAZILIAN PORTUGUESE LÁ IN THE CP-DOMAIN: A CARTOGRAPHIC
ANALYSIS .............................................. ............................................................................. 11
Bruna Karla Pereira - Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)
Jânia Martins Ramos - Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
MANIFESTAÇÕES DO DEL (DÉFICIT/DISTÚRBIO ESPECÍFICO DA
LINGUAGEM) NO DOMÍNIO DA SINTAXE À LUZ DE UM MODELO
INTEGRADO DE COMPUTAÇÃO ON-LINE ......................................................... .. 35
Letícia Maria Sicuro Corrêa - Pontifícia Universidade Católica (PUC) -Rio/Lapal
Marina R. A. Augusto- Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Lapal
QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS DA NEUROLINGUÍSTICA DE
ORIENTAÇÃO ENUNCIATIVO-DISCURSIVA........................................................ 63
Amanda Bastos Amorim de Amorim - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
O CORPO EM CONTRADIÇÃO: O INDIGNO E O ANORMAL ..................... 97
João Carlos Cattelan - Universidade do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
DENOMINAÇÃO DESCRITIVA: QUESTÕES DE UNIDADE E
SENTIDO............................................................................................................................125
Cleber Conde – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
DOSSIÊ ABRALIN EM CENA MATO GROSSO
PARA UMA ANÁLISE DE PROCESSOS TEXTUAL-INTERATIVOS ..............147
Lúcia Regiane Lopes Damasio - Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
LER UM TEXTO UMA PERSPECTIVA ENUNCIATIVA .................................... 189
Eduardo Guimarães - DL-IEL/Labeurb -Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
PARA A HISTÓRIA DO PORTUGUÊS PARANAENSE.......................................207
Joyce Elaine de Almeida Baronas - Universidade Estadual de Londrina (UEL)
DA PANAFORIZAÇÃO À METAFORIZAÇÃO: O CASO DE UMA PEQUENA
FRASE SEM EIRA NEM BEIRA TEXTUAL..............................................................219
Roberto Leiser Baronas- Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e CNPq
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA DO 'EU' .........................................249
Renato Miguel Basso - Uniersidade Federal de São Carlos (UFSCar)
ARTIGOS
BRAZILIAN PORTUGUESE LÁ IN THE CPDOMAIN: A CARTOGRAPHIC ANALYSIS
Bruna Karla PEREIRA
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM)
Jânia Martins RAMOS
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
RESUMO
Neste artigo, desenvolvemos um estudo de ‘lá’ no PB em questões retóricas, imperativas,
diretivas, assertivas enfáticas e predicativas. Propomos que, nessas estruturas, ‘lá’ ocuparia a
posição de Spec em FocusP e ForceP na cartografia do CP. Esta proposta se fundamenta na
teoria dos especificadores funcionais (CINQUE, 1999) e no projeto cartográfico (RIZZI,
1997; CINQUE & RIZZI, 2008). O primeiro propõe que AdvPs são inseridos por
merge na posição de especificador de categorias funcionais. O segundo, por sua vez, identifica
um domínio à esquerda do IP, composto por categorias que estão na interface do discurso e
da sintaxe.
ABSTRACT
This paper aims at investigating Brazilian Portuguese ‘lá’ (‘there’) in structures with
rhetorical question, imperative, directive, emphatic assertion, and predicative. We argue that,
in these constructions, ‘lá’ is merged in the specifier of FocusP and ForceP in the CPcartography. This proposal is based both in the F-Spec Theory (CINQUE, 1999) and in
the cartographic project (RIZZI, 1997; CINQUE & RIZZI, 2008). The former claims
that AdvPs are merged in the specifier of functional categories. The latter identifies a domain
to the left of the IP which is made up by a range of functional categories facing both discourse
and syntax.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 11-33, jul./dez. 2013
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
PALAVRAS-CHAVE
Especificador funcional. ‘Lá’ no português brasileiro. Periferia esquerda.
KEYWORDS
Brazilian Portuguese ‘lá’. Functional Specifier. Left Periphery.
Introduction
Several researchers have observed that the adverb lá, both in BP
(MARTELOTTA & REGO, 1996) and in EP (MARTINS, 2010), has
shown non deictic properties which allow it to perform an “emphatic
marker” function in many different syntactic structures. For a matter
of clarification, we may divide these researches in at least two groups.
Roughly, the first one is concerned with the semantic and discursive
values conveyed by lá, without developing a syntactic analysis. The
second one provides these realizations of lá with a syntactic analysis, but
does not offer means of examining the restrictions and identity of each
realization of lá in BP.
For instance, MARTINS (2010) claims that Spec,TP is the position
where lá is merged in all the structures that she took into account in EP.
Though this proposal is meant to be comprehensive, it seems to lack
principles for explaining the singular syntactic and semantic features of
each structure where lá occurs. Actually, this analysis puts together, in a
sole category (Spec,TP), a bunch of different interface features, which
seems to be problematic.
Therefore, a unified analysis is needed, but it also has to fit with the
peculiar properties of lá in its many realizations. In order to meet these
requirements, which are not mutually exclusive, the ensuing analysis
will pursue the following assumptions. Firstly, AdvPs are functional
12
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
specifiers (CINQUE, 1999). As such, they are expected to have a rigid
order determined by the Universal Grammar and to check head features.
Secondly, the IP (RIZZI, 1997) projects a domain dedicated to elements
of interface, that is, the ones which have syntactic and discourse import.
In this way, the left periphery or CP bears a space rich in functional
categories, such as focus, force, finiteness, and so forth. Thirdly, syntax
is governed by elementary mechanisms, such as merge and move
(CHOMSKY, 1995), that can generate highly complex hierarchical
blocks.
Minimalism focuses on the elementary mechanisms
which are involved in syntactic computations […] and
cartography focuses on the fine details of the generated
structures, two research topics which can be pursued in
parallel in a fully consistent manner (CINQUE; RIZZI,
2008: 49).
Based in these assumptions, we hypothesize that lá checks functional
features in the IP periphery1. Therefore, this paper examines lá in
rhetorical questions (1.1), imperatives (1.2), directives (2.1), emphatic
assertions (2.2), and predicatives (2.3), arguing that, in these structures,
lá would be merged in the specifier position of FocusP and ForceP.
1 Lá in Spec,FocusP
This section investigates lá in rhetorical questions (1.1) and in
imperatives (1.2).
This proposal also applies to NP and VP peripheries covering other realizations of BP lá
(PEREIRA, 2011).
1
13
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
1.1 Rhetorical questions
To study lá in these structures, we first give a brief explanation on
the properties of rhetorical questions. Then, we argue for an analysis of
lá as Spec,FocusP in the IP-periphery. Finally, we discuss MARTINS’s
(2010) proposal for EP. In the meantime, we also intend to clarify the
difference between lá as a rhetorical question marker, on the one hand,
and as a negative marker, on the other hand.
Let’s observe (1a).
(1)
a. Isso lá é atitude de um homem?
This lá is attitude of a man
‘Is this a man’s behavior?’
b. This is not a man’s behavior.
In (1a), lá belongs to a rhetorical question which, by definition, (i)
“does not expect to elicit an answer” (HAN, 1998: 1) and (ii) has the
capacity of inverting the polarity of a sentence. That is why (1b), a
negative sentence, may be a paraphrase of (1a).
In rhetorical questions, lá can be either pre-verbal (1c) or post-verbal
(1d) and can be omitted, without changing the propositional content of
a sentence, as follows:
(1)
c. Isso (lá) é atitude de um homem?
d. Isso é (lá) atitude de um homem?
This is lá attitude of a man
‘Is this a man’s behavior?’
Due to the fact that lá can be pre-verbal, it is situated higher than
the position where the verb is located, that is, higher than IP, probably in
the left periphery because lá conveys information with emphatic import.
As a consequence, post-verbal position of lá would be explained by
14
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
V-raising to a position higher than the one where lá is located.
For these reasons, we presume that in (1a) lá is merged in the CPdomain, specifically in Spec,FocusP. This position seems to be suitable
because lá is usually pronounced with an emphatic intonation, is not
compatible with focalized items (2), and allows topic recursion higher
(3b, d) and lower (3c) than its position.
(2)
a. TUDO, o João comprou. Não faltou nada.
Everything, the João bought. Not lacked nothing
‘João bought EVERYTHING. Nothing is missing’.
b. *TUDO, o João lá comprou?
EVERYTHING, the João lá bought
(3)
A:
O João comprou um carro recentemente.
‘João has bought a car recently’.
B:
a.
b.
c.
d.
Você quis dizer: O PAI DO JOÃO comprou um carro
recentemente.
‘You mean: João’s father has bought a car recently’.
O João lá comprou um carro? Foi o pai dele.
The João lá bought a car? Was the father of-him
‘Has João bought a car? It was his father who did it’.
Lá um carro o João comprou? Aquilo é uma lata velha.
Lá a car the João bought? That is an iron old.
‘Has João bought a car? That looks like scrap iron’.
O João comprou lá um carro? Aquilo é uma lata velha.
The João bought lá a car? That is an iron old.
‘Has João bought a car? That looks like scrap iron’.
The underlined items, in contrast to what happens to o pai do João
in (3Ba), carry given information, which means that they are available
15
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
in the discourse. That is why they can be interpreted as topics. We
claim that o João (3b), um carro (3c), o João (3d) and comprou2 (3d) move to
topic positions either higher or lower than the one where lá is situated,
according to the derivations shown below.
FIGURE 1: Lá in Spec,FocusP of rhetorical questions
(3) b. O João lá comprou um carro?
Foi o pai dele.
2
(3) d. O João comprou lá um carro?
Aquilo é uma lata velha.
V to C movement may raise some questions that we leave for future stages of this investigation.
16
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
According to MARTINS (2010), in European Portuguese (EP), lá is
post-verbal, as given in the examples (4a, b).
(4)
a. “Eu doente? Ora essa! Eu sou lá criatura que adoeça!”
Me sick? Now that! I am lá creature that gets-sick!
‘Me sick? What a silly idea! I’m not someone to fall sick’
(MARTINS, 2010: 12).
b. “Há lá coisa melhor que estar na praia?”
‘Is lá thing better than be-INFIN in-the beach?
‘Could anything be better than staying in the beach?’
(MARTINS, 2010: 16).
Surfacing in this position, lá is lower than the verb: while the latter is
situated in ΣP, the former is in TP.
Spec,TP in European Portuguese is a dedicated Utterance
Time position […] non-argumental deictic locatives may
give content to Spec,TP by external merge, in which case
they act as emphatic markers devoid of locative meaning
(MARTINS, 2010: 18).
Nevertheless, in BP, lá in rhetorical questions can be pre-verbal, as
seen in the example (1a), repeated below, which means that it is in fact
higher than the verb.
(1)
a. Isso lá é atitude de um homem?
This lá is attitude of a man
‘Is this a man’s behavior?’
Besides, according to the author, lá in (4a) is different from lá in (4b).
The former is a negation marker while the latter is a rhetorical question
17
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
marker. This difference, however, does not apply to BP. In BP, (4a) is
grammatical only if it is pronounced with an intonation of questions. It
means that (4a) would be in fact a rhetorical question just like (4b).
We still need to know, however, why both (1a) and (4a, b) are
understood as negation in BP. It follows probably from a peculiar
property of rhetorical questions which is the reversal polarity, that is,
“a rhetorical positive question has the illocutionary force of a negative
assertion” (HAN, 1998: 1) and other way round. As a matter of fact,
if lá is left out, the sentence will still keep its negative interpretation.
Therefore, a straightforward conclusion from this fact is that lá, in
rhetorical questions, is not a negation marker. Negation derives purely
from illocutionary force.
Nonetheless, it turns out that, in sentences like (5a) and (5b) below,
lá can be analyzed as a negation marker. In this case, there is no question
intonation, lá is post-verbal3 only and can not be left out otherwise the
negative interpretation is lost. In addition, lá, as a negation marker in
BP, has some restrictions to be met, for instance, it has to appear with
the verbs saber (‘to know’), as in (5a), and importar (‘to mind’), as in (5b).
When it occurs with saber, it is also restricted either to 1st singular person
(5a) or to 3rd singular plus arbitrary -se, as in (5c).
(5)
a. Sei lá!
Know lá
‘I don’t know!’
b. Importa-me lá!
Mind me lá!
I don’t care!
c. Sabe-se lá se ela casou.
Know-se lá if she married
It is not known if she has got married.
3
Taking into account its post-verbal position and other properties, Pereira (2011) suggests that lá
as a negation marker, unlike lá in rhetorical questions, is rather in the low periphery, which means
that the verb does not move all the way up to the CP-domain.
18
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
To sum up, we have pointed out that lá is not a negation marker
in (1a), but only in specific contexts where the sentence does not have
interrogative intonation and shows lexical and grammatical restrictions.
In addition, at least in BP rhetorical questions, lá can be preverbal, which
means that it is probably higher than Spec,IP.
1.2 Imperatives
This subsection is concerned with lá in imperatives (6).
(6)
a. Olha lá, hein? Pare de acusar os outros.
Look lá, huh? Stop of accuse-INF the others
‘Be aware of it, huh? Stop accusing people.’
In (6), lá can only be post-verbal and, as expected for imperatives, it
is incompatible with conditionals (6b), embedded clauses (6c) and nonfinite clauses (6d).
(6)
b. *Se você olha lá, as pessoas não vão ficar bravas.
If you look lá, the people not go-FUT stay-INF angry
c. *Eu disse que olha lá.
I said that look lá
d. *Olhar lá é a chave para as pessoas não ficarem bravas.
To-look lá is the key to the people not stay angry
According to MARTINS (2010: 13), lá expresses “vehement
requests, by which the speaker intends to grant a positive response from
the interlocutor”, as in (7).
(7)
A:
Dá-me um beijo.
‘Give me a Kiss!’
19
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
B:
A:
Não.
‘No.’
Dá lá.
‘Please!’ (MARTINS, 2010, p. 13-14).
Contrastively, in BP imperatives4, lá, besides indicating a kind request,
as given in (8a), may also be used to indicate a threat, as given in (6a).
(8)
a. “Avisa lá que eu vou chegar mais tarde”
Tell lá that I will arrive more late
‘Tell them please that I will arrive later’.
According to MARTINS (2010), lá is situated in Spec,TP due to
its post-verbal position. In our view, however, lá belongs to the IPperiphery, being merged probably in Spec,FocusP. This hypothesis takes
into account that: firstly, lá does not seem to be compatible with focalized
items (8b); secondly, lá is post-verbal (8c), which follows from the fact
that V raises to Force in imperatives (PLATZACK & ROSENGREN,
1998); thirdly, lá is not only post-verbal but also adjacent to the verb
(8d). That is why lá may be merged immediately below ForceP.
(8)
b. *Avisa VOCÊ lá.
Tell YOU lá
c. *Lá avisa!
Lá tell
d. *Avisa com atenção lá.
Tell with attention lá
Therefore, even though lá is merged in Spec, FocusP and act as a kind
of ‘emphatic’ marker both in rhetorical questions and in imperatives, it
belongs to two different structures. In rhetorical questions, there is no
4
Other examples of lá in imperatives are found in Pereira (2011).
20
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
V-raising to Force, contrary to what happens in imperatives. Furthermore,
Force, in rhetorical questions, bears [+Interrogative] features, while in
imperatives, Force is [+Imperative].
Considering these facts, a derivation for (6a) would be as follows:
FIGURE 2: Lá in Spec,FocusP of imperatives
(6)
Olha lá, hein?
2 Lá in Spec,ForceP
This section deals with sentences having the following types of
illocutionary force: directive (2.1), assertive (2.2) and conditional (2.3).
The hypothesis we have for them is that lá is merged in Spec,ForceP.
21
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
2.1 Directives
In order to analyze directive sentences, this subsection comprises a
description of expressions such as French voilà/ci and English t/here you
go/are, comparing them with BP lá vai (9).
(9)
Lá vai!
Lá goes!
‘There you go!’
Comparing voilà and lá vai, we will be interested in what they are
similar and what they are different in relation to the following properties:
(i) syntactic function of the post-verbal NP; (ii) possibility to appear in
embedded clauses; (iii) replacement of the NP for an embedded clause
and (iv) replacement of lá by aí.
Firstly, starting from the syntactic function of the post-verbal NP, in
French (10a), the NP is an internal argument of voir (‘to see’), while in
BP, the NP is an external argument of ir (‘to go’) (10b).
(10)
a. Voilà son sac (internal argument).
‘There is his bag’.
b. Lá vai a bolsa (external argument).
‘There is the bag’.
Secondly, while voilà may appear in embedded clauses, as in relatives
(11a), lá vai seems to be restricted to main clauses (11b).
(11)
a. “L’homme que voilà est mon amant” (BERGEN;
PLAUCHÉ, 2001: 7).
‘The man (who is) there is my lover’ (BERGEN;
PLAUCHÉ, 2001: 7).
b. *Esta é a bolsa que lá vai.
This is the bag that lá goes
22
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
Thirdly, the realization of an embedded clause in the position of the
NP is allowed with voilà (12a), but not with lá vai (12b).
(12)
a. Voilà que Marie part. (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 8).
‘There is Marie leaving’ (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 8).
b. *Lá vai que a Maria desaparece.
Lá goes that the Maria disappears
Having pointed out the features which distinguish voilà and lá vai,
we will show now the features which make them alike. Firstly, locative là
may be replaced with ci (13a) in voilà and with aí (13b) in lá vai without
changing the propositional content of the sentence. According to Bergen
& Plauché (2001: 2), “voilà and voici were historically used to differentiate
between proximal and distal relations, as ci and là still do […]. At present,
voilà and voici are mostly interchangeable without semantic effect”.
(13)
a. Voilà/ci son sac. (Bergen; Plauché, 2001: 1).
‘There/Here is his bag’.
b. Lá/aí vai a chave que você pediu.
There/Here goes the key that you asked
‘There/Here is the key that you asked me’.
Another common feature between voilà and lá vai is the realization
of a speech act which results in an action from the listener. Following
Bergen & Plauché (2001: 2), “Voilà and voici derive historically from
imperative forms of the verb ‘to see’”, i.e., there is a request saying “look
at that thing there” (BERGEN; PLAUCHÉ, 2001: 6). Similarly, directive
lá vai is usually uttered in a context where the speaker gives or sends
something to his interlocutor, as in (14).
(14) Scene: a girl replies to an e-mail message of her brother.
a. Lá vai: Rua da Bahia, n. 16, CEP ....
There goes: Street of Bahia, number 16, Postal Code …
‘T/here is my address: 16, Bahia Street, Postal Code …’
23
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
Scene: a woman throws a key to her husband.
b.
Lá vai!
There goes
‘T/here is the key!’
To sum up, on the one hand, (i) the syntactic function of the postverbal NP, (ii) the insertion into an embedded clause; and (iii) the
replacement of the NP for an embedded clause establish a contrast
between French voilà and BP lá vai. On the other hand, (iv) locative
interchangeability makes them look alike. The comparison between BP
lá vai and French voilà is aimed at showing that like voilà, lá vai performs
a presentative function.
So far, we investigated the similarities and differences between French
voilà and BP lá vai. From now on, we will try to make a parallel between
BP lá vai and English t/here you go/are. These expressions are “used when
you are giving something to someone, or showing something to them”5,
as in (15) and (16).
(15)
a.
“There you are. I’ll just wrap it up for you”6.
b. “Here you are. A box full of tools”7.
(16)
a.
b.
A cashier gives a customer the shopping already packed,
saying: “T/here you go!”.
“‘Here you go’. Callum handed her a glass of orange
juice”8.
Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011.
Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/there_2>. Accessed in: 15th March, 2011.
7
Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011.
8
Available in: <http://www.ldoceonline.com/dictionary/here>. Accessed in: 15th March, 2011.
5
6
24
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
We may observe that, in each of the examples above, lá vai may
be replaced with a verb in the imperative form, such as tome (‘take’),
receba (‘receive’) or pegue (‘hold’). Therefore, lá vai, just like voilà, conveys
a directive speech act, because it elicits a reaction from the speaker. For
example, in (14b), the husband is expected to be prepared to hold the key
which will be thrown in his direction. This is the most striking similarity
between there you go and lá vai: both has what we may call directive
illocutionary force. In the examples above, we may also notice that there,
as in (15a) and (16a), and here, as in (15b) and (16b), are sometimes
interchangeable like là and ci in voilà.
All of this means that, far beyond a locative import, the comparison
with voilà, on the one hand, allows us to identify a presentative function
in lá vai. On the other hand, the comparison with there you go allows
us to identify a directive illocucionary force in the Brazilian Portuguese
expression. Therefore, because there is a relevant matter of illocutionary
force in the expression lá vai, and because lá is pre-verbal, we hypothesize
that this adverb is merged in Spec,ForceP, in order to check [+directive]
feature in Force, according to the following derivation.
FIGURE 3: Directive lá in Spec,ForceP
(9)
Lá vai!
25
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
2.2 Emphatic assertions
In this subsection, we will examine the properties of lá in emphatic
assertions (17B).
(17)
A: _A vida não tem sentido sem trabalho e fé.
‘Life is not worthy without work and faith’.
B: _Lá isso é verdade.
There this is true
‘This is definitely true’.
Firstly, the fact that lá is fully compatible with aqui (‘here’), as showed
in (18a), supports the idea that it is not deictic locative. Secondly, lá
is rigidly pre-sentential (18b), which results in its high position in the
syntactic hierarchy. Thirdly, lá is restricted to root clauses, which might
be determined by the illocutionary force of emphatic assertions. As such,
tests seem to confirm that lá is prevented from occurring in conditional
(18c), embedded (18d) and non-finite (18e) clauses. Fourthly, lá may
co-occur with positive polarity items (18f), which indicates that it does
not belong to PolP. In addition, lá is not allowed to follow these items
(18g), which confirms that this adverb is high, specifically, higher than
PolP and, hence, situated in the CP-domain. Fifthly, lá may occur with
topicalized (ficamos) and focalized (nós) items. In this case, lá precedes
them (18h).
(18)
a. Lá isso é bem verdade aqui na região.
Lá this is well true here in-the region
‘This is definitely true here in this area’.
b. ≠Isso lá é bem verdade.
This lá is well true
c. *Se lá isso é verdade, ...
If lá this is true, …
26
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
d.
e.
f.
g.
h.
*Eu disse que lá isso é verdade.
I said that lá this is true.
*Lá isso ser verdade é a condição para o acordo.
Lá this to-be true is the condition to the agreement
Lá isso sim é verdade.
Lá this yes is true.
‘Yes, this is definitely true’.
≠Isso sim lá (em São Paulo) é verdade.
This yes there (in São Paulo) is true.
Yes, this is true there (in São Paulo).
Lá ficamos NÓS sem almoço.
Lá stayed we without lunch
‘We finished by not having lunch’.
In sum, lá precedes the whole sentence, positive polarity items, topic
and focus and is restricted to root clauses. Therefore, there are at least
five reasons to support the analysis of lá in Spec,ForceP. We claim that
lá, in emphatic assertions, is directly merged in Spec,ForceP in order to
check [+Declarative] features, according to the derivation below.
FIGURE 4: Lá in Spec,ForceP of emphatic assertions
(17) B: _ Lá isso é verdade.
27
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
2.3 Predicatives
The data in 19 (a - d) show that lá may appear in a predicative
structure which is made up by different heads.
(19)
a. Seja lá qualquer pessoa que for, comporte-se.
Be-PRES.SUBJ. lá any person that be-FUT.SUBJ., behaveyourself
‘No matter who s/he is, behave yourself ’.
b. Seja lá que pessoa/quem/qual livro for, aceite.
Be-PRES.SUBJ. lá any person/who/any book be-FUT.SUBJ,
accept-IMPER.
‘No matter who s/he is, accept her/him’.
‘No matter which book it is, accept it’.
c. Seja lá como/onde/por que razão/de que direção for,
prossiga.
Be-PRES.SUBJ. lá how/where/for any reason/from any direction
be-FUT.SUBJ, go-IMPER.
‘Never mind how/why/where/which direction they will
travel, just go’.
d. Seja lá bonito como for, não compre.
Be-PRES.SUBJ. lá beautiful how be-FUT.SUBJ, not buy
‘No matter how beautiful it is, don’t buy it’.
d’. Seja lá quão bonito for, não compre.
Be-PRES.SUBJ. lá how beautiful be-FUT.SUBJ, not buy
‘No matter how beautiful it is, don’t buy it’.
The predicative structures in (19) belong to a complex wh-item made
up by X + be-SUBJUNCTIVE such that X may be a DP, PP, NP, AP,
QP, AdvP, and so forth. An evidence for claiming that this phrase is a
functional wh-item comes from the fact that quem for, o que for, por que
for, como for, onde for and bonito como for may be translated into English by
wh-items, such as whoever, whatever/whichever, why, however, wherever and how
28
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
beautiful. Moreover, even in BP, (19d) may be paraphrased by (19d’) with
a wh-item (quão bonito), though in a very literary style.
Additionally, the predicative clauses in (19) can be compared with a
subordinate clause like (20a).
(20)
a. Diga quemi ele é ti.
Say-IMPER. who he is
Tell me who he is.
b. *Diga ele é quem.
Say-IMPER he is who
c. *Seja lá for quem, aceite.
Be-PRES.SUBJ. lá be-FUT.SUBJ who, accept-IMPER.
In (20a), “quem ele é” is a subordinate clause. It has the feature
[+interrogative] in Forceº and requires wh-raising (20b). In (19), although
there is also a requirement for wh-raising (20c), Force is [+conditional].
In order to illustrate this assumption, we may take a look in the example
(19b). In this case, the root clause seja and the embedded one lá quem for
together may be paraphrased by conditional clauses with se (‘if ’) (21),
a conjunction which is usually described in ForceP. Of course, lá quem
for does not have se, but it also bears conditional force because seja and
for are in the subjunctive, which is a Mood dedicated to hypothetical
situations.
(21) Se for a Maria/o João/uma empregada/um palhaço,
cumprimente.
‘If Mary/John/a servant/a clown appears, greet her/him!’
In sum, we suggest that lá is merged in Spec,ForceP, higher than
wh-items. The latter raises from IP/VP to Spec,FocusP. Therefore, in
these structures, wh-items, constituted by a diverse range of categories
such as APs, AdvPs, PPs, and so forth, are moved to Spec,FocusP.
Also, regarding lá, instead of being in the Spec of each one of these
projections, it is in fact the Spec of a sole category, as follows:
29
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
FIGURE 5: Lá in Spec,ForceP [+conditional]
(19) b.
Seja lá que pessoa/qual livro for, aceite.
30
Bruna Karla Pereira e Jânia Marins Ramos
Final remarks
In this paper, we worked on a formal analysis of BP sentences with
lá. Following the cartographic approach, this research made it possible
to recognize and to identify functional projections in the left periphery.
Accordingly, the properties of lá so far considered as an “emphatic”
marker were “syntacticized” (CINQUE; RIZZI, 2008: 52) in a way that
this adverb was classified as specifier of FocusP and ForceP.
In Spec,FocusP, lá belongs to rhetorical questions and imperatives.
In this case, lá is usually high pitch accented and is prevented from
occurring with focalized items, which indicates a possible dispute for
the same position. However, these structures are clearly different. In
rhetorical questions, Forceº is [+interrogative] and there is no V-raising
to Forceº. In imperatives, V raises to Forceº which is [+imperative].
Moreover, in contrast to what is observed in EP, in BP there is a striking
distinction between lá as a rhetorical question marker and lá as a negation
marker. The latter can be neither pre-verbal nor omitted, besides being
restricted in many other ways.
In Spec,ForceP, lá belongs to directives, emphatic assertions
and predicatives. In directives, lá vai looks like voilà and there you go, in
that while lá may be replaced by aí, lá vai may be replaced by a verb
in the imperative. In emphatic assertions, lá precedes focus, topic and
positive polarity items. That is why it is situated in a high position in
the hierarchical structure. In predicatives, we compared the complex
structure lá X for with English wh-items. From this comparison, we
concluded that, even though X may be categorically diverse (D, A, Adv,
N, Q, etc.), it moves to Spec,FocusP. As lá precedes these items, we
hypothesized that lá is merged in Spec,ForceP just above them and that
Force would be [+conditional] for two reasons mainly: on the one hand,
seja lá X for is paraphrased by a subordinate clause with se (‘if ’); on the
other hand, seja and for in the subjunctive, like conditionals, represent
irrealis Mood.
31
Brazilian Portuguese LÁ In The CP-Domain: A Cartographic Analysis
In sum, this research has shown that it is possible to provide different
realizations of lá with a relatively unified analysis, as this adverb seems to
match properties of left periphery projections.
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33
MANIFESTAÇÕES DO DEL (DÉFICIT/DISTÚRBIO
ESPECÍFICO DA LINGUAGEM) NO DOMÍNIO DA
SINTAXE À LUZ DE UM MODELO INTEGRADO
DE COMPUTAÇÃO ON-LINE 1
Letícia Maria Sicuro CORRÊA
Pontifícia Universidade Catórica (PUC) Rio/LAPAL
Marina R. A. AUGUSTO
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)/LAPAL
RESUMO
Este artigo focaliza as manifestações do DEL (Déficit/Distúrbio Específico da Linguagem)
no domínio da sintaxe à luz de um modelo integrado de computação on-line (Autor 2007). A
computação de estruturas de alto custo, como interrogativas, relativas e passivas, é caracterizada
do ponto de vista da compreensão. Possíveis fontes de dificuldade no processamento dessas
estruturas em casos de DEL são apresentadas. Identificam-se as “pistas” de interface que
promovem a implementação dos procedimentos de análise e considera-se seu possível papel na
remediação das dificuldades na compreensão dessas estruturas.
ABSTRACT
This paper focuses on syntactic SLI (Specific Language Impairment) from the point of view
of an integrated model of on-line computation (Autor 2007). The computation of high
costly structures, such as interrogative, relative and passive sentences, is characterized in the
context of comprehension. Possible explanations for processing difficulties in SLI children
are presented. Interface “cues” triggering parsing procedures are singled out and their possible
role in remediation procedures is considered.
1
A pesquisa a que este trabalho remete vem sendo conduzida no âmbito dos projetos CNPq
(308874/2011) e FAPERJ (CNE) E-26/103.046/2011 da primeira autora, que contam com a
colaboração da segunda autora.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 35-62, jul./dez. 2013
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
PALAVRAS-CHAVE
Computação sintática. Custo de processamento. DEL (Déficit/Distúrbio Específico da
Linguagem). Movimento sintático.
KEYWORDS
Processing cost. SLI (Specific Language Impairment). Syntactic computation. Syntactic
movement.
Introdução
Sabe-se que a aquisição da linguagem é um processo natural, ou
seja, que ocorre de forma espontânea e sem esforço, desde que não
haja impedimentos de ordem neurológica ou isolamento social que o
impeça, resistindo assim a várias condições ambientais adversas (Bishop
& Mogford, 1988). No entanto, um percentual não irrisório de crianças
em idade pré-escolar (cerca de 7%) tem sido identificado com um
comprometimento linguístico sugestivo do DEL2 (Tomblin et al, 1997;
Leonard, 1998). Essas crianças não apresentam comprometimentos
neurológicos evidentes, déficit auditivo, como o decorrente de otite de
repetição ou surdez congênita, ao mesmo tempo em que sua cognição
não verbal encontra-se na faixa estabelecida como de normalidade.
Não há, portanto etiologia conhecida para as manifestações de
comprometimento linguístico, tendo-se, dessa forma, um diagnóstico de
exclusão. Há, não obstante, evidências que apontam para determinantes
2
A sigla DEL entendida como Déficit ou Distúrbio Específico da Linguagem é usada como equivalente
a SLI (Specific Language Impairment), termo introduzido por Fey & Leonard (1983), e que, na
literatura psicolinguística em geral passou a substituir as designações afasia ou disfasia congênita
ou de desenvolvimento, de modo a evitar conotações de ordem neurológica proveniente do efeito
de lesões cerebrais adquiridas (Leonard, 1998). Em português, o termo Déficit Específico da
Linguagem vem sendo utilizado pela Associação Brasileira de Pediatria para caracterizar um conjunto
de manifestações que evidenciam comprometimentos linguísticos de diferentes graus. O CID-10
apresenta Transtornos Específicos da Fala e da Linguagem (F80), os quais incluem manifestações
compartilhadas com o que é designado como DEL. No âmbito dos estudos fonoaudiológicos,
o termo distúrbio é preferido.
36
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
genéticos nas manifestações do DEL (The SLI Consortium, 2002;
Bishop, 2006), o que pode ser indicativo de um comprometimento nas
bases biológicas do desenvolvimento linguístico.
O diagnóstico de exclusão é o que define a especificidade do déficit
de linguagem, independentemente da natureza específica ou não dos
recursos e processos que venham a ser identificados como pertinentes
à implementação do uso da língua, em nível cerebral (Bishop, 2006;
Ullman & Pierpont, 2005).
Um déficit específico do domínio da língua, mantendo-se outros
domínios da cognição preservados, é compatível com pressupostos da
teoria linguística gerativista (Chomsky, 1965; 1986; 1995), e pode explicar
o crescente interesse de linguistas e psicolinguistas de formação gerativista
no DEL (Clashen, 1989; Hamann, 2000; Marinis & van der Lely, 2007;
Friedmann & Novogrodsky, 2004; Tuller et al., 2011; Jakubowicz et al.
1998; Jakubowicz, 2003). À luz desse arcabouço teórico, o DEL vem
sendo investigado no que concerne, particularmente, à possibilidade de
haver déficits seletivos e, mais recentemente, uma tipologia foi proposta
em que se consideram os vários níveis de análise da língua como possíveis
loci dessa síndrome: DEL-sintático, DEL-lexical, DEL-fonológico e
DEL-pragmático, cujas manifestações podem ser concomitantes ou não
(Friedmann & Novogrodsky, 2008).3
O presente artigo se detém no que seriam manifestações características
do DEL no domínio da sintaxe, focalizando especificamente, dificuldades
na compreensão e na produção das chamadas estruturas de alto custo
computacional: passivas, interrogativas QU e QU+N, e relativas (em
particular, as relativas e interrogativas de objeto).
O objetivo deste artigo é caracterizar a computação sintática
As evidências empíricas que sustentam a proposta de déficits seletivos por domínio da língua
são ainda limitadas. Independentemente de haver um número expressivo de crianças cujo déficit
se restrinja a um dado subdomínio da língua, as manifestações do DEL restritas ao domínio
da sintaxe parecem ser as mais resistentes, permanecendo, na adolescência, quando outras
manifestações podem ter sido superadas (Levy & Friedmann, 2009; Befi-Lopes & Rodrigues,
2005).
3
37
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
de estruturas tidas como de alto custo computacional, as quais são
particularmente afetadas em casos de DEL. Explicita-se, dessa
forma, o modo como a computação sintática dessas estruturas
pode ocorrer em tempo real, tomando-se como referência uma
derivação sintática minimalista. Remete-se à proposta apresentada em
Autor(2006; 2007), qual seja, caracterizar um modelo de computação
on-line em que se demonstre a possibilidade de articulação entre uma
teoria linguística nos moldes do minimalismo e a caracterização de
modelos de processamento. No presente contexto, essa caracterização
possibilita que se identifiquem as “pistas” de interface que promovem
a implementação imediata (automática) dos procedimentos de análise
dessas estruturas, os quais, conduzidos de forma eficiente, viabilizam a
compreensão. Partindo-se do pressuposto de que crianças com DEL têm
dificuldade no reconhecimento dessas pistas, ou na condução eficiente
dos procedimentos que estas possam desencadear, argumenta-se que
salientar-se o papel dessa informação de interface, em procedimentos
de intervenção, pode contribuir para o desenvolvimento de estratégias
de análise, por parte das crianças, que contribuam para a remediação das
dificuldades na compreensão de estruturas de alto custo.
Este artigo está organizado da seguinte forma: na seção 1, apresentase uma concepção de computação on-line que tem como referência uma
derivação linguística minimalista, adaptada de forma a inserir-se nos
processos de produção e de compreensão de enunciados linguísticos.
Na seção 2, identificam-se possíveis fontes de manifestações do DEL,
levando-se em conta o modelo de computação on-line acima referido
e uma teoria procedimental de aquisição da linguagem (Autor 2009).
A seção 3 focaliza especificamente a computação em tempo real de
estruturas de alto custo, quais sejam, passivas, interrogativas QU e
QU+N de objeto e relativas de objeto, na compreensão. Ressalta-se a
importância da atenção às “pistas” provenientes das interfaces da língua
com os sistemas de desempenho no desenvolvimento de estratégias que
possam compensar dificuldades no processamento sintático. A última
38
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
seção apresenta as considerações finais e os direcionamentos da pesquisa
a partir das presentes conclusões.
1 Computação on-line na produção e compreensão de
enunciados linguísticos
Computação on-line diz respeito ao processamento sintático
conduzido na produção e na compreensão de enunciados linguísticos.
Partindo-se de um esquema básico de produção de sentenças (ver Fig.
1), a computação sintática na produção da linguagem corresponde,
grosso modo, ao que é tradicionalmente denominado codificação gramatical
em modelos psicolinguísticos, o que inclui a recuperação de elementos
do léxico a partir de uma “mensagem”, ou representação de natureza
semântica, e o posicionamento destes em estruturas sintáticas que
servem de base para a codificação morfofonológica que antecede o
planejamento articulatório (Levelt, 1989).
FIGURA 1: Esquema básico de produção de sentenças
39
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
No caso da compreensão, pode-se conceber uma inversão do
esquema acima, como na Fig. 2. Nesse caso, a partir do reconhecimento
lexical dá-se início ao posicionamento dos elementos reconhecidos
em sequência em uma estrutura hierárquica (parsing), dando origem a
uma representação sintática que admite uma interpretação semântica
compartilhada pelos falantes da língua, a qual é integrada às bases de
conhecimento do ouvinte.
FIGURA 2: Esquema básico de compreensão de sentenças
A concepção de computação on-line aqui assumida pressupõe que
toda a informação necessária para o parsing e a interpretação semântica
de um enunciado linguístico se faz visível nas interfaces da língua com
os sistemas que atuam no processamento linguístico. Esse conceito de
interface advém de uma concepção minimalista de língua, segundo a qual
uma derivação sintática resulta em dois níveis de representação – Forma
Fonética (PF – do inglês Phonetic Form), que faz interface com os sistemas
perceptuais-motores, e Forma Lógica (LF, do inglês Logical Form), que
40
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
faz interface com os chamados sistemas de pensamento, ou sistemas
conceptuais-intencionais. A informação codificada na PF, do ponto de
vista de um modelo de produção da fala, corresponde ao resultado de
um planejamento articulatório a ser executado na fala. Este, por sua
vez, toma por base o resultado da computação sintática conduzida em
tempo real, no qual elementos do léxico se apresentam linearmente em
correspondência com sua posição hierárquica. A informação codificada
em LF corresponderia, grosso modo, à representação proposicional da
mensagem na qual se inclui informação que possibilita o estabelecimento
da referência a partir do mapeamento de DPs e TPs a entidades
e eventos. Do ponto de vista da compreensão, a informação em PF
seria acessível ao processamento do sinal acústico da fala, enquanto a
informação em LF corresponderia, em um modelo de compreensão,
à interpretação semântica decorrente do parsing. O reconhecimento
lexical a partir do processamento do sinal acústico da fala possibilita
o acesso ao léxico mental, a partir do qual informação relevante para
o processamento sintático e interpretação semântica é recuperada. A
informação a ser usada pelo parser (processador sintático) é codificada
no lema, em modelos psicolinguísticos (Levelt, 1989), o que corresponde,
grosso modo, ao que a teoria linguística caracteriza como traços formais
de elementos do léxico.4
Assim sendo, pode-se descrever a computação sintática conduzida em
tempo real na produção de enunciados como decorrente da recuperação
de elementos do léxico mental e da ativação de seus traços formais. Do
ponto de vista da teoria linguística, um sistema computacional universal
opera exclusivamente sobre a informação codificada nos traços formais
dos elementos do léxico. São estes que disparam a atuação de operações
responsáveis pela concatenação de elementos do léxico (disponíveis em
um arranjo inicial) - Merge, pelo pareamento de elementos e valoração
4
A informação sintática contida nos elementos do léxico a ser utilizada no processamento
sintático tanto na produção quanto na compreensão de enunciados linguísticos será, a partir de
agora, referida como traços formais.
41
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
de traços compartilhados - Agree, assim como pelo deslocamento de
elementos já inseridos no marcador frasal – Move. Do ponto de vista
de um modelo psicolingúistico de produção, o acesso aos lemas (ou
conjunto de traços formais) é motivado por uma intenção de fala e
decorrente da conceptualização de uma mensagem por parte do falante.
Na compreensão, a recuperação dos lemas (dos conjuntos de traços
formais dos elementos do léxico que se apresentam em sequência) seria
feita a partir do reconhecimento lexical, que pressupõe a segmentação
do sinal acústico da fala. Os traços formais se associam a categorias
lexicais e funcionais do léxico. Os traços formais associados a categorias
funcionais definem o tipo de referência a ser feito a entidades (em D –
determinantes) e a eventos (T – tempo e Asp – aspecto) e o tipo de força
ilocucionária (C – complementizador) do enunciado.
Do ponto de vista do modelo de computação on-line de Autor(2007;
2011a), explora-se a constatação de que categorias funcionais codificam
informação referente a intencionalidade. Na emissão de um enunciado, o
falante seleciona valores dos traços formais das categorias funcionais
de acordo com a maneira como pretende inserir o enunciado a ser
produzido em um dado contexto discursivo (considerando a situação,
o destinatário, as informações compartilhadas etc). Na compreensão,
esses valores podem ser recuperados a partir do reconhecimento lexical,
do parsing e da interpretação semântica do enunciado. Assim sendo, uma
vez que os traços formais de categorias funcionais codificam informação
pertinente à referência e à força ilocucionária do enunciado, propõese, no MINC, que o acesso a esses elementos deflagra a construção de
esqueletos estruturais básicos de forma top-down.
Por outro lado, as categorias lexicais (N - nome, V – verbo, Adj –
adjetivo, P – preposição), diretamente relacionadas à conceptualização
da mensagem, dada sua natureza predicadora ou argumental, geram
estruturas derivadas bottom-up a partir das exigências sintático/semânticas
de subcategorização e atribuição de papéis temáticos dos núcleos aos
42
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
elementos com que se combinam. Criam-se, assim, espaços derivacionais
paralelos nos quais se encontram esqueletos sintáticos, derivados topdown, e estruturas geradas bottom-up que a eles se acoplam para satisfazer
os requisitos sintáticos dos núcleos funcionais. Desse modo, NPs
deverão se acoplar a Ds em DPs gerados top-down. VPs/vPs, por sua
vez, seriam inseridos no esqueleto estrutural gerado de forma top-down
a partir de C/T. Na computação de uma sentença, os DPs plenamente
constituídos seriam associados a VP, vP e TP, dados os requerimentos
temáticos e sintáticos destes últimos. O MINC adota, portanto, uma
direcionalidade mista para a geração de marcadores frasais.5
FIGURA 3: Geração top-down de categorias funcionais e geração
bottom-up a partir de categorias lexicais
Em se tratando de computação on-line, torna-se imprescindível
distinguir os diferentes tipos de movimento sintático gerados pela
aplicação da operação Move, em uma derivação linguística (atemporal)
Uma alternativa seria assumir que, para um falante adulto, o processamento ocorra com base
em informação de padrões oracionais reconhecidos na língua a partir dos predicadores verbais.
Assim, seria possível considerar a presença de templates associados aos Vs no léxico, os quais
seriam ativados durante o parsing ou a formulação de sentenças, o que pode ser implementado via
a adoção de um formalismo como o da Tree Adjoining Grammar (Joshi, Levy & Takahashi, 1975;
Joshi, 1985), de base fortemente lexicalista.
5
43
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
(cf. Autor 2005; Autor 2007). O movimento de constituintes que
caracteriza demandas de discurso específicas impõe um custo
computacional mensurável, se comparado a movimentos sintáticos
que, na teoria linguística, caracterizam o posicionamento de elementos
para se obter a ordem canônica de determinada língua, uma vez que se
assuma uma ordem básica universal (Kayne, 1994). Assim, associa-se a
esse último tipo de movimento uma automaticidade que seria adquirida a
partir da fixação de parâmetros de ordem da língua, o que parece ocorrer
desde muito cedo no processo de aquisição (Wexler, 1998; Nespor,
Guasti & Christophe, 1996). A fim de diferenciar os movimentos, tem-se
considerado a distinção entre a formação de cópias simultâneas durante
a derivação sintática, as quais não acarretariam custo computacional, em
oposição à formação de cópias sequenciais, as quais implicariam custo
computacional considerável (Autor 2007).
Uma vez que a computação sintática pode ser tida como
essencialmente semelhante na produção e na compreensão de
enunciados, observa-se que o posicionamento de itens lexicais numa
estrutura hierárquica (a construção de objetos sintáticos) promove a
implementação de uma operação tal como Agree (concordância sintática).
Na produção, essa operação pode ter consequências para a codificação
morfofonológica (uma vez que afixos flexionais sejam recuperados do
léxico a partir do resultado desta operação). Na compreensão, por outro
lado, o reconhecimento desses afixos e seu pareamento em um dado
domínio sintático, por exemplo, o pareamento do afixo de número do
determinante com o afixo de número do nome, ou o pareamento da
pessoa do sujeito com o afixo de pessoa do verbo em línguas como o
português, fornecem as bases sintáticas para sua interpretação semântica.
Nesse sentido, é possível identificar alguns pontos de complexidade
para o processamento de dadas estruturas. Por exemplo, o número
de elementos funcionais a serem selecionados para a computação de
um enunciado seria uma medida de complexidade computacional
(Jakubovicz, 2003; 2011). A presença de valores marcados em oposição
44
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
aos default/não marcados pode implicar a presença de categorias
funcionais adicionais (GenP, para gênero marcado, AspP, para imperfeito
etc). Essas especificidades teriam maior custo não só de um ponto
de vista cognitivo, mas também demandariam uma computação mais
custosa e uma expressão morfofonológica mais específica (Autor 2011).
Estruturas vinculadas a demandas discursivas específicas, que podem
impor alterações na ordem canônica da língua, também podem ser vistas
como altamente custosas, de um ponto de vista computacional.
O MINC, aqui caracterizado em linhas gerais, é tomado como base
para se fazerem previsões em relação ao que poderia estar comprometido
no DEL.
2 Possíveis fontes de manifestações do DEL
A concepção de língua assumida pelo MINC pressupõe um estado
inicial no qual um sistema computacional universal, entendido como
Faculdade da Linguagem em sentido estrito, estaria inserido em uma
Faculdade da Linguagem em sentido amplo (Hauser, Chomsky &
Fitch, 2002), ou seja, que possibilita a constituição de um léxico sobre
o qual tal sistema computacional poderá atuar. No estado inicial da
aquisição da linguagem, pode-se conceber um léxico potencial passível
de abrigar qualquer traço de ordem semântica, fonológica e formal
que possa vir a constituir léxicos de línguas particulares, em função da
experiência linguística. Ou seja, tudo o que é cognoscível, articulável e
gramaticalizável é, potencialmente, um traços semântico, fonológico ou
forma de elementos do léxico de línguas naturais. A constituição de um
léxico consequentemente pressupõe interação entre o domínio da língua
e os demais domínios da cognição. Essa interação é requerida para que
as expressões geradas pelo sistema computacional sejam passíveis de
articulação/percepção, interpretação semântica e referência, levando em
conta o aparato cognitivo humano.
45
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
Em Corrêa (2009), a proposta de uma teoria procedimental da
aquisição da linguagem foi apresentada, a qual parte da hipótese do
boostrapping fonológico, adicionando a questão, ainda não explicitamente
tratada, da inicialização do parser, entendida, em termos minimalistas,
como inicialização do sistema computacional universal. A hipótese do
bootstrapping fonológico propõe que a entrada da criança na sintaxe da
língua se faz via segmentação do sinal acústico da fala em unidades
prosódicas e via a identificação de padrões recorrentes, os quais são
submetidos a uma análise probabilística e distribucional. Uma série de
pistas prosódicas e distribucionais serve de base para a segmentação
de unidades sintáticas (orações, sintagmas), assim como de palavras/
morfemas. No entanto, essa hipótese não deixa suficientemente
explícito de que modo a criança seria direcionada para estas pistas e
de que modo estas viriam a possibilitar a representação de unidades
linguísticas para a análise sintática. Corrêa (2009) propõe que a ideia
de aprendizagem guiada por fatores inatos, presente em estudos que
exploram as habilidades perceptuais e analíticas de crianças durante o
primeiro ano de vida, no processamento do sinal da fala (Jucszky. 1997;
Jusczyk & Bertoncini, 1988), pode ser entendida à luz dos pressupostos
minimalistas como aprendizagem vinculada a uma faculdade de
linguagem em sentido amplo. Nesse sentido, a identificação de padrões
recorrentes, passíveis de serem representados em termos de elementos
de classes fechadas (em oposição a elementos de classes abertas) daria
origem à constituição de categorias funcionais e lexicais. Observa-se que
tudo o que é gramaticalmente relevante se faz visível na interface fônica
em termos de padrões recorrentes correspondentes a elementos ou
traços de categorias funcionais, assim como padrões de ordem, os quais
deverão vir a ser interpretados semanticamente. Distinções pertinentes a
classes fechadas e abertas, assim como padrões de ordem, dariam origem
aos primeiros traços formais do léxico em constituição na aquisição
de uma língua. A presença dos mesmos seria condição suficiente para
a inicialização do parser, possibilitando o início do processamento
46
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
sintático do input linguístico. A partir de então, a faculdade da linguagem
em sentido estrito passaria a viabilizar a combinação de elementos do
léxico de forma hierárquica e assimétrica, ou seja, um dos elementos
combinados (merged) – o núcleo –, tem seus traços projetados para um
nó sintático que domina ambos. Essa análise sintática seria instrumental
para a progressiva especificação de traços formais de categorias
funcionais, cujas propriedades são identificadas uma vez que distinções
entre padrões recorrentes na interface fônica são percebidas como
gramaticalmente relevantes, o que induz o estabelecimento de contrastes
de natureza semântica/formal, via o pressuposto de que enunciados
linguísticos fazem referência a entidades e eventos.
Diante dessa visão do processo de aquisição de uma língua e da
computação on-line, podem-se considerar as seguintes possíveis fontes
para manifestações do DEL (Autor 2011): dificuldades na inicialização do
sistema computacional linguístico, com base na distinção classe aberta/
fechada, acarretando um desenvolvimento defasado; na atribuição de
relevância gramatical a padrões recorrentes na interface fônica, o que
acarretaria a representação de categorias funcionais subespecificadas;
na progressiva especificação desses traços, mediante processamento na
interface semântica; no acesso aos mesmos para a computação on-line;
nas demandas específicas desta última, nos processos pós-sintáticos
pertinentes à codificação morfofonológica e sua eventual realização em
termos fonético-articulatórios. Quais destas seriam mais características
dessa síndrome, exclusivas da mesma e/ou compartilhadas com outras
condições é uma questão empírica.
No que diz respeito às demandas específicas da computação online, a compreensão de estruturas de alto custo computacional será aqui
enfocada. As estruturas geradas via movimento por demanda discursiva
compõem um grupo de sentenças que tem sido comumente identificado
como comprometido no quadro do DEL: as passivas, as relativas e as
interrogativas-QU.
47
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
Na próxima seção, apresentamos a computação on-line requerida
na compreensão dessas estruturas, identificando pontos de dificuldade,
como a necessidade de manutenção de elementos na memória de trabalho
por meio de estratégias de ensaio6, deflagradas a partir do reconhecimento
de “pistas” específicas. No caso de relativas e interrogativas, considerase, ainda, a possível interferência da informação de traços semelhantes
de outros elementos durante a computação. No caso das passivas,
informação de ordem lexical e sintática, como a proveniente de morfemas
de particípio ou mesmo de um PP-agente é vista como relevante para o
desencadeamento do uso da operação computacional em questão.
Vale salientar que a dificuldade com o processamento de estruturas
de alto custo computacional pode caracterizar um déficit linguístico
primário (ou seja, DEL), mas também pode refletir comprometimentos
linguísticos secundários, tais como os decorrentes de dificuldades de
atenção a pistas específicas para a solução de uma dada tarefa-problema,
como uma tarefa linguística. Sendo assim, custo computacional na
implementação do parsing desse tipo de estrutura deve ser tomado como
indicativo de comprometimento na condução de determinadas tarefas
linguísticas, cuja natureza deverá ser objeto de investigação.
3 A computação on-line de estruturas de alto custo na
compreensão
O movimento gerado por demandas discursivas, o qual requer cópias
sequenciais para sua implementação on-line, com base no MINC, permite
prever que as estruturas de maior custo trariam dificuldades para o
desenvolvimento linguístico típico e desviante. Cada uma das estruturas
de alto custo, tipicamente comprometidas no DEL, será caracterizada a
seguir.
Entende-se aqui por estratégias de ensaio, procedimentos destinados à manutenção de informação
“literal” (forma fônica e traços formais, minimamente) no que, no modelo de memória de
trabalho de Baddeley (Baddeley & Hitch, 1974; Baddeley, 1997), é caracterizado em termos
de um loop fonológico, no qual a informação pode ser repassada de forma iterativa até que seja
utilizada e sua manutenção liberada.
6
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Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
3.1 Interrogativas
A Figura 4 ilustra os passos da computação sintática conduzida
durante o parsing de uma estrutura interrogativa do tipo Qu+N, tal como
(1):
(1) Que menino a atriz viu?
O sintagma Que menino constitui a primeira parte do input a ser
processado: um DP é gerado, o qual, por ser interrogativo, permite a
geração, de forma top-down, de um CP, marcado como interrogativo, e de
um TP, prevendo-se uma sentença com tempo gramatical especificado.
O procedimento default seria manter o elemento QU na memória de
trabalho de modo a vir a preencher a primeira posição sintática disponível
(a de sujeito, de objeto direto, indireto, etc), a qual é caracterizada no
modelo como uma cópia fonologicamente não especificada do elemento
movido (no caso de uma interrogativa de sujeito, essa posição pode ser
imediatamente identificada, mediante o reconhecimento do verbo; no
caso de uma interrogativa de objeto, a presença de um DP (sujeito)
seguido de um verbo é indicativa de que deve haver uma posição sintática
vazia no VP). O elemento QU deve se manter ativo até que uma posição
vazia seja identificada, na qual seu papel temático poderá ser atribuído.
Esse modo de funcionamento do parser pode explicar a assimetria
entre estruturas de movimento de sujeito e de objeto, amplamente
atestada na literatura psicolinguística (cf. revisão ampla em Miranda,
2009).
Nos termos do modelo, manter esse elemento ativo implica que
cópias sequenciais serão geradas enquanto a estrutura é computada. A
computação dessa estrutura envolve a geração de um DP sujeito por
meio de cópias simultâneas. Há, portanto, a presença de elementos
com traços semelhantes gerados e mantidos em espaços derivacionais
paralelos, o que torna o processo custoso.
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Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
FIGURA 4: Sentença interrogativa QU+N de objeto
No caso de estruturas QU+N, além da semelhança de traços, há
estruturas semelhantes, quando o sujeito da sentença se apresenta como
um DP ramificado, adicionando custo ao processamento (cf. Friedman,
Belletti & Rizzi, 2009).7 Do ponto de vista do MINC, a geração de
elementos semelhantes, em termos de estrutura e traços formais pode
acarretar interferência de traços, aumentando a necessidade de os
elementos envolvidos serem mantidos integralmente na memória de
O maior custo atribuído à presença de um elemento interveniente encontra, no MINC, uma
caracterização derivacional do Princípio Estendido da Minimalidade Relativizada, proposto por
Friedmann, Belletti & Rizzi (2009), em termos representacionais. O Princípio atribui às crianças,
em fase de aquisição da língua, uma dificuldade em considerar a associação de um elemento
movido à determinada posição sintática, sempre que um elemento interveniente, geralmente
um sujeito do tipo DP pleno, esteja presente na representação sintática, ou seja, para as crianças,
elementos de mesmo tipo estrutural se configurariam como potenciais candidatos para o
estabelecimento de relações locais, independentemente de todos os traços relevantes estarem
compartilhados. No processamento on-line, tal como caracterizado no MINC, essa dificuldade
encontra uma explicação procedimental. O custo computacional é atribuído ao fato de haver
dois elementos com traços semelhantes em espaços derivacionais paralelos, ou seja, computados
de forma independente e mantidos na memória de trabalho, para que ocupem as respectivas
posições hierárquicas no marcador frasal principal (o esqueleto funcional gerado a partir de CP/
TP), quais sejam, o DP a ser identificado como sujeito, e o DP-QU que deverá preencher um
gap na posição de objeto.
7
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Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
trabalho possivelmente, por meio de estratégias de ensaio. Não é evidente,
no entanto, se o custo total do processamento dessa estrutura pode ser
atribuído apenas à necessidade de recuperação do sintagma bifurcado QU
+ N na posição de objeto. Nesse caso, a operação semântica implicada
na interpretação de um elemento interrogativo desse tipo pode acarretar
demandas cognitivas adicionais, uma vez que haveria uma operação de
restrição de conjunto sobre o qual a variável operaria.
Para a compreensão de uma interrogativa QU, é necessário, portanto,
assumir-se um traço +/- interrogativo, cujo valor (+), na compreensão
tem de ser identificado. Diante da distinção entre cópias sequenciais e
simultâneas no MINC, pode-se dizer que o reconhecimento do valor
desse traço no elemento que se apresenta na periferia esquerda da
sentença cria a expectativa pela presença de uma cópia, o que acarreta a
manutenção do elemento QU ativo na memória de trabalho.
3.2 Relativas
No caso de estruturas relativas, pode-se verificar a maior carga de
processamento associada a essa estrutura pela exemplificação, a seguir,
da computação sintática requerida na compreensão de uma relativa de
objeto ramificada à direita:
(2)
O elefante abraçou o urso que o leão chamou.
O parsing da sentença matriz seria iniciado pelo DP, possibilitando
a identificação de uma entidade, fazendo prever uma proposição
declarativa, o que levaria à geração de CP, TP e do próprio DP, em
espaços derivacionais paralelos. A presença do verbo permitiria criaremse cópias simultâneas do DP a serem associadas à posição de Spec,
TP, como sujeito sintático, e Spec, vP, como sujeito lógico/agente. A
necessidade de um objeto lógico também seria prevista. A presença do
DP “o urso” no input atenderia a essa exigência do verbo. O fechamento
desse constituinte seria, de todo modo, adiado até a inspeção do elemento
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Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
seguinte na sequência. Em línguas como o português, a identificação
de um adjetivo, de um PP ou de um pronome relativo sinalizaria para
o parser a necessidade de manter ativado na memória o DP recémanalisado para que a estrutura a ser processada seja a ele integrada (cf.
Autor 1986; 1995). No caso da relativa, o que sinaliza a necessidade de
se gerar um CP/TP top-down ao qual se acopla a estrutura projetada
pelo verbo da relativa. O DP mantido ativo na memória pode então
ser automaticamente recuperado para o preenchimento de uma posição
vazia (de sujeito, objeto, etc) nessa estrutura. A Figura 5 apresenta a
estrutura da relativa.
Note-se que a primeira expectativa seria considerar qu-urso como o
sujeito da sentença relativa, mas a presença de “o leão” no input o impede,
forçando a geração de um novo DP e a manutenção da cópia de qu-urso
em uma “caixa de memória” para identificação de seu papel sintático e
semântico no interior da estrutura relativa, o que implica um custo de
processamento mais alto.
O DP (projetado em espaço derivacional paralelo), dada a presença
do verbo, é identificado como o sujeito sintático, com acoplamento de
cópias simultâneas em Spec, TP e em Spec, vP. A expectativa por um
objeto permite que o DP qu-urso mantido ativo na memória preencha
essa posição, reconhecida como uma lacuna.
FIGURA 5: Geração de uma sentença relativa de objeto ramificada à
direita
52
Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
Deve-se considerar que a geração de um DP interveniente entre
o núcleo da relativa e sua posição de origem impõe uma demanda
adicional. Esse elemento precisa ser gerado, ao mesmo tempo em que
é necessário manter-se o DP qu-urso em uma ”caixa de memória” (por
meio de estratégias de ensaio) a ser reativado assim que a lacuna em posição
de objeto seja detectada.
3.3 Passivas
No que diz respeito à passiva, é importante apontar que a
identificação de uma forma participial do verbo é relevante para que
esta seja reconhecida como tal. A impossibilidade de atribuição de caso
ao objeto semântico da forma participial é o que, do ponto de vista
da produção, promove o movimento deste elemento para a posição de
sujeito sintático, a ser reconhecido pelo parser. Outra característica da
passiva é, opcionalmente, codificar o agente na forma de um PP.
(3)
O gato foi carregado pela vaca.
Do ponto de vista da computação on-line de uma estrutura passiva, é
possível prever três procedimentos distintos de análise:
(i)
processamento de um DP seguido da análise da sequência
AUX+Forma participial do verbo, reconhecida em uma janela
consideravelmente ampla, no processamento do enunciado da
esquerda para a direita; análise do DP em questão como sujeito,
em concordância com o auxiliar; manutenção do mesmo na
memória de trabalho até que a relação de dependência de
longa distância entre auxiliar e particípio seja estabelecida, o
que acarreta a atribuição do papel temático tema ao sujeito;
53
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
(ii)
processamento da esquerda para a direita, palavra por palavra,
com a identificação de um DP e da forma verbal foi, em
concordância com este; análise do DP como sujeito sintático
de foi, tomado como verbo principal, com a concatenação
de cópias simultâneas associadas a [Spec, TP] e a [Spec, vP];
atribuição do papel temático agente a este DP.
Esse procedimento irá requerer reanálise quando do reconhecimento
da forma participial do verbo – informação necessária à atribuição do
papel de tema ao sujeito;
(iii)
uso de uma estratégia de atribuição imediata da função de
sujeito e do papel temático agente a um DP em posição inicial.
Este procedimento irá acarretar interpretação equivocada das
relações temáticas, caso a informação fornecida pela forma participial
do verbo não seja tomada como evidência de relação de dependência
desta com o auxiliar de modo a inibir a interpretação semântica derivada
do uso da estratégia.
A condução do procedimento em (i) necessariamente acarreta
alto custo, dado que uma sequência semi-analisada tem de ser mantida
por algum tempo na memória de trabalho até que relações semânticas
sejam estabelecidas. A condução do procedimento em (ii) traz o custo
decorrente da necessidade de reanálise somado ao da análise em (i) a ser
requerida. A possibilidade do uso da estratégia em (iii) acarreta erro e
custo adicional, uma vez que teria de ser inibida, caso fosse privilegiada
como primeira opção de análise.
Observa-se, portanto, que o processamento da passiva é custoso,
independentemente do procedimento adotado. O DP sujeito tem de ser
reativado em posição de objeto para que seu papel temático seja atribuído
mediante a informação veiculada pelo AUX+Part. Adicionalmente, o
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Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
agente deve ser identificado a partir do processamento do PP, ainda
que previsto em função da estrutura argumental do verbo (o que, na
proposta da análise estrutural de Boeckx (1998), requer que se assuma
um pronome nulo).
FIGURA 6: Estrutura passiva
3.4 Custo de processamento
A caracterização da computação on-line das estruturas aqui
apresentadas, no parsing, permite vincular seu custo diferenciado à
necessidade do uso do recurso de cópias sequenciais. Atenção a
determinada informação das interfaces é crucial para que a estrutura
seja computada de forma adequada: a presença de um elemento-QU,
seja em uma interrogativa ou em uma relativa, sinaliza a necessidade
de se identificar uma cópia fonologicamente vazia, o que leva à criação
das cópias sequenciais; a presença de uma forma participial, associada
a um verbo auxiliar, sinaliza voz passiva, o que implica haver uma
alteração na posição canônica do objeto do verbo (expressa no modelo
em termos de uma cópia). Dificuldades na implementação da análise
ou o não reconhecimento das “pistas” que sinalizam o tipo de análise a
55
Manifestações do DEL (Deficit/Distúrbio Específico da Linguagem) no Domínio da Sintaze à
Luz de um Modelo Integrado de Computação On-Line
ser conduzida podem acarretar o uso de estratégias de esquiva e/ou de
menor custo. Nesse caso, as relações semânticas entre os participantes
dos eventos codificados linguisticamente por meio desse tipo de
estruturas são estabelecidas com base em informação sintática mínima
(não suficiente para uma análise adequada), ocasionando interpretações
equivocadas. Por exemplo, passivas são processadas como ativas, ou
seja, o sujeito é tomado como agente, relativas de objeto tendem a ser
interpretadas com base em relações de adjacência ou a interpretação da
lacuna se faz em termos de estratégias para a interpretação de formas
pronominais (de Villiers & de Villiers, 1973; Autor 1995).
Um modelo de computação on-line em que se incorpora uma
concepção de língua, segundo a qual toda a informação relevante para o
parsing e a interpretação semântica de sentenças se encontra disponível
nas interfaces com os sistemas de desempenho, torna evidente a
importância de determinadas “pistas” linguísticas para identificação dos
traços formais relevantes para a condução do parsing.
Conclusão
Um melhor entendimento das manifestações características do
DEL no domínio da sintaxe pode ser alcançado quando se articulam
teorias linguística e psicolinguística, uma vez que a primeira parta do
pressuposto de que a forma e o funcionamento das línguas humanas
respondem às pressões das interfaces da língua com sistemas que atuam
no processamento linguístico, e que modelos psicolinguísticos busquem
explicitar o modo como a computação sintática se inscreve nos processos
de produção e de compreensão da linguagem.
Em particular, a articulação entre modelos psicolinguísticos que
incorporem uma caracterização da computação sintática de base
minimalista aliada a uma teoria procedimental de aquisição da linguagem
permite prever possíveis fontes de comprometimento no que diz respeito
ao domínio sintático.
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Letícia Maria Sicuro Corrêa e Marina R. A. Augusto
Neste artigo, foi feito um esforço na direção de se explicitar o
procedimento de análise sintática de estruturas previstas como sendo de
alto custo de processamento, nos termos do MINC. No que diz respeito
às relativas e às interrogativas, uma possível fonte de comprometimento
estaria na identificação das propriedades dos traços formais do elementoQU, que seriam desencadeadoras de movimento sintático na língua.
No que diz respeito às passivas, o reconhecimento de dependência
descontínua entre o auxiliar e o particípio sinalizaria a impossibilidade
de atribuição de Caso ao objeto lógico, o que desencadeia movimento
sintático. Em todos os casos, a criação de cópias sequenciais deflagrada
pelo reconhecimento desses elementos acarreta uma sobrecarga na
memória de trabalho que pode ser uma das fontes de dificuldade no DEL.
Outra possibilidade reside no próprio reconhecimento da pertinência
da informação veiculada por esses elementos na pronta implementação
dos procedimentos de análise requeridos. Diante disso, a possibilidade
do uso desse tipo de informação de interface em procedimentos de
intervenção em casos de DEL pode ser considerada. Nessa direção,
tarefas linguísticas em que se exploram essas pistas foram utilizadas em
um procedimento piloto de estimulação da produção e da compreensão
dessas estruturas por parte de crianças com dificuldades de linguagem
de ordem sintática (Autor 2011; Autor 2011b). Os resultados, ainda que
preliminares, sugerem que este pode ser um direcionamento promissor
para intervenção em casos de DEL.
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62
QUESTÕES
EPISTEMOLÓGICAS
DA
NEUROLINGUÍSTICA
DE
ORIENTAÇÃO
ENUNCIATIVO-DISCURSIVA1
Amanda Bastos Amorim de AMORIM
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
RESUMO
Neste artigo, serão elencadas e discutidas questões epistemológicas de base para as
pesquisas que adotam a abordagem enunciativo-discursiva nos estudos de linguagem nas
patologias, dentre as quais a relação entre sinal/sintoma e síndrome e a relação entre
normalidade e patologia, bem como as concepções de cérebro, sujeito e linguagem
que permeiam as pesquisas realizadas na área.
ABSTRACT
In this paper, issues of epistemological basis for researches which adopt an enunciativediscursive approach in the studies of language in pathologies will be listed and discussed,
among which the relationship between sign/symptom and syndrome and the relationship
between normality and pathology, as well as the notions of brain, subject and language
that permeate researches conducted in this area.
PALAVRAS-CHAVE
Afasia, Linguagem nas patologias, Neurolinguística
KEYWORDS
Aphasia, Language in pathologies, Neurolinguistics
O presente texto deriva de minha pesquisa de mestrado, concluída em 2011, cujo título é A
semiologia das afasias: contribuições de uma abordagem enunciativo-discursiva.
1
© Revista da ABRALIN, v.12, n.1, p. 63-95, jul./dez. 2013
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Introdução
A Neurolinguística encontra-se em um campo híbrido de
conhecimento, pois recorre tanto às Neurociências quanto à Linguística
para o estudo de seus objetos. Neste artigo, nos ateremos aos estudos
de linguagem nas patologias e, em sua maior parte, nos basearemos nas
discussões sobre afasia. É fundamental, entretanto, compreender que as
questões epistemológicas aqui levantadas são pertinentes ao estudo de
linguagem nas patologias em geral.
A semiologia atualmente utilizada para a classificação das afasias,
na literatura em Neuropsicologia e Neurolinguistica, é basicamente
a mesma do século XIX, quando se acreditava numa relação direta
e unívoca entre áreas especificas do cérebro e as funções superiores,
dentre as quais a linguagem. Segundo Foucault (1998), a semiologia
tem uma relação estreita com a vontade de verdade da época e,
consequentemente, com a relação entre ver e dizer. Causa estranhamento
que, apesar do avanço no conhecimento do funcionamento cerebral
e mesmo do próprio funcionamento da linguagem, a semiologia
permaneça imutável. Uma explicação para isso seria, de acordo com
Novaes-Pinto e Santana (2009: 20), que “como o conhecimento
de uma área vai sendo construído das propostas dos antecessores, a
semiologia acaba sendo cristalizada ao longo do tempo, mesmo que os
conceitos sejam criticados e reformulados”.
Tradicionalmente, a afasia é definida como uma patologia de
linguagem provocada por uma lesão focal. Coudry (1986/1988) altera
significativamente essa definição:
A afasia se caracteriza por alterações de processos
linguísticos de significação de origem articulatória
e discursiva (nesta incluídos aspectos gramaticais)
produzidas por lesão focal adquirida no sistema nervoso
central, em zonas responsáveis pela linguagem, podendo
64
Amanda Bastos Amorim de Amorim
ou não se associarem a alterações de outros processos
cognitivos. Um sujeito é afásico quando, do ponto de
vista linguístico, o funcionamento de sua linguagem
prescinde de determinados recursos de produção ou
interpretação.
A autora, além de dar relevância ao aspecto linguístico, evidencia o
fato de a patologia estar associada a um sujeito real, fato que não deve
ser ignorado no processo de diagnóstico e terapia, menos ainda nas
pesquisas que envolvem afásicos.
Podemos observar em algumas pesquisas recentes (cf. Cytowic,
1996, Canoas-Andrade, 2009) que alguns autores já vêm tratando
– tanto na Neuropsicologia quanto na Neurolinguística – a afasia
independente do tipo de lesão. Ou seja, na literatura mais recente,
podemos encontrar indícios de uma reformulação no conceito de
afasia, redefinindo-a como uma patologia de linguagem que pode estar
associada e até mesmo ser sinal de outras patologias, como demências
e epilepsia. Se nosso foco é o estudo da linguagem e se, conforme
afirma Foucault (1994), “o corpo é um lugar de sobreposições”, tal
reformulação é válida. Portanto, quando utilizarmos o temo afasia neste
artigo, é sob esta ótica que estamos observando.
0 estudo das afasias foi radicalmente questionado a partir de
meados dos anos 80, quando começou a ser desenvolvida uma
Neurolinguística de orientação enunciativo- discursiva, se opondo à
Neurolinguistica tradicional, tanto pelas concepções mais fundamentais
- como as de sujeito, cérebro e linguagem - quanto pelos métodos adotados
na pesquisa, privilegiando abordagens qualitativas e dados que emergem
em situações dialógicas, a partir do acompanhamento longitudinal dos
sujeitos.
Tal método de acompanhamento, que ocorre tanto nas sessões dos
grupos de convivência, quanto em sessões individuais, permite visualizar
o funcionamento da linguagem desses sujeitos em diferentes momentos e,
65
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
dessa forma, podemos compreender a instabilidade do quadro afásico
e o fato de certos fenômenos, como as parafasias, também ocorrem
nos enunciados de sujeitos não-afásicos que participam da sessão, o
que vem a corroborar a crítica que fazem Canguilhem (1995) e Sacks
(1997) sobre a noção de “patologia”.
Em geral, a literatura posiciona o normal e o patológico em pólos
opostos e estáveis. Essa concepção tem implicações para a semiologia,
uma vez que qualquer sinal ou sintoma é tomado como uma alteração
de um processo normal e deve ser imediatamente enquadrado em
uma síndrome. 0s parâmetros para avaliar normalidade e patologia são
tomados como universais e independentes de elementos externos
ao individuo - localização geográfica, a cultura local ou seus hábitos
particulares.
Vygotsky (1984) cunha o termo extracortical - em seguida adotado
por Luria - para se referir aos fatores considerados exteriores ao
cérebro e sua interferência no seu funcionamento (Kotik-Friedgut,
2006). Com isso, o autor expande a própria noção de cérebro, que
não seria constituído somente pelos níveis sub-cortical e cortical,
mas sim a partir da sua relação com o meio, com o outro e com a
cultura. Essa noção é usualmente referida na literatura neuropsicológica
como influência epinenética (Annunciato, 1995), compatível com nossa
abordagem, justamente porque é de natureza sócio-histórico-cultural.
A observação dos fenômenos em relação a um ideal e deslocada
do contexto de produção se tornou habitual na clínica e nas pesquisas
que se pretendem científicas, justamente pelo rigor metodológico2.
As categorias advindas desse método se constituíram como moedas
linguísticas para as trocas entre profissionais. Entretanto, conforme a
epígrafe desta primeira parte, a semiologia não deveria permanecer
sempre a mesma, pois o conhecimento que se tem de um fenômeno não
é estanque. Ao contrário, sempre se atualiza e se reformula.
2
Incluindo grande número de sujeitos, uso de testes-padrão e aproximações estatísticas
que foram e serão criticadas de diversas formas nesta pesquisa, como meio justamente para
avaliar uma linguagem ideal, que não corresponde, de fato, a sujeito algum, mas se pretende
universal.
66
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Uma vez que a semiologia utilizada atualmente data do século
XIX, é preciso investigar também por que ela se constituiu dessa forma.
Segundo Foucault, como vimos anteriormente, cada época se relaciona
a uma vontade de verdade, que condiciona a relação entre ver e dizer em
diferentes momentos históricos. Novaes-Pinto (1999, 2009) relaciona
a tradição nominalista do século XIX ao fato de as categorias
passarem a ser prévias às observações, quando o papel do clinico era
apenas o de encaixar nelas os sujeitos e as patologias, chegando aos
diagnósticos que a instituição (clínica) requer.
1.2 Relações Fundamentais
Neste subitem, apresentaremos algumas discussões caras à
Neurolinguística de orientação enunciativo-discursiva e que estão,
implícita ou explicitamente, em todos os trabalhos desenvolvidos na
área.
1.2.1 Sinal/sintoma & síndrome
Foucault (2008: 18) afirma que a vontade de verdade, quando
apoiada em uma instituição - como a clinica -, “tende a exercer sobre
os outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um
poder de coerção”. Podemos pensar, portanto, que, como as primeiras
classificações da afasia vieram de um campo já institucionalizado a Medicina -, seja mais difícil que classificações advindas de outras
áreas, como a Linguística, penetrem nesse campo. Além disso, quando
penetram, muitas vezes são tomadas de forma superficial ou mesmo
equivocada. De fato, é possível observar a ocorrência dessas imprecisões
em relação, por exemplo, aos conceitos de neologismo e jargão, que são
inadequadamente utilizados, de acordo com Morato & Novaes-Pinto
(1997, 1998) para se referirem à produção de parafasias nas afasias
fluentes.
67
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Na literatura neuropsicológica, as síndromes são conjuntos estáveis
de sintomas e estes - no caso das afasias - são avaliados por meio de
testes metalinguísticos. Caplan (1987) afirma que há uma noção mais
fraca e uma mais forte de síndrome. Uma noção forte é encontrada
em Caramazza (apud Novaes-Pinto, 1999).
Uma síndrome poderia ser considerada como a unidade
mínima de analise para a identificação do(s) módulo(s)
que se suponha afetado(s) em um paciente. Em outras
palavras, uma síndrome deveria ser definida como o
conjunto de todos os sintomas que refletem o distúrbio
de um componente de processamento específico.
Esta definição de síndrome tem como consequência
implícita a existência de complexos não-dissociáveis de
sintomas que correspondem ao distúrbio de um único
componente. [...] Portanto, uma outra consequência
desta abordagem é a de que a co- ocorrência necessária
de sintomas define a identificação de módulos de
processamento cognitivo, e seu funcionamento interno,
enquanto que a dissociação de sintomas reflete a
independência de componentes de processamento.
De acordo com essa noção mais forte, que exige a co-ocorrência,
em todos os casos, de um conjunto de sintomas, a tendência é que
se force um enquadramento dos déficits dos sujeitos em categorias
estanques. A noção fraca de síndrome, a que Caplan (1987) se refere,
requerer que os sintomas co-ocorram numa frequência “acima da
média”, ou seja, é uma definição que abrange uma certa variação embora ainda conceba as síndromes em termos dos déficits (NovaesPinto, 1999).
Um dos objetivos da pesquisa que originou este artigo, realizada sob
a orientação enunciativo-discursiva é precisamente o de “questionar
68
Amanda Bastos Amorim de Amorim
nossa vontade de verdade” (Foucault, 2008: 51). Foucault afirma, a
esse respeito, que “é preciso também que nos inquietemos diante de
certos recortes ou agrupamentos que já nos são familiares” (Foucault,
2005: 24). Os trabalhos desenvolvidos sob perspectivas sócio-históricoculturais (dentre as quais nos identificamos) se constituem como discursos
de resistência (Foucault, 2009) frente ao modelo biomédico hegemônico.
Vontade de verdade, poder e resistência são elementos fortemente
relacionados, já que a resistência é constitutiva do poder e este é
parte integrante das instituições que apoiam a vontade de verdade
que, por sua vez, exerce uma pressão coercitiva - conferida pelo poder
da instituição - sobre a sociedade, gerando pontos de resistência
(Foucault, 2009). Isso indica, portanto, o caráter cíclico dessas relações
de poder. Considerar o sujeito na sua relação com a linguagem, o uso
efetivo da língua e não uma língua como sistema fechado e estável ou
uma competência de um falante-ideal, por sua vez, constitui-se também
como um discurso de resistência em relação a uma certa Linguística
- a das formas.
0 que defendemos não é a extinção de categorias, mas uma análise
crítica e um diagnóstico em termos do que o sujeito consegue produzir e
como ele consegue produzir, apesar dos limites impostos pelas afasias.
1.2.2 Normal & patológico
Canguilhem (1995) critica a abordagem polarizante e binária
observada na Medicina, citando exemplos essencialmente fisiológicos e
mostrando o quanto os costumes alteram a ideia do que é normal ou
não para um individuo. De acordo com o autor:
Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A
anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas.
Elas exprimem outras normas de vida possíveis. Se
essas normas forem inferiores - quanto à estabilidade,
à fecundidade e à variabilidade da vida - às normas
69
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
específicas anteriores, serão chamadas patológicas. Se,
eventualmente, se revelarem equivalentes - no mesmo
meio - ou superiores - em outro meio - serão chamadas
normais. Sua normalidade advirá de sua normatividade.
0 patológico não é a ausência de norma biológica, é
uma norma diferente, mas comparativamente repelida
pela vida.
Trazendo para o campo especifico da Afasiologia, essa polarização
faz perder de vista o fato de os quadros das afasias não são estáveis ou
permanentes. 0s estudos realizados sob orientações sócio-históricoculturais vêm mostrando que um afásico não apresenta sempre a
mesma afasia, nem o mesmo grau de severidade todo o tempo. Em
alguns episódios, a fala do afásico pode facilmente ser confundida com
uma fala de um não-afásico (Novaes-Pinto, 1999). A fim de exemplificar,
reproduziremos abaixo dois dados do sujeito P, que, segundo a
literatura tradicional, seria considerado agramático: o primeiro data de
1984 (Coudry, 1986) e o segundo data de 1996 (Novaes-Pinto, 1997).
[1984: Investigador e P observam a foto de um casal jantando à luz
de velas] Inv.: 0 que estão fazendo?
P: Homem, mulher, lâmpada.
[1996: Investigador pergunta a P sobre o final de semana]
P: “0lavo, 0rdalia e eu fomos lá no shopping comprar um presente”
0s dados ilustram que o quadro afásico não é sempre o mesmo
e que, nas afasias, ocorre a movimentação no eixo entre normalidade
e patologia, conforme Canguilhem (1995) postula. Além disso, dada
a distância cronológica na produção dos dois dados, é impossível
ignorar os efeitos terapêuticos da perspectiva defendida por Coudry
(1986/1988). Segundo Novaes-Pinto (2006: 1733),
70
Amanda Bastos Amorim de Amorim
A linguagem do afásico, em certas situações dialógicas,
fica mais indeterminada. Com relação ao eixo normalpatológico, é na dificuldade de determinar o sentido [...]
que a alteração causada pela afasia afasta os enunciados
dos parâmetros normais (da média típica, proposta
por Quetelêt, assumida por Canguilhem para um sujeito
possível). Como há um movimento constante nesse
eixo, explica-se também o fato de que o afásico não é
afásico o tempo todo. Portanto, o grau de severidade
não é o mesmo para o mesmo sujeito afásico o tempo
todo.
A semiologia correntemente adotada patologiza elementos da fala
dita normal, como as trocas lexicais - que, no âmbito das patologias,
são chamadas parafasias - ou a simples presença de pausas e hesitações.
Quer dizer, segue em sentido oposto ao que postula Canguilhem quando
afirma que não ha fato normal ou patológico em sua essência.
0 autor retoma a proposta de Quetelêt e reforça a necessidade da
adoção de uma metodologia que privilegie o conceito de média típica
para a observação de fenômenos. Segundo essa noção, um mesmo
sujeito deve ser comparado a si mesmo em diversos momentos - o que
só é possível em um estudo de natureza longitudinal. Não é descartada a
noção de um grupo tipo (tratado na literatura contemporânea também
como grupo controle), tão caro às pesquisas quantitativas, mas essa
noção é ressignificada, de forma que esse grupo deixa de ser um ideal,
algo a que o sujeito deva equivaler para ser considerado normal. A clara
vantagem desse método em relação à tomada da média aritmética é
que, dessa forma, chega-se a um valor real, dado que o resultado é um
valor que existe. Na média aritmética, o valor a que se chega tende
a não coincidir com nenhum dos valores dados, gerando uma noção
de norma a que nenhum dos dados corresponderia.
71
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
A busca por uma norma que se aplique a todos os sujeitos é baseada
em métodos quantitativos de pesquisa. Na vertente tradicional da
Neurolinguistica, o instrumento mais amplamente utilizado é o testepadrão, que visa o diagnóstico de alterações de linguagem ou outras
disfunções cognitivas nas patologias. Há diversas baterias validadas,
traduzidas e aplicadas geralmente da mesma forma, em todo o
mundo, tanto para fins de pesquisa como na pratica clinica de avaliação
e acompanhamento terapêutico. Analises quantitativas advindas dos
resultados dos testes, aliadas a exames de neuroimagem, constituem
grande parte da literatura prestigiada e considerada cientifica.
Um dos maiores problemas desse modelo é a descontextualização
das tarefas. Novaes-Pinto (1999: 138) traz um exemplo disso quando
cita a Bateria de Boston, de Goodglass & Kaplan (1986): “pede-se ao
sujeito, entre outras coisas, que ‘dê duas batidinhas em cada ombro,
com dois dedos e com os olhos fechados’” (Novaes-Pinto, 1999). A
autora argumenta que a tarefa é ambígua e que, mesmo na aplicação
do teste em sujeitos não-afásicos, houve grande variabilidade em sua
execução.
Os testes-padrão são amplamente utilizados também no
diagnóstico e acompanhamento terapêutico de outras patologias. No
exemplo abaixo, extraído de um trabalho de Novaes-Pinto (2007, p.
315-316), trazemos um dado do sujeito NB, avaliado - segundo a
perspectiva tradicional - como provável Alzheimer em estágio inicial.
Na atividade em questão, pretende-se avaliar se a capacidade de
categorização esta preservada ou não. Esta tarefa se relaciona, na
literatura neuropsicológica, à função executiva, por sua vez ligada a
um dos principais papéis dos lobos frontais - a regulação da própria
linguagem e a capacidade de abstração. As perguntas são feitas no
seguinte modelo: “How are X and Y alike?”. 0 sujeito marca 5
pontos se “acerta” e 0 se “erra”. Abaixo reproduzo a tabela formulada
pela autora, com os escores do sujeito:
72
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Palavras a
categorizar
Respostas do sujeito NB
Escore atribuído e
palavra-alvo
piano x drum
They both make noise
0
Instrumentos
musicais
orange x banana
same color, fruit, tropical, tasty, buy
them in a grocery store
5
Frutas
eye x ear
both detect from your surroundings
0
Órgãos do sentido
boat x automobile
transport, take people to operate go on
a surface
5
Meios de transporte
table x chair
sit on both actually, 4 lens, stable (it has
to be), can be connected
0
Mobília
work x play
How do you make work into play? That
should be the question... How are they
alike? They can both be fun...
0
Atividades sociais
humanas
steam x fog
Basically the same. When the humidity is
high, you can’t see through.
0
Água em estado
gasoso
egg x seed
They are both eatable
0
Dão origem à vida
democracy x
monarchy
They are both ruled by despots both serve
for controlling the people...
0
formas de governo
poem x statue
They can both be beautiful
0
formas de arte
praise x punishment
They both make you feel good; result of
a behavior
0
resultado de um
julgamento
fly x tree
hibernation x
migration
enemy x friends
5
seres vivos
Ways to avoid the winter, the bad
5
weather, seasonal birds do it don’t know comportamentos em
if fish
função do tempo
0
They are both your neighbors, people that
pessoas que você
have attitude that might change
conhece/convive
Living creatures, air movement
73
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Podemos observar que, para pontuar no teste, não basta o
sujeito categorizar, mas ele precisa encaixar na categoria semântica
especifica que o teste propõe. De acordo com Novaes-Pinto (2007:
317), as respostas de NB revelam que o sujeito consegue abstrair e
fazer inferências extremamente complexas. Esse trabalho linguístico/
cognitivo do sujeito também pode ser verificado quando
[...] ele pede para que o examinador lhe explique como
é possível, por meio das perguntas dos testes, saber
como ele esta por dentro (referindo-se ao cérebro).
0 estagiário respondeu que compara os resultados
dos testes anteriores com os atuais. NB, então, infere
rapidamente, brincando: So... the trick is not to do so well
on this one, do better next time...
Pelas razões aqui defendidas, podemos dizer que o resultado dos
testes não equivale às reais dificuldades dos sujeitos. Entretanto, têm
objetivos como os indicados por Goodglass & Kaplan (1986 apud
Novaes-Pinto, 1999, p. 126):
0 exame da afasia pode dirigir-se a um dos três objetivos
gerais:
1. Diagnóstico da presença e tipo de síndrome afásica,
possibilitando inferências com respeito à localização
cerebral.
2. Avaliação do nível de rendimento, tanto para a
determinação inicial, como para detectar mudanças
através do tempo.
3. Avaliação global das dificuldades e possibilidades do
paciente, em todas as áreas da linguagem, como guia
para o tratamento.
74
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Embora os autores façam ressalvas em relação ao teste e
recomendem que o mesmo não seja tomado como um resultado
absoluto, observamos que a sua aplicação serve tanto para fins de
pesquisa quanto para trabalho clínico com a linguagem.
0 primeiro objetivo caracteriza a posição localizacionista, ainda
valorizada nas pesquisas atuais em Neurociências. Com a tecnologia
de imagens de que atualmente dispõem os profissionais dos grandes
centros urbanos, já não se torna mais necessário correlacionar a lesão
com o déficit linguístico supostamente causado por ela, a partir da
avaliação neuropsicológica tradicional.
0s outros dois objetivos mencionados acima na citação de Goodglass
& Kaplan também não são plenamente alcançados pela utilização do
teste, especialmente pela descontextualização das tarefas. Por outro
lado, Coudry (1986/1988) mostra como atividades contextualizadas
apresentam resultados mais significativos para a compreensão do
funcionamento real da linguagem. Um exemplo dessa abordagem é o
estudo de caso do sujeito N, que falha no teste de nomeação, mas
acerta quando ela ocorre no contexto enunciativo:
INV. - 0 senhor esta sentado onde?
N. - Cadera. (E acrescentou:) Se você tivesse perguntado o nome,
eu nao sabia. Mas assim lembro. Se pergunta “o que é isso”, não sai.
0bservando um exemplo como este, é possível notar que, em
situação dialógica, a avaliação se torna muito mais relevante para se
inferir a respeito dos processos linguístico-cognitivos envolvidos. A
literatura neuropsicológica moderna também esta repleta de exemplos.
Goldstein (1933) relata um episódio no qual seu paciente, durante
um teste de nomeação, não conseguiu dizer “guarda-chuva”, mas
responde ao autor: “Não posso me lembrar como isso é chamado,
porém tenho diversos guarda-chuvas em casa”. Jackson (1884) narra
75
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
que muitos pacientes não conseguiam dizer “não» quando era pedido,
mas muitas vezes respondiam “Não, doutor, eu não consigo dizer
não”. Esses dados indicam que muitas vezes os testes podem gerar
falsos positivos devido à descontextualização das tarefas.
As unidades privilegiadas pelos testes - palavras e orações -, como
aponta Bakhtin (2003), são abstrações, recursos da língua que só têm
valor no enunciado, este sim a unidade real da comunicação verbal, o
que reforça o argumento da artificialidade das tarefas metalinguísticas,
quando o objetivo seria compreender o funcionamento da linguagem.
Nas palavras do autor:
Quando se analisa uma oração isolada, destacada do
contexto, os vestígios do direcionamento e da influência
da resposta antecipável, as ressonâncias dialógicas sobre
os enunciados antecedentes dos outros, os vestígios
enfraquecidos da alternância dos sujeitos do discurso,
que sulcaram de dentro o enunciado, perdem-se,
obliteram-se, porque tudo isso é estranho à natureza
da oração como unidade da língua. Todos esses
fenômenos estão ligados ao todo do enunciado, e onde
esse todo desaparece do campo de visão do analisador
deixam de existir para ele.
A crítica de Bakhtin não incide especificamente sobre os modelos,
desde que esses sejam tomados apenas como modelos, tendo em vista
os limites explicativos dos mesmos. Caso contrário, se eles têm como
objetivo referir-se ao todo da linguagem, transformam-se em ficção
cientifica (2003). De acordo com Novaes-Pinto (2006),
A análise do processo dialógico e dos recursos
alternativos dos quais se utiliza [o afásico] [...] nos
revelam muito mais sobre sua afasia e sobre aspectos do
76
Amanda Bastos Amorim de Amorim
processamento linguístico e do grau de severidade que
a afasia impõe para sua atividade de produção.
Destacamos da citação anterior a importância conferida ao estudo
dos processos. Segundo Vygotsky (1984), é a analise dos processos - em
oposição à tradicional analise dos objetos - que permite a compreensão
da essência dos fenômenos. 0 autor defende que essa analise também
é objetiva e não menos “cientifica” do que os métodos puramente
descritivos de analise dos objetos.
Como alternativa às abordagens predominantemente quantitativas,
Coudry (198ó/1988) propõe que as alterações de linguagem nas
patologias sejam estudadas em situações interativas entre os sujeitos,
sendo essas interações as unidades de analise para a compreensão
dos fenômenos na normalidade e nas patologias. Essa metodologia
possibilita a emergência de enunciados singulares que dão visibilidade
precisamente aos processos, como defende Vygotsky (1984) e se
assemelha à proposta de Ganguilhem, que postula que, em lugar do uso
da média aritmética para se chegar a um valor equivalente à normalidade,
seja utilizada a média típica, que indica o que seria a normalidade para
um dado sujeito a partir do que tende a ser mais frequente para o
mesmo, naquele caso, naquele momento da avaliação.
Somente a partir do conhecimento desses dados é possível avaliar os
desvios em relação a uma norma. Em outras palavras, seria possível
concluir se haveria ou não comprometimento da linguagem ou de
outras funções.
A visão não-dicotômica dos fenômenos, ou seja, quando
entendemos a relação normal/patológico como um processo dinâmico
e continuo, possibilita compreender fenômenos patológicos como
alterações de processos normais subjacentes, que revelariam a busca
dos sujeitos por um estado de equilíbrio, próprio da relação contínua
e não radicalmente polarizada entre normal e patológico.
77
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
1.2.3 Moedas linguísticas
Se as questões semiológicas e teórico-metodológicas parecem tão
problemáticas, podemos nos perguntar se ha explicação para a sua
manutenção. De acordo com Porter (1997: 365), o nome para uma
doença serve como moeda linguística, ou seja, como uma forma de
viabilizar a comunicação entre médico e paciente:
A terminologia médica fornece um bom exemplo das
múltiplas funções que a linguagem tem de desempenhar.
É um jargão técnico, exclusivo, e ainda assim deve servir
para a comunicação (ou, às vezes, a descomunicação)
entre médico e paciente, e para possibilitar a este
compreender a doença.
Ainda segundo o autor (Porter, 1997: 366),
[...] ao dar um rótulo ao problema espera-se diminuir
a ansiedade da ignorância. A nomeação de doenças
envolve classificação, promove o prognóstico e indica a
terapia. Como diz o velho ditado, uma doença nomeada
é uma doença quase curada.
Essa última passagem aponta para uma necessidade que o paciente
e sua família têm de obter uma resposta que nomeie e explique a
doença. Nos casos que requerem um trabalho interdisciplinar, como no
estudo da afasia, seria desejável a comunicação entre médicos e outros
profissionais envolvidos, seja na clínica ou na pesquisa (fonoaudiólogos,
fisioterapeutas, psicólogos e linguistas). Talvez essa característica - da
interdisciplinaridade - seja a principal justificativa para a permanência
de uma semiologia já tão antiga.
78
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Por outro lado, os diagnósticos, quando passam a servir tão somente
como rótulo, revelam também um lado perverso. Morato et al. (2002)
afirmam que os sujeitos afásicos são vitimas de preconceito linguístico,
sendo muitas vezes excluídos dos momentos de interação no contexto
familiar ou são mal compreendidos por interlocutores que não são
qualificados. Essas questões não são exclusivas do campo das afasias
e têm sido abordadas, mais frequentemente, por pesquisadores que se
dedicam às dificuldades de linguagem ou de aprendizagem em crianças
com ou sem patologias.
Em publicação recente, Coudry (2010: 98) afirma que, no Brasil,
a frequência com que crianças de sete anos são diagnosticadas com
algum “distúrbio” tem aumentado significativamente:
Se a criança trocar letras, não escrever ortograficamente,
não entender um enunciado matemático ou se distrair
durante a cópia da lousa tem algum problema, que
logo terá um rótulo de patologia, como dislexia ou o
chamado transtorno do déficit da atenção com e sem
hiperatividade (TDAH), alteração do processamento
auditivo, dificuldade de aprendizagem e, mais
recentemente, transtorno desafiador opositor (TD0).
Welsh et al. (2007) revelam um lado econômico que afeta diretamente
a epidemia de diagnósticos que observamos atualmente:
A epidemia de diagnósticos tem muitas causas. Mais
diagnósticos significa mais dinheiro para a indústria
farmacêutica, hospitais, médicos e advogados. [...] Se,
por um lado, uma falha no diagnóstico pode ser objeto
de uma ação judicial, por outro não existe qualquer
punição para diagnósticos exacerbados.
79
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Com relação ao excesso de patologização, acreditamos que
seja relevante citar os trabalhos desenvolvidos desde 2004, quando
passou a funcionar, no IEL/UNICAMP, o Centro de Convivência
de Linguagens (CCAzinho), um espaço que acolhe crianças com
diagnóstico das mais diversas patologias relacionadas às dificuldades
com leitura e escrita. No CCAzinho, as crianças são reavaliadas a partir
de uma abordagem enunciativo-discursiva e percebe-se, em muitos casos,
que elas não têm patologia alguma. Muitas das dificuldades são comuns
no processo de aprendizagem da leitura e da escrita. Caso essas
crianças não tivessem chegado ao CCAzinho, permaneceriam com o
rótulo, mesmo equivocado, o que certamente teria repercussões
durante toda a vida acadêmica e social.
Um dos exemplos que revelam o estigma que um diagnóstico
promove na vida de um sujeito pode ser encontrado em Freire
(2005), que realizou um estudo de caso com o sujeito AL, com
síndrome frontal. A autora apresenta o caso da seguinte forma (Freire,
2005: 19):
AL conta que sempre apresentou dificuldades na escola.
Não conseguia ler e escrever como seus pares. Passados
os primeiros anos escolares - durante os quais os erros
de leitura e de escrita são tolerados - suas dificuldades
ficaram mais evidentes. Recorda-se de sua professora que
o chamava, publicamente, de “burro”, “indisciplinado”
e que batia em sua mão. A família, orientada pela escola,
procurou auxilio de um especialista. 0s testes revelaram
que AL era “disléxico”. Sem saber como proceder
em relação às obrigações escolares e sem condições
financeiras de manter um atendimento especializado,
a família pouco pode fazer quando AL abandonou
os estudos na 7ª série do ensino fundamental. Escrita
e leitura se tornaram uma doença que o impedia de
prosseguir na vida escolar.
80
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Nesse caso, em especial, a falha no diagnóstico foi reconhecida
somente em decorrência do encaminhamento decorrente da síndrome
frontal. Segundo a autora, AL jamais foi disléxico e o trabalho com a
escrita - ao qual o sujeito resistiu inicialmente, devido ao estigma foi fundamental para a melhora da autoestima e o engajamento com
as atividades propostas. Segundo a autora (Freire, 2010: 136):
Dada a multiplicidade de objetivos da diagnose,
a avaliação clínica que a produz deve se pautar em
praticas sociais que fazem parte da história do sujeito,
sob risco de ver o que não existe ou nomear o que só se dá
a conhecer em condições ideais. A observação/análise
do homem comum/real visa informar que aspectos
podem estar interferindo no curso das funções que se
mostram em desajuste/desequilíbrio, ponto de partida
a ser continuamente revisitado no trabalho clínico.
Bordin (2010) indica um problema ainda mais grave: muitas vezes, os
diagnósticos são realizados apenas verbalmente e guiados por tabelas
ou questionários encontrados em sites como o da ABD - Associação
Brasileira de Dislexia. Não raro, são os professores ou os próprios pais
que realizam esse “diagnóstico”, enquadram a criança numa categoria
e impõem a ela um rótulo.
Atualmente, observa-se uma valorização dos diagnósticos obtidos
por meio de métodos quantitativos, sejam eles os testes-padrão, as
neuroimagens ou associações entre esses dois métodos. Podemos dizer
que a metodologia proveniente das ciências naturais é mais bem aceita
pela comunidade cientifica. Como a Neurolinguistica é uma área de
interface, há um conflito entre a validação conferida pelos métodos
quantitativos/estatísticos e as análises qualitativas.
81
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
1.3 Linguagem e cérebro: relação compreendida a partir
de um sujeito real
Conforme dito anteriormente, a Neurolinguistica de orientação
enunciativo- discursiva surge se opondo à Neurolinguistica tradicional
em suas concepções mais fundamentais. Apresentaremos, a seguir, as
regularidades conceituais encontradas no corpus da pesquisa que origina
o presente artigo, que foi composto por 23 teses, dissertações, artigos
ou capítulos de livros desenvolvidos desde a tese de Coudry (1986) e
que se situam majoritariamente sob uma perspectiva sócio-históricocultural.
Como o primeiro trabalho - Diário de Narciso: afasia e discurso (Coudry, 1986) é aquele ao qual hoje nos referimos como fundador da
área, é nele que encontramos as concepções fundamentais: (i) relevância
conferida ao sujeito na pesquisa; (ii) concepção de linguagem e (iii)
funcionamento cerebral.
Percebemos, também, um movimento que se inicia como negação
do modelo biomédico, mas não se resume a isso: as pesquisas propõem
a mobilização de outros conceitos que, como veremos, passam a dar
conta de fenômenos que os modelos tradicionais não abarcavam.
1.3.1 Concepção de sujeito e outras a ela relacionadas
Uma das primeiras preocupações que surgem nos estudos - e
isso está presente na maioria dos trabalhos da área - é a concepção
de sujeito que será mobilizada para dar conta dos aspectos teóricos e
metodológicos das pesquisas. Apresentam-se, inicialmente, duas opções
extremas e mutuamente excludentes: (i) o sujeito assujeitado - que é
falado pela língua e pelos outros, assim concebido em algumas linhas da
Análise do Discurso ou (ii) o sujeito fonte do sentido, destacado de
qualquer lugar social, histórico ou ideológico.
No estudo das afasias, nenhum desses extremos serve adequadamente
à pesquisa, pois é necessário, para compreender os impactos na
82
Amanda Bastos Amorim de Amorim
linguagem e nos próprios sujeitos, considerar a sua constituição
em meio à dimensão sócio-histórica-cultural, bem como no plano
individual, único.
0s trabalhos em Neurolinguistica de abordagem enunciativodiscursiva, desde Coudry (1986), negam esses extremos, bem como
negam a postura da Neurolinguistica tradicional de apagamento do
sujeito e de tudo aquilo de singular que emerge dos dados (Coudry,
2001: 68)
No caso dos afásicos, o modo como eles têm sido
tradicionalmente avaliados, revela sempre o ponto
de vista de quem reproduz um sistema de regras
e categorias fixas em que inexiste um lugar para o
exercício subjetivo da linguagem. 0 afásico é sempre
quem recebe os comandos do sistema e, nesse sentido,
não passa pela experiência de constituir-se como
locutor, perspectiva de quem produz um discurso sob
a cobrança de uma “falta” sob o parâmetro do sistema
A partir de Novaes-Pinto (1999), os conceitos bakhtinianos
ganharam expressão nos trabalhos da Neurolinguistica de orientação
enunciativo-discursiva. Como estão profundamente relacionados
entre si, ao pinçar de sua obra um deles, os outros necessariamente
vêm junto. Portanto, para compreender em sua obra a concepção
de sujeito, por exemplo, seria necessário apresentar o que o autor
entende por dialogia/dialogismo, alteridade, identidade e, perpassando essas
questões, as noções de ética e de ato responsável.
A concepção bakhtiniana de sujeito é adequada ao estudo das
afasias porque apresenta uma solução dialética para a questão. Nao
se trata, como vimos, nem do sujeito fonte dos sentidos e nem do
sujeito assujeitado (Novaes-Pinto, 2009). Sobral (2005a: 22) sintetiza
a concepção bakhtiniana de sujeito, caracterizando-a como um sujeito
situado:
83
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter
relacional de sua construção como sujeito, bem como
na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a
recusar tanto um sujeito infenso à sua inserção social,
sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao
ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do
sentido quanto um sujeito assujeitado. A proposta é a de
conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição
de formação da identidade subjetiva, é também um eu
para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no
plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá
sentido.
Dessa forma, quando analisamos os dados sob uma orientação
enunciativo- discursiva, estamos considerando o sujeito em situação
dialógica, quando é estabelecida uma relação de interlocução e a língua
é abordada em seu funcionamento. Segundo Bakhtin, “o ato de fala e seu
produto, a enunciação, não podem ser explicados somente a partir das
condições do sujeito falante, mas também não podem dele prescindir”
(Novaes-Pinto, 2007: 19).
A fim de mobilizar a noção bakhtiniana de sujeito, é necessário
explicitar algumas das outras que estão relacionadas a ela e como se
interligam3. Novaes-Pinto (1999) chama a atenção para a noção de
dialogia como fundamental quando tratamos de qualquer conceito
bakhtiniano. De acordo com estudos realizados pelo GEGE (2009),
“dialogia é atividade do diálogo e atividade dinâmica entre Eu e
3
Como os conceitos bakhtinianos são muito abertos e se interconectam, não é possível
defini-los sem mobilizar muitos outros e, assim, entraríamos num loop infinito. 0 GEGe
(Grupo de Estudos em Gêneros do Discurso), que vem se dedicando aos estudos da
obra de Bakhtin e à mobilização de seus conceitos para diversos estudos, lançou, em 2009,
Palavras e contrapalavras: Glossariando conceitos, categorias e noções de Bakhtin. 0 livro traz
verbetes que introduzem os conceitos sem, entretanto, pretender esgotá-los (por isso chama-se
glossariando, ao invés de glossário).
84
Amanda Bastos Amorim de Amorim
0utro em um território preciso socialmente organizado em interação
linguística”, ou seja, essa noção liga identidade e alteridade.
Segundo Bakhtin, o sujeito se constitui na interação com o outro
- na dialogia - e, frente a esse outro, deve agir de forma responsável
(Bakhtin, 2010). 0 0utro tem papel essencial na teoria bakhtiniana,
pois é em relação à alteridade que se constitui a identidade. Segundo
Bakhtin (2003), “é impossível alguém defender sua posição sem
correlacioná-la a outras posições”, pois as identidades são constituídas
de contrapalavras, que são discursos outros/de outros.
É importante, no entanto, destacar que não é porque as identidades
são constituídas na relação com o 0utro e a partir dos enunciados
dos 0utros que o sujeito se exime de responsabilidade. Bakhtin (2010)
afirma que não há álibi para a existência, para o aqui e agora. À medida
que nos aprofundamos nos estudos das obras de e sobre Bakhtin, não
há como escaparmos de adotar posições ético-filosóficas em relação
ao objeto de estudo.
Novaes-Pinto mobiliza a noção de excedente de visão para defender
que devemos nos posicionar eticamente frente aos sujeitos:
Nosso excedente de visão de linguistas ou terapeutas
(ou talvez seja mais adequado assumir que isso seja
consequência da visão neurolinguística que temos),
guiado por princípios éticos, permite que possamos
ao mesmo tempo avançar no conhecimento dos
fenômenos, que é um dos objetivos da nossa pesquisa, e
ao mesmo tempo nos constituirmos como verdadeiros
interlocutores dos sujeitos afásicos.
1.3.2 Cérebro como Sistema Funcional Complexo (SFC)
A concepção tradicional de cérebro, privilegiada pela ciência
positivista, é constituída por modelos baseados em cálculos estatísticos
85
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
que postulam um cérebro médio, que não corresponde ao cérebro
de um sujeito real. Autores que se contrapõem a essa visão e que se
tornaram fundamentais nas pesquisas em neurolinguística de abordagem
enunciativo-discursiva são Mecacci e Luria.
Mecacci (1984) apresenta uma critica contundente à noção tradicional
de cérebro e que se relaciona à discussão sobre normalidade e
patologia apresentada em 1.2.2:
Ha um “outro” cérebro que a ciência não estuda, ou
só considera marginalmente. É, em primeiro lugar, o
cérebro de cada indivíduo, cada um diferente do outro; e,
depois, o cérebro de indivíduos pertencentes a culturas
diferentes. [...] A variedade do cérebro dos homens
é a fonte do predomínio dessa espécie de animais
sobre as outras espécies e a origem das relações sociais
e da cultura. A variedade do cérebro humano, porém,
é ignorada. Estuda-se um cérebro “normal” que, na
realidade, não existe.
As pesquisas consultadas, justamente por se interessarem por
sujeitos reais, não ideais - ou médios - filiam-se a uma concepção
sócio-histórico-cultural também com relação à concepção de cérebro,
tal como defendida por Luria (197ó), que propõe que as funções
mentais
[...] não estão “localizadas” em estreitas e circunscritas
áreas do cérebro, mas ocorrem por meio da participação
de grupos de estruturas cerebrais operando em
conjunto, cada uma das quais concorre com a sua
própria contribuição particular para a organização
desse sistema funcional.
86
Amanda Bastos Amorim de Amorim
As funções superiores não podem, portanto, ser vistas como
faculdades isoladas no cérebro, às quais se relacionariam certos grupos
bem definidos de células, mas como um Sistema Funcional Complexo
(SFC). Segundo essa noção, o cérebro é um sistema dinâmico e flexível,
capaz de se reorganizar em casos de lesão cerebral. As suas partes são
solidarias e, dessa forma, áreas não tão específicas para uma determinada
função passam a colaborar para compensar o trabalho daquela que foi
comprometida, princípio da chamada plasticidade cerebral.
Se consideramos, portanto, que o cérebro é um SFC, não podemos
adotar um modelo que relaciona direta e univocamente determinadas
lesões a dificuldades especificas apresentadas pelos sujeitos, conforme
a Afasiologia tradicional tem feito.
É fundamental ressaltar, conforme afirma Sacks (1997) em entrevista
ao programa Roda Viva, que:
Dentro de certos limites, a experiência constantemente
molda o cérebro e, assim, o cérebro também é um reflexo
de experiências, pois as pré-determina. Como resultado,
nossos cérebros se tornam pessoais. Pode-se fazer um
transplante de coração, de fígado e haver problemas de
rejeição, de identidade imunológica entre o coração e o
fígado, mas não há identidade pessoal. Por outro lado,
não creio que possa haver um transplante de cérebro,
porque o cérebro é seu. 0 cérebro é você.
Dessa forma, modelos que homogeinizem os sujeitos, tornandoos ideais, portadores de cérebros médios, não se sustentam. Dentre as
pesquisas consultadas, aquela que mostra de maneira mais contundente
as influências epigenéticas - de natureza sócio-cultural -, é a de CanoasAndrade (2009), que realizou um estudo de caso do sujeito AJ, que
apresenta uma afasia fluente progressiva. A pesquisadora somente teve
acesso às neuroimagens e aos laudos de exames neurológicos após um
ano de desenvolvimento do estudo de caso (Canoas-Andrade, 2009: 7):
87
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Ao tomarmos contato com as imagens e com os laudos dos exames
radiológicos, fomos surpreendidas, em primeiro lugar, pela singularidade
do caso, que põe em xeque a correlação entre afasia do tipo fluente e
lesão posterior. As tomografias revelam lesão mais extensa em região
anterior, incluindo a região de Broca. Mais surpreendente ainda é o
fato de, apesar dos impactos de AVCs hemorrágicos e isquêmicos,
cirurgias de clipagem de aneurismas e atrofias corticais e sub-corticais,
AJ continua se constituindo como sujeito social e da linguagem.
A autora defende que os elementos ainda preservados na
linguagem de AJ se devem ao fato de ele estar inserido em práticas
discursivas - frequentando as sessões do Centro de Convivência de
Afásicos (CCA) e pelo apoio familiar (Canoas-Andrade, 2009: 136):
Tendo em vista o caso de AJ, não é possível contestar
os efeitos das interações sociais e afetivas com a
família, no grupo do CCA e por meio das intervenções
fonoaudiológicas, na plasticidade do sistema nervoso,
ou seja, nos processos de arranjos e rearranjos neurais,
o que também pode nos ajudar a compreender porque
mesmo apresentando tantos comprometimentos
cerebrais bilaterais decorrentes de AVCs isquêmicos e
hemorrágicos, clipagens de aneurisma e a própria atrofia
resultante do envelhecimento, AJ resista como sujeito.
Podemos concluir que se AJ não tivesse a família que
tem e se estivesse sendo acompanhado nos modelos
tradicionais, provavelmente apresentaria um quadro
completamente diverso.
1.3.3 Concepção de Linguagem
Desde Coudry (1986), os trabalhos desenvolvidos na Neurolinguistica
enunciativo-discursiva têm concordado que o estudo das afasias e
88
Amanda Bastos Amorim de Amorim
de outras alterações de linguagem não cabe nos preceitos teóricometodológicos formulados pelo estruturalismo e pelo gerativismo. A
esse respeito, a autora (Coudry, 2001: 29), afirma que
esses modelos teóricos, pelos propósitos particulares
que os animam, tiveram que conceber-se mediante
recortes epistemológicos que reduzem a complexidade
da linguagem e a multiplicidade de seus fenômenos. Não
podem, pois, ser aplicados diretamente a um domínio
como o da neurolinguistica, muito menos fornecer
instrumentos para uma atuação na prática de avaliação
e acompanhamento de sujeitos afásicos.
A concepção de linguagem que norteia os estudos em Neurolinguistica
de abordagem enunciativo-discursiva é explicitada por Franchi (1977:
33):
Não há nada imanente na linguagem, salvo sua
função criadora e constitutiva, embora certos “cortes”
metodológicos e restrições possam mostrar um quadro
estável e constituído. Não há nada universal salvo o
processo - a forma, a estrutura dessa atividade. A
linguagem, pois, não é um dado ou um resultado,
mas um trabalho que “dá forma” ao conteúdo variável
de nossas experiências, trabalho de construção, de
retificação do “vivido” que, ao mesmo tempo, constitui
o simbólico mediante o qual se opera com a realidade e
constitui a realidade como um sistema de referências em
que aquele se torna significativo. Um trabalho coletivo,
em que cada um se identifica com os outros e a eles se
contrapõe, seja assumindo a história e a presença, seja
exercendo suas opções solitárias.
89
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
Destaca-se, assim, a concepção de linguagem como uma atividade
constitutiva do sujeito e do próprio sistema da língua. Segundo
Coudry: “não se pode escamotear o sujeito, fonte de origem dos
dados, com quem vou constituir o modo de avalia-lo e acompanha-lo,
em sua peculiaridade e especificidade” (2001: 195). Com relação aos
efeitos desta concepção no acompanhamento fonoaudiológico, no
trabalho com a linguagem, Fedosse (2008:22) afirma que:
são raros os profissionais que assumem a linguagem como
atividade constitutiva que sustenta e que é sustentada
na interação social, a maioria deles concebe a linguagem
como código de comunicação; o sujeito lesionado
cerebral é visto como aquele que tem dificuldades ou
que não consegue mais falar ou escrever segundo as
regras gramaticais da língua.
A autora realizou o estudo de caso do sujeito SL, um poeta afásico
que escrevia antes e depois do episódio neurológico. É um caso
exemplar dessa noção de linguagem como trabalho.
Considerações Finais
Ao longo deste artigo, buscamos apresentar reflexões acerca
de questões epistemológicas, tomando por base as pesquisas em
Neurolinguística desenvolvidas no IEL/UNICAMP nos últimos 25
anos.
Na base dos grandes problemas encontrados em aparatos teóricometodológicos tradicionais estão as dicotomizações, ferramentas
didáticas que visam simplificar fenômenos complexos os quebrando
em partes menores, conforme indica Cytowic (2002), e resultam
em categorizações que se configuram como moedas linguísticas para
trocas entre profissionais, como apontou Porter (1993).
90
Amanda Bastos Amorim de Amorim
Os estudos de casos desenvolvidos ao longo da história da
Neuropsicologia como ciência possibilitaram verificar que, por
exemplo, apenas cerca de 50 a 60% dos pacientes com lesão na área
de Broca apresentam “afasia de Broca persistente” e apenas 30% dos
pacientes com lesão na área de Wernicke são afásicos de Wernicke
crônicos. Esses dados são trazidos por Dronkers (2000, apud Mansur &
Radanovic, 2004). Segundo o autor, há ainda aproximadamente 15%
de pacientes com afasia de Broca crônica que não apresentam lesão
na área de Broca e 35% com afasia de Wernicke que não possuem
lesão na área correspondente. Tais dados apontam para a ineficiência
de uma correspondência direta entre as alterações cerebrais e os itens
semiológicos. Dessa forma, denunciam a ineficácia da semiologia e,
sobretudo, dos modelos descritivos tradicionais.
Uma noção de cérebro como um sistema funcional complexo não
pode ser comportada por dicotomias. Pelo contrário, como o próprio
nome sugere, as funções linguístico-cognitivas estão imbricadas e só
podem ser explicadas em suas relações. As pesquisas realizadas sob
orientações sócio-histórico-culturais contribuem para resgatar autores
que não são privilegiados pelos estudos neurolinguisticos tradicionais
(como Luria, Jakobson e Freud) e para indicar contraexemplos e
incompatibilidades entre concepções tradicionais e o funcionamento
da linguagem.
Não é tarefa simples, entretanto, fazer que essas reflexões cheguem
aos espaços onde a semiologia e os aparatos teórico-metodológicos
tradicionais estão fortemente arraigados - conforme discutimos ao
falar da Clínica como uma instituição e das relações de poder nela
implícitas. Tais termos se constituíram como moedas linguísticas para a
troca de informações entre profissionais e, portanto, qualquer mudança
- tanto a ressignificação quanto a reformulação de itens semiológicos,
modelos e métodos - são processos lentos, porém imprescindíveis
para o estabelecimento e a validação da Neurolinguística de abordagem
enunciativo-discursiva em tais espaços.
91
Questões Epistemológicas da Neurolinguística de Orientação Enunciativo-Discursiva
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95
O CORPO EM CONTRADIÇÃO: O INDIGNO E O
ANORMAL
João Carlos CATTELAN
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
RESUMO
Este estudo se dedica à observação do discurso ordinário (um tipo de discurso que se pauta
na ordem discursiva, na reiteração das suas práticas, na trivialidade, na efemeridade e na
injunção à manutenção do jogo), fazendo-o a partir de um ponto de vista específico: o foco de
análise incide sobre enunciados construídos com conectivos contrajuntivos, em especial, com o
mas adversativo, buscando elucidar o que eles revelam, por meio da transversalidade discursiva,
sobre o interdiscurso que realizam com o imaginário estabelecido, resgatar o dito anterior,
produzido antes, em outro lugar e independentemente, que atravessa perpendicularmente o
discurso produzido no eixo dêitico do aqui e agora e ter acesso a sustentáculos que comandam
as articulações efetuadas entre as partes de um enunciado. Neste trabalho, em especial, buscarse-á observar como enunciados contrajuntivos opõem partes de enunciado, quando a temática
se refere à corporalidade física do homem.
ABSTRACT
This study is dedicated to the observation of ordinary discourse (a type of discourse present
in the discursive order, in the reiteration of its practices, in the triviality, in the ephemerality,
and in the injunction for the maintenance of the game) by taking a specific point of view:
the analysis focuses on utterances constructed with contrajunctive connectives, in particular,
the adversative mas (but). The aims are to elucidate what these connectives, by means of
discursive transversality, reveal about the interdiscourse with the established imaginary;
to retrieve what was previously said, produced before, elsewhere and independently, which
perpendicularly crosses the discourse produced in the deictic axis of the here and now; and to
access the supporters that guide the joints between parts of an utterance. In particular, this
study aims at examining how contrajunctive statements oppose propositions when the topic
refers to the physical embodiment of man.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 97-124, jul./dez. 2013
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
PALAVRAS-CHAVE
Contrajunção. Corporalidade. Discurso Ordinário. Transversalidade.
KEYWORDS
Contrajunction. Embodiment. Ordinary Discourse. Transversality.
Se não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas
formas mais duras, sobre o que, então, se exerce? A
resposta dos teóricos é simples, quase evidente. Dir-se-ia
inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a
alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder
um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o
intelecto, a vontade, as disposições (FOUCAULT, 1999,
p. 18).
Introdução
Os enunciados com operadores contrajuntivos1 possuem dois blocos
de sentido: um é o tema e outro a negação da conclusão, se não houvesse
a contradição. Um enunciado contrajuntivo encadeia as partes A e B de
um enunciado, destinando-se uma delas a negar a conclusão que a outra
torna possível. Busca-se, pois, elucidar o que permite as conclusões de
A, negadas por B.
Frente à contrajunção, dada a parte A do dito e o suporte em crenças,
o interlocutor pode fazer inferências que, se não forem negadas, são
A noção de operadores contrajuntivos situa, quase que obrigatoriamente, a reflexão no terreno
da Pragmática. No entanto, aqui, apesar do recurso a esta categorização, não se quer colocar a
discussão neste lugar, mas no da Análise de Discurso (em sentido amplo), pois se entende que o
locutor pertence a uma conjuntura social e histórica, é clivado pelo inconsciente e é afetado por
formações discursivas que o antecedem.
1
98
José Carlos Cattelan
possíveis. Sendo dito A e havendo noções comuns, ele pode concluir
B, pois o encadeamento sobre C, à sombra, como evocação lateral,
indica conclusões possíveis. Entretanto, na contrajunção, dito A, há
uma conclusão que não pode ocupar o espaço de B, pois não é válida,
embora uma “verdade” seja ratificada. No limite, a parte encabeçada pelo
contrajuntivo cria uma ressalva tênue frente a uma crença dogmática.
1 O discurso ordinário: um estudo [do] trivial
Tem-se, assim, o ângulo pelo qual o objeto de estudo (corpo) será
focado. Além disso, este estudo se origina de uma pesquisa que toma
o Discurso Ordinário como tema. Para a sua definição, um dos apoios
vem da distinção feita por MAINGUENEAU (2008) entre tipos de
discurso, “relacionados a certos setores de atividades da sociedade:
publicitário, administrativo, político etc., com as subdivisões que
quisermos” (p. 16-17), e gêneros do discurso (grifos do autor), “entendidos
como dispositivos sócio-históricos de comunicação, como instituições
de palavras socialmente reconhecidas” (p. 17). Para o autor, “tipos e
gêneros são tomados em uma relação de reciprocidade” e “a noção de
tipo de discurso é heterogênea, trata-se de um princípio de agrupamento
de gêneros que pode corresponder a duas lógicas diferentes: a do copertencimento a um aparelho institucional e da dependência de um mesmo
posicionamento” (p.17) (grifos do autor), mas a distinção ajuda a situar
este tipo discursivo.
Quanto aos tipos de discurso, o autor os relaciona a setores de atividades
da sociedade, o que os localiza numa esfera envolta por compromissos
e cria tipificações limitadoras: o discurso jurídico, o publicitário, o
econômico e o pedagógico, relacionando-os à atividade social que os
produz, faz circular e os legitima: o co-pertencimento, aqui, refere-se a
uma instituição. Isso não ocorre com o discurso ordinário, pois ele não
tem uma instituição que o ancore, já que se serve de todas elas e as faz
suporte, rompendo sua rigidez monolítica, usando-as por um tempo e as
99
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
deixando a seguir. A sua unidade não vem de um suporte institucional,
mas do seu uso, à revelia de autorização. O discurso ordinário não é
jurídico, religioso ou político, mas se encontra entremeado aos corpora
que emanam deles. Ele aparece na voz do padre, sem ser religioso; na do
juiz, sem ser jurídico; na do candidato, sem ser político. Mas, apesar de
camaleônico, pode ser encontrado, também, nas conversas informais e
nos diálogos efêmeros.
O discurso ordinário também não possui um posicionamento, como
o discurso socialista, neoliberal, católico ou médico. Ele se alimenta de
vários, pois reafirma enunciados sobre temas, juízos e valores. A unidade
do discurso ordinário vem da ordem a que pertence e da sua contribuição
para reforçá-la.
O discurso ordinário não se baseia num aparelho institucional ou
num posicionamento, mas transita pelas instituições, usando-as. Sua
sobrevivência é parasitária e se vale de posicionamentos múltiplos; às
vezes: paradoxais. Sua unidade vem da ordem que o habita e que impede
que malhas sejam rompidas.
Se o que constitui um tipo discursivo é o fato de pertencer a
uma atividade social, o discurso ordinário não seria um tipo. A sua
unidade não provém de instituição social, mas da atitude renitente de
manutenção de posicionamentos. Embora pertença à atividade social,
não está circunscrito a uma. Ele habita esferas diferentes, indica crenças
de paragens distintas e se mescla aos discursos canônicos. Ele tira seu
sustento das esferas existentes.
A unidade do discurso ordinário (como concebido aqui) vem da
ratificação das crenças do imaginário2: das verdades, desejos, sonhos,
medos e tentações que perduram para além do gesto fundador. Ele
Apesar de os conceitos de imaginário e ideologia poderem (e deverem) ser tidos como distintos, a
aproximação entre eles não parece algo inusitado ou inconciliável, já que o primeiro, conforme
Castoriadis (1982), é o responsável pela criação da segunda. Dito de outro modo: tudo que é
ideológico tem uma origem calcada no imaginário, mas nem tudo que pertence ao imaginário
é necessariamente ideológico: é uma questão de escopo e primazia. Em face da delonga que a
discussão traria, dá-se o tema como estabelecido.
2
100
José Carlos Cattelan
atualiza vozes cuja autoria se perdeu. Insidiosas, elas fazem valer o que
afirmam, criando um hiato entre o que é e o que dizem ser. Ele reitera
a ordem, reafirma o “imutável”, impõe o “desejável” e instila “crenças”.
O discurso ordinário se vale de uma profusão de dispositivos sóciohistóricos e de palavras socialmente reconhecidas. Ele se acha no anúncio
que ratifica um valor social; no aviso que reafirma uma crença sobre a
higiene; no turno de fala que reitera a obrigação do professor de cumprir
o horário; na afirmação da criança que impõe que a mãe atenda a uma
obrigação; nas “sentenças” na parede da igreja dizendo como a criança
deve se comportar; na conversa de bar em que o que é ser homem é
reafirmado; na propaganda em que a imagem de mulher é confirmada;
na carta em que o modo de ser filho é estipulado. Os gêneros utilizados
podem ser qualquer um, pois ele não tem pudor de fazer uso de gêneros
“impróprios” para validar a ordem estatuída.
Mas, há um lugar peculiar para que ele seja observado: a réplica curta
do diálogo cotidiano3. Ele se imiscui em suas entranhas e faz com que
posicionamentos pareçam peculiares e deneguem a força anímica e o
imaginário que o assombram. Ele se abastece da ordem e da injunção e
as cadeias aprisionadoras, às vezes, não estão ajustadas para impedir que
penetre por suas frestas. O discurso ordinário não tem território, por
não ter uma unidade que o renda ou espaço ‘pré-delineado’ (p. 16) que
o circunde. Ele se revela pelo uso de espaços, tempos e lugares diversos.
Ele é o discurso da “lei”, da “norma” e da “prescrição”.
Parece mais adequado considerar o discurso ordinário como o
princípio de fixação do pensável, dizível e “sensível”. A unidade que
o constitui conjuga trivialidade e injunção, efemeridade e tradição,
fugacidade e memória, evanescência e durabilidade: a sua força vem
de outro lugar; se aparece, traz à memória um modo de ser aceito e
praticado: às vezes, pranteado.
3
Esta réplica ocorre em interações face a face, mas também em reproduções de nível secundário.
Mas, substancialmente, elas não são distintas, embora se deva reconhecer, é óbvio, que, no
segundo caso, há uma enunciação sobre a enunciação, uma voz sendo sobredeterminada por
outra, enquanto, no primeiro, a enunciação é oriunda de primeira instância.
101
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
Cabe considerar, ainda, a lição de MAINGUENEAU (2008) de
que a unidade hipotetizada impõe apresentar “hipóteses de trabalho
argumentadas” para justificar a associação de “diversos conjuntos
discursivos em uma mesma configuração sem, porém, reduzir sua
heteronímia” (p. 20), as quais se busca delinear, para ter um parâmetro de
concepção que selecione o que pertence ao (des)território constituído. Se
um enunciado como nossa cozinha está à sua disposição para uma visita pode
ser reunido a outro como ela é mulher, mas é competente, ou a outro como eu
não tenho dó. Eu falei, minha mãe falou, até a psicóloga falou ou a outro, ainda,
como o pote de mel quebrou, isto é possível, pois as suas características são
a trivialidade e a efemeridade que agem de modo imperativo e indiciam
a aceitação e a punibilidade da transgressão.
É do discurso ordinário o que pertence à ordem do discurso,
contribui para ratificá-la, ocorre em situações triviais4, pouco se vale de
pompa ritual e faz o jogo definido. Ele dita o que deve ser pensado,
dito e sentido: atende à ordem; sedimenta crenças e valores; ratifica o
imaginário; é efêmero, trivial e corriqueiro: um sopro que simula apatia;
nega sua importância: sua efemeridade revela sua durabilidade; e, por
fim, atende à estagnação.
2 Circunscrição da motivação do estudo
Vê-se, pois, que o discurso ordinário é escapadiço, pois não é um tipo
pautado numa instituição ou posicionamento. Deseja-se ter mostrado
que a sua unidade advém do compromisso com o imaginário e com a
efemeridade. Objeto de contornos instáveis, pode ser concebido como
um sistema de dispersão que aborda temas infindos e, ao fazê-lo, revela
o solo que o alimenta.
O discurso ordinário revela que o que o sustenta se encontra no
terreno do pressuposto, interdito ou não sabido e, se não for abordado,
continuará pertencendo ao terreno do desconhecido e não combatido.
4
De primeiro ou de segundo nível: produzidas ou reproduzidas.
102
José Carlos Cattelan
Ignorar o que ancora os enunciados é “ignorar a eficácia material do
imaginário. O imaginário [seria], então, como o equivalente do irreal
e reduzido a um efeito psicológico individual de natureza ‘poética’”
(PÊCHEUX, 1995, p. 119). Os alicerces da enunciação que criam
o dizível são valores, crenças, concepções e um solo de partilha que
revela a “cumplicidade entre o locutor e aquele a quem ele se dirige, como
condição de existência de um sentido” (p. 114) (grifo do autor).
As citações de PÊCHEUX mostram as razões para o discurso
ordinário ser estudado. A primeira se refere ao fato de que o imaginário,
às vezes, ligado à imaginação criativa, deveria ser concebido como
regulador da atividade social. As atitudes que se devem ter, com as
suas sanções, mais do que resultado de um conhecimento racional, que
revela o mundo em transparência, resultam da autoinstituição imaginária
da sociedade, que, tendo alcançado uma fase de cristalização, denega
a historicidade que a constitui. Criando efeitos de naturalização e de
ontologização, o imaginário anula a sua força motriz e pretende que o
movimento típico seja a estagnação: é esse paradoxo que o torna eficaz.
A segunda remete à questão de que a desistoricização demanda “uma
espécie de cumplicidade” entre os interlocutores e pede a pressuposição
de um solo de valores, mesmo que ele ocorra no terreno da inconsciência;
talvez, por isso, o imaginário tenha a eficácia esclerosadora que possui.
Age-se como se, embora não se saiba de onde vêm conceitos e noções,
tomando por natural o costume: “conduta inercial, habitual e induzida”
(THOMPSON, 1998, p. 14). Para o autor, as rodas do costume regulam os
homens, levando-os a “fazer o que sempre fizeram”. Para isto, é preciso
que os locutores, sem saber, partilhem um imaginário e contribuam para
que ele se reforce e dite o que pensar.
O discurso ordinário revela fragmentos do imaginário. Nele, trivial,
corriqueiro, espontâneo, “oral” e simples, o solo que o sustenta pode ser
detectado. Nele, encontram-se traços “de um inconsciente ao mesmo
tempo coletivo e individual, traço incorporado de uma história coletiva
103
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
e de uma história individual que impõe a todos os agentes, homens e
mulheres, seu sistema de pressupostos imperativos” (BOURDIEU, 1999,
p. 70). Um enunciado se ancora num conjunto de pressupostos, mas eles
ocorrem em silêncio, pois, já que estão “acordados”, não precisam ser
enunciados: participam do “conhecimento”. Concorda-se que é assim
porque sempre foi assim.
O estudo do discurso ordinário deve revelar bases imaginárias do
dizível, que CASTORIADIS (1982, p. 154) considera como “alguma
coisa ‘inventada’ – quer se trate de uma invenção ‘absoluta’, ou de um
deslizamento, de um deslocamento de sentido”. Para ele, os locutores se
pautam no imaginário, que produz a alienação, ou seja, “a autonomização
e a dominância do momento imaginário [...] (frente) à sociedade” (p.
159). O discurso ordinário revela traços desses processos e permite
achar “o passado vivido como presente, os fantasmas mais poderosos
do que os homens de carne e osso” (p. 160).
A razão para o discurso ordinário ser objeto de estudo se deve ao
fato de se alicerçar num imaginário limitador, que impõe as condições do
discurso e do silêncio, sendo preciso interrogá-lo sobre suas condições,
para que o não-dito seja desencavado. Há um modo de o imaginário que
impõe o discurso ser combatido: apreender os princípios que ratifica
e confirma nos enunciados triviais. Trata-se de tirar-lhe a autonomia,
revelar suas invenções, interrogá-lo sobre sua força, amenizar sua
eficácia, revelar a cumplicidade em que se ancora; trata-se de desarmálo, fazendo com que os mortos deixem de se apoderar dos vivos.
3 O imaginário em réplicas de relações dialógicas
Para BARTHES (2000, p. 46), “meu corpo é bem mais velho do
que eu, como se conservássemos sempre a idade dos medos sociais
com os quais o acaso da vida nos pôs em contato”; para BOURDIEU
(1998, p. 38 - grifos do autor), “tudo leva a crer que as instruções mais
104
José Carlos Cattelan
determinantes para a construção do habitus se transmitem sem passar
pela linguagem e pela consciência, através de sugestões inscritas nos
aspectos aparentemente mais insignificantes das coisas” e “as práticas da
existência comum são carregadas de injunções tão poderosas e tão difíceis
de revogar por serem silenciosas e insidiosas, insistentes e insinuantes”.
Assim, nas réplicas curtas de relações dialógicas, vozes imemoriais se imiscuem,
revelando que o locutor é porta-voz de enunciadores. Nos enunciados
curtos do cotidiano, de um modo transversal, estão vozes que atravessam
os séculos.
Este estudo busca analisar réplicas curtas de relações dialógicas
e apreender o que se pensa para dizer o que se diz. Entende-se, com
THOMPSON (1998, p. 14), que “Os homens professam, protestam,
comprometem-se, pronunciam grandes palavras, para depois fazerem
o que sempre fizeram. Como se fossem imagens mortas, instrumentos
movidos exclusivamente pelas rodas do costume”. Um exemplo é o
enunciado de um senhor que, ao apresentar um vizinho ao outro, o fez
afirmando “Este é o João: ele é professor, mas é um cara legal”. Grosso
modo, ele produziu dois enunciados, unidos pelo mas. Há, porém, outro
enunciado (professores não são legais) que aceita a contrajunção; sem
ele, o discurso não seria proferido.
Este enunciado ajuda a ilustrar o discurso ordinário, o gênero réplica
curta de relações dialógicas e o estudo que se pretende realizar: desvendar
parte do solo imaginário que ancora os discursos. Ele permite afirmar
que este solo imaginário perpassa os discursos, sem o locutor ter
consciência, pois, quando o professor indagou o que o outro pensava dos
professores, a resposta foi: “são necessários para que a população tenha
educação”. Contradição, falha de raciocínio, ingenuidade? A lacuna vem
do descompasso entre o que se sabe que se sabe e o que não se sabe que
se sabe, mas que, embora não se saiba, atua sobre o discurso.
Pensa-se que esse estudo se justifique, porque contribui para
perceber crenças que se tem sem saber que se é constituído por elas. Não
105
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
se pretende a desalienação, pois “o fato de conhecer-se como tal não
faz [o homem] sair de seu modo de ser, como dimensão do fazer socialhistórico. Mas pode permitir-lhe ser lúcido a respeito de si mesmo. O
que denomino elucidação é o trabalho pelo qual os homens tentam pensar
o que fazem e saber o que pensam” (CASTORIADIS, 1982, p. 14).
O que se busca é a elucidação de aspectos do imaginário que sustenta
a sociedade, a percepção de por que se pactua com eles e a quem tal
conivência beneficia.
A aposta é que se pode dar conta dos valores que se professam e optar
por mantê-los, mas, se as atitudes se pautarem neste grau de percepção,
ter-se-á algo de autonomia. Trazer à luz princípios discursivos contribui
para que o homem se torne mais lúcido, no sentido de saber o que lhe
foi dito. “Nada é sagrado; tudo pode ser dito” é o título de um livro de
VANEIGEM (2004), o que não significa que, tendo sido dito, deva ser
aceito; a premissa é a de que tudo deve ser dito para ser combatido.
Há, pois, um tipo discursivo que implica, para BAKHTIN (1992, p.
279), “uma esfera da atividade humana relativamente estabilizada”, com
organização, temática e composição mais ou menos fixa. Pode-se supor
que ele remete às interações face a face, em primeiro ou segundo grau.
Outra hipótese se refere ao discurso ordinário ter um solo comum de
crenças para que o silêncio se transforme em profusão de enunciados.
Outra, ainda, refere-se ao fato de afirmar que, entre a materialidade
do texto, o jogo dos significantes, a estrutura resultante e o imaginário
cultural, há uma relação intrínseca e constitutiva.
Mas a hipótese maior a ser considerada é que, nas atividades verbais
cotidianas, podem ser percebidas crenças que orientam os discursos sem
os envolvidos perceberem e, se não se percebe o imaginário que dita o
que se deve dizer, o discurso continuará pautado no que julga a verdade
e a forma adequada de enfocar o mundo. Os enunciados ordinários
levam a perceber as premissas de crença que os sustentam.
106
José Carlos Cattelan
Manipulação, mistificação, mitificação, estereótipo, arquétipo, ilusão,
falsa crença, ideologia, representação e conspiração são termos que a
linguagem cotidiana usa para o fenômeno. Cada um aponta para um
descompasso entre o que se diz ser e o que é. Não é neste prisma que
se pretende se colocar, já que estes conceitos supõem uma verdade ao
fundo, como se o locutor soubesse o que é e o que se espera que seja,
vivendo papéis que não se relacionam ao seu “verdadeiro” eu. Pretendese perceber quais são as forças que lhe permitem sair do silêncio. Trata-se
de estudar o discurso ordinário por meio do gênero “réplicas curtas de
relações dialógicas”, sob a ótica da Análise de Discurso, e compreendêlo quanto à sua sustentação imaginária, já que o homem não se iça do
pântano pelos próprios cabelos.
Os enunciados, ouvidos no que apagam porque tomam como
evidente, desencravam-se crenças que produzem compreensões e
negam a atividade que as gerou. Pode-se trazê-las à tona por meio da
análise dos dizeres das ruas, dos bares e dos lares; dos enunciados que
se proferem sobre os corpos, o tempo e o espaço; dos escritos que se
encontram em placas, banners...
4 Mas, e o Imaginário?
Em Semiologia Literária, no Colégio de França, BARTHES fez uma
afirmação programática que permite um projeto maciço de pesquisa.
O francês (1997, p. 14) dizia: “a língua como desempenho de toda
linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente:
fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. A
tese, levada à radicalidade na Aula, alerta que os recursos da língua se
explicam à luz dos grupos sociais e das concepções culturais que os
afetam.
Para ele, deve-se orientar o olhar para a maneira de produzir os
enunciados, pois o modo produz efeitos de sentido. Poder-se-ia, assim,
ter uma diretriz para um programa de pesquisa: por que se diz o que se diz
107
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
do modo que se diz? Tem-se, por meio da atividade, acesso à “cultura” de
um grupo social. É o que se objetiva aqui, em relação ao uso do mas,
quando ele articula enunciados.
Neste estudo, observa-se esse operador sob a ótica discursiva,
analisando-o quanto ao fato de unir enunciados contraditórios (que
contradição é essa, já que os enunciados articulados não parecem
contraditórios?) e à possibilidade de perceber se o seu uso permite
acesso à parte de um imaginário cultural.
4.1 Sobre a natureza contra-silogística do contrajuntivo
Um lugar que denuncia que a civilização ocidental é clássica e,
logo, lógica e (pretensamente) racional reside no funcionamento dos
operadores argumentativos. É possível perceber o silogismo que os
sustenta, mesmo que a articulação crie conexões de outra natureza.
Seja por meio do idealismo platônico ou do empirismo aristotélico, os
raciocínios revelam uma atitude “racional” que, às vezes, não partilha
da natureza “conceitual” que aparenta ter. Os preconceitos, as fofocas,
os chistes e as gafes mostram a busca da submissão do mundo a uma
ordem canônica. É o que ocorre com os adversativos: a ressalva que
fazem se pauta num silogismo implícito que evidencia um caso sobre o
qual a regra não se aplica, ratificando-a para os outros casos.
A contrajunção possui um princípio imaginário que faz com que,
afirmando A e sabendo C, o locutor profira B, para impedir que o
interlocutor, partícipe da comunidade, aplique o silogismo canônico,
evitando deduções que faria em outras situações. Uma reflexão
contrajuntiva se ancora num encadeamento silogístico, evitando que,
num caso, a norma social seja aplicada.
As partes de enunciados com operadores contrajuntivos não invalidam
regras gerais, mas as tornam ainda mais rígidas. Elas indiciam que, num
caso, a implicação “dedutiva” não deve ser feita, pois não se aplica ao
caso excedente. Os contrajuntivos têm uma natureza contrassilogística,
já que o silogismo que os ancora deve ser negado em, pelo menos, um
108
José Carlos Cattelan
caso. Isto revela um perfil paradoxal da contrajunção, já que, enquanto
nega a aplicação da norma, ela a ratifica em bem maior extensão.
Os enunciados contrajuntivos, dada a sua natureza paradoxal,
explicitam por que um caso contrassilogístico não ratifica um silogismo
normalizado. Observando em que um adversativo vai contra a crença
geral, acede-se a um princípio do imaginário. Aqui, pretende-se fazê-lo
sobre como a corporalidade é percebida: e exigida: este é objetivo específico
e geral deste estudo.
5 A contrajunção e o corpo anormal
Como os enunciados não definem o corpo normal (afirma-se o que
ele não deve ser apenas), mas se referem aos equívocos da corporalidade
indigna, o foco recairá sobre os preceitos que se referem ao corpo
indesejável, não sancionado pela coletividade.
Este estudo observa o discurso ordinário, que atende à ordem
discursiva, reitera práticas, é trivial, é efêmero e coopera com a injunção
à manutenção do jogo, fazendo-o sobre enunciados contrajuntivos,
em especial, com o mas adversativo, buscando elucidar o que revelam
sobre o interdiscurso com o imaginário, resgatar o saber que travessa
o discurso e ter acesso a suportes que organizam as articulações.
Em especial, observar-se-á como enunciados contrajuntivos opõem
partes de enunciado sobre o corpo. Os enunciados provêm de fontes
heterogêneas e o seu liame se dá pela pertença ao discurso ordinário e ao
tema em foco. Eles são “ordinários” por atenderem aos requisitos e não
por chegarem ao interlocutor direta ou indiretamente.
(A) Num episódio da série Two and a Half Man, Alan discute com o
irmão, Charlie, sobre como deve agir com a namorada, já que pretende
terminar o romance. Durante o diálogo, ocorreu a troca de turnos
transcrita a seguir:
(1)
– Ela tem alguma foto comprometedora?
– Há uma em que estou nu, mas de capa e máscara.
109
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
Alan se refere à nudez corporal que seria um problema (uma foto
comprometedora), caso viesse a ser pública e fosse relacionada ao portador
do corpo nu, o que indica que a nudez pode existir em espaços fechados,
mas não pode ser revelada, sob pena de comprometer quem a mostra por
“atentado violento ao pudor”. Ratificando o princípio de que a nudez é
penalizável (talvez por isso quem posa nu para revistas denomina essa
atividade de nu artístico), Alan revela que, na foto, ele veste uma máscara,
o que evitaria o problema, pois não seria relacionado à nudez exibida.
Alan ratifica o preceito de que, em público, o corpo deve estar
coberto (ditame vivido de modo radical por culturas islâmicas) e não
pode ser objeto de apreciação, estranhamento ou escândalo: pudor. A
falta de ocultação do que é íntimo se instala na zona do impuro, do
imoral e do pecaminoso, uma vez que toda forma de nudez remete à
sensualidade, ao erotismo e à sexualidade: tema de tabus e preconceitos.
(B) Na revista Caras, número 14, ano 16, edição 804, de 3 de abril de
2009, Nathalia Timberg, falando sobre a vida de artista e as opções que
essa escolha profissional teria imposto, disse:
(2)
Nunca quis ter filhos. Foi uma escolha minha. Mas tenho
uma família unida e amigos.
O foco incide sobre a obrigação de a mulher ser mãe e não poder
deixar de cumprir a “vocação” para a maternidade. A atriz indica uma
opção inaceitável, que a opção natural seria ter filhos e que não deveria
ter uma família unida e amigos, pois essas são sanções aplicáveis à mulher
que opta pela não maternidade.
O amparo de crenças dita que deveria, por ser mulher, ter filhos e
não o contrário. É este suporte que permite as relações que ela realiza,
fazendo-o como forma de poder negar que a implicação “lógica” valha
para si, pois, ao contrário de outras que optaram por não ter filhos, ela
tem uma família estruturada e amigos.
110
José Carlos Cattelan
Dado o modo como a locutora encadeia o enunciado, pode-se
afirmar que o preceito social sobre a mulher ter a obrigação de ser mãe é
ratificado, não se aplicando ao seu caso, o que justifica o contrajuntivo.
A mulher, cuja opção foi oposta, parece ser portadora de uma
incompletude que se deve ao fato de indicar alguma rebeldia, com isso,
deixando de gozar dos “benefícios” que as bem comportadas recebem
como prêmio.
(C.1) No corredor de uma universidade, em 17 de julho de 2008,
durante a troca de turnos de dois docentes, dentre outras coisas faladas,
o foco de atenção incidiu sobre o novo estagiário. Parte do diálogo
ocorrido aparece transcrita a seguir:
(3)
– A estagiária Priscila saiu. Entrou um moço no lugar dela.
– Eu vi!
– Você viu que ele é estrábico?
– Mas parece bem gente boa: ele é bem solícito.
Neste caso, o tema se refere a uma questão física, traços que o
corpo apresenta sem que o portador os tenha escolhido. O estrabismo
do estagiário é congênito, o que não o desculpa, pois se aplica uma
sanção sobre o defeito físico. A contrajunção se justifica, na medida
em que o diálogo toma a anormalidade física como problema que teria
consequências sobre as atitudes e os comportamentos: como se, entre
questões de ordem física e moral, houvesse uma relação lógica.
O encadeamento silogístico pode ser explicitado como segue: o
preceito geral de crença é pessoas estrábicas não são gente boa e nem são solícitas.
O estagiário apresenta estrabismo. Ele seria, pois, uma pessoa antipática.
Mas o silogismo é contradito, pois o estagiário foge às expectativas sobre
pessoas que têm um defeito físico.
Percebe-se como, amparando o locutor, existe um princípio de
crença: perfeccionista (seria um exagero chamá-lo de nazista?) que exige
que os corpos sejam perfeitos. Como “os olhos são os espelhos da alma”
111
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
e “quem que não sustenta o olhar do outro é falso”, parece justo inserir
o estagiário no caso das pessoas que não têm uma relação interpessoal
agradável.
(C.2) O diálogo a seguir ocorre entre Leda e Alceo, no filme The
Stones Merchant, à 1:26’00. A discussão incide sobre Leda ser amante de
Numiat Ulah, envolvido com o fundamentalismo e, em tese, ser um
terrorista e suicida. Alceo foi vítima de uma mina e perdeu as duas
pernas, tornando-se aleijado.
(4)
– Leda, olhe para mim, olhe para mim, por favor. Sou só meio
homem. Você está fugindo com um terrorista. O mercador
está envolvido com a Al Qaeda. Mas não posso impedir uma
mulher linda como você de fugir com outro homem.
– Não é verdade. Só diz isso porque está com ciúme e porque
não sabe lidar com a situação.
A impossibilidade de evitar que Leda fuja com Vicedomini se deve a
Alceo ser só meio homem e não poder impedi-la de fugir com um terrorista que
está envolvido com a Al Qaeda. A relação entre estes encadeamentos revela a
resignação frente à imperfeição física. A impotência adviria da condição
física que o faria renunciar à mulher, por não ter a força necessária para
retê-la nem a beleza física que poderia impedir uma mulher linda como [ela]
de fugir com outro homem. Alceo possui duas limitações para ser marido e
homem: tem um corpo mutilado sem a beleza necessária.
A oposição contrajuntiva se torna plausível, quando se percebe
que considera a fuga da normalidade física uma deficiência que impede
o homem de reter a esposa, por não possuir o padrão de beleza
“desejável”. A imperfeição física impediria atividades que demandam
força e impediria a realização afetiva.
A relação contrajuntiva de Alceo é uma entoação de resignação que
condescende com a norma. Ele assume uma impotência que deriva da
sua condição física e que está atrelada às duas rupturas em relação à
112
José Carlos Cattelan
“normalidade”. Se homens pela metade e feios não podem ter prazeres,
é previsível a aceitação passiva de Alceo. (C.3) Em 3 de agosto de 2009,
às 22’15, no canal 32 da Warner Bros, em The Mentalist, enquanto se
investigava a morte de um homem carbonizado, a mulher, à entrada de
Thommy, que tinha problemas psíquicos, proferiu o seguinte enunciado:
(5)
– Ele é deficiente, mas muito independente, graças a Deus.
Neste caso, aborda-se a deficiência psicológica ou cognitiva.
Thommy, que finge querer um pedaço de bolo, é o assassino que
simula ser deficiente, ter distúrbios de maturidade e receber tratamento
distintivo, em virtude da suposta debilidade que o marginaliza e o põe
sob cuidados especiais.
Como se percebe, o enunciado não atribui uma denominação ao
problema: Thommy é deficiente. Assume-se que a insuficiência é um
problema que repercute sobre o caráter. Pela falta de nome técnico, o
locutor se refere a toda e qualquer imperfeição que remeta a alguma
insuficiência frente ao padrão humano normal e espera que todos
atendam ao que esse padrão estabelece. Que o portador escolhesse
atender ao padrão não importa, quando se trata de discriminar os que
não se encaixam no modelo.
A deficiência de Thommy é a causa para ser dependente e a aplicação
do silogismo o coloca como precisando de tratamento, menosprezandose as possibilidades, se a relação se baseasse na confiança. O discurso
revela a arrogância da normalidade, que impõe a expectativa do mundo.
No episódio, o rapaz simula ser deficiente, para tramar assassinatos para
vingar um amigo.
Seja pelo isolamento dos imperfeitos fisicamente ou dos que portam
insuficiência psicológica, a normalidade fixa limites entre quem pode
viver em paz (em silêncio), embora sob vigilância, e aqueles que devem
ser regulados, discriminados, distinguidos, controlados e alertados sobre
a fuga à ordem. Narcisismo (e nazismo) é o que conduz as apreciações
113
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
valorativas, impondo que tudo se faça à imagem do mesmo, para evitar
a ameaça que a diferença representa para a fraternidade convencional.
(D) O enunciado a seguir ocorreu num almoço familiar, em 3 de
fevereiro de 2008, quando alguém falava sobre a viagem. Passando por
Santa Catarina, ele teria visitado um parente seu.
(6)
– Eu não vim direto. Parei em Chapecó. Tenho uma tia
lá. É a única tia que eu ainda tenho. Ela tem noventa e
um anos, tá véia, mas tá firme na parada!
O foco incide sobre a longevidade do corpo. A tia do locutor seria o
único parente que ainda visita, por causa da idade dela. Se um misto de
autoimagem positiva e de precaução de crítica se acha em jogo, deve-se
notar que a questão da velhice é um tema relevante. A contrajunção se
ancora num entimema que, frente às conclusões “óbvias”, não permite
afirmar que a mulher esteja fraca, doente ou debilitada. É por não aplicar os
traços “inerentes” à velhice à tia que o locutor usa o adversativo.
Eis o encadeamento contrajuntivo: pessoas que têm determinada idade
apresentam problemas; a tia é uma pessoa que tem noventa e um anos e, portanto,
está velha; o interlocutor sabe disso e pode ser levado à conclusão de que não está
“firme”; ele deve ser levado a saber que ela está bem de saúde e contraria o senso em
relação à velhice. O enunciado possui, pois, uma baliza que estabelece que
os corpos devem se manter saudáveis, sob pena de rejeição por indícios
pouco simpáticos.
Contrariamente a culturas em que a velhice significa sabedoria, na
ocidental, por ser capitalista (não só, pois a religião assombra com o
presságio da vida eterna), a velhice é descartável, por ser improdutiva e
indiciar sofrimento.
(E) Num jogo de vôlei do campeonato italiano, na ESPN, o
comentarista proferiu o enunciado transcrito a seguir e que se referia à
jogadora Simonetti:
114
José Carlos Cattelan
(7)
– Ela é a libero do time do Pésaro. Ela chega e toca em todas
as bolas. Ela é baixinha, mas é muito enjoada, viu!!!
O enunciado permite perceber que a jogadora realizava acima do
esperado a sua função, pois chegava e tocava em todas as bolas e era muito
enjoada, inibindo a construção de pontuação satisfatória. Nada contra o
desempenho, pois está fazendo o que é esperado.
Mas algo incomoda o narrador e o faz inferir que a atleta não poderia
ter esse desempenho. O enunciado permite entrever que Simonetti não
poderia ser líbero, não deveria chegar e tocar em todas as bolas e nem ser muito
enjoada, pois era baixinha. A surpresa se refere à contradição observada
entre o porte e o desempenho.
Considerando que enjoada tem o efeito de eficácia e isto se deve ao fato
de ser uma boa líbero e por chegar e tocar em todas as bolas, o encadeamento
da reflexão considera que jogadoras baixinhas não chegam e tocam em todas
as bolas, dada a sua inferioridade física; que Simonetti é uma jogadora
baixinha; e que não poderia ser enjoada e nem chegar a todas as bolas. Mas a
atleta feria a regra aplicável ao seu caso, sem invalidar o lastro de crença
geral.
Que uma estatura baixa possa gerar dificuldade para o menor, já
que o que se confronta é a conformação física, até se poderia conceder,
com ressalvas. Porém, à luz de comparações físicas, fazem-se derivas que
imbricam altura e desempenho intelectual, o que não deveria ocorrer,
pois, entre estatura e desenvoltura psicológica, não existe relação
implicativa.
(F) O enunciado a seguir pertence a Sara Sarada, de Uma Escolinha
Muito Louca, da Bandeirantes, apresentado por Sidney Magal. Ele foi
coletado no dia 1º de maio de 2009, às 20’55.
(8) – Pode perguntar, professor, porque eu sou loira, sou
gorda, mas sou inteligente.
115
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
Sara é uma pessoa cujo corpo se encaixa no padrão estético, com
contornos delineados e aparência saudável, sem gostar de si mesma. A
discussão gira em torno de a personagem possuir um corpo escultural,
mas achar que está fora de forma. O humor do enunciado se deveu ao
fato de se dizer gorda: este é o bordão. Que se dissesse gorda cumpriria
os fins do quadro, sem precisar enunciar o restante. Mas, dizendo o
que disse, abriu espaço para que efeitos de sentidos circulassem. O
problema é por que, entre ser loira e gorda e ser inteligente, há uma relação
contraditória.
A relação entre as propriedades não tem um princípio racional,
sendo a premissa geral falaciosa, pois pessoas loiras e gordas não são
limitadas cognitivamente; nem mais nem menos do que as que têm outra
cor de cabelo e um corpo que não seja gordo. O “defeito” deriva de um
corpo que não se encaixa nos padrões da normalidade física pregada e,
por isso, não seria desejável.
Sobre o silogismo se basear na obesidade, lembre-se que ela é
associada a problemas indesejáveis. Por um lado, ela toma como
referência o corpo de modelos que posam para revistas, desfilam ou
são mostradas em novelas. Exceto atores consagrados que não precisam
provar talento, a seleção de novos rostos e corpos parece se pautar
num rosto bonito e num corpo de acordo com os padrões televisivos.
Basta observar os rostos que ocupam espaços em novelas, programas
de auditório ou filmes exibidos. Por outro, cria-se uma imbricação entre
obesidade e morbidade: o corpo gordo é associado a um quadro propício
para distúrbios cardiovasculares, ameaça desagradável.
Deve-se notar que loiro e gordo não são causa de insuficiência
cognitiva. Por sobredeterminação, um problema físico sustenta a
afirmação de disfunções psicológicas. Loiros ou gordos estão fora e
são suspeitos. Que uma loira cative os olhares não parece pesar frente
às relações que se fazem sobre a cor do cabelo e a suposta pouca
intelectualidade. A resposta salvadora, talvez, seja a atribuição ao
voyeurismo: denunciação do desejo.
116
José Carlos Cattelan
(G) O diálogo a seguir acontece no filme A Liberdade é Azul (Three
Colors Blue) entre a síndica e Julie e incide sobre a moradora do prédio,
que é prostituta.
(9)
– Vim pedir que assine aqui.
– O que é isso?
– Todos já assinaram. Não queremos mulheres que recebem
homens aqui. A vizinha ...
– Lamento. Não me meto nisso.
– Mas é uma puta.
– Não é da minha conta.
Aqui, a contrajunção reitera a tese que comanda a “dedução”,
reportando-se ao caso que rompe com o “axioma” e fazendo decorrer a
sanção prevista para o uso do corpo pela puta. Neste caso, a contrajunção
apresenta o caso da vizinha, que, por ser prostituta, deve ser expulsa.
Contra a recusa de Julie de assinar o manifesto de expulsão, o mas
introduz o argumento para superar a reticência frente ao princípio que
prostituta fica à margem da sociedade, já que constitui um mau exemplo.
O fato de os moradores assinarem o documento revela que a
comunidade partilha uma grade de valores. Como se encontra frente
à recusa, a síndica se vale do mas para provoca a adesão, justificar a
aplicação do silogismo e negar a “omissão” de Julie. O mas encabeça
a premissa contradiz a atitude da moradora que não concorda com os
preceitos sociais sobre prostitutas.
O mote da discussão é a atividade da vizinha que faz um uso indigno
do corpo. Não estão em jogo marcas visíveis do corpo. O tema se refere
ao uso dele para uma destinação indigna. Que isto seja feito na periferia
das cidades ou que prostitutas existam não é tematizado: trata-se de
fazer com que não se misturem. Não se exige mais que os corpos sejam
marcados a ferro para ostentar o estigma do “pecado”: mas se produz
uma segregação que é mais violenta do que carne marcada por metal em
brasa.
117
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
Arma-se, pois, um palco que põe, de um lado, a crença de que as
pessoas fazem escolhas, não cabendo julgá-las, e, de outro, a visão de que
se deve aplicar a punição prevista a elas. Há dois imaginários em “diálogo”
e cada um, dado o princípio de crença que o sustenta, é responsável por
cadeias inferenciais distintas: um determina que a prostituta seja exilada;
o outro, que viva a vida escolhida. Pontos de vista distintos, conclusões
diferentes; princípios imaginários diferentes, atitudes concretas distintas.
E o costume em comum vence, pois Julie é a única a não assinar o
pedido de despejo e a não se submeter à norma.
(H) O enunciado a seguir foi proferido por um entrevistado sobre o
tema da infidelidade. A entrevista foi feita numa casa de swing e foi ao ar
no dia 5 de junho de 2009, às 23’30. Os casais se encontravam aos pares.
(10)
– Esta é a nossa primeira vez. É um pouco estranho e a gente
não está muito à vontade. Estamos um pouco nervosos e
preocupados. Mas estamos gostando.
Defende-se que as sensações alegadas se devem ao fato ocupar um
espaço impertinente, embora, mais do que estar num espaço inesperado,
a pouca usualidade da situação instaure medos. Seja pela localização
geográfica repreensível ou pela disposição para uma prática sexual
ilegítima, anseios e temores são confessados, embora não sejam fortes
para demover os curiosos. Eis duas experiências do corpo que são postas
sob suspeita: a colocação em lugar indevido e a disposição para a prática
sexual marginal.
Embora a primeira vez possa gerar os sentimentos mencionados,
entende-se que é a experiência a que se refere que se incumbe de
instaurar os ânimos descritos. Não é por ser iniciante, ou só por isso,
que o calouro sente o que diz, mas por estar em confronto com a
normalidade do mundo erótico. À luz de um imaginário que dita um
modo de viver e de experimentar a sexualidade, as sensações são óbvias.
Um palco inadequado e a disposição para viver uma sexualidade ilegítima
não poderiam causar bem estar.
118
José Carlos Cattelan
Mas conta, em maior grau, o imaginário que fixa que corpos em locais
suspeitos e em relações anormais se sintam estranhos e preocupados.
Dada a previsão social, nada mais óbvio do que a afirmação de não estar
gostando da experiência. Porém, contra a previsão social e a certeza de
uma conclusão, o locutor afirma se sentir bem. Não faltam discursos
que se pronunciam sobre o tema, seja moralista, jurídico, científico ou
religioso, levantando hipóteses sobre o desvio do “bom senso” e sobre a
sedução por algo desviante como relações extraconjugais. Que a atitude
seja imoral, pecaminosa, ilegal ou explicável a partir de uma visada
teórica não evita que seja tida como desviante, pois essas vozes serem
chamadas a se manifestar sobre o que está acontecendo é sintoma de
que o desvio está a caminho.
(I) O enunciado a seguir foi dito por um membro do grupo de apoio
da irmã de Rachel, Kim, no filme O casamento de Rachel (Rachel Getting
Married), quando falava sobre a sua adicção.
(11)
– Eu não me achava adicta. Levei um ano para admitir que era
adicta. E durante anos eu era só isso. Era uma adicta. É um
fato que temos que aceitar, como tantos outros, mas posso ser
isso e outras coisas.
O depoimento de Kim se refere ao fato de não admitir que é adicta
e de não aceitar que a dependência seria incontornável e, por fim, de
constatar que, apesar de ter que viver com o eterno controle sobre a
doença, poder aceitá-la de modo submisso ou combatê-la, podendo,
embora sendo adicta, não se submeter ao poderio da droga. O enunciado
se baseia em três princípios que são correntes em relação à adicção: o
dependente não reconhece a doença; depois, aceita-a e convive com o
problema; e, às vezes, é conduzido à superação: eis os grupos de apoio.
Seja porque o consumo de tóxicos gera problemas; porque o adicto,
em face de suas atitudes, é estigmatizado; ou porque ele associado a uma
pessoa fraca e doente, um conjunto de prismas é criado, fazendo-o, pela
119
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
pressão a que é submetido, agir para a ratificação da sua condição, ou
para a busca da superação e da escolha de outro caminho. A expectativa
das pessoas que têm relações com o adicto se dá no sentido da superação.
É neste diapasão que a personagem organiza o seu sistema de referência.
Verifica-se uma crença impregnada de impotência que fixa que o
homem pode aceder aos males de que padece, mas nada pode fazer sobre
a dependência química. Mais poderosa do que ele, a droga não admite
confronto. Frente a este quadro de aceitação passiva, a personagem se
posiciona no sentido de afirmar que é possível se render ao inimigo ou
buscar ser outras coisas.
Mas, contrariamente à posição determinista farmacológica (por que
não psiquiátrica?), a personagem, por meio da contrajunção, afirma que,
contra a aceitação da condição, buscará a ruptura por meio do grupo,
sugerindo a legitimação dessa perspectiva de compreensão, assumindo
um discurso favorável à existência dos grupos de autoajuda e levando o
espectador a concordar com uma visada discursiva: frente à fatalidade
mecânica, apresenta-se a defesa da solidariedade, do voluntarismo e do
livre arbítrio.
O discurso de Kim, como contradiscurso à posição fatalista, é
gerado por um prisma que desenha uma corporalidade indigna: o uso
dela para consumo de drogas. Mais do que constituir uma ressalva sobre
um princípio, uma voz é assumida contra a outra, o que é feito de forma
restrita. Mais do que resguardar um caso particular, a contrajunção se faz
ao sabor de uma injunção que ordena como o mundo deve ser. São dois
discursos, duas vozes, duas formações discursivas ou duas ideologias
que digladiam, supondo uma mais esclarecida que a outra. No bojo de
ambas, a contradição a um uso corporal, o que amplia ainda mais o leque
das proibições sobre o que não deve constituir a corporalidade.
120
José Carlos Cattelan
Algumas Ponderações
Seja porque traz sobre o corpo marcas inscritas que o tornam
diferente, seja porque faz um uso corporal não sancionado pelo grupo,
seja porque padece de males que o afastam do consenso, seja porque
não pode ocupar um espaço, seja porque apresenta uma compleição
física que excede o padrão, seja porque exibe mutilação, seja porque
determinadas diferenças podem ser tidas como deficiência, o mundo
da normalidade categoriza e define os limites entre os que podem e os
que não podem ser deixados em paz, entre aqueles que têm que ser
discriminados, porque não se encaixam no tipo dado como aceitável.
Trata-se a cada momento de fixar as linhas que demarcam os corpos
conformes e disformes, quer seja em termos de imagética física ou de
expectativa comportamental.
Os episódios analisados revelam que há um discurso que se produz
ao sabor da trivialidade, da efemeridade, da reiteração da ordem, da
injunção de visadas e da reiteração de práticas, que, apesar de pouco
memorizável, porque parece pouco importante, ratifica uma memória
que apresenta pouca consistência racional, mas constitui a criação de
um corpo indigno. Os enunciados trazidos para a discussão não têm
compromisso com a tentativa, inglória, de arrebanhar tudo o que é o
corpo indigno e não deveria trazer enquanto marca que o põe sob a
suspeição da sociedade. Eles buscam, menos do que isso, indicar um
lugar de observação e de possibilidade da efetiva aceitação da diferença,
por meio do aprendizado da tolerância.
De acordo com BOURDIEU (1999, p. 83), “o mal-estar, a timidez
e a vergonha são tanto mais fortes quanto maior a desproporção entre
o corpo socialmente exigido e a relação prática com o próprio corpo
imposta pelos olhares e as relações dos outros”. Considerando-se o que
afirma o autor, poder-se-ia, enganosamente, ser levado a pensar que se
pode estar numa das margens do rio: de um lado, aquela em que estão
arrebanhados os anormais, cuja travessia depende da redenção que pode
121
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
ou não acontecer, que é possível ou terá que ser vivida até o fim dos
tempos; do outro, aquela em que se encontram reunidos os que atendem
ao padrão estabelecido e podem ser deixados em paz e viver em silêncio
benéfico e apaziguador: ao abrigo do mundo. Porém, percebe-se que
a violência que se abate sobre os disformes também se aplica sobre os
conformes, pairando como ameaça sobre a possibilidade de cada um
deixar de pertencer à margem direita do rio, sendo conduzido para o
outro lado e passando a ser um desvio que deve ser discriminado. A
violência exercida sobre os diferentes não são distintas das que se abatem
sobre os iguais, embora o silêncio recompensador possa levar a pensar
que se está imune às ofensas, porque se está no modo certo de ser. Por
se fazer mais ruidosa sobre uns do que sobre outros, não significa que a
força da injunção social deixe de atingir a todos, cobrando continuamente
que os conformados continuem dentro do padrão e que os anormais se
redimam e se enquadrem. Como afirma FOUCAULT (1999, p. 25)5, “o
corpo está mergulhado num campo político; as relações de poder [é bom
lembrar, microfísicas] têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o
marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais”.
Seja por “sugestão mimética”, “injunções explícitas” (ou, sobretudo,
implícitas, dever-se-ia acrescentar, dada a observação do funcionamento
da contrajunção) ou “construção simbólica da visão do corpo biológico”,
produz-se um “habitus [...] diferenciado e diferenciador” (BOURDIEU,
1999, p. 70 - grifo do autor), que fixa sistemas de referência a partir dos
quais os corpos são julgados, sancionados e punidos, cabendo a cada
um dos partícipes da comunidade a vigília e a observação, para que as
transgressões sejam reconduzidas (se possível) ao bom senso. Que os
transgressores tenham marcada a ferro em brasa sobre a omoplata a letra
5
A referência brevíssima a Foucault não deve levar a concluir que se esteja pretendendo
adentrar ao campo epistemológico do autor ou se aproximar miradas teóricas “inconciliáveis”.
A referência ao autor é feita em virtude de vir dele um dos estudos mais sistemáticos sobre a
corporalidade.
122
José Carlos Cattelan
escarlate é uma prática que deixou de ser usada, mas isso não significa
que o olhar que separa e isola o aceitável do inaceitável, o elogiável do
repreensível, o digno do indigno deixe de imprimir estigmas sobre os que
se desviam, ocorra isto por meio de gestos voluntários ou incontroláveis.
Referências
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Ermantina Galvão Gomes Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 1992.
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Paulo: Editora Cultrix, 1997.
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Kühner). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
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(Trad. Guy Reynaud). 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
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Perspectiva, 1986.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. (Trad. Raquel Ramalhete). 19.ed.
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Editorial, 2008.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do
óbvio. (Trad. Eni Pulcinelli Orlandi et al.). 2.ed. Campinas, SP: Editora
da Unicamp, 1995.
123
O Corpo em Contradição: o Indigno e o Anormal
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre
a cultura popular tradicional. (Trad. Rosaura Eichemberg). 2.ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
VANEIGEM, Raoul. Nada é proibido, tudo pode ser dito: reflexões
sobre a liberdade de expressão. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
124
DENOMINAÇÃO DESCRITIVA: QUESTÕES DE
UNIDADE E SENTIDO
Cleber CONDE
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
RESUMO
Este artigo pretende iniciar uma discussão sobre as denominações descritivas como formas
híbridas de designação, tentando compreender, primeiramente sua unidade. Por exemplo:
como um segmento tal qual “Operação Cavalo de Tróia” pode se constituir como sentido
para um dado objeto na realidade, ou ainda, como esse item não lexicalizado se constitui em
uma unidade de sintagma nominal e, além disso, como essa unidade promove um sentido
não diretamente calculado em forma de predicado, mas que se comporta como se assim o fosse,
demonstrando que sua constituição unitária é complexa.
ABSTRACT
This article intends to start a discussion about descriptive denominations as hybrid ways
of designation, trying, at first, to comprehend its unit. For instance: how a segment such as
“Trojan Horse Operation” can constitute itself as meaning for a given object in reality, or
even, how this non lexicalized item constitutes itself as a noun phrase unit and, besides that,
how this unit promotes a not directly constructed meaning as a predicate, but that behaves as
if it were one, demonstrating that its unit constitution is complex.
PALAVRAS-CHAVE
Denominação. Denominação Descritiva. Designação. Sentido. Referente.
KEYWORDS
Descriptive Denominations. Denomination. Designation. Meaning. Referent.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 125-144, jul./dez. 2013
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
Introdução
Haveria alguma circunstância em que um nome próprio pudesse ser
descritivo em termos metalinguísticos? As teorias descritivistas1 dos nomes
próprios (Npr) enxergam que um nome pode ter uma descrição definida
ou um feixe de propriedades a ele associados. Curiosamente, alguns
sintagmas nominais (SN) como “Operação Medusa”, “Projeto Rondon”
e “Programa Minha casa Minha Vida” são exemplos de um modo muito
peculiar de designação que mescla um componente descritivo (operação,
projeto, programa) e um núcleo nominal que pode conter um Npr, um
outro nome comum (Nc), ou ainda um sintagma mais complexo (S).
Tais denominações funcionam de modo semelhante ao procedimento
de descrição definida, ao mesmo tempo em que singularizam um ente
por procedimento de denominação. Nosso objetivo, neste artigo, será
tão somente levantar alguns dados e hipóteses sobre esse modo especial
de denominação, observando dois aspectos a serem considerados: a)
há uma indivisibilidade do SN (aspecto semântico-sintático interno);
b) a denominação desse tipo de objeto individualiza-o para além
dos procedimentos de “etiquetagem”, dando-lhe uma identificação
especificamente codificada. Neste artigo, pretendemos lançar as bases
para a discussão sobre esse fenômeno semântico específico desse tipo de
denominações, reconhecendo desde início que há muito a se percorrer
sobre esses casos, uma vez que muitos contraexemplos ainda surgirão, pois
a lista de candidatos aos ditos itens de denominação descritiva é bastante
flexível, no entanto, ainda nos faltam subsídios para uma descrição com
maior propriedade. Apesar do risco da imprecisão, podemos dizer que
existe um grupo de aproximadamente vinte e dois NCs, ou seja, vinte
e duas formas de denominação diferentes2 que precisariam ser melhor
examinadas, o que pretendemos fazer em outra oportunidade.
1
Para uma breve abordagem, ver Costa 2009 ; abordagens mais detidas ver Brito (2002), Kleiber
(1981 e 1995).
2
Eis a lista: operação, projeto, programa, CPI, caso, chacina, massacre, missão, lei, batalha, guerra,
levante, revolta, revolução, golpe, ataque, atentado, movimento, coluna, plano, efeito, doutrina.
126
Cleber Conde
Para os objetivos aqui propostos, iremos retomar algumas noções
básicas sobre as relações de denominação e designação, bem como
a discussão entre nome próprio e descrição definida o que nos
permitirá, então, tentarmos construir algumas explicações sobre o
mecanismo específico de denominação que estamos abordando. A
princípio, acreditamos que essa forma de denominar se constitui de
um procedimento híbrido de descrição definida e de nome próprio, ao
que Kleiber (1985, pp. 4 e 7) chamou de denominação descritiva em
oposição à descrição denominativa.
1 A unidade da denominação descritiva
Primeiramente é imprescindível entendermos que a estrutura de uma
denominação descritiva é bastante diversificada em sua natureza sintática
e semântica, uma vez que o resultado dessa composição é sempre um SN
que pode ser constituído de estruturas preposicionais, como, por exemplo,
“Chacina da Candelária”, em que há a preposição (Prep) no primeiro
nódulo imediato ao primeiro item, ou também em nódulos subsequentes
como em “Operação Cavalo de Tróia”. Nesses dois exemplos, têm-se
características denominativas distintas enquanto objetos denominados e,
portanto, naturezas também diversas no que tange ao modo de designar
ou de denominar. Se compararmos outros exemplos, veremos que
alguns NCs exigem preposição (atentado, massacre, chacina), fato esse
que ainda pretendemos explicitar como mecanismo inerente a esse tipo
de designação, pois há neles uma preferência para uso em toponímias
e crononímias (por exemplo: Massacre da Candelária, Atentado de 11
de Setembro). O feito disso é que as preposições surgem no nódulo
mais próximo da “cabeça”, ou seja, próximoas do Nc. Em casos mais
complexos, há nomes como “Programa Minha Casa Minha Vida” que
possuem uma estrutura oracional completa, com a supressão do verbo
“ser”: Minha Casa É Minha Vida, ou ainda, Programa Universidade
127
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
[É] Para Todos. Observados esses aspectos mais complexos, podemos
isolar o nosso objeto de análise sem nos preocuparmos, neste momento,
com seu interior, sendo um procedimento metodológico para efeito
de nosso objetivo: entender a sua suposta unidade. Ressaltamos que
esse isolamento não significa que ignoremos sua constituição interna,
mas assumimos que ainda nos falta reflexão suficiente para tentarmos
qualquer entendimento plausível de seu funcionamento externo que
possa explicar com melhor propriedade. Por isso, as explorações
sintáticas dar-se-ão de modo bastante superficial para pensarmos na
unidade das denominações descritivas.
A fim de iniciarmos nossa discussão, precisamos também entender
que as denominações a serem exploradas possuem uma estrutura
argumental bastante fixa, em que se tem um nome comum (Nc) e um
espaço “argumental” (X): “Nc + X” (cf. Kleiber 1985). Em Nc podem
figurar: operação, projeto, programa, massacre, chacina, batalha, plano,
entre vários outros termos, podendo ainda existir casos como o da sigla
CPI (CPI do Narcotráfico), em que “Comissão Parlamentar de Inquérito”
já é uma lexia complexa (cf. as lexias complexas de Pottier 1974, apud
Kleiber, 1995: 266). A título de recorte do objeto e exemplificação, aternos-emos apenas aos casos de “operação”, “programa” e “projeto”.
Passemos então a alguns testes para entender o comportamento da
unidade das denominações descritivas:
(1)
a) A Operação Guilhotina prendeu dez acusados de
envolvimento com a milícia.
b) ? A Guilhotina prendeu dez acusados de envolvimento
com a milícia.
c) ?A Operação prendeu dez acusados de envolvimento
com a milícia.
(2)
a) Integrantes do Projeto Rondon visitaram cinco
municípios do Acre.
128
Cleber Conde
b) ?Integrantes do Rondon visitaram cinco municípios do
Acre.
c) ?Integrantes do Projeto visitaram cinco municípios do
Acre.
O que tornaria a frases correspondentes 1b, 1c, 2b e 2c no mínimo
incompletas? Como dissemos há pouco, os nomes descritivos, cuja
estrutura é “Nc + X”, estão constituídos de forma complexa e, pelo que
pudemos observar, tanto Nc quanto o X dessa estrutura podem figurar
isoladamente apenas em contextos anafóricos. Isso já nos dá pistas
de seu funcionamento integral, ou seja, seu primeiro uso em qualquer
enunciado deverá surgir integralmente, o que nos leva a inferir que o
sentido para o referente é a composição toda Nc + x. Tal relação também
lembra uma importante definição da natureza denominativa dos nomes.
Como lembra Kleiber (1984), a denominação é uma relação estável entre
signo e coisa, depende de uma aprendizagem, ao contrário das descrições
definidas que requerem sempre um contexto para sua atualização. Esse
argumento corrobora com a perspectiva de que as denominações
descritivas estão no rol do que pode ser um nome próprio ao mesmo
tempo em que contêm descrições definidas, logo, trata-se de um híbrido.
Os testes apontam para essa característica, o que nos leva a crer que as
denominações que ora observamos carregam essencialmente um pouco
de descrição definida e um quanto de rigidez do Npr. Tal afirmativa
pode parecer contraditória,; no entanto, uma forma híbrida como essa
revela uma terceira forma diferente da designação por descrição definida
e por denominação por Npr. Além disso, há que se levar em conta a
existência de uma estrutura de função por conta de sua categorização:
projeto, programa, operação (Nc(x))... como veremos adiante.
Pelos testes realizados acima, pudemos verificar que há um princípio
de unidade nesse tipo de relação denominativa, o que já cumpre parte de
nosso propósito aqui. No entanto, vamos para outros testes, modificando,
por exemplo, a constituição de X a fim de verificar seus resultados:
129
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
(3)
a)
b)
c)
d)
e)
Operação Cavalo de Tróia
Operação Cavalo
*Operação Cavalo de
(?) Operação de Tróia
Operação Tróia
Observamos que, ao se alterar um item componente de X, temse uma alteração que pode tornar o SN à agramaticalidade ou levar a
um outro referente, como por exemplo 3.b e 3.e. Esse teste nos leva
a mais uma constatação de unicidade e nos impele a afirmar que o
SN nominal composto por Nc + X só vale para cada entidade que
referencia, característica inerente ao nome próprio. Há, então, unidade
e integralidade necessárias para que a denominação descritiva se efetive
como tal. Enfim, a estrutura Nc + X não é uma simples lexicalização,
mas se constitui em uma forma própria de denominação e mantém sua
unidade.
Como lembra Matushansky (2009: 574), há uma composição
complexa dos nomes e das posições argumentais das quais eles
desfrutam. No entanto, devemos observar que, para além da posição
argumental que um SN ocupa em uma oração, parece existir dentro de
sintagmas como “projeto+X” também uma posição argumental. De que
natureza seria então essa posição argumental? Como o item “projeto”
pode ser um predicado e qual o resultado desse tipo de construção, em
termos semânticos? Até o momento, os testes realizados demonstraram
uma relação de função que pode ser explicitada especificamente em
termos de uma denominação que estabelece a individualidade do item
denominado, ao mesmo tempo em que lhe confere a pertença a um
grupo. Vimos claramente que a força de um Nc por outro, de outro
modo designa, consequentemente, outro objeto, como veremos mais
adiante. Concluímos, então, que o SN composto de Nc + X possui uma
unidade bastante estável, comprovada pelos testes em que provocamos
130
Cleber Conde
a descontinuidade dos componentes em X,. Além disso, pelas suas
peculiaridades, aferimos que os itens desmembrados também podem
fazer referência ao objeto em situações anafóricas. Desse modo, podemos
concluir que a unidade toda serve de sentido para um referente,; no
entanto, essa unidade possui internamente características semânticas
mais complexas como veremos no tópico a seguir.
1.1 Estatuto semântico das designações descritivas e seu
hibridismo
Kleiber (1984, p. 77) afirma que a “linguagem tem por vocação
primeira falar sobre o real” (não entramos no mérito de discutir o que seja
o “real”). Assim, as relações de designação e representação constituem
a principal característica do signo linguístico: não basta estar no lugar de
algo, mas é necessário representar esse algo, funcionar como referencial
de algo.
(...) a função de designação, de representação constitui a
característica principal do signo linguístico. A relação de
denominação é uma parte constitutiva dessa dimensão
referencial. Ela se inscreve no processo que coloca em
relação os signos com as coisas e se posiciona ao lado
das relações referenciais: referir a, remeter a, designar,
representar, denotar etc. respondem ao esquema X
(signo) ↔ x (coisa).
O autor lembra que a designação tem um estatuto geral, enquanto a
denominação não,. Esta, por sua vez, é uma forma específica de designar,
de modo que toda denominação seja uma designação, mas nem toda
designação seja uma denominação. A exterioridade em relação sobre o
“real”, ou pelo menos, o mundo percebido é ponto chave na perspectiva
131
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
de que a língua tem como princípio falar do que não é linguagem,
aquilo que tomamos genericamente como “extralinguístico3”. Segundo
Kleiber, o ato de denominação prévio tem por consequência a aquisição
de uma competência referencial, aquela de utilizar X por x. A associação
referencial X ↔ x é uma associação memorizada, logo codificada. Isso
acarreta que um signo X, de uma relação de denominação, apenas pode
ser igualmente uma unidade codificada, simples (por exemplo: cão,
Bernardo) ou complexa, como, por exemplo, um complexo industrial, sinal
de trânsito, lembrando Pottier já citado acima. As expressões complexas
como pequeno cão, comer rápido, ou cão que eu vi no campo etc. não constituem
conjuntos lexicais codificados, nem podem ser considerados como
nomes e por isso estão excluídos da relação de denominação. A relação
de designação autoriza, por sua vez, tais expressões complexas, pois ela
não pressupõe qualquer codificação anterior, portanto, podemos ter
uma relação de descrição definida como modo de designação.
Fica bastante clara a distinção entre denominação e designação, como
visto acima,; no entanto, é preciso revisitar a questão do nome próprio
e da descrição definida, tentando observar qual é o desafio ao se tentar
compreender como as nomeações aqui exemplificadas se comportam.
A estrutura Nc + X, ao mesmo tempo em que satisfaz a verdade
de uma proposição, também descreve que tipo de evento está sendo
descrito/referenciado. De modo que os mais de vinte Ncs que listamos
especializam algum tipo, ou melhor, servem de predicadores específicos
de uma função de conjunto: operação {ações investigativas, repressoras,
de impacto, militares...}; projeto {ação institucional de prazo variável};
programa {conjunto de ações institucionais}. Tal especialidade pode ser
demonstrada por meio de alguns testes:
(4)
a) A Operação Mãos Limpas é a ação que promoveu...
b) O Projeto Mãos Limpas é a iniciativa que promoveu...
c) O Programa Mãos Limpas é a iniciativa que promoveu...
3
Recomendamos a leitura de Kleiber (1997).
132
Cleber Conde
O teste demonstra que há uma determinada especificação para
os Ncs e que a sua mudança diante de um X leva a outra natureza de
objeto referenciado, o que será explicado logo a seguir. Ressalta-se,
ainda, que o exemplo 4 só se sustenta pela decorrente pressuposição
existencial provocada pelo princípio da Máxiama de Qualidade de
Grice4, pois há documentação que atesta a existência de uma “Operação
Mãos Limpas”, mas não se sabe se existiram “Projeto Mãos Limpas”
e “Programa Mãos Limpas”. O fato é que enunciar os Ncs pressupõe
uma categorização de X e pressupõe existencialmente algo com um
nome, por exemplo:, “Operação Mafagafos”, muito embora essa ação
jamais tenha sido documentada. Em todo caso, sendo factual ou não o
sentido se estabelece do mesmo modo como um nome próprio entre
interlocutores que acatem ou que extrapolam a Máxima de Qualidade,;
nesse caso, ter sentido e não ter referência não rompe com as regras de
uso dessas denominações, logo seria irrelevante colocar em X um Npr
mítico, inventado, ou qualquer outro Nc que não tivesse correspondente
na realidade que não romperia com a regra de uso. Muito embora
assumamos que a língua fale de um “real”, podemos lidar com um
real modalizado e pressuposto pelo dizer, de modo que nomes com
sentido mas sem referência (no sentido Fregeano) sejam aceitáveis
em denominações como as analisadas. O que poderia ser o caso em
“Operação Mafagafos” ou no caso da pura descrição definida, tomando
um exemplo clássico: “a estrela mais distante da Terra”.
Muito embora, percebamos que haja uma nítida diferença entre
Operação Guilhotina e ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais
corruptos, sendo a primeira uma forma que nos leva a tomá-la por um
Npr e a segunda forma um nítido exemplo de descrição definida, as
coisas não se apresentam de modo tão simples para o fenômeno em tela.
Obviamente que a composição “Operação + X” possui, em virtude de
seu Nc, um caráter descritivo, sem, no entanto, ser uma descrição, pois
se utilizássemos apenas “x” (Guilhotina) esse nome não iria satisfazer
4
Levinson (2007)
133
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
a verdade tanto em “a” e “b”, como demonstram seus pares “c” e “d”
respectivamente:
(5)
a) A Operação Guilhotina é a ação investigativa para apurar
denúncias sobre policiais corruptos.
b) A ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais
corruptos se chama “Operação Guilhotina”.
c) (?) A Guilhotina é ação investigativa para apurar denúncias
sobre policiais corruptos.
d) (?) A ação investigativa para apurar denúncias sobre policiais
corruptos se chama “Guilhotina”.
Curiosamente em 5.d, o SN “ação investigativa” toma feições de
Nc: Ação Investigativa Guilhotina, mas tal exemplo não se encontra no
uso, inclusive porque parece haver uma restrição para que o Nc seja
ocupado por mais de um item. Os dados levantados até o momento têm
corroborado para essa suposição, muito embora necessitemos de mais
testes e análises. Essa restrição de mais de um item para a posição Nc
pode ser também observada em estruturas como “Programa Nacional
de Alimentação Escolar” (sigla PNAE). Esse tipo de nome parece não
fazer parte do rol dos fenômenos que estamos analisando. Façamos
alguns testes:
(6)
a)
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)
garante a alimentação a alunos de toda a educação básica
matriculados em escolas públicas e filantrópicas.
b) O Programa de Alimentação Escolar (PNAE) garante a
alimentação...
c) *O Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) garante a
alimentação...
134
Cleber Conde
d)
e)
f)
(?) O Alimentação Escolar (PNAE) garante a alimentação...
O Programa de Alimentação Escolar (PNAE) garante a
alimentação...
O Programa Alimentação Escolar (PNAE) garante a
alimentação...
Os testes podem nos levar a considerar duas novas estruturas
i.
ii.
Nc + Prep + X,
Nc + SAdj + Prep + X
Sobre essas duas possibilidades gostaríamos de observar alguns
aspectos. Primeiramente, a manipulação no exemplo 6.c parece
demonstrar que o segmento “Programa Nacional de Alimentação
Escolar” não tem o mesmo comportamento de um exemplo como o
“Programa Minha Casa Minha Vida”:
(6)
O Minha Casa Minha Vida é um programa do governo federal
que tem transformado o sonho da casa própria em realidade
para muitas famílias brasileiras. Em geral, o Programa acontece
em parceria com estados, municípios, empresas e entidades
sem fins lucrativos. (Caixa Econômica Federal, 2012)
O exemplo acima demonstra que há um comportamento diferente
entre uma denominação descritivas de Nc + X e uma em que a Prep
ou o SAdj surgem entre o Nc e o X. Tal fato ainda deverá ser estudado
de modo mais detido em outro momento, o que nos levará a outras
considerações a respeito de denominações com os Ncs “massacre”,
“atentado” etc. que parecem exigir preposição.
Um segundo aspecto a ser destacado sobre essas estruturas e que
também merecerá um olhar mais detido é o fato de que em Nc + SAdj
há uma necessidade sempre da presença da preposição logo em seguida.
135
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
Admitimos que essas observações parecem óbvias se considerarmos as
estruturas formativas dos SNs em português,; contudo, tais designadores
não têm comportamento de simples descrição definida, ou seja, muito
embora se constituam como SNs reconhecíveis como descrição definida,
referencialmente não funcionam como tal por possuírem também aspecto
de denominação. Tal assunto ainda requer um pouco mais de olhar, o que
nos faz mais uma vez adiar o assunto para outra oportunidade, restando
somente as estruturas Nc + X como apresentadas no início deste texto.
Feitas essas observações, passemos a pensar sobre o hibridismo das
estruturas Nc + X. Kleiber (1994: 67) relembra que a questão do Npr
já fora objeto de debate, e uma possível solução para o debate seria a
agrupação posicionamentos sob três perspectivas:
a) solução do nome próprio como descrição do
referente (G. Frege, B. Russel, P.F. Strawson, J. Serale,
etc., através da versão forte, e P. Geach, E. Buyssens, F.
Kiefer, M. Gross, etc, pela versão fraca);
b) solução do nome próprio vazia de sentido (S. Mill),
que, por um designador rígido, remete a seu referente
graças à uma ligação casual (S. Kripk, M. Devitt, F.
Récanati, 1983);
c) solução do nome próprio como predicado de
denominação (ser chamado Npr) em favor da qual
argumentamos fortemente em 1981 (Kleiber, 1981).
No entanto, tal divisão não implica que uma esteja certa e outras
não; também não impede que algumas soluções sejam compartilhadas
entre si por diferentes pontos de vista, e ainda também nada impede
que surjam outras soluções a serem cogitadas. Se tentarmos aplicar
cada uma dessas soluções ao problema dos nomes próprios de ações
institucionais, teríamos que tipo de resposta? Eis um desafio. Isso é
claro, se chegarmos à solução da primeira questão: seriam as designações
136
Cleber Conde
de ações institucionais nomes próprios, descrições definidas ou algo de
natureza híbrida?
Dentre as várias questões que ainda estão por serem discutidas,
precisamos entender como esse procedimento de denominação
funciona, não a partir da busca das suas origens, nem pela busca do
“legislador”5, mas sim da sua constituição na relação mundo-linguagem.
A título de problematização, tomemos um exemplo de nomeação bem
diferente do nosso objeto de pesquisa, a nomeação de obras de arte,
em especial pinturas. Ao estudar como se dá o processo de nomeação
de quadros, Bosredon (1997) relata estar diante de um objeto cuja cisão
entre linguístico e o não-linguístico fica bastante clara mas não menos
complexa.
Proponho considerar essa atividade [nomeação de
quadros] como uma atividade fortemente controlada,
em um campo ao mesmo tempo individual e coletivo;
individual porque os sujeitos são compelidos a certas
escolhas, coletivo porque essas escolhas são fortemente
condicionadas pelo uso e o controle trazido por este é,
em grande parte, inconsciente. (p. 7)
E mais adiante ele continua
Denominei signalética esses campos específicos de
identificação conforme os domínios dos objetos
identificados que permitem pensar que não se nomeia
uma tela como se intitula um livro, um filme ou uma
fotografia artística, que se não nomeia o que por si já
é nominável, ou o que é do já intitulável, segundo,
precisamente, uma signalética de domínio sempre
linguisticamente marcado. A existência de signaléticas
5
Lembrando do conceito constante em Crátilo (Platão 1988).
137
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
obriga, por consequência, que se considere que toda
operação de identificação, procedendo por chamamento
ou denominação, não pode ser analisada sem que se leve
em conta a especificidade dos domínios físico-culturais
aos quais ela se aplica.
A partir da definição de signalética, como poderíamos interpretar a
“signalética” das operações institucionais? Em que consistiria o “domínio
sempre linguisticamente” marcado de tais objetos? Se colocados em
paralelo, uma operação policial parece não ter relação alguma com uma
pintura, uma vez que esta tem uma determinada existência, talvez mais
“estática” (obra de arte), enquanto que a outra tem uma existência cuja
natureza e a dinâmica são altamente complexas (relações sociais; jurídicas;
tem começo, meio e fim, não sendo um evento, mas eivada de eventos
etc.). No entanto, a obra de arte e a operação policial têm em comum
a existência de um designador para cada um, cujos procedimentos
constitutivos são deveras distintos, permitindo-nos supor que estejam
sob regras de denominação distintas. Em todo caso, poderíamos dizer
que existem diferentes signaléticas operando sobre os mais diversos
referentes, por exemplo, uma sigla capaz de tomar o papel de Nc,
como no caso de CPI, que acaba por ser mais um argumento a favor da
singularidade da posição Nc, ou seja, ao invés de “Comissão Parlamentar
de Inquérito do Mensalão” se tem “CPI do Mensalão”. Muito embora a
formação de siglas e acrônimos sejam formas bastante comuns nos usos
linguísticos, o que nos chama a atenção é justamente o fato de ela ocupar
o Nc, reforçando a ideia de um item apenas nessa posição.
Provavelmente, o conceito de signalética explicar o fato da
possibilidade de uma lista Nc e o de que os itens da lista tenham se
cristalizado em determinados usos, por exemplo, há maior aplicação
do termo “operação” para referenciar ações militares, policiais e
fiscalizatórias, como mencionamos anteriormente, levando por vezes a
um efeito prototípico (Kleiber, 1994) desses conceitos.
138
Cleber Conde
Observamos até aqui que as denominações descritivas têm uma
unidade baseada na estrutura Nc + X, que apesar de X ser uma espécie
de núcleo, a categoria apresentada por Nc pressupõe uma pertença, mas
ainda resta-nos observar que tipo de relação denominativa existe nesse
SN considerando a realização de testes a partir de verbos e perífrases de
denominação (cf. os exemplos de Kleiber, 1984) com chamar-se, denominarse, nomear, ter o nome de:
(7)
Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de OPERAÇÃO
GUILHOTINA a operação que prendeu dez acusados de
envolvimento com a milícia.
(8)
Chama-se /denomina-se/nomeia-se/tem o nome de GUILHOTINA
a OPERAÇÃO que prendeu dez acusados de envolvimento
com a milícia.
(9)
Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de OPERAÇÃO
GUILHOTINA o que prendeu dez acusados de envolvimento
com a milícia.
(10) *Chama-se/denomina-se/nomeia-se/tem o nome de GUILHOTINA
o que prendeu dez acusados de envolvimento com a milícia.
(11) ‒ Como se chama /se denomina /se nomeia operação que prendeu
dez suspeitos de envolvimento com a milícia?
‒ OPERAÇÃO GUILHOTINA / GUILHOTINA.
(12) ‒ Como se chama /se denomina /se nomeia o que prendeu dez
suspeitos de envolvimento com a milícia?
‒ OPERAÇÃO GUILHOTINA / *GUILHOTINA.
(13) ‒ O que tem nome de GUILHOTINA?/ O que se chama /se
denomina /se nomeia GUILHOTINA?
139
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
‒ A OPERAÇÃO que prendeu dez suspeitos de
envolvimento com a milícia.
b) ‒ Um mecanismo utilizado para execução de condenados
a)
Vimos, através dos exemplos acima, que não é possível enunciar
a uma denominação descritiva sem que o Nc, em algum momento,
também seja enunciado e possa dar conta da referência, o que aponta
para duas possíveis interpretações do fenômeno:
(i)
(ii)
em denominações descritivas o Nc jamais surgirá sozinho;
apesar de X ser o núcleo da denominação, conforme sua
natureza referencial diversa (objetos, nomes próprios, frases
nominais), não pode ser empregado de forma não-anafórica,
sem prejuízo de sua referência (cf. ex.: 11 e 12).
A relação entre Nc e X tem um caráter semântico-referencial bastante
específico, convencionado pela natureza determinante da função Nc,
por exemplo:
(14)
a) OPERAÇÃO GUILHOTINA é o nome da operação
que...
b) PROJETO GUILHOTINA é o nome do projeto que...
c) PROGRAMA GUILHOTINA é o nome do programa
que...
Não é possível empregar as denominações descritivas sem que se
utilize então o seu Nc, seja em frases afirmativas ou interrogativas e, se
alterarmos o Nc, temos uma alteração na referência ao referente. Poderse-ia questionar a validade desse argumento, dizendo que as supostas
denominações descritivas sejam formas assemelhadas a:
140
Cleber Conde
(15) O PROFESSOR JOÃO esteve aqui.
(16) O PROFESSOR que se chama JOÃO esteve aqui.
(17) JOÃO esteve aqui.
Na verdade, em 15 não temos um denominação descritivas, mas
uma descrição denominativa que funciona diferentemente da sua oposta.
Segundo Kleiber (1985, p. 8), a utilização referencial das descrições
denominativas se inscreve entre dois pólos designativos que são o Npr
e as descrições definidas, mas como tais servem para uma identificação
unívoca, e que funciona melhor sobre operação com Npr corriqueiros e
têm uma liberdade situacional bastante grande como em;:
(18) O ZAGUEIRO João esteve aqui.
(19) O SINDICALISTA João esteve aqui.
Se considerarmos que “zagueiro” e “sindicalista” também sejam
atributos de JOÃO, além de “professor”, temos o mesmo referente
em situações sociais distintas. Por outro lado, não há como atribuir ao
mesmo objeto OPERAÇÃO GUILHOTINA mais de um atributo,
e se alteramos algum item da denominação descritiva isso alterará a
referência, como vimos nos exemplos em 4 e 14.
Se observarmos os exemplos a seguir, veremos que demonstram não
ser possível que uma denominação descritiva possa figurar nos mesmos
moldes de um Npr convencional,; tomando os exemplos a seguir em
paralelo com 17, 18 e 19.
(20) A OPERAÇÃO GUILHOTINA terminou.
(21) A OPERAÇÃO que se chama GUILHOTINA terminou.
141
Denominação Descritiva: Questões de Unidade e Sentido
(22) *A GUILHOTINA terminou.
(23) (?) Guilhotina é uma operação da Policia Federal.
Os exemplos mais uma vez corroboraram com a indicação também
da diferença entre denominação descritiva e descrição denominativa.
Finalmente, tais exemplos e peculiaridades revelam a produtividade
em termos de identificação por denominação de alguns grupos de objetos,
ou seja, ao invés de identificarmos tais objetos por números, como
acontece em diferentes instituições, passamos da mera sequência para
uma individualização do ente que permite, dentre várias possibilidades
a identificação unívoca. Além disso, há produção de sentidos possíveis
de serem observadas em outras perspectivas como a da pragmática e da
análise do discurso.
Conclusão
Como todas as demais conclusões, esta só dará conta de encerrar este
texto, pois o tema ainda está repleto de dúvidas, e carente de melhores
explicitações mais acuradas do funcionamento das denominações
descritivas. Apesar de suas lacunas, este breve artigo nos permitiu
visualizar um aspecto do fenômeno denominacional constituinte dos
designativos Nc + X, levando-nos a algumas conclusões provisórias: a)
que tais estruturas são unidade de denominação e, portanto, não são
lexias complexas; b) que tais unidades possuem um funcionamento
especializado e codificado (operação para ações policiais, militares;
programa para ações institucionais relativamente a longo prazo; projeto
ações de prazo menor, ou mais pontuais); c) que essas estruturas ainda
estão sujeitas a outras especificações ou ainda classificações (Nc + X;
Nc + Prep + X; Nc + SAdj + X); d) e que tais formas são denominações
142
Cleber Conde
descritivas em oposição às descrições denominativas. Como tal, as denominações
descritivas são itens híbridos cujo funcionamento e constituição apontam
para características de procedimentos designativos por denominação
por nome próprio e identificação por descrição definida.
Enfim, a melhor compreensão desses fenômenos há de nos permitir
um melhor entendimento de procedimentos de referenciação capazes de
aclarar a sempre tensa, polêmica e enigmáticas relação mundo-linguagem.
Referências
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144
DOSSIÊ ABRALIN EM CENA
MATO GROSSO 2012
PARA UMA ANÁLISE DE PROCESSOS TEXTUALINTERATIVOS
Lúcia Regiane LOPES-DAMASIO
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
RESUMO
Este trabalho tem como objeto de estudo o item assim, em contextos de parêntese, paráfrase,
correção, repetição e hesitação, e objetiva analisar, sob a perspectiva teórica textual-interativa,
o funcionamento desse itemnesses processos de construção textual. O corpusdeste trabalho é
constituído por textos do período correspondente aos séculos XVIII ao XXI. Os resultados
revelam um apontamento de relações entre o funcionamento do item nesses contextos e seu
processo de mudança.
ABSTRACT
The present paperwork has the item assim as its object of study, in contexts of parenthesis,
paraphrase, correction, repetition and hesitation, and it aims at analyzing, under the textualinteractive theoretical perspective, the functioning of this item in these processes of textual
construction. The corpus of this research is constituted of texts, dating from the eighteenth to
the twenty-first centuries. The results show an indication between the functioning of the item
in these contexts and its process of change.
PALAVRAS-CHAVE
Correção. Hesitação. Paráfrase. Parênteses. Repetição.
KEYWORDS
Correction. Hesitation. Paraphrase. Parenthesis. Repetition.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 147-187, jul./dez. 2013
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Introdução
Analiso, neste artigo, o funcionamento de assim em contextos de
parentetização, paráfrase, correção, repetição e hesitação, de acordo com a
perspectiva textual-interativa, com o intuito de estabelecer uma relação
entre o funcionamento desse item, no contexto desses processos de
constituição e de processamento textual, e o de seus usos fora desses
domínios funcionais. O objetivo desta investigação é confirmar a
hipótese de existência de uma relação entre o funcionamento do item,
no que tange a essas estratégias textual-interativas, e seu processo de
GR (TRAUGOTT, 1982, 2003; TRAUGOTT; KÖNIG, 1991, entre
outros), de modo a sustentar uma nova possibilidade de abordagem dos
contextos favorecedores desse tipo de mudança.
Os corpora deste trabalho organizam-se em:
(A) diacrônicos: carta e editorial jornalístico. O corpus de carta dividese em: (i) Administração Privada: cartas de aldeamento de índios
(séculos XVIII e XIX); (ii) Documentos Pessoais: cartas de pessoas
relacionadas com: (a) José Bonifácio (primeira metade do
século XIX); (b) Washington Luiz (final do século XIX); (c)
Prof. Fidelino de Figueiredo (final do século XIX e século XX);
e (iii)Cartas de leitores e redatores de jornais (séculos XIX e XX). O
corpus de editorial compõe-se por textos do jornal O Estado de S.
Paulo desde a sua fundação, quando se intitulava A Província de
S. Paulo,até 1964; e
(B) sincrônicos, compostos por inquéritos do Banco de dados
IBORUNA (amostras de fala do Noroeste Paulista).
O presente artigo está organizado em três seções, além desta
introdução e das conclusões. Na seção 1, apresento os fundamentos
teóricos do estudo. Na seção 2, focalizo o item assim, discorrendo sobre
seus diferentes valores funcionais em dados sincrônicos do Português.
Tendo em vista essa multifuncionalidade, em 3, analiso o item em
segmentos tópicos do corpus que configuram contextos de parêntese,
148
Lúcia Regiane Lopes Damasio
paráfrase, correção, repetição e hesitação, para, a partir dos resultados dessa
análise, estabelecer, na seção 4, as relações entre o funcionamento de
assim, nesses processos constitutivos do texto, e os seus usosem dados
sincrônicos.
1 A perspectiva textual-interativa
Baseada em uma concepção pragmática de texto e de linguagem, a
perspectiva teórica textual-interativa elege uma visão de linguagem como
“forma de ação e de interação social” (JUBRAN, 1996a, 1996b, 1999,
2006a).Segundo essa ótica pragmática, aspectos textuais e interacionais
encontram-se imbricados: o interacional está inscrito no texto, tornandose inerente a ele.
A partir desses pressupostos, o texto, como objeto de estudo, é
considerado um processo dinâmico que congrega e sinaliza, ao mesmo
tempo, processos de formulação textual e interacional, que não resultam
em dicotomias de funções textuais e interativas, mas na conjugação delas,
de acordo com umprincípio de gradiência (JUBRAN, 2004, 2006a), segundo
o qual não há funções excludentes ou dicotômicas: toda função textual
deve ter, em contrapartida, algum traço interacional, sendo o inverso
também verdadeiro.
No âmbito dessa definição de texto, o tópico discursivo é adotadocomo
unidade analítica, definindo-se a partir das propriedades de centração
e organicidade. A primeira abrange os traços de: (i) concernência,relação
de interdependência semântica entre os enunciados de um segmento
textual, pela qual se dá a integração desses enunciados em um conjunto
específico de referentes; (ii) relevância,proeminência desse conjunto
como decorrência da posição focal assumida por seus elementos; e (iii)
pontualização,localização do conjunto focal em momento específico do
texto. Aorganicidade manifesta-se por relações de interdependência tópica
(JUBRAN, 2006a).
149
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Nessa perspectiva, o processo de parentetização é definido como uma
inserção, no segmento tópico (ST), capaz de interferir em sua centração
e, por isso, ser identificado como desvio tópico. Juntamente com as marcas
de natureza formal, esse desvio tópico torna-se básico para a identificação
e delimitação do segmento parentético. Segundo Jubran (2006b, p.39),
a operacionalização do primeiro critério identificador do parêntese, o
desvio tópico, depende do reconhecimento da sua natureza relacional, uma
vez que o fato parentético só pode ser reconhecido em relação à unidade
de análise – tópico discursivo –, dentro da qual ocorre. A definição do
segmento parentético apóia-se analiticamente no princípio da centração
tópica (cf. JUBRAN, 2006b), para que se possa verificar a suspensão
tópica efetuada por ele. Por sua vez, o segundo critério, relativo às
marcas formais de inserção parentética, pode ser observado no segmento
parentético e no segmento-contexto. Essas marcas, de natureza textual
e prosódica, englobam aspectos como a ausência de conectores, pausas
nos limites do parêntese e/ou aceleração de velocidade e rebaixamento
de tessitura.
Aparáfrase(P) corresponde a um enunciado linguístico que reformula,
na sequência textual, um enunciado anterior, matriz (M), mantendo com
ele uma relação de equivalência semântica determinada em graus. Segundo
FUCHS (1994, p. 129 apud HILGERT, 2006) essa relação deve ser
entendida como parentesco semântico, não manifestável como equivalência
absoluta, mas como equivalências maiores ou menores. GÜLICH e
KOTSCHI (1983 apud HILGERT, 2006) estabelecem ainda o critério
da predicação de identidade, observada quando a construção de dois
enunciados permite que sejam compreendidos como semanticamente
semelhantes. Assim, a relação parafrástica é dinamicamente concebida
e determinada pelas relações semânticas locais, i. é, construídas no e
pelo jogo da interpretação (HILGERT, 2006), podendo ser focalizada
nos níveis: (a) semântico, abordando os deslocamentos de sentido que
ocorrem na passagem da M à P; (b) formal, destacando as reformulações,
150
Lúcia Regiane Lopes Damasio
lexicais e sintáticas, que podem ocorrer nessa passagem; e (c) funcional, a
partir do apontamento das funções gerais e específicas da P.
Definida por FÁVERO, ANDRADE e AQUINO (2006, p. 258)
como “um enunciado linguístico que reformula um anterior, considerado
‘errado’ aos olhos de um dos interlocutores”, a correção constitui, por
sua vez, um processo de formulação retrospectiva. A diferença entre a
correção e a paráfrase – que, como destaquei, também tem a função de
assegurar a intercompreensão – está no tipo de relação semântica que
liga os enunciados reformulador e fonte: enquanto na P há uma relação
de equivalência semântica, na correção, essa relação é de contraste; na
correção os interlocutores pretendem apagar o enunciado fonte, por
considerá-lo inadequado, substituindo-o pelo enunciado reformulador,
na P, aquele será M da implementação de movimentos semânticos, que
determinam novos sentidos e, assim, a progressão textual.
O processo de repetição é definido por MARCUSCHI (2006b, p. 221)
como “a reprodução de segmentos textuais idênticos ou semelhantes,
duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”.
A primeira entrada do segmento tópico, que opera como base para a
produção de outro segmento, construído à sua semelhança/identidade,
é também designada como matriz e condiciona a repetição nos níveis
fonológico, morfológico, sintático, lexical, semântico ou pragmático,
de modo que essa repetição não é caracterizada pelo autor como um
espelhamento automático, já que expressa algo novo, em relação a um
ou mais desses níveis.
A hesitação,estudada pelo mesmo autor (2006a), é definida como
fenômeno específico da oralidade, caracterizador de uma atividade
de processamento, cuja função é ganhar tempo para o planejamento/
verbalização do texto. É condicionada por pressões situacionais de
diversas ordens a que estão sujeitos os interlocutores e constitui
rupturas evidentes, na linearidade material da fala, como manifestação
de atividades discursivas que introduzem, no próprio discurso, seu
151
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
processo de formulação prospectiva. As hesitações materializam-se por
meio de fenômenos prosódicos, expressões, itens funcionais e lexicais,
marcadores discursivos s e fragmentos lexicais.
2 A multifuncionalidade sincrônica de assim
Em LOPES-DAMASIO (2011a, 2011b), foram depreendidos, na
perspectiva sincrônica, sete padrões de uso de assim, desempenhando,
respectivamente, as funções de: Complemento Adverbial; Adjunto a SV;
Predicativo do Sujeito; Modificador de SN; Modificador de SAdj. com
função intensificadora; Sinalizador de Mudança da Instância Discursiva;
e Marcador Discursivo (MD).
Os usos do MDassim englobam aqueles considerados MD por
excelência, com interpretação pragmática, e também os considerados
menos prototípicos, que, embora apresentem traços contextuais dessa
categoria, ainda mantêm características do advérbio modal. Esse
padrão subdivide-se em quatro subfunções, a saber:MD assim Indicador
de Conteúdo Expressivo;Atenuador;Metadiscursivo eSinalizador de
Construção de Quadro Mental.
Há, ainda, os usos em que o item, sozinho, ou na constituição
de locuções, desempenha função juntiva. Nesse âmbito, foram
depreendidos outros quatro padrões: P assim Q (conclusivo); P assim como
Q (comparativo, aditivo e conformativo); Assim que Q, P (temporal); e P,
mesmo assim Q (contrastivo).
Para o estabelecimento das relações funcionais objetivadas, neste
artigo, chamo a atenção para as funções do item enquanto MD e para
uma de suas funções juntivas, conforme Quadro 1, abaixo, que apresenta
a identificação desses padrões de uso, sua funcionalidade, características
semântico-formais e uma ocorrência exemplificativa.
152
Lúcia Regiane Lopes Damasio
QUADRO 1: A multifuncionalidade sincrônica de assim
Padrões
Função
Características
semântico-formais
Exemplos
(1) Constituinte
facultativo;
P(1)
MD assim
Indicador
de conteúdo
expressivo
(2) Sinaliza porções
textuais;
(3) Indica a
expressividade
do conteúdo
acrescentado;
... coloca... éh duas colheres de...
ACHOCOLATADO... uma lata de
LEITE CONDENSADO e uma
colher... de manteiga e faz... só que
assim eu gosto de co/ aí eu gosto
de comê(r) ele mole... (AC-056/
RP407)
(4) Sofre esvaziamento
da acepção modal;
P(2)
P(3)
MD assim
Sinalizador de
metadiscursividade
MD assim
Atenuador
(1) Constituinte
facultativo;
(2) Sinaliza porções
textuais;
(3) Sinaliza a
modalidade
explicitadora do
metadiscurso;
(4) Sofre esvaziamento
da acepção modal
(1) Constituinte
facultativo;
(2) Marcador de
atividade cognitiva;
(3) Marcador de
incerteza/
imprecisão;
(4) Sofre esvaziamento
da acepção modal
mesmo quando
localizado em
construções.
153
[...]onde tinha:: umas meninas
assimcomo (posso) dizê(r)? FÁceisné?
((risos))... (AC-049/NR003)
o D. acabô(u) nem fican(d)o com
ninguém porque ele nem curtiu as
meni::na achô(u) as meninas meio
feia assim... e num quis ficá(r) com
ninguém [...] (AC-049/NR006)
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
P(4)
MD assim
Sinalizador de
construção de
quadro mental
P assim Q
P(5)
(1P x 2Q)
(1) Constituinte
facultativo;
(2) Sinaliza porções
textuais;
(3) Atua em contextos
descritivos como
dêitico inferível.
num esqueço aquele céu a/ aquele::
MAR aZUL... cristaLINO com
aqueles pe(i)xinho assim... foi
muito bonito...(AC-051/DE108)
(1) articula ST ou
oração;
(2) co-ocorrência de
outras conjunções;
(3) posição inicial/
medial de Q;
(4) impossibilidade de
incidência adverbial
sobre toda a
construção;
(5) possibilidade de
apresentação de
formas verbais
reduzidas;
(6) impossibilidade de
inversão da ordem;
(7) relação de
independência entre
P e Q;
(8) não
compartilhamento
de estruturas;
(9) relação de sentido:
causa-consequência.
[Doc.: (ah)] aí... beleza falei –
“num vô(u) mais” – aí... melhorei...
aí na hora de í(r) embora esse
amigo ofereceu carona falei... –
“ótimo né?” – eu chego mais cedo
em casaassimdá tempo de corrê(r) no
cursinho Alternativo antes da cinco e vê
se eu pego ela lá...(AC-085/NE527)
Tendo em vista a multifuncionalidade sincrônica de assim, e, mais
especificamente, os usos destacadas acima, parto para a análise desse
item em contextos dos processos constitutivos do texto aqui focalizados.
154
Lúcia Regiane Lopes Damasio
3 A funcionalidade de assim em contexto de processos
textual-interativos
3.1 Assim e o processo de parentetização
Em todas as ocorrências, assim é responsável pelo caráter remissivo
do parêntese no qual se insere. Dessa forma, isoladamente, sua função
restringe-se a esse aspecto fórico. No entanto, em dados extraídos de
textos diacrônicos, o item é sempre parte integrante de E2:
(1)
A Facçaõ ainda alardea manobra as eleiçoẽs da ma- | neira
a mais escandaloza, e em todas as partes: chama soldados |
para diligencias de S.A.: (assim ao menos se diz) trama por tudo
a | intriga: ameaça só assassinios aos que pensa nas Villas
A=Agentes da reacçaô: mil outras coizas faz, entretanto que
os cha- | mados bons da Capital nem mais falhaõ, eté por isso
já se fazem | suspeitos.(BNXIX-11/04)
Em (1), a inserção parentética é indicada pelo sinal característico dessa
estratégia,na escrita. O parêntese localiza-se em contexto de listagem,
em que,assim, em E2,1 é responsável pela instauração de um movimento:
(i) anafórico, que sinaliza toda a porção textual configuradorado contexto
tópico em que ocorre a inserção – E1 como um todo; e (ii) catafórico, já
que a continuidade da listagem, em E3, não permite limitar o alcance
desse parêntese apenas à porção tópica que lhe é anterior.
E2 integra a classe dos parênteses com foco no locutor, apontando para
o seu descomprometimento com a veracidade do conteúdo comunicado.
A função textual-interativa desse parêntese é atribuir pontos de vista sobre o
assunto a fontes não identificadastextualmente, i. é, o escrevente procura se
eximir da responsabilidade do que é dito, a partir da fundamentação desse
1
Cf. DELOMIER e MOREL (1986 apud JUBRAN, 2006b, p. 317), o trecho tópico em que o
parêntese é observado pode ser segmentado em: E1, correspondente ao segmento anterior ao
parêntese, E2, correspondente ao parêntese em si e E3, correspondente ao segmento posterior
ao parêntese.
155
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
conteúdo no “ouvir dizer”, num processo de modalização epistêmica via
estratégia de parentetização.
Dessa forma, a função interativa desse parêntese soma-se à sua
função textual, já que incide na significação proposicional estabelecida
a partir do momento de sua inserção no tópico. Em outras palavras,
as informações transmitidas pelo escrevente adquirem nova perspectiva
proposicional com o parêntese agindo na construção do ST.
No tópico (2), assimencerra o segmento parentético. Também aqui
há um sinal gráfico, indicando o estatuto textual-interativo de E2:
(2)
Depois sera precizo aproporSsão do Povodo Povo, e
daneceSsidade Crear mais Capitaens, e mesmo Crear
Companhias deMeleciannos, taõ neceSsarios para Civilizar
o Povo egradualmente Sugeitar aSubordinacaõ aquelles
homens creados / posso dizer assim / sem Ley nem  Religiaõ.
(AIXVIII-28/64)
Assim escopa E3 como um todo em segmento parentético que
apresenta foco na elaboração tópica, relacionado à formulação linguística do
tópico, uma vez que focaliza a própria construção do texto, apontando
para a caracterização da forma como aquelles homens eram creados. O
escrevente, por meio da parentetização, imprime, no texto, a necessidade
interativa de indicar para seu destinatário que a caracterização realizada
em E3 é resultado de uma construção figurativa intrínseca ao contexto.
O parêntese mostra, na materialidade do texto, essa avaliação em curso.
Na inserção parentética, em (3), assim, encerrando o parêntese,incide
sobre o verbo sinto, conforme sua função de advérbio modal, e realiza
uma sinalização catafórica, escopando E3 como um todo:
(3)
Não sei qual é a sua concepção da Vida. Eu te-  nho a minha,
que aliás não é minha, que bebi na literatura ori-  ental, e
156
Lúcia Regiane Lopes Damasio
que (sinto assim) foi a única felicidade que tive nes-  ta minha
atribulada existência. É o resultado do estudo da mi-  nha vida
inteira. (FFXX-56b/121)
Esse segmento parentético também integra a classe de parênteses
com foco no locutor, mas, nesse caso, sinaliza informações proposicionais
que estão diretamente ligadas à manifestação de sentimentos do escrevente.
Portanto, não se associa à modalização das colocações tópicas. A função
desse parêntese é evidenciar, para o destinatário, o caráter extremamente
subjetivodo conteúdo tópico.
A dificuldade em separar a atitude do escrevente da avaliação que
ele faz do conteúdo do tópico que constrói fundamenta a sugestão de
que esse tipo de parêntese represente uma classe não-discreta, em que,
concomitantemente, ocorre a focalização da manifestação atitudinal do
locutor e do conteúdo tópico, sendo que a primeira ocorre em consequência da
natureza da segunda. Assim, a função interativa do parêntese (sinalização
do alto grau de subjetividade do conteúdo tópico) está associada à sua
função textual, já que é a natureza desse conteúdo que torna necessária
tal sinalização.
Nas ocorrências (4) e (5), assim integra o segmento parentético
sinalizado, graficamente, por vírgulas e permite paráfrase por digamos
assim:
(4)
A extensão d’este artigo seria razão para que com elle não
entretivessemos nossos Leitores, se sua importancia, se seu
objecto, se o enxame de verdades, e de vistas novas que encerra,
nôs não forçassem, por assim dizêl-o, a isso.(LRXIX-430/77)
(5)
Durante mais de um mês, o antigo secre-tario do PCB foi, por
assimdizer, o “homem do dia”. [...] (OESPXX-1958/176)
157
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Em (4), assim não sinaliza E1 como um todo, mas, especificamente,
um item desse enunciado, forçassem, anterior à inserção parentética. Em
(5),sinaliza o SN o homem do dia, mas, agora, cataforicamente.
Ao empregar o verbo e o SN referidos, o escrevente apresenta, via
parêntese, uma avaliação voltada para essa formulação. Essa avaliação, que
pode realizar-se pré ou pós o segmento sinalizado, denota a preocupação
do escrevente em expressar a pertinência desses empregos. Assim,
caracterizam-se parênteses com foco na elaboração tópica, relacionados à
formulação linguística do tópico, cuja função textual-interativa é indicarpara o
interlocutor que determinado emprego lexical é expressivo.
O tópico (6) traz novo parêntese voltado para a elaboração tópica:
(6)
És um felisardo; sem solicitares cou-  sa alguma, vaes te
deixando levar  - assim com [s]eus ares de Napo- | leão no Egyptopara o ponto  almejado e p[corroído] [c]aminhos da ma-xima
conven[iencia]. Seguir a oppor-  tunidade é u[ma] [g]rande
cousa ..... (CPXIX-16/24)
Assim inaugura o parêntese e realiza sinalização anafórica e catafórica.
A anafórica indica o trecho vaes te deixando levar de E1 e focaliza uma
informação de natureza modal, conformea função adverbial de assim,
enquanto a catafórica aponta para o interior do parêntese, em E2, e
explicita a informação modal relevante para E1. Trata-se de um parêntese
com foco na elaboração tópica, voltado para o conteúdo tópico, cuja função é
esclarecer informação apresentada em E1.
Esse tipo de parêntese representa um caso considerado limite, cujo
reconhecimento do segmento como parentético depende das suas marcas
formais, dado que sua outra propriedade identificadora, a do desvio
tópico, encontra-se atenuada.2Assim, o aspecto decisivo para a análise
Nas ocorrências do IBORUNA, a análise desses casos baseia-se na observação de marcas
de natureza prosódica. Nessa direção, o escopo de sinalização de assim, em contextos de
parênteses com foco no conteúdo tópico, só pode ser definido a partir de uma análise prosódica
eentoacional,cf. os pressupostos de NESPOR e VOGEL (1986) e de TENANI (2002) e
FERNANDES (2007). A esse respeito ver LOPES-DAMASIO (2009).
2
158
Lúcia Regiane Lopes Damasio
desse segmento como parentético são os sinais formais que delimitam
E2. Nesses casos, a função textual está em evidência, já que o conteúdo
da inserção parentética encontra-se no limiar da centração tópica, o que
não quer dizer que a interacional seja suprimida. Nessa ocorrência, ela
pode ser constatada na criação de uma maneira informal de promover o
esclarecimento, a partir da introjeção de dados ilustrativos no tópico, o
que garante a eficácia do ato comunicativo.
No tópico (7), assim integra uma oração condicional, realizando
sinalização retrospectiva e escopando E1 como um todo. E1 desempenha
função metadiscursiva voltada para a sinalização da estrutura textual:
(7)
Aqui fico por ora (se assim qui- | zerem) dando no em tanto
os para- | bem ao Senhor Doutor Getulio, pelos elo- | gios,
(se os acceitar) que lhe tece | aquelle homem, declarando
porém, | que muito me glorio, em têl-o por | meu inimigo,
[...] (LRXIX-451/80)
Ao sinalizar E1, o parêntese materializa a presença do(s)
destinatário(s) no texto, justificando sua classificação como parêntese com
foco no interlocutor. Sua função é instaurar a conivência com o interlocutor, uma
vez que o escrevente deposita no(s) seu(s) destinatário(s) a exigência de
ter que finalizar sua carta, comprovada pela configuração condicional do
parêntese.
Embora acentuadamente interacional, esse parêntese tem sua
implicação textual: indica o processo de construção do tópico ao
desviar seu conteúdo “para, nesse intervalo, colocar em proeminência
informações sobre o papel discursivo do interlocutor” (JUBRAN,
2006b, p. 345).
Nas ocorrências extraídas do IBORUNA, assimocupa a posição préparêntese, sinalizando segmento de E1 e o próprio enunciado parentético.
A maior parte das ocorrências(89,47%) apresenta foco na elaboração tópica,
voltada para o conteúdo tópico, com as funções deesclarecer eexemplificar.
159
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Na função de esclarecer, observam-se dois parâmetros de
comportamento:
(i) correspondente àquele constatado em dados diacrônicos, cf. (6),
em que assim sinaliza, anaforicamente, um segmento de E1, focalizando
informação de natureza modal, e, cataforicamente, o próprio E2,
sinalizando o esclarecimento da informação modal relevante para o bom
entendimento de E1:
(8)
é:: ele chegô(u) já logo foi brincan(d)o né? quando viu que eu
era de::... Rio Preto... ele já foi brincan(d)o dizen(d)o que ia...
que ia me/ me:: me ferrá(r) assimem tema de brincade(i)ra... um
tipo cablocão né?... um cara bacana pra chuchu... né?... (AC147/NE1078)
(ii) ocorrências em que, embora o esquema fórico do item continue
o mesmo, deixa de ser observado o esclarecimento de uma informação
modal. De fato, apenas focaliza-se à esquerda do parêntese, em E1,
uma informação que necessita, segundo avaliação do falante, de um
esclarecimento para o bom entendimento do tópico, cf. (10):
(9)
era assim... era dos MEUS pesadelos... sabe?... a impressão é
que se você che/ caísse ali... você ia... SUMÍ(r) e... e nunca
mais ia... ia... então isso na cabeça da gen::te assimcriança... era
uma fantasia vivê(r) naquele espaço... (AC-150/DE1187)
A função deexemplificar,observada naocorrência (10), também não
está relacionada à informação de caráter modal. Nesse caso, em relação
a E1, a sinalização catafórica aponta para o parêntese, em E2, onde há a
exemplificação, a partir de uma comparação:
(10) é como se fosse um prédio de quatro andares... só assim a
pedra... e você pode í(r) subin(d)o escalan(d)o ela assimé como
se fosse os/ um tobogã... e a onda é TÃO forte... que ela bate e ela
sobe aqui [...] (AC-087/DE668)
160
Lúcia Regiane Lopes Damasio
Diferentemente das ocorrências analisadas, principalmente na
perspectiva diacrônica,3nos dados extraídos do IBORUNA, por meio
do parêntese, o falante assevera o que diz e compromete-se com sua
palavra. Em (11), há uma avaliação epistêmica em relação à veracidade
de E1, apontando para a asseveração, a partir da evidencialidade do que
é aí afirmado:
(11) tinha uma cobra l/ lá::... que comeu um boi... só que assim a
gente SAbe? que cobra come boi [normal]beleza... assim já
ouvi mesmo já vi:: fatos jornalísticos... só que ela num/ só que aí
a cobra come boi mas a cobra::… maceta o boi [né?] quebra
tudo os ossos e maceta ele dentro dela... só que meu avô fala
que boi ficô(u) inte::(i)ro e o boi até mugia dentro da cobra [...]
(AC-054/NR303)
Algumas observações são pertinentes enquanto resultados dessa
análise:
(i) Em relação à localização: assim apresenta distribuição equilibrada
em todas as possibilidades de localização (antes do parêntese [pré-par],
no início do parêntese, encerrando-o e em outras posições, denominadas
de posições de integração).
(ii) Em relação à sinalização: assim pode realizar sinalização de natureza:
(a) anafórica, escopando E1 como um todo;
(b) anafórica, escopando segmento de E1;
(c) catafórica, escopando E3 como um todo;
(d) catafórica, escopando segmento de E3;
(e) catafórica, escopando o enunciado parentético E2 e E3 como
um todo;
(f) anafórico-catafórica, escopando E1 como um todo e E3 como
um todo;
Em que esse tipo de parêntese estava associado à modalização epistêmica (cf. (01)) ou a
sentimentos do escrevente em relação ambígua com o conteúdo tópico (cf. (03)).
3
161
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
(g)
(h)
anafórico-catafórica, escopando o enunciado parentético E2 e
E3 como um todo;
anafórico-catafórica, escopando segmento de E1 e o enunciado
parentético E2.
(iii) Em relação à correlação localização e sinalização: não é possível
a correlação diretada localização do item com o tipo de sinalização
realizada por ele. Entretanto, em todos os casos analisados na perspectiva
diacrônica, seu funcionamento, ainda que em contextos de início de
parêntese, não equivale à função de sinalizar o segmento parentético. Em
todas as ocorrências, ele faz parte de E2, auxiliando seu funcionamento
a partir de sua sinalização e significação modal, diferentemente do
que se observa nas ocorrências extraídas de textosque representam
a sincronia atual, nas quais se constata a função exclusiva do item de
sinalizar o segmento parentético, sem integrá-lo e sem compartilhar de
sua funcionalidade dentro do tópico discursivo. Nesses casos, o item,
enquanto MD, funciona como marca formal de parêntese voltado para
o conteúdo tópico.4
3.2 Assim e o processo de parafraseamento
Nos tópicos que manifestam ocorrências de assim em contexto de
paráfrase (P),o item apresenta função fórica, retro-propulsora, em que
retoma o segmento matriz (M) e aponta o desenvolvimento da P.A
sinalização retrospectiva, realizada pelo item, tem a função de servir como
4
Nesse tipo de funcionamento, uma análise a partir dos pressupostos da fonologia prosódica
(NESPOR e VOGEL, 1986)e entoacional (TENANI, 2002; FERNANDES, 2007) mostra que
o item associa-se à porção textual à direita e constitui sozinho uma frase entoacional (I), o que
motiva a interpretação de que, embora esteja associado a E2, não integra E2, mas apenas o
sinaliza. O contorno entoacional revela uma curva descendente, no final da oração que antecede
assim, seguido por uma pausa, evidenciando a existência de uma fronteira prosódica, e por um
contorno ascendente no item, que é seguido, novamente, por breve pausa ou simplesmente pela
percepção de um novo I (quando essa pausa não é percebida acusticamente). Na sequência,
parece haver um tom ascendente, seguido por um contorno descendente no final de E2
(LOPES-DAMASIO, 2009).
162
Lúcia Regiane Lopes Damasio
“gancho” que atua na manutenção do assunto no tópico em questão,
ao mesmo tempo em que sua sinalização prospectiva direcionapara a
introjeção de novas predicações em relação a esse assunto. Portanto,
ocorre, na M, o desenvolvimento de um tópico específico e, na P, o
mesmo assunto como foco da reformulação, o que constitui forte indício
da centração tópica. Levando em conta essa consideração, a análise
focalizará a funcionalidade geral da relação parafrástica observada em
contexto do item:
(12) Queira o Prof. Fidelino de Figueiredo desculpar este seu amigo
e admirador que é o Cruz Costa, por não haver elle passado
M novamente, em tempo opportuno, pela Tudor House, afim de
pedir-lhe a carta de apresentação para a directoria do Gabinete
Portuguez. É que a minha viagem foi resolvida á ultima hora
e executada com grave rapidez. Em todo caso, servi-me,
verbalmente, de sua apresentação.
Assim, apresento-lhe as minhas desculpas e muito agradeço a gentileza
P
que Teve, escrevendo ao Snr. Presidente do Gabinete Portuguez de
Leitura(FFXX-41b/117)
Nesse tópico, o escrevente enfatiza, via P adjacente, seu pedido
de desculpas ao destinatário, em proposta de compreensão voltada à
recuperação, por parte daquele, dessa sua intenção comunicativa. Assim,
a P não interrompe o fluxo da comunicação para apontar qualquer falha
no conteúdo do que foi dito, mas para enfatizar determinado traço desse
conteúdo, especificamente,o pedido de desculpa, e para acrescentar
novo conteúdo proposicional, relativo ao agradecimento. Portanto,
à função metaformulativa da P, soma-sea de fazer o texto progredir. A
relação de equivalência semântica entre M e P é mediada pela predicação
de identidade entre os segmentos. No que tange ao deslocamento de
sentido, o movimento de generalização evidencia redução sintático-lexical,
configurando uma P redutora, com função deresumir.
163
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Na P adjacente, em (13), há uma equivalência semântica predicada a
partir de movimento especificativo: a abrangência semântica da M é mais
geral do que a da P, que atualiza traços semânticos implícitos naquela:
(13)
Comparando Ouro Preto com o
M Recife vemos que são complatamen=
te oppostos.
Assim o que lá é pedra e tijolo
aqui é taboa e muitas vezes
de caixão; lá existem casas muito
altas, aqui ao contrario são casas
P que mal cabem um homem
de pé, e assim por diante.(CPXIX-27/31-32)
A especificação semântica traduz-seem umaexpansão formal da P em
relação à M, caracterizandoumaP expansiva em contexto de assim, que,
cf.(12), ocorre encabeçando o segmento P,cuja função é precisar a
informação contida na M (Pexplicitadora). Assim, a relação parafrástica
não está, novamente, voltada à correção de uma falha na formulação da
M, mas à explicitação do que foi afirmado.
Segue, em (14), ocorrência de assim em contexto de P observada em
editorial:
(14)
[...] E respondendo assim, calmamente,  com documentos
M valiosissimos, que não  podem ser contestados, a uma parte
do  virulentissimo artigo que contra nós  hontem publicaram
os collegas do Correio para provar que houve violencias no 
pleito do dia 30.
[...] Só aqui temos mil e seiscentos votos, muito mais de mil,
portanto.  E o Correio espere pelo resto, que ha  de apparecer
em breve, porque a apura-  ção official se fará no sabbado.
[...]
164
Lúcia Regiane Lopes Damasio
P
E assim, calmamente, com documen- | tos e argumentos que não têm
resposta, | destruimos todas as accusações do viru- | lentissimo artigo
que contra nós hon- | tem publicaram os amigos do Correio Paulistano
(OESPXIX-1891/155)
O ST inserido entre a M e a P, portanto, não-adjacente, está
relacionado à explanação da forma como, por meio da exposição
de argumentos, o jornal A província de S. Paulo destrói as acusações
realizadas, contra ele, pelo Correio Paulistano. Alto grau de equivalência
semântica pode ser observado entre M e P, além da configuração formal
simétrica da P, o que a aproxima de um caso de repetição. Apesar disso,
há aí um movimento semântico de generalização com função de resumir,
se considerado todo o contexto tópico, incluindo o ST inserido, que
permite a interpretação do segmento parafrástico como responsável
pela função de fechar a argumentação realizada no editorial a partir da
recomposição do conteúdo tópico.
No corpus sincrônico, são frequentes as ocorrências de assim em
contextos parafrásticos. Em 95,5% dos casos, o item ocorre em posição
inicial de P.
No que tange ao tipo de P, a maior parte das ocorrências revela P
expansivas (64,4%); seguidas pelas P simétricas (26,6%); e, por fim, pelas P
redutoras (apenas 8,8%). Relativamente aos deslocamentos de sentido, a
totalidade dos casos de P expansivas e simétricas relaciona-se ao movimento
semântico de especificação (cf. (15)) e a totalidade dos casos de P redutoras,
à generalização(cf. (16)):5
(15) ele fazia tarefa e
ele se tornô(u) um aluno maravilhoso... ele éh::...
M
Em (15) e (16), apresentam-se traços associáveis aos usos de assim no padrão (4),
equivalente à sinalização de construção de quadro mental, intrínseco a contextos
descritivos, cf. Quadro 1.
5
165
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
P
assim ele é bem agita::do ele é bem participati::vo... é um aluno que às
vezes ele dá um po(u)co de trabalho porque ele fica todo agitado ele qué(r)
andá(r) ele qué(r) passeá(r) ele qué(r) saí(r) ele qué(r) í(r) no banhe(i)ro
ele vai ele volta ele é bem... bem ativo mesmo...(AC-088/NE717)
(16) Inf.:[não] ...
a maioria do serviço era MANUAL... a maioria do serviço de
M
alfaiate naquele tempo... só à maquina na hora de costurá(r)...
fazê::(r)... a:: a ca::lça... calça
assimusava muito a máquina... mas o maior parte era manual...(ACP
151/RP1211)
Em relação a seus funcionamentos específicos:
(a) as P expansivas revelam, em 96,5%, a função de explicitar(17).
Essa funcionalidade mostrou-se prototípica também nos
dados diacrônicos:
(17) –... aí deu certo tudo que eu entrei né? fiquei em quarto... ma::s...
aí foi legal num sei eu acho assim num sei se foi cedo d’eu
entrá(r) na faculdade porque eu tava sain(d)o do colegia::l...
P
então é um/ uma coisa
assim... é um... trunca/ um truncamento assim na vi/ na vida né? no
M
nos tipos de coisas... nas vida que você leva... (AC-054/NE297a)
(b) as P redutoras revelaram, em 75%, a função de resumir (18) e, em
25%, a função de denominar(19). Também essa funcionalidade
prototípica já havia sido apontada pela análise das ocorrências
de P na perspectiva diacrônica:
(18)
M
P
eu LEMbro de alguns FAtos que aconteceu sabe? alguns
relâm::pagos
assim eu num lembro de tudo...
166
Lúcia Regiane Lopes Damasio
eu sei que a gente fo::i andô::(u)... continuô(u) andan(d)o na
avenida do:: do Teixeirã::o o estádio... até que eu parei numa
praça e sentei num banco... foi aí que eu comecei vomitá(r) [...]
(AC-055/NE379)6
(19) Inf.: é éh eles se sente assim que::... é por exemplo em São José
do Rio Preto... a:: alguns cursos que eles gostariam de fazê(r)...
M
escola pública universidade
assim faculdade pública ...(AC-149/RO1132)
P
(c)
as P simétricas revelaram, em 50% das ocorrências, a função de
adequar o vocabulário(20), em 33,3%, a função de explicitar7(21)
e, em 16,6%,a de definir(22). Não foram observadas as funções
de resumir e denominar:
(20) Inf.: não... o/ o:: mestrado ele:: funciona assim óh... você
entra... [Doc.: hum] pelo menos é AQUI
M
em alguns campus
assim em algumas instituições
P
muda né?... aqui você en::tra... você... no primeiro ano cê vai
cumprí(r) os créditos...(AC-053/NE241)
(21) atrás as/ aí na p/ na porta tem um um um desenho assim
de um carinha... meio... meio chapado assim [Doc.: aham
((concordando))] é:: desenhado (no) giz de ce::ra e mais
M
uns uns símbolos da paz
assim vários símbolos da paz do lado... (AC-054/DE339)
P
Nas ocorrências (17) e (18), representativas das funções de explicitar e resumir, há associação
ao padrão (4). Em (18), esse funcionamento, sugerido pela composição interativa de um
quadro mental descritivo, depende do ST que dá continuidade ao tópico, imediatamente após o
segmento P transcrito.
7
Apenas esse tipo de funcionamento parece associável ao padrão (4).
6
167
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
(22) Inf.: éh... minha cama... não é bem de casal ((ruído))
M
é de viúva...
assim... quase de casal...(AC-052/DE209)
P
De modo geral, a função de explicitar, em relação à P expansiva ou
simétrica, é a mais significativa (71,1% do perfil funcional das P em
contexto do item assim).
A partir dessa análise, algumas observações são pertinentes:
(i) Em relação à localização: o item ocorre, na maioria dos casos,
inaugurando a P (podendo seguir imediatamente e, sendo grafado com
ou sem “espaço”).
(ii) Em relação à sinalização: o item realiza sinalizações anafóricocatafóricas, ao mesmo tempo, retomando o segmento M e apontando o
desenvolvimento da P.
(iii) Em relação à correlação localização e sinalização: é possível correlacionar
a sua localização, em início de P, e o tipo de sinalização que realiza, retropropulsora.
3.3 Assim e o processo de correção
De modo geral,assim desempenha função fórica retro-propulsora
de marcador de correção(MC), indicando a inserção do enunciado
reformulador (ER), cataforicamente, em relação ao enunciado fonte (EF),
retomado, sempre nessa sequência (EF – MC – ER), em distribuição
adjacente (no mesmo turno/frase).Em relação à operacionalização das
correções, a totalidade das ocorrências corresponde a autocorreções
auto-iniciadas, cf. (23):
(23) ah mas num é possível... senão a cobra ia ficá(r) com três
metro de altura[assim] [Doc.: aham ((concordando))] de:: de
comprimen::to né?... (AC-054/NR304)
168
Lúcia Regiane Lopes Damasio
No que tange aos aspectos linguísticos e interativos, observam-se:
(i) correções lexicais; em que ocorre a substituição de uma seleção
léxica não pretendida por outra, avaliada como mais pertinente
pelo falante, cf. (24) e (25):
(24) e ele tinha:: comprado éh:: compradoassimganho né?... do:: do filho
que mora em São Paulo... um Passat...(AC-115/NE854)
(25) um dia é/ um dia pra arrumá(r)... éassimuma semana né? pra
arrumá(r) e um dia pra desarrumá(r)...(AC-056/DE402)
Em (25), o itemdia alavanca a repetição de um segmento tópico
para sua correção. Assim, essa ocorrência se distingue da anteriorem
complexidade porque, embora o EF seja um item lexical, todo o ST que
ele integra é repetido no processamento de sua correção, por semana.
(ii) correções morfossintáticas; em que se constata a má-formação
da frase em relação específica a problemas de regência, concordância
etc., cf. (26), em que assim marca o ER que estabelece a correção da
concordância verbal:
(26) tinham lançado trinta pessoas na lista de espera e eu fiquei em
dezesseis praticamente no meio da lista de espera... aí veio::...
assimeu vim de manhã:: (AC-087/NE633)
(iii) correções sintático-semânticas; em que é corrigida a máformação da frase do ponto de vista sintático e/ou semântico, cf. (27),
(28) e (29):
(27) Doc.: tem muitos cursos?
Inf.: HÁ muitos cursos háassim/ na verdade tem seis ou sete eu acho
[...] (AC-081/DE430)
169
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
(28) agora aquele que num tem o apoio da família... num adianta
você... sê(r) um professor brilhan::te tê(r)... um/ sabe? a
escolaassim/ a melhor escola... se ele num::... num tem certos
valores...(AC-116/RO929)
(29) com mo::/assimbastante molho... assim sabe ficá(r) bastante::...
aquele creme né?(AC-087/RP691)
Em (27), a correção do EF HÁ muitos cursos é acarretada por seu
conteúdo, reavaliado e reformulado na construção sintático-semântica
do enunciadona verdade tem seis ou sete. Já em (28), a motivação da
correção do EF a escola é a inserção do modificador no ER, que garante
a infirmação da formulação sintática do EF ter a escola,insuficiente para
estabelecer o paralelismo sintático-semântico pretendido pela falante, em
num adianta você... ser um professor brilhante, ter a melhor escola.... Em ambas,
embora haja distinções relacionadas às motivações, ora mais sintáticas
ora mais semânticas, assim marca a inserção do ER sem interromper,
sintagmaticamente, o processamento do EF, que é, portanto, concluído
nos dois casos. Por outro lado, em (29), como em muitas ocorrências
presentes nos dadosdo IBORUNA, há uma interrupção sintática ou um
falso início, para usar a terminologia de MARCUSCHI (2006b), causado
pela inserção do marcador que sinaliza o ER.O segmento realizado do
EF, ainda que não completo linguisticamente, é suficiente para garantir a
relação retrospectiva da correção.
Foi encontrada apenas uma ocorrência de contexto corretivo fora
da perspectiva sincrônica, a saber, emuma carta.Em relação às marcas
de correção, em dados de escrita, observa-se que pode haver ou não o
aproveitamento de segmentos do EF no ER, podendo a correção ser
acompanhada de rasuras ou de sinais (traços) que anulam letras, sílabas,
palavras ou segmentos, representando graficamente a infirmação. Vejamos:
170
Lúcia Regiane Lopes Damasio
(30) Aconselhei ao Chico estudar pharma-  cia aqui, pois quee assim
fazendobaseava- me na facilidade d’esteestudo aqui –(CPXIX-28/34)
Nessa ocorrência, assim segue uma correção, em que não há
aproveitamento do EF, sinalizada por um traço que anula esse segmento
no texto. No entanto, assim não funciona, como nas demais ocorrências
analisadas, como um MC. Não se trata, portanto, de um uso prototípico
do item, que ocorre numa construção maior (e assim fazendo) em que a
correção é marcada pelo sinal gráfico que anula o EF (traço).
Entretanto, percebe-se que o escrevente inicia, mas não termina,
sintagmaticamente, um segmento (pois que), que atuaria, no texto, como
justificativa para o aconselhamento realizado por ele ao Chico, e o anula
para que seja inserido o ER [e assim fazendo] baseava-me na facilidade d’este
estudo aqui, que estabelece a relação de causa-consequência, avaliada como
mais pertinente. Embora numa estrutura de reformulação diferenciada,
graças à inserção de assim na construção, sugiro uma aproximação dessa
ocorrência com aquelasconstatadas sincronicamente nos dadosdo
IBORUNA, em que a há o abandono de uma construção iniciada, para
a inserção da correção, numa construção que sintático-semanticamente
é avaliada como mais apropriada aos objetivos comunicativos do
escrevente. Dessa forma, depreende-se, diacronicamente, um contexto
de co-ocorrência de assim com a correção que pode ser indiciário do
desenvolvimento de seus usos mais atuais nessa estratégia.
3.4 Assim e o processo de repetição
Apesar de a repetição (R) ter sido constatada, nesse contexto específico,
apenas nos dados do IBORUNA e em baixa frequência,mostrou-se
reveladora de aspectos importantes do uso de assim.8 Dessa forma,
seguem as ocorrências:
Chamo atenção, aqui, para a relevante frequência do item em contexto de repetição hesitativa,
analisada juntamente ao processo de hesitação, cf. seção seguinte. Caracteriza-se, desse modo,
uma especialização de assim em contextos que evidenciam esse tipo de R.
8
171
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
(31) ... e à noite tem as FEStas né? que toca forró::assim... forró::
todo tipo de música... (AC-051/DE118)
(32) aí fui chegá(r) aqui em Rio Preto:: dez:: e: meia... assim::...
no::/ na:: sexta-fe(i)ra... assim... c’a flor da pele esperan(d)o até
terça-feira pra fazê::(r) a inscrição da UNESP assim vai passa
o domin::go... e vô(u)/ ia chegá(r)assim óh::/ ia chegá(r) a outra
semana mas nunca ia chegá(r) terça-fe(i)ra [Doc.: ((risos))]...
(AC-087/NE632)
(33) Doc.: a senhora ficô(u) saben(d)o assim de algum assalto assim
no nosso bairro
Inf.: assaltoassimno nosso bairro não na o(u)tra semana teve
[Doc.: ahm]... faz quinze dias mas é aqui o começo no fim da
Potirendaba né? [Doc.: hum::] no dia da do daquele homem o
casal que ia saindo com os dois filhos pra viajá(r) no feriado
né?... e:: chegaram dois ladrão né?... (AC-152/NR1230)
As R são produzidas em posição adjacente à matriz (M). Quanto à
produção, (31) e (32) correspondema auto-repetições, e (33) evidencia
uma heterorrepetição.
As ocorrências representam casos de segmentos repetidos
integralmente, com identidade total de forma e padrão de realização
prosódica.Sob o ponto de vista da categoria linguística do segmento
repetido, há R de item lexical (forró::), em (31), de construções
suboracionais (SV ia chegá(r), em (32), e de estrutura completivaassalto
assim no nosso ba::irro, em (33)). Especifico, no esquema abaixo, uma
diferença importante entre a construção suboracional repetida em (32) e
a em (33), no que diz respeito às suas relações comassim:
(32)
(33)
M
R1
R2
M
R
assim óh::/
mas nunca
ia chegá(r)
ia chegá(r) a outra semana
ia chegá(r) terça-fe(i)ra
Doc.: assalto assim no nosso bairro
Inf.: assalto assim no nosso bairro
172
Lúcia Regiane Lopes Damasio
Em (32),assimrealiza uma sinalização retro-propulsora que estabelece
um “gancho” entre o segmento M e sua R, numa relação de marcação
M – MR – R (cf. contextos de ocorrência do item em correção). A coocorrência de oh:: corrobora a sinalização realizada por assim. Em (33),
o itemnão desempenha esse tipo de função associada à sinalização da R,
integrando a M.
No que tange à funcionalidade das Rs, constatam-setrês aspectos
distintos: em (31), a R apresenta foco funcional na coesividade; em (32) na
argumentatividade; e, em (33), na coesão tópica. Especificamente, em (31), a
R do item lexical forróestabelece um elo coesivo, a partir da retomada do
complemento do verbo toca, para acrescentar a ele mais um item; todo tipo
de música.
Diferentemente, o foco funcional da R da construção suboracional
(SV ia chegá(r)), em (32), volta-se para a reafirmação de um argumento, a partir
de uma construção desse argumento em uma estrutura de paralelismo
sintático, ilustrando o fato de que a R, marcada/sinalizada por assim
não equivale apenas a “dizer a mesma coisa”. Aqui, a forma como
esse dizer se faz, na estrutura sintática repetida, é muito mais eficiente,
argumentativamente, do que se se dissesse apenas: [...]ia chegá(r) a outra
semana mas nunca a terça-fe(i)ra [...].
Por fim, a R de construção suboracional, em (33), focaliza a
organização tópica, especificamente a introdução de um novo tópico.
Antes de desenvolver o novo tópico proposto pela documentadora, a
falante lança mão dessa estratégia de construção textual, para marcar
o referencial do tópico que será construído, garantindo, com isso, um
ganho de tempo para as próximas formulações na constituição de seu
texto.
A análise de assim em contexto de R revelausos mais abstratos,
relacionados à marcação/sinalização da R; e mais concretos, relacionados
a aspectos proposicionais do segmento M repetido. Esse resultado
evidencia estágios distintos de gramaticalidade do item em relação a esse
processo de construção textual.
173
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
3.5 Assim e o processo de hesitação
Aponto, de início, duas especificidades do funcionamento deassim
em contextos de hesitação, em dados extraídos do IBORUNA: (i)
o itemdesempenha genericamente a função de preenchimento de
pausa hesitativa, em contexto de co-ocorrência com outros tipos
de fenômenos indicativos de hesitação, sendo observado, mais
raramente, desempenhando, sozinho, essa função; e (ii) os traços do
funcionamento fórico modal deassim são esvaziados, i. é, não é possível
especificar o direcionamento da sinalização realizada pelo item, o que,
consequentemente, inviabiliza a comprovação dessa sua função.Nessa
direção, todas as ocorrências, transcritas e analisadas, exemplificam (ii),
com exceção daocorrência (34), que ilustra (i):
(34) ... se eles... TIVEREM assim uma... uma coisa bem... éh::
programada um... projeto bem feito...(AC-053/RO270)
Em (34), ocorrerepetição hesitativa do item funcional uma,
intermediada por pausa não preenchida, seguida pela expressão hesitativa
éh, realizada com prolongamento vocálico. O núcleo do SN “uma coisa
bem” com determinante repetido, em função da hesitação, constitui o
primeiro alvo de busca de adequação da seleção lexical pretendida, seguido
pelo segundo alvo, o modificadorprogramada desse SN, também marcado
pela expressão hesitativa éh. Constata-se, na sequência, uma P simétrica
que materializa no texto a “resolução” do problema de formulação
sinalizado pelas hesitações, via função de adequação vocabular. Todo o
segmento M, da P em questão, émarcado como hesitativo por assim, cf.
esquema:
M
P
assim uma... uma coisa bem...
éh:: programada
um... projeto bem
feito...
174
Lúcia Regiane Lopes Damasio
Em (35),assimmarcaa hesitação em contexto permeado por outros
tipos de marcação desse fenômeno:
(35) e ela faz um trabalho até muito interessante na Cruz Vermelha
que ela... aceita::... que ela ela:: acolhe... mulheres... éh::...
perseguidas pelos governos... [Doc: hum] principalmente do
lado assim... dos árabes... (AC-150/NE1167b)
Além da função textual-interativa genérica de preenchimento
de pausa, os usos deassim relacionam-se, especificamente, a funções
metadiscursivas que concretizam aspectos da textualização desdobrados
em mecanismos variados de focalização da atividade discursiva, cf. (36):
(36) e a minha mãe sempre foi uma pessoa bem:: severa nunca
deixô(u) a gente assim... é é... saí(r) pra é brincá(r) brincá(r)
fora [...] (AC-120/DE1040)
Essa ocorrência, seguindo o funcionamento mais frequente entre os
usos deassim em hesitação, sinaliza o processamento de seleções lexicais.
Por sua vez, (37)depreende o uso do item relacionado a unidades tópicas
mais amplas:
(37) Doc.: e seus pais apoia::vam? não::?
Inf.: ah minha/ minha mãe assim... apoiava muito gostava muito
dele[...] (AC-056/NE389)
Nessa ocorrência, juntamente aos demais recursos que indicam
hesitação,assim relaciona-se à determinação do foco do novo subtópico
sugerido pela documentadora, a partir da pergunta e seus pais apoia::vam?.
Observa-se, portanto, um acúmulo de hesitações no início do
desenvolvimento dessenovo subtópico, estejam elas relacionadas ao
“plano formal das estruturas sintáticas ou ao plano discursivo-textual da
formulação enunciativa” (MARCUSCHI, 2006a, p. 69), como parece ser
o caso de (37).
175
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
A ocorrência (38) exemplifica um uso de assim, menos recorrente,
em que o item sinaliza a inserção de um ST que relativiza/modaliza as
colocações anteriores, apresentando traços do MD assim atenuador:
(38) mas aí depois a ca/ as famílias acabaram tendo uma certa
relação de amizade... e e/ eles frequentavam minha casa
assiméh:: algumas vezes... e:: até um/ até uma certa idade
quando ela tinha uns dez anos e depois... eu nunca mais a vi
assim a/ sumiu... (AC-083/NE481)
4 Relações funcionais
A partir da descrição e análise do item em contextos de parêntese,
paráfrase, correção, repetição e hesitação,algumas relações funcionais relevantes
podem ser identificadas.
(I) Em relação àfunção fórica de assim, responsável pela sinalização
dos ST que estão sob o escopo funcional dosprocessos de construção
textual:
(a) PARÊNTESE:o escopo incide, cf. as possibilidades de
sinalização, sobre o tópico como um todo, ou apenas termos e
ST. Essa sinalização concorre para particularizar o desvio tópico
do processo de parentetização configurado em contexto de
assim, uma vez que é exatamente essa ligação entre E2 e E1 e/ou
E3, instanciada por meio da foricidade do item, que caracteriza
um desvio em pequenas proporções, em que se observa E2 no
limiar da centração tópica. Esse aspecto reflete-se nas funções
dos parênteses constatados no contexto do item.
(b) PARÁFRASE: a sinalização representa traço importante para
o processo, já que atua na correlação entre os enunciados
constitutivos da M e da P, via elo anafórico-catafórico.
176
Lúcia Regiane Lopes Damasio
(c) CORREÇÃO e REPETIÇÃO:a sinalização retro-propulsora,
realizada por assim,também constitui um importante papel na
marcação dos enunciados reformuladores (ER) ou repetidos (R)
em relação aos enunciados fonte (EF) ou matriz (M). Nesses
processos, o funcionamento fórico de assim concorre para a
instauração da propriedade de centração tópica.
(d) HESITAÇÃO: diferentemente, em contextos de hesitação, assim
perde seus traços fóricos, deixando de estabelecer sinalizações
de porções tópicas.
(II) Em relação à integração ou à marcação de assim nos ST que
constituem os processos textuais focalizados:
(a) PARÊNTESE:o item, atuando foricamente: (i) integra, ao
mesmo tempo, os ST que constituem o parêntese, ou seja,
sua foricidade desempenha papel importante para as funções
parentéticas, mostrando que o item faz parte dos contextos tópicos
que constituem esse processo textual;9 ou (ii) marca/sinaliza o
segmento parentético, sem integrá-lo e sem compartilhar de sua
funcionalidade dentro do tópico discursivo (MD com função de
marcar formalmente parênteses prototipicamente voltados para
o conteúdo tópico).
(b) PARÁFRASE:a função de assim está integrada à do segmento
que configura essa estratégia textual, i. é, o item sempre faz parte
do segmento P, funcionando como elo explícito entre ele e o
segmento M.
A integração de assim a E2 foi constatada exclusivamente nos dados extraídos dos corpora
diacrônicos.
9
177
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
(c) CORREÇÃO e REPETIÇÃO: em relação ao processo de
correção, diacronicamente, o item integra o ER, enquanto,
sincronicamente, funciona como um marcador de correção (MC),
marcando/sinalizando o ER, sem integrá-lo, em construções
adjacentes do tipo EF – MC – ER. Semelhantes são os casos de
repetição, em que assim também funciona como um marcador de
repetição (M – MR – R).
(d) HESITAÇÃO:
a
hesitação,
enquantoindicadora
do
processamento textual, revela assim não apenas integrando, mas
constituindo, em si mesmo, um tipo de marca hesitativa.
(III) Relações funcionais: o resultado mais expressivo deste estudo é o
de que as funções dos processos textual-interativos, com os quais o item
assim relaciona-se, a partir da integração ou da marcação/sinalização,
apresentam fortes associações com as funções desempenhadas por esse
item, na sincronia atual, fora desses contextos específicos. Quanto a isso,
apresento as seguintes constatações:
(a) PARÊNTESE: apesar de terem sido constatadas três dentre as
quatro classes de parênteses existentes (cf. JUBRAN, 2006b),
apenas funções específicas foram observadas: (i) atribuição de
pontos de vista sobre o assunto a fontes não identificadas; (ii)
manifestação de atitudes do escrevente em relação ao tópico; (iii)
sinalização da elaboração tópica; e (iv) instauração de conivência
com o destinatário.
Os parênteses que desempenham a função (i) estão relacionados
ao descomprometimento do locutor/escrevente em relação
àquilo que está sendo dito/escrito. Esse tipo de função é
desempenhado pelo P(3) – MD assim “atenuador” (cf. Quadro
1, na seção 2).
178
Lúcia Regiane Lopes Damasio
Os parênteses voltados para (ii) e (iii) relacionam-se a diferentes
papéis metadiscursivos, como apresentar foco na elaboração tópica,
voltando-se para a formulação linguística do tópico, ou no conteúdo
tópico, evidenciando, no segmento inserido, a construção textual.
Esse tipo de função é desempenhado sincronicamente pelo P(2)
– MD assim “sinalizador de metadiscursividade”.
Aqueles parênteses que focalizam a manifestação atitudinal do locutor
em relação a um determinado conteúdo tópico, representando,
dessa forma, um caso de ambiguidade entre as funções (ii) e (iii),
são responsáveis pela sinalização de informações proposicionais
diretamente associadas à manifestação de sentimentos do escrevente
em relação ao conteúdo tópico. Trata-se da função exercida pelo
P(1) – MD assim “sinalizador de conteúdo expressivo”.
Por fim, os parênteses que realizam a função (iv) representam
traços de outras diferentes funções, dado que, ao instaurar
conivência com o destinatário, o escrevente, ao mesmo
tempo, divide com ele a responsabilidade pela maneira como
está construindo seu tópico. Nesse caso, há tanto a função
do P(3) – MD “atenuador”como a do P(2) – “sinalizador de
metadiscursividade”.
(b) PARÁFRASE: nos dados diacrônicos de carta e editorial, a
natureza retro-propulsora da sinalização, realizada por assim, e a
localização prototípica do item, na porção inicial da P, favorecem
a emergência de relações semântico-cognitivas verificadas em
seus usos com valor conclusivo (P(5)).10 Embora tais relações não
estejam convencionalizadas, nesses contextos diacrônicos de P,
elas podem surgir daí, via convencionalização de implicaturas, a
partir de inferências conclusivas pertinentes e recorrentes nos
contextos de P com funções de precisar/explicitar ou resumir.
10
O contexto e+assim, recorrente nos dados de P, representa importante papel, baseado na
reinterpretação induzida pelo contexto, no desenvolvimento do P(5) – juntor coordenativo
conclusivo (cf. LOPES-DAMASIO, 2011).
179
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Um aspectomerece destaque: nos dados sincrônicos, embora as
possibilidades de localização, sinalização e função mantenhamse, em relação ao que se verificou nos dados do corpus diacrônico,
não se constatam mais quaisquer relações entre M e P, em contexto
de assim, e a coordenação de orações com valor conclusivo,
realizada por esse item. Entretanto, nessa perspectiva, os
contextos em que as P relacionam-se com as funções observadas
diacronicamente (explicitar e resumir) caracterizam o uso de assim
voltado para a construção de um quadro mental, relativo à
descrição, equivalente ao P(4) – MD “sinalizador de construção
de quadro mental”.
(c) CORREÇÃO: de modo geral, contextos de correção não
configuram ambientes propícios para a preservação da face
do falante. Dessa forma, subjacente à função de marcar o ER
frente ao EF, há uma função atenuativa de assim, voltada para
o abrandamentodo risco que o processo de construção textual
implantado representa à face do falante em relação ao ouvinte.
Nessa direção, o uso deassimmarcador de correção revelaria
características dos usos do P(3) – MD assim “atenuador”,
representativo de seu comportamento comohedge de imprecisão/
incerteza que sinaliza a atividade cognitiva de planejamento verbal
on line, atenuando os riscos que uma correção representa à face
do falante. A co-ocorrência extremamente frequente do MD né?,
nesses contextos de correção marcados por assim, funcionando
como marca do pedido de aprovação do interlocutor, corrobora
essa leitura.
(d) REPETIÇÃO: o processo de repetição, enquanto estratégia
de formulação textual, contribui para a organização discursiva,
implementando sequências textuais mais compreensíveis
e resultando numa textualidade menos densa e num maior
envolvimento interativo. Nesse sentido, caracteriza um
180
Lúcia Regiane Lopes Damasio
planejamento on line que acarreta a produção e reprodução, uma
ou mais vezes, de segmentos inteiros, ou quase inteiros, motivadas
por vários fatores, entre eles o cognitivo. Dessa forma, nos
casos em que assim co-ocorre com esse processo, identifica-se
a sua associação funcional aos procedimentos metadiscursivos
que concretizam aspectos de textualização que se desdobram,
juntamente com os mecanismos da repetição, focalizando a
própria atividade discursiva.
Portanto, a funcionalidade do itemnos contextos de repetição está
associada ao P(2) – MD assim “sinalizador de metadiscursividade.
(e) HESITAÇÃO: as ocorrências de assim relacionadas à hesitação,
revelam o item desempenhando, de modo geral, a função de
preencher pausa hesitativa, frequentemente em contexto de
co-ocorrência com outros fenômenos indicativos de hesitação,
e, de modo mais específico, as funções: (1) metadiscursiva,
que concretiza aspectos da textualização desdobrados em
mecanismos de focalização da atividade discursiva, como a
hesitação em contexto de seleção lexical, de introdução de um
novo tópico/subtópico ou manutenção tópica; e (2) atenuativa,
que, embora menos frequente, é identificada em usos do item,
em contextos marcados pela hesitação, antes da inserção de ST
que relativiza/modaliza colocações/afirmações anteriores.
Depreendem-se, portanto, relações desse uso de assim,ligado a
contextos de hesitação, com outros usos do item, associados ao
P(2) – MD assim “sinalizador de metadiscursividade”, no que
tange à função em (1), e ao P(3) – MD assim “atenuador”, em
relação à função em (2).
181
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Conclusões
A partir de uma análise pormenorizada dos processos deparêntese,
paráfrase, correção, repetição e hesitação, este trabalho revelou não apenas
o comportamento do item assim frente à implementação de tais
mecanismos textual-interativos, mas, por meio desse comportamento,
as relações funcionais existentes entre os contextos em que o item atua
nesses mecanismos e seus padrões de uso, especificados no Quadro 1.
A partir desses resultados,duas afirmações são pertinentes: (i)
assim revela papel funcional significativo em contextos de processos
interativos de construção do texto, constituindo-se, inclusive, como
marca da heterogeneidade constitutiva da escrita, nos moldes de
CORRÊA (1997), em relação à parentetização e ao parafraseamento; e
(ii) o funcionamento do item, nesses contextos, tem muito a dizer sobre
seu processo de mudança, tanto na indicação de caminhos propriamente
ditos dessa mudança, no caso de relações de derivação, verificadas ao
longo do tempo, como na indicação de estratificações e especializações
de usos na perspectiva sincrônica.
Nessa linha, esse tipo de análise direciona o olhar para uma forma
específica e nova de tratamento contextual, como base para algumas
generalizações e implicações referentes a processos de GR, nos moldes
do de assim, a partir da constatação das relações funcionaisexistentes
entre os processos de parentetização, parafraseamento, correção, repetição e
hesitação, que ocorrem em contexto do item,e os funcionamentos de seus
usos em determinados padrões mais abstratos/gramaticalizados. Essas
relações são retomadas, brevemente, no Quadro2:
182
Lúcia Regiane Lopes Damasio
QUADRO 2: Relações entre os processos textual-interativos e padrões mais
gramaticalizados de assim
Processos
textuaisinterativos
(1D)
Parentetização
Padrões relacionados
P(1) MD assim “indicador de conteúdo
expressivo”
P(2) MD assim “indicador de metadiscursividade”
P(3) MD assim “atenuador”
(2D)
Parafraseamento
(1S)
(2S)
(3S)
Correção
Repetição
(4S)
Hesitação
P(5) “juntor coordenativo conclusivo”
P(4) MD “sinalizador de construção de quadro
mental”
P(3) MD assim “atenuador”
P(2)MD “indicador de metadiscursividade”
P(2)MD “indicador de metadiscursividade”
P(3) MD assim“atenuador”
De início, especifica-se que as siglas (D) e (S) significam diacronia
e sincronia, respectivamente. Em relação a (1D) e (2D), os contextos
integrados por assim, observados em dados dos séc. XVIII a XX,
favorecem a reinterpretação metonímica em direção à mudança
categorial e semântico-cognitiva do item (de advérbio modal, constituinte
de E2 > MD; e de advérbio modal, constituinte de P > juntor conclusivo).
Dessa forma, os contextos de parêntese e paráfrase colaboram para
a emergência das funções dos padrões relacionados, a partir dos
funcionamentos explicitados na análise. A perspectiva diacrônica, além
da relação de gramaticalidade, sugere também a relação de origem dos
respectivos padrões apontados a partir dos usos em que o item integra
as construções que desempenham os processos de parentetização e
parafraseamento.
183
Para uma Análise de Processos Textual-Interativos
Por outro lado, (1S), (2S), (3S) e (4S) apresentam processos textualinterativos, em co-ocorrência com o item sincronicamente. Aqui,
observam-se contextos que colaboram para o processo de mudança
que leva à emergência de aspectos específicos do funcionamento de
assim nos padrões indicados e que colaboram, ao mesmo tempo, para a
implementação de seus respectivos funcionamentos.11
Chega-se à conclusão de que o processo de mudança pelo qual
emergem os usos mais gramaticais e abstratos de assim lança mão de
contextos diferenciados para sua implementação. Esses contextos podem
ser caracterizados por aspectos semântico-pragmáticos associados
aos distintos processos interativos de constituição do texto, conforme
expostos aqui. De formas diferentes, esses contextos colaboram
para a incorporação dos novos funcionamentos do item, mediante o
desbotamento de alguns aspectos semântico-formais e a persistência de
outros.
Para fechar este trabalho, a Figura 1 sistematiza as relações
estabelecidas aqui:
FIGURA 1: Escala de GR do padrão (7) de assim
Esses padrões correspondem, na grande maioria, àqueles relacionados aos processos de
parentetização, observados diacronicamente, o que leva à afirmação de que a mudança encontrase em curso, i. é, que os usos dos diferentes padrões do MD assim não estão estabilizados.
11
184
Lúcia Regiane Lopes Damasio
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187
LER
UM
TEXTO
ENUNCIATIVA
UMA
PERSPECTIVA
Eduardo GUIMARÃES
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) DL-IEL/Labeurb
RESUMO
O objetivo desse texto é refletir sobre o que é analisar textos e como fazê-lo. Do ponto de
vista aqui adotado considera-se que o acontecimento de leitura não é o mesmo acontecimento
em que se enunciou o texto. Isso vai na direção de se pensar que o lugar de leitura não é,
simplesmente, o correlato de um lugar como falante ou locutor. Utilizam-se procedimentos
de análise da semântica da enunciação chegando-se à indicação de que o lugar de leitura (de
interpretação) não é o lugar de Alocutário (no sentido que Ducrot dá a esse termo). É um
lugar social de alocutário que não é, por sua vez, um correlato direto de um lugar social de
locutor. Ler (interpretar) está envolvido com o lugar em que se é tomado para a interpretação.
ABSTRACT
The aim of this text is to reflect on what is to analyze texts and how to do it. From the point
of view adopted here it is considered that the event of reading is not the same event in which
the text is enunciated. This goes in the direction of thinking that the place of the Reader is
not simply the correlate of places such as those of Speaker or Locutor. Procedures of analysis
proper to the Enunciative Semantics lead to the indication that the place of reading (of
interpretation) is not the place of Alocutary (as Ducrot defines this term). It is a social place
of Alocutary which is not, in turn, a direct correlate of a social place of Locutor. Reading
(interpreting) is involved with the place in which one it is taken in order to interpret.
PALAVRAS-CHAVE
Acontecimento. Enunciação. Interpretação. Leitura. Semântica. Texto.
KEYWORDS
Enunciation. Event. Interpretation. Reading. Semantics. Text.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 189-205, jul./dez. 2013
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
Introdução
Nosso objetivo é refletir sobre o que é analisar textos e como fazêlo. Ou seja, nosso objetivo é refletir sobre o que é ler um texto ou como
ler um texto. Estou utilizando aqui o verbo ler e os nomes leitor e leitura,
tal como se faz largamente, não no sentido específico de relação com
o escrito, mas no sentido de uma relação de interpretação com um
acontecimento de enunciação qualquer.
Colocar a questão da análise de um texto põe de saída a necessidade
de levar em conta que o acontecimento desta leitura não é o mesmo
acontecimento em que se enunciou o texto. Isso vai na direção de se
pensar que o lugar de leitura não é, simplesmente, o correlato de um
lugar como falante, locutor, enunciador (ou outras figuras assemelhadas),
como se poderia representar como segue:
Falante ------------------------------- ouvinte
Locutor ------------------------------ alocutário (interlocutor)
Enunciador-------------------------- destinatário
Correlações como estas são próprias da cena enunciativa do
acontecimento de enunciação do texto.
Para responder a perguntas como “o que é analisar um texto?”
ou “como analisar um texto?” vou tomar uma posição a partir da
semântica da enunciação que permite, segundo penso, indicar percursos
interessantes para a prática da leitura, no sentido que dou a ela aqui1.
Se consideramos as posições encontradas largamente na bibliografia
sobre o que é analisar ou como analisar um texto, poderíamos levar em
conta de modo geral três relações:
1
Nossa questão não se identifica com o que conhecemos como linguística textual, em qualquer
das suas apresentações. A linguística textual não tem como objeto a interpretação de textos. Para
minha questão preciso pensar, de um lado, num modo de analisar o sentido de enunciados e
de outro num procedimento de interpretação de texto (já que a semântica da enunciação não é
também ela própria uma teoria ou método que tenha como objeto a interpretação de textos) no
qual jogue um papel importante uma análise enunciativa do sentido. Sobre isto ver Guimarães
(2011).
190
Eduardo Guimarães
1)
TEXTO ------LEITOR
Nesta posição a análise deve decifrar o que um texto diz, pois tudo
que dele se possa compreender está no próprio texto.
2)
LEITOR ---- TEXTO
A análise, neste caso, é a projeção de uma compreensão do leitor
sobre o texto, o que poderia levar a que teríamos tantas leituras de um
texto quantos os leitores que a ele se reportassem, os sentidos do texto
seriam uma relação do texto com cada leitor em particular.
3)
AUTOR ----- TEXTO ----- LEITOR
Neste caso ao leitor cabe encontrar o que o autor do texto nele
significou. O Leitor aparece assim como um correlato do autor. Analisar
um texto, neste caso, seria encontrar o que o autor disse a seus leitores.
Aqui, tal como no caso 2, a leitura envolve uma exterioridade posta por
figuras como leitor, num caso, e autor e leitor no outro.
No entanto, há uma diferença importante para os casos 2 e 3. Em 2,
à relação de análise cabe dizer tudo sobre o sentido do texto. Em 3 há
uma relação entre o movimento de leitor e o do autor.
Vamos procurar mostrar como nossa posição, de uma perspectiva
enunciativa, é diversa das duas primeiras, e tem uma particularidade no
âmbito da terceira. Tal posição, espero mostrar, leva a consequências
interessantes no modo de analisar e no modo de ensinar a analisar um
texto.
1 Figuras da enunciação
Para refletir sobre esta questão vou, inicialmente, e de modo rápido,
caracterizar as relações entre as figuras do que podemos chamar,
191
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
genericamente, as relações de interlocução no acontecimento da
enunciação.
Para apresentar aqui estas figuras, das quais já tratei em muitos
outros lugares, partindo e modificando as colocações de Ducrot (1984),
vou tomar o funcionamento de enunciados vocativos. Tomemos dois
enunciados bem conhecidos:
(1)
Brasileiras e brasileiros
Enunciado que inicia o discurso do então presidente José Sarney em
18 de maio de 1987. Enunciado que se repete no interior do texto por
mais 4 vezes.
(2) Prezado Senhor
Vocativo que vou tomar de uma carta encaminhada à Fapesp
por um pesquisador. Reproduzo o início da carta, omitindo
nomes:
(2a) Ilmo sr.
Prof. Dr. XXXXX YYYY ZZZZZ
Diretor Científico da Fapesp
Prezado Senhor,
Sem me deter muito no processo da descrição, apresento a seguir
alguns aspectos relevantes deste processo e que interessam ao objetivo
deste trabalho.
1. Podemos considerar que tanto “o prezado senhor”, em (2),
quanto “brasileiras e brasileiros”, em (1), significam como sendo
enunciados assumidos por quem os diz, vamos chamar este lugar
enunciativo, tal como Ducrot (1984), de Locutor (L) e chamaremos seu
correlado de Alocutário (AL).
2. Por outro lado encontramos uma diferença importante, o
enunciado vocativo (1) só significa como significa na medida em que este
Locutor, que se mostra responsável por ele, não é alguém em abstrato,
192
Eduardo Guimarães
mas é alguém tomado pelo lugar de presidente da república (no próprio
texto ele vai afirmar sua disposição de reduzir seu mandato para 5 anos).
Vamos chamar este lugar enunciativo de locutor-x (ou lugar social de
locutor). Este x é a variável que a análise deve preencher, no nosso
caso o locutor-x é um locutor-presidente. Se observamos o enunciado
vocativo (2), veremos que neste caso o Locutor que encaminha algo à
Fapesp, ao seu diretor científico, não poderia ser considerado da mesma
maneira que no caso do enunciado (1). Para o enunciado (2), vemos
que podemos dizer que o lugar social de locutor é o lugar de pesquisador.
Assim o locutor-x é um locutor-pesquisador. O correlato do locutor-x é
o alocutário-x.
3. Um outro aspecto a considerar é que, quando o locutorpresidente diz (1), isto se formula, nos textos que integra, com um
sentido de universalidade, o Locutor diz de um lugar que se significa
como universal, e correlatamente é um dizer para todos. Diferentemente
disso, no caso de (2), o locutor-pesquisador, se apresenta como um
indivíduo específico, que assinou, no final, a carta. E diz isso para um
interlocutor caracterizado por um lugar específico, que poderá lhe dizer
sim, poderá lhe dizer não, segundo certos procedimentos envolvidos no
caso. Trata-se de um dizer que se apresenta do lugar individual. A esta
diferença de perspectiva do dizer, que constitui o que chamo lugar de dizer,
vamos chamar de enunciador. Neste caso teríamos, para o enunciado (1)
um enunciador universal, e para o caso do enunciado (2) um enunciador
individual. Nos meus trabalhos2 tenho também considerado dois outros
enunciadores, ou lugares de dizer, o enunciador genérico, próprio, por
exemplo, de provérbios e ditados populares, e o enunciador coletivo,
ligado a um lugar, diríamos, corporativo, de um conjunto, que o dizer
apresenta como um todo específico. Ao correlato do enunciador,
chamamos de destinatário.
Ou seja, consideramos que a cena enunciativa não é unívoca, Nela
devemos considerar:
2
Ver Guimarães (2002), por exemplo.
193
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
Locutor (L) -------------------------------- Alocutário (AL)
locutor-x (l-x) ----------------------------- alocutário – x (al-x)
enunciador (E) ---------------------------- destinatário (D)
2 O Leitor e as Figuras da Enunciação
Segundo as colocações acima sobre a cena enunciativa, podemos
nos perguntar, de que lugar se analisa um texto? Para isto vou deixar de
lado a relação enunciador destinatário e fazer atenção às relações Locutor
– Alocutário e locutor-x – alocutário-x:
Locutor------------------------------------------------------Alocutário
Locutor-x (lugar social de locutor) -------------- alocutário-x (lugar
social de alocutário)
Qual é o lugar de leitor (daquele que analisa um texto), se levamos
em conta as duas relações consideradas acima? O de Alocutário ou de
alocutário-x (lugar social de alocutário)?
Antes de responder voltemos a algo que já dissemos antes. De
certo modo poderíamos considerar que este lugar de leitor é o correlato
do lugar da relação de autor. No entanto é necessário precisar como
entendemos o que é a relação de autor e o que é ser leitor relativamente
a esta relação. Do nosso ponto de vista, a relação de autor se caracteriza
como um engajamento do lugar social de locutor (locutor-x) com o todo
do texto. O correlato deste lugar de autor, enquanto lugar social, é o
lugar social do alocutário.
Isto tem uma importante repercussão. Na medida em que a relação
de autor é tomada como uma relação do lugar social do locutor com o texto
e não uma relação do Locutor com o texto, estamos levando em conta
que o todo do texto, com o qual se engaja o autor, não se caracteriza
pela propriedade do uno, pela unicidade. O texto, de nosso ponto de
vista, é uma unidade de significação não linear, não segmental, não
194
Eduardo Guimarães
unívoca, não lógica. A relação de autor se caracteriza como díspar do
Locutor (garantidor da unicidade do texto). Assim analisar um texto é
ser tomado por esta disparidade, é levar em conta o caráter não uno do
texto, não linear, não unívoco, não lógico. É ser tomado pelas relações
do texto consigo mesmo e com o que lhe é exterior, os lugares de autor
e leitor. Deste modo nossa posição, de certo modo, se relaciona com
a terceira configuração do sentido de leitura apresentada há pouco, no
entanto, como procuraremos mostrar, nossa concepção enunciativa do
agenciamento da leitura apresenta uma caracterização específica neste
cenário.
Para avançar, vejamos a questão por outro ângulo. A relação de
leitor com o texto não corresponde, portanto, ao lugar do Alocutário.
Ou seja, ser leitor (analisar um texto) não é ler no texto o que nele está
estritamente marcado, como seu sentido, pelo Locutor.
O sentido de um texto, como tantas posições hoje assumem, não
está todo no texto. Em outras palavras, a análise de um texto não está
toda prevista nas formas linguísticas que o Locutor apresenta e organiza,
de um certo modo.
Ou seja, como dissemos acima, a análise do texto não se dá na relação
Locutor ---------------------------------------------------Alocutário
A relação de leitor com o texto se faz a partir do lugar do alocutário-x
(lugar social de alocutário),
Está tomado na relação
Lugar social de locutor -------------------lugar social de alocutário
ou seja, ser leitor é estar num lugar social, portanto histórico, no
intercurso enunciativo.
O que isto significa é que a relação de interpretação com o texto abre
um novo jogo de cena enunciativa, que precisa, é verdade, dar conta de
encontrar, descrever e interpretar como estão configuradas as cenas pela
195
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
relação de autor. Se a representação de unidade (da unicidade, do uno)
do texto se dá do lugar do Locutor, a relação de autor é um engajamento
relativamente ao todo do texto a partir do lugar social de locutor. O
todo do texto significa assim por uma relação com o fora do texto, com
o múltiplo, portanto.
Deste modo a relação de análise de texto (de “leitor”), coloca em
cena diretamente a relação do texto com o que está fora dele, exatamente
porque não se dá na relação com o Locutor, mas com o lugar social
de locutor (locutor-x). Mas se fosse só isso estaríamos ainda muito
próximos de considerar, mesmo sem tomar o texto como uno, que o
leitor é um correlato direto do autor. Vejamos como não é este o caso.
O lugar de autor não vincula necessariamente o lugar de leitor. Não
estamos tomados como leitores no lugar que o texto prevê para seus
leitores. Este lugar “previsto” pelo texto é parte dos seus sentidos, mas
não é de onde nós vamos, necessariamente, analisá-lo, lê-lo. Analisar um
texto não é assumir o alocutário-x que o texto significa.
Um mesmo texto pode ser lido de lugares que agenciam lugares
de alocutários diferentes. Tomemos como exemplo um texto que já
analisei em outra ocasiões, “Ultima Canção do Beco” de M. Bandeira3.
A leitura deste texto pode se fazer do lugar do historiador. Se feita deste
lugar, ela traz para o processo de leitura aspectos particulares próprios
de uma concepção do que seja o objeto da História. Não se trata aqui de
considerar, por esta colocação em cena dos interesses do lugar do leitor,
as motivações pessoais, psicológicas, simplesmente. A relação de leitor
não é uma relação de vontade de uma pessoa, é um lugar constituído
pela cena enunciativa. Ou seja, a relação de leitor não se dá como uma
relação falante/ouvinte, pragmática. É por isso que estas duas categorias,
falante – ouvinte (tal como se definem na pragmática como a pessoa que
fala e a quem se fala), são insuficientes para considerar o processo de
interpretação das enunciações.
3
Ver Guimarães (2011), p. 113 – 122.
196
Eduardo Guimarães
Voltando à cena enunciativa, na relação
locutor-x ----------------------------alocutário-x
compreender o que um falante (no sentido, agora, que dou a este
termo) ou Locutor disseram não é assumir o lugar de alocutário-x,
projetado pelo autor ao assumir o todo múltiplo do texto. Ser leitor
é ser tomado por um lugar social de leitor, em outro acontecimento
(em outra temporalidade) que não é o acontecimento da enunciação do
texto. O lugar social de leitura é, diríamos, um alocutário-y a partir do
qual se interpreta, inclusive, as relações da cena enunciativa que o lugar
de autor projeta. Ou seja, não se pode analisar um texto sem levar em
conta seu próprio modo de enunciação e aquilo que ele estabelece pelo
funcionamento de suas formas de linguagem, mas o lugar de leitor não
é o lugar projetado no texto pelo autor.
3.1 Analisando um texto: um exemplo
Feita a escolha de um texto para análise, no nosso exemplo o poema
“Última Canção do Beco” de Bandeira, esta deve, dada a posição que
aqui assumimos, ser feita passo a passo.
3.1.1 Passo 1 – o Contato com o texto
O primeiro passo será sempre, obviamente, entrar em contato
com o texto pela sua leitura atenta. Como parte deste passo, pode-se,
eventualmente, fazer uma pesquisa sobre, no caso de nosso exemplo,
Manuel Bandeira, sua poesia e especificamente sobre as canções do Beco
que ele escreveu. Se estivermos pensando no ensino, esta pesquisa deve,
como sabemos, variar de nível de exigência segundo a série da turma a
que o texto for apresentado.
Este aspecto, o contato com o texto e uma pesquisa sobre sua história
e do autor, que é uma etapa simplesmente preparatória, tem importância,
pois terá desdobramentos no próprio processo de interpretação e
compreensão do texto e poderá ajudar a que se faça uma interessante
197
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
discussão a partir da melhor compreensão do texto. Esta atividade de
pesquisa pode ser ou não combinada com um professor de história, ou
outro, segundo o caso. Este passo é importante no sentido de que ele
deve mostrar que analisar um texto envolve o interesse por outros textos
que podem ajudar a melhor compreendê-lo.
No caso do ensino, o professor conversa com o grupo mostrando
certos aspectos que chamam a atenção no texto, por razões diversas,
que podem ser observadas pelo modo como o texto está constituído
por sua linguagem. O professor pode rapidamente indicar alguns destes
aspectos e depois passar a cada passo4.
Quanto ao poema considerado no nosso exemplo, deve-se observar
que ele faz parte de uma série de poemas sobre “o Beco”, que a palavra
Beco está no título e é repetido no decorrer do poema, etc. A partir destas
observações preliminares pode-se chegar a escolher um conjunto de
aspectos para análise, e isso independentemente da linearidade do texto
(início, meio, fim). Para o nosso exemplo, escolhamos aqui dois aspectos:
o sentido da palavra beco no poema, a relação locutor interlocutor no
poema (Uma análise minimamente desenvolvida deste texto envolve
mais que isso, sem dúvida).
3.1.2 Passo 2 – os sentido de Beco
Cumprida a etapa inicial do Passo 1, vai-se para um segundo
passo, o de analisar os aspectos identificados como de interesse. Para
o nosso exemplo, tomemos o primeiro aspecto referido há pouco (o
sentido da palavra beco). Esta análise leva a encontrar dois caminhos de
determinação do sentido da palavra. A palavra se repete (se reescritura)5,
várias vezes e nesta repetição vai recebendo predicações como as que
estão nas estrofes 1 e 2 (minhas tristezas, perplexidades). Nesta linha
de retomadas beco é o beco da casa e do quarto. Observa-se ainda que nas
Sobre questões relativas ao ensino da “leitura” ver o ultimo capítulo de Guimarães (2011).
Reescritura-se por repetição, para usar uma terminologia mais específica que tenho utilizado. A
reescritura é um procedimento que em certa medida rediz o que já se disse (Guimarães, 2007).
4
5
198
Eduardo Guimarães
estrofes 4 e 5, encontramos também uma repetição da palavra e outras
predicações (rua de mulheres, convento das carmelitas, pobres, etc). E
nesta sequência Beco se reescritura (é retomada) por Lapa, por exemplo.
Desse modo podemos ver que, no primeiro caso, Beco, sendo reescrito
por esta casa e meu quarto leva a uma relação em que
Quarto ┤ casa ┤beco ┤Lapa6
Por outro lado, como vimos, beco é reescrito por Lapa, por
generalização e assim se tem
Lapa ┤ beco ┤casa ┤quarto.
Assim, a análise da designação de beco nos dá, no primeiro caso, uma
passagem do íntimo ao social e, no segundo, a passagem do social ao
íntimo. No primeiro caso o lugar do poeta (“o quarto que vai ficar na
eternidade”, como memória) dá sentido à Lapa. No segundo a Lapa
(bairro de mulheres, carmelidas, etc) dá sentido ao lugar do poeta.
3.1.3 Passo 3 – a quem o poeta fala
O outro aspecto (recorte) que escolhemos no caso do nosso
exemplo foi a relação de interlocução do poema. Observando, inclusive,
o próprio processo de determinação do sentido de Beco, acima indicado,
encontramos um deslizamento pelo qual ora Beco é aquilo a que o poeta
se refere (por exemplo, versos 1, 3, 8, 15) e ora Beco é o interlocutor do
poeta (por exemplo, versos 7, 23, 24, 27, etc).
Ou seja, considerando somente a relação do lugar social de locutor
teríamos:
(1) Locutor-poeta fala ao alocutário-que lê
6
O sinal ┤ se lê determina (atribui sentido a).
199
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
(2)
Locutor-poeta fala ao Beco
Em (1) as características de beco são relativas à vida íntima do poeta.
Em (2) as características do beco são relativas às características sociais
do beco.
Ou seja, enquanto referido pela palavra Beco, o Beco se caracteriza
pelos estados de espírito do poeta; enquanto alocutário do poeta, o
Beco é predicado relativamente à sua população, que na história, vai
da religião ao pecado, passando por, e incluindo, a pobreza. Em outras
palavras, quando o Beco é referido, as características que o determinam
são afetivas, quando o Beco é o interlocutor, suas características são
objetivas, sociais.
A análise do poema vai se desenvolvendo pela consideração de
aspectos que vão se tornando relevantes a partir destas primeiras análises,
ou por que tenham sido escolhidos desde o começo. A interpretação
do poema se fará pela projeção da análise de cada um dos aspectos
sobre a análise dos outros aspectos, de modo a se ir chegando a uma
compreensão cada vez mais sustentada do que se analisa, a partir de uma
tomada de posição.
Com este tipo de procedimento, que se faz sem nenhuma remissão
necessária à linearidade do texto, é possível fazer uma reflexão sobre o
texto observando aspectos muito específicos. E isto está sustentado em
aspectos do texto, e não simplesmente em opiniões pessoais. É evidente
que, a partir da análise, pode-se tomar posições para além do texto,
motivados pela análise feita, mas isto é já outra coisa.
Uma análise como esta pode ser finalizada com uma boa síntese do
conjunto das descrições e interpretações específicas realizadas.
Não é muito difícil ver como estas análises são diversas, e como a
análise semântica é capaz de ajudar a chegar a uma compreensão do
poema relativamente a sua significação, e não simplesmente como um
documento, uma pista da história, um sintoma de algo7.
7
Para uma análise mais desenvolvida deste texto ver Guimarães (2011), p. 113-122.
200
Eduardo Guimarães
4 O lugar do analista do texto
Além dos aspectos gerais postos até aqui, o principal, nesta questão,
é que mesmo que o poema, cuja análise apresentamos como exemplo,
tenha como locutor-x um locutor-poeta, e a autoria do poema se dê pelo
engajamento deste lugar de poeta ao todo múltiplo do poema, o lugar do
qual esta análise é feita não se dá como simples correlato deste locutorpoeta. A interpretação do texto não se dá do lugar do leitor de poesia,
simplesmente. É preciso tomar uma posição que nos permita escolher
o que queremos analisar e assim fazer uma descrição e interpretação a
partir dos procedimentos que esta posição de leitura trouxer. Foi o que
fizemos no exemplo apresentado logo acima.
A posição de semanticista que assumimos neste exemplo permite
que façamos análises sem reduzir o texto ao que ele refere simplesmente,
ou a seus aspectos de coerência interna capazes de sustentar a posição
que um certo tipo de historiador buscaria. Pela posição de semanticista
podemos escolher aspectos de linguagem, não estou dizendo gramaticais,
estou dizendo de linguagem, e proceder a análises que vão se projetando
uma sobre as outras e levando a uma interpretação sustentada do texto.
E como podemos caracterizar enunciativamente este lugar do analista
do texto?
Primeiro aspecto importante, o falante, no sentido que dou a
este termo, como figura do espaço de enunciação, é agenciado em
leitor enquanto alocutário-y e não enquanto Alocutário. A análise do
texto (a interpretação), feita do lugar de leitor, é ela própria um outro
acontecimento, é de um outro tempo. Um tempo que é projetado pelo
acontecimento de enunciação como uma relação do presente ao futuro:
o futuro é, no acontecimento do texto, o tempo da interpretação.
Deste modo fica posto que a análise de um texto, a relação de leitura,
de interpretação, é sempre uma relação que não consegue escapar a
certos traços de anacronismo. Não se interpreta do lugar correlato ao do
Autor. Isto seria uma mera e impossível reprodução de suas intervenções
201
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
no processo de construção do texto. A relação de leitor vem de outro
lugar, de outro acontecimento, e faz funcionar a temporalidade do
acontecimento de modo particular.
O que procuramos desenvolver aqui foi como é possível estabelecer
um procedimento, de um lugar de leitor-semanticista, capaz de levar
em conta o processo enunciativo (de caráter histórico-político) de
constituição do sentido e assim dizer que sentidos são produzidos num
texto e como compreender este processo de produção de sentido, para
que a análise do texto não seja, simplesmente, a simples “decodificação”
do que a posição do Locutor (no sentido que Ducrot (1984) já dava a
esta figura da enunciação) constitui como unicidade textual8.
Do lugar de semanticista, poderia me perguntar que ganho este tipo
de análise pode trazer. Para isto a análise não pode ser a reprodução pura
e simples do que faz um falante (porque seria inútil), mas não pode ser
algo que simplesmente desconhece o que faz o falante quando lê, por
exemplo, e os sentidos que ele encontra no texto. É preciso interpretar
os sentidos do texto não como se estivéssemos, simplesmente, no lugar
do falante. É preciso fazer com que a interpretação seja objetivamente
direcionada por um procedimento expressamente estabelecido para que
assim se tenha um ganho de compreensão que mostre o que o texto
significa e não necessariamente o que pessoas específicas dizem que o
texto significa.
Isto significa dizer que a análise do texto não se dá na correlação
AUTOR−−−−−− LEITOR
Nem mesmo na relação
AUTOR ----TEXTO ---- LEITOR
A relação que se tem, vou representá-la como segue
8
Sobre o sentido do que seja compreensão no processo de interpretação, valemo-nos aqui da
análise de E. Orlandi (1987, 1996, entre outros), mesmo que esta noção esteja aqui deslocada
para o quadro de uma análise enunciativa.
202
Eduardo Guimarães
Autor −−−−−− TEXTO
¦¦
Leitor
A não colocação do autor e do leitor na mesma sequência horizontal
da linha indica, neste diagrama, um outro tempo, um outro acontecimento,
indica a disparidade do lugar do leitor relativamente ao lugar de autor.
Ser autor e ser leitor são relações constituídas por acontecimentos
diferentes relativamente ao mesmo texto, e isto por si significa a não
univocidade dos sentidos para um texto, significa a abertura do texto a
interpretações segundo os lugares de leitor que se constituírem para a
análise.
Se colocamos isso levando em conta que analisar um texto não é
simplesmente interpretá-lo deste lugar de alocutário-leitor tomado
no intercurso cotidiano da linguagem, temos que considerar que ao
analista, tal como faço aqui, cabe apresentar seu lugar de leitor, seu lugar
de interpretação. Trata-se nesse caso de considerar a leitura como um
procedimento próprio à linguagem, mas também como um processo que
procura dar à interpretação uma sustentação própria de procedimentos
cientificamente estabelecidos. É preciso constituir um procedimento
específico que, ao lado de levar em conta a disparidade entre relação de
autor e relação de leitor, não se descure daquilo que é a relação de autor
e não se transforme a interpretação numa prática própria da onipotência
do sujeito. Ler é dispor de um procedimento que estabelece uma distância
e ao mesmo tempo exige uma descrição do material analisado.
Quanto à questão do ensino, da posição que tomei para análise,
podemos ensinar um modo de interpretar textos que pode ser constituído
passo a passo. Escolhido o texto podemos escolher alguns aspectos
e mostrar a análise para os alunos. Em um cenário mais complexo,
escolhido o texto podemos pedir que os alunos analisem os aspectos que
203
Ler um Texto uma Perspectiva Enunciativa
escolhemos. Em um cenário ainda mais complexo, podemos pedir que
os alunos indiquem que aspectos devem ser analisados. Depois fazem
as análises e esta análise pode ser discutida. Ao final se pode pedir que
cada um faça um texto apresentando a análise a que chegou a partir da
escolha dos aspectos a serem considerados.
CONCLUSÃO
Como vemos, deste ponto de vista, a relação
AUTOR ------TEXTO
¦¦
LEITOR
é uma relação constituída por uma disparidade. Esta disparidade se
constitui porque o acontecimento da leitura não é do mesmo tempo que
o acontecimento de enunciação do texto.
A relação de autor expõe o acontecimento de enunciação a um
memorável, àquilo que de uma história de enunciações significa num
acontecimento específico. A relação de leitura, naquilo em que ela está
prevista pelo acontecimento da enunciação do texto, se dá como uma
relação do presente ao futuro deste acontecimento, na medida em que,
e somente nesta medida, ela está prevista pela futuridade própria do
acontecimento da enunciação do texto. A futuridade do acontecimento
o expõe a outros acontecimentos (de leitura, inclusive). A leitura está
projetada pelo acontecimento do texto, por sua futuridade, mas se dá
como outro acontecimento, em outra temporalidade.
204
Eduardo Guimarães
Referências
DUCROT, O. (1984) “Esboço de uma Teoria Polifônica da
Enunciação”. O Dizer e o Dito. Campinas, Pontes, 1988.
GUIMARÃES, E. Semântica do Acontecimento. Campinas, Pontes.
(2002)
______. “Domínio Semântico de Determinação”. A Palavra: Forma
e Sentido. Campinas, RG/Pontes. (2007)
______. Análise de Texto. Procedimentos, Análises, Ensino. Campinas,
RG. (2011)
ORLANDI, E. P. Discurso e Leitura. São Paulo, Cortez/Editora da
Unicamp. (1988)
______. Interpretação. Petrópolis, Vozes. (1996)
205
PARA A HISTÓRIA DO PORTUGUÊS PARANAENSE
Joyce Elaine de Almeida BARONAS
Universidade Estadual de Londrina (UEL)
RESUMO
O presente estudo objetiva apresentar as pesquisas realizadas pelo projeto “Para a história
do português paranaense: estudos diacrônicos em manuscritos dos séculos XVII a XIX
(PHPPR), vinculado ao Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade
Estadual de Londrina. Trata-se de pesquisas efetuadas sob diferentes abordagens; (i) descrição
do trabalho com os manuscritos; (ii) análise do corpus sob a perspectiva funcionalista; (iii)
estudo do processo de escolarização no Estado, (iv) abordagem diacrônica do ensino de
língua portuguesa. O corpus da pesquisa se compõe de 730 manuscritos produzidos no
Paraná, entre os anos de 1693 (Fundação de Curitiba) a 1853 (emancipação do Estado,
5a. Comarca de São Paulo), armazenados em CD ROM e disponibilizados para os
pesquisadores, docentes e discentes de cursos de pós-graduação e iniciantes em pesquisa. Tais
documentos estão em fase final de edição, de forma que parte já está publicada. Pretende-se,
no projeto PHPPR, estudar a linguagem presente em manuscritos paranaenses em seus
aspectos sintáticos, semânticos e lexicais do ponto de vista diacrônico; além disso, constituem
objetivos de trabalho: traçar a sócio-história do português paranaense, estudando a ocupação
demográfica e a formação das variedades culta e popular; contribuir para melhor compreensão
das dificuldades de aprendizagem da Língua Portuguesa a partir de dados diacrônicos; estudar
a mudança gramatical da variedade paranaense do português brasileiro; reconstruir o léxico
estudando suas alterações fonológicas, morfológicas e ortográficas; e organizar e disponibilizar
o Corpus Diacrônico do Português Paranaense, de forma a estimular novas pesquisas sobre
essa variedade.
ABSTRACT
The present study aims to present the research carried out by the project “Para a história
do português paranaense: estudos diacrônicos em manuscritos dos séculos XVII a XIX”
(PHPPR), linked to Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 207-217, jul./dez. 2013
Para a História do Português Paranaense
Estadual de Londrina . It is research conducted under different approaches: (i) description of
the work with the manuscripts, (ii) analysis of the corpus under the functionalist perspective,
(iii) study of the schooling process in the State, (iv) diachronic approach of teaching
Portuguese. The research corpus consists of 730 manuscripts produced in Paraná, between
the years 1693 (Foundation of Curitiba) to 1853 (emancipation of the state 5th. District
of São Paulo), stored on CD ROM and made available to researchers, teachers and students
of postgraduate courses and beginners in research. These documents are in final editing, so
that part is already published. It is intended, the project PHPPR, study the language in this
manuscript from Paraná in their syntactic, semantic and lexical diachronic point of view,
moreover, work objectives are: to trace the history of the Portuguese from Parana, studying
the demographic occupation and the formation of varieties cultivated and popular; contribute
to better understanding of the difficulties of learning Portuguese from diachronic data, to
study the grammatical change of Paraná variety of Brazilian Portuguese; reconstruct the
lexicon studying their phonological, morphological and orthographic, and organize and to
provide the diachronic corpus of Portuguese from Paraná in order to stimulate new research
on this variety.
PALAVRAS-CHAVE
Estudos diacrônicos. História da linguagem. Manuscritos do Paraná.
KEYWORDS
Diachronic studies. History of language. Manuscripts from Paraná.
Apresentação
O presente artigo pretende apresentar estudos sobre o português
brasileiro, realizados no projeto de pesquisa Para a história do português
paranaense: estudos diacrônicos de manuscritos dos séculos XVII a XIX, vinculado
ao Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade
Estadual de Londrina. Num primeiro momento será apresentado o
projeto aliado à metodologia e fundamentação teórica norteadora e, em
seguida, serão expostos alguns estudos já realizados no projeto.
208
Joyce Elaine de Almeida Baronas
1 O projeto Para a História do Português Paranaense
O projeto Para a história do português paranaense: estudos
diacrônicos de manuscritos dos séculos XVII a XIX, hoje na fase II, ligase ao projeto nacional e interinstitucional Para a História do Português
Brasileiro – PHPB -, sob a coordenação do Dr. Ataliba Teixeira de
Castilho (USP). Este trabalho dá continuidade a uma investigação
iniciada em 2001, na Universidade Estadual de Londrina (UEL), Para a
história do português paranaense: nas veredas do Atlas Linguístico do
Paraná, sob a coordenação da professora Vanderci de Andrade Aguilera,
cujo interesse voltava-se para o vocabulário rural paranaense registrado
no ALPR - Atlas Linguístico do Paraná (AGUILERA, 1994), nos
documentos do Boletim do Archivo Municipal de Curytiba (NEGRÃO,
1908), volumes I a VI e na base de dados do projeto ATEPAR - Atlas
Toponímico do Paraná.
Neste primeiro projeto, os estudos foram baseados no corpus
constituído por manuscritos do Boletim do Archivo Municipal de
Curytiba buscando a correlação com dados da história social do Paraná,
interessado em buscar elementos para compor a História do Português
Brasileiro no Paraná.
Atualmente, o projeto desenvolvido na Universidade Estadual de
Londrina propõe uma pesquisa sobre a história do português brasileiro,
baseada nos seguintes documentos:
a) Documentos escritos durante os séculos XVII, XVIII e metade
do XIX, nas antigas vilas que hoje se constituem municípios do estado
do Paraná.
Tais manuscritos fazem parte do acervo do Arquivo Público do
Estado de São Paulo e são, em sua maioria, documentos enviados pela
Câmara dos vereadores dessas primeiras vilas fundadas no litoral da então
capitania de São Vicente - como Paranaguá, Antonina, Guaraqueçaba,
Guaratuba, Vila Nova do Príncipe e Castro – às autoridades maiores,
como governadores e bispos.
209
Para a História do Português Paranaense
b) Documentos advindos da Casa da Memória (Curitiba - PR) e
do Arquivo Público do Estado do Paraná – acervo de conta com os
documentos pós-emancipação do estado do Paraná.
Esta proposta de estudos dos documentos paranaenses se justifica
pela necessidade de pesquisas dedicadas aos estudos linguísticos
diacrônicos nas Instituições de Ensino Superior do Paraná. Em vista
disso, há um número incalculável de manuscritos, oficiais ou não, à espera
de uma edição confiável e de estudos linguístico-filológicos, que possam
complementar as pesquisas que hoje buscam lançar luzes à história do
português brasileiro.
Objetivamente, este projeto propõe-se a efetuar a edição, feitas em
duas etapas, de:
a)
b)
730 manuscritos produzidos no Paraná, entre os anos de 1693
(Fundação de Curitiba) a 1853 (emancipação do Estado, 5a.
Comarca de São Paulo),
750 manuscritos produzidos no estado após a emancipação,
chegando a documentos datados do início do século XX.
Todo o material vem sendo armazenado em CD ROM e será
disponibilizado para os pesquisadores, docentes e discentes de cursos
de pós-graduação e iniciantes em pesquisa, na forma de publicações
de Opúsculos, além de ser objeto de estudo de inúmeras monografias,
dissertações e teses.
2 Fundamentação
O projeto Para a história do português paranaense: estudos diacrônicos em
manuscritos dos séculos XVII a XVIII objetiva contribuir para a história do
português brasileiro, em particular paranaense, registrando, descrevendo,
analisando e comparando dados oriundos de um corpus diacrônico
referente à documentação manuscrita produzida no Paraná já referida
acima.
210
Joyce Elaine de Almeida Baronas
O projeto busca, ainda:
i) organizar um banco de dados com manuscritos sobre a História
do Paraná referentes aos séculos XVII a XIX;
ii) editar os documentos coletados;
iii) produzir obras lexicográficas sobre o léxico paranaense; e
iv) viabilizar o acesso da comunidade científica aos dados
diacrônicos, extraídos dos manuscritos.
Para a execução desse projeto, além do corpus constituído de cerca
de 750 documentos oficiais coletados junto ao Arquivo Público do
Estado de São Paulo, em fase de transcrição e edição, o projeto, como
já mencionado, incorporou novos documentos coletados em arquivos
públicos do estado e da Casa da Memória do município de Curitiba e
outros manuscritos obtidos de várias fontes, salientando-se uma dezena
de cartas pessoais (CYRINO, 2003).
Nesta primeira etapa os documentos são transcritos com o objetivo
de fazer um levantamento de dados importantes para os comentários
linguístico-filológicos, tais como: local, data, destinatário, escriba, assunto
ou tema de cada manuscrito. A edição dos documentos segue as normas
estabelecidas pelo PHPB e orientações filológicas de pesquisadores da
área, como o Drs. Heitor Megale e Manoel Mourivaldo S. Almeida (USP)
e Dr.ª Rosa Virgínia Mattos e Silva (UFBA), como o modelo do anexo.
Seguiu-se a edição dos manuscritos a composição de um glossário
com termos arcaicos1 (que marcam certo conservadorismo) constantes
Sobre os arcaísmos, é preciso assinalar que sua definição depende da observação de fatores, tais
como: i) a palavra pode não estar presente no vocabulário ativo de falantes de determinada região
e ser muito produtiva em outras regiões; ii) a palavra pode ter perdido o status de padrão culto
e ser mais frequente no falar rural ou inculto, neste caso, arcaísmo e falar rural se confundem;
iii) em outros casos, em vez de perda de status há uma ascensão, pois, passa a ser frequente na
linguagem literária, científica ou técnica; iv) as palavras não desaparecem do dia para a noite, elas
vão sendo substituídas pouco a pouco dentro da comunidade de fala, pelas gerações mais novas,
por diversos fatores: desaparecimento do objeto (referente); modernização do objeto; evolução
da técnica, da ciência, mudanças na organização da sociedade, entre outros.
1
211
Para a História do Português Paranaense
dos documentos editados.
É importante sinalizar que os trabalhos posteriores de análise
linguística serão norteados pelos pressupostos teóricos da Sociolinguística
(Labov, Tarallo), no que se refere à relação linguística e sociedade, e
da Linguística Histórica (Mattoso Câmara, Silva Neto, Spina, Teyssier,
Huber, Coutinho, Alckmim, Mattos e Silva, Faraco, dentre outros), no
que se refere à análise dos fatos linguísticos à luz da diacronia.
A transcrição de textos antigos exige atenção especial, principalmente
quando estes textos são destinados a estudos de caráter linguísticofilológico. Para isso, é necessário um refinado tratamento de certos
aspectos que, para estudos de outra natureza, poderiam estar em segundo
plano. Somente uma transcrição fidedigna e cuidadosa pode deixar
transparente todos os traços linguísticos possíveis de serem analisados
nos originais manuscritos. Dessa forma, tanto o êxito do trabalho quanto
a solidez dos resultados seguramente estão condicionados à qualidade
da edição dos textos que estão na base desse estudo linguístico. Em
verdade, é a natureza dos textos e sobretudo a finalidade da edição que,
de certa forma, determinam os métodos e normas de transcrição.
Para a edição dos manuscritos do corpus foi preciso elaborar algumas
normas próprias de transcrições, como também utilizar as normas eleitas
para o projeto Para a História do Português Brasileiro - PHPB, apresentadas e
discutidas durante o segundo seminário, realizado em Campos do Jordão,
no período de 10 a 16 de maio de 1998, pela comissão de pesquisadores
composta por Heitor Megale (USP), César Nardelli Cambraia (USP),
Gilvan Muller de Oliveira (UFSC), Marcelo Módolo (mestrando-USP),
Permínio Ferreira (UFBa), Sílvio de Almeida Toledo Neto (USP), Tânia
Lobo (UFBa) e Valdemir Klamt (UFSC).
Dessa forma, decidiu-se aplicar a edição semidipomática, com
reprodução justalinear e acompanhada do fac-símile.
212
Joyce Elaine de Almeida Baronas
3 Subprojetos
O projeto PHPP mantém como proposta o desenvolvimento de
subprojetos que analisam o corpus dentro das grandes linhas de pesquisa
sugeridas pelo PHPB – História Social, Mudança Gramatical e Tradições
Discursivas. Desta forma, os participantes do projeto desenvolvem
pesquisas sob orientação dos docentes (pesquisadores) da equipe,
havendo trabalhos de diferentes abordagens, como: (i) descrição do
trabalho com os manuscritos; (ii) análise do corpus sob a perspectiva
funcionalista; (iii) estudo do processo de escolarização no Estado, (iv)
abordagem diacrônica do ensino de língua portuguesa. Todos estão
vinculados ao projeto e fazem parte, nos diversos níveis do ensino
superior – projetos da graduação (IC) e da pós-graduação desenvolvidos
na UEL e nas universidades em que há pesquisadores do projeto.
4 Trabalhos realizados
Nesta seção serãor serão apresentados trabalhos resultantes de
estudos vinculados ao item (iv) abordagem diacrônica do ensino de
língua portuguesa
4.1 A escrita de alunos do ensino fundamental: uma visão
diacrônica.
Este trabalho constitui uma monografia de Especialização de
Vanessa Lini, concluída em 2008, na Universidade Estadual de Londrina.
O estudo buscou traçar uma paralelo entre a escrita de alunos do ensino
fundamental e a escrita registrada em manuscritos do século XVII,
buscando melhor compreender os chamados “erros escolares” e as
dificuldades do aluno do ensino fundamental em relação à aquisição da
norma padrão para, finalmente, propor uma contribuição aos professores
de Língua Portuguesa sobre as dificuldades de escrita.
213
Para a História do Português Paranaense
Para a realização deste estudo, a autora realizou as seguintes etapas:
(i) observação de ocorrências de desvios da norma em produções de
alunos do ensino fundamental; (ii) observação das características de
escrita de documentos manuscritos do século XVII; (iii) estudo sobre
as mudanças da Língua Portuguesa no decorrer do tempo; (iv) estudo
comparativo entre a escrita atual e a antiga.
Como resultado da pesquisa, a autora constatou muitas semelhanças
na escrita atual e a antiga, no que diz respeito aos desvios da norma, o
que implica afirmar que, se no século XVIII, o escriba não tinha acesso
ao ensino, hoje, no século XXI, o aluno, mesmo tendo tal acesso, tem
muita dificuldade de assimilar a norma padrão, pelo distanciamento
existente entre ela e a sua maneira própria de se expressar.
4.2 Ensino de língua portuguesa no Paraná: um olhar
diacrônico
Este estudo constitui uma dissertação de mestrado realizado
por Juliana Fogaça, concluída em 2009, na Universidade Estadual de
Londrina. O estudo buscou verificar as mudanças ocorridas no ensino,
principalmente o de Língua Portuguesa, no estado do Paraná. Além disso,
foram objetivos do trabalho: (i) analisar a concepção de linguagem que
perpassava o ensino no Paraná, no século XIX, comparando-a com a
concepção de linguagem atualmente defendida pelos PCNs e Diretrizes
Curriculares do Paraná; e (ii) traçar o percurso histórico do processo de
escolarização no traçar Brasil e, especificamente, no Paraná.
Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo e interpretativo,
visto ser o foco principal a análise histórico-social da instrução pública
paranaense. A autora estudou documentos dos séculos XVI ao XIX, com
maior ênfase no século XIX. Mais especificamente, os corpora analisados
foram: (i) manuscritos de documentos sobre o Paraná, produzidos entre
os anos de 1693 e 1853, que constam do Arquivo Público de São Paulo,
além de manuscritos coletados no Arquivo Público do Paraná, datados a
214
Joyce Elaine de Almeida Baronas
partir de 1853; (ii) relatórios dos presidentes da província, especificamente
os relatórios do presidente Zacarias de Góes e Vasconcellos, primeiro
presidente da província do Paraná. (iii) legislações referentes à instrução
pública paranaense; (iv) Parâmetros Curriculares Nacionais (1998); (v)
Diretrizes Curriculares para a Educação Pública do Estado do Paraná
(2007).
Como resultado da pesquisa, a autora verificou a mudança de
concepção de língua nos documentos analisados, ou seja, enquanto que
no século XVII, a concepção de língua que vigorava no ensino era a
linguagem como expressão do pensamento, no século XIX a concepção
já havia se alterado para a linguagem como objeto de interação. Cabe
ressaltar que o estudo focou especificamente os documentos, o que
implica afirmar que tal percepção de mudança não se estende à prática
escolar, o que exige outro estudo mais detalhado.
4.3 Perspectivas para o ensino escolar da história do
português brasileira: manuscritos paranaenses do século
XVIII
Este trabalho constitui uma dissertação de mestrado concluída em
2012, na Universidade Estadual de Londrina, em que se buscou (i) analisar
a variação histórica que envolve os manuscritos setecentistas verificando
as mudanças ocorridas na língua portuguesa; (ii) analisar as coleções de
livros didáticos do ensino fundamental, aprovadas pelo PNLD/2011Plano Nacional do Livro Didático; e (iii) elaborar atividades didáticas
que possam ser úteis para o estudo da variação linguística na escola.
Os corpora do estudo se dividem em um corpus atual, composto de 16
coleções de livros didáticos, aprovados pelo PNLD e em um corpus
antigo, composto de manuscritos do século XVIII, pertencentes à Vila
de Guaratuba – PR, que compõem a obra “Scripturae nas Villas de São
Luiz de Goaratuba e Antonina: manuscritos setecentistas e oitocentistas.
215
Para a História do Português Paranaense
Como resultado da pesquisa, a autora identificou nas coleções
de livros didático a carência de propostas didáticas sob a perspectiva
diacrônica e elaborou uma unidade de estudos diacrônicos com os
manuscritos novecentistas.
Considerações finais
O presente estudo buscou apresentar o projeto de pesquisa Para
a história do português paranaense: estudos diacrônicos de manuscritos dos séculos
XVII a XIX além de estudos realizados no citado projeto. Trata-se de
um trabalho que busca melhor compreender a língua e o ensino da língua
em terras brasileiras. Espera-se que os resultados desta pesquisa possam
ser úteis a demais pesquisadores que se interessam pela diacronia da
língua.
Referências
AGUILERA, V. de A. (Org.). Para a História do Português Brasileiro:
(Vozes, Veredas, Voragens). 1. ed. Londrina: EdUEL, 2009, v.II, p.800.
AGUILERA, V. de A.; ALMEIDA BARONAS, J. E. (Orgs.): Scripturae
nas Villas de São Luiz de Goaratuba e Antonina: manuscritos
setecentistas e oitocentistas. Londrina: Eduel, 2007, v.1. p.132.
ALVES, Silvane Luceli de Andrade. Perspectivas para o ensino
escolar da história do português brasileira: manuscritos paranaenses
do século XVIII. 2012. 146f. Dissertação (Mestrado em Estudos da
Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2012.
ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO. Seleção de
manuscritos paranaenses. CD ROM, inédito.
216
Joyce Elaine de Almeida Baronas
CASTILHO, A. T. Português Brasileiro: descrição, história, teorização.
Linguistica (Madrid), v. 24, p. 77-100, 2010.
CYRINO, S. M. L. Para a história do português brasileiro: a presença
do objeto nulo e a ausência de clíticos. Letras de Hoje, Porto Alegre, v.
38, n. 1, p. 31-47, 2003.
LINI, Vanessa. A escrita de alunos do ensino fundamental: uma visão
diacrônica. 2008. Monografia. (Especialização em Língua Portuguesa) Universidade Estadual de Londrina. Universidade Estadual de Londrina,
Londrina. 2008.
SIMM, Juliana Fogaça Sanches. Ensino de língua portuguesa no
Paraná: um olhar diacrônico. 2009. Dissertação (Mestrado em Estudos
da Linguagem) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina. 2009.
217
DA PANAFORIZAÇÃO À METAFORIZAÇÃO: O CASO
DE UMA PEQUENA FRASE SEM EIRA NEM BEIRA
TEXTUAL
Roberto Leiser BARONAS
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Universidade Federal de Mato Grosso – (UFMT)
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
RESUMO
Neste artigo, apoiados na Análise de Discurso de base enunciativa, mais especificamente
em Maingueneau (2010, 2011a, 2011b e 2012), procuramos analisar a irrupção, a
retomada, a transformação e a circulação do enunciado de curta extensão “A esperança
venceu o medo”, dado a circular pelos mais diversos suportes midiáticos brasileiros a partir
do segundo semestre de 2002. De forma não tão exaustiva, estabelecemos como recorte
temporal o período compreendido entre os anos de 2002 a 2012. Inicialmente, procuramos
definir as características linguísticas e discursivas da expressão enunciado de curta extensão,
diferenciando-o, por exemplo, de outros como slogan, provérbios, máxima, fórmula. Num
segundo momento, descrevemos as características enunciativas desse fenômeno linguísticodiscursivo. A seguir, discorremos sobre as características linguístico-discursivas que favorecem
a retomada, a transformação e a circulação do enunciado. Em conclusão, por um lado,
comentamos acerca dos determinantes genéricos e semióticos mobilizados pela mídia na
retomada, transformação e circulação do enunciado em questão e, por outro, discutimos os
diferentes acontecimentos discursivos engendrados por tais retomadas e circulação, entendendo
o enunciado “A esperança venceu o medo”, por conta não só da sua ampla circulação, mas pelo
fato mesmo de designar ao longo de mais de uma década, os mais diferentes acontecimentos
discursivos, enquanto uma metaforização, que difere do conceito de panaforização, proposto
por Maingueneau 2010.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 219-248, jul./dez. 2013
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
ABSTRACT
In this article, supported in Discourse Analysis of enunciative basis, specifically in
Maingueneau (2010, 2011a, 2011b and 2012), we seek to analyze the eruption, recapture,
transformation and circulation of the short extension phrase “Hope overcame fear”, given
into circulation in several Brazilian media places, since the second semester of 2002. In
a non-exhaustive manner, we established as time frame the period comprehend between
2002 and 2012. Initially, we seek to define linguistics and discursive characteristics of
the expression short extension phrase, differentiating it from, for example, others as slogan,
proverbs, maximum and formulas. Secondly, we describe the enunciative characteristics of this
linguistic-discursive phenomenon. Next, we descant about linguistic-discursive characteristics
that benefits recapture, transformation and circulation of the phrase. In conclusion, in one
hand, we point out the generic and semiotics determinants mobilized by the media in recapture,
transformation and circulation of the phrase, in the issue and, in the other hand, we discuss
the different discursive events that begotten by these recaptures and circulation, comprehending
the phrase “Hope overcame fear”, by not only in its huge circulation, but by the fact itself of
designate during one decade, the most different discursive events, as a metaphorization, that
differs from the concept of panaphorization, proposed by Maingueneau 2010.
PALAVRAS-CHAVE
Discurso. Enunciação aforizante. Metaforização. Mídia e política. Panaforização.
KEYWORDS
Aphorizating phrase. Discourse. Media and politics. Metaphorization. Panaphorization.
Primeiras palavras...
Numa rápida procura pelo enunciado “A esperança venceu o medo”,
no site de buscas Google, é possível observar que irrompem pelo menos
822000 ocorrências. Essas ocorrências estão presentes nos mais diversos
campos do saber: político, midiático, religioso; nos mais variados suportes:
jornais e revistas impressas e digitais, vídeos, outdoors; nos mais variados
220
Roberto Leiser Baronas
gêneros discursivos: editoriais de jornais e revistas, artigos de opinião,
propaganda política, letras de músicas, caricaturas, charges; na voz de
diferentes sujeitos enunciadores: políticos, jornalistas, marqueteiros,
religiosos e também são destinadas aos mais diferentes interlocutores. A
alta recorrência do enunciado em questão nos mais variados campos do
saber, suportes, gêneros; enunciadores e interlocutores evidencia que se
trata de um fenômeno linguístico-discursivo digno de ser tornado objeto
de estudo.
Neste texto, apoiados na Análise de Discurso de base enunciativa,
mais especificamente em Maingueneau (2010, 2011a, 2011b e 2012),
procuramos analisar a irrupção, a retomada, a transformação e a circulação
do enunciado de curta extensão “A esperança venceu o medo”, dado a
circular pelos mais diversos suportes midiáticos brasileiros a partir do
segundo semestre de 2002. De forma não tão exaustiva, estabelecemos
como recorte temporal o período compreendido entre os anos de 2002
a 2012. Inicialmente, procuramos definir as características linguísticas e
discursivas da expressão enunciado de curta extensão, diferenciando-o,
por exemplo, de outros como slogan, provérbios, máxima, fórmula.
Num segundo momento, descrevemos as características enunciativas
desse fenômeno linguístico-discursivo. A seguir, discorremos sobre
as características linguístico-discursivas que favorecem a retomada,
a transformação e a circulação do enunciado. Em conclusão, por um
lado, comentamos acerca dos determinantes genéricos e semióticos
mobilizados pela mídia na retomada, transformação e circulação
do enunciado em questão e, por outro, discutimos os diferentes
acontecimentos discursivos engendrados por tais retomadas e circulação,
entendendo o enunciado “A esperança venceu o medo”, por conta não
só da sua ampla circulação, mas pelo fato mesmo de designar ao longo
de mais de uma década, os mais diferentes acontecimentos discursivos,
enquanto uma metaforização, que difere do conceito de panaforização,
proposto por Maingueneau 2010.
221
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
1 Sobre a enunciação aforizante...
Poucas pessoas hoje em dia contestam a ideia de que o texto constitui
a única realidade empírica com a qual os linguistas lidam: unidades como
a frase ou a palavra são necessariamente retiradas de textos. O texto é,
de fato, a contraparte do gênero do discurso, que é o quadro de toda
a comunicação imaginável. Maingueneau utiliza aqui o termo “gênero
do discurso” para atividades como o registro de nascimento, o debate
televisivo, o sermão, etc. O teórico francês associa frequentemente essa
posição a Mikail Bakhtin, em particular a seu artigo intitulado “Problemas
dos gêneros do discurso”, escrito em 1952-19531.
Todavia um problema se coloca quando é preciso tratar de enunciados
que se apresentam fora do texto, geralmente constituídos de uma única
frase. Esses enunciados são chamados por Dominique Maingueneau
de “enunciados destacados”. Eles são de tipos muito diversos: slogans,
máximas, provérbios, títulos de artigos da imprensa, dicções, intertítulos,
citações célebres, etc. Para o pesquisador francês, devem-se distinguir
duas classes bem diferentes, segundo o seu “destacamento”: 1) é
constitutivo: é o caso em particular das fórmulas (provérbios, slogans,
divisas...) que por sua própria natureza são independentes de um texto
particular; 2) ou resulta da extração de um fragmento de texto: quando nos
encontramos em uma lógica de citação.
Essa extração não acontece de maneira indiferenciada sobre
todos os constituintes de um texto, pois frequentemente o enunciador
sobreassevera alguns de seus fragmentos e os apresenta como destacáveis.
A sobreasseveração é uma modulação de enunciação que procura
alçar um fragmento como candidato a uma des-textualização. Trata-se
de uma operação de destaque do trecho que é realizada em relação ao
restante dos enunciados, por meio de marcadores diversos: de ordem
aspectual (generecidade), tipográfica (posição de destaque em uma
NT. Tradução brasileira. BAKHTIN, M. “Gêneros do Discurso”. In: Estética da
Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
1
222
Roberto Leiser Baronas
unidade textual), prosódica (insistência), sintática (construção de uma
forma pregnante), semântica (recurso aos tropos), lexical (utilização de
conectores de reformulação)...
A comparação entre os enunciados destacados e sua contraparte –
sobreasseverados ou não – no texto em que são extraídos mostra que na
maioria das vezes o enunciado quando é destacado sofre uma alteração.
Essa alteração pode ser mais ou menos importante.
Nesse sentido, quando em seu editorial, o jornal Estadão destaca
da propaganda eleitoral de Marta Suplicy, nas eleições municipais de
São Paulo em 2008, duas das nove perguntas que a locutora fez ao seu
oponente Gilberto Kassab, essas perguntas, sobreasseverações na fala da
então candidata, se transformam numa aforização com ampla circulação
nos mais diversos suportes midiáticos:
FIGURA 1: Propaganda eleitoral de Marta Suplicy: eleições
municipais de São Paulo - 2008
223
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
FIGURA 2: Editorial do Estadão de 25/10/2008
No entendimento de Maingueneau, essas divergências entre o
contexto fonte e o destacamento são reveladoras de um estatuto
pragmático específico para os enunciados destacados. Esses últimos
revelam, com efeito, um regime de enunciação que o teórico francês
propõe chamar “enunciação aforizante”. Nesse sentido, no entendimento
de Dominique Maingueneau entre uma “aforização” e um texto não
existe uma diferença de tamanho, mas de ordem. Esquema a seguir
ilustra as duas ordens enunciativas propostas por Maingueneau:
224
Roberto Leiser Baronas
Por meio da aforização o locutor se coloca além dos limites
específicos de um determinado gênero do discurso. O « aforizador »
assume o ethos do locutor que fala do alto, de um indivíduo em contato
com uma Fonte transcendente, ele não se dirige a um interlocutor
colocado no mesmo plano que ele e que poderia responder, mas a um
auditório universal. Ele supostamente enuncia a sua verdade, subtraindo
toda a negociação, exprime uma totalidade vivida: seja uma doutrina ou
uma certa concepção de existência. Por intermédio da aforização vê-se
coincidir sujeito da enunciação e Sujeito no sentido jurídico e moral: alguém
que se coloca como responsável, afirmando valores e princípios diante
do mundo, se dirigindo a uma comunidade para além dos locutores
empíricos que são seus destinatários.
Entretanto, este é o ponto central do problema, o aforizador não
é um locutor, o suporte da enunciação, mas uma consequência do
destacamento. Quando se extrai um fragmento de texto para fazer uma
aforização, convertemos ipso facto seu locutor original em aforizador.
225
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
2 A panaforização...
O desenvovimento recente de uma configuração midiática
totalmente nova, que associa diretamente a mídia impressa, o rádio, a
televisão, a internet e a telefonia móvel permitiu aumentar para níveis
sem precedentes o destacamento e a colocação em circulação das
aforizações.
Com efeito, um certo número de aforizações são tomadas em um
processo de tipo pandêmico: durante um período curto é possível
observar a circulação dessas aforizações em todas as mídias e às vezes
com uma frequência muito elevada, com estatutos muito diversos: título
de um artigo de jornal ou de uma página da internet, frase que circula na
parte de baixo do monitor de um canal de informação televisiva, título
de um vídeo sobre o Youtube, etc. Como exemplos Maingueneau cita
o enunciado « Que vergonha, Barack Obama »2, proferido por Hillary
Clinton nas eleições presidenciais americanas de 2008, e o enunciado
de Sílvio Berlusconi: « Obama é jovem, belo e bem bronzeado »3 (06
de novembro de 2008). Nesses casos, segundo Maingueneau, pode-se
falar de uma « panaforização », termo que combina o pan « pandemia »
e « aforização ». A panaforização figura nas manchetes dos jornais, se
infiltra nas conversaçãoes ordinárias, suscita debates de todas as espécies
nas mídias : sobre os fóruns, os talk-shows televisivos, no correio dos
leitores, etc. Antes de desaparecer é substituída por outras. A efemeridade
e amapla circulação são os seus traços mais marcantes.
Em regra geral, a panaforização passa pelas notícias das agências de
imprensa. O texto a seguir é uma notícia da Agência Reuteurs, consagrada
a aforização de Berlusconi. Para Maingueneau ela consagra triplamente o
estatus de panaforização do enunciado destacado: pelo título da notícia,
pela relativa, «que é jovem, bonito e também bronzeado»4, colocada em
final de citação e pela conclusão: «sua observação rapidamente apareceu
No original em inglês « Shameonyou, Barack Obama ».
No original em italiano (E giovane, bello, e ancheabbronzato »).
4
No original em ingles who is handsome, young and also suntanned.
2
3
226
Roberto Leiser Baronas
em áudio e impressa em grandes sites de mídia ao redor do mundo»5.
Isso possibilita, de fato, o efeito de aumentar ainda mais a difusão dessa
panaforização.
Berlusconi da Itália elogia “bronzeado” de Obama6
Qui, 06 de novembro de 2008 16:45 EST
MOSCOU (Reuters) – O primeiro ministro italiano,
Silvio Berlusconi, fez uma entusiasmada, senão original
saudação, na quinta, à eleição de Barack Obama, citando
entre seus atributos, a juventude, a boa aparência e o
bronzeado.
Falando em uma conferência de imprensa conjunta com
o presidente russo, Dimitry Medvdev em Moscou, o
magnata da mídia de 72 anos, também disse que a eleição
de Barack Obama à Casa Branca foi “saudada pela
opinião pública mundial como a chegada de um messias”
“Tentarei ajudar as relações entre a Rússia e os Estados
Unidos, onde uma nova geração chegou ao poder, e não
vejo problemas para Medvdev estabelecer boas relações
com Obama, que é bonito, jovem e também bronzeado,”
disse ele.
5
NT. No original em ingles “his remark quickly appeared in print and audio on major media
websites around the world”.
6
No original em inglês: Italy’s Berlusconi hails “suntanned” Obama
Thu Nov 6, 2008 4:45pm ESTMOSCOW (Reuters) - Italian Prime Minister Silvio Berlusconi
gave an enthusiastic, if unconventional, welcome on Thursday to the election of Barack Obama,
citing among his attributes youth, good looks and a suntan. Speaking at a joint news conference
with Russian President Dmitry Medvedev in Moscow, the 72-year-old media tycoon also said
Obama’s election to the White House had been “hailed by world public opinion as the arrival
of a messiah.” “I will try to help relations between Russia and the United States where a new
generation has come to power, and I don’t see problems for Medvedev to establish good
relations with Obama who is handsome, young and also suntanned,” he said. Berlusconi, who
prides himself on being a friend of outgoing U.S. President George W. Bush, shrugged off a
barrage of criticism in Italy as his remark quickly appeared in print and audio on major media
websites around the world.
227
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
Berlusconi, que se orgulha de si mesmo por ser amigo
do presidente que se afasta, George W. Bush, não se
importou com a enxurrada de críticas na Itália à sua
observação, que apareceu rapidamente impressa e em
áudio nos maiores sites de mídia ao redor do mundo.
Outro exemplo que ilustra bem o funcionamento da panaforização é
a frase “Vada a bordo, cazzo”, dita pelo comandante Gregório De Falco da capitania do Porto de
Livorno na Itália ao capitão do navio Costa Concórdia Francesco Schettino em 11 de janeiro último
quando do naufrágio da embarcação. Depois de proferida, em instantes essa frase foi destacada de
seu contexto original de produção e passou a circular nos mais diversos gêneros e suportes midiáticos
mundiais.
FIGURA 3: Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em
18/01/2012
228
Roberto Leiser Baronas
A matéria anterior, que fala da transformação do enunciado “Vada
a bordo, cazzo” em bordão de camiseta, publicada no site da Folha Online em 18/01 deste ano,
nos dá uma boa dimensão do
quanto essa frase do capitão Gregório De Falco ganhou rapidamente
em circulação, se constituindo numa panaforização. Entretanto, poucos
dias depois de proferida essa frase deixou de frequentar os suportes
midiáticos.
Outro exemplo de panaforização pôde ser observado a partir da
ampla circulação no cenário midiático brasileiro e internacional da
música “Aí se eu te pego”, de Michel Teló:
alguns dias após o naufrágio do navio Costa Concórdia,
Ai Se Eu Te Pego
Michel Teló
Nossa, nossa
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Delícia, delícia
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Sábado na balada
A galera começou a dançar
E passou a menina mais linda
Tomei coragem e comecei a falar
Nossa, nossa
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Delícia, delícia
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Sábado na balada
A imagem acima foi veiculada no site
do UOL em janeiro de 2012 e referese a um dos protestos realizados
pelos moradores da comunidade do
Pinheirinho em São José dos Campos
– SP, após a violenta reintegração de
posse do terreno dessa comunidade,
realizada pela Polícia Militar de São
Paulo em janeiro de 2012. O enunciado
“Polícia, polícia, assim você me mata!
Aí se eu te pego! Ai, Ai se eu te pego”,
destacado da música de Michel Teló se
constitui numa aforização, cujo efeito
de sentido é um gesto de resistência em
relação à atitude truculenta da PM de
São Paulo.
229
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
A galera começou a dançar
E passou a menina mais linda
Tomei coragem e comecei a falar
Nossa, nossa
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego
Delícia, delícia
Assim você me mata
Ai se eu te pego, ai ai se eu te pego.
Abaixo, a matéria publicada no site
www.asmelhoressertanejas.com.
br, em outubro de 2011, na qual
é possível observar a coreografia
realizada pelos jogadores do
Real Madrid para comemorar
gol frente ao Málaga a partir do
hit Ai se eu te pego de Teló. Essas
diferentes manifestações do hit de
Teló evidenciam o seu status de
panaforização.
FIGURA 4: Matéria publicada no site www.asmelhoressertanejas.
com.br em 01/10/2011)
230
Roberto Leiser Baronas
3 Adentrando nas análises: um pouco de metodologia...
Segundo Courtine (2007, p. 125), em Análise do Discurso de
orientação francesa há basicamente “duas possibilidades de tratamento
de corpora”. Por um lado, é possível trabalhar com corpus de base
experimental, ou seja, com questionários dirigidos a um interlocutor
em uma situação específica, por exemplo, e, por outro, com corpus de
base arquivística, isto é, com um conjunto de textos institucionais,
semelhantes aos mobilizados pelos historiadores. Importante salientar
que os corpora em Análise do Discurso não são dados a priori. A questão
de pesquisa é que determina a maneira mesmo como os corpora serão
montados e frequentados.
Ampliando a discussão sobre o tratamento de diferentes tipos
de corpora em Análise de Discurso, Maingueneau (2007) nos diz que
as unidades fundamentais com as quais trabalham os analistas do
discurso são formação discursiva, gênero de discurso e posicionamento.
Entretanto, na grande maioria das vezes a articulação dessas unidades –
e mesmo sua compatibilidade – não são explicitadas pelos analistas.
No intuito de melhor compreender tais unidades, Dominique
Maingueneau (2007) propõe pensá-las em dois grandes grupos:
Unidades Tópicas e Unidades Não-Tópicas. Das primeiras fazem parte
as Unidades Territoriais e as Unidades Transversas das segundas fazem
parte as Formações discursivas e os Percursos. Das Unidades Territoriais,
por sua vez, fazem parte os tipos e os gêneros de discurso, subdivididos
em gêneros de campo e gêneros de aparelho e, das Unidades Transversas
fazem parte os registros: linguísticos, funcionais e comunicacionais.
O quadro a seguir, retirado de Maingueneau (2007), resume os
diferentes tipos de unidades com as quais trabalham os analistas do
discurso.
231
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
Unidades tópicas
Territoriais
Unidades não-tópicas
Transversas
Fo r m a ç õ e s
discursivas
Percursos
Tipos / Gêneros de discurso
-----------------------a) Gêneros dependentes de
campos
b) Gêneros dependentes de
- Registros linguísticos
- Registros funcionais
- Registros comunicacionais
aparelhos
Nosso trabalho trata então, por sua de sua temática mesmo, de
unidades não-tópicas. Todavia, não de formações discursivas, pois
unidades como “o discurso sobre a pedofilia”, «o discurso racista», «o
discurso pós-colonial», «o discurso patronal», por exemplo, não podem
ser delimitadas por fronteiras que não sejam as estabelecidas pelo
pesquisador (MAINGUENEAU, 2007, p. 32.). Trabalhamos com os
percursos. Por essa categoria Maingueneau (2007, p 32-3) entende:
Os analistas do discurso podem ainda construir corpus de
elementos de diversas ordens (palavras, grupos de palavra,
frases, fragmentos de textos) extraídos do interdiscurso,
sem buscar construir espaços de coerência, ou seja, sem
procurar constituir totalidades. Nesse caso, deseja-se, ao
contrário, desestruturar as unidades instituídas por meio
da definição de percursos inesperados: a interpretação se
apóia, assim, sobre a explicitação de relações imprevistas
no interior do interdiscurso. Esses percursos são hoje
consideravelmente facilitados pela existência de softwares
que permitem tratar conjuntos de textos bastante vastos.
Podemos prever percursos de tipo formal(certo tipo
de metáfora, uma dada forma de discurso relatado,
de derivação sufixal, etc.); porém, nesse caso, se
232
Roberto Leiser Baronas
não trabalhamos com um conjunto discursivo bem
especificado, recaímos na análise puramente linguística.
Podemos igualmente prever percursos baseados em
materiais lexicais ou textuais: por exemplo, a retomada
ou as transformações de uma mesma expressão em uma
série de textos, ou então as diversas recontextualizações
de um «mesmo» texto.
Com base na categoria metodológica de percurso, procuramos analisar
a irrupção, a retomada, a transformação e a circulação do enunciado de
curta extensão “A esperança venceu o medo”, dado a circular pelos mais
diversos suportes midiáticos brasileiros a partir do segundo semestre de
2002. Conforme já enunciado, de forma não tão exaustiva, estabelecemos
como recorte temporal o período compreendido entre os anos de 2002
a 2012.
4 As análises...
A emergência desta pequena frase no cenário político brasileiro está
a princípio ligada à irrupção do enunciado “Estou com medo” e se deu no
segundo semestre de 2002. À época o candidato do PT, Luís Inácio Lula
da Silva e o candidato do PSDB, José Serra disputavam o segundo turno
das eleições presidenciais de 2002. Na reta final de campanha, poucos
dias antes das eleições, num dos programas de José Serra, no horário
eleitoral gratuito, veiculado tanto na televisão quanto no rádio, a atriz
Regina Duarte da Rede Globo de Televisão aparece em um vídeo de 59
segundos dizendo estar temerosa pelo fato de que o então candidato
Lula poderia retroceder em relação às conquistas do Plano Real e de que
não tirasse do papel nenhuma promessa social. A respeito desse medo
disse Regina Duarte:
233
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
FIGURA 5: Vídeo disponível em www.youtube.com/
watch?v=DEeNSkXn5mY
“Estou com medo. Faz tempo que eu
não tinha esse sentimento, porque
sinto que o Brasil nesta eleição corre
o risco de perder toda a estabilidade
que foi já conquistada. Eu sei que
muita coisa ainda precisa ser feita,
mas tem muita coisa boa que já foi
realizada. Não dá pra ir tudo pra lata
do lixo. Nós temos dois candidatos
presidência: um eu conheço que é o
Serra; é o homem do genérico, do
combate à AIDS. O outro eu achava
que eu conhecia, mas hoje eu não
conheço mais.
Tudo o que ele dizia mudou muito. Isso dá medo na gente.
Outra coisa que dá medo é a volta da inflação desenfreada.
Lembra? 80% ao mês. O futuro presidente vai ter que
enfrentar a pressão política nacional e internacional. E
vem muita pressão por aí. É por isso que eu vou votar
no Serra. Ele me dá segurança, porque dele eu sei o que
esperar. Por isso eu voto 45. Voto Serra. Voto sem medo”.
(grifos meus).
Após a veiculação da fala de Regina Duarte houve na mídia uma grande
polêmica. Muitos artistas da própria Rede Globo de Televisão e outros
atores sociais se manifestaram tanto contraria quanto positivamente
em relação ao posicionamento de Regina Duarte. Para além e aquém
das manifestações acerca da fala de Regina Duarte, a questão do medo
da eleição de Lula se textualiza mais uma vez, sobretudo, por conta da
potência da locutora, Regina Duarte, namoradinha do Brasil, atriz global...
234
Roberto Leiser Baronas
FIGURA 6:
Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em
27/10/2002
O discurso do medo de Regina Duarte começa a ser polemizado, após a vitória
de Lula. Tal tensão discursiva pode ser flagrada quando a Folha de S. Paulo publica
como título da matéria “A esperança venceu o medo”, destaque da fala de Lula
em pronunciamento’ em SP em 27/10/2002. Nesse caso, temos uma enunciação
aforizante. Trata-se de uma aforização, pois a fala do enunciador Lula: “mais
importante, a esperança venceu o medo e hoje posso dizer para vocês que o Brasil
mudou sem medo de ser feliz” é destacada de forma sintetizada de seu cotexto
original e transformada em título da matéria. Rapidamente essa frase passou a
frequentar os mais diversos suportes.
É preciso levar em consideração, entretanto, que as condições
interdiscursivas de produção da frase “A esperança venceu o medo”
são o resultado de um diálogo não só com a fala de Regina Duarte no
programa eleitoral de José Serra em 2002, mas também de uma conversa
tanto com o slogan e o jingle de campanha do então candidato Lula do
Partido dos Trabalhadores em 1989 quanto de uma série de discursos
da grande mídia brasileira que à época (1989 e 2002) colocaram em
circulação o discurso do medo.
235
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
Os textos a seguir nos mostram esse diálogo interdicursivo da frase
em análise com o slogan e o jingle de campanha de Lula, bem com
alguns textos da mídia que diziam do medo da eleição de Lula.
FIGURA 7: Cartaz de campanha de Luís Inácio Lula da Silva:
eleições presidenciais 1989
Brilha uma estrela
Passa o tempo e tanta gente a trabalhar
De repente essa clareza pra votar
Sempre foi sincero de se confiar
Sem medo de ser feliz
Quero ver você chegar
Lula lá, brilha uma estrela
Lula lá, cresce a esperança
Lula lá, o Brasil criança
Na alegria de se abraçar
Lula lá, com sinceridade
Lula lá, com toda a certeza pra você
Um primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela
Lula lá, muita gente junta
Valeu a espera
Lula lá, meu primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela
FIGURA 8: Capa da Revista Veja edição publicada em 02/10/2002
236
Roberto Leiser Baronas
Os textos acima atestam que a irrupção da frase “A esperança
venceu o medo” possui uma relação muito estreita com a memória
interdiscursiva tanto do slogan e jingle de campanha de Lula em 1989
quanto dos discursos do medo propalados pela grande mídia: “Muito
bem-feita a reportagem de capa sobre a possível e tenebrosa eleição
de Luís Inácio Lula da Silva” e “Lula assusta não só porque mudou a
“embalagem” e o conteúdo.” Com efeito, observemos mais um texto,
desta vez a matéria da Folha de S. Paulo sobre o discurso de posse de Lula
em 01 de janeiro de 2003.
FIGURA 9: Matéria publicada na Folha de S. Paulo Online em
01/01/2003
Um exame um pouco mais minucioso acerca da fala de Lula presente
na matéria acima: “A esperança finalmente venceu o medo e sociedade
brasileira decidiu que estava na hora de trilhar novos caminhos”, nos
237
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
mostra entre outras questões que o advérbio finalmente evoca a memória
interdiscursiva tanto do slogan e do jingle de 1989 quanto dos discursos
do medo sobre a eleição de Lula. Esse dado linguístico, aparentemente
pouco significativo, nos mostra a memória interdiscursiva beliscando a
língua, fazendo o já-dito do medo e da esperança irromperem no dito.
De lá para cá essa pequena frase “A esperança venceu o medo”
passou a ter na mídia brasileira uma frequência elevadíssima. Tanto
que é possível verificar a sua presença em contextos como o slogan de
campanha da então candidata Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo
em 2008 ou mesmo na fala do governador da Bahia Jacques Wagner
quando da greve dos policiais em fevereiro deste ano.
FIGURA 10: Cartaz de campanha de Marta Suplicy, eleições
municipais de São Paulo - 2008
238
Roberto Leiser Baronas
FIGURA 11: Matéria publicada na Agência Estado em 09/02/2002
O slogan de campanha de Mata Suplicy “A esperança vai vencer de
novo” e a fala de Jacques Wagner acerca da greve dos policiais baianos “A
democracia venceu o medo”, para além da recorrência e transformação
do enunciado em análise, nos mostra que ele designa os mais variados
acontecimentos discursivos, isto é, com base em uma estrutura linguística
quase invariável, ele possui uma capacidade discursiva ímpar de ser
transportado para nomear os mais variados eventos.
Essa capacidade quase camaleônica de se transformar na designação
dos mais diferentes eventos discursivos nos se(in)duz a asseverar que
se trata de uma panaforização no sentido que Dominique Maingueneau
dá a este conceito. Ou seja, uma frase que é tomada em um processo
de tipo pandêmico: durante um período curto vê-se circular em todas
as mídias e às vezes com uma frequência muito elevada, com estatutos
239
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
muito diversos: título de um artigo de jornal ou de uma página da
internet, frase que circula na parte de baixo do monitor de um canal de
informação televisiva, título de um vídeo sobre o Youtube, etc.
Embora muito sedutora a proposta de Maingueneau para explicar a
pandemia de certas frases na mídia em geral, cremos que a panaforização
não dá conta de explicar a frase em questão. Cremos que o enunciado
« A esperança venceu o medo » seja uma aforização de outra natureza.
Dizemos isso pelo fato de que a panaforização possui um prazo de
validade muito pequeno, ela é invariavelmente efêmera. Tomemos a frase
proferida pelo comamandante do Porto de Livorno na Itália, Gergório
De Falco « Vada a bordo, cazzo » embora tenha frequentado os mais
variados textos em diferentes suportes midiáticos pelo mundo inteiro
seu prazo de validade foi curto. Três meses depois da sua irrupção, já
não se falava mais nessa frase. Ou mesmo a frase destacada da música de
Teló, Ai se eu te pego, embora com uma circulção extremamente grande
num certo período, ganhando inclusive outras materialidades como a
coreografia realizada pelos jogadores do Real Madrid, poucos meses
depois da sua irrupção, ela deixou de ser objeto constante de enunciação.
Ao passo que a frase « A esperança venceu o medo » por ser de uma
outra natureza, se mantêm no cenário midiático por quase 10 anos,
significando os mais diferentes eventos discursivos. A matéria abaixo,
publicada em 08 de novembro de 2008, atesta o anteriormente exposto.
240
Roberto Leiser Baronas
FIGURA 12: Matéria publicada no site www.bloguerbyblogspot.com
em 08/11/2008
Embora entre a eleição de Lula em 2002 e a eleição de Obama
em 2008 seja possível identificar alguns traços de sentido similares, as
diferenças entre os dois pleitos é bastante acentuável. Todavia, a frase
que a mídia destacou do pronunciamento de Lula, logo após a sua vitória
em 2002, é transportada para outro contexto e passa a dar sentido a este
último contexto com os mesmos valores positivos da irrupção inicial: “A
esperança venceu o medo”; “Obama é o primeiro presidente negro da
história dos Estados Unidos”.
Sloganizadas conclusões : a metaforização...
Diante das diferenças expostas propomos que a frase em análise « A
espernça venceu o medo » se constitui numa metaforização: uma palavra
valise que une metáfora e aforização. Trata-se de uma pequena frase que
241
Da Panaforização à Metaforização: o Caso de uma Pequena Frase sem Eira nem Beira Textual
assume o caráter de uma metáfora com intensa circulação, ou seja, uma
frase que se presta por conta da sua constituição linguístico-discursiva
(pregnância linguística e de sentidos) a estabelecer uma analogia de
sentidos entre diferentes acontecimentos discursivos. Assim, “A
esperança venceu o medo”, metaforiza tanto a vitória de um operário,
ligado ao Partido dos Trabalhadores, nas eleições presidenciais 2002,
quanto as eleições municipais de São Paulo em 2008, enquanto slogan de
campanha ou mesmo a eleição de Barak Obama nos Estados Unidos.
No nosso entendimento trata-se de uma frase prét-a-désignér, pois está
pronta a significar diferentes acontecimentos discursivos. Nesse sentido
enquanto a panaforização é fruto do rumor e da agitação momentâneas
a metaforização é o resultado de uma constância enunciativa, que
permanece circulando por muitos anos.
Desse modo, de acordo com heteroreferencialidade acontecimental
da frase em análise, propomos repensar o esquema vetorial proposto
por Maingeneau 2010.
242
Roberto Leiser Baronas
A grande circulação da pequena frase “A esperança venceu o medo”,
em diferentes contextos e na boca de distintos enunciadores, inscritos
nos mais variados posicionamentos ideológicos e destinada aos mais
diversos interlocutores, nos permite propor algumas alterações na
teoria de Maingueneau (2010) sobre a Enunciação Aforizante. Nesse
sentido, propomos que a enunciações destacadas por natureza sejam
pensadas enquanto aforizações, já as destacadas de um texto sejam
pensadas enquanto aforizações, panaforizações (Maingueneau, 2011) e
metaforizações.
Como efeito de fim, retomo o título deste artigo “Pequenas frases sem
eira nem beira” para dizer que não se trata de um recurso retórico em meu
texto, que visa despertar a curiosidade do leitor, mas de uma resposta a
uma questão anterior: como podemos lidar como uma frase que durante
quase dez anos vem frequentando os mais diversos textos sem se prender
a nenhum deles? Que recursos linguísticos e discursivos ela mobiliza
para frequentar distintos acontecimentos discursivos significando-os?
Defendo que essa frase é um bom exemplo de metaforização: um enunciado
que possui uma capacidade quase proverbial, tal qual o sem eira nem beira,
de se referir a distintos acontecimentos discursivos ao longo da história
sem se prender definitivamente a nenhum deles.
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248
CONSIDERAÇÕES SOBRE A SEMÂNTICA
DE ‘EU’
Renato Miguel BASSO
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)1
RESUMO
O item ‘eu’ é tradicionalmente analisado como um dêitico ou um indexical, i.e., uma expressão
que recebe seu valor a partir de um elemento contexto, no caso, do agente (falante, escrevente)
do contexto. Depois de apresentar a teoria de Kaplan (1989) sobre esse item – certamente
a mais bem sucedida das teorias até agora propostas –, mostramos vários usos de ‘eu’ que
não são capturados por esse teoria. Na sequência, apresentamos uma outra proposta para
análise de ‘eu’ que dá conta dos insights da teoria de Kaplan e captura todos os usos aqui
apresentados.
ABSTRACT
Traditionally, ‘eu’ (‘I’) is analyzed as a deictic or indexical word, i.e., an expression which
obtains its reference from some contextual elements, in this particular case, from the agent
(speaker, writer) of the context. Firstly, we present Kaplan’s theory (1989) about indexicals
and the first person pronoun – certainly the most well known and successful theory about
indexicals. Secondly, we show various uses of ‘eu’ which do not conform to Kaplan’s theory.
In the sequence, we propose a different theory of indexicals which can handle all the uses of
the pronoun ‘eu’ that we present in this paper.
PALAVRAS-CHAVE
Descrição definida. Indexicais. Pragmática. Pronomes pessoais. Semântica.
1
Gostaria de agradecer à Raquel Darelli Michelon por discutir comigo várias das questões aqui
tratadas, à Lovania Roehrig Teixeira pela atenciosa leitura de uma versão preliminar e vários
comentários que em muito melhoraram o texto; finalmente, agradeço à Roberta Pires de Oliveira
por acompanhar e discutir as ideias aqui expostas.
© Revista da ABRALIN, v.12, n.2, p. 249-280, jul./dez. 2013
Considerações sobre a semântica do 'eu'
KEYWORDS
Definite descriptions. Indexicals. Pragmatics. Personal pronouns. Semantics.
Introdução
A palavra ‘eu’ é um exemplo prototípico de “dêitico” ou “indexical”,
ou seja, um item que tem, entre outras propriedades, uma grande
dependência contextual, ou seja, o referente de ‘eu’, sua contribuição
linguística, é o falante e ela muda cada vez que um novo falante pronuncia
‘eu’. Tomemos os exemplos abaixo, em que temos como falante o João
em (1) e a Maria em (2); a representação usando os parênteses angulares
(<,>) mostra qual proposição (ou pensamento) está sendo expressa:
(1)
(1’)
(2)
(2’)
(João:) Eu tô com fome
<João, estar com fome>
(Maria:) Eu tô com fome
<Maria, estar com fome>
Dado que (i) em (1) e (2) temos as mesmas palavras envolvidas – i.e.,
a sequência ‘eu tô com fome’ –, (ii) o predicado envolvido não muda
(‘estar com fome’), e (iii) ainda assim essa mesma sequência expressa
duas proposições diferentes a depender de quem fala, podemos concluir
que (iv) o item ‘eu’ é sensível a quem é o falante e o designa, ou seja, o
referente de ‘eu’ é o falante.
Para podermos capturar num modelo lógico as diferenças e
semelhanças entre o par (1)-(2), uma saída é postular que proposições
são o resultado de proferimentos, e que proferimentos são sentenças
(i.e., sequências de sons, sintatica e semanticamente bem formadas)
relativizadas a um contexto de proferimento, algo que pode ser
representado pelo par <s, c>, em que ‘s’ está por sentença e ‘c’ por
250
Renato Miguel Basso
contexto. No caso de (1) e o (2), a sentença ‘s’ é a mesma, i.e., ‘eu
tô com fome’, mas o contexto ‘c’ é diferente, porque num deles (c1)
temos o João como agente ou falante e no outro (c2) temos a Maria
desempenhando esse papel. Dado que os pares <s, c> para o caso de
(1) e (2) são diferentes – temos <s, c1> para (1) e <s, c2> para (2)
– conseguimos capturar o fato de que a mesma sentença (s) pode ser
usada para veicular duas proposições diferentes, e que o item sensível ao
contexto é ‘eu’.
Essa maneira de capturar essas intuições é relativamente simples e
bem sucedida, porém ela gera consequências de longo alcance que nem
sempre se conformam à nossa intuição. Um dos objetivos deste texto é
mostrar que a análise esboçada acima não dá conta de todos os usos que
fazemos da palavra ‘eu’, e é necessário uma outra teoria para lidar com
esse item.
Para atingir esses objetivos, o presente texto se organiza da seguinte
maneira: na seção 1 apresentaremos a teoria de indexicais postulada por
Kaplan (1989), por ser, atualmente, a mais abrangente e elegante teoria
para lidar com esses itens; na seção 2 analisaremos os diversos usos de
‘eu’, mostrando os limites da teoria de Kaplan; na seção 3 proporemos
uma organização dos usos de ‘eu’ que os agrupa em usos referencias,
usos descritivos e usos como variável; na seção 4 apresentamos uma
proposta para ‘eu’, baseada no trabalho seminal de Nunberg (1993);
finalmente, na seção 5 resumiremos o caminho percorrido e faremos
um balanço dos problemas em aberto.
1 A teoria de Kaplan para o item ‘eu’
A teoria de indexicais de Kaplan (1989) foi formulada pela primeira
vez em 1977, mas foi publicada apenas em 1989. O autor tentou dar
conta da semântica, da epistemologia e da metafísica que envolve os
chamados itens indexicais – justamente os itens que, para receberem
uma interpretação, dependem de informações contextuais. Ao lidar com
251
Considerações sobre a semântica do 'eu'
esses termos, Kaplan acabou por definir termos básicos da filosofia
da linguagem e da semântica, que são ainda hoje usados conforme ele
propôs. Na Introdução deste texto, já tivemos oportunidade de lidar
com as definições de sentença (sequência de sons ou palavras sintatica e
semanticamente bem formadas), proposição (pensamento veiculado por
um proferimento, que pode ser avaliado em termos de suas condições de
verdade) e proferimento (sentença dita num dado contexto); o próximo
passo é entender melhor a noção kaplaniana de contexto. Obviamente,
o que Kaplan entende por contexto é algo bastante preciso que cumpre
certas funções; em sua teoria, contexto nada mais é do que uma série
de informações nas quais os falantes podem se apoiar ao usar certas
expressões linguísticas (os indexicais). Um contexto é então uma
unidade informacional que contém um agente (ca), um ouvinte (co), um
tempo (ct), um lugar (cl) e um mundo possível (cw), e é representado
como uma ê-nupla ordenada da forma <ca, co, ct, cl, cw>. Para lidar
com as informações contextuais, Kaplan propõe a função caráter –
uma função que toma um contexto e resulta num conteúdo; por sua
vez, conteúdo é uma função que toma mundos possíveis e resulta em
valores de verdade (para o caso de sentenças) e referentes (para o caso de
termos singulares). Podemos pensar também que o caráter é uma regra
de uso associada a um dado item lexical, ao passo que o conteúdo é a
contribuição proposicional do item lexical (como o sistema kaplaniano é
composicional, as mesmas considerações se aplicam a sentenças).
Segundo a teoria de Kaplan, todos os itens linguísticos são
interpretados pela função caráter e pela função conteúdo, porém, apenas
os indexicais dão resultados diferentes com relação ao caráter (porque
são sensíveis ao contexto). Para o caso do indexical, ‘eu’, por exemplo,
seu caráter é uma função que resulta, a cada contexto, no falante ou
agente daquele contexto, ou seja, [[eu]] = falante/agente de c = ca; foi
o que vimos com os exemplos (1) e (2), que repetimos abaixo usando a
terminologia introduzida (no que segue, ignoraremos tempo e local do
contexto):
252
Renato Miguel Basso
(1)
(João:) Eu tô com fome
Caráter de (1): <s, c1> = <‘eu tô com fome’, c1> =
<‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>>
Conteúdo de (1): <‘ca estar com fome’, <João, co, ct, cl, cw>>
= <João estar com fome>
(2)
(Maria:) Eu tô com fome
Caráter de (2): <s, c2> = <‘eu tô com fome’, c2> =
<‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>>
Conteúdo de (2): <‘ca estar com fome’, <Maria, co, ct, cl, cw>>
= <Maria estar com fome>
Para sabermos se as proposições expressas em (1) e (2) são
verdadeiras ou falsas, é preciso considerá-las com relação aos mundos
possíveis acessíveis; nesse caso, (1) é verdadeira se e somente se (sse)
João estiver com fome no mundo de consideração; o mesmo vale, mutatis
mutandis, para (2).
Assim, se considerarmos os mundos abaixo:
w1  João, Pedro, Tiago, Maria estão com fome;
w2 João e Pedro estão com fome
w3  Maria está com fome
obteremos que a proposição expressa em (1), com o proferimento <s,
c1>, é verdadeira nos mundo w1 e w2; e que a proposição expressa em
(2), por sua vez, é verdadeira nos mundos w1 e w3.
Com a teoria de Kaplan, temos então duas funções que têm como
objetivo fornecer a proposição veiculada pelas sentenças das línguas
naturais. Essa teoria pode ser representada graficamente pelo esquema
abaixo, adaptado de Schlenker (2009):
253
Considerações sobre a semântica do 'eu'
Usando o operador-lambda, e um sistema extensional conforme
proposto por Schlenker (2009) podemos escrever as funções caráter e
conteúdo, conforme abaixo, e desenvolver o cálculo até chegarmos à
proposição sendo expressa no caso de (1) e c1:
(1)
(João:) Eu tô com fome
Caráter (1) = λc [ca está com fome]
Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome]]
Conteúdo (1) = λw [Caráter (1) λc [ca está com fome] (c1)]
Conteúdo (1) = λw [<João, estar com fome>]
Assim sendo, a proposição expressa por (1), considerando w1, w2 e
w3, será verdadeira em w1 e w2.
Há várias nuances que a teoria de Kaplan apresenta, como, por
exemplo, diferenciar indexicais como ‘eu’, ‘aqui’, ‘hoje’, etc. dos
demonstrativos, chamando os primeiros de indexicais puros, pois sua
interpretação depende simplesmente de informações contextuais, dos
segundos, chamados de indexicais impuros, pois sua interpretação
depende também de apontamentos ou gestos de ostensão para objetos
presentes no contexto visual – mas não é possível expormos todas
as nuances da teoria aqui (cf. BASSO et al., no prelo; BRAUN, 2012).
254
Renato Miguel Basso
Porém, é importante chamar a atenção para duas características básicas
dessa teoria, que serão desafiadas nas seções seguintes: a ideia de que os
indexicais são termos diretamente referenciais e a ideia de que o único
contexto mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de
fala, em contraste, por exemplo, com o contexto de fala relatada.
Com a primeira dessas ideias, Kaplan captura o fato de que a
contribuição proposicional de um indexical (que é um termo singular)
é um indivíduo e nada mais, ou seja, para uma sentença que contém a
palavra ‘eu’, por exemplo, a contribuição proposicional de ‘eu’ será o
agente/falante do contexto e nenhum de suas propriedades (descritivas).
Essa concepção acarreta que os indexicais são termos rigidamente
referencias no sentido de Kripke (1981). Ainda segundo Kaplan, o único
contexto que pode ser utilizado para o estabelecimento da contribuição
proposicional de indexicais é o contexto de proferimento – qualquer
operador que controla o contexto de avaliação dos indexicais, segundo
o autor, é um operador-monstro, e Kaplan diz que tais operadores
não existem. Essa assunção foi criticada por inúmeros autores e será
novamente aqui.
Em resumo, para Kaplan o item ‘eu’ tem a seguinte representação:
F: [[eu]]c f w = ca  o item ‘eu’, com relação, a uma função de interpretação
f, um contexto c, e um mundo possível w, tem como referente o agente
do contexto (cA)
Com a teoria de Kaplan, um poderoso instrumento para o
entendimento dos indexicais nas línguas naturais, passemos aos diversos
usos de ‘eu’, mostrando os limites dessa teoria.
2 Os vários usos do ‘eu’ e a teoria padrão
O emprego de ‘eu’ que vimos para os casos em (1) e (2) não é o único
que encontramos para esse item. Na verdade, é possível, em princípio,
identificar (pelo menos) 7 diferentes usos de ‘eu’, que chamaremos
255
Considerações sobre a semântica do 'eu'
de “uso referencial”, “uso impróprio”, “uso metaficcional”, “uso
metonímico”, “uso descritivo”, “uso como variável” e “uso genérico”;
esse usos serão analisados, na ordem em que foram apresentados, nas
seção 2.1 a 2.7, juntamente com uma avaliação de como a teoria de
Kaplan poderia dar conta deles – argumentaremos que, sem maiores
complicações, essa teoria dá conta apenas do uso referencial. Na seção
3, conforme dissemos na introdução, reduziremos esses 7 usos a apenas
3, que são encontrados também nos outros pronomes.
2.1 Uso referencial
O uso referencial é aquele exemplificado pelas sentenças (1) e (2) e
é, talvez, o uso mais comum de ‘eu’. Podemos identificá-lo em todos os
exemplos abaixo, lembrando que sua característica principal é referir-se
ao agente, falante ou escrevente do contexto:
(3)
Eu não quero tomar banho.
(4)
Eu não estou com vontade de estudar.
(5)
Deixa eu quieto!
(6)
Me passa cola pra prova...
Para todos esses casos, seguindo a teoria de Kaplan, saber quem é o
agente, falante ou escrevente do contexto basta para determinar quem é
o ‘eu’ e ele se refere ao agente, falante ou escrevente do contexto devido
ao seu caráter e não por conta de alguma propriedade ou característica
de seu referente. Em outras palavras, a fórmula [[eu]]c f w = ca esgota o uso
referencial; todos os casos que veremos na sequência, por sua vez, não
cabem nessa fórmula.
256
Renato Miguel Basso
2.2 Uso impróprio
Usos impróprios são aqueles em que o agente, falante ou escrevente
do contexto – aquele que realiza o item ‘eu’ – não é seu referente. Um
exemplo particularmente claro é aquele em que alguém (João) escreve
um bilhete com os dizeres ‘ME CHUTE’ e cola nas costas do Pedro.
Mesmo para os que viram João escrever o bilhete, e, portanto, empregar
o ‘eu’, ser seu agente, o referente de ‘eu’ será Pedro – é ele que receberá
os chutes caso as pessoas resolver seguir o que está escrito.
Outro exemplo, um pouco mais elaborado, é o seguinte: suponhamos
um corredor com salas de professores, de modo que as portas fiquem
de frente uma para a outra. O professor João não está em sua sala, a sala
A. Por sua vez, o professor Pedro, cuja sala, a B, que fica de frente à sala
do professor João, está e gosta de trabalhar com a porta aberta. A partir
de um certo momento, estudantes começam a bater na porta da sala A,
na esperança de conversar com o professor João, sem saber que ele está
viajando. Isso ocorre algumas vezes até que acaba irritando o professor
Pedro que então escreve o seguinte recado num pedaço de papel e o
cola na sala A: ‘Eu não estou aqui agora’. A ideia funciona e os alunos,
ao lerem o bilhete, vão embora sem bater à porta e sem incomodar o
professor Pedro2.
Intuitivamente, tudo parecer funcionar bem e concordamos que
o referente de ‘eu’ para o bilhete em questão é João, ou ao menos
concordamos que é assim que os estudantes se comportariam. Porém, a
teoria de Kaplan não nos dá esse resultado: se a função caráter de ‘eu’, ao
tomar como argumento um contexto, resulta no agente do contexto (ca),
é óbvio que o agente é Pedro, e logo o conteúdo (referente) de ‘eu’ nesse
contexto é Pedro e não João – algo que claramente não captura nossa
intuição e interpretação. Para tornar as coisas ainda mais complicadas para
a teoria de Kaplan, suponhamos também que Pedro não esteja sozinho
em sua sala, mas está trabalhando com um aluno, o José. Suponhamos
que José tenha acompanhado tudo o que descrevemos; notadamente, ele
2
Exemplo adaptado de Corazza et al. (2002, p. 5).
257
Considerações sobre a semântica do 'eu'
viu que foi Pedro que escreveu o bilhete e o colou na porta da sala do
professor João. É interessante notar que, mesmo do ponto de vista de
José, é contra-intuitivo dizer que o referente de ‘eu’ é Pedro, ou seja, é
contra-intuitivo dizer que a sentença colada na porta da sala A expressa
a proposição (estruturada) <Pedro, não estar aqui agora>.
Fundamentalmente, o que temos aqui é que o referente de ‘eu’ não
é ca, ou seja, o agente/falante/escrevente do contexto, e a fórmula F
não funciona para esses casos. Há, porém, diversas formas de resgatar a
teoria kaplaniana, mas todas elas têm que dissociar o referente de ‘eu’ do
agente/falante/escrevente de ‘eu’ e estabelecer, de alguma outra forma,
como sabemos quem é o referente de ‘eu’, já que ele não é mais o agente
do contexto. Seja qual for a melhor saída, ela levará a uma reformulação
da teoria de Kaplan para o caso do item ‘eu’. Mais sobre esse uso pode
ser encontrado em Basso (2010), Corazza et al. (2002), Predelli (1998),
Perry (2003) e Romdenh-Romluc (2006).
2.3 Uso metaficcional
O uso metaficcional de ‘eu’ foi extensamente analisado por Basso
e Teixeira (2011) e Teixeira (2012), e aqui nos interessa apenas apontar
sua existência, seus contornos gerais e os problemas que coloca à teoria
padrão sobre os indexicais.
Como sempre, imaginemos o seguinte contexto: depois de uma peça
de teatro, que envolvia apenas duas atrizes, uma repórter perguntar para
uma das atrizes ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que
ela fosse mais engraçada?’; a atriz responde ‘Eu acho que eu podia ser
mais rica’. O ponto interessante é que o segundo ‘eu’ da resposta da atriz
tem como referente não a atriz, mas a personagem que ela interpreta.
Para que isso fique mais claro, vamos imaginar que as atrizes se chamam
Ana e Maria, e as personagens que elas interpretam se chamam,
respectivamente, Sandra e Sonia. Considerando isso, e supondo que
a pergunta tenha sido feita à Ana, podemos parafrasear a pergunta da
repórter e a resposta de Ana como abaixo:
258
Renato Miguel Basso
pergunta: ‘O que você acha que poderia mudar na peça para que ela
fosse mais engraçada?’
‘O que Ana (=co) acha que poderia mudar na peça para que ela fosse
mais engraçada?’
resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’
‘Ana (=ca) acha que Sandra (=??) podia ser mais rica’
O problema é que essa paráfrase e a interpretação que ela revela não
estão disponíveis para a teoria padrão: justamente porque ‘eu’ é ca, e o
contexto tem Ana como agente/falante, a única interpretação possível
é a abaixo:
resposta: ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’
‘Ana (=ca) acha que Ana (=ca) podia ser mais rica’
Essa interpretação, apesar de possível, não faz muito sentido ou não
é uma resposta relevante para a pergunta da repórter. Seja como for, a
primeira paráfrase está disponível, mas a teoria de Kaplan não tem como
gerá-la, simplesmente porque a teoria postula que o único contexto
possível mobilizado para a interpretação dos indexicais é o contexto de
proferimento, e em tal contexto Ana é sempre o agente/falante.
Uma saída possível, adotada por Basso e Teixeira (2011) e Teixeira
(2012), é postular um operador-monstro, que manipula o contexto de
modo que o primeiro ‘eu’ é fixado no contexto de proferimento e tem
como referente seu agente – Ana; mas o segundo ‘eu’ é fixado no contexto
da ficção relevante (a peça de teatro) e tem como referente seu agente –
Sandra. A explicitação formal dessa proposta e suas consequências não
são totalmente óbvias e têm ramificações bem interessantes, mas que
fogem aos objetivos deste texto. Porém, mais uma vez, resta notar que a
fórmula F não pode ser a palavra final sobre o ‘eu’, desta vez porque o
contexto, às vezes e sob certas condições, pode ser controlado3.
Seria possível argumentar que o uso metaficcional é, na verdade, uma instância do uso descritivo,
que veremos na seção 2.5. Contudo, essa saída não é viável pois a aplicação do uso descritivo
3
259
Considerações sobre a semântica do 'eu'
2.4 Uso metonímico
O uso metonímico do item ‘eu’ é ilustrado pela sentença abaixo:
(7)
Eu tô estacionado na garagem.
Com (7), sabemos que o falante, através de ‘eu’, refere-se ao seu
carro. Há diversas explicações para que o acontece aqui, e mesmo o
uso do termo “metonímico” não é consensual, pois há autores que
acreditam que a interpretação sugerida para (7) não envolve um processo
metonímico. Seja como for, novamente, e de modo semelhante ao que
vimos para o “uso impróprio”, a interpretação de ‘eu’ para esse caso não
resulta da simples aplicação de F. Nunberg (1993, 2004) e Mount (2008)
apresentam interessantes discussões sobre este uso de ‘eu’.
2.5 Uso descritivo
Os usos descritivos colocam sérios problemas para um dos principais
pilares da teoria de Kaplan: a ideia de que a contribuição proposicional
de um indexical (sendo um termo singular) é um indivíduo, ou seja, eles
são termos diretamente referenciais que se referem a indivíduos sem
levar em conta nenhuma propriedade ou característica desses indivíduos.
Tendo isso em mente, tomemos a sentença abaixo, dita em 2012 por
Dilma Rousseff, e a analisemos segundo a teoria kaplaniana:
(8)
(Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
A Constituição dá a palavra final a ca=<Dilma Rousseff, a
Constituição dar a palavra final>
Num primeiro olhar, essa análise parece correta e a proposição
expressa é verdadeira nos mundos possíveis em que a Constituição dá
geraria, para ‘Eu acho que eu podia ser mais rica’, a seguinte paráfrase ‘Ana acha que a atriz
que interpreta Sandra (e Ana é uma dessas atrizes) pode ser mais rica’, que não captura nossa
interpretação da sentença.
260
Renato Miguel Basso
a palavra final para Dilma Rousseff. Consideremos então os seguintes
mundos possíveis:
w1  a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a
presidente do Brasil
w2  a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é
balconista de loja
w3  a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a
presidente do Brasil
w4  a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é
balconista de loja
O ponto interessante é que, segundo a teoria de Kaplan, a proposição
expressa pela sentença (8) é verdadeira nos mundos w1 e w2, e falsa
nos mundos w3 e w4, pois basta que a Constituição dê a palavra final
ao indivíduo nomeado Dilma Rousseff para que a proposição seja
verdadeira, independentemente de quaisquer características de Dilma Rousseff4.
Ora, isso claramente vai contra nossa intuição, pois diremos que apenas o
mundo w1 deve ser levado em consideração, diremos que a Constituição
dá a palavra final para Dilma Rousseff porque ela é a presidente do Brasil,
ou enquanto ela for a presidente do Brasil. Mas, como esperamos ter
mostrado, não é esse o resultado a que chega a teoria tradicional. Uma
paráfrase mais adequada para (8) seria como abaixo:
(8)
(Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
A constituição dá a palavra final ao presidente do Brasil e
Dilma Rousseff (quando profere (8)) é a presidente do Brasil
4
É importante lembrar que isso se dá porque, na teoria de Kaplan, o contexto de proferimento
determina, exclusiva e exaustivamente, o referente, que em todos os casos do exemplo (8) será
Dilma Rousseff porque ela é ca.
261
Considerações sobre a semântica do 'eu'
Para dar conta dessa paráfrase, precisamos de uma teoria de
indexicais que leve em conta as propriedades dos referentes desses itens,
pelo menos em alguns casos. O mesmo ponto pode ser feito através do
exemplo de Nunberg (1993), adaptado abaixo. Imagine um prisioneiro
condenado à morte, chamado João; em sua última noite, ele diz ao
guarda de plantão:
(9)
Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.
A análise kaplaniana resulta, muito grosso modo, na proposição:
<é tradicional <João, ter direito a uma última refeição>>
Essa proposição expressa que João, tradicionalmente, tem direito
a uma última refeição – algo que simplesmente não faz sentido, pois
ninguém, por definição, faz tradicionalmente uma última refeição, já que se
trata de uma última refeição. Uma paráfrase mais razoável para (9) seria:
(9)
Tradicionalmente, eu tenho direito a uma última refeição.
Os condenados à morte têm, tradicionalmente, direito a uma
última refeição e João é um condenado à morte.
É interessante notar que a paráfrase que oferecemos para (9) segue,
em linhas gerais, o caso em (8), e ambas mostram que a fórmula F
estabelece uma relação direta demais: é necessário levar em conta, em
alguns casos, as propriedades dos referentes.
2.6 Uso como variável
O uso de ‘eu’ como uma variável aparece na literatura desde 1989 (cf.
PARTEE, 1989), e desde então tem sido tratado de diversas maneiras.
Para entender esse uso, imaginemos um contexto em que temos João,
262
Renato Miguel Basso
Pedro e Maria, e que cada um deles tenha filhos; a Maria diz (10), cuja
análise kaplaniana é mostrada logo abaixo – grosso modo, em (10’) temos
uma representação com o caráter do indexical, e em (10’’), o conteúdo.
(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
(10’) Só ca pode tomar conta dos filhos de ca=
(10’’) Só Maria pode tomar conta dos filhos da Maria
Nessa interpretação, o João não pode tomar conta dos filhos de
Maria e nem o Pedro, pois somente a Maria pode tomar conta dos filhos
da Maria. Contudo, há uma outra interpretação para a sentença (10)
proferida pela Maria, cuja paráfrase está em (11):
(10) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
(11) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios
filhos
Nessa interpretação, Maria pode tomar conta dos filhos de Maria,
e João e Pedro também podem tomar conta dos filhos de Maria, mas
João não pode tomar conta dos filhos de João e nem Pedro pode tomar
conta dos filhos de Pedro. Os esquemas abaixo ajudam a visualizar
essas duas interpretações – note que representamos apenas algumas das
intepretações possíveis para não poluir demais a imagem:
INTERPRETAÇÃO (10’’)
tomar conta
Maria
João
Pedro
X
filhos da Maria
X
filhos do João
filhos do Pedro
263
Considerações sobre a semântica do 'eu'
INTERPRETAÇÃO (11)
tomar conta
filhos da Maria
Maria
João
Pedro
X
X
filhos do João
filhos do Pedro
As análises presentes na literatura advogam por algum tipo de
apagamento ou não interpretação dos traços-φ5 presentes no item ‘eu’,
como [[primeira pessoa]] e [[singular]] (cf. Kratzer, 1998, 2009; Heim,
2008; Rullman, 2004; Przyjemski, 2008), e o resultado de tal apagamento
geraria uma variável como o ‘x’ que figura na fórmula abaixo, que tem
por como único objetivo capturar grosseiramente a interpretação (11):
(11’) [Ser o único x] x[x toma conta dos filhos de x] (Maria);
Seja como for, mais uma vez, a fórmula F não tem como gerar a
interpretação em (11), que, de resto, está disponível também para a
sentença (12) e inúmeras outras com a mesma estrutura:
(12) Só eu tenho uma pergunta que eu sei responder.
2.7 Uso genérico
O uso genérico pode ser exemplificado pelas sentenças abaixo:
 assistindo uma partida de futebol, alguém diz, depois de ver um gol
feito perdido:
(13) Esse gol até eu fazia!
 como comentário sobre o desempenho de um time que jogou muito
mal, alguém diz:
Traços responsáveis por informações como gênero e número presentes num pronome ou
determinante; voltaremos a eles na seção 4.
5
264
Renato Miguel Basso
(14) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado...
Os ‘eu’s presentes em (13) e (14) podem receber uma interpretação
segundo a qual não se referem ao falante (agente do contexto) nem a
ninguém em particular, mas sim a qualquer um – para (13), não interessa
quem seja, faria o gol, e para (14), não interessa quem seja, se quiser
ganhar esse alguém tem que entrar motivado.
A teoria de Kaplan não tem meios de capturar essa interpretação
sem alterações drásticas simplesmente porque a única coisa que diz
sobre ‘eu’ é a fórmula F. Mais sobre o uso genérico de ‘eu’ pode ser visto
nos trabalhos de Zobel (2010, 2011).
2.8 Pequeno balanço
Seis dos sete usos que vimos nas seções 2.1-2.7 desafiam a teoria
de Kaplan, pois (i) o referente de ‘eu’ não é (simplesmente) o agente
do contexto (seções 2.2 e 2.4); (ii) o contexto relevante para a fixação
do referente de ‘eu’ não é (unicamente) o contexto de proferimento
(seção 2.3); (iii) o estabelecimento do referente de ‘eu’ e das condições
da verdade da proposição expressa levam em conta propriedades ou
características do referente (seção 2.5), o que fere um dos princípios
fundamentais da teoria kaplaniana; e finalmente, (iv) ‘eu’ não se refere
a nenhum indivíduo mas sim funciona como uma variável ligada, seja
porque expressa uma propriedade ou atua numa sentença genérica
(seções 2.6-2.7).
É importante salientar que as interpretações de 2.1 a 2.4 podem ser
“salvas” numa teoria kaplaniana desde que certos ajustem sejam feitos,
o que, em parte, descaracteriza essa teoria. Os casos em 2.5 a 2.7, por
sua vez, apresentam desafios mais sérios à teoria e demandam outro tipo
de ajuste, o que dificulta sobremaneira qualquer tentativa de explicar
com a teoria de Kaplan todos os usos de ‘eu’. Dado que concluir que
há mais de um ‘eu’ na língua não é a melhor alternativa dos mundos,
265
Considerações sobre a semântica do 'eu'
a situação descrita até aqui pede por uma outra teoria sobre indexicais
e sobre ‘eu’ em particular, e é para uma tal teoria que nos voltamos na
sequência. Porém, antes disso, mostraremos que os usos de ‘eu’ podem
ser reduzidos a três e que esses três usos podem, também, ser observados
em todos os pronomes.
3 Reduzindo os usos de ‘eu’ e as interpretações dos
pronomes pessoais
A proposta que faremos nesta seção é que os usos 2.1 a 2.4 podem
ser agrupados sobre o rótulo de “uso referencial”, o que vimos em 2.5
é o “uso descritivo” e o que vimos nas seções 2.6 e 2.7 são o “uso
como variável”. A ideia é que com o uso referencial o que há como
contribuição proposicional é simplesmente um indivíduo, ainda que
ele não seja o agente do contexto (pode ser um outro indivíduo, como
nos casos de 2.2 e 2.4, ou pode ser o agente de outro contexto que
não o de proferimento, como em 2.3); por sua vez, no uso descritivo,
a contribuição proposicional não é simplesmente um indivíduo, mas
também uma propriedade ou característica exemplificada pelo indivíduo
(caso 2.5); finalmente, no uso como variável o pronome ‘eu’ contribui
para a proposição com uma variável. Se isso estiver correto, o que
precisamos é de uma teoria que conceba o item ‘eu’ de modo que ele
possa receber essas três interpretações. Porém, não seria interessante
ter uma teoria apenas para o item ‘eu’, e é por isso que analisaremos
rapidamente na sequência os pronomes ‘ele’ e ‘você’, com o objetivo
de mostrar que esses três usos também são encontrados para esses
pronomes, com a expectativa – a ser ainda verificada – que é possível
estender as considerações feitas aqui também para os pronomes plurais.
No que segue, não faremos uma apresentação exaustiva, que passe pelos
7 casos vistos na seção 2, mas apenas por alguns deles.
266
Renato Miguel Basso
3.1 As interpretações de ‘ele’ e ‘você’
As sentenças (15) e (16) abaixo ilustram usos referencias canônicos,
ao passo que as sentenças (17) e (18) são exemplos de uso metonímicos:
(15) Olha o João ali! Ele chegou cedo hoje!
(16) Presta atenção no que eu falo pra você!
(alguém apontando para a chave de um carro:)
(17) Ele tá lá atrás, na saída da loja.
(18) Onde você está estacionado?
O uso descritivo desses pronomes pode ser um pouco mais difícil
de visualizar. Um caso famoso na literatura aparece em Recanati (2005)
e Elbourne (2008), e se dá no seguinte cenário: duas pessoas estão
conversando e uma delas aponta para o atual Papa, Bento XVI, que é
alemão, e diz:
(19) Ele costumava ser italiano.
Ora, a paráfrase correta para (19) não é (20), mas sim (21):
(20) Bento XVI (i.e., Joseph Ratzinger) costumava ser italiano.
(21) O Papa costumava ser italiano.
O que temos aqui, grosso modo, é o acionamento da propriedade
ou característica que o referente representa; logo, a contribuição
proposicional de ‘ele’, em (19), não pode ser simplesmente um indivíduo.
Para o caso de ‘você’, podemos imaginar uma situação em que há
uma empresa, cujo presidente é sempre o membro mais velho da família
267
Considerações sobre a semântica do 'eu'
que é dona dessa empresa, e é o presidente quem toma as decisões
importantes; numa reunião, um dos executivos aponta para o (atual)
presidente e diz:
(22) É sempre você quem toma as decisões importantes.
Mais uma vez, a paráfrase mais adequada para (22) não é uma que
envolva somente o indivíduo que é o presidente atual, mas também a
propriedade de ser presidente, como sugerido pela paráfrase em (23):
(23) É o presidente que sempre toma as decisões importantes.
Para o caso do uso como variável (genérico ou não), podemos tomar
as sentenças abaixo:
(24) Todo homem sabe o que ele deve fazer.
(uma professora diz, em tom de bronca, para seus alunos)
(25) Para conseguir um bom emprego, você precisa saber ler e
escrever direitinho.
‘Ele’ e ‘você’ em (24) e (25) não são nem referenciais nem descritivos.
Sendo assim, vejamos na seção abaixo uma proposta de teoria que dê
conta dos três usos vistos até aqui.
4 Uma outra teoria sobre ‘eu’ e os pronomes pessoais
Em um trabalho de 1993, Geoffrey Nunberg propõe uma estrutura
para os indexicais radicalmente diferente do que encontramos no trabalho
de Kaplan. Para Nunberg, os indexicais têm uma estrutura mais complexa
e resultam sempre numa descrição definida, ou seja, diferentemente da
teoria de Kaplan, Nunberg propõe que (i) os indexicais não são termos
diretamente referenciais e (ii) que possuem uma estrutura interna, o que
268
Renato Miguel Basso
quer dizer que, para o caso de ‘eu’, por exemplo, sua interpretação não é
simplesmente o resultado da fórmula F.
A ideia é que tanto as descrições definidas canônicas (sintagmas
da forma ‘o N’) quanto os indexicais são expressões que envolvem
propriedades. No entanto, a diferença entre esses dois tipos de expressão
é que numa descrição definida a propriedade é pronunciada (é o ‘N’),
ao passo que nos indexicais a propriedade é estabelecida a partir de
elementos contextuais. Sendo assim, existem, na verdade, duas maneiras
de se construir uma descrição definida, ou via propriedades pronunciadas
(descrições definidas) ou via elementos contextuais (indexicais).
Nunberg (1993) esboça sua proposta, mas não chega a concretizá-la.
A formalização de sua proposta é feita posteriormente por Elbourne
(2008) para lidar com demonstrativos; abaixo, apresentamos a fórmula
para o caso de ‘eu’6:
H: [eu [R i]]
Como podemos ver, ‘eu’ envolve os elementos R e i, que são
primeiramente combinados, e então se combinam com o terceiro
elemento, ‘eu’, resultando numa interpretação. O elemento i representa
um índice extralinguístico, algo que é tomado do contexto e a partir
do qual a interpretação do indexical é gerada; R está por uma relação
que toma como argumento um índice para resultar numa propriedade;
e, finalmente, ‘eu’ tem o mesmo papel que o artigo numa descrição
definida; o resultado final da composição será uma expressão que denota
um indivíduo. Os tipos semânticos mobilizados, considerando uma
semântica de situações, são como abaixo (o tipo <se> é um conceito
individual, ou seja, uma função que toma uma situação e resulta num
indivíduo):
6
Zobel (2010, 2011) lança mão de ideias semelhantes, mas, apesar de se apoiar em Nunberg
(1993) e Elbourne (2008), propõe que ‘eu’ é, na verdade, uma descrição indefinida. Porém,
as motivações de Zobel para tanto não são claras e ela não dá conta de todos os usos que
apresentamos aqui.
269
Considerações sobre a semântica do 'eu'
i  índice contextual; um objeto extralinguístico; uma expressão
do tipo <e>;
R  relação que toma como argumento i e resulta em uma expressão
do tipo <se,st>; é, portanto, do tipo <e,<se,st>>;
eu  tem o mesmo tipo de um determinante, <se, <se,st>>, e
toma uma propriedade (<se,st>) para resulta num (conceito)
individual, tipo <se>
O resultado da fórmula será então uma expressão do tipo <se>,
o mesmo que teríamos para uma descrição definida como ‘o N’. É
importante notar que a contraparte da propriedade ‘N’ de uma descrição
definida na fórmula H é o resultado da composição de R e i, como
indicam os colchetes.
Dado que o ‘eu’ da fórmula em H e o ‘o’ tem o mesmo tipo
semântico, é preciso saber qual é a diferença entre esses dois itens. Uma
ideia interessante é apelar para o que os sintaticistas chamam de traços-φ,
ou seja, as informações responsáveis pela concordância nominal de
gênero, número etc., presentes nos pronomes e determinantes. Podemos
entender esses traços-φ como pressuposições (que seriam funções
parciais de identidade aplicadas ao conjunto de indivíduos) carregadas
pelos próprios itens; sendo assim, o item ‘eu’ teria como traços-φ os
seguintes:
[[singular]]: λxe: x é um átomo. x
[[primeira pessoa]]: λxe: x inclui o falante (do contexto). x
Na fórmula H, os traços-φ são responsáveis delimitar o que pode
servir como índice i; ora, dado que ‘eu’ pressupõe que o índice seja
[[singular]] e [[primeira pessoa]], o único candidato possível para i será
o falante. Além disso, como para o caso do artigo definido, o ‘eu’
contribuirá também com a informação de unicidade.
270
Renato Miguel Basso
Qual seria, por fim, a relação R? Baseados numa sugestão de Recanati
(2005), vamos considerar que R pode expressar duas relações diferentes,
e a escolha entre elas é uma manobra pragmática: ou (i) R expressa
identidade ([[R]] = λx. λu<s,e>. λs. u(s) = x; note que a identidade se dá entre
um elemento extralinguístico (x), de tipo <e>, e um conceito individual
(u), de tipo <se>), ou (ii) R expressa o papel (“role”) desempenhado pelo
índice (e nesse caso, temos o seguinte: i  R). Isso ficará mais claro ao
desenvolvermos a fórmula diante dos exemplos.
Resumindo, a interpretação do pronome ‘eu’ leva em conta o
estabelecimento de um índice extralinguístico, i, que combinado
como uma relação R, que pode ser identidade ou papel, resulta numa
propriedade que, por sua vez, ao se combinar com o (determinante) ‘eu’
resulta num conceito individual.
Vejamos então como essa teoria pode dar conta dos casos vistos em
2.1 a 2.7.
4.1 Usos referenciais
Tomemos a sentença abaixo, para analisá-la segundo a fórmula H e
as considerações que vimos acima:
(26) Eu nasci em Tegucigalpa.
Dado os traços-φ associados ‘eu’, a única coisa que servirá como
índice i, para qualquer contexto, será o falante – no caso, João –; a relação
R será a de identidade, e o cálculo todo está apresentado abaixo:
(26) Eu nasci em Tegucigalpa.
(27) [eu [R i]]  pelos traços-φ de ‘eu’, i é João, uma expressão do
tipo <e>
271
Considerações sobre a semântica do 'eu'
[eu [R João]]  a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade,
[[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] =
λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](João)
[[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = João  a propriedade de ser o conceito
individual igual ao João, uma expressão do tipo <se,st>
[eu [= João]]  ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>,
ao se combinar com a propriedade [= João], resulta numa
expressão do tipo <se>, um conceito individual que se refere,
com relação a uma dada situação, ao único indivíduo que é
igual ao João, logo, João7.
Com esse cálculo, a proposição expressa por (26), ignorando o
tempo verbal, é: <João, nascer em Tegucigalpa>; o que está de acordo
com nossa intuição.
Além disso, ao estabelecermos como referente de ‘eu’ o único
indivíduo que é igual ao João, mimetizamos os efeitos de referência
direta porque o índice i é um elemento extralinguístico que, uma vez
estabelecido, continua sendo o mesmo em qualquer variação modal;
dado que a interpretação é uma descrição definida que é igual ao índice
(i.e., João), a rigidez referencial do índice é herdade pela interpretação
final.
A derivação que apresentamos em (27) encontra exatamente os
mesmos problemas que temos para o caso da teoria padrão ao lidar com
os demais usos referencias, o impróprio, o metonímico e o metaficcional.
Ou seja, para que a estratégia em (27) possa capturar as interpretações
2.2 a 2.4, é necessário apelar para mecanismos semelhantes aos
necessários para que a teoria de Kaplan dê conta desses mesmos casos.
A vantagem é que a teoria até aqui esboçada não esbarra em problemas
como operadores-monstros e as soluções podem ser mais “orgânicas”.
7
A combinatória de tipos se dá do seguinte modo: <e, <se,st>>/<e>  <se,st>; <se,
<se,st>>/<se,st>  <se> (i.e., R/i; ‘eu’/R). Essa mesma combinatória vale para os casos nas
seções 4.2 e 4.3.
272
Renato Miguel Basso
Seja como for, pareceria que a teoria baseada nas ideias de Nunberg não
apresenta muitas vantagens com relação à teoria padrão; contudo, esse
não é o caso justamente porque essa nova teoria consegue dar conta
dos casos 2.5, 2.6 e 2.7 de maneira natural, como veremos na sequência.
Nunca é demais lembrar, esses últimos casos simplesmente não “cabem”
na teoria de Kaplan.
4.2 Usos descritivos
Para poder dar conta dos usos descritivos, basta considerarmos que
a relação R da fórmula H captura o papel (“role”) desempenhado pelo
índice i e que isso só pode ser o caso porque i  R. Tomemos novamente
a sentença (8), repetida abaixo como (28), seguida da derivação de sua
interpretação em (29).
(28) (Dilma Rousseff:) A Constituição me dá a palavra final.
(29) [eu [R i]]  pelos traços-φ de ‘eu’, i é Dilma Rousseff, uma
expressão do tipo <e>
[eu [R Dilma Rousseff]]  a relação R, do tipo <e,<se,st>>, resulta
no papel desempenhado pelo índice i – no caso, ‘ser o (atual) presidente
do Brasil’ – de modo que i  R, ou seja, R só pode ser a propriedade
‘ser o (atual) presidente do Brasil)’ se Dilma Rousseff (que é o índice i)
pertencer a essa relação; o resultado é uma expressão do tipo <se,st>;
[eu [‘ser o (atual) presidente do Brasil’ (e Dilma Rousseff o é)]] 
‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se combinar com a
propriedade [‘ser o (atual) presidente do Brasil’], resulta numa expressão
do tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação a uma
dada situação, ao único indivíduo que é o única presidente (atual) do
Brasil.
273
Considerações sobre a semântica do 'eu'
Levando em conta os mundos possíveis que vimos na seção 2.5,
repetidos abaixo, chegamos à conclusão correta de acordo com nossa
intuição, qual seja: a proposição expressa por (28) só é verdadeira no
mundo w1:
w1 a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a
presidente do Brasil
w2  a Constituição dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é
balconista de loja
w3  a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é a
presidente do Brasil
w4  a Constituição não dá a palavra para Dilma Rousseff e ela é
balconista de loja
Um ponto importante é saber quando a relação R é identidade
e quando ela é papel; uma saída para esse problema é apelar para
pragmática: se a relação R resultar numa contradição ou numa sentença
malformada quando for identidade, usamos a estratégia de considerá-la
como papel. Se esse for o caso, a interpretação padrão de R é identidade
e papel é uma estratégia de “resgate” pragmático. É importante, contudo,
notar que essa mesma estratégia está presente para o caso de ‘ele’ e ‘você’,
que vimos, respectivamente, com os exemplos (19) e (22), mas também
atua quando consideramos outros indexicais, como o caso abaixo:
(30) Amanhã é a festa mais importante do ano.
Basta imaginar uma situação em que ‘amanhã’ não se refere ao dia
depois de hoje, mas sim a um dia específico do calendário acadêmico,
como, por exemplo, o dia de recepção dos calouros.
274
Renato Miguel Basso
4.3 Usos como variável
A estratégia usada para dar conta dos usos como variável ligada de
‘eu’ é a mesma empregada para dar conta desses mesmos usos para o
caso de ‘ele’, e é, como mencionamos, o apagamento ou não-intepretação
dos traços-φ presentes nos determinantes. Há várias propostas de como
tal não-interpretação ou apagamento pode ocorrer (cf. HEIM, 2008;
KRATZER, 1998, 20098), e não nos interessa aqui optar por uma delas,
mas sim mostrar que, uma vez adotada uma das alternativas, a fórmula
H dá conta dos casos vistos em 2.6 e 2.7.
Os traços-φ associados a ‘eu’ são: [[singular]]: λxe: x é um átomo.x e
[[primeira pessoa]]: λxe: x inclui o falante (do contexto).x. Como notamos
acima, esses traços podem ser interpretados como funções parciais
de identidade que têm como domínio e contradomínio o conjunto de
indivíduos. O resultado do apagamento ou não-interpretação desses
traços (ou funções) é simplesmente um elemento do conjunto de
indivíduos, não importa qual seja – ora, isso é exatamente o que faz uma
variável que encontra sua interpretação no conjunto dos indivíduos: estar
por um indivíduo qualquer, não importa qual seja. Isso significa que o
índice i não será (necessariamente) o falante, mas sim qualquer elemento
do conjunto de indivíduos. Numa situação como essa, a relação R só
pode ser de identidade: como não sabemos qual é o indivíduo a que i
remete, não temos como estabelecer um papel para esse indivíduo sem
ferir a exigência i  R; logo, o que temos é a função de identidade se
aplicando à própria variável. A aplicação de ‘eu’ resultará num único
indivíduo do domínio ou conjunto de indivíduos. Essa descrição dá
conta do caso (11), que tem sua interpretação repetida abaixo como (31),
seguida da derivação em (32)
(11) (Maria diz:) Só eu posso tomar conta dos meus filhos.
Segundo as autoras, o aparecimento de ‘ele’, ‘ela’ ou ‘eu’ na forma superficial é resultado de
processos morfológicos de concordância, mas de relações semântico-interpretativas.
8
275
Considerações sobre a semântica do 'eu'
(31) A Maria é a única que pode tomar conta de seus próprios
filhos
(31’) [Ser o único x] x[x toma conta dos filhos de x])
(32) [eu [R i]]  pelo apagamento dos traços-φ de ‘eu’, i é qualquer
elemento do conjunto de indivíduos, x
[eu [R x]]  a relação R, do tipo <e,<se,st>>, é identidade,
[[R]]=λx. λu<s, e>. λs. u(s)=x; substituindo na fórmula [[R]] =
λx. [λu<s, e>. λs. u(s) = x](x)
[[R]] = λu<s, e>. λs. u(s) = x  a propriedade de ser o conceito
individual igual a um indivíduo do domínio, x, uma expressão
do tipo <se,st>
[eu [= x]]  ‘eu’ é uma expressão do tipo <se, <se,st>>, ao se
combinar com a propriedade [= x], resulta numa expressão do
tipo <se>, um conceito individual que se refere, com relação
a uma dada situação, a um único indivíduo do domínio.
Finalmente, para dar conta do caso (14), repetido abaixo como
(33), basta prefaciar a fórmula com um operador genérico, GEN, que
provavelmente é acionado pelo imperfeito presente no verbo:
(33) Se fosse pra ganhar, eu entrava motivado...
GEN[[ser pra x ganhar]  [x entra motivado]]
Obviamente, o que mostramos nesta seção é apenas uma primeira
elaboração de como dar conta dos usos como variável de ‘eu’, que precisa
ser elaborada mais detalhadamente de posso de uma teoria sobre como
lidar com os traços-φ; é importante notar, contudo, que tal teoria tem,
em princípio, meios para lidar com essa interpretação.
276
Renato Miguel Basso
5 Considerações finais
O objetivo principal deste trabalho é propor uma análise para o item
‘eu’ que dê conta dos usos vistos em 2.1 a 2.7, sem apelar para algum tipo
de ambiguidade associada ao ‘eu’. Para tanto, mostramos que a teoria
padrão, proposta por Kaplan, não dá conta, sem alterações substanciais,
de 6, dos 7, casos analisados, além de não levar em conta informações
como os traços-φ presentes nos pronomes.
Diante dessas limitações, propomos uma outra análise para ‘eu’,
baseada nas ideias de Nunberg (1993). Esse autor considera que ‘eu’ (e
os demais indexicais) tem muito mais estrutura interna do que afirma a
teoria de Kaplan e, a partir dessa concepção, sua abordagem consegue
capturar as interpretações mostradas na seção 2. Essa proposta não é,
obviamente, isenta de problemas. Entre eles podemos citar a dificuldade
de lidar com os casos 2.2, 2.3 e 2.4; porém, essas dificuldades são
rigorosamente as mesmas enfrentadas pela teoria de Kaplan, o que
colocaria as teorias em pé de igualdade não fosse o fato de a teoria de
Kaplan ser muito mais econômica. A (aparente) falta de economia da
teoria aqui avançada é compensada pela possibilidade de ela lidar com
os casos em 2.5, 2.6 e 2.7, casos para os quais a teoria de Kaplan, em sua
forma original, simplesmente não tem o que dizer.
Além disso, essa nova teoria captura a rigidez referencial de certos
usos de ‘eu’, usa de maneira elegante os traços-φ, e unificada, não apenas
os usos de ‘eu’, mas também os usos dos pronomes através da ideia
que sua interpretação é, na verdade, muito próximo às das descrições
definidas. As derivações que propomos na seção 4 são apenas esboços
de como fazê-las e precisam ser mais bem desenvolvidas. No entanto,
como cada uma delas merece um estudo em separado, aqui nos limitamos
a mostrar como seria possível unificar os usos de ‘eu’.
277
Considerações sobre a semântica do 'eu'
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