Terceira Turma RECURSO ESPECIAL N. 1.203.430-PR (2010/0128596-1) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Oito Grãos Exportação e Importação de Cereais e Defensivos Agrícolas Ltda. Advogado: Eduardo Teixeira Silveira e outro(s) Recorrido: Galaxy Grain Itália Spa Advogado: Paulo Roberto Munhoz Costa Filho EMENTA Ação de cobrança e de indenização. Contrato de exportação de soja. Homologação de sentença arbitral estrangeira em que apreciada causa de pedir e pedido que abrangem o da presente ação de cobrança. Extinção do processo sem o julgamento do mérito. Necessidade. 1. Ação de cobrança cumulada com pedido de indenização ajuizada por sociedade brasileira exportadora em face de sociedade italiana em razão de problemas na execução de contrato de exportação de soja. 2. Homologação, pela Corte Especial do STJ, antes da prolação do acórdão recorrido, de sentença arbitral estrangeira relativa às mesmas partes com a mesma causa de pedir e o mesmo pedido, englobando a pretensão veiculada na presente ação de cobrança. 3. Não conhecimento de parte do recurso especial com base na Súmula n. 284 do STF. 4. Ausência de violação ao art. 535 do CPC. 5. Impossibilidade de apreciação, na presente demanda, de aspectos relativos à regularidade do procedimento arbitral, os quais deveriam ter sido suscitados no momento da homologação da sentença arbitral. 6. Inexistência de contrariedade ao art. 515 do CPC, porque, com a extinção, no acórdão recorrido, do processo sem o julgamento do mérito em razão da convenção de arbitragem, não mais pode subsistir, como decorrência lógica, qualquer capítulo da sentença, ainda que não impugnado. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 7. Uma vez homologada, a sentença arbitral estrangeira adquire plena eficácia no território nacional. 8. A obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira homologada por esta Corte determina a impossibilidade de ser ela revista ou modificada pelo Poder Judiciário, aplicando-se o disposto no art. 3º da Convenção de Nova York. 9. A continuidade de processo judicial, em que veiculados causa de pedir e pedido apreciados na sentença arbitral estrangeira homologada, colocaria em risco a obrigatoriedade desta. 10. Recurso especial conhecido em parte e, nesta, desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 20 de setembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 1º.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Oito Grãos Exportação e Importação de Cereais e Defensivos Agrícolas Ltda. interpôs recurso especial contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Na origem da controvérsia, a recorrente ajuizou ação de cobrança e de indenização em face da sociedade italiana Galaxy Grain Itália S.P.A, com quem mantinha contínua relação de fornecimento de soja, expressa na pactuação de inúmeros contratos de exportação padrão Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais). 312 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Afirmando o inadimplemento por parte da ré, ora recorrida, de um destes contratos, a recorrente postulou o pagamento a) do preço da soja, de R$ 885.152,00; b) da diferença do prazo da soja entre a data do vencimento e a do ajuizamento da ação; c) de indenização por lucros cessantes e por danos morais. A Galaxy Grain Italia S.P.A apresentou contestação, apontando, entre outros questões, a existência de convenção de arbitragem entre as partes e requerendo a suspensão do processo até a prolação de sentença arbitral pela Fosfa (Federation of Oils, Seeds and Fats Association Ltd), que possui sede na Inglaterra. Na sentença, o juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos da recorrente, acolhendo, ainda, a sua medida cautelar de arresto. Interposta apelação pela recorrida e informada a tramitação, neste Superior Tribunal de Justiça, do seu pedido de homologação da sentença arbitral estrangeira que fora proferida pela Fosfa, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, determinou, em um primeiro momento, a suspensão do processo. Durante a suspensão, a Corte Especial deste STJ, quando do julgamento da Sentença Estrangeira Contestada n. 507-GB, relatoria do eminente Ministro Gilson Dipp, deferiu o pedido de homologação formulado pela sociedade italiana recorrida, tendo a ementa do acórdão sido redigida da seguinte forma: Homologação de sentença arbitral estrangeira. Caução. Desnecessidade. Lei n. 9.307/1996. Aplicação imediata. Constitucionalidade. Utilização da arbitragem como solução de conflitos. Ausência de violação à ordem pública. Impossibilidade de análise do mérito da relação de direito material. Ofensa ao contraditório e à ampla defesa. Inexistência. Regra da exceção do contrato não cumprido. Fixação da verba honorária. Art. 20, § 4º do CPC. Pedido de homologação deferido. I - Não é exigível a prestação de caução para o requerimento de homologação de sentença estrangeira. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. II - A sentença arbitral e sua homologação é regida no Brasil pela Lei n. 9.307/1996, sendo a referida Lei de aplicação imediata e constitucional, nos moldes como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal. III - Consoante entendimento desta Corte, não viola a ordem pública brasileira a utilização de arbitragem como meio de solução de conflitos. IV - O controle judicial da homologação da sentença arbitral estrangeira está limitado aos aspectos previstos nos artigos 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996, não podendo ser apreciado o mérito da relação de direito material afeto ao objeto da sentença homologanda. Precedentes. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 313 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA V - Não resta configurada a ofensa ao contraditório e à ampla defesa se as requeridas aderiram livremente aos contratos que continham expressamente a cláusula compromissória, bem como tiveram amplo conhecimento da instauração do procedimento arbitral, com a apresentação de considerações preliminares e defesa. VI - A Eg. Corte Especial deste Tribunal já se manifestou no sentido de que a questão referente à discussão acerca da regra da exceção do contrato não cumprido não tem natureza de ordem pública, não se vinculando ao conceito de soberania nacional. Ademais, o tema refere-se especificamente ao mérito da sentença homologanda, sendo inviável sua análise na presente via. VII - O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos seus requisitos formais. Isto significa dizer que o objeto da delibação na ação de homologação de sentença estrangeira não se confunde com aquele do processo que deu origem à decisão alienígena, não possuindo conteúdo econômico. É no processo de execução, a ser instaurado após a extração da carta de sentença, que poderá haver pretensão de cunho econômico. VIII - Em grande parte dos processos de homologação de sentença estrangeira – mais especificamente aos que se referem a sentença arbitral - o valor atribuído à causa corresponde ao conteúdo econômico da sentença arbitral, geralmente de grande monta. Assim, quando for contestada a homologação, a eventual fixação da verba honorária em percentual sobre o valor da causa pode mostrar-se exacerbada. IX - Na hipótese de sentença estrangeira contestada, por não haver condenação, a fixação da verba honorária deve ocorrer nos moldes do art. 20, § 4º do Código de Processo Civil, devendo ser observadas as alíneas do § 3º do referido artigo. Ainda, consoante o entendimento desta Corte, neste caso, não está o julgador adstrito ao percentual fixado no referido § 3º. X - Pedido de homologação deferido. (SEC n. 507-GB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, julgado em 18.10.2006). Diante da homologação da sentença arbitral, o Tribunal de origem extinguiu o processo sem julgamento de mérito, in verbis: Compra e venda de grãos mediante exportação. Negócio submetido à arbitragem internacional, por força de compromisso arbitral. Ação de indenização proposta pelo exportador na Justiça Estadual. Causa petendi abrangida no debate e na decisão de arbitragem. Decisão estrangeira homologada no colendo Superior Tribunal de Justiça. Falta de jurisdição da Justiça Estadual reconhecida. Exegese dos artigos 267-VII e 301-XI do CPC. Extinção da ação da medida cautelar sem resolução do mérito. Inversão da sucumbência. Sentença cassada. 314 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA I - A existência de convenção de arbitragem leva à extinção do processo judicial sem resolução de mérito, pois, nenhuma das partes, sem a concordância da outra, poderá arrepender-se da opção anteriormente estabelecida no sentido de que eventuais conflitos sejam dirimidos através do juízo arbitral. Nas suas razões de recurso especial, sustentou a recorrente, preliminarmente, a contrariedade do art. 535 do CPC, pois não teria sido apreciada, no acórdão recorrido, a sua alegação de que a convenção de arbitragem seria ineficaz. Com relação ao reconhecimento, pelo Tribunal de origem, da convenção da arbitragem e à consequente extinção do processo sem o julgamento do mérito, afirmou a recorrente a violação dos arts. 267, VII e § 3º, 301, § 4º, 471, 515 e 516 do CPC. Entre outros argumentos, sustentou a preclusão da questão, que teria sido rejeitada pelo juízo de primeiro grau não na sentença, mas em decisão interlocutória que se tornou definitiva; e a impossibilidade de ser ela conhecida de ofício. Para a recorrente, mesmo que fosse possível o conhecimento da questão da convenção de arbitragem, o Tribunal de origem, ao desconstituir a sentença sem que houvesse a impugnação de todos os seus capítulos, teria contrariado, novamente, o art. 515 do CPC. Afirmou a recorrente ainda a violação do art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por quatro motivos. A par (i) do Tribunal de origem não haver observado o seu direito de acesso ao Poder Judiciário, (ii) os árbitros da Fosfa não seriam independentes e imparciais e (iii) estabelecidos previamente em lei, não lhe tendo (iv) sido assegurada, no procedimento arbitral, garantias processuais mínimas. Sustentou, uma vez mais, a contrariedade do art. 8º da CADH, mas em interpretação conjunta com o art. 25 da mesma convenção, pois o Poder Judiciário, tanto no acórdão recorrido como na homologação da sentença arbitral, recusou-se a discutir a eficácia da convenção de arbitragem. Por fim, afirmou a violação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996, que estipula requisitos especiais para a eficácia da cláusula compromissória constante de contratos de adesão, como a rubrica do aderente ao lado da cláusula, que deve, ademais, estar em negrito. Foram apresentadas contrarrazões pela Galaxy Grain Itália S.P.A. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 315 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O eminente Ministro Paulo Furtado admitiu o recurso especial em sede de agravo de instrumento. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas, a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte reside basicamente na verificação da correção do acórdão recorrido que decretou a extinção do processo judicial movido pela empresa recorrente, sem o julgamento do mérito, considerando a convenção de arbitragem firmada entre as partes e a homologação, pela Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, da sentença arbitral estrangeira proferida pela Fosfa (Federation of Oils, Seeds and Fats Association Ltd). Preliminarmente, não conheço parcialmente do recurso especial, com fundamento no Enunciado da Súmula n. 284 do STF, da primeira e da quarta alegação, relativamente à contrariedade ao art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), uma vez que formuladas de forma genérica, sem a indicação precisa dos fundamentos da irresignação recursal. Por outro lado, considerando que o Tribunal de origem não se omitiu quanto à questão da eficácia da cláusula compromissória estabelecida entre as partes, mas simplesmente afirmou a impossibilidade de ser ela conhecida na presente ação de cobrança e de indenização, não há qualquer contrariedade ao art. 535 do CPC. Efetivamente, mostra-se absolutamente inviável, nesta ação, a apreciação da questão referente à eficácia da cláusula compromissória e de outras relativas ao procedimento arbitral, como a independência e a imparcialidade dos árbitros, a necessidade destes serem previamente estabelecidos em lei e a observância das garantias do contraditório e da ampla defesa. Neste sentido, a regra do art. 5º da Convenção de Nova York sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1958, promulgada pelo Decreto n. 4.311, de 2002, assim como as normas dos arts. 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996, expressamente permitem a veiculação de questões desta natureza na ação de homologação de sentença arbitral estrangeira, onde devem ser esgrimidas essas alegações. 316 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Como, no caso, a sentença arbitral proferida pela Fosfa já foi homologada e o recurso especial se refere a ação de cobrança e de indenização, ficam rejeitadas as alegações relativas à regularidade do procedimento arbitral (segunda e a terceira alegações de contrariedade ao art. 8º da Convenção, e alegação de violação ao art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996). Nada obstante – até mesmo porque a recorrente, com base nos art. 8º e 25 da CADH, afirma precisamente o contrário –, é importante esclarecer haver a Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça examinado a suposta ineficácia da cláusula compromissória quando da homologação da sentença arbitral estrangeira. Transcrevo, assim, o seguinte trecho do voto do relator, eminente Ministro Gilson Dipp: Na hipótese, para a eventual análise da alegação de que o contrato objeto da arbitragem é “de adesão”, seria necessário o exame do mérito da relação de direito material afeto ao objeto da sentença estrangeira homologanda, o que se mostra inviável na presente via. Ademais, ainda que assim não fosse entendido, escorreita a manifestação da requerente ao consignar que “No caso em concreto, os contratos foram livremente pactuados e assinados pelas partes contratantes, constando de todos eles a cláusula compromissória - item 16 - (...). O contrato de adesão de que cuida o art. 54 do Código de Defesa do Consumidor se carateriza, no direito brasileiro, quando estabelecida unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor, hipossuficiente, possa discutir ou modificar o conteúdo. Ademais, nada tem a haver o CDC com o caso em concreto, não sendo o devedor destinatário final do produto, passível de caracterizar relação de consumo, violando qualquer direito básico do consumidor.” (fls. 842-843) (grifou-se). Quanto ao tema, destaca-se manifestação do Supremo Tribunal Federal em hipótese análoga à presente, verbis: 35. Sustenta, ainda, a contestante, que o contrato é de adesão e, por isso, a cláusula arbitral deveria estar escrita em negrito, como determina o artigo 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996, sob pena de nulidade. 36. Embora seja esta questão ínsita ao mérito, insuscetível de apreciação em procedimento homologatório perante este Tribunal, repondo-a. Ao compulsar-se o documento de fls. 221-222, desponta claro que a empresa vendedora foi livremente escolhida pela Teka, nada obstante a existência de centenas de outros fornecedores de algodão no mercado internacional. É evidente que o contrato de adesão não é caracterizado pelo impresso com espaços em branco, como crê a requerida, mas pelas condições que RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 317 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA uma das partes impõe a outra e não sujeitas a discussão. Na hipótese, às cláusulas insertas na avença dizem respeito ao local em que a mercadoria seria entregue, à forma de conferência de peso, à extensão do seguro, ao pagamento do frete e, finalmente, às regras de arbitragem, tudo isso sujeito a modificações, segundo entendimento prévios. Não consta que contrato de tal configuração jurídica seja de adesão ou que algumas de suas cláusulas possam ser consideradas como leoninas, matéria ademais, como disse, alheias à natureza do procedimento homologatório. De igual forma, o laudo exarado pela Liverpool Cotton Association Ltd. nada tem a ver com o Código Nacional de Defesa do Consumidor, para escusar-se a devedora da obrigação assumida, por não se aplicar à empresa importadora de produto destinado ao consumidor final, conforme prevê o artigo 2º, que define como consumidor toda “pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. (SEC n. 5.847-IN - Gra Bretanha (Inglaterra), Relator Min. Maurício Corrêa, DJ de 17.12.1999). Ainda antes de apreciar o mérito propriamente dito do presente recurso especial, não há motivo para ser reconhecida a violação do art. 515 do CPC, já que, havendo o Tribunal de origem extinto o processo em razão da convenção de arbitragem, não poderia, como decorrência lógica, subsistir qualquer capítulo da sentença, mesmo que não impugnados. No que diz respeito à extinção do processo sem o julgamento do mérito, a recorrente sustentou, em síntese, a preclusão e a possibilidade da cláusula compromissória ser conhecida de ofício pelo Poder Judiciário, apontando a violação de inúmeros dispositivos do Código de Processo Civil (arts. 267, VII e § 3º, 301, § 4º, 471, 515 e 516). No entanto, uma vez homologada a sentença arbitral estrangeira, a extinção do processo judicial nacional, com o mesmo objet, não se fundamenta na simples pactuação da convenção de arbitragem – a qual pode ser renunciada por acordo entre as partes – mas na obrigatoriedade que a sentença arbitral adquire no território nacional. Para ser homologada, a sentença arbitral estrangeira deve, necessariamente, ter-se tornado obrigatória para as partes. A este respeito, o enunciado normativo do art. 5º, § 1º, e, da Convenção de Nova York, reproduzido no art. 38, VI, da Lei n. 9.307/1996, verbis: 1. O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão ser indeferidos, a pedido da parte contra a qual ela é invocada, unicamente se esta parte fornecer, à 318 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA autoridade competente onde se tenciona o reconhecimento e a execução, prova de que: e) a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou suspensa por autoridade competente do país em que, ou conforme a lei do qual, a sentença tenha sido proferida. No entanto, a obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira, que deve, segundo o art. 3º da Convenção de Nova York, ser assegurada pelos Estados partes, somente pode ser considerada pelas autoridades estatais nacionais a partir da sua homologação, momento em que adquire, nos termos dos arts. 483 do CPC e 36 da Lei n. 9.307/1996, plena eficácia no território nacional. A obrigatoriedade da sentença arbitral, de acordo com os arts. 18 e 31 da a Lei n. 9.307/1996, significa, entre outras características, a impossibilidade de ser ela revista ou modificada pelo Poder Judiciário, o que a confere, no Brasil, o status de título executivo judicial (art. 475-N, IV e VI, do CPC), sendo executada da mesma forma que a sentença judicial. Na doutrina, a equiparação entre a sentença arbitral e a judicial resulta, até mesmo, no reconhecimento da existência de coisa julgada também com relação à sentença arbitral, como se pode notar na lição de Carlos Alberto Carmona (Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/2006, 3º ed. rev, atual, e ampl. Editora Atlas: São Paulo, p. 393). Portanto, se a sentença arbitral estrangeira, depois da sua homologação, adquire plena eficácia no território nacional e não pode, em razão da sua obrigatoriedade, ser revista ou modificada pelo Poder Judiciário, não há como se admitir a continuidade de processo estatal com o mesmo objeto da sentença homologada. Ressalto, neste aspecto, que o Tribunal de origem reconheceu, de forma soberana (Súmula n. 7-STJ), que o pedido e a causa de pedir do processo arbitral instaurado na Fosfa abrangiam os da presente ação de cobrança e de indenização, não havendo, ademais, a recorrente apresentado qualquer irresignação a este respeito no recurso especial. Nesse contexto, a continuidade do processo judicial estatal, colocando em perigo a obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira homologada, poderia até mesmo configurar ilícito interncional, já que, como referido, o Brasil assumiu, com a ratificação da Convenção de Nova York, o compromisso de reconhecer como obrigatórias as sentenças arbitrais estrangeiras. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 319 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Correta, portanto, a extinção do processo sem o julgamento do mérito determinada no acórdão recorrido. Ante o exposto, voto por conhecer em parte da irresignação e, nesta parte, negar provimento ao recurso especial. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.254.141-PR (2011/0078939-4) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: João Batista Neiva Advogados: Hildegard Taggesell Giostri e outro(s) Josemar Perussolo Recorrido: Vilma de Lima Oliveira - espólio e outros Representado por: Wilson Rocha de Oliveira Advogado: Manoel Diniz Neto EMENTA Direito Civil. Câncer. Tratamento inadequado. Redução das possibilidades de cura. Óbito. Imputação de culpa ao médico. Possibilidade de aplicação da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance. Redução proporcional da indenização. Recurso especial parcialmente provido. 1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações, há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser fixada. Precedentes. 2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a 320 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da doença, e não pela falha de tratamento. 3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance, em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil sustentação da teoria da causalidade proporcional. 4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional. 5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de reduzir a indenização fixada. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 4 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 20.2.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Trata-se de recurso especial interposto por João Batista Neiva, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 321 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA constitucional, para impugnação de acórdão exarado pelo TJ-PR no julgamento de recurso de apelação. Ação: de indenização por dano causado em virtude de erro médico, ajuizada pelo espólio de Vilma de Lima Oliveira, pelo viúvo da de cujus, Wilson Rocha de Oliveira e por seus filhos, em face do médico João Batista Neiva. Alegam os autores na inicial que o réu tratou a falecida Vilma por força de um câncer de seio. Durante o tratamento da doença, alegam terem sido cometidos uma série de erros, entre os quais se destacam os seguintes: após o tratamento inicial da doença não foi recomendada quimioterapia; a mastectomia realizada foi parcial (quadrantectomia), quando seria recomendável mastectomia radical; não foi transmitida à paciente orientação para não mais engravidar; com o reaparecimento da doença, novamente o tratamento foi inadequado; o aparecimento de metástase foi negado pelo médico; entre outras alegações. Houve prévio ajuizamento de medida cautelar de produção antecipada de provas, na qual o erro foi confirmado. Em contestação, o réu negou todos os fatos, defendendo a adequação do tratamento por ele prescrito. Impugnou o laudo pericial. Também apresentou reconvenção, alegando que o processo conteria uma apologia ao suposto erro médico e que a ele seria devida indenização, tanto pelo abalo psicológico, como pelo suposto dano de imagem decorrente da acusação de erro contra ele aviada. Sentença: julgou procedente o pedido principal e improcedente o pedido formulado na reconvenção, condenando o réu a uma indenização de R$ 120.000,00 pelo dano moral causado, mais a reparação do dano material alegado na inicial. A sentença foi impugnada mediante recurso de apelação interposto pelo réu. Acórdão: negou provimento ao recurso, aplicando à hipótese a Teoria da Perda da Chance (fls. 1.069 a 1.093, e-STJ). Eis a ementa do julgado: Responsabilidade civil. Erro médico. Perda de uma chance. Culpa do médico ao escolher terapêutica contrária ao consenso da comunidade científica. Dever de dispensar ao paciente a melhor técnica e tratamento possível. Chances objetivas e sérias perdidas. Erro também no acompanhamento pós-operatório. Dano moral. Indenização. Valor da indenização adequado. Apelação não provida. Embargos de declaração: interpostos, foram rejeitados (fls. 1.123 a 1.129, e-STJ). 322 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Recurso especial: interposto com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional (fls. 1.137 a 1.169, e-STJ). Alega-se violação dos arts.: (i) 131 e 458, II, do CPC, por deficiência de fundamentação do julgado; (ii) 145, § 2º, do CPC, por impossibilidade de acolhimento de laudo pericial elaborado por profissional não especializado; (iii) 186 a 927 do CC/2002 pela ausência de nexo causal que permitisse a condenação; (iv) 14, § 4º do CDC que impede a responsabilização objetiva de profissionais liberais. Admissibilidade: o recurso não foi admitido na origem, por decisão exarada pelo i. Des. Fernando de Oliveira, 1º Vice-Presidente do TJ-RS, à época, motivando a interposição do Ag n. 1.317.114-PR, a que dei provimento para melhor apreciação da controvérsia. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a estabelecer, entre outras questões de natureza processual, se é razoável o critério adotado pelo TJ-PR ao apurar, com fundamento na Teoria da Perda da Chance, a responsabilidade civil de um médico oncologista em hipótese em que a perícia apurou a inadequação do tratamento de câncer por ele adotado em paciente que, posteriormente, veio a óbito. I - Ausência de motivação do acórdão recorrido. Violação dos arts. 131 e 458, II, do CPC. O recorrente afirma que o acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação, já que acolheu “decisão do Juízo Monocrático, apesar de reconhecer que a sentença de 1º Grau obrou em equívoco ao deixar de indicar os motivos que levaram a prova pericial a ser rejeitada”. Contudo, não foi isso que ocorreu. O que o acórdão fez foi declarar válida a sentença que, para a rejeição da prova testemunhal, reportou-se ao parecer exarado pelo MP, na origem. A ressalva feita pelo acórdão foi de que teria sido mais adequado, ainda que não fosse imprescindível, que o juízo monocrático tivesse reproduzido os argumentos do referido parecer. Mas o próprio Tribunal, para extirpar quaisquer dúvidas a respeito, reforça sua argumentação observando, em raciocínio escorreito, que “para as questões essencialmente técnicas o Código de Processo Civil admite um único meio de prova: a pericial (arts. 400, II, 420, RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 323 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA I), sem que as testemunhas, por mais conhecimentos que possuam na área, possam substituir o perito”. Com isso, a fundamentação do julgado tornou-se completa e não há, portanto, violação dos arts. 131 e 458, II, do CPC. II - A necessidade de especialização do perito. Violação do art. 145, § 2º, do CPC. Para o recorrente o TJ-PR violou o art. 145, § 2º, do CPC, ao permitir que a perícia, relativa aos procedimentos a serem adotados para o tratamento de Câncer de Mama, fosse conduzida, não por oncologista, mas por médico com especialização em Ginecologia, Obstetrícia e Mastologia. Para o recorrente haveria, inclusive, uma incoerência séria no julgado, porquanto o TJ-PR afirma no acórdão, referindo-se à decisão quanto à mastectomia realizada, que “somente um médico com especialização na área poderia (...) dizer se o tumor tinha 2, 5 ou mais centímetros”. Contudo, para a realização da perícia ele admite que um médico sem tal especialização dê a palavra final sobre a adequação do procedimento. A matéria, contudo, não está prequestionada, ao menos com o enfoque pretendido pelo recorrente. Com efeito, ao julgar os embargos de declaração, o TJ-PR ponderou que a suposta falta de qualificação do perito não poderia ser impugnada naquela sede porquanto a questão “foi anteriormente resolvida em primeiro e em segundo grau - por este Tribunal no Agravo de Instrumento n. 281.212-2/00 (fls. 542 e seguintes) -, desfavoravelmente ao réu, reputando-se então sem vícios a prova pericial e dispensável a realização de uma segunda perícia”. Portanto, ao recorrente de pouco serviria impugnar diretamente o mérito da suposta violação à regra do art. 145, § 2º, do CPC, que não foi abordado. Ele deveria ter impugnado o acórdão com o fundamento na suposta inexistência de coisa julgada acerca da matéria, que pudesse impedir sua reapreciação, solicitando, inclusive, conforme o caso, a nulidade do acórdão recorrido por violação do art. 535 do CPC. Essa providência não foi tomada, o que leva à rejeição deste capítulo do recurso, seja por força do óbice do Enunciado n. 283 da Súmula-STF, já que a decisão se sustenta por fundamento inatacado, seja por ausência de prequestionamento, atraindo o óbice dos Enunciados n. 282 e n. 356-STF, bem como n. 211 da Súmula-STJ. 324 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA III - Da indenização fixada. Perda da chance. Nexo causal. III.a) A aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance na seara médica. O recorrente afirma que sua condenação não poderia ter sido fundamentada exclusivamente na Teoria da Perda da Chance porquanto restaria ausente o indispensável nexo causal, como pressuposto do dever de indenizar (arts. 186 e 927 do CC/2002). Com efeito, pondera que o próprio acórdão recorrido admite que, nas hipóteses de perda da chance, existe a possibilidade de o evento danoso se verificar independentemente da conduta do agente a quem se imputa a culpa. Esse fato impossibilitaria a condenação, já que o dano só é indenizável, nos termos da lei civil, se consubstanciar efeito direto e imediato da conduta do agente. A argumentação é bem desenvolvida e dá, novamente, a esta Corte, a oportunidade de discutir a aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance, mas aqui sob um novo enfoque: até o momento, tem sido relativamente comum enfrentar recursos especiais em que essa teoria é invocada em situações nas quais há o desaparecimento de uma oportunidade de ganho em favor do lesado, a chamada perda da chance clássica (Fernando Noronha, Direito das Obrigações: fundamentos do direito das obrigações - introdução à responsabilidade civil, Vol. 1 - São Paulo: Saraiva, 2003, p. 669) como ocorreu nos julgamentos: do EREsp n. 825.037-DF, no qual a Corte Especial do STJ reconheceu o direito à indenização em favor de um candidato impedido de participar de Concurso Público; do REsp n. 821.004-MG (3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 24.9.2010), em que deferiu indenização a candidato a vereador derrotado por reduzida margem de votos, contra quem se plantara notícia falsa às vésperas da eleição; do REsp n. 788.459-BA (4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de 13.3.2006), que tratou da injusta desclassificação de um concorrente em programa televisivo de perguntas e respostas, entre outros. Nas hipóteses de Perda da Chance Clássica, há sempre certeza quanto à autoria do fato que frustrou a oportunidade, e incerteza quanto à existência ou à extensão dos danos decorrentes desse fato. Assim, por exemplo, quando uma pessoa impede outra de participar de um concurso de perguntas e respostas, não há dúvidas de quem causou o impedimento, e a única incerteza diz respeito a qual seria o resultado do certame e que benefícios seriam auferidos pela vítima caso dele participasse até o fim. Por isso a indenização é fixada mediante uma redução percentual do ganho que, em princípio, poderia ser auferido pelo RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 325 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prejudicado. Assim, se este tinha 60% de chances de sucesso caso tivesse aproveitado a oportunidade perdida, a indenização será fixada em 60% sobre o valor total dos hipotéticos lucros cessantes. Na hipótese dos autos, contudo, a oportunidade perdida é de um tratamento de saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte. Aqui, a extensão do dano já está definida, e o que resta saber é se esse dano teve como concausa a conduta do réu. A incerteza, portanto, não está na consequência. Por isso ganha relevo a alegação da ausência de nexo causal. A conduta do médico não provocou a doença que levou ao óbito mas, mantidas as conclusões do acórdão quanto às provas dos autos, apenas frustrou a oportunidade de uma cura incerta. Essa circunstância suscita novos questionamentos acerca da Teoria da Perda da Chance, porquanto a coloca em confronto mais claro com a regra do art. 403 do CC/2002, que veda a indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do réu. Exatamente por esse motivo, a doutrina especializada vem mencionando que a Teoria da Perda da Chance nas hipóteses de erro médico não vem sendo pacificamente aceita no direito comparado. Tanto Fernando Noronha (op. cit.), como Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance: uma análise de direito comparado e brasileiro, São Paulo: Atlas, p. 222 e ss.) dão conta da existência de viva controvérsia no direito francês acerca da matéria. Assim, a partir do trabalho pioneiro de René Savatier, que em primeiro lugar enxergou a diferença aqui apontada, diversos autores vêm negando a aplicação da teoria da perda da chance à seara médica. A título exemplificativo, Jean Penneau, autor de obra de grande envergadura sobre o tema (La responsabilité du medecin. Paris: Dalloz, 1992, apud Fernando Noronha, op. cit., 678), afirma que as situações de certeza quanto ao resultado e incerteza quanto à causa não podem ser dirimidas mediante a simples redução proporcional da indenização. Em vez disso, a incerteza quanto à causa deve ser resolvida em um processo regular de produção de provas, de modo que, se comprovado o nexo causal entre a conduta do médico e o prejuízo causado ao paciente, este lhe deverá pagar uma indenização integral, não uma indenização proporcional ao grau de plausibilidade da oportunidade perdida. Se não ficar comprovada a culpa, por outro lado, indenização nenhuma será devida. Para o erro médico, portanto, o critério seria de tudo ou nada. Referido autor pondera, inclusive, que a jurisprudência deveria “cessar de se lançar em acrobacias intelectuais - que são a porta aberta a todos os 326 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA arbítrios - nos termos das quais se pretende indenizar um inapreensível prejuízo intermediário”. Para os defensores dessa corrente, a dúvida quanto ao nexo causal deveria levar ao julgamento de improcedência do pedido. Apenas nas hipóteses em que tal nexo estivesse plenamente demonstrado, poderia haver um julgamento de procedência da pretensão do lesado, com reparação integral do dano. Autorizar que se aplique a teoria da perda da chance para processos aleatórios já concluídos implicaria o “paraíso de juízes indecisos (incertains), [como] dizia o decano Savatier”. A indenização parcial, portanto, demonstraria uma confusão do julgador, entre “o grau de pretensa chance perdida com o grau de sua própria dúvida sobre a causalidade”. No mesmo sentido é a opinião de Yvone LambertFaivre (Droit du dammage corporel. Systèmes d’indemnisation. 3ª ed., Paris: Dallos, 1996, apud Fernando Magalhães, op. loc. cit.) Essas críticas, conquanto robustas, não justificam a exclusão da doutrina da perda da chance para a seara médica. A dificuldade de trato da questão está justamente em que os defensores da diferenciação entre a perda da chance clássica e a perda da chance no ramo médico situam o fator aleatório, de modo equivocado, num processo de mitigação do nexo causal. Sem demonstração clara de que um determinado dano decorreu, no todo ou em parte, da conduta de um agente, é de fato muito difícil admitir que esse agente seja condenado à sua reparação. Admiti-lo implicaria romper com o princípio da “conditio sine qua non”, que é pressuposto inafastável da responsabilidade civil nos sistemas de matriz romano-germânica. A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a paciente. Com isso, resolve-se, de maneira eficiente, toda a perplexidade que a apuração do nexo causal pode suscitar. Para a compreensão dessa forma de pensar a matéria, pode-se mencionar a explanação de Rafael Pettefi da Silva (op. Cit., p. 71 e ss) – conquanto esse autor não advogue a independência chance, como dano autônomo: A disciplina do “Law and Economics”, tão difundida na América do Norte e comprometida a analisar os efeitos econômicos das instituições jurídicas, passou RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 327 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a considerar o aumento de riscos e a perda de chances como “commodities”, avaliando-os como danos tangíveis, merecedores de grande importância conceitual. Note-se que essa abertura epistemológica, em relação ao reconhecimento das chances perdidas como danos indenizáveis, é observada como algo indissociável da evolução tecnológica. (...) Apesar das críticas ao baixo caráter de certeza que ainda envolvem algumas estatísticas – responsáveis pelo dito popular que estas se constituiriam em mais uma forma de mentira – acredita-se que, de acordo com o paradigma solidarista, a mesma argumentação utilizada para respaldar a reparação dos danos morais poderia ser aqui utilizada: “a condição de impossibilidade matematicamente exata da avaliação só pode ser tomada em benefício da vítima e não em seu prejuízo”. Por intermédio dos argumentos expostos, grande parte da doutrina assevera que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção de nexo de causalidade alternativa para ser validada. Apenas uma maior abertura conceitual em relação aos danos indenizáveis seria absolutamente suficiente para a aplicação da teoria da perda de uma chance nos diversos ordenamentos jurídicos. Ainda segundo esse autor, cabe ao Professor Joseph King Jr., no direito americano, o esboço dos fundamentos para a admissão da responsabilidade civil pela perda da chance, como uma modalidade autônoma de dano. Nas palavras de Rafael Peteffi da Silva: A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os Tribunais têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima. Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro de abordagem que os Tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão ‘tudo ou nada’ da causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa um dano reparável.” (p. 75 e 76). O valor dessa doutrina, em que pesem todas as críticas a que foi submetida, está em que, a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo, 328 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida, na hipótese deste processo) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar esse dano, ou seja, apurar qual o valor econômico da chance perdida. Esta relatora não desconhece as graves críticas que esta posição pode suscitar. Os doutrinadores que têm se dedicado ao estudo do tema manifestam justa preocupação com o “risco sistemático” inerente ao tema, receosos quanto à ampliação das possibilidades de relativização do nexo causal. Nesse sentido, podem-se citar as seguintes considerações de Rafael Peteffi sobre o assunto: (...) Saliente-se, conforme já exposto no Capítulo 2, a enorme preocupação que alguns juristas franceses, como René Savatier e Jean Penneau, demonstravam em relação ao “perigo sistemático” engendrado pelas chances perdidas avaliadas após o completo desenrolar do processo aleatório. Como a certeza absoluta em termos de nexo de causalidade é muito raramente encontrada, não mais seriam observadas condenações integrais dos danos sofridos pela vítima. O juiz deixaria de perquirir quem realmente causou o dano, para saber qual a percentagem de chances que o agente tirou da vítima. De fato, a regra do tudo ou nada estaria sepultada, pois as sentenças de improcedência também ficariam cada vez mais raras, tendo em vista que a dúvida sobre o nexo de causalidade passaria a gerar uma reparação parcial do prejuízo, “medida pelo grau de incerteza que cerca o livre convencimento do juiz”. É por esta razão que René Savatier declarava que a teoria da perda de uma chance aplicada à seara médica seria o paraíso do juiz indeciso. (...) Importante observar que, em França, ao aludido “perigo sistemático” representado pela perda da chance de cura é dada tanta importância que, exceto pela célebre manifestação de Jacques Boré, nenhum outro jurista advoga pela aplicação da causalidade parcial. Portanto, mais uma vez se verifica a defesa da fórmula “tudo ou nada” quando se trata de causalidade: ou a vítima resta sem qualquer reparação, já que o nexo causal não foi provado; ou se trabalha com presunções de causalidade, tentando alcançar a reparação do dano final. É forçoso reconhecer, por outro lado, que a necessidade de se prevenir o referido “risco sistemático” não pode levar à completa negação da teoria para as hipóteses de erro médico, porquanto fazê-lo também poderia gerar resultados catastróficos. Invocando o direito norte-americano, Rafael Peteffi faz, em contraponto aos temores manifestados pela doutrina francesa, as seguintes observações: RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 329 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Em defesa da adoção da teoria da perda de uma chance na seara médica, tem-se como principal argumento o caráter pedagógico (deterrence) que deve desempenhar a responsabilidade civil, isto é, o dever de indenizar o dano causado deve desmotivar o agente, bem como toda a sociedade, de cometer novamente o mesmo ato ofensivo. A não-adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com poucas chances de vida. Esta situação é facilmente explicável, pois enorme seria a dificuldade de provar o nexo de causalidade certo e direto entre a falha médica ou hospitalar e a morte do paciente, já que este, muito provavelmente, morreria pela evolução endógena da doença, mesmo com uma conduta médica exemplar. Assim, a falha médica não se caracterizaria como uma condição necessária para o surgimento do dano. Em Mckellips v. Saint Francis Hosp e em Roberson v. Counselman, a Suprema Corte de Oklahoma e a Suprema Corte do Kansas, respectivamente, absorveram bem a matéria, afirmando, ao fundamentar as deciões, que os profissionais da saúde estariam totalmente livres de sua responsabilidade, mesmo em se tratando do erro mais grosseiro, se o paciente apresentasse poucas chances de viver. A Suprema Corte do Arizona, em Thompson v. Sun City Community Hosp., argumentou que, quando um médico, por falha sua, retira trinta por cento (30%) de chances de sobrevivência de um grupo de cem pacientes, que efetivamente morrem, é “estatisticamente irrefutável” que alguns desses pacientes faleceram devido à falha médica. Entretanto, o repúdio à teoria da perda de uma chance faz com que nenhum desses pacientes possa requerer qualquer tipo de indenização, já que é impossível provar o nexo de causalidade entre a morte do paciente e a falha médica, decretando a irresponsabilidade absoluta dos médicos. Há, por derradeiro, uma última crítica à qualificação da perda da chance como direito autônomo à reparação civil. Trata-se da seguinte objeção, formulada por Rafael Peteffi (op. Cit., p. 106 e 107): A necessidade de arquitetar presunções para provar o nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano final ocorre exatamente pela impossibilidade de se admitir um dano autônomo e independente consubstanciado nas chances perdidas. Essa impossibilidade é cabalmente verificada pelo já comentado exercício de argumentação, efetuado por autores franceses e norte-americanos. Nesse sentido, se um médico comete um terrível erro técnico, aumentando o risco de morte de uma paciente (ou diminuindo as suas chances de viver) e, mesmo assim, o paciente recupera a sua saúde perfeita, a maioria da doutrina acredita que não há dano passível de reparação. Portanto, esse “prejuízo distinto do benefício esperado” parece ser difícil de imaginar nos casos em que o processo aleatório chegou até o final, já que se apresenta dependente da definitiva perda da vantagem esperada pela vítima. (p. 106 e 107). 330 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Essa crítica, contudo, também não se sustenta. No exemplo fornecido por Peteffi não há efetiva perda da chance quanto ao resultado-morte. Se o processo causal chegou a seu fim e o paciente viveu, não obstante a falha médica, não se pode dizer que o profissional de saúde tenha lhe subtraído uma chance qualquer. Por questões afeitas à compleição física da vítima ou por quaisquer outros fatores independentes da conduta médica, as chances de sobrevivência daquele paciente sempre foram integrais. Vale lembrar que a oportunidade de obter um resultado só pode se considerar frustrada se esse resultado não é atingido por outro modo. Seria, para utilizar um exemplo mais simples, de “perda de chance clássica”, o mesmo que discutir a responsabilização de uma pessoa que impediu outra de realizar uma prova de concurso, na hipótese em que essa prova tenha sido posteriormente anulada e repetida. Talvez no exemplo fornecido por Peteffi seja possível dizer que a correta atuação do profissional de saúde possibilitasse à vítima um processo de convalescência mais confortável ou mais veloz. Mas nessa situação, poderíamos individualizar um bem jurídico autônomo lesado pela omissão do médico - justamente a chance de gozar de maior qualidade de vida durante a convalescência. Vê-se, portanto, que, nesta como em tantas outras questões mais sensíveis do direito, sempre haverá muito debate. Contudo, sopesados os argumentos de defesa de cada uma das posições em conflito, a que melhores soluções apresenta é a consideração da perda da chance como bem jurídico autônomo, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil médica. Todas as perplexidades que a aplicação dessa teoria possa suscitar resolvem-se, assim, no âmbito da quantificação do dano. III.b) O preenchimento dos pressupostos da aplicação da Teoria da Perda da Chance na hipótese dos autos e a respectiva consequência. III.b.1) Os pressupostos Definida a aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance para a solução da hipótese dos autos, resta analisar, por um lado, o preenchimento de seus pressupostos, e por outro, a adequação das consequências extraídas a partir desses pressupostos pelo TJ-PR. Essa atividade, tendo em vista o óbice do Enunciado n. 7 da Súmula-STJ, tem necessariamente de partir das conclusões, RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 331 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA quanto à prova, a que chegou o acórdão recorrido. Ou seja: não pode ser discutido nesta sede o fato, já reconhecido na origem, de que o tratamento dispensado à de cujus foi inadequado. Importante ressaltar que esta discussão não pode ser obstada por uma suposta falta de legitimidade das partes para pleitear o direito em causa. É verdadeiro, por um lado, que a oportunidade de cura ou de gozar de uma sobrevida mais confortável é direito personalíssimo da paciente. Seu falecimento, portanto, não implica a transferência desse direito aos herdeiros. Contudo, a oportunidade de gozar a companhia de um ente querido, com ele convivendo livre de sua doença, ou mesmo de acompanha-lo num processo melhor de convalescência, é direito autônomo de cada uma das pessoas que com o “de cujus” mantinham uma relação de afeto. O dano, portanto, causado pela morte, afeta a todos em sua esfera individual, cada qual por um motivo específico, como sói ocorrer em todas as situações em que se pleiteia indenização por força do falecimento de um ente querido. Estabelecido esse pressuposto, para poder aplicar a Teoria da Perda da Chance, necessário se faz observar a presença: (i) de uma chance concreta, real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou sofrer um prejuízo; (ii) que a ação ou omissão do defensor tenha nexo causal com a perda da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o objeto final); (iii) atentar para o fato de que o dano não é o benefício perdido, porque este é sempre hipotético. Analisando esses fatores, o TJ-PR, inicialmente, pondera que na decisão acerca de um tratamento médico a adotar, o grau de subjetividade sempre é muito grande, dificultando o estabelecimento de uma certeza acerca do agravamento do risco a que estava submetido a paciente. Contudo, o caminho trilhado é o de que o procedimento correto, por assim dizer, deve ser estabelecido com os olhos voltados ao grau de desenvolvimento de uma determinada área científica. Vale dizer: ainda que, em termos absolutos, uma determinada prescrição não seja a mais eficiente, ela será considerada adequada se corresponder ao que se reputa ser a melhor técnica, no estágio atual de desenvolvimento da ciência. Não tendo sido adotada essa técnica, o médico responsável terá obrado com culpa no tratamento da paciente. Da leitura do acórdão recorrido pode-se extrair que: (i) a chance de melhor qualidade de vida ou até a cura da paciente era real e concreta; (ii) que há uma relação direta entre o tratamento inadequado e a perda de oportunidade de melhor qualidade de vida ou até mesmo de obter a cura da doença; (iii) o fato 332 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA de a paciente ter gerado filho não rompe o referido nexo de causalidade, entre o tratamento inadequado e a chance perdida; (iv) o dano final está provado, com a morte da vítima. Analisando a prova dos autos, o TJ-PR concluiu que o procedimento adotado pelo réu não foi adequado porque, em primeiro lugar, a melhor decisão acerca da cirurgia a ser feita para tratamento de câncer de mama depende essencialmente do tamanho do tumor. Na hipótese dos autos, segundo se apurou na perícia, não era possível afirmar com certeza qual o tamanho do tumor que vitimava a paciente, de modo que a sua classificação deveria ter sido estabelecida, necessariamente, como de tamanho não definido. Para hipóteses de tumores de tamanho não definido, a comunidade médica, segundo se apurou na perícia, jamais recomenda a cirurgia de quadrantectomia, mas a mastectomia radical. Em segundo lugar, ficou estabelecido que a recomendação de quimioterapia e a radioterapia feita pelo réu, antes e depois da cirurgia, não observou o protocolo mais adequado, segundo a literatura médica atualizada, sendo que “na doença neoplásica a escolha do tratamento ideal se baseia em dados estatísticos mas, mesmo com o tratamento ideal, existem casos com evolução desfavorável. A diferença é que o Requerido optou por oferecer um tratamento em que a chance de êxito ficou diminuída” (fl. 1.087, e-STJ). Em terceiro lugar, “houve também culpa no acompanhamento póscirúrgico”, uma vez que “o réu deveria ter solicitado outros exames” (fl. 1.088, e-STJ), como cintilografia óssea, mamografia, ultrassonografia de abdômen, raio-x de tórax. O médico, contudo, não seguiu esse procedimento. Em quarto lugar, as chances de melhora ou mesmo de cura foram consideradas, pela análise do conjunto fático-probatório dos autos, sérias e objetivas pelo TJ-PR, uma vez que a perícia estabeleceu que “se o tratamento dispensado fosse a mastectomia radical seguida de quimioterapia e radioterapia nas dosagens recomendadas, as metástases poderiam ter surgido, mas com probabilidade menor que com o tratamento utilizado” (fl. 1.086, e-STJ). A vítima, assim, teria “chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma sobrevida menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora tardiamente após a recidiva” (fl. 1.088, e-STJ). Nesse sentido, podem ser destacadas os seguintes trechos do laudo pericial, inteiramente acolhido pelo TJ-PR: “11 – Se o requerido tivesse adotado outro tratamento desde o início, a metástase teria aparecido? Quais as probabilidades? RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 333 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Resposta: Poderia ter aparecido. Mas, com uma probabilidade menor do que com o tratamento que foi utilizado. 12 – Se a requerida tivesse recebido o tratamento específico para a doença quando dos primeiros exames, quando apareceram as dores e as primeiras lesões, qual a probabilidade de cura? Resposta: Probabilidade de cura muito baixa, porém, com melhor qualidade de vida. 13 – Após doze sessões de quimioterapia, com 03 diferentes drogas, os exames ainda revelam a doença em evolução. Se outro fosse o tratamento, quais as chaces de ter sido controlada a doença? Resposta: Depois do aparecimento das metástases, as chances de controlar a doença são poucas e difíceis. 14 – Queira o Sr. Perito prestar outros esclarecimentos que entender necessários. Resposta: Sim, deveriam ter sido realizadas mamografias. (fls. 266 a 268, e-STJ). Disso decorre que o pedido de dano moral formulado e deferido pelo TJPR teve como causa de pedir a imperícia médica que resultou numa verdadeira “via crucis” para a vítima, especialmente no período de aparecimento da metástase e a sua morte. Há, portanto, a frustração de uma chance e a obrigação de indenizá-la. III.b.2) As consequências - o valor da indenização Como dito acima, a principal consequência da reparação civil pela perda de uma chance é o estabelecimento da indenização para esse bem jurídico autônomo em uma proporção, aplicada sobre o dano final experimentado. O TJ-PR não desconhece esse fato. Contudo, não o aplica, ponderando que “para a indenização do dano moral” (...) “esse não pode ser o único critério a ser considerado pelo Juiz, exatamente pela característica do dano extrapatrimonial que o tornam de difícil mensuração”. Segundo o acórdão recorrido, as peculiaridades da reparação por dano moral determinam que o “o número de chances perdidas passa a ser mais um critério dentre outros” (fl. 1.091, e-STJ). O caminho escolhido pelo Tribunal foi o de valorar, no momento de fixar a indenização, não apenas a função ressarcitória do dano moral, mas 334 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA notadamente sua função punitiva e dissuasória, tomando em consideração (i) a reprovabilidade da conduta; (ii) a intensidade e duração do sofrimento; (iii) a capacidade econômica do ofensor e (iv) as condições pessoais do ofendido. Com isso, teceu considerações acerca de cada um desses elementos, deixando de ponderar a redução proporcional da indenização que a Teoria da Perda da Chance recomenda. Essa parcela do acórdão é impugnada no recurso especial com fundamento em que a Perda da Chance leva a uma indenização “não pelos danos sofridos, mas sim por uma chance eventualmente perdida”, de modo que seria imperiosa a redução da reparação fixada, sobretudo considerando que “não só a paciente viveu mais 7 anos (quando o tempo de sobrevida previsto era de 5 anos), bem como - durante esse tempo - engravidou e deu à luz uma criança sadia, tendo sua gestação transcorrido da maneira mais normal possível, o que é o mais claro indicativo de uma vida com qualidade e normalidade”. Assiste razão à recorrente nesse ponto. Conforme pondera o i. Des. Miguel Kfouri Neto (que, vale frisar, é autor de obra de extrema envergadura acerca do tema - “Responsabilidade Civil do Médico”, Ed. Revista dos Tribunais, 1994, 7ª edição: 2010), em acórdão citado no recurso especial (TJ-PR, 8ª Câmara Cível, EIC n. 0275929-5/01), “em se tratando da perda de uma chance, a indenização jamais poderia corresponder ao prejuízo final, mas tão-somente à chance perdida”. Assim, ainda que se leve em consideração, para além da reparação devida à vítima, também o indispensável efeito dissuasório da condenação por dano moral, o montante fixado tem de observar a redução proporcional inerente a essa modalidade de responsabilidade civil. O acórdão recorrido não reconheceu ao médico responsabilidade integral pela morte da paciente. Não pode, assim, fixar reparação integral, merecendo reparo nesta sede. É, portanto, necessário dar solução à causa aplicando o direito à espécie, conforme determina o art. 257 do RI-STJ. Na hipótese dos autos, há diversos momentos do tratamento em que podem ser identificadas falhas do médico responsável. No momento inicial, quando do diagnóstico do câncer, a primeira falha está na realização de uma quadrantectomia, em lugar de uma mastectomia radical. Se esse equívoco não tivesse sido cometido, talvez o tumor tivesse sido, de pronto, extirpado. A segunda falha, segundo se apurou em perícia, está no RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 335 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA protocolo de sessões de quimioterapia. Se, além da mastectomia radical, esse protocolo tivesse sido seguido, é possível afirmar que as chances de cura fossem bem maiores. A terceira falha está na falta de orientação à paciente quanto aos riscos de gravidez. E a quarta falha está no protocolo seguido após a recidiva da doença. Nesse sentido, o Perito Judicial apurou que “não se pode afirmar que a existência de metástases foi pela conduta utilizada pelo recorrido, pois em qualquer tratamento, mesmo nos mais preconizados, estas podem ocorrer, embora numa incidência menor” (fl. 272, e-STJ). Todavia, também não se pode negar que a perícia estabeleceu, categoricamente, que se o procedimento correto tivesse sido adotado, haveria possibilidade de cura para a paciente (fl. 274, ‘ e-STJ) e que “na doença neoplásica a escolha de tratamento ideal se baseia em dados estatísticos, mas, mesmo com o tratamento ideal, existem casos com evolução desfavorável. A diferença é que o Requerido optou por oferecer um tratamento, em que a chance de êxito ficou diminuída”. Ponderando-se todas as circunstâncias da hipótese sob julgamento, é adequado dizer que as chances perdidas, por força da atuação do médico, têm conteúdo econômico equivalente a 80% do valor fixado pelo acórdão recorrido, a título de indenização final. Relembro, contudo, que essa redução se reporta aos termos da sentença, na qual a indenização foi fixada, de modo que a correção monetária deve incidir desde a data de sua publicação. Forte nessas razões, conheço do recurso especial e lhe dou parcial provimento, exclusivamente para reduzir em 20% a indenização fixada pela sentença, mantida pelo TJ-PR, com correção monetária a partir da publicação da sentença. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Sr. Presidente, também parabenizo a Sra. Ministra Nancy Andrighi pelo cuidadoso trabalho de pesquisa e de fundamentação. A chance perdida é um meio jurídico autônomo que não se confunde com o resultado que normalmente se indeniza quando há dano moral, por exemplo, e ela é aferível, sim, pelo princípio da causalidade, mas uma causalidade que utiliza já a estatística para aferir a probabilidade daquela chance perdida. 336 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No caso, de fato, houve imperícia. A fundamentação das decisões, na origem, é impecável. Todos os requisitos da teoria da perda de uma chance foram observados e graduados, de modo que, também no que tange à fixação da indenização, concordo com a eminente Relatora por entender que ali se encontram algumas características que agravam a conduta do médico. Os procedimentos corriqueiros não foram adotados por ele e houve algumas circunstâncias que demonstram que ele poderia ter informado à paciente mais adequadamente sobre aqueles riscos e sobre as possibilidades de sucesso que ela teria, caso adotasse uma outra terapêutica. Então, concordo inteiramente com a eminente Relatora. RECURSO ESPECIAL N. 1.278.627-SC (2011/0219273-0) Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Recorrente: Moisés Luís Branco de Moraes Advogado: Isabel Cristina Telles Borges e outro(s) Recorrido: Vilson de Souza e outro Advogado: Vito Antônio Depin Interessado: Ana Paula Bett Hinckel EMENTA Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade civil por ato lícito. Acidente automobilístico. Estado de necessidade. Julgamento antecipado. Alegação de cerceamento de defesa. Inocorrência de nulidade da sentença. Lesões graves. Incapacidade permanente. Pensão vitalícia. Multa do artigo 538 do CPC. Intuito prequestionador. Súmula n. 98-STJ. 1. Acidente de trânsito ocorrido em estrada federal consistente na colisão de um automóvel com uma motocicleta, que trafegava em sua mão de direção. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 337 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. Alegação do motorista do automóvel de ter agido em estado de necessidade, pois teve a sua frente cortada por outro veículo, obrigando-o a invadir a outra pista da estrada. 3. Irrelevância da alegação, mostrando-se correto o julgamento antecipado da lide por se tratar de hipótese de responsabilidade civil por ato lícito prevista nos artigos 929 e 930 do Código Civil. 4. O estado de necessidade não afasta a responsabilidade civil do agente, quando o dono da coisa atingida ou a pessoa lesada pelo evento danoso não for culpado pela situação de perigo. 5. A prova pleiteada pelo recorrente somente seria relevante para efeito de ação de regresso contra o terceiro causador da situação de perigo (art. 930 do CC/2002). Ausência de cerceamento de defesa. 6. Condutor e passageiro da motocicleta que restaram com lesões gravíssimas, resultando na amputação da pena esquerda de ambos. 7. A pensão por incapacidade permanente decorrente de lesão corporal é vitalícia, não havendo o limitador da expectativa de vida. Doutrina e jurisprudência acerca da questão. 8. Embargos de declaração opostos com intuito prequestionador, é de ser afastada a multa do artigo 538 do CPC, nos termos da Súmula n. 98-STJ. 9. Recurso especial parcialmente provido apenas para afastar a multa do art. 538 do CPC. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator DJe 4.2.2013 338 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA RELATÓRIO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial interposto por Moisés Luís Branco de Moraes contra acórdão da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que, nos autos de sua apelação cível, negou-lhe provimento ao seu recurso de apelação e deu provimento ao recurso adesivo dos recorridos, para majorar o quantum indenizatório a que fora condenado pelos danos causados em acidente automobilístico. Na origem, foi proposta pelos ora recorridos ação indenizatória por acidente automobilístico ocorrido em 20.12.2003, quando os autores trafegavam pela BR 470, na cidade de Pouso Redondo, nas proximidades do Km 11 ao Km 201, por volta das 11:15 h, vindo a ser abalroados lateralmente pelo veículo da requerida Ana Paula Bett Hinckel, conduzido pelo requerido Moisés Luís Brando de Moraes, que, trafegando em sentido contrário e já desgovernado, invadiu a pista contrária e colidiu contra a motocicleta em que estavam os requerentes. Na inicial, requereram a procedência da presente demanda, com a condenação do réus ao pagamento de indenização por danos materiais, estéticos e morais, bem como de pensão alimentícia mensal. Na contestação do réu, ora recorrente, suscitou preliminar de inépcia da inicial. No mérito, alegou que não colaborou para a ocorrência do sinistro em apreço, pois trafegava em velocidade moderada e totalmente compatível com o local, inclusive porque vários outros veículos transitavam a sua frente, impedindo o alcance de velocidade excessiva. Acrescentou, entretanto, que foi surpreendido por um automóvel Pálio que, de inopino, adentrou do acostamento para a pista, obrigando-o réu a desviar a fim de não ser atingido, oportunidade em que seu automóvel rodopiou pela estrada e veio a colidir com a motocicleta em que se encontravam os autores. Na sentença, em julgamento antecipado, foram parcialmente acolhidos os pedidos da inicial, extinguindo o feito, sem resolução de mérito, contra Ana Paula Bett Hinkel, por sua ilegitimidade passiva. Quanto ao réu, ora recorrente, Moisés Luís Branco de Moraes, foi condenado a colocação de prótese substitutiva da perna amputada dos dois autores, ao pagamento de pensão vitalícia pela perda de capacidade laboral, a indenizar danos emergentes, morais e estéticos, além das despesas processuais e honorários advocatícios do patrono dos requerentes. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 339 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Irresignado, o requerido interpôs recurso de apelação cível sustentando, preliminarmente, a ocorrência de cerceamento de defesa ante o julgamento antecipado da lide. No mérito, asseverou novamente ter ocorrido o acidente em estado de necessidade, tendo em vista que se deparou com um veículo adentrando abruptamente na pista de rolamento a sua frente, razão pela qual levou seu veículo à esquerda perdendo o controle da direção e ocasionando o acidente. No julgamento do recurso, o Tribunal de origem, no acórdão recorrido, negou provimento à apelação do réu, afastando as preliminares suscitadas, destacando a não ocorrência do cerceamento de defesa, pois a matéria versada na presente ação era exclusivamente de direito, plenamente solucionável por meio da prova documental. No mérito, reconheceu a obrigação de indenizar do recorrente, asseverando que o Boletim de Ocorrência tem força probante juris tantum, bem como reconheceu ter o apelante violado o disposto no artigo 28 do Código de Trânsito Brasileiro, por haver perdido o domínio de seu veículo. Ao final, reconheceu que o estado de necessidade alegado pelo apelante não afastaria sua responsabilidade pelo acidente, apenas, garantiria a ele o direito de regresso contra quem deu causa ao acidente. De outro lado, o Tribunal de origem, deu provimento ao recurso adesivo dos autores para majorar o quantum indenizatório, com disposições de ofício quanto ao termo inicial da correção monetária e dos juros moratórios, além de condenar o demandado, também, nos honorários advocatícios do patrono da parte excluída da lide (có-ré). Nas suas razões do recurso especial, o recorrente sustentou que o acórdão recorrido violou os artigos 128, 264, 293, 330, 331, 458, II, 459, 460, 474 e 535 do Código de Processo Civil, além de apontar divergência jurisprudencial. Alegou nulidade da sentença, contradição no acórdão recorrido e cerceamento de defesa face o julgamento antecipado da lide. Apontou a necessidade de limitação da pensão a que fora condenado até quando as vítimas completarem 65 anos. Por fim, postulou o afastamento da multa do artigo 538 do Código de Processo Civil, em razão do intuito prequestionador de seus embargos de declaração. Postulou conhecimento e provimento do recurso. Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido na origem. É o relatório. 340 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas, o presente recurso especial merece parcial provimento, tão somente para afastar a multa do artigo 538 do CPC, em face do disposto no Enunciado Sumular n. 98 desta Corte Superior. Trata-se de ação indenizatória por acidente automobilístico ocorrido em 20.12.2003, quando os autores, ora recorridos, trafegavam pela BR 470, no Município de Pouso Redondo-SC, nas proximidades do Km 11 ao Km 201, por volta das 11:15 h, tendo sido abalroados lateralmente pelo veículo da requerida Ana Paula Bett Hinckel, conduzido pelo requerido Moises Luís Brando de Moraes, que, trafegando em sentido contrário e já desgovernado, invadiu a pista contrária e colidiu contra a motocicleta em que estavam os requerentes. No acórdão recorrido, restou assim delineado o acidente que envolveu as partes, verbis: (...) analisando os elementos probatórios trazidos aos autos, verifica-se que, no dia 20.12.2003, por volta das 11:15 horas, a motocicleta dos autores, ao trafegar pela BR 470 (Km 11 ao 201), teve sua trajetória interceptada pelo veículo de propriedade do requerido que invadiu a pista contrária, ocasionando o sinistro e os diversos danos no veículo e corpos dos requerentes. Partindo-se da situação fática descrita no Boletim de Ocorrência elaborado pela autoridade policial (fls. 27-28), infere-se ter o requerido (veículo 01) invadido a pista contrária de direção abalroando lateralmente a motocicleta dos autores (veículo 02) que trafegava no sentido oposto, verbis: Conforme levantamento no local, o veículo 01 ao contornar a curva invadiu a faixa contrária abalroando lateralmente o veículo 02, que seguia em sentido oposto. Ato contínuo, o veículo 01 chocou-se com o barranco, vindo a capotar no acostamento. Em julgamento antecipado, a sentença acolheu parcialmente os pedidos da petição inicial, extinguindo o feito contra Ana Paula Bett Hinkel, por sua ilegitimidade passiva. Quanto ao réu, ora recorrente, Moisés Luís Branco de Moraes, condenou-o a colocação de prótese substitutiva da perna amputada dos dois autores, ao pagamento de pensão vitalícia pela perda de capacidade laboral, a indenizar danos emergentes, morais e estéticos, além das despesas processuais e honorários advocatícios do patrono dos requerentes. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 341 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Tribunal de origem, no acórdão recorrido, negou provimento à apelação do réu e deu provimento ao recurso adesivo dos autores para majorar o quantum indenizatório. No presente recurso especial, em síntese, o recorrente concentra seu apelo nobre em três pontos principais: (i) o julgamento antecipado teria gerado contradição no acórdão recorrido, nulidade da sentença e cerceamento de defesa; (ii) dissídio jurisprudencial quando ao limite etário da pensão aos 65 anos das vítimas; (iii) o afastamento da multa do artigo 538 do CPC. Passo a analise de cada um dos pontos controvertidos: I. Julgamento antecipado, cerceamento de defesa, contradição do aresto recorrido, nulidade da sentença e estado de necessidade. O principal ponto da insurgência recursal dirige-se contra o julgamento antecipado da lide, alegando o recorrente, desde sua apelação, a nulidade da sentença por cerceamento de defesa. Aponta ainda contradição na fundamentação do acórdão recorrido, pois, julgando antecipadamente a lide, lhe fora imputada culpa pelo acidente ocorrido, sem que lhe tenha sido oportunizada a produção da prova de ter agido em estado de necessidade. Sem razão a pretensão recursal. Os recorridos, na peça exordial, aduziram que transitavam regularmente, em sua mão de direção, pela BR 470, no trecho que vai do km 11 ao Km 201, no Município de Pouso Redondo, no Estado de Santa Catarina, quando foram abalroados pelo veículo conduzido pelo segundo réu, o qual, por sua vez, estaria trafegando desgovernadamente, ou seja, em alta velocidade e na contramão. O recorrente, por sua vez, sustentou, desde a sua contestação, que vinha transitando em condições compatíveis com a pista, atingindo uma velocidade máxima de 50 Km/h. Alegou, porém, que foi surpreendido por veículo de terceira pessoa, que adentrou do acostamento para a via de forma brusca, obrigando-o a realizar manobra defensiva, desviando-se para o lado esquerdo. Como a pista encontrava-se molhada, por conta do tempo chuvoso, sua manobra teria acarretado a derrapagem do automóvel, razão pela qual, segundo alega, veio a colidir com os autores. Sustenta ter agido ao abrigo da excludente do estado de necessidade. A leitura das duas versões apresentadas pelas partes para explicar o grave acidente de trânsito denota que os relatos são convergentes no sentido de que 342 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a colisão ocorreu sobre a pista de rolamento em que trafegava a motocicleta, estando o automóvel na contramão. A alegação apenas do recorrente é de que agiu em estado de necessidade, pois um terceiro automóvel invadiu a sua pista de rolamento, obrigando-o a fazer uma manobra brusca para a esquerda, o que foi determinante para o acidente. Do acórdão recorrido, colhe-se precisamente a versão do recorrente acerca do estado de necessidade alegado, verbis: Entretanto, viu-se surpreendido por um automóvel Pálio que, de inopino, adentrou do acostamento para a pista, obrigando o réu a desviar-se para a direita a fim de não ser atingido, oportunidade em que seu automóvel rodopiou pela estrada e veio a colidir com a motocicleta em que se encontravam os autores, tendo em vista que se encontravam em uma curva, com pista molhada por causa da chuva, e o veículo do autor trafegava exatamente sobre a faixa divisória das pistas. Nesse contexto, mostrou-se correto o julgamento antecipado da lide procedido pelo juízo de primeiro grau, que não importou em cerceamento de defesa. Ocorre que a produção de provas em audiência em nada alteraria a conclusão final do processo mesmo que fosse comprovado ter o réu agido ao abrigo da excludente do estado de necessidade. O presente caso amolda-se com perfeição na hipótese de responsabilidade civil por ato lícito insculpida no art. 929 do Código Civil, verbis: Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram. O art. 188 do Código Civil regula o estado de necessidade nos seguintes termos, verbis: Art. 188. Não constituem ato ilícito: I - (...); II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente. Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 343 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E o art. 930 do Código Civil complementa com a regulamentação da ação de regresso nessas situações nos seguintes termos, verbis: Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado. Portanto, de acordo com o nosso Código Civil, quando o agente, ao abrigo do estado de necessidade, em face de perigo criado por terceiro, causar dano a outrem, persiste a obrigação de indenizar, tendo apenas direito de regresso contra aquele que criou a situação de perigo. Por isso, a prova pretendida pelo recorrente seria relevante apenas para efeito de ação de regresso contra o causador da situação de perigo (art. 930 do CC), o que não foi veiculado no presente processo. Relembre-se que a responsabilidade civil por ato lícito, no âmbito do Direito Privado, constitui hipótese particularmente interessante em nosso sistema jurídico, pois o ato praticado em estado de necessidade, embora não seja ilícito, não afasta o dever de indenizar do seu autor em relação ao dono da coisa atingida ou a pessoa lesada pelo evento danoso, quando esta não for o culpado pela criação da situação de perigo. Na doutrina, Aguiar Dias explica o seguinte: O estado de necessidade, ato lícito, por sua natureza, não afasta, só por isso, a obrigação de indenizar. O caráter da responsabilidade civil, resultante do ato praticado em estado de necessidade, é objetivo e não subjetivo (AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil, 4.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1960, II, p. 884.). (grifos meus) Sérgio Cavalieri Filho, em seu Programa de Responsabilidade Civil (São Paulo: Atlas, 2007), anota o seguinte (p. 19): O que há de peculiar nesta matéria é que o Código Civil, em seu art. 929, não obstante configurado o estado de necessidade, manda indenizar o dono da coisa, pelo prejuízo que sofreu, se não for culpado do perigo, assegurado ao autor do dano o direito de regresso contra o terceiro que culposamente causou o perigo (art. 930). A mesma solução alvitra o Código, no parágrafo único do art. 930, contra aquele em defesa de quem se danificou a coisa. São hipóteses de indenização por ato lícito, que tem por fundamento a equidade, e não a responsabilidade, como veremos no item 148.5. 344 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA E Cavalieri Filho aprofunda a análise, revisando a doutrina nacional e estrangeira acerca do tema, além de jurisprudência desta Corte, complementando com sua opinião acerca do tema (p. 519): Entendemos que a aparente contradição entre o ato praticado em estado de necessidade (ato lícito) e a indenização do dano correspondente decorre da idéia enraizada de que toda e qualquer reparação do dano tem por causa o ato ilícito. Mas isso é um equívoco, porque o ressarcimento pode se dar a título diverso da responsabilidade civil, isto é, sem que o agente tenha violado qualquer dever jurídico. Muitas são as hipóteses em que a lei concede um direito, mas condiciona o seu exercício, apesar de legítimo, à reparação de eventuais prejuízos sofridos por terceiros. Assim, por exemplo, na desapropriação, na servidão e no estado de necessidade. Em casos tais, não há, a rigor, que se falar em responsabilidade civil porque, como ressaltado, o agente não viola qualquer dever jurídico; antes, pelo contrário, age conforme o Direito. Há, sim, reparação do dano fundada na equidade. Essa idéia de equidade é bem mais expressiva no Código Civil português, cujo artigo 339º, II, tem a seguinte redação: “O autor da destruição ou do dano é, todavia, obrigado a indenizar o lesado pelo prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o Tribunal pode fixar uma indenização equitativa e condenar nela não só o agente, como aqueles que tiraram proveito do ato ou contribuíram para o estado de necessidade.” Arnaldo Rizzardo cita entendimento do extinto Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, verbis: Se alguém, para livrar-se do perigo iminente, causa dano aos bens de outrem, por certo não pratica ato ilícito. Nem por isso, porém, desobriga-se perante o prejudicado. Daí do artigo 1.520 do CC (Código Civil de 1916). O autor imediato do dano solve a obrigação e fica com ação regressiva contra o terceiro culpado, para dele haver a importância que tiver ressarcido ao dono da coisa. Rizzardo anota ainda, em sua obra, que é unânime o entendimento de que há obrigação de indenizar, se o dono da coisa lesada não for culpado do perigo, exemplificando da seguinte forma, verbis: Nesta ordem, se para evitar um acidente, o motorista corta bruscamente a frente de outro veículo, responderá pelos danos, pois não é justo que a vítima suporte os prejuízos físicos e materiais a pretexto da ausência de culpa por parte do autor direto do evento. Esta procurará acionar o provocador do seu ato, chamando-o a juízo posteriormente, para que indenize não somente a soma entregue à vítima, mas também a lesão por ele suportada em seu veículo. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 345 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O fundamento para essa opção legislativa é a equidade, aplicando-se a chamada teoria do sacrifício, que é explicada pelo constitucionalista português José Joaquim Gomes Canotilho em obra específica acerca da responsabilidade civil por atos lícitos, que foi a sua Dissertação de Mestrado em Coimbra (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do estado por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974). Antes de analisar a responsabilidade civil do Estado propriamente dita, ele faz uma ampla análise da responsabilidade civil por atos lícitos prevista no Código Civil português de 1966, cujas regras são muito semelhantes com as estabelecidas tanto no Código Civil de 1916, como no Código Civil de 2002. Canotilho analisa a teoria do sacrifício, explicando que, diante de uma colisão entre os direitos da vítima e os do autor do dano, estando os dois na faixa de licitude, o ordenamento jurídico opta por proteger o mais inocente dos interesses em conflito, sacrificando o outro. Na jurisprudência desta Corte, localizei os seguintes precedentes acerca do tema: Responsabilidade civil. Acidente de transito. Colisão com veiculo regularmente estacionado. Fato de terceiro. “Fechada”. Estado de necessidade. Licitude da conduta do causador do dano. Ausencia de culpa demonstrada. Circunstancia que não afasta a obrigação reparatoria (arts. 160, II e 1.520, CC. Recurso conhecido e provido. I - O motorista que, ao desviar de “fechada” provocada por terceiro, vem a colidir com automóvel que se encontra regularmente estacionado responde perante o proprietario deste pelos danos causados, não sendo elisiva da obrigação indenizatória a circunstância de ter agido em estado de necessidade. II - Em casos tais, ao agente causador do dano assiste tão-somente direito de regresso contra o terceiro que deu causa a situação de perigo. (REsp n. 12.840-RJ, Rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 22.2.1994, DJ 28.3.1994, p. 6.324). Responsabilidade civil. Legitima defesa. “Aberratio ictus”. O agente que, estando em situação de legitima defesa, causa ofensa a terceiro, por erro na execução, responde pela indenização do dano, se provada no juizo civel a sua culpa. Negado esse fato pela instância ordinária, descabe condenar o reu a indenizar o dano sofrido pela vitima. Arts. 1.540 e 159 do CC. Recurso não conhecido. (REsp n. 152.030-DF, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 25.3.1998, DJ 22.6.1998, p. 93). Responsabilidade civil. Acidente automobilístico. Situação de perigo criada por terceiro. Obrigação do causador direto do dano de indenizar, com ação regressiva contra o terceiro. Aplicação do art. 1.520 do Código Civil. - Na sistemática do direito 346 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA brasileiro, o ocasionador direto do dano responde pela reparação a que faz jus a vítima, ficando com ação regressiva contra o terceiro que deu origem à manobra determinante do evento lesivo. Recurso especial conhecido e provido parcialmente. (REsp n. 127.747-CE, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 10.8.1999, DJ 25.10.1999, p. 85). Assim, a prova pretendida pelo recorrente, em razão de sua alegação de ter agido em estado de necessidade, era efetivamente desnecessária, tendo sido corretamente indeferida pelo juízo de primeiro grau em decisão confirmada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apenas seria relevante para efeito da ação de regresso prevista no artigo 930 do Código Civil, que não é, porém, objeto do presente processo. Por fim, não restou demonstrada a similitude fática entre os paradigmas apontados e o acórdão recorrido quanto ao cerceamento de defesa. Nas situações versadas pelos paradigmas, não houve discussão acerca do cerceamento de defesa relativo à alegação de estado de necessidade como mecanismo de defesa. Ausente, assim, similitude entre os casos confrontados, não cabendo, portanto, o conhecimento, neste ponto, do recurso especial. II. Dissídio jurisprudencial quanto a limitação da pensão a expectativa de vida das vítimas (65 anos anos de idade) O segundo ponto da insurgência recursal dirige-se contra a não fixação do termo final da pensão na data em que as vítimas completarem 65 anos de idade. Quanto ao limite da pensão a que fora condenado o recorrente, assim asseverou o acórdão recorrido, verbis: Tocante ao limite de pensionamento, tratando-se de pensão mensal substitutiva de renda devida aos próprios acidentados sobreviventes do sinistro não ha falar em limite de tempo baseado em presunções acerca do provável tempo de vida das vítimas, pois os danos são perenes e a incapacidade laborativa assolará os requerentes até os últimos dias de suas vidas. Insurge-se, assim, o recorrente quanto a vitaliciedade da pensão a que fora condenado, postulando a sua limitação na data em que as vítimas completarem 65 anos de idade. Não assiste razão ao recorrente. Não se considera para efeito de concessão da pensão a expectativa de vida do ofendido, como ocorre no homicídio (art. 948, II, do CC), pois, mesmo RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 347 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA após atingir essa idade-limite (65 ou 70 anos de idade), continuará o ofendido necessitando da pensão e talvez de modo ainda mais agudo, em função da velhice e do incremento das despesas com saúde. A periodicidade da pensão leva em conta a duração temporal da incapacidade da vítima, considerando o momento de consolidação de suas lesões, podendo ser temporária ou permanente. A incapacidade permanente, caracterizada quando, consolidadas as lesões, restaram sequelas definitivas, que reduzem ou suprimem a capacidade laborativa do ofendido, segue o disposto no artigo 950 do Código Civil, verbis: Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. A pensão correspondente à incapacidade permanente, regulada pelo artigo 950 do CC/2002 é vitalícia, conforme já explicava Clóvis Beviláqua, analisando a regra correspondente do Código Civil de 1916 (art. 1.539), verbis: Se a lesão corporal tem consequências permanentes de tal ordem que a capacidade de trabalho do ofendido se anule ou diminua depois da cura, é justo que o ofensor lhe dê uma compensação correspondente, e esta melhormente se obterá por meio de uma pensão vitalícia (BEVILÁQUA, 1952, v. 5, p. 322. Comentários ao art. 1.539 do CC1916). Na mesma linha, orientam-se os precedentes desta Corte: Responsabilidade civil. Acidente no trabalho. Dano moral. Dolo. Pensão. Limite de tempo. 65 anos. 1. A indenização do dano moral não depende de ser doloso o ato que lhe deu causa. 2. A pensão devida a vitima do acidente não esta limitada aos seus 65 anos de idade. Recurso não conhecido. (REsp n. 130.206-PR, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 11.11.1997, DJ 15.12.1997, p. 66.420). Responsabilidade civil. Passageiro de ônibus. Fratura no braço esquerdo. Pensão vitalícia. Constituição de capital. Honorários de advogado. - A vítima de acidente, se viva, há de ser pensionada enquanto viver, não se lhe aplicando o limite de idade para a pensão. Precedentes. - Não perfectibilização do dissenso pretoriano no tocante à necessidade de constituição de capital para assegurar o pagamento das parcelas vincendas. 348 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Solvabilidade, ou não, da empresa permissionária de serviço público a ser verificada em cada caso. Jurisprudência do STJ no sentido de que, em regra, tal exigência deve ser atendida. - Os honorários advocatícios de sucumbência não incidem sobre o capital constituído para assegurar o pagamento das prestações vincendas da pensão (REsps n. 109.675-RJ e n. 327.382-RJ). Recurso especial conhecido, em parte, e provido. (REsp n. 280.391-RJ, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 15.6.2004, DJ 27.9.2004, p. 362). Portanto, não procede o pedido de limitação do pensionamento até a idade provável de sobrevida das vítimas se elas ainda estão vivas. Sendo o pensionamento devido à própria vítima do acidente, deve ser pago em caráter vitalício. Enfim, a pretensão esbarra no óbice da Súmula n. 83-STJ, pois o acórdão recorrido está em plena consonância com o entendimento desta Corte Superior. III. Multa do artigo 538 do Código de Processo Civil. Por fim, melhor sorte socorre ao recorrente quanto a multa de 1% a que fora condenado por terem sido considerados protelatórios os seus embargos declaratórios. Os embargos de declaração interpostos na origem, diferentemente do apontado no acórdão recorrido, tiveram caráter prequestionador, e não protelatório, incidindo, assim, na espécie o Enunciado da Súmula n. 98-STJ. Ante todo exposto, voto no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial para o fim específico de afastamento da multa do artigo 538 do CPC. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.281.093-SP (2011/0201685-2) Relatora: Ministra Nancy Andrighi Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 349 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Recorrido: D H M E S Advogado: Fabiana de Souza Ramos Interessado: L B V Interessado: C C V EMENTA Civil. Processual Civil. Recurso especial. União homoafetiva. Pedido de adoção unilateral. Possibilidade. Análise sobre a existência de vantagens para a adotanda. I. Recurso especial calcado em pedido de adoção unilateral de menor, deduzido pela companheira da mãe biológica da adotanda, no qual se afirma que a criança é fruto de planejamento do casal, que já vivia em união estável, e acordaram na inseminação artificial heteróloga, por doador desconhecido, em C.C.V. II. Debate que tem raiz em pedido de adoção unilateral - que ocorre dentro de uma relação familiar qualquer, onde preexista um vínculo biológico, e o adotante queira se somar ao ascendente biológico nos cuidados com a criança –, mas que se aplica também à adoção conjunta – onde não existe nenhum vínculo biológico entre os adotantes e o adotado. III. A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas, às uniões estáveis heteroafetivas, afirmada pelo STF (ADI n. 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto), trouxe como corolário, a extensão automática àquelas, das prerrogativas já outorgadas aos companheiros dentro de uma união estável tradicional, o que torna o pedido de adoção por casal homoafetivo, legalmente viável. IV. Se determinada situação é possível ao extrato heterossexual da população brasileira, também o é à fração homossexual, assexual ou transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias de qualquer natureza que são abraçados, em igualdade de condições, pelos mesmos direitos e se submetem, de igual forma, às restrições ou exigências da mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio da igualdade, resguardar-se de quaisquer conteúdos discriminatórios. V. Apesar de evidente a possibilidade jurídica do pedido, o pedido de adoção ainda se submete à norma-princípio fixada no art. 350 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA 43 do ECA, segundo a qual “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando”. VI. Estudos feitos no âmbito da Psicologia afirmam que pesquisas “(...) têm demonstrado que os filhos de pais ou mães homossexuais não apresentam comprometimento e problemas em seu desenvolvimento psicossocial quando comparados com filhos de pais e mães heterossexuais. O ambiente familiar sustentado pelas famílias homo e heterossexuais para o bom desenvolvimento psicossocial das crianças parece ser o mesmo”. (FARIAS, Mariana de Oliveira e MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi in: Adoção por homossexuais: a família homoparental sob o olhar da Psicologia jurídica. Curitiba: Juruá, 2009, pp. 75-76). VII. O avanço na percepção e alcance dos direitos da personalidade, em linha inclusiva, que equipara, em status jurídico, grupos minoritários como os de orientação homoafetiva – ou aqueles que têm disforia de gênero – aos heterossexuais, traz como corolário necessário a adequação de todo o ordenamento infraconstitucional para possibilitar, de um lado, o mais amplo sistema de proteção ao menor – aqui traduzido pela ampliação do leque de possibilidades à adoção – e, de outro, a extirpação dos últimos resquícios de preconceito jurídico – tirado da conclusão de que casais homoafetivos gozam dos mesmos direitos e deveres daqueles heteroafetivos. VII. A confluência de elementos tecnicos e fáticos, tirados da i) óbvia cidadania integral dos adotantes; ii) da ausência de prejuízo comprovado para os adotados e; iii) da evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um lar, reafirmam o posicionamento adotado pelo Tribunal de origem, quanto à possibilidade jurídica e conveniência do deferimento do pleito de adoção unilateral. Recurso especial não provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 351 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o votovista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministra Nancy Andrighi, Relatora DJe 4.2.2013 RELATÓRIO A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento no art. 105, III, a, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-SP. Ação: de adoção unilateral da menor L.B.V., ajuizada por D.H.M. e S. – recorrida – pela qual busca a adoção da filha biológica de sua companheira – C.C.V., com quem mantém união estável. Sentença: concedeu a adoção unilateral de L.B.V. a D.H.M. e S., com fundamento nos artigos 6º, 42 § 2º e 43, todos da Lei n. 8.069/1990. Acórdão: o TJ-SP negou provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público Estadual, em acórdão assim ementado: União homoafetiva. Menor concebida por meio de inseminação artificial. Acolhimento do pedido de adoção, vantajoso à menor e permissivo do exercício digno dos direitos e deveres decorrentes da instituição familiar. Inteligência dos artigos 6º, 42 § 2º e 43, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo 5º, caput, da Constituição Federal. Sentença mantida. Recurso improvido. Recurso especial: alega violação dos artigos 6º, 42 § 2º e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 1.626, parágrafo único e 1.723 do CC-2002. Sustenta que é “juridicamente impossível a adoção de criança ou adolescente por duas pessoas do mesmo sexo” (fl. 289, e-STJ), afirmando, ainda, que “o instituto da adoção guarda perfeita simetria com a filiação natural, pressupondo que o adotando, tanto quanto o filho biológico, seja fruto da união de um homem e uma mulher” (fl. 55, e-STJ). 352 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Contrarrazões: A recorrida, em contrarrazões, reafirma a anuência da mãe biológica ao pedido de adoção; a estabilidade da relação homoafetiva que mantém com a ela e a existência de ganhos para adotanda. Juízo prévio de admissibilidade: o TJ-SP admitiu o recurso especial (fls. 423-425, e-STJ). Às fls. 435-441, parecer do Ministério Público Federal, de lavra do Subprocurador-Geral da República, Henrique Fagundes Filho, pelo não conhecimento do recurso especial. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia em dizer se, dentro de uma união estável homoafetiva, é possível a adoção unilateral de filha concebida por inseminação artificial heteróloga, para que ambas as companheiras passem a compartilhar a condição de mães da adotanda. I. Lineamentos gerais A insurgência recursal, no particular, volta-se para a possível afronta dos arts. 6º, 42 § 2º e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 1.626, parágrafo único e 1.723 do CC-2002. Esses dispositivos legais foram objeto de debate na origem, o que satisfaz o requisito do prequestionamento necessário para a apreciação do recurso especial. Colhem-se do acórdão recorrido, pela relevância que apresentam para o deslinde da controvérsia, as razões de decidir utilizadas no voto condutor do acórdão recorrido: Com efeito, restaram bem caracterizadas, nos autos, as vantagens que a adoção trará à menor concebida por meio de fertilização artificial, forma eleita, pela apelante e a mãe biológica, para consolidar a família que desenvolveram. A prova oral e documental produzida durante a instrução revela que, realmente, a relação familiar se enriqueceu e seus componentes vivem felizes, em harmonia. (fl. 391, e-STJ). Os laços de afeto, companheirismo, amor e respeito que unem a apelada à mãe biológica da menor retratam união estável. Não importa se a relação é pouco comum, nem por isso é menos estruturada que a integrada por pessoas de sexos RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 353 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA distintos. Nada justifica a recusa à adoção unilateral, que tem por finalidade enquadrar a menor no núcleo familiar que se encontra plenamente adaptada, permitindo-lhe assim - e também às suas guardiãs – o exercício digno dos direitos e deveres decorrentes da instituição familiar, cujos efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais são reconhecidos e preservados pelo ordenamento jurídico pátrio. (fl. 392, e-STJ). Releva ainda declinar, como pano de fundo conjuntural, que a adotanda L.B.V. nasceu – segundo o relato da própria recorrida, adotante, no que foi corroborado por C.C.V., mãe biológica da menor –, como fruto de planejamento do casal, que já vivia em união estável e acordou na inseminação artificial heteróloga, por doador desconhecido, em C.C.V. A situação descrita começa a fazer parte do cotidiano das relações homoafetivas e merece criteriosa apreciação, pois, se não equalizada convenientemente pode gerar – em caso de óbito do genitor biológico – impasses legais, notadamente no que toca à guarda dos menores, ou ainda discussões de cunho patrimonial, com graves consequências para a prole. 2. Da possibilidade de adoção unilateral, ou conjunta, em união estável homoafetiva. Fixa-se, inicialmente, que apesar de haver manifestação, tanto do Tribunal de origem quanto do recorrente, no sentido de se discutir a validade de adoção conjunta em relacionamento homoafetivo, a questão trazida a desate neste recurso especial, não trata, precisamente, dessa hipótese, pois não se verifica a existência de dois adotantes, como preconizado no art. 42, § 2º, da Lei n. 8.069/1990. Os fatos aqui delineados melhor se enquadrariam na chamada adoção unilateral, prevista no art. 41, § 1º, do mesmo texto legal, lido com as adequações de estilo necessárias à sua congruência com a hipótese. Evidenciada a ressalva quanto à natureza do pedido deduzido pela recorrida, é certo, porém, que o presente debate tanto alcança a denominada adoção unilateral – que ocorre dentro de uma relação familiar qualquer, onde preexista um vínculo biológico, e o adotante queira se somar ao ascendente biológico nos cuidados com a criança –, quanto à adoção conjunta – onde não existe nenhum vínculo biológico entre os adotantes e o adotado. E, de igual forma, a insurgência manifestada pelo Ministério Público Estadual, na sua assertiva de impossibilidade jurídica do pedido de adoção, 354 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA abrange as duas possibilidades, pois trata de possível impossibilidade jurídica de pedido de adoção, quando os adotantes mantiveram união homoafetiva. Resta, neste introito, frisar que o recurso especial se sustenta, por primeiro, no que considera ser um empeço legal à pretensão: a impossibilidade jurídica do pedido para, posteriormente, fixar-se na conveniência da adoção, analisada sob o prisma de inexistência de benefícios para a adotanda, temas que passam a ser apreciados. 2.1. Da possibilidade jurídica do pedido de adoção em uniões homoafetivas. De se observar, quanto ao ponto, que o Tribunal de origem, em suas razões de decidir, calcou-se nos arts. 6º e 42 § 2º, da Lei n. 8.069/1990 acrescido dos arts. 1.626, parágrafo único (revogado pela Lei n. 12.010/2009) e 1.723 do CC2002, que foram objeto de refutação pelo Ministério Público Estadual, que a eles deu interpretação diversa daquela fixada pelos Órgãos julgadores ordinários. Vale ainda destacar, quanto ao art. 1.723 do CC-2002, que o recurso especial foi interposto antes do julgamento da ADI n. 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 5.5.2011, que consolidou o influxo jurisprudencial já existente, no sentido de dar legitimidade e efeitos jurídicos plenos às uniões estáveis homoafetivas. Pinça-se, da ementa do acórdão, do célebre julgamento, alguns excertos que exprimem a fórmula cristalizada: (...) Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, fazse necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. Omissis. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas, às uniões estáveis heteroafetivas, trouxe como corolário, a extensão automática, àquelas, das RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 355 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prerrogativas já outorgadas aos companheiros dentro de uma união estável tradicional. Sob esse prisma, a litania trazida pelo recorrente, que aborda possíveis limitações ao pleno exercício da cidadania, em decorrência de uma opção sexual, mostra-se amplamente superada pelo julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal. O ordenamento jurídico pátrio, a começar pela Constituição Federal, não limita os direitos de cidadãos ao exercício pleno de sua cidadania por orientação sexual. Vale dizer, se determinada situação é possível ao extrato heterossexual da população brasileira, também o é à fração homossexual, assexual ou transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias de qualquer natureza. Estes, como aqueles, são abraçados, em igualdade de condições, pelos mesmos direitos e se submetem, de igual forma, às restrições ou exigências da mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio da igualdade, resguardar-se de quaisquer conteúdos discriminatórios. Assim, não causa espécie, nem pode ser tomada como entrave técnico ao pedido de adoção, a circunstância da união estável ser fruto de uma relação homoafetiva, porquanto esta, como já consolidado na jurisprudência pátria, não se distingue, em termos legais, da união estável heteroafetiva. No entanto, embora não remanesçam dúvidas quanto à viabilidade legal do pedido, pende ainda o debate sobre a existência de possíveis consequências negativas, para a infante, com essa modalidade de adoção, pois paira sobre o tema, como norma-princípio que é (art. 43 do ECA), a aferição sobre a existência de reais vantagens para a adotanda. 2.2. Da existência de vantagens para adotanda. A existência, ou não, de vantagens para o adotando, em um determinado pedido de adoção, é talvez o elemento subjetivo de maior importância na definição da viabilidade desse pleito. O comando legal sob análise, que expressamente declina que “a adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando(...)” é propositadamente aberto quanto à locução “reais vantagens”, para deixar ao talante do julgador, apreciando as condições específicas da espécie, dizer sobre a conveniência do procedimento de adoção. 356 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No entanto, há uma ressalva, ou vinculação, que se erige como Norte desta avaliação: a idéia de que o adotando é o objeto primário da proteção legal. Analisa-se, assim, em atenção à primazia do melhor interesse do menor sobre qualquer outra condição ou direito das partes envolvidas, as considerações tecidas pelo recorrente, que apontam a inexistência de reais vantagens para a criança neste processo de adoção, e que vão transcritas na parte de relevo. (...) não se vislumbra a existência de “reais vantagens” para a adotanda. Realmente, a adotanda, hoje uma criança, amanhã uma adolescente, passará por uma série de constrangimentos e discriminações, sempre que exibir em seus documentos pessoais sua inusitada condição de filha de duas mulheres. A lei diz que nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação etc. (ECA, art. 5º), porém é notório que a presente adoção fornece elemento propício a gerar futura discriminação, de sorte que se afigura lícito concluir pela inexistência de reais vantagens à adotanda, estando ausente o requisito a que alude o artigo 43 do ECA. (fls. 293-294, e-STJ). (Grifos como no original). De fácil vislumbre que o recorrente, no particular, tem por objetivo tisnar o pretendido ato de adoção, aludindo que não haveria reais vantagens para adotanda, mas ao revés, a condição de dupla maternidade acabaria por expor situação de constrangimento para a menor. Esse debate, inevitavelmente se confunde com a opção sexual da adotante, pois o recorrente se foca nessa singularidade para apontar os inconvenientes da adoção in casu, unilateral, ou mesmo da adoção conjunta por casal homoafetivo. Nesse aspecto, um primeiro e fundamental elemento de distinção deve ser evidenciado: a homossexualidade diz respeito, tão só à opção sexual. A parentalidade, de outro turno, com aquela não se confunde, pois trata das relações entre pais/mães e filhos. É sobre essa que se deve pinçar a conveniência ou inconveniência de um pedido de adoção, apesar de não se ignorar, com essa afirmação, que existam exteriotipizações de papeis nas relações de parentalidade, onde se atribui a determinado gênero certas características, que seriam complementares e necessárias ao perfeito desenvolvimento psicossocial do infante. No entanto, um mero perscrutar sobre os papéis atribuídos aos gêneros na criação de filhos, com a exceção daqueles decorrentes dos atributos físicos, mostra o forte componente cultural entremeado nessa fixação. Tanto assim, que há plena RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 357 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA superação dessas atribuições de papeis, nas situações de monoparentalidade, ou mesmo dentro de uma relação tradicional de parentalidade, na qual os atores envolvidos exercem papéis distintos dos usuais. Vale, nesse sentido, registrar o posicionamento das Psicólogas Mariana de Oliveira Farias e Ana Cláudia Bortolozzi Maia, que a respeito da necessidade de duplo gênero no desenvolvimento psicossocial dos filhos, afirmam: No entanto, segundo Zambrano, os conceitos da Psicanálise deveriam ser interpretados como funções e não como o sexo biológico das pessoas. Considerase, socialmente, que aquela pessoa que impõe as regras à criança e se ocupa dos fatores objetivos estaria associada ao masculino, enquanto aquela que cuida da criança e dos cuidados da casa estaria mais ligada ao sexo feminino. Sabemos que é importante que a criança tenha acesso às duas funções (masculina e feminina), mas estas não precisam estar associadas ao sexo biológico das pessoas que a acercam. Podemos perceber este fato verificando os resultados das pesquisas, que têm demonstrado que os filhos de pais ou mães homossexuais não apresentam comprometimento e problemas em seu desenvolvimento psicossocial quando comparados com filhos de pais e mães heterossexuais. O ambiente familiar sustentado pelas famílias homo e heterossexuais para o bom desenvolvimento psicossocial das crianças parece ser o mesmo. (FARIAS, Mariana de Oliveira e MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi in: Adoção por homossexuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba: Juruá, 2009, pp. 75-76.) Em outro excerto da mesma obra, as autoras afirmam que: Não há diferenças significativas no desenvolvimento físico e psicossocial entre filhos criados por pessoas gays e lésbicas e filhos criados por pessoas heterossexuais. Além disso, possíveis diferenças podem até ser identificadas, mas não são atribuídas às características da orientação sexual dos cuidadores e sim, às condições diversas como: orgânicas, econômicas, educacionais, sociais, etc. (Op. Cit. P. 88). Essa linha de entendimento não se descura, por certo, da existência de elementos factuais, passíveis de gerar desconforto para o adotando, como a brandida diferença no assento de registro de nascimento da adotanda, que passará a registrar duas mães, sendo essa distinção reproduzida perenemente, toda vez que for gerar documentação nova. 358 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No particular, é inevitável se contrapor ao argumento para declinar que, in casu, essa diferença persistiria, mesmo se não houvesse a adoção, pois haveria maternidade singular no registro de nascimento, que igualmente poderia dar ensejo a tratamento diferenciado, circunstância que não se mostra suficiente para obstar o pedido de adoção, por ser perfeitamente contornável e ser suplantada, em muito, pelos benefícios outorgados pela adoção. Enésio de Deus Silva Júnior, corroborando este último posicionamento afirma que: Na esteira social, cumpre lembrar que os filhos de pais separados não eram bem aceitos e que as chamadas produções independentes são, ainda hoje, vistas com preconceito, assim como os filhos de mães solteiras. Não inserir uma criança/ adolescente abandonada(o) em uma família homoafetiva é injustificável sob o argumento de discriminação que pode sofrer na sociedade, porque, apesar de essa ainda se mostrar um tanto intolerante para com a homossexualidade, tudo dependerá da maneira como os pais educarão os seus filhos. Além da importância do acompanhamento psicológico, caso seja necessário, é relevante a reflexão comparativa de que mesmo sem compreensão em casa – na maioria dos casos, por conta dos preconceitos – e em dificuldades no âmbito da discriminação externa, filhos homossexuais de “famílias convencionais” nem por isso deixam de se inserir socialmente ou abrem mão da convivência familiar. É evidente que o peso da discriminação é bem maior nesta circunstância, mas o preparo emocional, em todas essas possibilidades de conformação sociofamiliar, é que conta para uma vida digna que se impõe com respeito na sociedade, mesmo atrasada por prejulgamentos. SILVA JÚNIO, Enézio de Deus, in: A possibilidade jurídica de adoção por casais homossexuais. 5ª ed. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 155-156. Pausa-se, aqui esse debate, pois adentrar nessa seara é transformar uma discussão macro em embate sobre filigranas, quando a temática que deve vir à tona diz respeito ao equilíbrio psicossocial dos adotados por casais homoafetivos. Volvendo, então, à linha argumentativa central, vale citar que a questão envolvendo a conveniência, para a criança, de adoção por casal homoafetivo, não é celeuma apenas no Direito Pátrio, mas debate que se espalha pelo mundo em marchas e poucas contramarchas, como se vê na recente discussão lançada pelo governo da França, que encaminhou projeto de lei ao Parlamento local, permitido o casamento e adoção por casais homoafetivos. Outros países já permitiram essa adoção, sendo a Holanda, a precursora do movimento integrativo, pois desde 2001 reconhece, legalmente, a adoção RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 359 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA unilateral, ou conjunta, em relações homoafetivas, no que foi seguida por Suécia, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Províncias canadenses de Quebec e Nova Scotia, e alguns Estados americanos. Em nossa vizinhança, O Uruguai, já em 2009, aprovou lei permitindo a adoção por casais homoafetivos. (Dados disponíveis em http://www.ctvnews.ca/world/ a-look-at-gaymarriage-and-adoption-worldwide-1.1024910#ixzz2DQKsXrRK e http:// www.parlamento.gub.uy/palacio3/index1280.asp?e=0&w=1920). As ideias subjacentes ao franqueamento dessa possibilidade são monocórdicas, pois apontam primeiro: para a óbvia cidadania integral dos adotantes; segundo: para a ausência de prejuízo comprovado para os adotados e; terceiro: para a evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um lar. Buscando-se, na hipótese, agregar à monoparentalidade jurídica hoje existente, uma outra mãe, releva dar especial colorido à biparentalidade, independentemente da orientação sexual dos adotantes, pela notória vantagem que representa para o filho, natural ou adotivo, pois esta quebra a monoparentalidade prática ou técnica, na qual hoje desaguam as questões relativas à adoção por casais homoafetivos. Em outras palavras, no cenário monoparental, há um ascendente (biológico ou não), sendo a ele atribuídas todas as responsabilidades legais, sintetizadas no poder familiar, não obstante haver participação ativa do outro companheiro(a), na formação da criança. Essa situação, além de não retratar a realidade fática existente, na qual se declara, publicamente, a dupla relação de parentalidade, pode, apenas exemplificativamente, na hipótese de ocorrer óbito do ascendente biológico, trazer clima de insegurança jurídica grave, tanto para o menor, que tinha no casal homoafetivo sua referência em relação à parentalidade, quanto para o companheiro(a) supérstite, pois não há vinculo jurídico entre ele e a criança que tem como filho(a), podendo daí decorrer disputas envolvendo tanto a guarda do menor, quanto o patrimônio do de cujus. Exemplo dessa situação, o óbito de famosa cantora nacional em 2002, que mantinha união estável homoafetiva e deixou prole, logrando a mãe socioafetiva, 360 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA apenas judicialmente, a guarda do então adolescente que criara junto com a mãe biológica. Não pode o sistema jurídico albergar, ainda hoje, essas incongruências ou forçar aqueles que buscam, voluntária e regularmente, dar amparo, carinho e cuidado a uma criança sem lar, a se sujeitarem a arranjos marginais, que muitas vezes se mostram frágeis e insuficientes para garantir a segurança psicológica social e jurídica de quem deveria ter primazia nessa situação: o adotando. Os obstáculos interpostos à plena aceitação e legalização desse notório fato social são tartamudeios calcados em preconceitos que, como posto inicialmente, não tem mais guarida no sistema jurídico nacional, até mesmo pela cristalização da legalidade da união estável homoafetiva, pelo STF. A ratio orientadora da definição de reais vantagens para a adotanda ultrapassa esse debate, que tem o evidente ranço de preconceito por orientação sexual, para se concentrar em elementos mais palpáveis e de maior relevo na formação da psique do infante. Nessa senda, possível se depreender que a condição de biparentalidade homoafetiva terá a mesma repercussão da monoparentalidade – um só ascendente–, ou da já tradicional biparentalidade heteroafetiva. A adoção, ato de amor que é, exige desprendimento – para aceitar como parte de sua vida, alguém com quem não tinha vínculo biológico –; paciência – para lidar com as inúmeras situações de tensão que brotam de uma relação familiar – e; sobretudo, carinho – para fazer com que os adotandos, muitas vezes vítimas de uma estrutura social perversa, recuperem o sonho de viver. Essas, ou outras qualidades quaisquer que venham a ser enumeradas, independem de gênero, credo, cor ou orientação sexual, mas não prescindem de elevadas doses de humanidade, sobejamente demonstrada por aqueles que lutam contra empeços discriminatórios de várias estirpes, para lograr êxito em pedidos de adoção. Soçobrem então os preconceitos, nunca o legítimo direito de uma criança ou adolescente acordar em um lar que possa chamar de seu. O avanço na percepção e alcance dos direitos da personalidade, em linha inclusiva, que equipara, em status jurídico, grupos minoritários como os de orientação homoafetiva – ou aqueles que têm disforia de gênero – aos heterossexuais, traz como corolário necessário a adequação de todo o ordenamento infraconstitucional para possibilitar, de um lado, o mais amplo sistema de proteção ao menor – aqui traduzido pela ampliação do leque de RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 361 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA possibilidades à adoção – e, de outro, a extirpação jurídica dos últimos resquícios de preconceito jurídico – tirado da conclusão de que casais homoafetivos gozam dos mesmos direitos e deveres daqueles heteroafetivos. Nesse mesmo sentido já decidiu o STJ, no julgamento do REsp n. 889.852RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 10.8.2010. De igual forma, deve, na hipótese sob comento, merecer acolhida a vontade do casal, mesmo porque, é fato que o nascimento da infante ocorreu por meio de acordo mútuo entre a mãe biológica e a agora adotante, e tal qual ocorre nas reproduções naturais ou assistidas homólogas, onde os partícipes desejam a reprodução e se comprometem com o fruto concebido e nascido, também aqui deve persistir o comprometimento do casal com a nova pessoa. E evidencia-se uma intolerável incongruência com esse viés de pensamento, negar o expresso desejo dos atores responsáveis pela concepção, em se responsabilizar legalmente pela prole, fruto do duplo desejo de formar uma família. Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial, mantendo, por conseguinte, as decisões ordinárias que julgaram procedente o pedido de adoção unilateral. VOTO-VISTA (CONCORDANTE COM A RELATORA) O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Meu voto vai diretamente ao núcleo técnico-jurídico da questão de admissibilidade jurídica da adoção da menor (com seis anos de idade quando do ajuizamento nascida a 24.6.2002), no relato da inicial, filha gerada por inseminação artificial de doador desconhecido, pela convivente, desde meados de 1997, em união estável da genitora da menor. 2. - Postas à parte as numerosas digressões psicológicas, sociológicas, políticas, de preconceito ou discriminação e outras, todas extra jurídicas, cujo fascínio tantas vezes leva à incursão extra jurídica pelos profissionais do direito, mais apropriadas, contudo, ao conhecimento técnico dos profissionais das respectivas áreas e para a ponderação dos integrantes do Poder Legislativo na elaboração das leis, fica-se, aqui, no âmbito puramente técnico-jurídico, como acima salientado. Nesse âmbito estritamente técnico-jurídico, é de se concluir no sentido da admissibilidade da adoção porque: a) Já reconhecida como união estável a união homoafetiva, superando o requisito da diversidade de sexos (CC/2002, art. 1.723) pelo julgamento 362 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA constitucional a cargo do C. Supremo Tribunal Federal, que juridicamente qualificou como família, a união estável homoafetiva, interpretando o art. 226, § 3º, da Constituição Federal como “dispositivo que, ao utilizar da terminologia ‘entidade familiar’ não pretendeu diferenciá-la da ‘família’ (Ementa, item 5, do julgado na ADI n. 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5.5.2011, parte a que se ajusta a observação de “Divergências laterais do Acórdão”, resultantes de motivação dos Mins. Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cézar Peluso). b) É legalmente admitida, de modo expresso, até mesmo a adoção conjunta no caso em que os adotantes “mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família” (ECA, Lei n. 8.069, de 13.7.1990, art. 42, § 2º). c) A lei expressamente admite o caso em que, na terminologia abrangente da união estável, “um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro” (ECA, Lei n. 8.069, de 13.7.1990, art. 41, § 1º). 3. - Como se vê, é legalmente admitida a adoção do filho de um dos “cônjuges ou concubinos”, quer dizer, em união estável, pelo outro, de modo que, dada a união estável homossexual, constitucionalmente assegurada (ADI n. 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto) entre a ora requerente e a genitora da menor, tem-se a admissibilidade da adoção unilateral da filha desta por aquela. 4. - É claro que podem surgir questões técnico-registrárias, inclusive de nomenclatura, da mesma forma que pode haver particularidades extra jurídicas de vida, decorrentes da especificidade da adoção, mas, coerente com o que de início se expôs, o presente voto cinge-se exclusivamente ao núcleo técnico-jurídico posto no presente julgamento, abstendo-se de considerações e observações desbordantes da estrita competência de aplicação da lei vigente, em observância da constitucionalidade já proclamada em caráter definitivo pelo Supremo Tribunal Federal. Pelo exposto, meu voto acompanha a conclusão da E. Relatora. RECURSO ESPECIAL N. 1.297.353-SP (2011/0294586-5) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Paulo Araújo Soares RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 363 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Advogado: Douglas Casotti e outro(s) Recorrido: Banco Santander Brasil S/A Incorporador do : Banco ABN Amro Real S/A Advogada: Cíntia Aparecida Dal Rovere e outro(s) EMENTA Direito Civil e Processual Civil. Títulos de crédito. Cheque. Prazo de apresentação. Devolução de cheque prescrito por falta de fundos. Motivo indevido. Inscrição em cadastro de inadimplentes. Dano moral configurado. 1. - O prazo estabelecido para a apresentação do cheque (30 dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago e de 60 dias, quando emitido em outra praça) serve, entre outras coisas, como limite temporal da obrigação que o emitente tem de manter provisão de fundos em conta bancária, suficiente para a compensação do título. 2. - Ultrapassado o prazo de apresentação, não se justifica a devolução do cheque pelos “motivos 11 e 12” do Manual Operacional da Compe. Isso depõe contra a honra do sacador, na medida em que ele passa por inadimplente quando, na realidade, não já que não tinha mais a obrigação de manter saldo em conta. 3. - Tal conclusão ainda mais se reforça quando, além do prazo de apresentação, também transcorreu o prazo de prescrição, hipótese em que o próprio Manual determinada a devolução por motivo diverso (“motivo 44”). 4. - No caso concreto, a devolução por motivo indevido ganhou publicidade com a inclusão do nome do consumidor no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo - CCF, gerando direito à indenização por danos morais. 5. - Recurso Especial provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por 364 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda. Brasília (DF), 16 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 19.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Paulo Araújo Soares interpõe recurso especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Relatora a Desembargadora Zélia Maria Antunes Alves, cuja ementa ora se transcreve (fls. 171): Ação de indenização c.c. reparação de danos morais. Alegação, pelo autor, de devolução de cheque apresentado quando já estava prescrito, por insuficiência de fundos. Dívida representada pelo cheque que não desaparece, simplesmente, pela perda da força executiva do título, porque pode ser cobrada por outras ações judiciais. Inocorrência de qualquer ofensa à honra do autor, a justificar a condenação do banco-réu no pagamento de indenização por danos morais. Ação julgada procedente, em parte. Recurso do banco-réu provido. Recurso do autor prejudicado. 2. - Os embargos de declaração foram rejeitados (fls. 183-187). 3. - O Recorrente alega que o Tribunal de origem teria violado o artigo 33 da Lei do Cheque (Lei n. 7.357/1985) que trata do prazo de prescrição do cheque, pois, estando o título prescrito, não seria possível encaminhar o nome do sacador ao serviços de proteção ao crédito em razão do inadimplemento da dívida. Também estariam violados, segundo afirma, os artigos 186 e 927 do Código Civil, que garantiriam a indenização por danos morais em caso de negligência como a verificada no caso presente, onde a instituição financeira devolveu o cheque prescrito por motivo errado (insuficiência de fundos). Acrescenta que o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor estabelece a responsabilidade do fornecedor de serviços pelos defeitos nos RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 365 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA serviços prestados independentemente de culpa e, no caso presente, essa responsabilidade estaria configurada, porque o cheque foi devolvido pela alínea errada, causando inscrição do nome do sacador no Cadastro de Emitentes de Cheque sem Fundos - CCF. Afirma que a devolução de cheque prescrito por motivo de insuficiência de fundos gera dano moral, conforme consignado nos precedentes deste STJ, do TJRJ e do TJRS, indicados como paradigma. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4. - Paulo Araújo Soares ajuizou ação ordinária contra o Banco ABN Amro Real S/A. visando o recebimento de indenização por danos morais em razão da devolução indevida de cheque que teria ocasionado a inscrição do seu nome em cadastro de inadimplentes. Segundo afirma, cheque no valor de R$ 1.456,00 foi emitido em 27.7.1998, mas somente foi apresentado para compensação em 17.10.2002, quando não havia mais provisão de fundos na conta bancária. Afirma que, como o título já estava prescrito, deveria ter sido devolvido pela alínea 44 (cheque prescrito) e não pela alínea 12 (insuficiência de fundos), como verificado na hipótese. Esse defeito na prestação do serviço bancário, associado ao encaminhamento do seu nome ao Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo - CCF e, bem assim, a recusa de crédito em estabelecimento de comércio varejista, teria configurado dano moral indenizável (fls. 04-18). 5. - A sentença julgou procedente o pedido indenizatório, condenando o banco réu ao pagamento de indenização correspondente a 20 (vinte) vezes o valor do cheque (fls. 70-75). 6. - O Tribunal de origem, deu provimento à apelação do banco Réu para excluir a indenização, aos seguintes argumentos (fls. 173-174). A rigor, em se tratando de cheque prescrito, o correto seria que fosse devolvido pelo banco-réu, com base na alínea 44 (cheque prescrito), mas o fato de ter sido devolvido com base nas alíneas 11 e 12 (insuficiência de fundos - 1ª e 2ª apresentação), por si só, não acarreta ao emitente, o autor danos de ordem moral, porque a dívida representada pelo título não desaparece, simplesmente, pela perda de sua força executiva, remanescendo o direito do portador de cobrá-lo, na medida em que é considerado prova escrita da relação jurídica, de crédito 366 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA e débito, entre as partes, pelo valor nele expresso, por meio de outras ações judiciais (monitória ou cobrança). O banco-réu, nas circunstâncias, agiu nos limites da legalidade, no exercício de função regular, sem qualquer abuso, ao devolver o cheque prescrito por insuficiência de fundos; e não pode lhe ser imputada responsabilidade pela existência da dívida decorrente da sua emissão pelo autor, vez que continuou produzindo efeitos no mundo jurídico, como documento escrito representativo de dívida líquida e certa, cuja prescrição é de 05 (cinco) anos de acordo com o art. 206, § 5º, I, do novo Código Civil, não havendo que se falar em prejuízo e, muito menos, danos morais. 7. - A questão posta no Recurso Especial consiste em saber se o cheque prescrito poderia ter sido devolvido pela alínea “12” e, bem assim, se houve dano moral indenizável no caso concreto. 8. - Nos termos do artigo 33 da Lei n. 7.357/1985 “O cheque deve ser apresentado para pagamento, a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta) dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 (sessenta) dias, quando emitido em outro lugar do País ou no exterior”. 9. - O dispositivo em questão não esclarece que atitude a instituição financeira sacada deve tomar em caso de apresentação após o prazo assinalado, mas uma coisa é certa: ela não poderá devolver o cheque por falta de provisão de fundos. 10. - É que o artigo 4º, § 1º, da mesma lei estabelece que: “A existência de fundos disponíveis é verificada no momento da apresentação do cheque para pagamento”. 11. - O cheque, instrumento cada vez menos utilizado no comércio cotidiano em razão do surgimento de outras formas de pagamento como os cartões de débito e de crédito, constitui, como se sabe, uma ordem emitida contra o banco para que pague ao portador (ou beneficiário) o valor consignado no título mediante desconto em numerário previamente depositado pelo sacador neste mesmo banco. 12. - Precisamente porque se trata de uma ordem de pagamento à vista, o momento exato em que o cheque será apresentado para desconto não é controlado pelo sacador. Ao contrário do que sucede com a maioria dos demais títulos cambiários, o cheque não é emitido com data de vencimento. 13. - Bem por isso a própria lei cuidou de estabelecer um prazo dentro do qual ele poderia ser apresentado para pagamento a fim de que o sacador não RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 367 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA estivesse obrigado em caráter perpétuo a manter dinheiro em conta para o seu pagamento. 14. - Ora, se a lei diz que a “A existência de fundos disponíveis é verificada no momento da apresentação do cheque para pagamento” (art. 4º, § 1º) e, paralelamente, afirma que o título deve ser apresentado para pagamento em determinado prazo (art. 33) impôs ao sacador, de forma implícita, a obrigação (Schuld) de manter provisão de fundos durante o prazo de apresentação do cheque. Por via obliqua, igualmente, dispensou o correntista de manter provisão de fundos após esse prazo. 15. - Nessa medida é de se concluir que a instituição financeira não pode devolver o cheque por insuficiência de fundos se a apresentação tiver ocorrido após o prazo que a lei assinalou para a prática desse ato. 16. - Não se pode pretender que prazo assinalado no artigo 33 para a apresentação do cheque sirva apenas para marcar a termo inicial da prescrição a que está submetida a ação executiva fundada nesse título de crédito (artigo 59). Para essa finalidade bastaria que o legislador houvesse feito recair o dies a quo da prescrição na data de emissão do cheque, sem estabelecer um prazo máximo para que este fosse apresentado ao banco. 17. - Partindo-se do pressuposto axiológico de que a lei não contém palavras inúteis há que se extrair uma utilidade prática fundada de forma direta no próprio artigo 33. 18. - Não se sustenta aqui, é importante ressaltar, que a instituição financeira estará impedida de proceder à compensação do cheque após o prazo de apresentação se houver saldo em conta. Essa é uma discussão que envolve questões de boa-fé nas relações jurídicas e estabilidade do sistema econômico cujo enfrentamento não se faz necessário e nem mesmo adequado para a solução deste caso concreto. 19. - Por hora importa fixar, apenas, que o prazo de apresentação do cheque deve servir, pelo menos, como limite temporal da obrigação que o emitente tem de manter provisão de fundos suficiente para o pagamento do título. E, como consectário lógico dessa exegese, deve-se concluir que, passado o referido prazo, o cheque, se apresentado, não pode ser devolvido por insuficiência de fundos. 20. - Naturalmente que se não houver fundos o cheque não poderá ser compensado e será, necessariamente devolvido. A dificuldade está em se admitir a devolução esteja justificada pela ausência de fundos, porque esse motivo 368 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA depõe contra a honra do sacador, na medida em que ele passa por inadimplente quando, na realidade, não pode ser assim considerado, já que não tinha mais a obrigação de manter saldo em conta. 21. - Tal conclusão ainda mais se reforça quando, além do prazo de apresentação, ainda transcorreu o prazo de prescrição. 22. - O Manual Operacional da Compe (Centralizadora da Compensação de Cheques), instituição cujas atividades são fortemente reguladas pelo Bacen, estabelece uma tabela de motivos que justificam a devolução de cheques. 23. - De acordo com esse Manual, o cheque deve ser devolvido pelo “motivo 11” quando, em primeira apresentação, não tiver fundos e, pelo “motivo 12”, quando não tiver fundos em segunda apresentação. Dito isso, é preciso acrescentar que só será possível afirmar que o cheque foi devolvido por falta de fundos quando ele podia ser validamente apresentado. 24. - Consultando a referida tabela, não se localiza como um dos fundamentos para a devolução do cheque o fato de ele ter sido apresentado após o decurso do prazo. Consta, no entanto, outro motivo que busca fundamento na mesma racionalidade aqui exposta, trata-se do “motivo 44” - cheque prescrito. 25. - O que justifica o impedimento de devolução pelos motivos 11 e 12, na hipótese de prescrição é a expiração do prazo de apresentação e do prazo prescricional, vez que a dívida, afinal, não se extingue pela perda da força executória do cheque. 26. - Vale destacar que o próprio Manual Operacional da Compe estabelece, no item 8.2, que “O cheque sem fundos [motivos 11 e 12] e o cheque sacado contra conta de depósitos à vista encerrada [motivo 13] somente podem ser devolvidos pelo motivo correspondente, bem como gerar registro de ocorrência no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), na condição de não ser aplicável a devolução por qualquer outro motivo”. 27. - Conquanto se apresente a expiração do prazo de apresentação como motivo suficiente para vedar a devolução do título por ausência de fundos (embora isso não conste de forma expressa do Manual Operacional da Compe), no caso dos autos ainda vale acrescentar que o cheque já estava prescrito quando se deu a apresentação. Dessa forma ainda mais evidente se apresenta a conclusão de que ele não poderia ter sido devolvido com fundamento nos “motivos 11 e 12”. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 369 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 28. - Com efeito, se o cheque já estava prescrito, segundo afirmado pela sentença e reconhecido pelo próprio acórdão, incidia de forma expressa a orientação contida no referido item 8.2, do Manual, proibindo não só a devolução por falta de fundos, como também o registro da ocorrência no Cadastro de Emitentes de Cheques sem fundos - CCF. 29. - Tem-se, portanto, uma clara hipótese de defeito na prestação do serviço bancário, visto que o banco recorrido não atendeu a regramento administrativo baixado de forma cogente pelo órgão regulador, estabelecendo-se, portanto, a sua responsabilidade objetiva pelos danos deflagrados ao consumidor, nos termos do artigo 14 da Lei n. 8.078/1990. 30. - Assim, considerando: a) existência de ato ilícito praticado pela instituição financeira - devolução de cheque por motivo indevido; b) o dano moral sofrido pelo correntista que surge in re ipsa da inscrição do seu nome em cadastro de inadimplentes - CCF e c) o patente nexo causal entre o defeito na prestação do serviço e o dano, não há como negar o direito à indenização. 31. - Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial, para julgar procedente o pedido, condenando o Recorrido a pagar R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a título de indenização por danos morais, corrigidos desde esta data, acrescidos de juros moratórios desde o evento danoso (Súmula n. 54-STJ). 32. - Em razão da sucumbência, condena-se o Recorrido ao pagamento das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados em 20% (vinte por cento) da condenação. RECURSO ESPECIAL N. 1.302.900-MG (2012/0006413-5) Relator: Ministro Sidnei Beneti Recorrente: Samarco Mineração S/A Advogado: João Dácio Rolim e outro(s) Recorrido: Aristides Luiz Vitório Advogado: Antônio Marques Carraro Júnior e outro(s) 370 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA EMENTA Direito Civil e Processual Civil. Arbitragem. Acordo optando pela arbitragem homologado em juízo. Pretensão anulatória. Competência do juízo arbitral. Inadmissibilidade da judicialização prematura. 1. - Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem a alegação de nulidade da cláusula arbitral instituída em Acordo Judicial homologado e, bem assim, do contrato que a contém, deve ser submetida, em primeiro lugar, à decisão do próprio árbitro, inadmissível a judicialização prematura pela via oblíqua do retorno ao Juízo. 2. - Mesmo no caso de o acordo de vontades no qual estabelecida a cláusula arbitral no caso de haver sido homologado judicialmente, não se admite prematura ação anulatória diretamente perante o Poder Judiciário, devendo ser preservada a solução arbitral, sob pena de se abrir caminho para a frustração do instrumento alternativo de solução da controvérsia. 3. - Extingue-se, sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VII), ação que visa anular acordo de solução de controvérsias via arbitragem, preservando-se a jurisdição arbitral consensual para o julgamento das controvérsias entre as partes, ante a opção das partes pela forma alternativa de jurisdição. 4. - Recurso Especial provido e sentença que julgou extinto o processo judicial restabelecida. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). Ariene D’ Arc Diniz e Amaral, pela parte recorrente: Samarco Mineração S/A. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 371 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Brasília (DF), 9 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Sidnei Beneti, Relator DJe 16.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Samarco Mineração S/A interpõe recurso especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Relator o Desembargador José Flávio de Almeida, cuja ementa ora se transcreve (fls. 1.067): Direito Processual Civil e Civil. Ação de anulação de ato jurídico. Acordo homologado judicialmente nulidade. Cláusula compromissória. Vício de consentimento. Competência. Sendo o o julgamento de mérito prejudicado pelo acolhimento de preliminar de incompetência absoluta do Juízo, a sentença não incorre em julgamento citra petita por não examinar os pedidos da inicial. - Cabe ao Poder Judiciário decidir sobre nulidade de acordo homologado judicialmente em que se instituiu cláusula compromissória de arbitragem. 2. - Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (fls. 1.094-1.102). 3. - A Recorrente alega que o Tribunal de origem teria violado o artigo 535 do Código de Processo Civil ao deixar de se manifestar sobre os temas suscitados nos embargos de declaração. Sustenta que aquele Tribunal, ao entender que o Poder Judiciário estaria autorizado a examinar as alegações de invalidade do acordo homologado judicialmente em sede do qual pactuada cláusula arbitral, teria violado os artigos 269, III; 267, V; 467; 468 e 471 do Código de Processo Civil, tendo em vista que a referida sentença homologatória já havia transitado em julgado, não sendo possível reformá-la. Aduz contrariedade aos artigos 104, 171 e 849 do Código Civil, visto que não haveria vício de consentimento na eleição da cláusula arbitral. Afirma violados os artigos 1º; 8º, parágrafo único; e 20 da Lei n. 9.307/1996, nos termos dos quais competiria à Câmara de Arbitragem decidir acerca das nulidades invocadas na ação ordinária. 372 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Registra, finalmente, que o feito deveria ter sido extinto, com fundamento no artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, em razão da existência de pressuposto negativo de desenvolvimento válido e regular do processo, consistente na convenção de arbitragem. Aponta dissídio jurisprudencial, colacionando precedentes de outros Tribunais. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4. - Consta dos autos, que, por ato do Presidente da República, (Decreto-Lei n. 75.424, de 27.2.1975), foi instituída servidão de passagem em favor da Samarco Mineração S/A, para passagem de tubulação subterrânea com diâmetro de 20 polegadas, numa faixa de 35 metros de largura, com extensão de 346 km, atravessando os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e, naturalmente, passando por várias propriedades particulares, dentre elas a do ora Recorrido. 5. - Ao longo de vários anos a Sanmarco, detentora da servidão, teria permitido, sem qualquer oposição, que fossem erigidas, de boa-fé, construções e benfeitorias dentro da faixa estipulada, bem como teria promovido o desmatamento das áreas próximas, provocando assoreamento de cursos d’água, erosão e desmatamento. Tudo isso teria ocasionado, além de prejuízos sociais e ambientais, também a desvalorização da propriedade, seja pelo seccionamento do imóvel, seja pela inviabilização de nele se explorarem determinadas culturas, seja, ainda, pela ocupação da faixa de solo afeada pela servidão e pela ocupação de pessoas que ali se instalaram, inicialmente em caráter provisório, mas com o tempo, definitivo. 6. - Diante dessas circunstâncias e considerando que a Samarco Mineração S/A estava já implementando a instalação de uma segunda linha do mineroduto, o Recorrido ajuizou uma ação cautelar de produção antecipada de provas com o objetivo de apurar os prejuízos experimentados (fls. 42-45). 7. - Em 20.3.2007, no curso dessa ação cautelar de produção de provas, e na presença do Advogado Wellington Queiroz de Castro que também figura na petição inicial como patrono do Recorrido, embora sem assinar a referida petição, foi celebrado acordo judicial, posto nos seguintes termos (fls. 355-358): RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 373 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (...) Considerando os prejuízos acumulados pela requerida com o atraso na liberação das áreas objeto dos levantamentos periciais; considerando a necessidade de apuração na prova pericial dos danos alegados pelo requerente em razão da execução das obras do mineroduto; as partes, no intuito de encerrar e prevenir litígio, resolvem transacionar direitos e obrigações, celebrando acordo nos seguintes termos e condições: 1) Todos os danos eventualmente apurados, em virtude da implantação das linhas do mineroduto (dentro da faixa de servidão) serão recompostos pela requerida, nos termos e condições sugeridos nos laudos periciais, observados os princípios gerais do direito. (...) 5) Os termos da presente transação se aplicam a todos os processos relativos a medidas cautelares de Produção Antecipada de Provas, cautelares de Atentado; Interdito proibitório e quaisquer outros processos relacionados às obras do mineroduto distribuidos ou que sejam distribuidos até o dia 21 de março do ano em curso. (...) 10) As partes constituem cláusula compromissória de arbitragem, tomando-se como base os laudos periciais a serem entregues nos termos deste acordo, elegendo a Camarb, com foro em Belo Horizonte, para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias decorrentes de sua aplicação. (...) Na mesma audiência o Juízo extinguiu o processo mediante homologação do acordo em referência, esclarecendo que (fls. 357): Os levantamentos e vistorias deverão ser feitos no prazo de 10 (dez) dias úteis, iniciando-se, no dia 22.3.2007. Fica assinado o prazo de 25 (vinte e cinco) dias para apresentação de todos os laudos, finando-se este no dia 30 de abril de 2007. O sr. Perito, neste ato, assume o compromisso de bem desempenhar suas funções, intimado dos prazos ora assinalados por este juízo. Como se vê, as partes firmaram um acordo, por meio do qual a Mineradora se comprometeu a recompor todos os danos eventualmente apurados, em conformidade com o que viesse a ser apurado em perícia realizada por um perito oficial nomeado judicialmente. No pacto, as partes instituíram uma cláusula compromissória de arbitragem, com a eleição da Camare (Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil) para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias decorrentes do acordo e da perícia. 8. - Em 6.5.2009, no entanto, o ora Recorrido ingressou com nova ação ordinária (fls. 04-37), distribuída por conexão à referida ação cautelar de produção antecipada de provas, visando à anulação da sentença homologatória e da cláusula compromissória, afirmando que: a) o perito nomeado para calcular os danos ocorridos foi cooptado pela Ré, b) que ele não tinha registro no CEA, c) que não teriam sido observados os requisitos técnicos e científicos necessários a 374 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA elaboração do laudo; d) que o órgão arbitral eleito pelas partes Camarb não teria competência técnica para dirimir o conflito, porque sua finalidade institucional é a solução de disputas comerciais; e) que a cláusula compromissória está eivada pelo vício da lesão, já que o Autor não estava suficientemente esclarecido dos seus efeitos, sendo certo, ademais que ela seria prejudicial aos seus interesses diante do flagrante desequilíbrio entre as obrigações impostas às partes; e f ) que teriam sido desrespeitados os termos do acordo relativos ao objeto da indenização. Na mesma oportunidade ainda requereu indenização por danos materiais e morais, além da participação nos lucros da empresa, entre outros pedidos. 9. - A Sentença julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, nos termos do artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, afirmando que a validade e eficácia da convenção de arbitragem deveria ser analisada e decidida primeiramente, de ofício ou por provocação, pelo próprio árbitro (fls. 969-971). 10. - O recurso de apelação do Autor foi provido em acórdão do TJMG assim ementado (fls. 1.067): Direito Processual Civil e Civil. Ação de anulação de ato jurídico. Acordo homologado judicialmente nulidade. Cláusula compromissória. Vício de consentimento. Competência. Sendo o o julgamento de mérito prejudicado pelo acolhimento de preliminar de incompetência absoluta do Juízo, a sentença não incorre em julgamento citra petita por não examinar os pedidos da inicial. - Cabe ao Poder Judiciário decidir sobre nulidade de acordo homologado judicialmente em que se instituiu cláusula compromissória de arbitragem. 11. - O TJMG, decidiu em sentido diverso no julgamento das apelações que deu origem aos REsp n. 1.288.251 e n. 1.279.194-MG, ambos da relatoria do E. Desembargador José Marcos Vieira, cujas ementas estão assim redigidas: Apelação cível. Ação anulatória de ato jurídico cumulada com indenização por danos. Cláusula compromissória. Arbitragem. Incompetência da Justiça Comum. Extinção. Art. 267, VII, do CPC. Manutenção da sentença. 1 - Estipulando as partes, no acordo previamente firmado, cláusula compromissória de arbitragem, a solução de conflitos dele decorrentes deverá ser submetida ao Juízo Arbitral, o que afasta a competência do Poder Judiciário e, consequentemente, da Justiça Comum. 2 - Apelo Provido. 12. - Ainda consta para julgamento conjunto o REsp n. 1.311.597-MG, cujo acórdão recorrido está assim ementado: RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 375 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Processual Civil. Nulidade da sentença. Julgamento citra petita. Inocorrência. Cláusula compromissória instituída em acordo judicial. Processo do qual o autor não foi parte. Aplicação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996. Inexistência de anuência expressa com a cláusula arbitral. Nulidade declarada. - Ao entender ser impossível a análise do feito por ter existido entre as partes acordo que remete a discussão dos autos à arbitragem, não há que se falar em sentença incompleta ou que deixou de apreciar todos os pedidos formulados, porque esta simplesmente decidiu com base em uma questão preliminar. - É cediço que não pode o Juiz adentrar ao mérito do procedimento arbitral, uma vez instituído. Contudo, é possível que se analise a ocorrência de nulidades no procedimento arbitral, levando-se em consideração as disposições da Lei n. 9.307/1996. - Não tendo a vontade da parte sido manifestada de forma livre e pessoal, eis que a cláusula compromissória constou de processo envolvendo outras partes e foi estendida a outros signatários, deve-se declarar a sua nulidade, ante à violação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996. - A autonomia da vontade é o sustentáculo da validade da cláusula arbitral, razão pela qual se não houver expressa aquiescência das partes quanto à sua instituição, deve ser tida por ineficaz. Rejeitar as preliminares e dar provimento ao apelo. (TJMG, APC n. 1.0003.09.030673-3/001, 12ª Câmara Cível, Rel. Des. Nilo Lacerda, DJe de 30.5.2011). 13. - No caso dos autos, a questão fundamental é saber se a convenção de arbitragem firmada pelas partes no processo cautelar de produção antecipada de provas prejudica o conhecimento da ação ordinária proposta. 14. - A arbitragem, como se sabe, é um dos mais antigos métodos de composição heteronômica de conflitos. JACOB DOLINGER lembra que a instituição arbitral aparece em escritos antigos da história do povo judeu, especialmente no Pentateuco, indicando uma série de contendas clássicas resolvidas por métodos alternativos como o episódio da divisão das terras entre Abrahão e Lot, o confronto entre o Rei Abimelec e Abrahão sobre o poço d’água em suas terras e a disputa entre Jacob e Labão na ida do primeiro para a Terra de Canaã. (DOLINGER, Jacob. Conciliação e Arbitragem no Direito Judaico, Apud: AYOUB, Luiz Roberto. Arbitragem: o acesso à Justiça e a efetividade do processo uma nova proposta.: Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2005, p. 23). 376 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No Direito Romano, a arbitragem facultativa sempre foi aceita e mesmo incentivada. A arbitragem obrigatória figurou como método de resolução de litígios durante o período compreendido entre as fases das ações da lei (legis actiones) e do processo formulário (per formulas). (MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. Apud: ALVIM, José Eduardo Carreira. 3ª ed.: Forense. Rio de Janeiro, 2007, p. 2-3). Apesar da ancestralidade do instituto, não alcançou ele em tempos mais recentes, ao menos no ordenamento nacional, o prestígio e a repercussão a ele asseguradas no de decorrer da história. Nesse sentido se revela apropriada a crítica atribuída a CARREIRA ALVIM, (Ob. loc. cit) no sentido de que a Arbitragem continuará a ser, infelizmente, uma ilustre desconhecida na prática jurídica brasileira. 15. - Em várias oportunidades analisei o instituto da arbitragem, ressaltando-lhe a importância histórica e apontando a coincidência do arrefecimento do seu uso com momentos de fascínio pelo centralismo e controle estatais em detrimento da liberdade individual, de que se nutem os instrumentos de “Alternative Dispute Resolution”, entre os quais a arbitragem (cf. “Perspectivas da Arbitragem no Processo Civil Brasileiro” - RT 696/78; JUTACIV-SP 137/7; JUTACIV-SP 136/6; RJM 95/402; 39. “Arbitragem: Panorama da evolução” - JUTACIV-SP 138/6; “Resolução Alternativa de Conflitos e Constitucionalidade”, em “Constituição de 1988 - 10 Anos”, Coord. Antonio Carlos Mathias Coltro, Ed. Juares de Oliveira, 1999; Estudos em Homenagem ao Prof. KAZUO WATANABE). O caso dos autos, de acordo judicial para remessa de discórdias à solução arbitral, encontra espelho em úteis modalidades de encaminhamento de controvérsias já judicializadas à arbitragem, como ressaltado em alguns dos escritos acima lembrados, entre as quais a modalidade mais marcante, a denominada “Court Annexed Arbitration”, realiza-se, em muitos Estados e, mesmo na Justiça Federal dos Estados Unidos da América do Norte, mediante remessa compulsória, do caso, pelo Juízo, “ex-officio”, à via arbitral, quando via mais adequada à solução da controvérsia, como detectado inicialmente pelo Juízo - e no caso de “court annexed arbitration”, nem mesmo há prévia manifestação de vontade dos litigantes, no sentido da arbitragem, como ocorrido nestes autos, em que elas próprias, as partes, entre as quais o ora Recorrido, optaram pela arbitragem que, ulteriormente, veio o Recorrido a tentar recusar. Para a volta à via judicial. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 377 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 16. - A Lei n. 9.307/1996 desponta nesse cenário como um divisor de águas. Ela supera com vantagem o modelo anterior, do juízo arbitral, que submetia necessariamente a sentença arbitral ao crivo do Poder Judiciário para conferir-lhe eficácia. Segundo destaca CARLOS ALBERTO CARMONA (A arbitragem no processo civil brasileiro: Malheiros, São Paulo, 1993) a Lei n. 9.307/1996 fortaleceu a claúsula compromissória, eliminou a necessidade de homologação do laudo arbitral e, por último, disciplinou a homologação pelo Supremo Tribunal Federal (competência hoje atribuída a este Superior Tribunal de Justiça) da sentença arbitral estrangeira, afastando a necessidade da dupla homologação. 17. - O artigo 8º, da Lei n. 9.307/1996, determina que: Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória. Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. Como se vê, o dispositivo em comento estabelece não apenas a autonomia da cláusula de arbitragem em relação ao negócio jurídico no bojo da qual ela é estabelecida (caput), mas também estabelece que a competência para decidir acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem, aí compreendida a cláusula e o compromisso arbitral, é do árbitro designado pelas partes. Na parte final do dispositivo consta ainda a indicação de que a competência do árbitro para sindicar os vícios da convenção de arbitragem se estende ao exame da higidez do próprio contrato em sede do qual foi estabelecida a cláusula compromissória. 18. - Essa mesma orientação, de confiar diretamente ao próprio árbitro a investigação sobre alegados vícios de invalidade (processual ou material) pode ser verificada, ainda a partir do artigo 15 da Lei, que estabelece: Art. 15. A parte interessada em argüir a recusa do árbitro apresentará, nos termos do art. 20, a respectiva exceção, diretamente ao árbitro ou ao presidente do Tribunal Arbitral, deduzindo suas razões e apresentando as provas pertinentes. Consulte-se, também, o artigo 20 da mesma Lei que estabelece: 378 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Art. 20. A parte que pretender argüir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem. Referido dispositivo está inserido no Capítulo IV, que trata do procedimento arbitral a indicar, que a arguição das questões ali referidas e, bem assim, o processamento dessas arguições, deve ocorrer no curso do procedimento arbitral, perante o próprio árbitro. 19. - Mais do que uma simples coincidência, essa orientação reflete, de forma cristalina, a opção do legislador em estabelecer, a partir da Lei n. 9.307/1996, um arcabouço normativo que permita à Arbitragem afirmar-se e desenvolver-se como modelo viável e eficaz de resolução de conflitos, tanto quanto possível autônomo em relação ao Poder Judiciário. Não por outro motivo se alçou a sentença arbitral, independentemente de trânsito em julgado ou de homologação judicial, à condição título executivo judicial (artigo 475-N, IV, do Código de Processo Civil c.c. 18 da Lei n. 9.307/1996). Não por outro motivo, também, o Poder Judiciário está impedido de revisar o mérito da sentença arbitral. 20. - É bem verdade que a Lei pôs à disposição da parte a ação anulatória de sentença arbitral (artigo 33, § 1º da Lei n. 9.307/1996), facultando-lhe, igualmente, arguir judicialmente referida nulidade em sede de embargos do devedor, por ocasião da execução da referida sentença (artigo 33, § 3º, da Lei n. 9.307/1996). Essa possibilidade, contudo, não subverte a orientação antes assinalada, segundo a qual os vícios verificados em momento anterior ao da prolação da sentença devem ser arguídos primeiramente perante o árbitro. 21. - No caso dos autos, a ação proposta pelo Autor ora Recorrido visa, essencialmente, a desconstituir: a) a sentença judicial que homologou o contrato em sede do qual contemplada a cláusula arbitral, b) a própria cláusula compromissória. A propósito, vale lembrar que todos os argumentos relativos ao instituto da Lesão e à nulidade a perícia realizada constituem, em última análise, causas de pedir afetas a esses dois pedidos. 22. - Os pedidos enquadram-se na hipótese do já citado artigo 8º, parágrafo único, da Lei n. 9.307/1996, nos termos do qual os vícios relativos à cláusula RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 379 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA arbitral e ao contrato que a estipulou devem ser suscitados primeiramente perante o próprio árbitro. 23. - Não há como acolher o argumento trazido no acórdão recorrido, no sentido de que seria contrário ao princípio da economia processual impedir a parte interessada de arguir judicialmente, desde logo, referidas nulidades, permitindo-lhe fazê-lo somente após a sentença arbitral. É que ao contrário, as alegações de nulidade invocadas podem vir a ser já de início acolhidas pelo árbitro, hipótese em que não se justificaria a ação judicial, de modo que não se justifica “saltar” a arbitragem em prol da judicialização prematura, nulificando-se por via obliqua, a opção arbitral e abalando-se, o próprio prestígio do instituto da Arbitragem, que se formaria verdadeiro expletivo no sistema processual que a quis forma judicial consensual de solução de controvérsias, ao lado da jurisdição estatal. De qualquer forma, independentemente da orientação principiológica que se adote, não há como superar o comando expresso da norma. LUIZ ANTONIO SCAVONE JÚNIOR, comentando o artigo 8º da Lei n. 9.307/1996, afirma o seguinte (Manual de Arbitragem, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 87): O significado do dispositivo, portanto, indica que qualquer alegação de nulidade do contrato ou da cláusula arbitral, diante de sua existência e seguindo o espírito da lei, deve ser dirimida pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário. A lei pretendeu, neste sentido, “fechar uma brecha” que permitiria às partes, sempre que alegassem a nulidade da cláusula arbitral ou do contrato, ignorar o pacto de arbitragem e acessar o Poder Judiciário para dirimir o conflito. Em resumo, ainda que o conflito verse sobre a nulidade do próprio contrato ou da cláusula arbitral, a controvérsia deverá ser decidida inicialmente pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário, ainda que as partes tenham resilido bilateralmente o contrato e a controvérsia verse sobre o distrato. Este foi o espírito da lei (mens legis). (SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio, Manual de Arbitragem, 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 87). 24. - O Acórdão recorrido também argumentou que a questão poderia ser decidida pelo Poder Judiciário porque, nos termos do artigo 20 da Lei n. 9.307/1996, a competência do árbitro somente se iniciaria após instaurada a 380 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA arbitragem, de maneira que, não tendo ela sido instaurada no caso concreto, não haveria embaraço ao que o próprio judiciário apreciasse a questão. 25. - Tem-se, contudo, indubitavelmente que o artigo 20 da Lei n. 9.0307/1996 não autoriza essa conclusão proclamada pelo acórdão recorrido. O dispositivo em questão, já transcrito, assinala que “a parte que pretender argüir (...) nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazêlo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem”. Não é lícito extrair, a partir de uma interpretação a contrario sensu do texto legal, aniquiladora do próprio sistema da arbitragem, que a parte esteja já autorizada a arguir a nulidade da convenção de arbitragem perante o Poder Judiciário (...) antes da instituição da arbitragem! Essa conclusão, conforme reiteradamente afirmado, contraria não apenas o espírito da Lei n. 9.307/1996, como a determinação expressa contida no artigo 8º, parágrafo único, da mesma norma. 26. - Também não é possível admitir que compete ao Poder Judiciário, com exclusividade decidir a respeito da pretensão anulatória de sentença homologatória de acordo judicial pelo qual as partes tenham optado pela jurisdição arbitral. Em primeiro lugar porque a homologação judicial de acordo firmado entre as partes é elemento acidental do ato e não interfere na eficácia que esse acordo, de qualquer forma, teria entre as partes signatárias. Em segundo lugar, porque a nulidade da sentença não é pleiteada no caso sob alegação de vício de afeto à atividade jurisdicional do Juízo homologador, mas fincadas em alegações contrárias ao próprio acordo que foi levado à homologação. O vício arguído diz respeito, portanto, ao contrato entabulado pelas próprias partes que, como é evidente, antecede logicamente à chancela que veio a ser conferida pela atuação judicial homologatória. 27. - De rigor, portanto, reconhecer o acerto da sentença em extinguir o processo sem julgamento de mérito com fundamento no artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, tendo em vista a presença do destacado pressuposto negativo de desenvolvimento válido e regular do processo. 28. - Restam prejudicados os demais temas trazidos no Recurso Especial. 29. - Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial para restabelecer a sentença, nos exatos termos em que proferida. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 381 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.335.622-DF (2012/0041973-0) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Alberdan Nascimento de Araújo e outro Advogado: Jose Emiliano Paes Landim Neto e outro(s) Recorrido: Hospital Santa Lúcia S/A Advogado: Roberto de Souza Moscoso e outro(s) EMENTA Recurso especial. Responsabilidade civil. Violação do art. 535 do CPC. Inexistência. Súmula n. 7-STJ. Não incidência. Hospital particular. Recusa de atendimento. Omissão. Perda de uma chance. Danos morais. Cabimento. 1. Não viola o artigo 535 do Código de Processo Civil, nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que adotou, para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém diversa da pretendida pelo recorrente, para decidir de modo integral a controvérsia posta. 2. Não há falar, na espécie, no óbice contido na Súmula n. 7-STJ, porquanto para a resolução da questão, basta a valoração das consequências jurídicas dos fatos incontroversos para a correta interpretação do direito. Precedentes. 3. A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material dos direitos fundamentais e somente estará assegurada quando for possível ao homem uma existência compatível com uma vida digna, na qual estão presentes, no mínimo, saúde, educação e segurança. 4. Restando evidenciado que nossas leis estão refletindo e representando quais as prerrogativas que devem ser prioritariamente observadas, a recusa de atendimento médico, que privilegiou trâmites burocráticos em detrimento da saúde da menor, não tem respaldo legal ou moral. 5. A omissão adquire relevância jurídica e torna o omitente responsável quando este tem o dever jurídico de agir, de praticar um 382 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ato para impedir o resultado, como na hipótese, criando, assim, sua omissão, risco da ocorrência do resultado. 6. A simples chance (de cura ou sobrevivência) passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada. 7. Na linha dos precedentes deste Tribunal Superior de Justiça, restando evidentes os requisitos ensejadores ao ressarcimento por ilícito civil, a indenização por danos morais é medida que se impõe. 8. Recurso especial parcialmente provido. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, a Turma, por maioria, conhecer em parte do recurso especial e, nessa parte, darlhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Vencida, parcialmente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Votaram com o Sr. Ministro Relator os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino. Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 27.2.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto por Alberdan Nascimento de Araújo e outro contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, assim ementado: Reparação de danos. Morte. Paciente oriundo da rede hospitalar pública. Decisão liminar. Nosocômio privado. Não recebimento. Ordem judicial. Ausência de intimação oficial. Responsabilidade objetiva. Evento danoso. Nexo de causalidade. Comprovação. Inexistência. Conquanto sejam os estabelecimentos hospitalares fornecedores de serviços, somente responderão pelos danos causados a pacientes, caso esteja comprovada RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 383 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a existência de relação de consumo entre eles e/ou comprovado o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, tal como na responsabilidade civil prevista no art. 957 do Código Civil pelo dano advindo do cometimento de ato ilícito. Não estando comprovado que o paciente veio a óbito apenas em decorrência da recusa do nosocômio réu, integrante da rede hospitalar privada, em interná-lo em uma de suas unidades de terapia intensiva como cumprimento de decisão liminar exarada em desfavor do Estado e da qual não fora oficialmente intimado, correta se mostra a sua não condenação a indenizar os danos suportados pelos genitores do paciente com o óbito de seu filho (fl. 518). Foram opostos declaratórios, com efeitos infringentes, ao argumento de que o acórdão não levou em consideração as provas dos autos, principalmente no tocante aos relatórios médicos elaborados pela equipe médica do Hospital Regional de Taguatinga. Os embargos foram rejeitados, restando assim sumariado o acórdão: Processual Civil. Embargos de declaração. Ausência de omissão, contradição ou obscuridade no acórdão. Rejeição. Rejeitam-se os embargos de declaração em que se alega a existência de omissões e contradições no acórdão embargado, quando inexistentes quaisquer vícios e notório o propósito do embargante de provocar o reexame de questões já decididas para obter a modificação do julgado. A discordância da parte quanto ao entendimento adotado pela Turma deve ser apresentada na sede recursal adequada. Sem lugar também os embargos para fins de prequestionamento, quando inexistentes quaisquer dos vícios previstos no art. 535 do CPC. Havendo erro material, o decisum pode ser corrigido de ofício pelo julgador, conforme estabelece o artigo 463, inciso I, do Código de Processo Civil (fl. 679). Na origem, Alberdan Nascimento de Araújo e Cícera de Oliveira Silva propuseram ação indenizatória contra o Hospital Santa Lúcia, na qual buscam o ressarcimento pelos danos materiais e morais que sofreram em decorrência do falecimento da filha menor do casal. Contam que no dia 18 de julho de 2007 encaminharam a filha menor, então com oito meses de vida, ao Hospital Regional de Taguatinga com os sintomas de tosse seca, coriza hialina e obstrução nasal, dispnéia, febre, hipoatividade e falta de apetite (fl. 6). Com o agravamento do quadro clínico, a criança foi internada. Após vários exames, em virtude da evolução da doença, na madrugada do dia 21 de julho foi iniciado tratamento com antibiótico e sedação. Por volta das 8h50min do mesmo dia o quadro clínico era gravíssimo e, por não possuir o 384 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA hospital público estrutura para o tratamento, os médicos orientaram os pais a conseguir vaga em hospital privado, mesmo que por meio de decisão judicial. Narram que a liminar foi deferida no final da tarde do dia 21 de julho e que às 20h30min o médico que acompanhava a menor no Hospital Regional de Taguatinga - HRT comunicou à médica plantonista do Hospital Santa Lúcia sobre a decisão e foi informado que o hospital receberia a paciente mediante a apresentação da cópia da decisão liminar. Buscando agilizar o recebimento da menor, o próprio médico do HRT dirigiu-se com a cópia da liminar ao hospital recorrido, que se recusou a receber a menor ao fundamento de que a decisão impressa da internet não tinha valor legal. Diante de tal quadro fático, não restou alternativa a não ser manter a criança na enfermaria do HRT, respirando sob ventilação mecânica, em equipamento ultrapassado. À 1h30min do dia 22 de julho, a paciente veio a falecer. Concluem a narração sustentando que a morte da criança poderia ter sido evitada com o uso de equipamentos adequados e que o réu, ao negar o pronto atendimento, obrigação que lhe cabia, acabou por agravar o quadro clínico que levou ao óbito da menor. O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido. O Tribunal local, ratificando a sentença, entendeu que (...) para que se possa responsabilizar o hospital pelo evento danoso ocorrido, é necessário apurar a existência de nexo de causalidade entre o ato ilícito imputado, in casu, a negativa de recebimento da paciente enferma nas dependências do hospital/ apelado, e o dano causado à vítima, ou seja, faz-se necessário averiguar se restou comprovado que a morte da filha dos autores/apelantes deu-se em razão da omissão do hospital/apelante. (...) E pelo que apreciei dos autos, tenho que, de fato, não houve comprovação (i) de que o hospital/apelado tivesse a obrigação jurídica de receber a criança em seu estabelecimento, tampouco (ii) de que a morte da paciente tenha ocorrido unicamente da negativa do hospital/apelado de acolhê-la em suas dependências. Da ponderação de tudo o que se extrai dos autos, embora se chegue à conclusão de que o óbito da filha dos autores/apelantes tenha decorrido do grave estado clínico que a acometera naquela ocasião, aliada à falta de tratamento adequado para as necessidades vindicadas pelo caso (...) É bem verdade que, de certa forma, havendo nessa decisão judicial a ordem para que determinado hospital, em havendo vagas disponíveis, procedesse à internação da paciente, RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 385 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA não há como não entender que, em verdade, também recai sobre terceiro o ônus de arcar com o provimento judicial proferido em desfavor de outrem. Contudo, mesmo que o caso envolva a tentativa de salvaguardar a vida de uma pessoa, não se poderia exigir que o hospital/apelado cumprisse a decisão judicial liminar baseada em documento não oficial e que, por isso, tinha caráter meramente informativo. Quero com isso dizer que, em verdade, apesar da gravidade do estado de saúde da filha dos autores/apelantes e da urgência que a sua condução para o leito da UTI pediátrica exigia, não se pode dizer que o hospital/apelado tenha incorrido em omissão de socorro, tampouco que possa ser responsabilizado pela morte da criança enferma. Se o serviço médico-hospitalar prestado pelo hospital público não foi eficiente e adequado o suficiente para proporcionar à paciente o tratamento que seu caso necessitava, sendo necessário empreender ações com escopo de compelir o Estado a providenciar um leito de UTI, seja na rede pública ou na rede privada, e, em decorrência do tempo exigido para pôr em prática essas medidas tenha sido demasiado para a urgência que o quadro clínico da paciente exigia, para mim está claro que o fator determinante de sua morte não pode ser imputado ao fato do hospital particular se negar a autorizar a transferência e a internação dessa paciente para suas instalações, pois as despesas daí advindas não seriam arcadas pelos genitores da paciente, mas pelo Estado. Em razão disso, entendo não haver elementos de prova suficientes para discordar do entendimento exposto pela MM. Juíza sentenciante, no sentido de não responsabilizar o nosocômio/apelado, uma vez que não correra qualquer causa a justificar a sua responsabilidade. Dessa forma, inexistindo o direito de os autores/apelantes exigirem do réu/ apelado que aceitassem a transferência e internação de sua filha em um leito de UTI daquele nosocômio, entendo ausente o nexo de causalidade entre a conduta alegada como ilícita e o dano experimentado, estando, por isso, isento o hospital/apelado de arcar com qualquer indenização. (...) (fls. 661-662 - grifou-se). Agora, pela via especial, os recorrentes pretendem a reforma do julgado sustentando, de início, violação do artigo 535 do Código de Processo Civil, porquanto foram negligenciados vários documentos acostados aos autos, além de não terem sido corretamente avaliados os testemunhos, principalmente quanto ao depoimento prestado pelo Dr. Antônio José Francisco Pereira dos Santos, um dos responsáveis pelo atendimento da menor. Em seguida, apontaram como violados os artigos 186, 187, 927 e 951 do Código Civil e artigos 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica. 386 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Para tanto, sustentaram que (...) o hospital Santa Lúcia, ora recorrido, agiu de forma omissiva ao não providenciar à paciente (...) sua devida internação em uma de suas Unidades de Terapia Intensiva, ao argumento que a cópia da decisão liminar deferida para que o Distrito Federal arcasse com as despesas decorrentes do seu tratamento no hospital particular não possuía valor legal, pois o hospital não havia sido devidamente intimado da decisão exarada pelo Poder Judiciário. Logo, incorreu na responsabilidade civil objetiva em indenizar, a uma porque houve o dano (morte da menor), a duas é flagrante a omissão médico-hospitalar em não recepcionar a menor, que necessitava de cuidados intensos (UTI), a três nexo de causalidade está plenamente demonstrado pelo elo que une o dano à conduta omissiva perpetrada pelo Recorrido. (...) O não recebimento da paciente não fora providenciado e muito menos acatado pelos membros do Hospital Santa Lúcia, sob o mero argumento que não haviam recebido ordem judicial que os obrigasse a recepcionar a paciente em estado gravíssimo. (...) É claro que o Recorrido agiu contrário aos preceitos impostos pela medicina. Os hospitais funcionam para atender àqueles que lhes recorrem e não para causarlhes mal, sofrimento, angústia ou até mesmo a morte, pois na hipótese dos autos prestigiou-se a forma em detrimento da própria vida. (...) No tocante a boa-fé, esta também restou inobservada, a uma porque o Hospital Santa Lúcia já havia se prontificado em receber a paciente, quando a liminar fosse deferida pelo Douto Juízo, bastando apenas à apresentação da cópia liminar impressa do site do TJDFT para a devida internação da menor em uma de suas Unidades de Terapia Intensiva, o que de fato não veio a ocorrer. (...) Verifica-se, portanto, o dever do Hospital Santa Lúcia assegurar aos cidadãos o direito à saúde, à vida, garantia esta resguardada pela Constituição Federal e Legislação infraconstitucional, sendo certo que na hipótese dos autos a menor deveria ter sido atendida pelo Recorrido com absoluta prioridade independentemente de intimação oficial para o nosocômio privado para o seu devido cumprimento, restando claro e evidente que uma ordem judicial sem intimação oficial não pode obstar em hipótese alguma o atendimento a criança que à época estava apenas com 08 (oito) meses de idade. Assim, a garantia de prioridade compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, e no caso em tela o socorro fora negligenciado, RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 387 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA sendo a dignidade da pessoa humana ultrajada pelo Recorrido, pois em detrimento à absoluta prioridade do direito à vida da menor, prestigiou o formalismo em não ter sido devidamente intimado da decisão liminar que autorizava o recebimento da menor em suas dependências as expensas do Ente Público. (...) O Hospital particular avocou para si o dever de prestar saúde pública aos que dela necessitam, devendo, portanto, zelar pela eficiência e por métodos que não agravem ainda mais a situação já penosa dos cidadãos que a ela recorrem. (...) É notório o nexo de causalidade perpetrado em sua conduta, a uma porque o dano fora patente (morte da menor) e o ato ilícito fora decorrente de sua conduta omissiva em não fornecer uma de suas Unidades de Terapia Intensiva par atendimento e tratamento (...). (...) Como se vê, o Réu não detinha o arbítrio de recusar o atendimento da paciente que se encontrava em estado gravíssimo, prestigiou-se a forma, ou melhor, a burocracia da não intimação oficial do Hospital Santa Lúcia, em detrimento do bem jurídico mais importante e valioso, qual seja: a vida. Esclareça-se que a dinâmica dos fatos, mais precisamente o momento do deferimento da ordem liminar que autorizava a transferência da menor para hospitais da rede pública ou na impossibilidade de fazê-lo, que o Distrito Federal arcasse integralmente com as despesa em UTI da rede particular, fora às 17h02m do dia 27.7.2006 (sexta-feira), não podendo os pais, enfermeiros, médicos da rede pública esperarem a burocracia do Poder Judiciário, leia-se oficial de justiça plantonista para seu devido cumprimento, pois uma vida estava sendo perdida, o que efetivamente ocorreu. (...) Denota-se que a Unidade de Terapia Intensiva era essencial para a sobrevivência (...). Se o réu tivesse, desde o início da luta dos profissionais da saúde pública, assinalado que não receberia a paciente tão somente com a cópia da decisão liminar deferida pelo Poder Judiciário, os funcionários, médicos, enfermeiros do Hospital Regional de Taguatinga teriam procurado outro hospital particular que a recebesse, pois a situação era de risco e os profissionais da saúde que a ajudaram queriam que a transferência ocorresse da forma menos gravosa à paciente em questão, sem contar que o mais absurdo é que o hospital Santa Lúcia havia se comprometido a receber a paciente apenas com a cópia da liminar deferida, pois o caso era gravíssimo. (...) In casu, o Réu não tinha como não providenciar o atendimento da menor, uma vez que o caso era grave, urgente e de risco iminente. Caso o Réu se atentasse aos princípios básicos do Código de Ética Médica, teria oportunizado seu pronto atendimento e quem sabe a morte da menor poderia ter sido evitada e ele estaria no ambiente familiar junto aos seus pais. (...) (fls. 695-702 - grifou-se). 388 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Sem contrarrazões (fl. 759), não foi o especial admitido, sendo, no entanto, por força da decisão de fls. 801-802, conhecido o agravo, determinando-se sua reautuação como especial. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): 1. Da violação do artigo 535, inciso II, do CPC. De início, quanto à negativa de prestação jurisdicional, é de se afastar qualquer negativa de vigência ao artigo 535, inciso II, do Código de Processo Civil, haja vista que a questão controvertida foi enfrentada de forma clara e motivada, nos expressos limites em que proposta a demanda, não se prestando os declaratórios ao reexame de matéria já decidida, à luz dos fundamentos invocados pelos recorrentes, nem ao revolvimento probatório sob o enfoque dos embargantes. De tanto, inexiste vício a ser corrigido em sede de embargos de declaração. Quanto à questão central do inconformismo, é necessário, contudo, tecer algumas considerações. 2. Código de Ética Médica. Não pode ser conhecido o recurso especial quanto à alegada ofensa aos artigos 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, pois tal espécie de ato normativo não está abrangida no conceito de “tratado ou lei federal” inserido na alínea a, do inciso III, do art. 105, da Constituição Federal (AgRg no REsp n. 1.055.776-SP, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJe 16.11.2011; e AgRg no Ag n. 1.421.611-RJ, 2ª T., Min. Mauro Campbell Marques, DJe 9.12.2011). 3. Não incidência da Súmula n. 7-STJ. A controvérsia diz respeito a pedido de indenização por dano moral e material decorrente de óbito de filha menor por ato ilícito. Ao que se tem, restaram expressamente delimitadas tanto na sentença quanto no voto condutor a situação fática dos autos e a questão jurídica RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 389 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA controvertida. Por sua vez, no apelo excepcional, os recorrentes não se insurgem a respeito da veracidade das provas, mas tão somente no tocante às consequências do julgamento, tendo em vista os fatos delineados. Assim, para a resolução da controvérsia, portanto, mostra-se desnecessário qualquer revolvimento probatório, bastando o enquadramento jurídico de fatos já descritos e tornados incontroversos pelo órgão julgador, a afastar o óbice da Súmula n. 7 desta Corte. Com efeito, o cerne do inconformismo está na qualificação jurídica da conduta do recorrido e a sua relação com o dano. Nessa seara, peço vênia para transcrever a lição do ilustre Ministro Teori Albino Zavascki: (...) Por nexo causal entende-se a relação – de natureza lógico-normativa, e não fática – entre dois fatos (ou dois conjuntos de fato): a conduta do agente e o resultado danoso. Fazer juízo sobre nexo causal não é, portanto, revolver prova, e sim estabelecer, a partir de fatos dados como provados, a relação lógica (de causa e efeito) que entre eles existe (ou não existe). Trata-se, em outras palavras, de pura atividade interpretativa, exercida por raciocínio lógico e à luz do sistema normativo. Daí não haver qualquer óbice de enfrentar, se for o caso, mesmo nas instâncias extraordinárias (recurso especial ou recurso extraordinário), as questões a ele relativas. Nesse ponto, é pacífica a jurisprudência assentada no STF (especialmente ao tratar da responsabilidade civil do Estado), no sentido de que o exame do nexo causal, estabelecido a partir de fatos tidos como certos, constitui típica atividade de qualificação jurídica desses fatos e não de exame de prova. Paradigmático, nesse sentido, o precedente do RE n. 130.764, 1ª Turma, Min. Moreira Alves, DJ de 7.8.1992 (REsp n. 843.060-RJ - grifou-se). Assim, delimitado o âmbito de conhecimento do recurso, passa-se à análise do cerne da controvérsia. 4. Da omissão. De início, quanto à conduta do agente, em sua literalidade, as instâncias ordinárias concluíram no sentido de que o hospital não estava obrigado a receber a paciente, porquanto a “omissão capaz de evidenciar a responsabilidade civil é aquela que se revela juridicamente relevante, o que deve ser entendido como o deixar de fazer algo a que estava juridicamente obrigado”. A questão que ora se apresenta é repassada de sensibilidade e graveza: o acesso à saúde e o direito à vida. 390 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Ora, a interpretação das normas jurídicas em geral deve observar não apenas os princípios, mas também os fundamentos em que se ampara a República Federativa do Brasil, dentre eles a dignidade da pessoa humana, como consta do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; Essa disposição normativa não é mera construção retórica. Ao contrário, deve ser interpretada como um balizamento a toda atividade estatal, não apenas no desenvolvimento de políticas públicas que atentem para os fundamentos eleitos como basilares à organização do Estado brasileiro, mas, da mesma forma, no exercício das funções legislativa e judiciária. A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental do nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material dos direitos fundamentais e somente estará assegurada quando for possível ao homem uma existência compatível com uma vida digna, na qual estão presentes, no mínimo, saúde, educação e segurança. Em outras palavras, esse valor é revelado pela Constituição Federal por meio dos direitos fundamentais, aos quais confere caráter sistêmico e unitário. Luís Roberto Barroso bem analisa a dignidade da pessoa humana como princípio que (...) identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 391 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA fundamental e acesso à justiça (Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 381 - grifou-se). Outrossim, não resta dúvida do caráter de serviço público dos prestadores de serviço de saúde ante o que expressa o artigo 6º da Constituição Federal: “São direitos sociais, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (grifou-se). Além deste, o artigo 196, também é contundente quando diz que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo (...) acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. A Lei Maior positivou, ainda, no artigo 5º, incisos X e XXII, a conduta diligente e prudente, na perspectiva de efetivar o princípio neminem laedere (não lesar a ninguém) desencadeando a obrigação de reparar os danos patrimoniais ou extrapatrimoniais injustos se evidenciados do próprio fato. Em consonância com o preceito maior, a Lei n. 8.080/1990, denominada de Lei Orgânica da Saúde, dispõe: Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. § 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. § 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. (grifou-se). É o que se extrai da preciosa lição de José Afonso da Silva, quando discorre acerca da garantia constitucional à saúde: (...) É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de informarse pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas constitucionais. 392 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA O tema não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior, que dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção à saúde, mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora é diferente, trata-se de um direito do homem. (Curso de Direito Constitucional Positivo, 20ª ed., p. 307-308 - grifou-se). Outrossim, preceituam os artigos 1º e 3º da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA): Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. (...) Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (grifou-se). Já o art. 4º desse diploma legal veicula o princípio da proteção preferencial, em regime de absoluta prioridade, sobretudo na efetivação de direitos referentes à vida, à saúde, à educação e à dignidade, assim preconizando: Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. (grifou-se). O artigo 5º, por sua vez, dispõe que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência ou discriminação (...), por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. No caso, havia inescapavelmente a necessidade de pronto atendimento da menor, cuja recusa caracteriza omissão de socorro. Veja-se, a propósito, os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil: RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 393 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (grifou-se). Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. (grifou-se). Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (grifou-se). Outra não é a lição de Caio Mário, quando diz (...) Das modalidades de risco, eu me inclino pela subespécie que deu origem à teoria do risco criado. Como já mencionei (...) Depois de haver o art. 929 deste Projeto (art. 927 do Código) enunciado o dever ressarcitório fundado no conceito subjetivo, seu parágrafo único esposa a doutrina do risco criado, a dizer que, independentemente da culpa, e dos casos especificados em lei, haverá obrigação de reparar o dano quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (Responsabilidade civil, 9ª ed. Rio de Janeiro, p. 284 - grifou-se). Não menos importante, o Código Penal dita que: Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: (...) Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição para o atendimento médico-hospitalar emergencial: (...) Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a morte. 394 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA No caso concreto, a funcionária do hospital tinha, no mínimo, o dever de permitir o acesso da criança ao atendimento médico, ainda que emergencial, um ato simples que poderia ter salvado uma vida. Prestar socorro é dever de todo e qualquer cidadão. Significa a exigência de atuar no propósito de não lesar nem cometer danos injustos a bem de pessoa inocente e, assim, cumprir os deveres de cuidado e de agir como determinado pela ordem jurídica. É o que a doutrina proclama como falta contra a legalidade constitucional. Evidenciado, portanto, que nossas leis disciplinam os direitos e garantias que devem ser prioritariamente observados, a recusa na recepção da paciente, que privilegiou trâmites burocráticos em detrimento do atendimento hospitalar, não tem respaldo legal ou moral. De outra parte, não se pode aceitar a recusa pela instância ordinária do valor da decisão judicial contida no site do Tribunal local, porquanto, como já decidido por esta Turma, “com o advento da Lei n. 11.419/2006, que veio disciplinar ‘(...) o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais’, acredita-se que a tese de que as informações processuais fornecidas pelos sites oficiais dos Tribunais de Justiça e/ou Tribunais Regionais Federais, somente possuem cunho informativo perdeu sua força, na medida em que, agora está vigente a legislação necessária para que todas as informações veiculadas pelo sistema sejam consideradas oficiais” (REsp n. 1.186.276-RS, DJe 3.2.2011, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 3.2.2011). Não se sustenta, ainda, a isenção de responsabilidade pela ausência da presença da criança no momento do pedido da internação, haja vista que a recusa do atendimento não se deu por esse motivo, como já exposto. Em verdade, por qualquer ângulo que se observe, ao negar a prestação fundamental à criança, nas circunstâncias dos autos, o hospital recorrido humilhou a cidadania, descumpriu o seu dever constitucional e praticou atentado à dignidade humana e à vida. 5. Do nexo causal. Dispondo o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal que “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 395 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (...)”, tem-se que todos que vivem em sociedade estão na condição de portadores de um papel, e somente quando a violação deste papel for determinante para a produção do evento lesivo é que este pode ser imputado ao sujeito. Ao mesmo tempo, o artigo 932 do Código Civil, em seu inciso III, dispõe que “são também responsáveis pela reparação civil (...) o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes deve competir, ou em razão dele”. Não se desconhece que no direito brasileiro vige o princípio de causalidade adequada e, por outros, o princípio do dano direto e imediato, cujo enunciado pode ser expresso em duas partes: a primeira (que decorre, a contrario sensu, do art. 159 do CC/1916 e do art. 927 do CC/2002, que fixa a indispensabilidade do nexo causal) dispõe que ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não tiver dado causa; e a outra (que decorre do art. 1.060 do CC/1916 e do art. 403 do CC/2002 e que fixa o conteúdo e os limites do nexo causal) diz que somente se considera causa o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso. Com razão, uma das condições básicas para a concessão da indenização nos casos de responsabilidade civil é o nexo causal certo entre a falha e o dano. Ou seja, ou se reconhece o ato e o relaciona ao dano ou julga-se absolutamente improcedente o pedido, é a regra do tudo ou nada. Na espécie, contudo, há peculiaridades que atraem outro enfoque para o deslinde da causa. Com efeito, não há como ser aplicado de forma pura o princípio de causalidade adequada, também não se está promovendo debates a respeito da sua relativização, mas não se pode deixar de apreciar, diante dos fatos exaustivamente analisados, que a questão envolve uma conduta (omissão) que poderia ter garantido a chance de um resultado diverso. A esse respeito, Miguel Kfouri Neto comenta: Não há olvidar as condições de trabalho dos nossos médicos, mormente em hospitais públicos ou ligados à Previdência (...) Nada disso elide, por óbvio, a crassa imprudência, a omissão pura e simples ou o injustificado desvio de conduta, sempre passíveis de punição (Culpa Médica e ônus da Prova, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111). Com razão, a doutrina, ainda tímida no âmbito cível, tem-se firmado no sentido de que a omissão adquire relevância jurídica e torna o omitente responsável pelo dano, quando este tem o dever jurídico de agir, de praticar um 396 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA ato para impedir o resultado, e se omite assumindo o risco pela ocorrência do resultado. O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação em razões não só normativas como também ética, inserto no princípio geral do já citado neminem laedere. É de se enfatizar no plano dogmático este princípio geral, o qual, embora não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do nosso ordenamento, no sentido de que, tendo o dever jurídico de agir, quem está diante de uma situação de risco ou perigo, deve tomar as providências necessárias para prevenir os danos daí relacionados. Desse modo, a relação entre a omissão do hospital e o dano à paciente não é natural, mas estritamente jurídica. Ao omitir-se, o nosocômio acabou evidenciando o dano, ao reduzir substancialmente a possibilidade de sobrevivência da menor. Do direito comparado, a propósito, traz-se a lição de Joseph H. King Jr. (Reduction of likelihood reformulation and other retrofitting of the loss-of-a-chance doctrine, 1998, p. 507), que ao comentar o parágrafo 323 do Restatement (Second) of Torts assevera que aquele que se incumbe de prestar, de forma gratuita ou onerosa, serviços que são reconhecidos como necessários para garantir a segurança pessoal e patrimonial de outrem deverá ser responsabilizado pelos danos físicos causados à vítima, se a sua negligência tiver aumentado os riscos para a consecução do dano. Em casos tais, não impedir o resultado, significa permitir que a causa opere. Sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho esclarece que (...) Não há dúvida, entretanto, agora já examinada a omissão pelo aspecto normativo, de que o Direito nos impõe, muitas vezes, o dever de agir, casos em que, nos omitindo, além de violar dever jurídico, deixamos de impedir a ocorrência de um resultado. Dessa forma, embora a omissão não dê causa a nenhum resultado, não desencadeie qualquer nexo causal, pode ser causa para não impedir o resultado. Ora, não impedir significa permitir que a causa opere. O omitente, portanto, coopera na realização do evento com uma condição negativa: ou deixando de se movimentar, ou não impedindo que o resultado se concretize. Responde por esse resultado não porque o causou com a omissão, mas porque não o impediu, realizando a conduta a que estava obrigado. (“Programa de Responsabilidade Civil”, Malheiros, 9ª ed., p. 65 - grifou-se). RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 397 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Dessume-se, portanto, que é indiscutível que, no caso em apreço, o hospital pode não ter causado diretamente o resultado morte, mas tinha a obrigação legal e não o impediu, privando a paciente de uma chance de receber um tratamento digno que, talvez, pudesse lhe garantir uma sobrevida. Em suma, a omissão está em relação de causalidade não com o evento morte, mas com a interrupção do tratamento, ao qual tinha a obrigação jurídica de realizar, ainda que nunca se venha a saber se geraria resultado positivo ou negativo para a vítima. 6. Da perda de uma chance de cura ou sobrevivência (perte d’une chance de survie ou guérison) Como bem anotou José Carlos Moreira Alves, “determinar a natureza jurídica de um instituto é estabelecer o seu enquadramento dentro de uma das categorias dogmáticas admitidas no sistema jurídico” (Da Alienação Fiduciária em Garantia, Saraiva, 1973, p. 45). Jurisprudência e doutrina francesas, referências por excelência no âmbito da responsabilidade civil, desde a década de sessenta, chamam de perte d´une chance, e pontificaram o entendimento de que a pessoa prejudicada por esse rompimento indevido faz jus a alguma sorte de reparação civil. Sustentam, ainda, a existência de duas hipóteses da perda de uma chance. A primeira é denominada de “casos clássicos” de perda de uma chance, representando as situações em que se possui um dano autônomo e independente do final. A segunda trata dos casos de perda de uma chance na seara médica. Da Revista Síntese Trabalhista - RST (n. 277, julho/2012, p. 34), extrai-se um caso emblemático julgado pela 1ª Câmara da Corte de Cassação da França, em julho de 1964, que inaugurou na jurisprudência francesa os fundamentos da teoria da perda de uma chance. O caso narrou a acusação e a posterior condenação de um médico ao pagamento de uma pensão devido à verificação de falta grave contra as técnicas da medicina, sendo que foi considerado desnecessário o procedimento adotado pelo médico, consistente em amputar os braços de uma criança para facilitar o parto. A Corte francesa considerou haver um erro de diagnóstico, que redundou em tratamento inadequado. Entendeu-se, logo em sede de 1ª instância, que entre a conduta médica e a invalidez do menor, não se podia estabelecer de modo 398 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA preciso um nexo de causalidade. Contudo, a Corte de Cassação assentou que as presunções suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à responsabilidade. Tal entendimento foi acatado a partir da avaliação do fato de o médico haver perdido uma chance de agir de modo diverso, condenando-o a uma indenização de 65.000 francos. Outro leading case a ser citado é o caso Hicks v. United States, julgado em 1966. Uma paciente que sofria de dores abdominais foi atendida pelo plantonista e liberada para retornar somente oito horas mais tarde. Antes, porém, veio a falecer. O dano final (morte) foi indenizado, mesmo sem a prova inequívoca da conditio sine qua non, isto é, a vítima poderia ter falecido devido ao normal desenvolvimento da doença, mesmo que adequadamente tratada. Nas precisas palavras de Jean Penneau, citadas por Rafael Peteffi da Silva, tem-se que “Na perspectiva clássica da perda de chances, um ato ilícito (une faute) está em relação de causalidade certa com a interrupção de um processo do qual nunca se saberá se teria sido gerador de elementos positivos ou negativos: em razão deste ato ilícito um estudante não pôde apresentar-se ao exame, um cavalo não pôde participar de uma corrida. Assim, devem-se apreciar as chances que tinha o estudante de passar no exame ou o cavalo de ganhar a corrida. Portanto, aqui, é bem a apreciação do prejuízo que está diretamente em causa. A perda de chances de cura ou de sobrevida coloca-se em uma perspectiva bem diferente: aqui, o paciente está morto ou inválido; o processo foi até o seu último estágio e conhece-se o prejuízo final.” (Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance, Ed. Atlas, 2007, p. 84-85). É de se concluir, portanto, que, ainda que sem garantia de cura, seria possível o restabelecimento da criança em alguma medida (completo, ou parcial, pelo menos, conceito que inclui o prolongamento temporal de sua vida), caso tivesse sido atendida. A questão da perda da chance de cura ou sobrevivência se afigura na situação fática definitiva, que nada mais modificará, haja vista que o fato do qual originou o prejuízo está consumado, e no presente caso, quanto ao direito à vida, seu fundamento não pode ser outro que a própria dignidade humana. Isso porque o que se indeniza na responsabilidade por perda de chance outra coisa não é senão a própria chance perdida. Caio Mário da Silva Pereira, já citado, analisando a situação da perda de uma chance, leciona que RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 399 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A doutrina moderna assenta bem os extremos: o que é significativo é que a chance perdida tenha algum valor, do qual a vítima se privou. Weill e Terré lembram, ainda, como exemplos o caso da pessoa que deixou de adquirir um imóvel por culpa do notário ou de ganhar um processo pela falha do escrivão ou do advogado (...) Ulderico Pires dos Santos registra decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a legitimidade da companheira para pleitear indenização (...). É claro, então, que se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe reparação. Mas esta será devida se se considerar, dentro na idéia da perda de uma oportunidade (perte d’une chance) e puder situar-se a certeza do dano. Daí dizer Yves Chartier que a reparação da perda de uma chance repousa em uma probabilidade e uma certeza: que a chance seria realizada e que a vantagem perdida resultaria em prejuízo. (Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 4142 - grifou-se). Do voto proferido pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior (REsp n. 57.529-DF, DJ 23.6.1997), conquanto vencido, extrai-se os ensinamentos de Geneviève Viney, quando afirma: (...) o caráter futuro do dano não se constitui em empecilho para que se admita a responsabilidade civil, sendo comum nos casos de danos contínuos, como na indenização por incapacidade física, ou por morte do obrigado a prestar alimentos, etc. A oportunidade, a chance de obter uma situação futura é uma realidade concreto, ainda que não o seja a real concretização dessa perspectiva; é um fato do mundo, um dado da realidade, tanto que o bilhete de loteria tem valor, o próprio seguro repousa sobre a idéia de chance. A dificuldade de sua avaliação não é maior do que avaliar o dano moral pela morte de um filho, ou o dote devido à mulher agravada em sua honra (art. 1.548 do CC). É preciso, porém, estabelecer linhas limitadores: a chance deve ser real e séria; o lesado estar efetivamente em condições pessoais de concorrer à situação futura esperada; deve haver proximidade de tempo entre a ação do agente e o momento em que seria realizado o ato futuro; a reparação deve necessariamente ser menor do que o valor da vantagem perdia (Viney, Geneviève, La responsabilité, in Traité de Droit Civil, Jacques Ghestin, LGDJ, 1982, 341 e seguintes). (grifou-se). A chance perdida consiste na privação de uma probabilidade, não hipotética, de sucesso em pretensão assegurada pelo direito e frustrada por conduta ignóbil do causador do dano. Em verdade, a perda de uma chance já existia no momento da recusa do hospital em receber a menor. Miguel Kfouri Neto, além de tratar detalhadamente da responsabilidade pela perda de uma chance na seara médica, ratifica tal entendimento, quando afirma que “a chance perdida deve ser ‘séria’, ou ‘real e séria’. É necessário 400 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA demonstrar a realidade do prejuízo final, que não pode ser evitado” (Culpa Médica e ônus da Prova, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111). A chance perdida reparável, reforça Cavalieri, “deverá caracterizar um prejuízo material ou imaterial resultante de fato consumado, não hipotético” (Programa de Responsabilidade Civil, 9ª ed., p. 77). O fato é certo: a menor faleceu. A simples chance (de cura ou sobrevivência), no presente caso, é que passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada. A perda de chance, aqui, se arruma por inteiro, como um alerta ao cuidado dos que lidam com a vida humana. Em outros termos, ao se afastar a expectativa de restabelecimento pela realização de um exame, de um outro tratamento ou pela utilização de equipamentos mais modernos, houve interferência indevida na esfera jurídica de terceiro. Tratando do tema, Miguel Maria de Serpa Lopes aduz que: “Tem-se entendido pela admissibilidade do ressarcimento em tais casos, quando a possibilidade de obter lucro ou evitar prejuízo era muito fundada, isto é, quando mais do que possibilidade havia numa probabilidade suficiente, é de se admitir que o responsável indenize essa frustração. Tal indenização, porém, se refere à própria chance, que o juiz apreciará in concreto, e não ao lucro ou perda que dela era objeto, uma vez que o que falhou foi a chance, cuja natureza é sempre problemática na sua realização”. (Curso de Direito Civil, vol. II, 5ª ed, p. 375376). Esta Corte, não obstante tratar de casos considerados clássico, assim já se manifestou: Responsabilidade civil. Advocacia. Perda do prazo para contestar. Indenização por danos materiais formulada pelo cliente em face do patrono. Prejuízo material plenamente individualizado na inicial. Aplicação da teoria da perda de uma chance. Condenação em danos morais. Julgamento extra petita reconhecido. 1. A teoria da perda de uma chance (perte d’une chance) visa à responsabilização do agente causador não de um dano emergente, tampouco de lucros cessantes, mas de algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se buscar posição mais vantajosa que muito provavelmente se alcançaria, não fosse o ato ilícito praticado. Nesse passo, a perda de uma chance - desde que essa seja razoável, séria e real, e não somente fluida ou hipotética - é considerada uma lesão às justas expectativas frustradas do indivíduo, que, ao perseguir uma posição jurídica RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 401 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA mais vantajosa, teve o curso normal dos acontecimentos interrompido por ato ilícito de terceiro. (...) 4. Recurso especial conhecido em parte e provido (REsp n. 1.190.180-RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16.11.2010, DJe 22.11.2010 - grifou-se). Direito Civil e Processual Civil. Recurso especial. 1) negativa de prestação jurisdicional afastada. 2) perda de chance que gera dever de indenizar. 3) candidato a vereador, sobre quem publicada notícia falsa, não eleito por reduzida margem de votos. 4) fato da perda da chance que constitui matéria fática não reexaminável pelo STJ. (...) II. - As Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte vêm reconhecendo a possibilidade de indenização pelo benefício cuja chance de obter a parte lesada perdeu, mas que tinha possibilidade de ser obtida. (...) V. - Recurso Especial improvido (REsp n. 821.004-MG, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 19.8.2010, DJe 24.9.2010). Cotejando-se esses entendimentos com a situação dos autos, consistente no benefício cuja chance a criança perdeu, verifica-se que, caso o tratamento fosse realizado, poderia a filha do autores ter tido a chance de, ao menos, sobreviver. Incontestável, portanto, o direito dos pais à reparação de acordo com a teoria dos danos reflexos ou por ricochete. Com efeito, os pais agem defendendo direito próprio, inerente à sua personalidade, que é ofendida com o desrespeito à saúde e à vida de sua filha, que, por sua vez, tinha direito à integridade física e moral garantido por normas constitucionais e civis, daí falar-se em violação reflexa, em tese, assim se limitando a incidência da norma no presente caso. 7. Conclusão. Presentes os requisitos ensejadores do ressarcimento por ilícito civil, é de se reconhecer a violação do artigo 927 do Código Civil e, por consequência, o direito dos recorrentes à pretensão indenizatória. Nos termos do artigo 257 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, aplica-se, desde já, o direito à espécie. 402 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Constatada a omissão do recorrido, poderiam advir daí danos materiais e morais. Nessa ordem de ideias, irrefutável a situação de sofrimento vivenciada injustamente pelos pais, causada única e exclusivamente pela recusa de atendimento médico à filha, que lhes retirou a chance do tratamento. A propósito, cumpre destacar a lição de Sérgio Sabi: Em conclusão, haverá casos em que a perda da chance, além de representar um dano material, poderá, também, ser considerada um “agregador” do dano moral. Por outro lado, haverá casos em que apesar de não ser possível indenizar o dano material, decorrente da perda da chance, em razão da falta dos requisitos necessários, será possível conceder uma indenização por danos morais em razão da frustrada expectativa. (Responsabilidade Civil por Perda de uma Chance, Editora Atlas, São Paulo/SP, 2006, p. 56). Nesse diapasão, doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que para a fixação do valor da compensação pelos danos morais deve-se considerar a extensão do dano experimentado pela vítima, a repercussão no meio social e a situação econômica das partes, para que se chegue a uma justa composição, sem olvidar a finalidade de punição do causador do dano de forma a desestimulá-lo da prática futura de atos semelhantes, evitando-se, sempre, que o ressarcimento se transforme em fonte de enriquecimento injustificado. A sanção, contudo, não deve corresponder a reparação à indenização pelo dano morte, mas em razão da ausência de atuar do hospital e o dano sofrido, considerado, no caso, a perda de uma chance de sobrevivência. Seguindo as peculiaridades da causa, devem ser fixados os danos morais na importância de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para cada um dos autores. Quanto aos danos materiais, estes estão atrelados ao pedido de pensionamento até a data em que a vítima completaria 25 anos. Contudo, na espécie, não há como concluir, mesmo na esfera da probabilidade, que o atendimento pelo recorrido impediria o resultado. De fato, não há como se equiparar, nesse caso, a perda da vida ao invés da perda da oportunidade de obter a vantagem do tratamento, como o que se acaba por transformar a chance em realidade. Explica-se: considerando que não há como ser ligada a conduta da ré ao evento morte – não há como ter certeza de que, ainda que prestado o atendimento de emergência de forma adequada, a paciente sobreviveria –, a RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 403 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA indenização deve ater-se apenas ao dano moral, excluído o material. Mesmo porque, como já dito, não se pode indenizar o possível resultado. Não se indeniza o que a vítima hipoteticamente deixou de lucrar, mas, sim, a oportunidade existente em seu patrimônio no momento em que ocorreu o ato danoso. O que os pais perderam, repita-se, é a chance do tratamento e não a continuidade da vida. A falta reside na chance de cura de sua filha, e não na própria cura. Falta, assim, pressuposto essencial à condenação do recorrente ao pagamento do pensionamento, nos termos em que formulado. Juros legais nos termos da Súmula n. 54-STJ e correção monetária a partir desta data. Sucumbentes, arcarão as partes com as custas e os honorários advocatícios fixados em 10% sobre o importe da condenação, nos termos do artigo 21 do Código de Processo Civil, respeitada a gratuidade de justiça, se o caso. Em vista do exposto, conheço em parte do recurso especial e nesta parte dou-lhe provimento, nos termos delineados. É como voto. VOTO-VISTA A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto por Alberdan Nascimento de Araújo e Cícera de Oliveira Silva, com fundamento no art. 105, III, a e c, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-DF. Ação: de indenização por danos materiais e morais, ajuizada pelos recorrentes em desfavor do Hospital Santa Lúcia S.A. Depreende-se dos autos que a filha dos autores, então com 08 meses de vida, estava internada no Hospital de Taguatinga com quadro clínico considerado gravíssimo, a demandar tratamento não disponibilizado por aquele nosocômio, em unidade de terapia intensiva, motivo pelo qual os médicos aconselharam a transferência para hospital privado. Os recorrentes obtiveram decisão judicial autorizando a transferência, mas o hospital recorrido se recusou a receber a criança, sob o argumento de que a cópia da liminar que fora apresentada, extraída da Internet, não tinha valor legal. Mantida na enfermaria do Hospital de Taguatinga, a menor veio a óbito. 404 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Sentença: embora reconheça a omissão do hospital, julgou improcedentes os pedidos iniciais, por entender que a conduta da recorrida não foi determinante para o evento morte (fls. 470-482, e-STJ). Acórdão: o TJ-DF negou provimento ao apelo dos recorrentes, mantendo na íntegra a sentença (fls. 657-663, e-STJ). Recurso especial: alega violação dos arts. 535 do CPC; 186, 187, 927 e 951 do CC/2002; e 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, bem como dissídio jurisprudencial (fls. 687-710, e-STJ). Prévio juízo de admissibilidade: o TJ-DF negou seguimento ao recurso especial (fls. 760-764, e-STJ). Inconformados, os recorrentes interpuseram o AREsp n. 150.310-DF, provido pelo i. Min. Relator para determinar a reautuação do processo como recurso especial. Voto do Relator: dá provimento ao recurso especial para, aplicando a teoria da perda da chance, condenar o recorrido ao pagamento de danos morais arbitrados em R$ 50.000,00. Deixa, contudo, de condenar o hospital em danos materiais, sob a alegação de que não se poderia indenizar um resultado incerto. Revisados os fatos, decido. Cinge-se a lide a determinar a validade de decisão liminar extraída da Internet, bem como a aplicabilidade da teoria da perda da chance para hipóteses de erro médico. Inicialmente, no que tange às preliminares de ausência de negativa de prestação jurisdicional e de impossibilidade de conhecimento do recurso especial à luz dos arts. 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, acompanho na íntegra o voto do i. Min. Relator. Da mesma forma, acompanho integralmente o voto condutor em relação à caracterização da conduta omissiva do recorrido, tendo em vista a clara necessidade de pronto atendimento da menor. Ao se recusar a receber a criança, unicamente porque, naquele momento de extrema urgência, teria sido apresentado documento reputado inábil, o hospital evidentemente excedeu os limites impostos por lei ao exercício dos seus direitos, violando o art. 187 do CC/2002. Diante do risco iminente de morte, o comportamento esperado – sobretudo de um hospital – era a prestação dos primeiros socorros à paciente, para somente então preocupar-se com questões secundárias, de ordem burocrática. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 405 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Não bastasse isso, o motivo apresentado pelo recorrido para não aceitar a internação da menor – de que cópia de liminar extraída da Internet não teria valor legal – sequer pode ser considerado plausível, na medida em que o uso do meio eletrônico na tramitação de processos judiciais e comunicação de atos encontra-se disciplinado desde 2006, por ocasião da edição da Lei n. 11.419/2006. Nesse sentido, inclusive, o REsp n. 1.186.276-RS, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe de 3.2.2011, alçado a paradigma pelo i. Min. Relator. Assim, independentemente do ângulo pelo qual se analise a questão, não se encontra justificativa para a conduta omissiva do hospital. Resta, por fim, apreciar a questão relativa ao nexo causal entre a conduta omissiva do recorrido e óbito da filha dos recorrentes. O i. Min. Relator constrói seu voto em torno na mitigação do princípio da causalidade adequada, aplicando a teoria da perda da chance. Entretanto, como bem frisado no voto condutor, esse caso exige que a teoria da perda da chance seja analisada sob outra perspectiva, diversa daquela que vem sendo enfrentada por esta Corte, qual seja, a denominada perda da chance clássica, em que há o desaparecimento de uma oportunidade de ganho em favor do lesado. Nessas hipóteses, há sempre certeza quanto à autoria do fato que frustrou a oportunidade, e incerteza quanto à existência ou à extensão dos danos decorrentes desse fato. Assim, por exemplo, quando uma pessoa impede outra de participar de um concurso de perguntas e respostas, não há dúvidas de quem causou o impedimento, e a única incerteza diz respeito a qual seria o resultado do certame e que benefícios seriam auferidos pela vítima caso dele participasse até o fim. Por isso a indenização é fixada mediante uma redução percentual do ganho que, em princípio, poderia ser auferido pelo prejudicado. Dessasrte, se este tinha 60% de chances de sucesso caso tivesse aproveitado a oportunidade perdida, a indenização será fixada em 60% sobre o valor total dos hipotéticos lucros cessantes. Na espécie, contudo, a oportunidade perdida é de um tratamento de saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte. Aqui, a extensão do dano já está definida, e o que resta saber é se esse dano teve como concausa a conduta do recorrido. A incerteza, portanto, não está na consequência. Por isso ganha relevo a alegação da ausência de nexo causal. A conduta do hospital não provocou a doença que levou ao óbito mas pode eventualmente ter frustrado a oportunidade de cura. Essa circunstância suscita 406 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA novos questionamentos acerca da teoria da perda da chance, porquanto a coloca em confronto mais claro com a regra do art. 403 do CC/2002, que veda a indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do agente. Exatamente por esse motivo, a doutrina especializada observa que a teoria da perda da chance nas hipóteses de erro médico não vem sendo pacificamente aceita no direito comparado. Tanto Fernando Noronha (Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações – introdução à responsabilidade civil, vol. I, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 669) ), como Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade civil pela perda de uma chance: uma análise de direito comparado e brasileiro, São Paulo: Atlas, p. 222 e ss.) dão conta da existência de viva controvérsia no direito francês acerca da matéria. Assim, a partir do trabalho pioneiro de René Savatier, que em primeiro lugar enxergou a diferença aqui apontada, diversos autores vêm negando a aplicação da teoria da perda da chance à seara médica. A título exemplificativo, Jean Penneau, autor de obra de grande envergadura sobre o tema (La responsabilité du medecin. Paris: Dalloz, 1992, apud Fernando Noronha, op. cit., 678), afirma que as situações de certeza quanto ao resultado e incerteza quanto à causa não podem ser dirimidas mediante a simples redução proporcional da indenização. Em vez disso, a incerteza quanto à causa deve ser resolvida em um processo regular de produção de provas, de modo que, se comprovado o nexo causal entre a conduta do médico e o prejuízo causado ao paciente, este lhe deverá pagar uma indenização integral, não uma indenização proporcional ao grau de plausibilidade da oportunidade perdida. Se não ficar comprovada a culpa, por outro lado, indenização nenhuma será devida. Para o erro médico, portanto, o critério seria de tudo ou nada. Referido autor pondera, inclusive, que a jurisprudência deveria “cessar de se lançar em acrobacias intelectuais – que são a porta aberta a todos os arbítrios - nos termos das quais se pretende indenizar um inapreensível prejuízo intermediário”. Para os defensores dessa corrente, a dúvida quanto ao nexo causal deveria levar ao julgamento de improcedência do pedido. Apenas nas hipóteses em que o liame causal estivesse plenamente demonstrado, poderia haver um julgamento de procedência da pretensão do lesado, com reparação integral do dano. Autorizar que se aplique a teoria da perda da chance para processos aleatórios já concluídos implicaria o “paraíso de juízes indecisos (incertains), [como] dizia o decano Savatier”. A indenização parcial, portanto, demonstraria uma confusão do julgador, entre “o grau de pretensa chance perdida com o grau de sua própria RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 407 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA dúvida sobre a causalidade”. No mesmo sentido é a opinião de Yvone LambertFaivre (Droit du dammage corporel. Systèmes d’indemnisation. 3ª ed., Paris: Dallos, 1996, apud Fernando Magalhães, op. loc. cit.) Essas críticas, conquanto robustas, não justificam a exclusão da doutrina da perda da chance para a seara médica. A dificuldade de trato da questão está justamente em que os defensores da diferenciação entre a perda da chance clássica e a perda da chance no ramo médico situam o fator aleatório, de modo equivocado, num processo de mitigação do nexo causal com o resultado. Sem demonstração clara de que um determinado dano decorreu, no todo ou em parte, da conduta de um agente, é de fato muito difícil admitir que esse agente seja condenado à sua reparação. Admiti-lo implicaria romper com o princípio da conditio sine qua non, que é pressuposto inafastável da responsabilidade civil nos sistemas de matriz romano-germânica. A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação do nexo causal com o resultado. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a vítima. Com isso, resolvese, de maneira eficiente, toda a perplexidade que a apuração do nexo causal pode suscitar. Para a compreensão dessa forma de pensar a matéria, pode-se mencionar a explanação de Rafael Pettefi da Silva (op. cit., pp. 71 e ss.) – conquanto esse autor não advogue a perda da chance como dano autônomo: A disciplina do “Law and Economics”, tão difundida na América do Norte e comprometida a analisar os efeitos econômicos das instituições jurídicas, passou a considerar o aumento de riscos e a perda de chances como “commodities”, avaliando-os como danos tangíveis, merecedores de grande importância conceitual. Note-se que essa abertura epistemológica, em relação ao reconhecimento das chances perdidas como danos indenizáveis, é observada como algo indissociável da evolução tecnológica. (...) Apesar das críticas ao baixo caráter de certeza que ainda envolvem algumas estatísticas – responsáveis pelo dito popular que estas se constituiriam em mais 408 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA uma forma de mentira – acredita-se que, de acordo com o paradigma solidarista, a mesma argumentação utilizada para respaldar a reparação dos danos morais poderia ser aqui utilizada: “a condição de impossibilidade matematicamente exata da avaliação só pode ser tomada em benefício da vítima e não em seu prejuízo”. Por intermédio dos argumentos expostos, grande parte da doutrina assevera que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção de nexo de causalidade alternativa para ser validada. Apenas uma maior abertura conceitual em relação aos danos indenizáveis seria absolutamente suficiente para a aplicação da teoria da perda de uma chance nos diversos ordenamentos jurídicos. Ainda segundo esse autor, cabe ao Professor Joseph King Jr., no direito americano, o esboço dos fundamentos para a admissão da responsabilidade civil pela perda da chance, como uma modalidade autônoma de dano. Nas palavras de Rafael Peteffi da Silva: A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os Tribunais têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da vantagem esperada pela vítima. Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro de abordagem que os Tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão “tudo ou nada” da causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa um dano reparável. (pp. 75-76). O valor dessa doutrina, em que pesem todas as críticas a que foi submetida, está em que, a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo, é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida, na hipótese deste processo) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar esse dano, ou seja, apurar qual o valor econômico da chance perdida. Não se desconhece as graves críticas que esta posição pode suscitar. Os doutrinadores que têm se dedicado ao estudo do tema manifestam justa preocupação com o “risco sistemático” inerente ao tema, receosos quanto à RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 409 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ampliação das possibilidades de relativização do nexo causal. Nesse sentido, podemos citar as seguintes considerações de Rafael Peteffi sobre o assunto: Saliente-se, conforme já exposto no Capítulo 2, a enorme preocupação que alguns juristas franceses, como René Savatier e Jean Penneau, demonstravam em relação ao “perigo sistemático” engendrado pelas chances perdidas avaliadas após o completo desenrolar do processo aleatório. Como a certeza absoluta em termos de nexo de causalidade é muito raramente encontrada, não mais seriam observadas condenações integrais dos danos sofridos pela vítima. O juiz deixaria de perquirir quem realmente causou o dano, para saber qual a percentagem de chances que o agente tirou da vítima. De fato, a regra do tudo ou nada estaria sepultada, pois as sentenças de improcedência também ficariam cada vez mais raras, tendo em vista que a dúvida sobre o nexo de causalidade passaria a gerar uma reparação parcial do prejuízo, “medida pelo grau de incerteza que cerca o livre convencimento do juiz”. É por esta razão que René Savatier declarava que a teoria da perda de uma chance aplicada à seara médica seria o paraíso do juiz indeciso. (...) Importante observar que, em França, ao aludido “perigo sistemático” representado pela perda da chance de cura é dada tanta importância que, exceto pela célebre manifestação de Jacques Boré, nenhum outro jurista advoga pela aplicação da causalidade parcial. Portanto, mais uma vez se verifica a defesa da fórmula “tudo ou nada” quando se trata de causalidade: ou a vítima resta sem qualquer reparação, já que o nexo causal não foi provado; ou se trabalha com presunções de causalidade, tentando alcançar a reparação do dano final. É forçoso reconhecer, por outro lado, que a necessidade de se prevenir o referido “risco sistemático” não pode levar à completa negação da teoria para as hipóteses de erro médico, porquanto fazê-lo também poderia gerar resultados catastróficos. Invocando o direito norte-americano, Rafael Peteffi faz, em contraponto aos temores manifestados pela doutrina francesa, as seguintes observações: Em defesa da adoção da teoria da perda de uma chance na seara médica, tem-se como principal argumento o caráter pedagógico (deterrence) que deve desempenhar a responsabilidade civil, isto é, o dever de indenizar o dano causado deve desmotivar o agente, bem como toda a sociedade, de cometer novamente o mesmo ato ofensivo. A não-adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com poucas chances de vida. Esta situação é facilmente explicável, pois enorme seria 410 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA a dificuldade de provar o nexo de causalidade certo e direto entre a falha médica ou hospitalar e a morte do paciente, já que este, muito provavelmente, morreria pela evolução endógena da doença, mesmo com uma conduta médica exemplar. Assim, a falha médica não se caracterizaria como uma condição necessária para o surgimento do dano. Em Mckellips v. Saint Francis Hosp e em Roberson v. Counselman, a Suprema Corte de Oklahoma e a Suprema Corte do Kansas, respectivamente, absorveram bem a matéria, afirmando, ao fundamentar as deciões, que os profissionais da saúde estariam totalmente livres de sua responsabilidade, mesmo em se tratando do erro mais grosseiro, se o paciente apresentasse poucas chances de viver. A Suprema Corte do Arizona, em Thompson v. Sun City Community Hosp., argumentou que, quando um médico, por falha sua, retira trinta por cento (30%) de chances de sobrevivência de um grupo de cem pacientes, que efetivamente morrem, é “estatisticamente irrefutável” que alguns desses pacientes faleceram devido à falha médica. Entretanto, o repúdio à teoria da perda de uma chance faz com que nenhum desses pacientes possa requerer qualquer tipo de indenização, já que é impossível provar o nexo de causalidade entre a morte do paciente e a falha médica, decretando a irresponsabilidade absoluta dos médicos. Há, por derradeiro, uma última crítica à autonomia conceitual da perda da chance, como direito autônomo à reparação civil. Trata-se da seguinte objeção, formulada por Rafael Peteffi (op. Cit., p. 106 e 107): A necessidade de arquitetar presunções para provar o nexo de causalidade entre a conduta do réu e o dano final ocorre exatamente pela impossibilidade de se admitir um dano autônomo e independente consubstanciado nas chances perdidas. Essa impossibilidade é cabalmente verificada pelo já comentado exercício de argumentação, efetuado por autores franceses e norte-americanos. Nesse sentido, se um médico comete um terrível erro técnico, aumentando o risco de morte de uma paciente (ou diminuindo as suas chances de viver) e, mesmo assim, o paciente recupera a sua saúde perfeita, a maioria da doutrina acredita que não há dano passível de reparação. Portanto, esse “prejuízo distinto do benefício esperado” parece ser difícil de imaginar nos casos em que o processo aleatório chegou até o final, já que se apresenta dependente da definitiva perda da vantagem esperada pela vítima (pp. 106-107). Essa crítica, contudo, também não se sustenta. No exemplo fornecido por Peteffi não há efetiva perda da chance quanto ao resultado-morte. Se o processo causal chegou a seu fim e o paciente viveu, não obstante a falha médica, não se pode dizer que o profissional de saúde tenha lhe subtraído uma chance qualquer. Por questões afeitas à compleição física da vítima ou por quaisquer outros RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 411 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA fatores independentes da conduta médica, as chances de sobrevivência daquele paciente sempre foram integrais. Vale lembrar que a oportunidade de obtenção de um resultado só pode se considerar frustrada se esse resultado não é atingido por outro modo. Seria, para utilizar um exemplo mais simples, de perda de chance clássica, o mesmo que discutir a responsabilização de uma pessoa que impediu outra de realizar uma prova de concurso, na hipótese em que essa prova tenha sido posteriormente anulada e repetida. Talvez no exemplo fornecido por Peteffi seja possível dizer que a correta atuação do profissional de saúde possibilitasse ao paciente um processo de convalescência mais confortável ou mais veloz. Mas nessa situação, poderíamos individualizar um bem jurídico autônomo lesado pela omissão do médico – justamente a chance de gozar de maior qualidade de vida durante a convalescência. Vê-se, portanto, que, nesta como em tantas outras questões mais sensíveis do direito, sempre haverá muito debate. Contudo, sopesados os argumentos de defesa de cada uma das posições em conflito, a que apresenta melhores soluções é a consideração da perda da chance como bem jurídico autônomo, mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil médica. Todas as perplexidades que a aplicação dessa teoria possa suscitar resolvem-se, assim, no âmbito da quantificação do dano. Na hipótese específica dos autos, não obstante reconheça a incidência da teoria da perda da chance – afirmando que, caso tivesse sido atendida pelo recorrido, a menor teria alguma perspectiva de sobrevivência – o i. Min. Relator rejeita o pedido de condenação por danos materiais, sob o argumento de que não se indeniza prejuízo hipotético, ressalvando não haver como afirmar, com certeza, que a conduta do hospital impediria o resultado. A despeito disso, julga procedente o pedido de indenização moral, afirmando não se tratar de reparação pela morte da criança, mas pela perda da chance de sobrevivência decorrente da omissão do hospital. Rogando ao i. Min. Relator as mais elevadas vênias, penso ter havido confusão na apreciação do nexo de causalidade enquanto requisito indispensável à caracterização de cada um dos danos. Salvo melhor juízo foram levados em consideração diferentes liames de causalidade: para o dano material buscou-se nexo entre o comportamento do hospital e o resultado morte, enquanto para o 412 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA dano moral procurou-se nexo entre a referida conduta e a redução de chance de sobrevivência do paciente. Daí as diferentes conclusões alcançadas, admitindo a existência de dano moral, mas afastando a presença do dano material. Ocorre que, em se tratando de perda da chance, há um único nexo de causalidade a ser perquirido, ligado, como visto, não ao resultado final (morte) para o qual a conduta do agente pode ou não ter contribuído, mas apenas à oportunidade que se privou. Trata-se, pois, de quantificar em que medida a conduta do hospital contribuiu para a chance (de viver) perdida. Nesse aspecto, deve-se: (i) verificar a presença de uma chance concreta, real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou sofrer um prejuízo; (ii) confirmar se a ação ou omissão do agente tem nexo causal com a perda da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o objeto final); (iii) atentar para o fato de que o dano não é o benefício perdido, porque este é sempre hipotético. A partir daí, a reparação civil pela perda de uma chance se dará pelo estabelecimento de uma indenização para esse bem jurídico autônomo, em uma proporção aplicada sobre o dano final experimentado, fixada conforme a probabilidade da chance perdida de alterar esse resultado danoso. Transpondo essas considerações para a hipótese dos autos, deve-se apurar se a internação em UTI – impossibilitada pela conduta omissiva do hospital – traria à menor uma chance real e concreta de sobrevivência e, em caso afirmativo, qual seria, percentualmente, essa chance. Esse percentual incidirá sobre o prejuízo integral – material e moral – suportado pelos recorrentes por força do falecimento da menor, atuando como um quantificador do dano, de modo a se obter uma indenização exclusivamente pela perda da chance. Por outro lado, constatada a inexistência de uma oportunidade efetiva de sobrevivência, não estaremos diante de uma perda da chance indenizável. No particular, porém, o TJ-DF se pautou pela ausência de nexo de causalidade entre a conduta do recorrido e o evento morte, deixando de apreciar, a partir da aplicação da teoria da perda da chance, até que ponto a transferência da menor para o hospital poderia ter evitado o seu falecimento, ou seja, em que medida a sua internação na UTI aumentaria a sua expectativa de vida. Diante disso, como essa quantificação está a depender do revolvimento do substrato fático-probatório dos autos, torna-se inviável a aplicação do direito RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 413 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA à espécie com base no art. 257 do RISTJ, sendo imperiosa a baixa dos autos à origem para que o Tribunal local assim proceda. Não bastasse isso, verifica-se que não foi produzida nos autos prova técnica tendente a determinar se a internação em unidade de terapia intensiva teria conferido à paciente uma chance real e concreta de sobrevivência. Trata-se de elemento indispensável à averiguação de se estar diante de uma perda da chance indenizável, o qual não pode ser substituído pela experiência individual dos julgadores, carecedores que são de conhecimento médico específico. Importante ressaltar, por fim, que esta análise não pode ser obstada por uma suposta falta de legitimidade das partes para pleitear o direito em causa. É verdade, por um lado, que a oportunidade de cura ou de gozar de uma sobrevida mais confortável é direito personalíssimo da paciente. Seu falecimento, portanto, não implica transferência desse direito aos herdeiros. Contudo, a oportunidade de gozar a companhia de um ente querido, com ele convivendo livre de sua doença, ou mesmo de acompanha-lo num processo melhor de convalescência, é direito autônomo de cada uma das pessoas que com o de cujus mantinham uma relação de afeto. O dano, portanto, causado pela morte, afeta a todos em sua esfera individual, cada qual por um motivo específico, como sói ocorrer em todas as situações em que se pleiteia indenização por força da perda de um ente querido. Em síntese, indeniza-se a chance perdida de não sofrer o abalo derivado dessa perda. Forte nessas razões, peço vênia para divergir em parte do voto do i. Min. Relator, reconhecendo a conduta omissiva do hospital recorrido, porém com a determinação de baixa dos autos à origem para que se apure, com base nos parâmetros delimitados na fundamentação e mediante realização de perícia técnica, em que medida essa conduta reduziu a chance de sobrevivência da menor. VOTO-VISTA (CONCORDANTE COM O RELATOR) O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Meu voto acompanha a conclusão do E. Relator, dando provimento ao Recurso Especial para julgar a ação procedente em parte e condenar o Recorrido: a) ao pagamento de indenização por danos morais no valor de R$ 50.000,00 para cada um dos autores, genitores da menor Analice Nascimento de Oliveira (nascida a 6.11.2005 e falecida no dia 22.7.2006), que veio a falecer em meio à omissão de atendimento médico-hospitalar, com juros 414 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA legais, contados a partir da data do óbito (Súmula n. 54-STJ), divididas custas e despesas processuais entre as partes e fixados os honorários advocatícios ao patrocínio em prol dos autores em 10% do valor da condenação corrigido (CPC, art. 230, § 3º); b) afastar o pensionamento pretendido pelo fato da morte da filha menor, pleiteado pelos Recorrentes na inicial. 2. - Ao exame da petição inicial, que oferece o balizamento de tudo o que é juridicamente licito julgar no processo, em observância aos princípios da adstrição e do contraditório, bem como à análise da sentença, que julgou improcedente a ação, e do Acórdão, que integralmente a confirmou, concluise que a ação cumulou apenas pretensão à indenização por danos materiais e morais decorrentes do fato da morte da menor – não tendo, a petição inicial, a sentença e o Acórdão recorrido chamado a exame a sofisticada e especialíssima causa de pedir de indenização por perda da chance, não referida em nenhuma dessas peças, causa de pedir essa a que os votos do E. Relator e da E. Minª. em parte divergente dedicaram, é bom que se diga, algumas das mais eruditas e cuidadosas peças judiciais a respeito da teoria da perda da chance e suas implicações. 3. - Com efeito, a inicial narra os percalços para obtenção do atendimento da menor, de oito meses de idade, iniciados em 18.7.2006, levada ao Hospital Regional de Taguatinga, passando a experimentar piora médica progressiva, com recomendação de transferência a hospital com melhores recursos, obtendo-lhe os médicos vaga no Hospital Santa Lúcia, para o que a Defensoria Pública impetrou Mandado de Segurança, não tendo sido, contudo, a menor, imediatamente internada para passar a receber atendimento, em virtude de questões burocráticas de cumprimento do Mandado de Segurança. Assim fixou, a inicial, a causa de pedir, sem alusão a indenização por perda de chance: “Estão evidentes que restou configurado os requisitos que enseja a Responsabilidade Civil do Hospital, quais sejam: a) dano material ou moral sofrido por alguém; b) uma ação ou omissão antijurídica imputável; c) nexo de causalidade entre o dano e a ação ou omissão, restando assim comprovado que existiu a omissão do serviço, ensejando a responsabilidade civil do mesmo” (e-STJ fls. 8) e conclui ubicando legalmente o caso em dispositivos do Código Civil/2002 relativos à responsabilidade civil profissional normal, sem invocação da teoria da perda de uma chance, ou seja, arts. 186, 187, 927 e 951 (e-STJ, fls. 10). RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 415 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 4. - O nexo de causalidade está bem demonstrado, ante a renitência de não atender, procrastinando os cuidados médicos, com grande sofrimento moral para os autores, que padeciam de ver a criança na trilha de perder a vida, o que realmente acabou acontecendo. Houve omissão, realmente, ante o desvio, em vez do atendimento pronto, para os desvãos das considerações burocráticas e administrativas, inclusive quanto a requisitos de atendimento a Mandado de Segurança. 5. - Na matéria fática subjacente, fixada pela sentença e pelo Acórdão, em nenhum momento se firmou que a omissão foi a causa da morte da menor, mas, segundo a sentença e o acórdão, estabeleceu-se que a enfermidade para a qual não encontrada cura é que causou a morte da menor. Diante dessa conclusão fática, intocável a esta altura (Súmula n. 7-STJ), impossível estabelecer indenização pelo fato da morte, restando, contudo, a indenização por dano moral, de total evidência inclusive pela sentença e pelo acórdão. 6. - Não ubicada a pretensão em perda de uma chance, resta, realmente, por indenizar os penosos danos material e moral sofridos pelos autores. 7. - Pelo exposto, meu voto acompanha a conclusão do E. Relator, nos termos resumidos ao início deste voto, com fundamento diverso do da perda de uma chance. VOTO O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Srs. Ministros, com a vênia a Sra. Ministra Nancy Andrighi, acompanho o voto do eminente Relator. RECURSO ESPECIAL N. 1.345.653-SP (2011/0197772-0) Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva Recorrente: Autovel Auto Valadares Ltda. e outro Advogados: Carlos Mário da Silva Velloso Filho e outro(s) Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa e outro(s) 416 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Recorrido: Ford Motor Company Brasil Ltda. Advogados: Maria Helena Ortiz Bragaglia e outro(s) Halisson Adriano Costa e outro(s) EMENTA Recurso especial. Direito Empresarial. Lei Renato Ferrari. Exceção do contrato não cumprido. Súmulas n. 5 e n. 7-STJ. Não incidência. Descumprimento da avença. Pagamento antecipado ao faturamento. Ausência de previsão na convenção de marcas. Impossibilidade. Violação do art. 476/CC. Restabelecimento da sentença. 1. Não há falar nos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e n. 7-STJ quando a questão trazida à apreciação desta Corte Superior for unicamente de direito, ou de direito e de fato, e não houver a necessidade de revisão do quadro probatório já delineado soberanamente pelas instâncias ordinárias, como na espécie. 2. O contrato de concessão para venda de veículos automotivos é de natureza estritamente empresarial, tipificado na Lei n. 6.729/1979, denominada Lei Renato Ferrari, na qual estão estabelecidos, de forma genérica, os direitos e obrigações tanto do concedente quanto do concessionário, determinando, ainda, o regramento mínimo a ser observado pelas pessoas jurídicas contratualmente ligadas. E como se não bastasse, o citado diploma trouxe para o direito comercial uma inovação: a convenção das categorias econômicas e a convenção da marca como fontes supletivas de direitos e obrigações para os integrantes da relação contratual. 3. “- A exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o próprio contrato não determinar a quem cabe primeiro cumprir a obrigação. (...) A recusa da parte em cumprir sua obrigação deve guardar proporcionalidade com a inadimplência do outro, não havendo de se cogitar da argüição da exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é parcial e mínimo” (REsp n. 981.750-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 23.4.2010). 4. Diante da ausência de previsão na convenção de marcas de que o pagamento do preço seria efetuado antes do faturamento do pedido RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 417 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA de mercadoria, o acórdão acabou por violar o artigo 476 do Código Civil. 5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença. ACÓRDÃO Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 4 de dezembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator DJe 20.2.2013 RELATÓRIO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial interposto por Autovel Auto Valadares Ltda. e Camilo dos Santos Neto, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado: Contrato de concessão para revenda de veículos automotores. Indenização. Descabimento no caso concreto. Rescisão verificada por culpa do concessionário. Recurso do réu provido, prejudicado o do autor (fl. 3.539). Os embargos declaratórios foram rejeitados (fls. 3561-3.562). Narra a inicial que a Autovel e a Ford mantiveram contrato de concessão de veículos automotores, sendo a ação proposta em virtude do descumprimento, pela montadora, de obrigações assumidas quando da negociação de venda de outras duas bandeiras, também de titularidade do sócio (2º recorrente) Camilo dos Santos Neto, nos seguintes moldes: Camilo (sócio de Autovel) renunciaria gratuitamente às outras duas concessões de que era titular e a Ford praticaria condições mais vantajosas na remanescente (Autovel), comprometendo-se a faturar-lhe 180 (cento e oitenta) veículos por mês pelo prazo mínimo de 8 (oito) anos. 418 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Alegando que o acordo não foi cumprido, a parte recorrente propôs demanda contra a Ford, que, em defesa, sustentou que o comprometimento de faturamento de veículo limitou-se à falta de pagamento, constituindo justa causa para a rescisão da concessão e para sua própria desoneração da obrigação reconhecida de faturamento mensal de 180 (cento e oitenta) unidades à concessionária. O Tribunal Estadual, reformando a sentença de procedência do pedido, proveu a apelação da Ford, firme em que a recusa de faturamento foi lícita, haja vista que a concessionária deixou de efetuar previamente o respectivo pagamento. Inconformada, após a rejeição dos declaratórios, nas razões do apelo especial, a parte recorrente sustenta que: (...) 9. A improcedência da ação resultado do provimento da apelação da Ford, pelo v. acórdão objeto deste recurso, decorreu do reconhecimento de justa causa para a rescisão do contrato de concessão entre as partes e, outrossim, da aceitação da tese segundo a qual a montadora estava desobrigada de cumprir a obrigação assumida quando das renúncias das duas outras bandeiras pelo Sr. Camilo, no sentido de faturar-lhe 180 (cento e oitenta) veículos. Por ora, a delimitação temporal (oito anos, conforme petitório e 16 meses, nos termos da r. sentença) é irrelevante, pois primeiro se há de demonstrar a obrigação em si para depois se tratar do seu respectivo prazo. 10. Sobre o ponto, segue-se a interpretação jurídica que lhe deu o v. acórdão recorrido: (...) aqueles veículos não foram enviados, tendo o réu sustentado que tal ocorreu porque o autor não efetivou o correspondente pagamento. (...) o requerido agiu no regular exercício de seu direito ao se negar a fornecer os veículos sem a contrapartida consistente no pagamento antecipado do preço, providência essa autorizada pela parte final do artigo 11 da Lei n. 6.729/1979 (grifado pelos recorrentes). 11. Esta é, na essência, a fundamentação do v. acórdão recorrido: a Ford obrigou-se a faturar 180 (cento e oitenta) veículos por mês à Autovel (primeira recorrente) mas foi lícito deixar de cumprir sua obrigação porque não houve pagamento dos mencionados veículos, na forma da sistemática estabelecida entre as partes. 12. Para justificar a licitude do descumprimento da obrigação de faturamento de 180 (cento e oitenta) veículos por mês à recorrente, o v. acórdão valeu-se da RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 419 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA previsão contida no art. 11, parte final, da Lei Renato Ferrari (devidamente por ele prequestionado): Art. 11. O pagamento do preço das mercadorias fornecidas pelo concedente não poderá ser exigido, no todo ou em parte, antes do faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição. 13. Tendo assentido com a alegação de comprometimento de faturamento de 180 veículos por mês à Autovel - circunstância de resto não negada pela própria Ford -, o v. acórdão recorrido concluiu, que o não fornecimento de veículos pela concedente à concessionária teria decorrido, outrossim, da falta de pagamento por parte da revenda. Assim, a premissa equivocada adotada pela Ford e acolhida pelo v. acórdão para legitimar a desobrigação do faturamento de veículos à Autovel é a ausência de pagamento pela concessionária. Ambos confundem “faturamento” com “fornecimento”, “remessa”, “envio” e “entrega” de veículos. 14. O art. 11 da Lei n. 6.729/1979 estabelece “que o pagamento do preço das mercadorias fornecidas pelo concedente não poderá ser exigido, no todo ou em parte, antes do faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição”, de modo que, muito claramente, a lei de regência adota como regra a inexigibilidade do pagamento (total ou parcial) antes do faturamento, e apenas excepcionalmente admite que seja antecipado à entrega/remessa/envio dos veículos. (...) 15. Para aplicar a partícula final do art. 11 da Lei Renato Ferrari e a exceção nela contemplada, o v. acórdão deixa a entender que o regime de exceção que, por lei, está circunscrito a “ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição”, regularia a relação jurídica entre as partes porque “os veículos encomendados à montadora haviam de ser pagos à vista e antecipadamente (...) pois na espécie nada indicava terem as partes convencionado adoção de um sistema diverso para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de o concessionário ser dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de proceder a tal pagamento à vista” (tanto assim” - prossegue o acórdão – “aliás, que nas encomendas posteriores àquela carta o autor sempre aludiu a pagamento prévio”). 16. O v. acórdão confunde (e nesse ponto há a violação ao direito federal infraconstitucional) o instituto jurídico da obrigação de pagar com a forma de se efetivar o pagamento. 17. Pagamento, mesmo à vista, só se exige após o faturamento, em correta interpretação do art. 11, da Lei Renato Ferrari. 18. A devolução da interpretação da aplicação da lei federal, na espécie concreta, passa pelo exame da repartição legal relativa à obrigação das partes na relação de concessão relativas, a da concedente, ao faturamento, e da 420 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA concessionária, ao pagamento, na forma do art. 476 do Código Civil, segundo o qual “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”. 19. Sintetizando o recurso: as partes acordaram o faturamento mensal de 180 veículos por mês, e eles nunca foram faturados. O v. acórdão recorrido aplicou a parte final do art. 11 da Lei Renato Ferrari legitimando a não entrega dos veículos por falta de pagamento. Contudo, interpreta equivocadamente o direito federal infraconstitucional, pois, à luz do regime obrigacional estabelecido pela lei de concessão e pelo Código Civil, uma obrigação só pode ser exigida depois de se verificar o cumprimento da outra. Mesmo que possa ser aplicado o regime de exceção do art. 11 da Lei Ferrari, sua interpretação é no sentido de que ele informa a condição de pagamento do faturamento (à vista, antecipadamente) mas não exime a montadora de faturar os veículos. (...) 21. A interpretação dada ao art. 11, parte final, da Lei Ferrari pelo v. acórdão torna impossível de ser cumprida a obrigação de pagar, mesmo à vista e antecipadamente, o “envio” e o “fornecimento” de veículos, porque eles sempre dependem do precedente e necessário faturamento. 22. Faturamento é o ato de faturar, consolidar todos os pedidos comerciais em título ou documento do qual se possa extrair o seu respectivo valor para pagamento. Só aí entram as obrigações subsequentes de remessa e envio dos veículos e de pagamento, via de regra, ou, pelo regime excepcional da parte final do art. 11, da Lei Renato Ferrari, do pagamento antecipado ou à vista e de posterior remessa e envio dos veículo. Foi este ato de faturar a que se comprometeu a recorrida e o qual jamais adimpliu. 23. À luz do art. 476, do Código Civil pede-se ao e. Superior Tribunal de Justiça que diga da interpretação e aplicação, no caso concreto, do art. 11, mesmo em sua parte final, da Lei Renato Ferrari, no sentido de aplicar o direito à espécie e definir a ordem das obrigações estabelecidas entre as partes de contrato de concessão comercial de veículos automotores. A ordem é a seguinte: 1) a concessionária formula pedidos (não há controvérsia a respeito disto nos autos); 2) a montadora fatura o pedido (no sentido de consolidar todos os pedidos comerciais em título o ou documento do qual se possa extrair o seu respectivo valor para pagamento); 3) os veículos são “remetidos” ou “enviados” (para manter a terminologia do v. acórdão) à concessionária, aí sim - e apenas agora - entrando a modalidade do pagamento (...) (fls. 3.570-3.576). Em decorrência de tanto, afirma que o acórdão violou o disposto nos artigos 476 do Código Civil e 11 da Lei Renato Ferrari, haja vista que descumpriu a ordem estabelecida entre as partes de contrato de concessão comercial de veículos automotores ao determinar o cumprimento de “prestação impossível à RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 421 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA primeira recorrente, pois, sem saber do valor da fatura, não tinha como proceder nem à vista, nem a prazo, ao respectivo pagamento” (fl. 3.576). Contrarrazões às fls. 3.588-3.595, no sentido de que não há falar “(...) em qualquer violação pelo v. acórdão recorrido ao artigo 11 da Lei n. 6.729/1979, tampouco ao artigo 476 do Código Civil, na medida em que a sistemática do contrato de concessão mantido entre as partes era clara e evidente de que os pagamentos eram efetuados sempre à vista, e por ocasião do pedido de fornecimento” (fl. 3.594). O agravo interposto contra a decisão de inadmissibilidade do especial foi provido para determinar sua inclusão em pauta (fl. 3.637). É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): 1. Ao que se tem dos autos, trata-se de ação indenizatória proposta por revendedor de veículos e seus sócios com o fim de reconhecer que, sem justa causa, a ora recorrida encerrou o contrato de concessão comercial, bem como os obrigou a pagar indenização pelos danos daí decorrentes. O pedido inicial foi julgado procedente, restando assim delineado o quadro fático incontroverso: (...) As partes mantiveram relacionamento comercial ao longo de vários anos, pelo qual a revendedora Autovel distribuiu veículos e peças fornecidos pela montadora, sob sua bandeira. O problema de relacionamento se iniciou quando o co-autor, Camilo dos Santos Neto, co-proprietário de outra concessionária Ford, a Grande Capital, sediada em Belo Horizonte-MG iniciou litígio com seu então sócio Paulo Cézar da Silva, gerando a derrocada deste empreendimento. A ré passou a negar-lhe crédito, não só na empresa que estava em litígio entre os sócios, como também nas empresas de co-propriedade de Camilo dos Santos Neto, dentre elas a Autovel, cujo outro sócio era Manoel Andrade de Souza. Visando a composição com a ré, Camilo Santos Neto e o seu ex-sócio na concessionária Grande Capital (Paulo Cézar), entabularam acordo com a empresaré pelo qual renunciavam a seus direitos sobre a bandeira em questão. 422 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Para tanto, o Gerente do Distrito Belo Horizonte da montadora-ré expediu carta ratificando os termos de proposta efetuada em reunião anteriormente havida, assumindo obrigação de compensar tais pessoas “através do aumento do faturamento de veículos, que proporcionam margens de lucro ‘maior’ para as empresas as quais elei continuavam a atuar como co-proprietórios (fís. 176). (...) O co-autor Camilo Santo Neto, em “nova correspondência (fls. 178) reafirmou seu interesse no negócio, desde que cumprida a condição do faturamento mensal de 180 (cento e oitenta veículos) durante oito anos. (...) A empresa-ré, após a efetivação da renúncia, através do mesmo Gerente do Distrito de Belo Horizonte, Sr. Wagner Mantovani, comunicou as empresas Autovel e Sanvel dando conta que haviam sido cumpridas todas as exigências formuladas para transferência da empresa Grande Capital, razão pela qual iria restabelecer o faturamento de veículos e peças (fls. 184) (...) Tal promessa não foi cumprida. (...) Ainda no final do ano de 1995 a ré deixou de fornecer veículos e peças, ara a empresa Autovel, sendo que tal situação perdurou até a subscrição do acordo de composição entre as partes. Logo no inicio de 1996. em decorrência do descumprimento por parte dos sócios da concessionária Grande Capital, a montadora Ford deixou novamente de faturar veículos para a autora Autovel. A mudança desta situação, segundo a própria ré, somente aconteceria com a renúncia por parte de Camilo e Paulo Cézar à bandeira Grande Capital, o que se efetivou em 4.11.1996 (carta juntada às fís. 183). A partir de então o faturamento de veículos à Autovel seria retomado. (...) Uma vez formulada a renúncia à franquia de Belo Horizonte, sob a promessa de linhas de crédito vantajosas e do fornecimento diferenciado de veículos com liquidez no mercado, a empresa-ré deixou de cumprir com suas promessas, não atendendo os pedidos formulados pela Autovel. (...) Não medra, outrossim, a assertiva no sentido de que os pagamentos deveriam ser prévios, mormente porque a prova documental e oral deram conta que, via de regra, a prática comercial mantida entre a Ford e as concessionários fazia-se através do pedido de faturamento de veículos com o conseqüente lançado do débito na conta corrente mantida pelo sistema denominado “Floor Plan”. Assim, para que pudesse ocorrer o creditamento em favor da ré, esta deveria atender previamente o pedido formulado, efetuando o faturamento do veículo solicitado. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 423 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Assim, tenho que a ré não cumpriu a obrigação firmada quando da subscrição da renúncia da concessão de Belo Horizonte, no sentido de compensar a Autovel, em face da renúncia ceita pelo co-autor Camilo, com o fornecimento mensal de 180 veículos Ford. (...) (fls. 3.278-3.285 - grifou-se). O Tribunal Estadual inverteu o julgamento, firme nas seguintes premissas: (...) Os autores asseveraram que sem justo motivo o réu deixou de fornecer aqueles veículos e, depois, sem prévio aviso considerou encerrada a concessão, quadro que levou a empresa a paralisar suas atividades, o que provocou prejuízos econômicos e afetou sua imagem, tendo também abalado o conceito dos sócios. (...) Como se informou na petição inicial, um dos concessionários do grupo econômico não honrou débito assumido junto à instituição financeira ligada ao réu, que com isso suspendeu a linha de crédito disponibilizada ao autor, empresa do mesmo grupo. Para solucionar a pendência os sócios concordaram em renunciar à concessão outorgada à empresa devedora e, como compensação, a montadora forneceria maior quantidade de veículos ao concessionário remanescente, isso de modo a permitir aumento dos lucros. Tal quadro ficou bem revelado pela prova, especialmente pelas cartas enviadas pela Ford ao autor (fís. 176 179), na qual ela confirmou que entregaria ao parceiro a mesma quantidade de veículos que enviada ao outro concessionário. Certo, porém, é que aqueles veículos não foram enviados, tendo o réu sustentado que tal ocorreu porque o autor não efetivou o correspondente pagamento. Ora, estava nos autos que os veículos encomendados à montadora haviam de ser pagos à vista e antecipadamente (fls. 602). Tal circunstância não foi desmentida pelo autor, que até juntou documentos que comprovavam ser aquele o proceder usual no relacionamento entre o concessionário a montadora (fls. 384 e seguintes). Certo, ainda, que para aquele fim as partes mantinham um sistema de conta-corrente na qual eram lançados os créditos e débitos decorrentes dos faturamentos, cabendo ao concessionário servir-se de recursos próprios ou obtidos no mercado financeiro, assim como dos fundos disponibilizados pelo Plano de Capitalização (fls. 603-606). Pois na espécie nada indicava terem as partes convencionado adoção de um sistema diverso para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de o concessionário ser dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de 424 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA proceder a tal pagamento à vista. (...) em carta seguinte a montadora anotou que as operações entre as empresas já podiam ter “continuidade normal” e que seria reiniciado “o faturamento de veículos” (fls. 183), indicações que evidenciavam não terem as partes alterado o regime de pagamento. (...) De todo modo, o fato é que o requerido agiu no regular exercício de seu direito ao se negar a fornecer os veículos sem a contrapartida consistente no pagamento antecipado do preço, providência autorizada pela parte final do artigo 11 da Lei n. 6.729/1979. (...) (fls. 3.541-3.545 - grifou-se). Ao que se tem, portanto, na sentença, diante da situação fática dos autos, restou decidido que “(...) Não medra, outrossim, a assertiva no ‘sentido de que os pagamentos deveriam ser prévios, (...) via de regra, a prática comercial mantida entre a Ford e as concessionários fazia-se através do pedido de faturamento de veículos com o conseqüente lançado do débito na conta corrente mantida pelo sistema denominado ‘Floor Plan’. Assim, para que pudesse ocorrer o creditamento em favor da ré, esta deveria atender previamente o pedido formulado, efetuando o faturamento do veículo solicitado” (fl. 3.285 - grifou-se). Por outro lado, diante do mesmo quadro fático, o Tribunal local entendeu que “(...) para aquele fim as partes mantinham um sistema de conta-corrente na qual eram lançados os créditos e débitos decorrentes dos faturamentos, cabendo ao concessionário servir-se de recursos próprios ou obtidos no mercado financeiro, assim como dos fundos disponibilizados pelo Plano de Capitalização (fls. 603-606). Pois na espécie nada indicava terem as partes convencionado adoção de um sistema diverso para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de o concessionário ser dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de proceder a tal pagamento à vista. (...) o fato é que o requerido agiu no regular exercício de seu direito ao se negar a fornecer os veículos sem a contrapartida consistente no pagamento antecipado do preço, providência autorizada pela parte final do artigo 11 da Lei n. 6.729/1979” (fl. 3.545 - grifou-se). Ora, no caso, ao interpretar a obrigação de cada um dos contratantes, decidiram em flagrante divergência, o que, em princípio, inviabilizaria o conhecimento do presente apelo pelos óbices das Súmulas n. 5 e n. 7 do Superior Tribunal de Justiça. Assim, seria possível imaginar que a adoção de tese diversa da esposada pelo acórdão reclamaria investigação probatória. Todavia, após leitura minudente das RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 425 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA duas decisões, verifica-se que a questão em exame é eminentemente jurídica e não exige que se adentre o campo das provas ou o debate acerca de cláusula contratual. Isso porque a questão radica unicamente na ordem para que se proceda o pagamento à vista: se antes ou depois do faturamento. Desse modo, não obstante divergirem quanto ao direito das partes, cada julgado reconhece a existência das obrigações (faturamento e pagamento) e, portanto, em comum, permitem a incidência da exceção do contrato não cumprido (art. 476 do CC/2002) (fl. 3.562). 2. Delimitado o âmbito de conhecimento do apelo extremo, passa-se à análise do mérito do inconformismo. Antes, porém, mister se faz um breve comentário sobre a legislação que rege a matéria. Em 29 de novembro de 1979 foi publicada a Lei n. 6.729 que dispôs sobre a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores de via terrestre. Na elaboração da lei, agiu o legislador com grande avanço e coragem, reconhecendo e tipificando uma das modalidades contratual mais controvertida, que surgiu com o crescimento industrial no setor automobilístico. Em conferência proferida em 1972, no Instituto dos Advogados Brasileiros - IAB, o Prof. Rubens Requião já antecipava que: O contrato de concessão de venda com exclusividade constitui, sem dúvida, uma nova técnica de comercialização, de organização do mercado distribuidor de produtos industrializados ou de alta tecnicidade, de que tanto falam os autores europeus. Através desse sistema, a empresa comercial se relaciona com a empresa industrial, de forma a manter, cada uma a integridade de sua personalidade jurídica. (...) A empresa industrial se restringe a vender, em grosso, os seus produtos para concessionários que irão revendê-los, ao retalho, sob o seu controle técnico e sob sua estreita vigilância. (Revista Forense - vol 271 - Ano 76 - p. 30-31). De fato, a Lei Renato Ferrari, como ficou conhecida, apresenta peculiaridades da concessão comercial. A mais evidente é o controle externo do concedente, ou seja, controle contratual que lhe permite planificar sua produção e zelar pela marca acompanhando o produto desde a fabricação até a comercialização. Para isso, o concessionária, por sua vez, se obriga a revender, com exclusividade, a mercadoria objeto da concessão através de sua empresa, da qual é titular independente. 426 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Além disso, outras peculiaridades devem ser destacadas: i) é um contrato mercantil entre comerciantes (concedente e concessionário) e ii) é um contrato típico, porquanto suas cláusulas e condições estão previstas e são regidas pela própria Lei n. 6.729/1979. Como se percebe, o contrato de concessão para venda de veículos automotivos é de natureza estritamente empresarial, tipificado na Lei n. 6.729/1979, que estabelece, de forma genérica, direitos e obrigações tanto do concedente quanto do concessionário, prescrevendo, ainda, o regramento mínimo a ser observado pelas pessoas jurídicas contratualmente ligadas. E como se não bastasse, o citado diploma trouxe para o então direito comercial uma inovação: a convenção das categorias econômicas e a convenção da marca como fontes supletivas de direitos e obrigações para os integrantes da relação contratual. A Convenção de Categorias Econômicas produz efeitos no tocante a terceiros, ou seja, os componentes das respectivas categorias tornam-se vinculados através de um pacto normativo. Possuindo similaridade com as convenções coletivas de trabalho, tais pactos não tinham sido, até então, previstos no âmbito comercial. Por outro lado, exatamente por se tratar de um diploma legal que tem como um de seus objetos a regulação de relações de mercado de todo um setor econômico, teve o legislador também a preocupação de estabelecer algumas permissões entre os contratantes, reconhecendo a necessidade de lhes delegar a fixação de determinadas questões, através das Convenções das Marcas. Tais instrumentos normativos (convenção de categorias econômicas e convenção da marca) têm força de lei e estão assim previstas: Art. 17. As relações objeto desta Lei serão também reguladas por convenção que, mediante solicitação do produtor ou de qualquer uma das entidades adiante indicadas, deverão ser celebradas com força de lei, entre: I - as categorias econômicas de produtores e distribuidores de veículos automotores, cada uma representada pela respectiva entidade civil ou, na falta desta, por outra entidade competente, qualquer delas sempre de âmbito nacional, designadas convenções das categorias econômicas; II - cada produtor e a respectiva rede de distribuição, esta através da entidade civil de âmbito nacional que a represente, designadas convenções da marca. § 1º Qualquer dos signatários dos atos referidos neste artigo poderá proceder ao seu registro no Cartório competente do Distrito Federal e à sua publicação RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 427 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA no Diário Oficial da União, a fim de valerem contra terceiros em todo território nacional. § 2º Independentemente de convenções, a entidade representativa da categoria econômica ou da rede de distribuição da respectiva marca poderá diligenciar a solução de dúvidas e controvérsias, no que tange às relações entre concedente e concessionário. Art. 18. Celebrar-se-ão convenções das categorias econômicas para: I - explicitar princípios e normas de interesse dos produtores e distribuidores de veículos automotores; Il - declarar a entidade civil representativa de rede de distribuição; III - resolver, por decisão arbitral, as questões que lhe forem submetidas pelo produtor e a entidade representativa da respectiva rede de distribuição; IV - disciplinar, por juízo declaratório, assuntos pertinentes às convenções da marca, por solicitação de produtor ou entidade representativa da respectiva rede de distribuição. Art. 19. Celebrar-se-ão convenções da marca para estabelecer normas e procedimentos relativos a: I - atendimento de veículos automotores em garantia ou revisão (art. 3º, inciso II); II - uso gratuito da marca do concedente (art. 3º, inciso IlI); III - inclusão na concessão de produtos lançados na sua vigência e modalidades auxiliares de venda (art. 3º § 2º, alínea a; § 3º); IV - Comercialização de outros bens e prestação de outros serviços (art. 4º, parágrafo único); V - fixação de área demarcada e distâncias mínimas, abertura de filiais e outros estabelecimentos (art. 5º, incisos I e II; § 4º); VI - venda de componentes em área demarcada diversa (art. 5º, § 3º); VII - novas concessões e condições de mercado para sua contratação ou extinção de concessão existente (art. 6º, incisos I e II); VIII - quota de veículos automotores, reajustes anuais, ajustamentos cabíveis, abrangência quanto a modalidades auxiliares de venda (art. 7º, §§ 1º, 2º, 3º e 4º) e incidência de vendas diretas (art. 15, § 2º); IX - pedidos e fornecimentos de mercadoria (art. 9º); X - estoques do concessionário (art. 10 e §§ 1º e 2º); XI - alteração de época de pagamento (art. 11); XII - cobrança de encargos sobre o preço da mercadoria (art. 13, parágrafo único); 428 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA XIII - margem de comercialização, inclusive quanto a sua alteração em casos excepecionais (art. 14 e parágrafo único), seu percentual atribuído a concessionário de domicílio do comprador (art. 5º § 2º); XIV - vendas diretas, com especificação de compradores especiais, limites das vendas pelo concedente sem mediação de concessionário, atribuição de faculdade a concessionários para venda à Administração Pública e ao Corpo Diplomático, caracterização de frotistas de veículos automotores, valor de margem de comercialização e de contraprestação de revisões, demais regras de procedimento (art. 15, § 1º); XV - regime de penalidades gradativas (art. 22, § 1º); XVI - especificação de outras reparações (art. 24, inciso IV); XVII - contratações para prestação de assistência técnica e comercialização de componentes (art. 28); XVIII - outras matérias previstas nesta Lei e as que as partes julgarem de interesse comum. (grifou-se). E o indigitado artigo 11 dita que “O pagamento do preço das mercadorias fornecidas pelo concedente não poderá ser exigido, no todo ou em parte, antes do faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição.” (grifou-se) De fato, os elementos reais, no contrato de concessão comercial, são o objeto e o preço. E com o intuito de acabar com o abuso de certas concedentes que exigiam o pagamento antecipado, passou-se a determinar que o preço somente poderá ser exigido após o faturamento, a não ser que haja ajuste de maneira diferente entre os contratantes. Posto isso, volta-ao caso em apreço. 3. Com efeito, em 1983 foi firmada a Primeira Convenção da Categoria Econômica dos Produtores e da Categoria Econômica dos Distribuidores de Veículos Automotores, entrando em vigor no dia 16 de janeiro de 1984, da qual se extrai: Capítulo XII Dos Pedidos do Distribuidor e Fornecimento do Produtor (...) Art. 2º. Em convenção de marca, serão especificados: I - os prazos para programação de encomendas do distribuidor; para apresentação do pedido do distribuidor ao produtor; para eventual recusa do RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 429 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA produtor a pedido formulado pelo distribuidor; para entrega pelo produtor das mercadorias solicitadas; II - as condições e forma de pagamento do preço da mercadoria e seus eventuais encargos; (...) (www.fenabrave.com.br - grifou-se). Em seguida, a Primeira Convenção da Marca Ford, firmada em 10 de abril de 1985, com vigência após 60 (sessenta) dias de sua assinatura, determinou: Capítulo XII Dos Pedidos do Concessionário e Fornecimento da Ford Art. 1º Os pedidos dos concessionários, integrantes da Rede de Distribuição, e os fornecimentos da Ford corresponderão à quota de veículos automotores e enquadrar-se-ão no índice de fidelidade de componentes. Art. 2º Os pedidos dos concessionários, integrantes da Rede de Distribuição, à Ford, terão sua validade sujeita a formulação por escrito, e especificação correta e completa da mercadoria, respeitados os padrões normais bem como a consignação das demais condições estabelecidas, no presente Capítulo. (...) II - Condições e Forma de Pagamento do Preço da Mercadoria e seus Eventuais Encargos: (a) o pagamento do preços das mercadorias solicitadas pelo concessionário, à Ford, e seus eventuais encargos, será realizado, sempre, pelo concessionário, à vista, contra entrega, ressalvado casos especiais decorrentes de implementação, por iniciativa da Ford, de programas especiais de comercialização, objetivando o atendimento de situações especiais de mercado, de qualquer natureza. (b) No caso de o concessionário se utilizar de planos especiais para financiamento de seu estoque, deverá manter linha de crédito adequada. (...) (fls. 873-874 - grifou-se). E ainda, no mesmo sentido, transcreve-se o Décimo Sétimo Termo de Ajuste da Alteração da Convenção de Marcas, de 26.7.1993, no qual expressamente diz: 1. Considerando que a aquisição de veículos automotores da marca Ford junto à Autolatina pelos concessionários da Rede de Distribuição Ford (concessionários) é efetivada mediante o pagamento à vista do preço estabelecido pela Autolatina com a utilização de recursos próprios dos concessionários ou provenientes de financiamento contratado, diretamente, pelos concessionários com qualquer entidade do Sistema Financeiro Nacional; (...) (fl. 956 - grifou-se). 430 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA Ao que se tem, portanto, independentemente do modo (sistema “Floor Plan”, financiamento bancário ou dinheiro), o pagamento sempre foi à vista, e isso restou incontroverso nos autos. Contudo, em nenhum momento foi resolvido que o pagamento seria efetuado antecipadamente ao faturamento. Desse modo, não existindo na Convenção de Marcas a determinação do pagamento antecipado, o preço somente poderá ser exigido após o faturamento, nos termos do artigo 11 da Lei Ferrari, em sua primeira parte. Assim, se ao longo dos anos optou a concessionária por aderir a financiamentos ou outros tipos de contratos bancários para operacionalizar a atividade empresarial, ou até mesmo com recursos próprios, só poderia ser penalizada se, após o faturamento, deixasse de cumprir sua obrigação de pagar à vista, já que a assunção dos riscos econômicos é imanente à própria relação contratual em comento. Em verdade, a concessionária acabou por assumir riscos que poderiam advir do inadimplemento contratual após o faturamento dos 180 (cento e oitenta) veículos, porém, não poderia, antes desse momento, a concedente impor penalidades se sequer restaram faturados, conforme previamente combinado. É o que dispõe o artigo 476 do Código Civil: Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. Com efeito, somente ocorrendo o descumprimento da obrigação de uma das partes, pode a outra deixar de cumprir sua parcela na obrigação, porque, em tese, poderá não receber o que lhe seria devido. Outra não é a lição de Carvalho Santos: (...) Realmente, no contrato bilateral as obrigações são equivalentes uma da outra, de forma que a parte que exige a prestação da outra, sem ter cumprido a sua, desnatura o caráter da obrigação da qual reclama pagamento, pois a encara como se fosse isolada não levando em conta a equivalência (...). (Código Civil Brasileiro Interpretado, Liv. Freitas Bastos, 12ª ed. Vol. XV, p. 237). É o que se colhe, também, de Sílvio Rodrigues: (...) A exceptio non adimpleti contractus é igualmente instrumento útil para compelir o devedor a pagar seu débito, pois a recusa de uma das partes ao cumprimento da obrigação pode surgir como elemento de compulsão a atua sobre a atitude da outra. Seu campo de ação é o terreno das convenções sinalagmáticas, pois só se pode compreendê-la nos negócios jurídicos onde RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 431 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA haja prestações recíprocas. Além de recíprocas, é mister que as prestações sejam simultâneas, pois, caso contrário, sendo diferente o momento da exigibilidade, não podem as partes invocar tal defesa (...). (Direito Civil, Saraiva, Vol. 3, 12ª ed, 1983, p. 83). Ainda, os ensinamentos de Pontes de Miranda: (...) Nos contratos bilaterais, o credor também é devedor, de modo que, se do devedor, que é credor, não quer adimplir, o devedor, que é credor, se pode recusar a adimplir. (Tratado de Direito Privado, Borsoi, 2ª ed. Vol. 26, Cap. V, § 3.122, n. 1). Outro, a propósito, não é o entendimento já firmado nesta egrégia Terceria Turma, conforme bem elucidou a ilustre Ministra Nancy Andrighi, no julgamento do REsp n. 981.750-MG, assim ementado: Direito Civil. Contratos. Rescisão. Prévia constituição em mora. Necessidade. Exceção de contrato não cumprido. Requisitos. Nulidade parcial. Manutenção do núcleo do negócio jurídico. Boa-fé objetiva. Requisitos. (...) - A exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei ou o próprio contrato não determinar a quem cabe primeiro cumprir a obrigação. Estabelecida a sucessividade do adimplemento, o contraente que deve satisfazer a prestação antes do outro não pode recusar-se a cumpri-la sob a conjectura de que este não satisfará a que lhe corre. Já aquele que detém o direito de realizar por último a prestação pode postergá-la enquanto o outro contratante não satisfizer sua própria obrigação. A recusa da parte em cumprir sua obrigação deve guardar proporcionalidade com a inadimplência do outro, não havendo de se cogitar da argüição da exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é parcial e mínimo. (...) - A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal. (...) Recurso especial a que se nega provimento (REsp n. 981.750-MG, Terceira Turma, julgado em 13.4.2010, DJe 23.4.2010 - grifou-se). A bem da verdade, o que ocorreu foi um abuso de direito, contrariando o artigo 11 da Lei Renato Ferrari, o qual, ao ser analisado juntamente com 432 Jurisprudência da TERCEIRA TURMA os artigos 17 e 19 da citada norma, legitima a condenação da ora recorrida ao pagamento dos prejuízos a que dera causa. De mais a mais, não se pode esquecer que, conforme preleciona Gladston Mamede, “exige o art. 1º da Lei das Duplicatas que o vendedor extraia uma respectiva fatura para apresentação ao comprador. Essa fatura é um documento no qual são discriminadas as mercadorias vendidas (quantidade, qualidade e valor); a fatura não se confunde com a nota fiscal das mercadorias e o próprio parágrafo 1º deixa claro ser possível que a fatura seja extraída indicando somente os números e valores das notas parciais expedidas por ocasião das vendas, despachos ou entrega das mercadorias. A fatura, vê-se, é um instrumento no qual se aterma (reduz a termo escrito) (...) É, portanto, uma conta, como coloquialmente se diz: uma relação escrita do que se entregou ou fez e o valor correspondente, que deverá ser pago pelo comprador ou pelo que se beneficiou do serviço prestado. Uma conta que se assina, reconhecendo a existência do negócio e, se não há o respectivo pagamento, do crédito correspondente.” (Títulos de Crédito, De acordo com o Novo Código Civil, Atlas, 2003, p. 302). Em vista de todo o exposto, dou provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença. É o voto. RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013 433