Terceira Turma
RECURSO ESPECIAL N. 1.203.430-PR (2010/0128596-1)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Oito Grãos Exportação e Importação de Cereais e Defensivos
Agrícolas Ltda.
Advogado: Eduardo Teixeira Silveira e outro(s)
Recorrido: Galaxy Grain Itália Spa
Advogado: Paulo Roberto Munhoz Costa Filho
EMENTA
Ação de cobrança e de indenização. Contrato de exportação de
soja. Homologação de sentença arbitral estrangeira em que apreciada
causa de pedir e pedido que abrangem o da presente ação de cobrança.
Extinção do processo sem o julgamento do mérito. Necessidade.
1. Ação de cobrança cumulada com pedido de indenização
ajuizada por sociedade brasileira exportadora em face de sociedade
italiana em razão de problemas na execução de contrato de exportação
de soja.
2. Homologação, pela Corte Especial do STJ, antes da prolação
do acórdão recorrido, de sentença arbitral estrangeira relativa às
mesmas partes com a mesma causa de pedir e o mesmo pedido,
englobando a pretensão veiculada na presente ação de cobrança.
3. Não conhecimento de parte do recurso especial com base na
Súmula n. 284 do STF.
4. Ausência de violação ao art. 535 do CPC.
5. Impossibilidade de apreciação, na presente demanda, de aspectos
relativos à regularidade do procedimento arbitral, os quais deveriam ter
sido suscitados no momento da homologação da sentença arbitral.
6. Inexistência de contrariedade ao art. 515 do CPC, porque,
com a extinção, no acórdão recorrido, do processo sem o julgamento
do mérito em razão da convenção de arbitragem, não mais pode
subsistir, como decorrência lógica, qualquer capítulo da sentença,
ainda que não impugnado.
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
7. Uma vez homologada, a sentença arbitral estrangeira adquire
plena eficácia no território nacional.
8. A obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira homologada
por esta Corte determina a impossibilidade de ser ela revista ou
modificada pelo Poder Judiciário, aplicando-se o disposto no art. 3º
da Convenção de Nova York.
9. A continuidade de processo judicial, em que veiculados
causa de pedir e pedido apreciados na sentença arbitral estrangeira
homologada, colocaria em risco a obrigatoriedade desta.
10. Recurso especial conhecido em parte e, nesta, desprovido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a)
Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva,
Nancy Andrighi, Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro
Relator.
Brasília (DF), 20 de setembro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 1º.10.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Oito Grãos Exportação e
Importação de Cereais e Defensivos Agrícolas Ltda. interpôs recurso especial contra
acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.
Na origem da controvérsia, a recorrente ajuizou ação de cobrança e de
indenização em face da sociedade italiana Galaxy Grain Itália S.P.A, com quem
mantinha contínua relação de fornecimento de soja, expressa na pactuação
de inúmeros contratos de exportação padrão Anec (Associação Nacional dos
Exportadores de Cereais).
312
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Afirmando o inadimplemento por parte da ré, ora recorrida, de um destes
contratos, a recorrente postulou o pagamento a) do preço da soja, de R$
885.152,00; b) da diferença do prazo da soja entre a data do vencimento e a do
ajuizamento da ação; c) de indenização por lucros cessantes e por danos morais.
A Galaxy Grain Italia S.P.A apresentou contestação, apontando, entre
outros questões, a existência de convenção de arbitragem entre as partes e
requerendo a suspensão do processo até a prolação de sentença arbitral pela
Fosfa (Federation of Oils, Seeds and Fats Association Ltd), que possui sede na
Inglaterra.
Na sentença, o juízo de primeiro grau julgou procedentes os pedidos da
recorrente, acolhendo, ainda, a sua medida cautelar de arresto.
Interposta apelação pela recorrida e informada a tramitação, neste Superior
Tribunal de Justiça, do seu pedido de homologação da sentença arbitral
estrangeira que fora proferida pela Fosfa, o Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná, determinou, em um primeiro momento, a suspensão do processo.
Durante a suspensão, a Corte Especial deste STJ, quando do julgamento
da Sentença Estrangeira Contestada n. 507-GB, relatoria do eminente Ministro
Gilson Dipp, deferiu o pedido de homologação formulado pela sociedade
italiana recorrida, tendo a ementa do acórdão sido redigida da seguinte forma:
Homologação de sentença arbitral estrangeira. Caução. Desnecessidade. Lei
n. 9.307/1996. Aplicação imediata. Constitucionalidade. Utilização da arbitragem
como solução de conflitos. Ausência de violação à ordem pública. Impossibilidade
de análise do mérito da relação de direito material. Ofensa ao contraditório e à
ampla defesa. Inexistência. Regra da exceção do contrato não cumprido. Fixação
da verba honorária. Art. 20, § 4º do CPC. Pedido de homologação deferido.
I - Não é exigível a prestação de caução para o requerimento de homologação
de sentença estrangeira. Precedentes do Supremo Tribunal Federal.
II - A sentença arbitral e sua homologação é regida no Brasil pela Lei n.
9.307/1996, sendo a referida Lei de aplicação imediata e constitucional, nos
moldes como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal.
III - Consoante entendimento desta Corte, não viola a ordem pública brasileira
a utilização de arbitragem como meio de solução de conflitos.
IV - O controle judicial da homologação da sentença arbitral estrangeira está
limitado aos aspectos previstos nos artigos 38 e 39 da Lei n. 9.307/1996, não
podendo ser apreciado o mérito da relação de direito material afeto ao objeto da
sentença homologanda.
Precedentes.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
313
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
V - Não resta configurada a ofensa ao contraditório e à ampla defesa se as
requeridas aderiram livremente aos contratos que continham expressamente a
cláusula compromissória, bem como tiveram amplo conhecimento da instauração
do procedimento arbitral, com a apresentação de considerações preliminares e
defesa.
VI - A Eg. Corte Especial deste Tribunal já se manifestou no sentido de que
a questão referente à discussão acerca da regra da exceção do contrato não
cumprido não tem natureza de ordem pública, não se vinculando ao conceito
de soberania nacional. Ademais, o tema refere-se especificamente ao mérito da
sentença homologanda, sendo inviável sua análise na presente via.
VII - O ato homologatório da sentença estrangeira limita-se à análise dos
seus requisitos formais. Isto significa dizer que o objeto da delibação na ação de
homologação de sentença estrangeira não se confunde com aquele do processo
que deu origem à decisão alienígena, não possuindo conteúdo econômico. É no
processo de execução, a ser instaurado após a extração da carta de sentença, que
poderá haver pretensão de cunho econômico.
VIII - Em grande parte dos processos de homologação de sentença estrangeira
– mais especificamente aos que se referem a sentença arbitral - o valor atribuído
à causa corresponde ao conteúdo econômico da sentença arbitral, geralmente
de grande monta. Assim, quando for contestada a homologação, a eventual
fixação da verba honorária em percentual sobre o valor da causa pode mostrar-se
exacerbada.
IX - Na hipótese de sentença estrangeira contestada, por não haver
condenação, a fixação da verba honorária deve ocorrer nos moldes do art. 20,
§ 4º do Código de Processo Civil, devendo ser observadas as alíneas do § 3º do
referido artigo. Ainda, consoante o entendimento desta Corte, neste caso, não
está o julgador adstrito ao percentual fixado no referido § 3º.
X - Pedido de homologação deferido.
(SEC n. 507-GB, Rel. Ministro Gilson Dipp, Corte Especial, julgado em
18.10.2006).
Diante da homologação da sentença arbitral, o Tribunal de origem
extinguiu o processo sem julgamento de mérito, in verbis:
Compra e venda de grãos mediante exportação. Negócio submetido à
arbitragem internacional, por força de compromisso arbitral. Ação de indenização
proposta pelo exportador na Justiça Estadual. Causa petendi abrangida no
debate e na decisão de arbitragem. Decisão estrangeira homologada no colendo
Superior Tribunal de Justiça. Falta de jurisdição da Justiça Estadual reconhecida.
Exegese dos artigos 267-VII e 301-XI do CPC. Extinção da ação da medida cautelar
sem resolução do mérito. Inversão da sucumbência. Sentença cassada.
314
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
I - A existência de convenção de arbitragem leva à extinção do processo
judicial sem resolução de mérito, pois, nenhuma das partes, sem a concordância
da outra, poderá arrepender-se da opção anteriormente estabelecida no sentido
de que eventuais conflitos sejam dirimidos através do juízo arbitral.
Nas suas razões de recurso especial, sustentou a recorrente, preliminarmente,
a contrariedade do art. 535 do CPC, pois não teria sido apreciada, no acórdão
recorrido, a sua alegação de que a convenção de arbitragem seria ineficaz.
Com relação ao reconhecimento, pelo Tribunal de origem, da convenção
da arbitragem e à consequente extinção do processo sem o julgamento do
mérito, afirmou a recorrente a violação dos arts. 267, VII e § 3º, 301, § 4º, 471,
515 e 516 do CPC.
Entre outros argumentos, sustentou a preclusão da questão, que teria
sido rejeitada pelo juízo de primeiro grau não na sentença, mas em decisão
interlocutória que se tornou definitiva; e a impossibilidade de ser ela conhecida
de ofício.
Para a recorrente, mesmo que fosse possível o conhecimento da questão
da convenção de arbitragem, o Tribunal de origem, ao desconstituir a sentença
sem que houvesse a impugnação de todos os seus capítulos, teria contrariado,
novamente, o art. 515 do CPC.
Afirmou a recorrente ainda a violação do art. 8º da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, por quatro motivos.
A par (i) do Tribunal de origem não haver observado o seu direito de
acesso ao Poder Judiciário, (ii) os árbitros da Fosfa não seriam independentes
e imparciais e (iii) estabelecidos previamente em lei, não lhe tendo (iv) sido
assegurada, no procedimento arbitral, garantias processuais mínimas.
Sustentou, uma vez mais, a contrariedade do art. 8º da CADH, mas
em interpretação conjunta com o art. 25 da mesma convenção, pois o Poder
Judiciário, tanto no acórdão recorrido como na homologação da sentença
arbitral, recusou-se a discutir a eficácia da convenção de arbitragem.
Por fim, afirmou a violação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996, que
estipula requisitos especiais para a eficácia da cláusula compromissória constante
de contratos de adesão, como a rubrica do aderente ao lado da cláusula, que
deve, ademais, estar em negrito.
Foram apresentadas contrarrazões pela Galaxy Grain Itália S.P.A.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
315
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O eminente Ministro Paulo Furtado admitiu o recurso especial em sede de
agravo de instrumento.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes colegas,
a controvérsia devolvida ao conhecimento desta Corte reside basicamente
na verificação da correção do acórdão recorrido que decretou a extinção
do processo judicial movido pela empresa recorrente, sem o julgamento do
mérito, considerando a convenção de arbitragem firmada entre as partes e
a homologação, pela Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça, da
sentença arbitral estrangeira proferida pela Fosfa (Federation of Oils, Seeds and
Fats Association Ltd).
Preliminarmente, não conheço parcialmente do recurso especial, com
fundamento no Enunciado da Súmula n. 284 do STF, da primeira e da quarta
alegação, relativamente à contrariedade ao art. 8º da Convenção Americana de
Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), uma vez que formuladas
de forma genérica, sem a indicação precisa dos fundamentos da irresignação
recursal.
Por outro lado, considerando que o Tribunal de origem não se omitiu
quanto à questão da eficácia da cláusula compromissória estabelecida entre as
partes, mas simplesmente afirmou a impossibilidade de ser ela conhecida na
presente ação de cobrança e de indenização, não há qualquer contrariedade ao
art. 535 do CPC.
Efetivamente, mostra-se absolutamente inviável, nesta ação, a apreciação
da questão referente à eficácia da cláusula compromissória e de outras relativas
ao procedimento arbitral, como a independência e a imparcialidade dos árbitros,
a necessidade destes serem previamente estabelecidos em lei e a observância das
garantias do contraditório e da ampla defesa.
Neste sentido, a regra do art. 5º da Convenção de Nova York sobre o
Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, de 1958,
promulgada pelo Decreto n. 4.311, de 2002, assim como as normas dos arts. 38
e 39 da Lei n. 9.307/1996, expressamente permitem a veiculação de questões
desta natureza na ação de homologação de sentença arbitral estrangeira, onde
devem ser esgrimidas essas alegações.
316
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Como, no caso, a sentença arbitral proferida pela Fosfa já foi homologada e
o recurso especial se refere a ação de cobrança e de indenização, ficam rejeitadas
as alegações relativas à regularidade do procedimento arbitral (segunda e a
terceira alegações de contrariedade ao art. 8º da Convenção, e alegação de
violação ao art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996).
Nada obstante – até mesmo porque a recorrente, com base nos art. 8º
e 25 da CADH, afirma precisamente o contrário –, é importante esclarecer
haver a Corte Especial deste Superior Tribunal de Justiça examinado a suposta
ineficácia da cláusula compromissória quando da homologação da sentença
arbitral estrangeira.
Transcrevo, assim, o seguinte trecho do voto do relator, eminente Ministro
Gilson Dipp:
Na hipótese, para a eventual análise da alegação de que o contrato objeto da
arbitragem é “de adesão”, seria necessário o exame do mérito da relação de direito
material afeto ao objeto da sentença estrangeira homologanda, o que se mostra
inviável na presente via.
Ademais, ainda que assim não fosse entendido, escorreita a manifestação da
requerente ao consignar que “No caso em concreto, os contratos foram livremente
pactuados e assinados pelas partes contratantes, constando de todos eles a cláusula
compromissória - item 16 - (...). O contrato de adesão de que cuida o art. 54 do
Código de Defesa do Consumidor se carateriza, no direito brasileiro, quando
estabelecida unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem
que o consumidor, hipossuficiente, possa discutir ou modificar o conteúdo.
Ademais, nada tem a haver o CDC com o caso em concreto, não sendo o devedor
destinatário final do produto, passível de caracterizar relação de consumo,
violando qualquer direito básico do consumidor.” (fls. 842-843) (grifou-se).
Quanto ao tema, destaca-se manifestação do Supremo Tribunal Federal em
hipótese análoga à presente, verbis:
35. Sustenta, ainda, a contestante, que o contrato é de adesão e, por isso,
a cláusula arbitral deveria estar escrita em negrito, como determina o artigo
4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996, sob pena de nulidade.
36. Embora seja esta questão ínsita ao mérito, insuscetível de apreciação
em procedimento homologatório perante este Tribunal, repondo-a. Ao
compulsar-se o documento de fls. 221-222, desponta claro que a empresa
vendedora foi livremente escolhida pela Teka, nada obstante a existência
de centenas de outros fornecedores de algodão no mercado internacional.
É evidente que o contrato de adesão não é caracterizado pelo impresso
com espaços em branco, como crê a requerida, mas pelas condições que
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
317
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
uma das partes impõe a outra e não sujeitas a discussão. Na hipótese, às
cláusulas insertas na avença dizem respeito ao local em que a mercadoria
seria entregue, à forma de conferência de peso, à extensão do seguro,
ao pagamento do frete e, finalmente, às regras de arbitragem, tudo isso
sujeito a modificações, segundo entendimento prévios. Não consta que
contrato de tal configuração jurídica seja de adesão ou que algumas de
suas cláusulas possam ser consideradas como leoninas, matéria ademais,
como disse, alheias à natureza do procedimento homologatório.
De igual forma, o laudo exarado pela Liverpool Cotton Association Ltd.
nada tem a ver com o Código Nacional de Defesa do Consumidor, para
escusar-se a devedora da obrigação assumida, por não se aplicar à empresa
importadora de produto destinado ao consumidor final, conforme prevê
o artigo 2º, que define como consumidor toda “pessoa física ou jurídica
que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. (SEC n.
5.847-IN - Gra Bretanha (Inglaterra), Relator Min. Maurício Corrêa, DJ de
17.12.1999).
Ainda antes de apreciar o mérito propriamente dito do presente recurso
especial, não há motivo para ser reconhecida a violação do art. 515 do CPC, já
que, havendo o Tribunal de origem extinto o processo em razão da convenção
de arbitragem, não poderia, como decorrência lógica, subsistir qualquer capítulo
da sentença, mesmo que não impugnados.
No que diz respeito à extinção do processo sem o julgamento do mérito,
a recorrente sustentou, em síntese, a preclusão e a possibilidade da cláusula
compromissória ser conhecida de ofício pelo Poder Judiciário, apontando a
violação de inúmeros dispositivos do Código de Processo Civil (arts. 267, VII e
§ 3º, 301, § 4º, 471, 515 e 516).
No entanto, uma vez homologada a sentença arbitral estrangeira, a extinção
do processo judicial nacional, com o mesmo objet, não se fundamenta na
simples pactuação da convenção de arbitragem – a qual pode ser renunciada por
acordo entre as partes – mas na obrigatoriedade que a sentença arbitral adquire
no território nacional.
Para ser homologada, a sentença arbitral estrangeira deve, necessariamente,
ter-se tornado obrigatória para as partes.
A este respeito, o enunciado normativo do art. 5º, § 1º, e, da Convenção de
Nova York, reproduzido no art. 38, VI, da Lei n. 9.307/1996, verbis:
1. O reconhecimento e a execução de uma sentença poderão ser indeferidos, a
pedido da parte contra a qual ela é invocada, unicamente se esta parte fornecer, à
318
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
autoridade competente onde se tenciona o reconhecimento e a execução, prova
de que:
e) a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes ou foi anulada ou
suspensa por autoridade competente do país em que, ou conforme a lei do qual,
a sentença tenha sido proferida.
No entanto, a obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira, que deve,
segundo o art. 3º da Convenção de Nova York, ser assegurada pelos Estados
partes, somente pode ser considerada pelas autoridades estatais nacionais a
partir da sua homologação, momento em que adquire, nos termos dos arts. 483
do CPC e 36 da Lei n. 9.307/1996, plena eficácia no território nacional.
A obrigatoriedade da sentença arbitral, de acordo com os arts. 18 e 31 da
a Lei n. 9.307/1996, significa, entre outras características, a impossibilidade de
ser ela revista ou modificada pelo Poder Judiciário, o que a confere, no Brasil,
o status de título executivo judicial (art. 475-N, IV e VI, do CPC), sendo
executada da mesma forma que a sentença judicial.
Na doutrina, a equiparação entre a sentença arbitral e a judicial resulta, até
mesmo, no reconhecimento da existência de coisa julgada também com relação
à sentença arbitral, como se pode notar na lição de Carlos Alberto Carmona
(Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/2006, 3º ed. rev, atual, e
ampl. Editora Atlas: São Paulo, p. 393).
Portanto, se a sentença arbitral estrangeira, depois da sua homologação,
adquire plena eficácia no território nacional e não pode, em razão da sua
obrigatoriedade, ser revista ou modificada pelo Poder Judiciário, não há como
se admitir a continuidade de processo estatal com o mesmo objeto da sentença
homologada.
Ressalto, neste aspecto, que o Tribunal de origem reconheceu, de forma
soberana (Súmula n. 7-STJ), que o pedido e a causa de pedir do processo
arbitral instaurado na Fosfa abrangiam os da presente ação de cobrança e
de indenização, não havendo, ademais, a recorrente apresentado qualquer
irresignação a este respeito no recurso especial.
Nesse contexto, a continuidade do processo judicial estatal, colocando em
perigo a obrigatoriedade da sentença arbitral estrangeira homologada, poderia
até mesmo configurar ilícito interncional, já que, como referido, o Brasil assumiu,
com a ratificação da Convenção de Nova York, o compromisso de reconhecer
como obrigatórias as sentenças arbitrais estrangeiras.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
319
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Correta, portanto, a extinção do processo sem o julgamento do mérito
determinada no acórdão recorrido.
Ante o exposto, voto por conhecer em parte da irresignação e, nesta parte,
negar provimento ao recurso especial.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.254.141-PR (2011/0078939-4)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: João Batista Neiva
Advogados: Hildegard Taggesell Giostri e outro(s)
Josemar Perussolo
Recorrido: Vilma de Lima Oliveira - espólio e outros
Representado por: Wilson Rocha de Oliveira
Advogado: Manoel Diniz Neto
EMENTA
Direito Civil. Câncer. Tratamento inadequado. Redução
das possibilidades de cura. Óbito. Imputação de culpa ao médico.
Possibilidade de aplicação da teoria da responsabilidade civil pela
perda de uma chance. Redução proporcional da indenização. Recurso
especial parcialmente provido.
1. O STJ vem enfrentando diversas hipóteses de responsabilidade
civil pela perda de uma chance em sua versão tradicional, na qual o
agente frustra à vítima uma oportunidade de ganho. Nessas situações,
há certeza quanto ao causador do dano e incerteza quanto à respectiva
extensão, o que torna aplicável o critério de ponderação característico
da referida teoria para a fixação do montante da indenização a ser
fixada. Precedentes.
2. Nas hipóteses em que se discute erro médico, a incerteza não
está no dano experimentado, notadamente nas situações em que a
320
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
vítima vem a óbito. A incerteza está na participação do médico nesse
resultado, à medida que, em princípio, o dano é causado por força da
doença, e não pela falha de tratamento.
3. Conquanto seja viva a controvérsia, sobretudo no direito
francês, acerca da aplicabilidade da teoria da responsabilidade civil
pela perda de uma chance nas situações de erro médico, é forçoso
reconhecer sua aplicabilidade. Basta, nesse sentido, notar que a chance,
em si, pode ser considerado um bem autônomo, cuja violação pode
dar lugar à indenização de seu equivalente econômico, a exemplo do
que se defende no direito americano. Prescinde-se, assim, da difícil
sustentação da teoria da causalidade proporcional.
4. Admitida a indenização pela chance perdida, o valor do
bem deve ser calculado em uma proporção sobre o prejuízo final
experimentado pela vítima. A chance, contudo, jamais pode alcançar o
valor do bem perdido. É necessária uma redução proporcional.
5. Recurso especial conhecido e provido em parte, para o fim de
reduzir a indenização fixada.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, dar parcial provimento
ao recurso especial, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os
Srs. Ministros Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas
Cueva votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 4 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 20.2.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Trata-se de recurso especial interposto
por João Batista Neiva, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
321
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
constitucional, para impugnação de acórdão exarado pelo TJ-PR no julgamento
de recurso de apelação.
Ação: de indenização por dano causado em virtude de erro médico,
ajuizada pelo espólio de Vilma de Lima Oliveira, pelo viúvo da de cujus, Wilson
Rocha de Oliveira e por seus filhos, em face do médico João Batista Neiva.
Alegam os autores na inicial que o réu tratou a falecida Vilma por força de um
câncer de seio. Durante o tratamento da doença, alegam terem sido cometidos
uma série de erros, entre os quais se destacam os seguintes: após o tratamento
inicial da doença não foi recomendada quimioterapia; a mastectomia realizada
foi parcial (quadrantectomia), quando seria recomendável mastectomia
radical; não foi transmitida à paciente orientação para não mais engravidar;
com o reaparecimento da doença, novamente o tratamento foi inadequado; o
aparecimento de metástase foi negado pelo médico; entre outras alegações.
Houve prévio ajuizamento de medida cautelar de produção antecipada de
provas, na qual o erro foi confirmado.
Em contestação, o réu negou todos os fatos, defendendo a adequação do
tratamento por ele prescrito. Impugnou o laudo pericial. Também apresentou
reconvenção, alegando que o processo conteria uma apologia ao suposto erro
médico e que a ele seria devida indenização, tanto pelo abalo psicológico, como
pelo suposto dano de imagem decorrente da acusação de erro contra ele aviada.
Sentença: julgou procedente o pedido principal e improcedente o pedido
formulado na reconvenção, condenando o réu a uma indenização de R$
120.000,00 pelo dano moral causado, mais a reparação do dano material alegado
na inicial.
A sentença foi impugnada mediante recurso de apelação interposto pelo
réu.
Acórdão: negou provimento ao recurso, aplicando à hipótese a Teoria da
Perda da Chance (fls. 1.069 a 1.093, e-STJ). Eis a ementa do julgado:
Responsabilidade civil. Erro médico. Perda de uma chance. Culpa do médico
ao escolher terapêutica contrária ao consenso da comunidade científica. Dever de
dispensar ao paciente a melhor técnica e tratamento possível. Chances objetivas
e sérias perdidas. Erro também no acompanhamento pós-operatório. Dano moral.
Indenização. Valor da indenização adequado. Apelação não provida.
Embargos de declaração: interpostos, foram rejeitados (fls. 1.123 a 1.129,
e-STJ).
322
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Recurso especial: interposto com fundamento nas alíneas a e c do
permissivo constitucional (fls. 1.137 a 1.169, e-STJ). Alega-se violação dos arts.:
(i) 131 e 458, II, do CPC, por deficiência de fundamentação do julgado; (ii) 145,
§ 2º, do CPC, por impossibilidade de acolhimento de laudo pericial elaborado
por profissional não especializado; (iii) 186 a 927 do CC/2002 pela ausência de
nexo causal que permitisse a condenação; (iv) 14, § 4º do CDC que impede a
responsabilização objetiva de profissionais liberais.
Admissibilidade: o recurso não foi admitido na origem, por decisão
exarada pelo i. Des. Fernando de Oliveira, 1º Vice-Presidente do TJ-RS, à
época, motivando a interposição do Ag n. 1.317.114-PR, a que dei provimento
para melhor apreciação da controvérsia.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a lide a estabelecer,
entre outras questões de natureza processual, se é razoável o critério adotado
pelo TJ-PR ao apurar, com fundamento na Teoria da Perda da Chance, a
responsabilidade civil de um médico oncologista em hipótese em que a perícia
apurou a inadequação do tratamento de câncer por ele adotado em paciente que,
posteriormente, veio a óbito.
I - Ausência de motivação do acórdão recorrido. Violação dos arts. 131 e
458, II, do CPC.
O recorrente afirma que o acórdão recorrido é nulo por falta de
fundamentação, já que acolheu “decisão do Juízo Monocrático, apesar de
reconhecer que a sentença de 1º Grau obrou em equívoco ao deixar de indicar
os motivos que levaram a prova pericial a ser rejeitada”.
Contudo, não foi isso que ocorreu. O que o acórdão fez foi declarar válida
a sentença que, para a rejeição da prova testemunhal, reportou-se ao parecer
exarado pelo MP, na origem. A ressalva feita pelo acórdão foi de que teria sido
mais adequado, ainda que não fosse imprescindível, que o juízo monocrático
tivesse reproduzido os argumentos do referido parecer. Mas o próprio Tribunal,
para extirpar quaisquer dúvidas a respeito, reforça sua argumentação observando,
em raciocínio escorreito, que “para as questões essencialmente técnicas o Código
de Processo Civil admite um único meio de prova: a pericial (arts. 400, II, 420,
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
323
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I), sem que as testemunhas, por mais conhecimentos que possuam na área,
possam substituir o perito”.
Com isso, a fundamentação do julgado tornou-se completa e não há,
portanto, violação dos arts. 131 e 458, II, do CPC.
II - A necessidade de especialização do perito. Violação do art. 145, § 2º,
do CPC.
Para o recorrente o TJ-PR violou o art. 145, § 2º, do CPC, ao permitir
que a perícia, relativa aos procedimentos a serem adotados para o tratamento
de Câncer de Mama, fosse conduzida, não por oncologista, mas por médico
com especialização em Ginecologia, Obstetrícia e Mastologia. Para o recorrente
haveria, inclusive, uma incoerência séria no julgado, porquanto o TJ-PR afirma
no acórdão, referindo-se à decisão quanto à mastectomia realizada, que “somente
um médico com especialização na área poderia (...) dizer se o tumor tinha 2, 5
ou mais centímetros”. Contudo, para a realização da perícia ele admite que
um médico sem tal especialização dê a palavra final sobre a adequação do
procedimento.
A matéria, contudo, não está prequestionada, ao menos com o enfoque
pretendido pelo recorrente. Com efeito, ao julgar os embargos de declaração, o
TJ-PR ponderou que a suposta falta de qualificação do perito não poderia ser
impugnada naquela sede porquanto a questão “foi anteriormente resolvida em
primeiro e em segundo grau - por este Tribunal no Agravo de Instrumento n.
281.212-2/00 (fls. 542 e seguintes) -, desfavoravelmente ao réu, reputando-se
então sem vícios a prova pericial e dispensável a realização de uma segunda
perícia”.
Portanto, ao recorrente de pouco serviria impugnar diretamente o mérito
da suposta violação à regra do art. 145, § 2º, do CPC, que não foi abordado. Ele
deveria ter impugnado o acórdão com o fundamento na suposta inexistência
de coisa julgada acerca da matéria, que pudesse impedir sua reapreciação,
solicitando, inclusive, conforme o caso, a nulidade do acórdão recorrido por
violação do art. 535 do CPC. Essa providência não foi tomada, o que leva à
rejeição deste capítulo do recurso, seja por força do óbice do Enunciado n. 283
da Súmula-STF, já que a decisão se sustenta por fundamento inatacado, seja por
ausência de prequestionamento, atraindo o óbice dos Enunciados n. 282 e n.
356-STF, bem como n. 211 da Súmula-STJ.
324
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
III - Da indenização fixada. Perda da chance. Nexo causal.
III.a) A aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance na seara médica.
O recorrente afirma que sua condenação não poderia ter sido fundamentada
exclusivamente na Teoria da Perda da Chance porquanto restaria ausente o
indispensável nexo causal, como pressuposto do dever de indenizar (arts. 186
e 927 do CC/2002). Com efeito, pondera que o próprio acórdão recorrido
admite que, nas hipóteses de perda da chance, existe a possibilidade de o evento
danoso se verificar independentemente da conduta do agente a quem se imputa
a culpa. Esse fato impossibilitaria a condenação, já que o dano só é indenizável,
nos termos da lei civil, se consubstanciar efeito direto e imediato da conduta do
agente.
A argumentação é bem desenvolvida e dá, novamente, a esta Corte, a
oportunidade de discutir a aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance, mas
aqui sob um novo enfoque: até o momento, tem sido relativamente comum
enfrentar recursos especiais em que essa teoria é invocada em situações nas
quais há o desaparecimento de uma oportunidade de ganho em favor do lesado,
a chamada perda da chance clássica (Fernando Noronha, Direito das Obrigações:
fundamentos do direito das obrigações - introdução à responsabilidade civil, Vol.
1 - São Paulo: Saraiva, 2003, p. 669) como ocorreu nos julgamentos: do
EREsp n. 825.037-DF, no qual a Corte Especial do STJ reconheceu o direito
à indenização em favor de um candidato impedido de participar de Concurso
Público; do REsp n. 821.004-MG (3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de
24.9.2010), em que deferiu indenização a candidato a vereador derrotado por
reduzida margem de votos, contra quem se plantara notícia falsa às vésperas da
eleição; do REsp n. 788.459-BA (4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves,
DJ de 13.3.2006), que tratou da injusta desclassificação de um concorrente em
programa televisivo de perguntas e respostas, entre outros.
Nas hipóteses de Perda da Chance Clássica, há sempre certeza quanto à
autoria do fato que frustrou a oportunidade, e incerteza quanto à existência ou
à extensão dos danos decorrentes desse fato. Assim, por exemplo, quando uma
pessoa impede outra de participar de um concurso de perguntas e respostas,
não há dúvidas de quem causou o impedimento, e a única incerteza diz respeito
a qual seria o resultado do certame e que benefícios seriam auferidos pela
vítima caso dele participasse até o fim. Por isso a indenização é fixada mediante
uma redução percentual do ganho que, em princípio, poderia ser auferido pelo
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
325
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
prejudicado. Assim, se este tinha 60% de chances de sucesso caso tivesse
aproveitado a oportunidade perdida, a indenização será fixada em 60% sobre o
valor total dos hipotéticos lucros cessantes.
Na hipótese dos autos, contudo, a oportunidade perdida é de um tratamento
de saúde que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente
à morte. Aqui, a extensão do dano já está definida, e o que resta saber é se esse
dano teve como concausa a conduta do réu. A incerteza, portanto, não está na
consequência. Por isso ganha relevo a alegação da ausência de nexo causal. A
conduta do médico não provocou a doença que levou ao óbito mas, mantidas as
conclusões do acórdão quanto às provas dos autos, apenas frustrou a oportunidade
de uma cura incerta. Essa circunstância suscita novos questionamentos acerca da
Teoria da Perda da Chance, porquanto a coloca em confronto mais claro com a
regra do art. 403 do CC/2002, que veda a indenização de danos indiretamente
gerados pela conduta do réu.
Exatamente por esse motivo, a doutrina especializada vem mencionando
que a Teoria da Perda da Chance nas hipóteses de erro médico não vem sendo
pacificamente aceita no direito comparado. Tanto Fernando Noronha (op. cit.),
como Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance:
uma análise de direito comparado e brasileiro, São Paulo: Atlas, p. 222 e ss.) dão
conta da existência de viva controvérsia no direito francês acerca da matéria.
Assim, a partir do trabalho pioneiro de René Savatier, que em primeiro lugar
enxergou a diferença aqui apontada, diversos autores vêm negando a aplicação
da teoria da perda da chance à seara médica.
A título exemplificativo, Jean Penneau, autor de obra de grande envergadura
sobre o tema (La responsabilité du medecin. Paris: Dalloz, 1992, apud Fernando
Noronha, op. cit., 678), afirma que as situações de certeza quanto ao resultado e
incerteza quanto à causa não podem ser dirimidas mediante a simples redução
proporcional da indenização. Em vez disso, a incerteza quanto à causa deve
ser resolvida em um processo regular de produção de provas, de modo que, se
comprovado o nexo causal entre a conduta do médico e o prejuízo causado ao
paciente, este lhe deverá pagar uma indenização integral, não uma indenização
proporcional ao grau de plausibilidade da oportunidade perdida. Se não ficar
comprovada a culpa, por outro lado, indenização nenhuma será devida. Para o
erro médico, portanto, o critério seria de tudo ou nada.
Referido autor pondera, inclusive, que a jurisprudência deveria “cessar
de se lançar em acrobacias intelectuais - que são a porta aberta a todos os
326
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
arbítrios - nos termos das quais se pretende indenizar um inapreensível prejuízo
intermediário”.
Para os defensores dessa corrente, a dúvida quanto ao nexo causal deveria
levar ao julgamento de improcedência do pedido. Apenas nas hipóteses em que
tal nexo estivesse plenamente demonstrado, poderia haver um julgamento de
procedência da pretensão do lesado, com reparação integral do dano. Autorizar
que se aplique a teoria da perda da chance para processos aleatórios já concluídos
implicaria o “paraíso de juízes indecisos (incertains), [como] dizia o decano
Savatier”. A indenização parcial, portanto, demonstraria uma confusão do
julgador, entre “o grau de pretensa chance perdida com o grau de sua própria
dúvida sobre a causalidade”. No mesmo sentido é a opinião de Yvone LambertFaivre (Droit du dammage corporel. Systèmes d’indemnisation. 3ª ed., Paris: Dallos,
1996, apud Fernando Magalhães, op. loc. cit.)
Essas críticas, conquanto robustas, não justificam a exclusão da doutrina
da perda da chance para a seara médica. A dificuldade de trato da questão está
justamente em que os defensores da diferenciação entre a perda da chance
clássica e a perda da chance no ramo médico situam o fator aleatório, de modo
equivocado, num processo de mitigação do nexo causal. Sem demonstração clara
de que um determinado dano decorreu, no todo ou em parte, da conduta de
um agente, é de fato muito difícil admitir que esse agente seja condenado à sua
reparação. Admiti-lo implicaria romper com o princípio da “conditio sine qua
non”, que é pressuposto inafastável da responsabilidade civil nos sistemas de
matriz romano-germânica.
A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil
pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação
do nexo causal. A perda da chance, em verdade, consubstancia uma modalidade
autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em que não se puder
apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas situações, o agente
não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter contribuído, mas
apenas pela chance de que ele privou a paciente. Com isso, resolve-se, de maneira
eficiente, toda a perplexidade que a apuração do nexo causal pode suscitar.
Para a compreensão dessa forma de pensar a matéria, pode-se mencionar a
explanação de Rafael Pettefi da Silva (op. Cit., p. 71 e ss) – conquanto esse autor
não advogue a independência chance, como dano autônomo:
A disciplina do “Law and Economics”, tão difundida na América do Norte e
comprometida a analisar os efeitos econômicos das instituições jurídicas, passou
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
327
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a considerar o aumento de riscos e a perda de chances como “commodities”,
avaliando-os como danos tangíveis, merecedores de grande importância
conceitual.
Note-se que essa abertura epistemológica, em relação ao reconhecimento das
chances perdidas como danos indenizáveis, é observada como algo indissociável
da evolução tecnológica.
(...)
Apesar das críticas ao baixo caráter de certeza que ainda envolvem algumas
estatísticas – responsáveis pelo dito popular que estas se constituiriam em mais
uma forma de mentira – acredita-se que, de acordo com o paradigma solidarista,
a mesma argumentação utilizada para respaldar a reparação dos danos morais
poderia ser aqui utilizada: “a condição de impossibilidade matematicamente
exata da avaliação só pode ser tomada em benefício da vítima e não em seu
prejuízo”.
Por intermédio dos argumentos expostos, grande parte da doutrina assevera
que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção
de nexo de causalidade alternativa para ser validada. Apenas uma maior abertura
conceitual em relação aos danos indenizáveis seria absolutamente suficiente para
a aplicação da teoria da perda de uma chance nos diversos ordenamentos jurídicos.
Ainda segundo esse autor, cabe ao Professor Joseph King Jr., no direito
americano, o esboço dos fundamentos para a admissão da responsabilidade civil
pela perda da chance, como uma modalidade autônoma de dano. Nas palavras de
Rafael Peteffi da Silva:
A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como
um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer
utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os Tribunais
têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois
a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da
vantagem esperada pela vítima.
Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado
como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro
de abordagem que os Tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça
advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela
perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão ‘tudo ou nada’ da
causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa
um dano reparável.” (p. 75 e 76).
O valor dessa doutrina, em que pesem todas as críticas a que foi submetida,
está em que, a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo,
328
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta
do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida,
na hipótese deste processo) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver
lhe foi subtraída, e isso basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar
esse dano, ou seja, apurar qual o valor econômico da chance perdida.
Esta relatora não desconhece as graves críticas que esta posição pode
suscitar. Os doutrinadores que têm se dedicado ao estudo do tema manifestam
justa preocupação com o “risco sistemático” inerente ao tema, receosos quanto
à ampliação das possibilidades de relativização do nexo causal. Nesse sentido,
podem-se citar as seguintes considerações de Rafael Peteffi sobre o assunto:
(...) Saliente-se, conforme já exposto no Capítulo 2, a enorme preocupação que
alguns juristas franceses, como René Savatier e Jean Penneau, demonstravam
em relação ao “perigo sistemático” engendrado pelas chances perdidas avaliadas
após o completo desenrolar do processo aleatório.
Como a certeza absoluta em termos de nexo de causalidade é muito raramente
encontrada, não mais seriam observadas condenações integrais dos danos
sofridos pela vítima. O juiz deixaria de perquirir quem realmente causou o dano,
para saber qual a percentagem de chances que o agente tirou da vítima.
De fato, a regra do tudo ou nada estaria sepultada, pois as sentenças de
improcedência também ficariam cada vez mais raras, tendo em vista que a dúvida
sobre o nexo de causalidade passaria a gerar uma reparação parcial do prejuízo,
“medida pelo grau de incerteza que cerca o livre convencimento do juiz”. É por
esta razão que René Savatier declarava que a teoria da perda de uma chance
aplicada à seara médica seria o paraíso do juiz indeciso.
(...)
Importante observar que, em França, ao aludido “perigo sistemático”
representado pela perda da chance de cura é dada tanta importância que, exceto
pela célebre manifestação de Jacques Boré, nenhum outro jurista advoga pela
aplicação da causalidade parcial. Portanto, mais uma vez se verifica a defesa da
fórmula “tudo ou nada” quando se trata de causalidade: ou a vítima resta sem
qualquer reparação, já que o nexo causal não foi provado; ou se trabalha com
presunções de causalidade, tentando alcançar a reparação do dano final.
É forçoso reconhecer, por outro lado, que a necessidade de se prevenir
o referido “risco sistemático” não pode levar à completa negação da teoria
para as hipóteses de erro médico, porquanto fazê-lo também poderia gerar
resultados catastróficos. Invocando o direito norte-americano, Rafael Peteffi faz,
em contraponto aos temores manifestados pela doutrina francesa, as seguintes
observações:
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
329
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em defesa da adoção da teoria da perda de uma chance na seara médica,
tem-se como principal argumento o caráter pedagógico (deterrence) que deve
desempenhar a responsabilidade civil, isto é, o dever de indenizar o dano causado
deve desmotivar o agente, bem como toda a sociedade, de cometer novamente
o mesmo ato ofensivo.
A não-adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais
da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com
poucas chances de vida. Esta situação é facilmente explicável, pois enorme seria
a dificuldade de provar o nexo de causalidade certo e direto entre a falha médica
ou hospitalar e a morte do paciente, já que este, muito provavelmente, morreria
pela evolução endógena da doença, mesmo com uma conduta médica exemplar.
Assim, a falha médica não se caracterizaria como uma condição necessária para o
surgimento do dano.
Em Mckellips v. Saint Francis Hosp e em Roberson v. Counselman, a Suprema
Corte de Oklahoma e a Suprema Corte do Kansas, respectivamente, absorveram
bem a matéria, afirmando, ao fundamentar as deciões, que os profissionais da
saúde estariam totalmente livres de sua responsabilidade, mesmo em se tratando
do erro mais grosseiro, se o paciente apresentasse poucas chances de viver.
A Suprema Corte do Arizona, em Thompson v. Sun City Community Hosp.,
argumentou que, quando um médico, por falha sua, retira trinta por cento (30%)
de chances de sobrevivência de um grupo de cem pacientes, que efetivamente
morrem, é “estatisticamente irrefutável” que alguns desses pacientes faleceram
devido à falha médica. Entretanto, o repúdio à teoria da perda de uma chance faz
com que nenhum desses pacientes possa requerer qualquer tipo de indenização,
já que é impossível provar o nexo de causalidade entre a morte do paciente e a
falha médica, decretando a irresponsabilidade absoluta dos médicos.
Há, por derradeiro, uma última crítica à qualificação da perda da chance
como direito autônomo à reparação civil. Trata-se da seguinte objeção, formulada
por Rafael Peteffi (op. Cit., p. 106 e 107):
A necessidade de arquitetar presunções para provar o nexo de causalidade
entre a conduta do réu e o dano final ocorre exatamente pela impossibilidade
de se admitir um dano autônomo e independente consubstanciado nas chances
perdidas. Essa impossibilidade é cabalmente verificada pelo já comentado
exercício de argumentação, efetuado por autores franceses e norte-americanos.
Nesse sentido, se um médico comete um terrível erro técnico, aumentando o
risco de morte de uma paciente (ou diminuindo as suas chances de viver) e,
mesmo assim, o paciente recupera a sua saúde perfeita, a maioria da doutrina
acredita que não há dano passível de reparação. Portanto, esse “prejuízo distinto
do benefício esperado” parece ser difícil de imaginar nos casos em que o processo
aleatório chegou até o final, já que se apresenta dependente da definitiva perda
da vantagem esperada pela vítima. (p. 106 e 107).
330
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Essa crítica, contudo, também não se sustenta. No exemplo fornecido por
Peteffi não há efetiva perda da chance quanto ao resultado-morte. Se o processo
causal chegou a seu fim e o paciente viveu, não obstante a falha médica, não se
pode dizer que o profissional de saúde tenha lhe subtraído uma chance qualquer.
Por questões afeitas à compleição física da vítima ou por quaisquer outros
fatores independentes da conduta médica, as chances de sobrevivência daquele
paciente sempre foram integrais.
Vale lembrar que a oportunidade de obter um resultado só pode se
considerar frustrada se esse resultado não é atingido por outro modo. Seria, para
utilizar um exemplo mais simples, de “perda de chance clássica”, o mesmo que
discutir a responsabilização de uma pessoa que impediu outra de realizar uma
prova de concurso, na hipótese em que essa prova tenha sido posteriormente
anulada e repetida.
Talvez no exemplo fornecido por Peteffi seja possível dizer que a
correta atuação do profissional de saúde possibilitasse à vítima um processo
de convalescência mais confortável ou mais veloz. Mas nessa situação,
poderíamos individualizar um bem jurídico autônomo lesado pela omissão do
médico - justamente a chance de gozar de maior qualidade de vida durante a
convalescência.
Vê-se, portanto, que, nesta como em tantas outras questões mais sensíveis
do direito, sempre haverá muito debate. Contudo, sopesados os argumentos
de defesa de cada uma das posições em conflito, a que melhores soluções
apresenta é a consideração da perda da chance como bem jurídico autônomo,
mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil médica. Todas as perplexidades
que a aplicação dessa teoria possa suscitar resolvem-se, assim, no âmbito da
quantificação do dano.
III.b) O preenchimento dos pressupostos da aplicação da Teoria da
Perda da Chance na hipótese dos autos e a respectiva consequência.
III.b.1) Os pressupostos
Definida a aplicabilidade da Teoria da Perda da Chance para a solução
da hipótese dos autos, resta analisar, por um lado, o preenchimento de seus
pressupostos, e por outro, a adequação das consequências extraídas a partir
desses pressupostos pelo TJ-PR. Essa atividade, tendo em vista o óbice do
Enunciado n. 7 da Súmula-STJ, tem necessariamente de partir das conclusões,
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
331
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
quanto à prova, a que chegou o acórdão recorrido. Ou seja: não pode ser
discutido nesta sede o fato, já reconhecido na origem, de que o tratamento
dispensado à de cujus foi inadequado.
Importante ressaltar que esta discussão não pode ser obstada por uma
suposta falta de legitimidade das partes para pleitear o direito em causa. É
verdadeiro, por um lado, que a oportunidade de cura ou de gozar de uma sobrevida
mais confortável é direito personalíssimo da paciente. Seu falecimento, portanto,
não implica a transferência desse direito aos herdeiros. Contudo, a oportunidade
de gozar a companhia de um ente querido, com ele convivendo livre de sua
doença, ou mesmo de acompanha-lo num processo melhor de convalescência,
é direito autônomo de cada uma das pessoas que com o “de cujus” mantinham
uma relação de afeto. O dano, portanto, causado pela morte, afeta a todos em
sua esfera individual, cada qual por um motivo específico, como sói ocorrer em
todas as situações em que se pleiteia indenização por força do falecimento de
um ente querido.
Estabelecido esse pressuposto, para poder aplicar a Teoria da Perda da
Chance, necessário se faz observar a presença: (i) de uma chance concreta,
real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou sofrer um
prejuízo; (ii) que a ação ou omissão do defensor tenha nexo causal com a perda
da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo se
estabeleça diretamente com o objeto final); (iii) atentar para o fato de que o
dano não é o benefício perdido, porque este é sempre hipotético.
Analisando esses fatores, o TJ-PR, inicialmente, pondera que na decisão
acerca de um tratamento médico a adotar, o grau de subjetividade sempre é muito
grande, dificultando o estabelecimento de uma certeza acerca do agravamento
do risco a que estava submetido a paciente. Contudo, o caminho trilhado é o de
que o procedimento correto, por assim dizer, deve ser estabelecido com os olhos
voltados ao grau de desenvolvimento de uma determinada área científica. Vale dizer:
ainda que, em termos absolutos, uma determinada prescrição não seja a mais
eficiente, ela será considerada adequada se corresponder ao que se reputa ser a melhor
técnica, no estágio atual de desenvolvimento da ciência. Não tendo sido adotada essa
técnica, o médico responsável terá obrado com culpa no tratamento da paciente.
Da leitura do acórdão recorrido pode-se extrair que: (i) a chance de melhor
qualidade de vida ou até a cura da paciente era real e concreta; (ii) que há uma
relação direta entre o tratamento inadequado e a perda de oportunidade de
melhor qualidade de vida ou até mesmo de obter a cura da doença; (iii) o fato
332
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
de a paciente ter gerado filho não rompe o referido nexo de causalidade, entre o
tratamento inadequado e a chance perdida; (iv) o dano final está provado, com a
morte da vítima.
Analisando a prova dos autos, o TJ-PR concluiu que o procedimento
adotado pelo réu não foi adequado porque, em primeiro lugar, a melhor decisão
acerca da cirurgia a ser feita para tratamento de câncer de mama depende
essencialmente do tamanho do tumor. Na hipótese dos autos, segundo se
apurou na perícia, não era possível afirmar com certeza qual o tamanho do
tumor que vitimava a paciente, de modo que a sua classificação deveria ter sido
estabelecida, necessariamente, como de tamanho não definido. Para hipóteses de
tumores de tamanho não definido, a comunidade médica, segundo se apurou na
perícia, jamais recomenda a cirurgia de quadrantectomia, mas a mastectomia
radical.
Em segundo lugar, ficou estabelecido que a recomendação de quimioterapia
e a radioterapia feita pelo réu, antes e depois da cirurgia, não observou o
protocolo mais adequado, segundo a literatura médica atualizada, sendo que “na
doença neoplásica a escolha do tratamento ideal se baseia em dados estatísticos
mas, mesmo com o tratamento ideal, existem casos com evolução desfavorável.
A diferença é que o Requerido optou por oferecer um tratamento em que a
chance de êxito ficou diminuída” (fl. 1.087, e-STJ).
Em terceiro lugar, “houve também culpa no acompanhamento póscirúrgico”, uma vez que “o réu deveria ter solicitado outros exames” (fl. 1.088,
e-STJ), como cintilografia óssea, mamografia, ultrassonografia de abdômen,
raio-x de tórax. O médico, contudo, não seguiu esse procedimento.
Em quarto lugar, as chances de melhora ou mesmo de cura foram
consideradas, pela análise do conjunto fático-probatório dos autos, sérias e
objetivas pelo TJ-PR, uma vez que a perícia estabeleceu que “se o tratamento
dispensado fosse a mastectomia radical seguida de quimioterapia e radioterapia
nas dosagens recomendadas, as metástases poderiam ter surgido, mas com
probabilidade menor que com o tratamento utilizado” (fl. 1.086, e-STJ). A
vítima, assim, teria “chances de sobreviver, de cura, ou ao menos de uma sobrevida
menos sofrida, mais digna, se tomadas algumas medidas embora tardiamente
após a recidiva” (fl. 1.088, e-STJ). Nesse sentido, podem ser destacadas os
seguintes trechos do laudo pericial, inteiramente acolhido pelo TJ-PR:
“11 – Se o requerido tivesse adotado outro tratamento desde o início, a
metástase teria aparecido? Quais as probabilidades?
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
333
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Resposta: Poderia ter aparecido. Mas, com uma probabilidade menor do que
com o tratamento que foi utilizado.
12 – Se a requerida tivesse recebido o tratamento específico para a doença
quando dos primeiros exames, quando apareceram as dores e as primeiras lesões,
qual a probabilidade de cura?
Resposta: Probabilidade de cura muito baixa, porém, com melhor qualidade
de vida.
13 – Após doze sessões de quimioterapia, com 03 diferentes drogas, os exames
ainda revelam a doença em evolução. Se outro fosse o tratamento, quais as
chaces de ter sido controlada a doença?
Resposta: Depois do aparecimento das metástases, as chances de controlar a
doença são poucas e difíceis.
14 – Queira o Sr. Perito prestar outros esclarecimentos que entender
necessários.
Resposta: Sim, deveriam ter sido realizadas mamografias.
(fls. 266 a 268, e-STJ).
Disso decorre que o pedido de dano moral formulado e deferido pelo TJPR teve como causa de pedir a imperícia médica que resultou numa verdadeira
“via crucis” para a vítima, especialmente no período de aparecimento da
metástase e a sua morte. Há, portanto, a frustração de uma chance e a obrigação
de indenizá-la.
III.b.2) As consequências - o valor da indenização
Como dito acima, a principal consequência da reparação civil pela perda
de uma chance é o estabelecimento da indenização para esse bem jurídico
autônomo em uma proporção, aplicada sobre o dano final experimentado.
O TJ-PR não desconhece esse fato. Contudo, não o aplica, ponderando
que “para a indenização do dano moral” (...) “esse não pode ser o único
critério a ser considerado pelo Juiz, exatamente pela característica do dano
extrapatrimonial que o tornam de difícil mensuração”. Segundo o acórdão
recorrido, as peculiaridades da reparação por dano moral determinam que o
“o número de chances perdidas passa a ser mais um critério dentre outros” (fl.
1.091, e-STJ).
O caminho escolhido pelo Tribunal foi o de valorar, no momento de
fixar a indenização, não apenas a função ressarcitória do dano moral, mas
334
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
notadamente sua função punitiva e dissuasória, tomando em consideração (i)
a reprovabilidade da conduta; (ii) a intensidade e duração do sofrimento; (iii)
a capacidade econômica do ofensor e (iv) as condições pessoais do ofendido.
Com isso, teceu considerações acerca de cada um desses elementos, deixando
de ponderar a redução proporcional da indenização que a Teoria da Perda da
Chance recomenda.
Essa parcela do acórdão é impugnada no recurso especial com fundamento
em que a Perda da Chance leva a uma indenização “não pelos danos sofridos,
mas sim por uma chance eventualmente perdida”, de modo que seria imperiosa
a redução da reparação fixada, sobretudo considerando que “não só a paciente
viveu mais 7 anos (quando o tempo de sobrevida previsto era de 5 anos), bem
como - durante esse tempo - engravidou e deu à luz uma criança sadia, tendo
sua gestação transcorrido da maneira mais normal possível, o que é o mais claro
indicativo de uma vida com qualidade e normalidade”.
Assiste razão à recorrente nesse ponto. Conforme pondera o i. Des. Miguel
Kfouri Neto (que, vale frisar, é autor de obra de extrema envergadura acerca do
tema - “Responsabilidade Civil do Médico”, Ed. Revista dos Tribunais, 1994,
7ª edição: 2010), em acórdão citado no recurso especial (TJ-PR, 8ª Câmara
Cível, EIC n. 0275929-5/01), “em se tratando da perda de uma chance, a
indenização jamais poderia corresponder ao prejuízo final, mas tão-somente à
chance perdida”.
Assim, ainda que se leve em consideração, para além da reparação devida
à vítima, também o indispensável efeito dissuasório da condenação por dano
moral, o montante fixado tem de observar a redução proporcional inerente a essa
modalidade de responsabilidade civil. O acórdão recorrido não reconheceu ao
médico responsabilidade integral pela morte da paciente. Não pode, assim, fixar
reparação integral, merecendo reparo nesta sede.
É, portanto, necessário dar solução à causa aplicando o direito à espécie,
conforme determina o art. 257 do RI-STJ.
Na hipótese dos autos, há diversos momentos do tratamento em que
podem ser identificadas falhas do médico responsável.
No momento inicial, quando do diagnóstico do câncer, a primeira falha
está na realização de uma quadrantectomia, em lugar de uma mastectomia
radical. Se esse equívoco não tivesse sido cometido, talvez o tumor tivesse sido,
de pronto, extirpado. A segunda falha, segundo se apurou em perícia, está no
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
335
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
protocolo de sessões de quimioterapia. Se, além da mastectomia radical, esse
protocolo tivesse sido seguido, é possível afirmar que as chances de cura fossem
bem maiores. A terceira falha está na falta de orientação à paciente quanto aos
riscos de gravidez. E a quarta falha está no protocolo seguido após a recidiva da
doença.
Nesse sentido, o Perito Judicial apurou que “não se pode afirmar que a
existência de metástases foi pela conduta utilizada pelo recorrido, pois em
qualquer tratamento, mesmo nos mais preconizados, estas podem ocorrer,
embora numa incidência menor” (fl. 272, e-STJ). Todavia, também não se
pode negar que a perícia estabeleceu, categoricamente, que se o procedimento
correto tivesse sido adotado, haveria possibilidade de cura para a paciente (fl.
274, ‘ e-STJ) e que “na doença neoplásica a escolha de tratamento ideal se baseia
em dados estatísticos, mas, mesmo com o tratamento ideal, existem casos com
evolução desfavorável. A diferença é que o Requerido optou por oferecer um
tratamento, em que a chance de êxito ficou diminuída”.
Ponderando-se todas as circunstâncias da hipótese sob julgamento, é
adequado dizer que as chances perdidas, por força da atuação do médico, têm
conteúdo econômico equivalente a 80% do valor fixado pelo acórdão recorrido,
a título de indenização final. Relembro, contudo, que essa redução se reporta
aos termos da sentença, na qual a indenização foi fixada, de modo que a correção
monetária deve incidir desde a data de sua publicação.
Forte nessas razões, conheço do recurso especial e lhe dou parcial
provimento, exclusivamente para reduzir em 20% a indenização fixada pela
sentença, mantida pelo TJ-PR, com correção monetária a partir da publicação
da sentença.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Sr. Presidente, também
parabenizo a Sra. Ministra Nancy Andrighi pelo cuidadoso trabalho de pesquisa
e de fundamentação.
A chance perdida é um meio jurídico autônomo que não se confunde com
o resultado que normalmente se indeniza quando há dano moral, por exemplo,
e ela é aferível, sim, pelo princípio da causalidade, mas uma causalidade que
utiliza já a estatística para aferir a probabilidade daquela chance perdida.
336
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No caso, de fato, houve imperícia. A fundamentação das decisões, na
origem, é impecável. Todos os requisitos da teoria da perda de uma chance
foram observados e graduados, de modo que, também no que tange à fixação
da indenização, concordo com a eminente Relatora por entender que ali se
encontram algumas características que agravam a conduta do médico. Os
procedimentos corriqueiros não foram adotados por ele e houve algumas
circunstâncias que demonstram que ele poderia ter informado à paciente mais
adequadamente sobre aqueles riscos e sobre as possibilidades de sucesso que ela
teria, caso adotasse uma outra terapêutica.
Então, concordo inteiramente com a eminente Relatora.
RECURSO ESPECIAL N. 1.278.627-SC (2011/0219273-0)
Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino
Recorrente: Moisés Luís Branco de Moraes
Advogado: Isabel Cristina Telles Borges e outro(s)
Recorrido: Vilson de Souza e outro
Advogado: Vito Antônio Depin
Interessado: Ana Paula Bett Hinckel
EMENTA
Recurso especial. Civil e Processo Civil. Responsabilidade civil
por ato lícito. Acidente automobilístico. Estado de necessidade.
Julgamento antecipado. Alegação de cerceamento de defesa.
Inocorrência de nulidade da sentença. Lesões graves. Incapacidade
permanente. Pensão vitalícia. Multa do artigo 538 do CPC. Intuito
prequestionador. Súmula n. 98-STJ.
1. Acidente de trânsito ocorrido em estrada federal consistente
na colisão de um automóvel com uma motocicleta, que trafegava em
sua mão de direção.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
337
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2. Alegação do motorista do automóvel de ter agido em estado
de necessidade, pois teve a sua frente cortada por outro veículo,
obrigando-o a invadir a outra pista da estrada.
3. Irrelevância da alegação, mostrando-se correto o julgamento
antecipado da lide por se tratar de hipótese de responsabilidade civil
por ato lícito prevista nos artigos 929 e 930 do Código Civil.
4. O estado de necessidade não afasta a responsabilidade civil
do agente, quando o dono da coisa atingida ou a pessoa lesada pelo
evento danoso não for culpado pela situação de perigo.
5. A prova pleiteada pelo recorrente somente seria relevante para
efeito de ação de regresso contra o terceiro causador da situação de
perigo (art. 930 do CC/2002). Ausência de cerceamento de defesa.
6. Condutor e passageiro da motocicleta que restaram com lesões
gravíssimas, resultando na amputação da pena esquerda de ambos.
7. A pensão por incapacidade permanente decorrente de lesão
corporal é vitalícia, não havendo o limitador da expectativa de vida.
Doutrina e jurisprudência acerca da questão.
8. Embargos de declaração opostos com intuito prequestionador,
é de ser afastada a multa do artigo 538 do CPC, nos termos da Súmula
n. 98-STJ.
9. Recurso especial parcialmente provido apenas para afastar a multa
do art. 538 do CPC.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto
do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas
Cueva, Nancy Andrighi e Sidnei Beneti votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Relator
DJe 4.2.2013
338
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino: Trata-se de recurso especial
interposto por Moisés Luís Branco de Moraes contra acórdão da 1ª Câmara
Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina que, nos autos
de sua apelação cível, negou-lhe provimento ao seu recurso de apelação e
deu provimento ao recurso adesivo dos recorridos, para majorar o quantum
indenizatório a que fora condenado pelos danos causados em acidente
automobilístico.
Na origem, foi proposta pelos ora recorridos ação indenizatória por acidente
automobilístico ocorrido em 20.12.2003, quando os autores trafegavam pela BR
470, na cidade de Pouso Redondo, nas proximidades do Km 11 ao Km 201, por
volta das 11:15 h, vindo a ser abalroados lateralmente pelo veículo da requerida
Ana Paula Bett Hinckel, conduzido pelo requerido Moisés Luís Brando de
Moraes, que, trafegando em sentido contrário e já desgovernado, invadiu a pista
contrária e colidiu contra a motocicleta em que estavam os requerentes.
Na inicial, requereram a procedência da presente demanda, com a
condenação do réus ao pagamento de indenização por danos materiais, estéticos
e morais, bem como de pensão alimentícia mensal.
Na contestação do réu, ora recorrente, suscitou preliminar de inépcia da
inicial. No mérito, alegou que não colaborou para a ocorrência do sinistro em
apreço, pois trafegava em velocidade moderada e totalmente compatível com o
local, inclusive porque vários outros veículos transitavam a sua frente, impedindo
o alcance de velocidade excessiva. Acrescentou, entretanto, que foi surpreendido
por um automóvel Pálio que, de inopino, adentrou do acostamento para a pista,
obrigando-o réu a desviar a fim de não ser atingido, oportunidade em que seu
automóvel rodopiou pela estrada e veio a colidir com a motocicleta em que se
encontravam os autores.
Na sentença, em julgamento antecipado, foram parcialmente acolhidos
os pedidos da inicial, extinguindo o feito, sem resolução de mérito, contra
Ana Paula Bett Hinkel, por sua ilegitimidade passiva. Quanto ao réu, ora
recorrente, Moisés Luís Branco de Moraes, foi condenado a colocação de
prótese substitutiva da perna amputada dos dois autores, ao pagamento de
pensão vitalícia pela perda de capacidade laboral, a indenizar danos emergentes,
morais e estéticos, além das despesas processuais e honorários advocatícios do
patrono dos requerentes.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
339
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Irresignado, o requerido interpôs recurso de apelação cível sustentando,
preliminarmente, a ocorrência de cerceamento de defesa ante o julgamento
antecipado da lide. No mérito, asseverou novamente ter ocorrido o acidente
em estado de necessidade, tendo em vista que se deparou com um veículo
adentrando abruptamente na pista de rolamento a sua frente, razão pela qual
levou seu veículo à esquerda perdendo o controle da direção e ocasionando o
acidente.
No julgamento do recurso, o Tribunal de origem, no acórdão recorrido,
negou provimento à apelação do réu, afastando as preliminares suscitadas,
destacando a não ocorrência do cerceamento de defesa, pois a matéria versada
na presente ação era exclusivamente de direito, plenamente solucionável por
meio da prova documental. No mérito, reconheceu a obrigação de indenizar do
recorrente, asseverando que o Boletim de Ocorrência tem força probante juris
tantum, bem como reconheceu ter o apelante violado o disposto no artigo 28
do Código de Trânsito Brasileiro, por haver perdido o domínio de seu veículo.
Ao final, reconheceu que o estado de necessidade alegado pelo apelante não
afastaria sua responsabilidade pelo acidente, apenas, garantiria a ele o direito de
regresso contra quem deu causa ao acidente.
De outro lado, o Tribunal de origem, deu provimento ao recurso adesivo
dos autores para majorar o quantum indenizatório, com disposições de ofício
quanto ao termo inicial da correção monetária e dos juros moratórios, além de
condenar o demandado, também, nos honorários advocatícios do patrono da
parte excluída da lide (có-ré).
Nas suas razões do recurso especial, o recorrente sustentou que o acórdão
recorrido violou os artigos 128, 264, 293, 330, 331, 458, II, 459, 460, 474 e
535 do Código de Processo Civil, além de apontar divergência jurisprudencial.
Alegou nulidade da sentença, contradição no acórdão recorrido e cerceamento
de defesa face o julgamento antecipado da lide. Apontou a necessidade de
limitação da pensão a que fora condenado até quando as vítimas completarem
65 anos. Por fim, postulou o afastamento da multa do artigo 538 do Código
de Processo Civil, em razão do intuito prequestionador de seus embargos de
declaração. Postulou conhecimento e provimento do recurso.
Presentes as contrarrazões, o recurso especial foi admitido na origem.
É o relatório.
340
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Eminentes Colegas,
o presente recurso especial merece parcial provimento, tão somente para afastar
a multa do artigo 538 do CPC, em face do disposto no Enunciado Sumular n.
98 desta Corte Superior.
Trata-se de ação indenizatória por acidente automobilístico ocorrido em
20.12.2003, quando os autores, ora recorridos, trafegavam pela BR 470, no
Município de Pouso Redondo-SC, nas proximidades do Km 11 ao Km 201, por
volta das 11:15 h, tendo sido abalroados lateralmente pelo veículo da requerida
Ana Paula Bett Hinckel, conduzido pelo requerido Moises Luís Brando de
Moraes, que, trafegando em sentido contrário e já desgovernado, invadiu a pista
contrária e colidiu contra a motocicleta em que estavam os requerentes.
No acórdão recorrido, restou assim delineado o acidente que envolveu as
partes, verbis:
(...) analisando os elementos probatórios trazidos aos autos, verifica-se que, no
dia 20.12.2003, por volta das 11:15 horas, a motocicleta dos autores, ao trafegar
pela BR 470 (Km 11 ao 201), teve sua trajetória interceptada pelo veículo de
propriedade do requerido que invadiu a pista contrária, ocasionando o sinistro e
os diversos danos no veículo e corpos dos requerentes.
Partindo-se da situação fática descrita no Boletim de Ocorrência elaborado
pela autoridade policial (fls. 27-28), infere-se ter o requerido (veículo 01) invadido
a pista contrária de direção abalroando lateralmente a motocicleta dos autores
(veículo 02) que trafegava no sentido oposto, verbis:
Conforme levantamento no local, o veículo 01 ao contornar a curva
invadiu a faixa contrária abalroando lateralmente o veículo 02, que seguia
em sentido oposto. Ato contínuo, o veículo 01 chocou-se com o barranco,
vindo a capotar no acostamento.
Em julgamento antecipado, a sentença acolheu parcialmente os pedidos
da petição inicial, extinguindo o feito contra Ana Paula Bett Hinkel, por sua
ilegitimidade passiva. Quanto ao réu, ora recorrente, Moisés Luís Branco de
Moraes, condenou-o a colocação de prótese substitutiva da perna amputada dos
dois autores, ao pagamento de pensão vitalícia pela perda de capacidade laboral,
a indenizar danos emergentes, morais e estéticos, além das despesas processuais
e honorários advocatícios do patrono dos requerentes.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
341
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O Tribunal de origem, no acórdão recorrido, negou provimento à apelação
do réu e deu provimento ao recurso adesivo dos autores para majorar o quantum
indenizatório.
No presente recurso especial, em síntese, o recorrente concentra seu apelo
nobre em três pontos principais: (i) o julgamento antecipado teria gerado
contradição no acórdão recorrido, nulidade da sentença e cerceamento de
defesa; (ii) dissídio jurisprudencial quando ao limite etário da pensão aos 65
anos das vítimas; (iii) o afastamento da multa do artigo 538 do CPC.
Passo a analise de cada um dos pontos controvertidos:
I. Julgamento antecipado, cerceamento de defesa, contradição do aresto
recorrido, nulidade da sentença e estado de necessidade.
O principal ponto da insurgência recursal dirige-se contra o julgamento
antecipado da lide, alegando o recorrente, desde sua apelação, a nulidade
da sentença por cerceamento de defesa. Aponta ainda contradição na
fundamentação do acórdão recorrido, pois, julgando antecipadamente a lide, lhe
fora imputada culpa pelo acidente ocorrido, sem que lhe tenha sido oportunizada
a produção da prova de ter agido em estado de necessidade.
Sem razão a pretensão recursal.
Os recorridos, na peça exordial, aduziram que transitavam regularmente,
em sua mão de direção, pela BR 470, no trecho que vai do km 11 ao Km 201,
no Município de Pouso Redondo, no Estado de Santa Catarina, quando foram
abalroados pelo veículo conduzido pelo segundo réu, o qual, por sua vez, estaria
trafegando desgovernadamente, ou seja, em alta velocidade e na contramão.
O recorrente, por sua vez, sustentou, desde a sua contestação, que vinha
transitando em condições compatíveis com a pista, atingindo uma velocidade
máxima de 50 Km/h. Alegou, porém, que foi surpreendido por veículo de
terceira pessoa, que adentrou do acostamento para a via de forma brusca,
obrigando-o a realizar manobra defensiva, desviando-se para o lado esquerdo.
Como a pista encontrava-se molhada, por conta do tempo chuvoso, sua manobra
teria acarretado a derrapagem do automóvel, razão pela qual, segundo alega, veio
a colidir com os autores. Sustenta ter agido ao abrigo da excludente do estado
de necessidade.
A leitura das duas versões apresentadas pelas partes para explicar o grave
acidente de trânsito denota que os relatos são convergentes no sentido de que
342
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
a colisão ocorreu sobre a pista de rolamento em que trafegava a motocicleta,
estando o automóvel na contramão.
A alegação apenas do recorrente é de que agiu em estado de necessidade,
pois um terceiro automóvel invadiu a sua pista de rolamento, obrigando-o a fazer
uma manobra brusca para a esquerda, o que foi determinante para o acidente.
Do acórdão recorrido, colhe-se precisamente a versão do recorrente acerca
do estado de necessidade alegado, verbis:
Entretanto, viu-se surpreendido por um automóvel Pálio que, de inopino,
adentrou do acostamento para a pista, obrigando o réu a desviar-se para a direita
a fim de não ser atingido, oportunidade em que seu automóvel rodopiou pela
estrada e veio a colidir com a motocicleta em que se encontravam os autores,
tendo em vista que se encontravam em uma curva, com pista molhada por causa
da chuva, e o veículo do autor trafegava exatamente sobre a faixa divisória das
pistas.
Nesse contexto, mostrou-se correto o julgamento antecipado da lide
procedido pelo juízo de primeiro grau, que não importou em cerceamento de
defesa.
Ocorre que a produção de provas em audiência em nada alteraria a
conclusão final do processo mesmo que fosse comprovado ter o réu agido ao
abrigo da excludente do estado de necessidade.
O presente caso amolda-se com perfeição na hipótese de responsabilidade
civil por ato lícito insculpida no art. 929 do Código Civil, verbis:
Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188,
não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo
que sofreram.
O art. 188 do Código Civil regula o estado de necessidade nos seguintes
termos, verbis:
Art. 188. Não constituem ato ilícito:
I - (...);
II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de
remover perigo iminente.
Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as
circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites
do indispensável para a remoção do perigo.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
343
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
E o art. 930 do Código Civil complementa com a regulamentação da ação
de regresso nessas situações nos seguintes termos, verbis:
Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de
terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância
que tiver ressarcido ao lesado.
Portanto, de acordo com o nosso Código Civil, quando o agente, ao abrigo
do estado de necessidade, em face de perigo criado por terceiro, causar dano
a outrem, persiste a obrigação de indenizar, tendo apenas direito de regresso
contra aquele que criou a situação de perigo.
Por isso, a prova pretendida pelo recorrente seria relevante apenas para
efeito de ação de regresso contra o causador da situação de perigo (art. 930 do
CC), o que não foi veiculado no presente processo.
Relembre-se que a responsabilidade civil por ato lícito, no âmbito do
Direito Privado, constitui hipótese particularmente interessante em nosso
sistema jurídico, pois o ato praticado em estado de necessidade, embora não seja
ilícito, não afasta o dever de indenizar do seu autor em relação ao dono da coisa
atingida ou a pessoa lesada pelo evento danoso, quando esta não for o culpado
pela criação da situação de perigo.
Na doutrina, Aguiar Dias explica o seguinte:
O estado de necessidade, ato lícito, por sua natureza, não afasta, só por isso,
a obrigação de indenizar. O caráter da responsabilidade civil, resultante do ato
praticado em estado de necessidade, é objetivo e não subjetivo (AGUIAR DIAS, José
de. Da Responsabilidade Civil, 4.ª ed., Rio de Janeiro, Forense, 1960, II, p. 884.). (grifos
meus)
Sérgio Cavalieri Filho, em seu Programa de Responsabilidade Civil (São
Paulo: Atlas, 2007), anota o seguinte (p. 19):
O que há de peculiar nesta matéria é que o Código Civil, em seu art. 929,
não obstante configurado o estado de necessidade, manda indenizar o dono
da coisa, pelo prejuízo que sofreu, se não for culpado do perigo, assegurado ao
autor do dano o direito de regresso contra o terceiro que culposamente causou
o perigo (art. 930). A mesma solução alvitra o Código, no parágrafo único do
art. 930, contra aquele em defesa de quem se danificou a coisa. São hipóteses
de indenização por ato lícito, que tem por fundamento a equidade, e não a
responsabilidade, como veremos no item 148.5.
344
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
E Cavalieri Filho aprofunda a análise, revisando a doutrina nacional e
estrangeira acerca do tema, além de jurisprudência desta Corte, complementando
com sua opinião acerca do tema (p. 519):
Entendemos que a aparente contradição entre o ato praticado em estado de
necessidade (ato lícito) e a indenização do dano correspondente decorre da idéia
enraizada de que toda e qualquer reparação do dano tem por causa o ato ilícito.
Mas isso é um equívoco, porque o ressarcimento pode se dar a título diverso da
responsabilidade civil, isto é, sem que o agente tenha violado qualquer dever
jurídico. Muitas são as hipóteses em que a lei concede um direito, mas condiciona
o seu exercício, apesar de legítimo, à reparação de eventuais prejuízos sofridos
por terceiros. Assim, por exemplo, na desapropriação, na servidão e no estado
de necessidade. Em casos tais, não há, a rigor, que se falar em responsabilidade
civil porque, como ressaltado, o agente não viola qualquer dever jurídico; antes,
pelo contrário, age conforme o Direito. Há, sim, reparação do dano fundada
na equidade. Essa idéia de equidade é bem mais expressiva no Código Civil
português, cujo artigo 339º, II, tem a seguinte redação: “O autor da destruição
ou do dano é, todavia, obrigado a indenizar o lesado pelo prejuízo sofrido,
se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em qualquer outro caso, o
Tribunal pode fixar uma indenização equitativa e condenar nela não só o agente,
como aqueles que tiraram proveito do ato ou contribuíram para o estado de
necessidade.”
Arnaldo Rizzardo cita entendimento do extinto Tribunal de Alçada do
Estado do Rio Grande do Sul, verbis:
Se alguém, para livrar-se do perigo iminente, causa dano aos bens de outrem,
por certo não pratica ato ilícito. Nem por isso, porém, desobriga-se perante o
prejudicado. Daí do artigo 1.520 do CC (Código Civil de 1916). O autor imediato
do dano solve a obrigação e fica com ação regressiva contra o terceiro culpado,
para dele haver a importância que tiver ressarcido ao dono da coisa.
Rizzardo anota ainda, em sua obra, que é unânime o entendimento de que
há obrigação de indenizar, se o dono da coisa lesada não for culpado do perigo,
exemplificando da seguinte forma, verbis:
Nesta ordem, se para evitar um acidente, o motorista corta bruscamente a
frente de outro veículo, responderá pelos danos, pois não é justo que a vítima
suporte os prejuízos físicos e materiais a pretexto da ausência de culpa por
parte do autor direto do evento. Esta procurará acionar o provocador do seu ato,
chamando-o a juízo posteriormente, para que indenize não somente a soma
entregue à vítima, mas também a lesão por ele suportada em seu veículo.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
345
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
O fundamento para essa opção legislativa é a equidade, aplicando-se a
chamada teoria do sacrifício, que é explicada pelo constitucionalista português
José Joaquim Gomes Canotilho em obra específica acerca da responsabilidade
civil por atos lícitos, que foi a sua Dissertação de Mestrado em Coimbra
(CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do estado
por actos lícitos. Coimbra: Almedina, 1974).
Antes de analisar a responsabilidade civil do Estado propriamente dita,
ele faz uma ampla análise da responsabilidade civil por atos lícitos prevista no
Código Civil português de 1966, cujas regras são muito semelhantes com as
estabelecidas tanto no Código Civil de 1916, como no Código Civil de 2002.
Canotilho analisa a teoria do sacrifício, explicando que, diante de uma
colisão entre os direitos da vítima e os do autor do dano, estando os dois na
faixa de licitude, o ordenamento jurídico opta por proteger o mais inocente dos
interesses em conflito, sacrificando o outro.
Na jurisprudência desta Corte, localizei os seguintes precedentes acerca do tema:
Responsabilidade civil. Acidente de transito. Colisão com veiculo regularmente
estacionado. Fato de terceiro. “Fechada”. Estado de necessidade. Licitude da
conduta do causador do dano. Ausencia de culpa demonstrada. Circunstancia
que não afasta a obrigação reparatoria (arts. 160, II e 1.520, CC. Recurso conhecido
e provido.
I - O motorista que, ao desviar de “fechada” provocada por terceiro, vem a
colidir com automóvel que se encontra regularmente estacionado responde
perante o proprietario deste pelos danos causados, não sendo elisiva da obrigação
indenizatória a circunstância de ter agido em estado de necessidade.
II - Em casos tais, ao agente causador do dano assiste tão-somente direito de
regresso contra o terceiro que deu causa a situação de perigo. (REsp n. 12.840-RJ,
Rel. Min. Salvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 22.2.1994,
DJ 28.3.1994, p. 6.324).
Responsabilidade civil. Legitima defesa. “Aberratio ictus”. O agente que, estando
em situação de legitima defesa, causa ofensa a terceiro, por erro na execução,
responde pela indenização do dano, se provada no juizo civel a sua culpa. Negado
esse fato pela instância ordinária, descabe condenar o reu a indenizar o dano
sofrido pela vitima. Arts. 1.540 e 159 do CC. Recurso não conhecido. (REsp n.
152.030-DF, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em
25.3.1998, DJ 22.6.1998, p. 93).
Responsabilidade civil. Acidente automobilístico. Situação de perigo criada por
terceiro. Obrigação do causador direto do dano de indenizar, com ação regressiva
contra o terceiro. Aplicação do art. 1.520 do Código Civil. - Na sistemática do direito
346
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
brasileiro, o ocasionador direto do dano responde pela reparação a que faz
jus a vítima, ficando com ação regressiva contra o terceiro que deu origem à
manobra determinante do evento lesivo. Recurso especial conhecido e provido
parcialmente. (REsp n. 127.747-CE, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta
Turma, julgado em 10.8.1999, DJ 25.10.1999, p. 85).
Assim, a prova pretendida pelo recorrente, em razão de sua alegação de
ter agido em estado de necessidade, era efetivamente desnecessária, tendo sido
corretamente indeferida pelo juízo de primeiro grau em decisão confirmada
pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Apenas seria relevante para efeito da ação de regresso prevista no artigo
930 do Código Civil, que não é, porém, objeto do presente processo.
Por fim, não restou demonstrada a similitude fática entre os paradigmas
apontados e o acórdão recorrido quanto ao cerceamento de defesa. Nas situações
versadas pelos paradigmas, não houve discussão acerca do cerceamento de
defesa relativo à alegação de estado de necessidade como mecanismo de defesa.
Ausente, assim, similitude entre os casos confrontados, não cabendo, portanto, o
conhecimento, neste ponto, do recurso especial.
II. Dissídio jurisprudencial quanto a limitação da pensão a expectativa
de vida das vítimas (65 anos anos de idade)
O segundo ponto da insurgência recursal dirige-se contra a não fixação do
termo final da pensão na data em que as vítimas completarem 65 anos de idade.
Quanto ao limite da pensão a que fora condenado o recorrente, assim
asseverou o acórdão recorrido, verbis:
Tocante ao limite de pensionamento, tratando-se de pensão mensal
substitutiva de renda devida aos próprios acidentados sobreviventes do sinistro
não ha falar em limite de tempo baseado em presunções acerca do provável
tempo de vida das vítimas, pois os danos são perenes e a incapacidade laborativa
assolará os requerentes até os últimos dias de suas vidas.
Insurge-se, assim, o recorrente quanto a vitaliciedade da pensão a que fora
condenado, postulando a sua limitação na data em que as vítimas completarem
65 anos de idade.
Não assiste razão ao recorrente.
Não se considera para efeito de concessão da pensão a expectativa de vida
do ofendido, como ocorre no homicídio (art. 948, II, do CC), pois, mesmo
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
347
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
após atingir essa idade-limite (65 ou 70 anos de idade), continuará o ofendido
necessitando da pensão e talvez de modo ainda mais agudo, em função da
velhice e do incremento das despesas com saúde.
A periodicidade da pensão leva em conta a duração temporal da
incapacidade da vítima, considerando o momento de consolidação de suas
lesões, podendo ser temporária ou permanente.
A incapacidade permanente, caracterizada quando, consolidadas as lesões,
restaram sequelas definitivas, que reduzem ou suprimem a capacidade laborativa
do ofendido, segue o disposto no artigo 950 do Código Civil, verbis:
Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o
seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização,
além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença,
incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou,
ou da depreciação que ele sofreu.
A pensão correspondente à incapacidade permanente, regulada pelo artigo
950 do CC/2002 é vitalícia, conforme já explicava Clóvis Beviláqua, analisando
a regra correspondente do Código Civil de 1916 (art. 1.539), verbis:
Se a lesão corporal tem consequências permanentes de tal ordem que a
capacidade de trabalho do ofendido se anule ou diminua depois da cura, é justo
que o ofensor lhe dê uma compensação correspondente, e esta melhormente se
obterá por meio de uma pensão vitalícia (BEVILÁQUA, 1952, v. 5, p. 322. Comentários
ao art. 1.539 do CC1916).
Na mesma linha, orientam-se os precedentes desta Corte:
Responsabilidade civil. Acidente no trabalho. Dano moral. Dolo. Pensão. Limite
de tempo. 65 anos. 1. A indenização do dano moral não depende de ser doloso o
ato que lhe deu causa. 2. A pensão devida a vitima do acidente não esta limitada
aos seus 65 anos de idade. Recurso não conhecido. (REsp n. 130.206-PR, Rel.
Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 11.11.1997, DJ
15.12.1997, p. 66.420).
Responsabilidade civil. Passageiro de ônibus. Fratura no braço esquerdo.
Pensão vitalícia. Constituição de capital. Honorários de advogado.
- A vítima de acidente, se viva, há de ser pensionada enquanto viver, não se lhe
aplicando o limite de idade para a pensão. Precedentes.
- Não perfectibilização do dissenso pretoriano no tocante à necessidade de
constituição de capital para assegurar o pagamento das parcelas vincendas.
348
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Solvabilidade, ou não, da empresa permissionária de serviço público a ser
verificada em cada caso. Jurisprudência do STJ no sentido de que, em regra, tal
exigência deve ser atendida.
- Os honorários advocatícios de sucumbência não incidem sobre o capital
constituído para assegurar o pagamento das prestações vincendas da pensão
(REsps n. 109.675-RJ e n. 327.382-RJ).
Recurso especial conhecido, em parte, e provido.
(REsp n. 280.391-RJ, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado
em 15.6.2004, DJ 27.9.2004, p. 362).
Portanto, não procede o pedido de limitação do pensionamento até a idade
provável de sobrevida das vítimas se elas ainda estão vivas.
Sendo o pensionamento devido à própria vítima do acidente, deve ser pago
em caráter vitalício.
Enfim, a pretensão esbarra no óbice da Súmula n. 83-STJ, pois o acórdão
recorrido está em plena consonância com o entendimento desta Corte Superior.
III. Multa do artigo 538 do Código de Processo Civil.
Por fim, melhor sorte socorre ao recorrente quanto a multa de 1% a que
fora condenado por terem sido considerados protelatórios os seus embargos
declaratórios.
Os embargos de declaração interpostos na origem, diferentemente
do apontado no acórdão recorrido, tiveram caráter prequestionador, e não
protelatório, incidindo, assim, na espécie o Enunciado da Súmula n. 98-STJ.
Ante todo exposto, voto no sentido de dar parcial provimento ao recurso especial
para o fim específico de afastamento da multa do artigo 538 do CPC.
É o voto.
RECURSO ESPECIAL N. 1.281.093-SP (2011/0201685-2)
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
349
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Recorrido: D H M E S
Advogado: Fabiana de Souza Ramos
Interessado: L B V
Interessado: C C V
EMENTA
Civil. Processual Civil. Recurso especial. União homoafetiva.
Pedido de adoção unilateral. Possibilidade. Análise sobre a existência
de vantagens para a adotanda.
I. Recurso especial calcado em pedido de adoção unilateral de
menor, deduzido pela companheira da mãe biológica da adotanda,
no qual se afirma que a criança é fruto de planejamento do casal,
que já vivia em união estável, e acordaram na inseminação artificial
heteróloga, por doador desconhecido, em C.C.V.
II. Debate que tem raiz em pedido de adoção unilateral - que
ocorre dentro de uma relação familiar qualquer, onde preexista
um vínculo biológico, e o adotante queira se somar ao ascendente
biológico nos cuidados com a criança –, mas que se aplica também à
adoção conjunta – onde não existe nenhum vínculo biológico entre os
adotantes e o adotado.
III. A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas, às
uniões estáveis heteroafetivas, afirmada pelo STF (ADI n. 4.277-DF,
Rel. Min. Ayres Britto), trouxe como corolário, a extensão automática
àquelas, das prerrogativas já outorgadas aos companheiros dentro de
uma união estável tradicional, o que torna o pedido de adoção por
casal homoafetivo, legalmente viável.
IV. Se determinada situação é possível ao extrato heterossexual
da população brasileira, também o é à fração homossexual, assexual
ou transexual, e todos os demais grupos representativos de minorias
de qualquer natureza que são abraçados, em igualdade de condições,
pelos mesmos direitos e se submetem, de igual forma, às restrições
ou exigências da mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio
da igualdade, resguardar-se de quaisquer conteúdos discriminatórios.
V. Apesar de evidente a possibilidade jurídica do pedido, o
pedido de adoção ainda se submete à norma-princípio fixada no art.
350
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
43 do ECA, segundo a qual “a adoção será deferida quando apresentar
reais vantagens para o adotando”.
VI. Estudos feitos no âmbito da Psicologia afirmam que
pesquisas “(...) têm demonstrado que os filhos de pais ou mães
homossexuais não apresentam comprometimento e problemas em seu
desenvolvimento psicossocial quando comparados com filhos de pais
e mães heterossexuais. O ambiente familiar sustentado pelas famílias
homo e heterossexuais para o bom desenvolvimento psicossocial
das crianças parece ser o mesmo”. (FARIAS, Mariana de Oliveira
e MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi in: Adoção por homossexuais: a
família homoparental sob o olhar da Psicologia jurídica. Curitiba:
Juruá, 2009, pp. 75-76).
VII. O avanço na percepção e alcance dos direitos da
personalidade, em linha inclusiva, que equipara, em status jurídico,
grupos minoritários como os de orientação homoafetiva – ou aqueles
que têm disforia de gênero – aos heterossexuais, traz como corolário
necessário a adequação de todo o ordenamento infraconstitucional
para possibilitar, de um lado, o mais amplo sistema de proteção ao
menor – aqui traduzido pela ampliação do leque de possibilidades à
adoção – e, de outro, a extirpação dos últimos resquícios de preconceito
jurídico – tirado da conclusão de que casais homoafetivos gozam dos
mesmos direitos e deveres daqueles heteroafetivos.
VII. A confluência de elementos tecnicos e fáticos, tirados da
i) óbvia cidadania integral dos adotantes; ii) da ausência de prejuízo
comprovado para os adotados e; iii) da evidente necessidade de se
aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em
virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem
discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um
lar, reafirmam o posicionamento adotado pelo Tribunal de origem,
quanto à possibilidade jurídica e conveniência do deferimento do
pleito de adoção unilateral.
Recurso especial não provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
351
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
taquigráficas constantes dos autos, prosseguindo no julgamento, após o votovista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, por unanimidade, negar provimento ao
recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros
Sidnei Beneti, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva votaram
com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministra Nancy Andrighi, Relatora
DJe 4.2.2013
RELATÓRIO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, com fundamento no art. 105, III,
a, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-SP.
Ação: de adoção unilateral da menor L.B.V., ajuizada por D.H.M. e S.
– recorrida – pela qual busca a adoção da filha biológica de sua companheira –
C.C.V., com quem mantém união estável.
Sentença: concedeu a adoção unilateral de L.B.V. a D.H.M. e S., com
fundamento nos artigos 6º, 42 § 2º e 43, todos da Lei n. 8.069/1990.
Acórdão: o TJ-SP negou provimento ao recurso interposto pelo Ministério
Público Estadual, em acórdão assim ementado:
União homoafetiva. Menor concebida por meio de inseminação artificial.
Acolhimento do pedido de adoção, vantajoso à menor e permissivo do exercício
digno dos direitos e deveres decorrentes da instituição familiar. Inteligência dos
artigos 6º, 42 § 2º e 43, todos do Estatuto da Criança e do Adolescente e do artigo
5º, caput, da Constituição Federal. Sentença mantida. Recurso improvido.
Recurso especial: alega violação dos artigos 6º, 42 § 2º e 43 do Estatuto
da Criança e do Adolescente, arts. 1.626, parágrafo único e 1.723 do CC-2002.
Sustenta que é “juridicamente impossível a adoção de criança ou
adolescente por duas pessoas do mesmo sexo” (fl. 289, e-STJ), afirmando,
ainda, que “o instituto da adoção guarda perfeita simetria com a filiação natural,
pressupondo que o adotando, tanto quanto o filho biológico, seja fruto da união
de um homem e uma mulher” (fl. 55, e-STJ).
352
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Contrarrazões: A recorrida, em contrarrazões, reafirma a anuência da
mãe biológica ao pedido de adoção; a estabilidade da relação homoafetiva que
mantém com a ela e a existência de ganhos para adotanda.
Juízo prévio de admissibilidade: o TJ-SP admitiu o recurso especial (fls.
423-425, e-STJ).
Às fls. 435-441, parecer do Ministério Público Federal, de lavra do
Subprocurador-Geral da República, Henrique Fagundes Filho, pelo não
conhecimento do recurso especial.
É o relatório.
VOTO
A Sra. Ministra Nancy Andrighi (Relatora): Cinge-se a controvérsia em
dizer se, dentro de uma união estável homoafetiva, é possível a adoção unilateral
de filha concebida por inseminação artificial heteróloga, para que ambas as
companheiras passem a compartilhar a condição de mães da adotanda.
I. Lineamentos gerais
A insurgência recursal, no particular, volta-se para a possível afronta dos
arts. 6º, 42 § 2º e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 1.626,
parágrafo único e 1.723 do CC-2002.
Esses dispositivos legais foram objeto de debate na origem, o que satisfaz o
requisito do prequestionamento necessário para a apreciação do recurso especial.
Colhem-se do acórdão recorrido, pela relevância que apresentam para o
deslinde da controvérsia, as razões de decidir utilizadas no voto condutor do
acórdão recorrido:
Com efeito, restaram bem caracterizadas, nos autos, as vantagens que a
adoção trará à menor concebida por meio de fertilização artificial, forma eleita,
pela apelante e a mãe biológica, para consolidar a família que desenvolveram. A
prova oral e documental produzida durante a instrução revela que, realmente, a
relação familiar se enriqueceu e seus componentes vivem felizes, em harmonia.
(fl. 391, e-STJ).
Os laços de afeto, companheirismo, amor e respeito que unem a apelada à
mãe biológica da menor retratam união estável. Não importa se a relação é pouco
comum, nem por isso é menos estruturada que a integrada por pessoas de sexos
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
353
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
distintos. Nada justifica a recusa à adoção unilateral, que tem por finalidade
enquadrar a menor no núcleo familiar que se encontra plenamente adaptada,
permitindo-lhe assim - e também às suas guardiãs – o exercício digno dos
direitos e deveres decorrentes da instituição familiar, cujos efeitos patrimoniais
e extrapatrimoniais são reconhecidos e preservados pelo ordenamento jurídico
pátrio. (fl. 392, e-STJ).
Releva ainda declinar, como pano de fundo conjuntural, que a adotanda
L.B.V. nasceu – segundo o relato da própria recorrida, adotante, no que foi
corroborado por C.C.V., mãe biológica da menor –, como fruto de planejamento
do casal, que já vivia em união estável e acordou na inseminação artificial
heteróloga, por doador desconhecido, em C.C.V.
A situação descrita começa a fazer parte do cotidiano das relações
homoafetivas e merece criteriosa apreciação, pois, se não equalizada
convenientemente pode gerar – em caso de óbito do genitor biológico – impasses
legais, notadamente no que toca à guarda dos menores, ou ainda discussões de
cunho patrimonial, com graves consequências para a prole.
2. Da possibilidade de adoção unilateral, ou conjunta, em união estável
homoafetiva.
Fixa-se, inicialmente, que apesar de haver manifestação, tanto do Tribunal
de origem quanto do recorrente, no sentido de se discutir a validade de adoção
conjunta em relacionamento homoafetivo, a questão trazida a desate neste
recurso especial, não trata, precisamente, dessa hipótese, pois não se verifica
a existência de dois adotantes, como preconizado no art. 42, § 2º, da Lei n.
8.069/1990.
Os fatos aqui delineados melhor se enquadrariam na chamada adoção
unilateral, prevista no art. 41, § 1º, do mesmo texto legal, lido com as adequações
de estilo necessárias à sua congruência com a hipótese.
Evidenciada a ressalva quanto à natureza do pedido deduzido pela
recorrida, é certo, porém, que o presente debate tanto alcança a denominada
adoção unilateral – que ocorre dentro de uma relação familiar qualquer, onde
preexista um vínculo biológico, e o adotante queira se somar ao ascendente
biológico nos cuidados com a criança –, quanto à adoção conjunta – onde não
existe nenhum vínculo biológico entre os adotantes e o adotado.
E, de igual forma, a insurgência manifestada pelo Ministério Público
Estadual, na sua assertiva de impossibilidade jurídica do pedido de adoção,
354
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
abrange as duas possibilidades, pois trata de possível impossibilidade jurídica de
pedido de adoção, quando os adotantes mantiveram união homoafetiva.
Resta, neste introito, frisar que o recurso especial se sustenta, por primeiro,
no que considera ser um empeço legal à pretensão: a impossibilidade jurídica do
pedido para, posteriormente, fixar-se na conveniência da adoção, analisada sob
o prisma de inexistência de benefícios para a adotanda, temas que passam a ser
apreciados.
2.1. Da possibilidade jurídica do pedido de adoção em uniões
homoafetivas.
De se observar, quanto ao ponto, que o Tribunal de origem, em suas razões
de decidir, calcou-se nos arts. 6º e 42 § 2º, da Lei n. 8.069/1990 acrescido dos
arts. 1.626, parágrafo único (revogado pela Lei n. 12.010/2009) e 1.723 do CC2002, que foram objeto de refutação pelo Ministério Público Estadual, que a
eles deu interpretação diversa daquela fixada pelos Órgãos julgadores ordinários.
Vale ainda destacar, quanto ao art. 1.723 do CC-2002, que o recurso
especial foi interposto antes do julgamento da ADI n. 4.277-DF, Rel. Min.
Ayres Britto, julgado em 5.5.2011, que consolidou o influxo jurisprudencial já
existente, no sentido de dar legitimidade e efeitos jurídicos plenos às uniões
estáveis homoafetivas.
Pinça-se, da ementa do acórdão, do célebre julgamento, alguns excertos
que exprimem a fórmula cristalizada:
(...) Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou
discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, fazse necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”.
Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o
reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo
sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras
e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.
Omissis.
O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas
naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade
constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
A plena equiparação das uniões estáveis homoafetivas, às uniões estáveis
heteroafetivas, trouxe como corolário, a extensão automática, àquelas, das
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
355
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
prerrogativas já outorgadas aos companheiros dentro de uma união estável
tradicional.
Sob esse prisma, a litania trazida pelo recorrente, que aborda possíveis
limitações ao pleno exercício da cidadania, em decorrência de uma opção sexual,
mostra-se amplamente superada pelo julgamento realizado pelo Supremo
Tribunal Federal.
O ordenamento jurídico pátrio, a começar pela Constituição Federal, não
limita os direitos de cidadãos ao exercício pleno de sua cidadania por orientação
sexual.
Vale dizer, se determinada situação é possível ao extrato heterossexual da
população brasileira, também o é à fração homossexual, assexual ou transexual, e
todos os demais grupos representativos de minorias de qualquer natureza.
Estes, como aqueles, são abraçados, em igualdade de condições, pelos
mesmos direitos e se submetem, de igual forma, às restrições ou exigências da
mesma lei, que deve, em homenagem ao princípio da igualdade, resguardar-se
de quaisquer conteúdos discriminatórios.
Assim, não causa espécie, nem pode ser tomada como entrave técnico
ao pedido de adoção, a circunstância da união estável ser fruto de uma relação
homoafetiva, porquanto esta, como já consolidado na jurisprudência pátria, não
se distingue, em termos legais, da união estável heteroafetiva.
No entanto, embora não remanesçam dúvidas quanto à viabilidade legal
do pedido, pende ainda o debate sobre a existência de possíveis consequências
negativas, para a infante, com essa modalidade de adoção, pois paira sobre
o tema, como norma-princípio que é (art. 43 do ECA), a aferição sobre a
existência de reais vantagens para a adotanda.
2.2. Da existência de vantagens para adotanda.
A existência, ou não, de vantagens para o adotando, em um determinado
pedido de adoção, é talvez o elemento subjetivo de maior importância na
definição da viabilidade desse pleito.
O comando legal sob análise, que expressamente declina que “a adoção
será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando(...)” é
propositadamente aberto quanto à locução “reais vantagens”, para deixar ao
talante do julgador, apreciando as condições específicas da espécie, dizer sobre a
conveniência do procedimento de adoção.
356
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No entanto, há uma ressalva, ou vinculação, que se erige como Norte desta
avaliação: a idéia de que o adotando é o objeto primário da proteção legal.
Analisa-se, assim, em atenção à primazia do melhor interesse do menor
sobre qualquer outra condição ou direito das partes envolvidas, as considerações
tecidas pelo recorrente, que apontam a inexistência de reais vantagens para a
criança neste processo de adoção, e que vão transcritas na parte de relevo.
(...) não se vislumbra a existência de “reais vantagens” para a adotanda.
Realmente, a adotanda, hoje uma criança, amanhã uma adolescente, passará
por uma série de constrangimentos e discriminações, sempre que exibir em seus
documentos pessoais sua inusitada condição de filha de duas mulheres.
A lei diz que nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligência,
discriminação etc. (ECA, art. 5º), porém é notório que a presente adoção fornece
elemento propício a gerar futura discriminação, de sorte que se afigura lícito
concluir pela inexistência de reais vantagens à adotanda, estando ausente o
requisito a que alude o artigo 43 do ECA. (fls. 293-294, e-STJ).
(Grifos como no original).
De fácil vislumbre que o recorrente, no particular, tem por objetivo tisnar
o pretendido ato de adoção, aludindo que não haveria reais vantagens para
adotanda, mas ao revés, a condição de dupla maternidade acabaria por expor
situação de constrangimento para a menor.
Esse debate, inevitavelmente se confunde com a opção sexual da adotante,
pois o recorrente se foca nessa singularidade para apontar os inconvenientes da
adoção in casu, unilateral, ou mesmo da adoção conjunta por casal homoafetivo.
Nesse aspecto, um primeiro e fundamental elemento de distinção deve
ser evidenciado: a homossexualidade diz respeito, tão só à opção sexual. A
parentalidade, de outro turno, com aquela não se confunde, pois trata das
relações entre pais/mães e filhos.
É sobre essa que se deve pinçar a conveniência ou inconveniência de um
pedido de adoção, apesar de não se ignorar, com essa afirmação, que existam
exteriotipizações de papeis nas relações de parentalidade, onde se atribui
a determinado gênero certas características, que seriam complementares e
necessárias ao perfeito desenvolvimento psicossocial do infante.
No entanto, um mero perscrutar sobre os papéis atribuídos aos gêneros na
criação de filhos, com a exceção daqueles decorrentes dos atributos físicos, mostra
o forte componente cultural entremeado nessa fixação. Tanto assim, que há plena
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
357
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
superação dessas atribuições de papeis, nas situações de monoparentalidade, ou
mesmo dentro de uma relação tradicional de parentalidade, na qual os atores
envolvidos exercem papéis distintos dos usuais.
Vale, nesse sentido, registrar o posicionamento das Psicólogas Mariana de
Oliveira Farias e Ana Cláudia Bortolozzi Maia, que a respeito da necessidade de
duplo gênero no desenvolvimento psicossocial dos filhos, afirmam:
No entanto, segundo Zambrano, os conceitos da Psicanálise deveriam ser
interpretados como funções e não como o sexo biológico das pessoas. Considerase, socialmente, que aquela pessoa que impõe as regras à criança e se ocupa dos
fatores objetivos estaria associada ao masculino, enquanto aquela que cuida da
criança e dos cuidados da casa estaria mais ligada ao sexo feminino. Sabemos que
é importante que a criança tenha acesso às duas funções (masculina e feminina),
mas estas não precisam estar associadas ao sexo biológico das pessoas que a
acercam.
Podemos perceber este fato verificando os resultados das pesquisas, que
têm demonstrado que os filhos de pais ou mães homossexuais não apresentam
comprometimento e problemas em seu desenvolvimento psicossocial quando
comparados com filhos de pais e mães heterossexuais. O ambiente familiar
sustentado pelas famílias homo e heterossexuais para o bom desenvolvimento
psicossocial das crianças parece ser o mesmo.
(FARIAS, Mariana de Oliveira e MAIA, Ana Cláudia Bortolozzi in: Adoção por
homossexuais: a família homoparental sob o olhar da psicologia jurídica. Curitiba:
Juruá, 2009, pp. 75-76.)
Em outro excerto da mesma obra, as autoras afirmam que:
Não há diferenças significativas no desenvolvimento físico e psicossocial
entre filhos criados por pessoas gays e lésbicas e filhos criados por pessoas
heterossexuais. Além disso, possíveis diferenças podem até ser identificadas, mas
não são atribuídas às características da orientação sexual dos cuidadores e sim, às
condições diversas como: orgânicas, econômicas, educacionais, sociais, etc.
(Op. Cit. P. 88).
Essa linha de entendimento não se descura, por certo, da existência de
elementos factuais, passíveis de gerar desconforto para o adotando, como a
brandida diferença no assento de registro de nascimento da adotanda, que
passará a registrar duas mães, sendo essa distinção reproduzida perenemente,
toda vez que for gerar documentação nova.
358
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No particular, é inevitável se contrapor ao argumento para declinar que,
in casu, essa diferença persistiria, mesmo se não houvesse a adoção, pois haveria
maternidade singular no registro de nascimento, que igualmente poderia dar
ensejo a tratamento diferenciado, circunstância que não se mostra suficiente para
obstar o pedido de adoção, por ser perfeitamente contornável e ser suplantada,
em muito, pelos benefícios outorgados pela adoção.
Enésio de Deus Silva Júnior, corroborando este último posicionamento
afirma que:
Na esteira social, cumpre lembrar que os filhos de pais separados não eram
bem aceitos e que as chamadas produções independentes são, ainda hoje, vistas
com preconceito, assim como os filhos de mães solteiras. Não inserir uma criança/
adolescente abandonada(o) em uma família homoafetiva é injustificável sob o
argumento de discriminação que pode sofrer na sociedade, porque, apesar de
essa ainda se mostrar um tanto intolerante para com a homossexualidade, tudo
dependerá da maneira como os pais educarão os seus filhos.
Além da importância do acompanhamento psicológico, caso seja necessário, é
relevante a reflexão comparativa de que mesmo sem compreensão em casa – na
maioria dos casos, por conta dos preconceitos – e em dificuldades no âmbito da
discriminação externa, filhos homossexuais de “famílias convencionais” nem por
isso deixam de se inserir socialmente ou abrem mão da convivência familiar. É
evidente que o peso da discriminação é bem maior nesta circunstância, mas o
preparo emocional, em todas essas possibilidades de conformação sociofamiliar,
é que conta para uma vida digna que se impõe com respeito na sociedade,
mesmo atrasada por prejulgamentos.
SILVA JÚNIO, Enézio de Deus, in: A possibilidade jurídica de adoção por casais
homossexuais. 5ª ed. Curitiba: Juruá, 2012, pp. 155-156.
Pausa-se, aqui esse debate, pois adentrar nessa seara é transformar uma
discussão macro em embate sobre filigranas, quando a temática que deve vir à
tona diz respeito ao equilíbrio psicossocial dos adotados por casais homoafetivos.
Volvendo, então, à linha argumentativa central, vale citar que a questão
envolvendo a conveniência, para a criança, de adoção por casal homoafetivo,
não é celeuma apenas no Direito Pátrio, mas debate que se espalha pelo mundo
em marchas e poucas contramarchas, como se vê na recente discussão lançada
pelo governo da França, que encaminhou projeto de lei ao Parlamento local,
permitido o casamento e adoção por casais homoafetivos.
Outros países já permitiram essa adoção, sendo a Holanda, a precursora
do movimento integrativo, pois desde 2001 reconhece, legalmente, a adoção
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
359
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
unilateral, ou conjunta, em relações homoafetivas, no que foi seguida por Suécia,
Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Províncias canadenses de Quebec e Nova Scotia,
e alguns Estados americanos.
Em nossa vizinhança, O Uruguai, já em 2009, aprovou lei permitindo a
adoção por casais homoafetivos.
(Dados disponíveis em http://www.ctvnews.ca/world/ a-look-at-gaymarriage-and-adoption-worldwide-1.1024910#ixzz2DQKsXrRK e http://
www.parlamento.gub.uy/palacio3/index1280.asp?e=0&w=1920).
As ideias subjacentes ao franqueamento dessa possibilidade são
monocórdicas, pois apontam primeiro: para a óbvia cidadania integral dos
adotantes; segundo: para a ausência de prejuízo comprovado para os adotados
e; terceiro: para a evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base
daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças
que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas
por um lar.
Buscando-se, na hipótese, agregar à monoparentalidade jurídica hoje
existente, uma outra mãe, releva dar especial colorido à biparentalidade,
independentemente da orientação sexual dos adotantes, pela notória
vantagem que representa para o filho, natural ou adotivo, pois esta quebra a
monoparentalidade prática ou técnica, na qual hoje desaguam as questões
relativas à adoção por casais homoafetivos.
Em outras palavras, no cenário monoparental, há um ascendente (biológico
ou não), sendo a ele atribuídas todas as responsabilidades legais, sintetizadas no
poder familiar, não obstante haver participação ativa do outro companheiro(a),
na formação da criança.
Essa situação, além de não retratar a realidade fática existente, na qual
se declara, publicamente, a dupla relação de parentalidade, pode, apenas
exemplificativamente, na hipótese de ocorrer óbito do ascendente biológico,
trazer clima de insegurança jurídica grave, tanto para o menor, que tinha no
casal homoafetivo sua referência em relação à parentalidade, quanto para o
companheiro(a) supérstite, pois não há vinculo jurídico entre ele e a criança que
tem como filho(a), podendo daí decorrer disputas envolvendo tanto a guarda do
menor, quanto o patrimônio do de cujus.
Exemplo dessa situação, o óbito de famosa cantora nacional em 2002, que
mantinha união estável homoafetiva e deixou prole, logrando a mãe socioafetiva,
360
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
apenas judicialmente, a guarda do então adolescente que criara junto com a mãe
biológica.
Não pode o sistema jurídico albergar, ainda hoje, essas incongruências ou
forçar aqueles que buscam, voluntária e regularmente, dar amparo, carinho e
cuidado a uma criança sem lar, a se sujeitarem a arranjos marginais, que muitas
vezes se mostram frágeis e insuficientes para garantir a segurança psicológica
social e jurídica de quem deveria ter primazia nessa situação: o adotando.
Os obstáculos interpostos à plena aceitação e legalização desse notório fato
social são tartamudeios calcados em preconceitos que, como posto inicialmente,
não tem mais guarida no sistema jurídico nacional, até mesmo pela cristalização
da legalidade da união estável homoafetiva, pelo STF.
A ratio orientadora da definição de reais vantagens para a adotanda
ultrapassa esse debate, que tem o evidente ranço de preconceito por orientação
sexual, para se concentrar em elementos mais palpáveis e de maior relevo na
formação da psique do infante.
Nessa senda, possível se depreender que a condição de biparentalidade
homoafetiva terá a mesma repercussão da monoparentalidade – um só
ascendente–, ou da já tradicional biparentalidade heteroafetiva.
A adoção, ato de amor que é, exige desprendimento – para aceitar como
parte de sua vida, alguém com quem não tinha vínculo biológico –; paciência
– para lidar com as inúmeras situações de tensão que brotam de uma relação
familiar – e; sobretudo, carinho – para fazer com que os adotandos, muitas vezes
vítimas de uma estrutura social perversa, recuperem o sonho de viver.
Essas, ou outras qualidades quaisquer que venham a ser enumeradas,
independem de gênero, credo, cor ou orientação sexual, mas não prescindem de
elevadas doses de humanidade, sobejamente demonstrada por aqueles que lutam
contra empeços discriminatórios de várias estirpes, para lograr êxito em pedidos
de adoção.
Soçobrem então os preconceitos, nunca o legítimo direito de uma criança
ou adolescente acordar em um lar que possa chamar de seu.
O avanço na percepção e alcance dos direitos da personalidade, em
linha inclusiva, que equipara, em status jurídico, grupos minoritários como
os de orientação homoafetiva – ou aqueles que têm disforia de gênero –
aos heterossexuais, traz como corolário necessário a adequação de todo o
ordenamento infraconstitucional para possibilitar, de um lado, o mais amplo
sistema de proteção ao menor – aqui traduzido pela ampliação do leque de
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
361
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
possibilidades à adoção – e, de outro, a extirpação jurídica dos últimos resquícios
de preconceito jurídico – tirado da conclusão de que casais homoafetivos gozam
dos mesmos direitos e deveres daqueles heteroafetivos.
Nesse mesmo sentido já decidiu o STJ, no julgamento do REsp n. 889.852RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 10.8.2010.
De igual forma, deve, na hipótese sob comento, merecer acolhida a vontade
do casal, mesmo porque, é fato que o nascimento da infante ocorreu por meio
de acordo mútuo entre a mãe biológica e a agora adotante, e tal qual ocorre nas
reproduções naturais ou assistidas homólogas, onde os partícipes desejam a
reprodução e se comprometem com o fruto concebido e nascido, também aqui
deve persistir o comprometimento do casal com a nova pessoa.
E evidencia-se uma intolerável incongruência com esse viés de pensamento,
negar o expresso desejo dos atores responsáveis pela concepção, em se responsabilizar
legalmente pela prole, fruto do duplo desejo de formar uma família.
Forte nessas razões, nego provimento ao recurso especial, mantendo, por
conseguinte, as decisões ordinárias que julgaram procedente o pedido de adoção
unilateral.
VOTO-VISTA (CONCORDANTE COM A RELATORA)
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Meu voto vai diretamente ao núcleo
técnico-jurídico da questão de admissibilidade jurídica da adoção da menor
(com seis anos de idade quando do ajuizamento nascida a 24.6.2002), no relato
da inicial, filha gerada por inseminação artificial de doador desconhecido, pela
convivente, desde meados de 1997, em união estável da genitora da menor.
2. - Postas à parte as numerosas digressões psicológicas, sociológicas,
políticas, de preconceito ou discriminação e outras, todas extra jurídicas, cujo
fascínio tantas vezes leva à incursão extra jurídica pelos profissionais do direito,
mais apropriadas, contudo, ao conhecimento técnico dos profissionais das
respectivas áreas e para a ponderação dos integrantes do Poder Legislativo na
elaboração das leis, fica-se, aqui, no âmbito puramente técnico-jurídico, como
acima salientado.
Nesse âmbito estritamente técnico-jurídico, é de se concluir no sentido da
admissibilidade da adoção porque:
a) Já reconhecida como união estável a união homoafetiva, superando
o requisito da diversidade de sexos (CC/2002, art. 1.723) pelo julgamento
362
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
constitucional a cargo do C. Supremo Tribunal Federal, que juridicamente
qualificou como família, a união estável homoafetiva, interpretando o art. 226,
§ 3º, da Constituição Federal como “dispositivo que, ao utilizar da terminologia
‘entidade familiar’ não pretendeu diferenciá-la da ‘família’ (Ementa, item 5, do
julgado na ADI n. 4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto, j. 5.5.2011, parte a que
se ajusta a observação de “Divergências laterais do Acórdão”, resultantes de
motivação dos Mins. Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cézar Peluso).
b) É legalmente admitida, de modo expresso, até mesmo a adoção
conjunta no caso em que os adotantes “mantenham união estável, comprovada a
estabilidade da família” (ECA, Lei n. 8.069, de 13.7.1990, art. 42, § 2º).
c) A lei expressamente admite o caso em que, na terminologia abrangente
da união estável, “um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro” (ECA,
Lei n. 8.069, de 13.7.1990, art. 41, § 1º).
3. - Como se vê, é legalmente admitida a adoção do filho de um dos
“cônjuges ou concubinos”, quer dizer, em união estável, pelo outro, de modo
que, dada a união estável homossexual, constitucionalmente assegurada (ADI n.
4.277-DF, Rel. Min. Ayres Britto) entre a ora requerente e a genitora da menor,
tem-se a admissibilidade da adoção unilateral da filha desta por aquela.
4. - É claro que podem surgir questões técnico-registrárias, inclusive
de nomenclatura, da mesma forma que pode haver particularidades extra
jurídicas de vida, decorrentes da especificidade da adoção, mas, coerente com
o que de início se expôs, o presente voto cinge-se exclusivamente ao núcleo
técnico-jurídico posto no presente julgamento, abstendo-se de considerações
e observações desbordantes da estrita competência de aplicação da lei vigente,
em observância da constitucionalidade já proclamada em caráter definitivo pelo
Supremo Tribunal Federal.
Pelo exposto, meu voto acompanha a conclusão da E. Relatora.
RECURSO ESPECIAL N. 1.297.353-SP (2011/0294586-5)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Paulo Araújo Soares
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
363
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Advogado: Douglas Casotti e outro(s)
Recorrido: Banco Santander Brasil S/A Incorporador do
: Banco ABN Amro Real S/A
Advogada: Cíntia Aparecida Dal Rovere e outro(s)
EMENTA
Direito Civil e Processual Civil. Títulos de crédito. Cheque.
Prazo de apresentação. Devolução de cheque prescrito por falta de
fundos. Motivo indevido. Inscrição em cadastro de inadimplentes.
Dano moral configurado.
1. - O prazo estabelecido para a apresentação do cheque (30
dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago e de 60 dias,
quando emitido em outra praça) serve, entre outras coisas, como
limite temporal da obrigação que o emitente tem de manter provisão
de fundos em conta bancária, suficiente para a compensação do título.
2. - Ultrapassado o prazo de apresentação, não se justifica a
devolução do cheque pelos “motivos 11 e 12” do Manual Operacional
da Compe. Isso depõe contra a honra do sacador, na medida em que
ele passa por inadimplente quando, na realidade, não já que não tinha
mais a obrigação de manter saldo em conta.
3. - Tal conclusão ainda mais se reforça quando, além do prazo de
apresentação, também transcorreu o prazo de prescrição, hipótese em
que o próprio Manual determinada a devolução por motivo diverso
(“motivo 44”).
4. - No caso concreto, a devolução por motivo indevido ganhou
publicidade com a inclusão do nome do consumidor no Cadastro
de Emitentes de Cheques sem Fundo - CCF, gerando direito à
indenização por danos morais.
5. - Recurso Especial provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
364
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a)
Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino,
Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi votaram com o Sr. Ministro
Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Massami Uyeda.
Brasília (DF), 16 de outubro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 19.10.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Paulo Araújo Soares interpõe recurso
especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da
Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo, Relatora a Desembargadora Zélia Maria Antunes Alves,
cuja ementa ora se transcreve (fls. 171):
Ação de indenização c.c. reparação de danos morais. Alegação, pelo autor, de
devolução de cheque apresentado quando já estava prescrito, por insuficiência
de fundos. Dívida representada pelo cheque que não desaparece, simplesmente,
pela perda da força executiva do título, porque pode ser cobrada por outras
ações judiciais. Inocorrência de qualquer ofensa à honra do autor, a justificar a
condenação do banco-réu no pagamento de indenização por danos morais. Ação
julgada procedente, em parte. Recurso do banco-réu provido. Recurso do autor
prejudicado.
2. - Os embargos de declaração foram rejeitados (fls. 183-187).
3. - O Recorrente alega que o Tribunal de origem teria violado o artigo 33 da
Lei do Cheque (Lei n. 7.357/1985) que trata do prazo de prescrição do cheque,
pois, estando o título prescrito, não seria possível encaminhar o nome do sacador
ao serviços de proteção ao crédito em razão do inadimplemento da dívida.
Também estariam violados, segundo afirma, os artigos 186 e 927 do
Código Civil, que garantiriam a indenização por danos morais em caso de
negligência como a verificada no caso presente, onde a instituição financeira
devolveu o cheque prescrito por motivo errado (insuficiência de fundos).
Acrescenta que o artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor
estabelece a responsabilidade do fornecedor de serviços pelos defeitos nos
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
365
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
serviços prestados independentemente de culpa e, no caso presente, essa
responsabilidade estaria configurada, porque o cheque foi devolvido pela alínea
errada, causando inscrição do nome do sacador no Cadastro de Emitentes de
Cheque sem Fundos - CCF.
Afirma que a devolução de cheque prescrito por motivo de insuficiência de
fundos gera dano moral, conforme consignado nos precedentes deste STJ, do
TJRJ e do TJRS, indicados como paradigma.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4. - Paulo Araújo Soares ajuizou
ação ordinária contra o Banco ABN Amro Real S/A. visando o recebimento
de indenização por danos morais em razão da devolução indevida de cheque
que teria ocasionado a inscrição do seu nome em cadastro de inadimplentes.
Segundo afirma, cheque no valor de R$ 1.456,00 foi emitido em 27.7.1998, mas
somente foi apresentado para compensação em 17.10.2002, quando não havia
mais provisão de fundos na conta bancária. Afirma que, como o título já estava
prescrito, deveria ter sido devolvido pela alínea 44 (cheque prescrito) e não pela
alínea 12 (insuficiência de fundos), como verificado na hipótese. Esse defeito na
prestação do serviço bancário, associado ao encaminhamento do seu nome ao
Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundo - CCF e, bem assim, a recusa de
crédito em estabelecimento de comércio varejista, teria configurado dano moral
indenizável (fls. 04-18).
5. - A sentença julgou procedente o pedido indenizatório, condenando o
banco réu ao pagamento de indenização correspondente a 20 (vinte) vezes o
valor do cheque (fls. 70-75).
6. - O Tribunal de origem, deu provimento à apelação do banco Réu para
excluir a indenização, aos seguintes argumentos (fls. 173-174).
A rigor, em se tratando de cheque prescrito, o correto seria que fosse devolvido
pelo banco-réu, com base na alínea 44 (cheque prescrito), mas o fato de ter
sido devolvido com base nas alíneas 11 e 12 (insuficiência de fundos - 1ª e 2ª
apresentação), por si só, não acarreta ao emitente, o autor danos de ordem moral,
porque a dívida representada pelo título não desaparece, simplesmente, pela
perda de sua força executiva, remanescendo o direito do portador de cobrá-lo,
na medida em que é considerado prova escrita da relação jurídica, de crédito
366
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
e débito, entre as partes, pelo valor nele expresso, por meio de outras ações
judiciais (monitória ou cobrança).
O banco-réu, nas circunstâncias, agiu nos limites da legalidade, no exercício
de função regular, sem qualquer abuso, ao devolver o cheque prescrito por
insuficiência de fundos; e não pode lhe ser imputada responsabilidade pela
existência da dívida decorrente da sua emissão pelo autor, vez que continuou
produzindo efeitos no mundo jurídico, como documento escrito representativo
de dívida líquida e certa, cuja prescrição é de 05 (cinco) anos de acordo com o art.
206, § 5º, I, do novo Código Civil, não havendo que se falar em prejuízo e, muito
menos, danos morais.
7. - A questão posta no Recurso Especial consiste em saber se o cheque
prescrito poderia ter sido devolvido pela alínea “12” e, bem assim, se houve dano
moral indenizável no caso concreto.
8. - Nos termos do artigo 33 da Lei n. 7.357/1985 “O cheque deve ser
apresentado para pagamento, a contar do dia da emissão, no prazo de 30 (trinta)
dias, quando emitido no lugar onde houver de ser pago; e de 60 (sessenta) dias,
quando emitido em outro lugar do País ou no exterior”.
9. - O dispositivo em questão não esclarece que atitude a instituição
financeira sacada deve tomar em caso de apresentação após o prazo assinalado,
mas uma coisa é certa: ela não poderá devolver o cheque por falta de provisão de
fundos.
10. - É que o artigo 4º, § 1º, da mesma lei estabelece que: “A existência de
fundos disponíveis é verificada no momento da apresentação do cheque para
pagamento”.
11. - O cheque, instrumento cada vez menos utilizado no comércio
cotidiano em razão do surgimento de outras formas de pagamento como os
cartões de débito e de crédito, constitui, como se sabe, uma ordem emitida
contra o banco para que pague ao portador (ou beneficiário) o valor consignado
no título mediante desconto em numerário previamente depositado pelo sacador
neste mesmo banco.
12. - Precisamente porque se trata de uma ordem de pagamento à vista,
o momento exato em que o cheque será apresentado para desconto não é
controlado pelo sacador. Ao contrário do que sucede com a maioria dos demais
títulos cambiários, o cheque não é emitido com data de vencimento.
13. - Bem por isso a própria lei cuidou de estabelecer um prazo dentro do
qual ele poderia ser apresentado para pagamento a fim de que o sacador não
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
367
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
estivesse obrigado em caráter perpétuo a manter dinheiro em conta para o seu
pagamento.
14. - Ora, se a lei diz que a “A existência de fundos disponíveis é verificada
no momento da apresentação do cheque para pagamento” (art. 4º, § 1º) e,
paralelamente, afirma que o título deve ser apresentado para pagamento em
determinado prazo (art. 33) impôs ao sacador, de forma implícita, a obrigação
(Schuld) de manter provisão de fundos durante o prazo de apresentação do
cheque. Por via obliqua, igualmente, dispensou o correntista de manter provisão
de fundos após esse prazo.
15. - Nessa medida é de se concluir que a instituição financeira não pode
devolver o cheque por insuficiência de fundos se a apresentação tiver ocorrido
após o prazo que a lei assinalou para a prática desse ato.
16. - Não se pode pretender que prazo assinalado no artigo 33 para a
apresentação do cheque sirva apenas para marcar a termo inicial da prescrição a
que está submetida a ação executiva fundada nesse título de crédito (artigo 59).
Para essa finalidade bastaria que o legislador houvesse feito recair o dies a quo
da prescrição na data de emissão do cheque, sem estabelecer um prazo máximo
para que este fosse apresentado ao banco.
17. - Partindo-se do pressuposto axiológico de que a lei não contém
palavras inúteis há que se extrair uma utilidade prática fundada de forma direta
no próprio artigo 33.
18. - Não se sustenta aqui, é importante ressaltar, que a instituição
financeira estará impedida de proceder à compensação do cheque após o prazo
de apresentação se houver saldo em conta. Essa é uma discussão que envolve
questões de boa-fé nas relações jurídicas e estabilidade do sistema econômico
cujo enfrentamento não se faz necessário e nem mesmo adequado para a
solução deste caso concreto.
19. - Por hora importa fixar, apenas, que o prazo de apresentação do cheque
deve servir, pelo menos, como limite temporal da obrigação que o emitente tem
de manter provisão de fundos suficiente para o pagamento do título. E, como
consectário lógico dessa exegese, deve-se concluir que, passado o referido prazo,
o cheque, se apresentado, não pode ser devolvido por insuficiência de fundos.
20. - Naturalmente que se não houver fundos o cheque não poderá ser
compensado e será, necessariamente devolvido. A dificuldade está em se admitir
a devolução esteja justificada pela ausência de fundos, porque esse motivo
368
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
depõe contra a honra do sacador, na medida em que ele passa por inadimplente
quando, na realidade, não pode ser assim considerado, já que não tinha mais a
obrigação de manter saldo em conta.
21. - Tal conclusão ainda mais se reforça quando, além do prazo de
apresentação, ainda transcorreu o prazo de prescrição.
22. - O Manual Operacional da Compe (Centralizadora da Compensação
de Cheques), instituição cujas atividades são fortemente reguladas pelo Bacen,
estabelece uma tabela de motivos que justificam a devolução de cheques.
23. - De acordo com esse Manual, o cheque deve ser devolvido pelo
“motivo 11” quando, em primeira apresentação, não tiver fundos e, pelo “motivo
12”, quando não tiver fundos em segunda apresentação. Dito isso, é preciso
acrescentar que só será possível afirmar que o cheque foi devolvido por falta de
fundos quando ele podia ser validamente apresentado.
24. - Consultando a referida tabela, não se localiza como um dos
fundamentos para a devolução do cheque o fato de ele ter sido apresentado após
o decurso do prazo. Consta, no entanto, outro motivo que busca fundamento na
mesma racionalidade aqui exposta, trata-se do “motivo 44” - cheque prescrito.
25. - O que justifica o impedimento de devolução pelos motivos 11 e 12,
na hipótese de prescrição é a expiração do prazo de apresentação e do prazo
prescricional, vez que a dívida, afinal, não se extingue pela perda da força
executória do cheque.
26. - Vale destacar que o próprio Manual Operacional da Compe estabelece,
no item 8.2, que “O cheque sem fundos [motivos 11 e 12] e o cheque sacado
contra conta de depósitos à vista encerrada [motivo 13] somente podem ser
devolvidos pelo motivo correspondente, bem como gerar registro de ocorrência
no Cadastro de Emitentes de Cheques sem Fundos (CCF), na condição de não
ser aplicável a devolução por qualquer outro motivo”.
27. - Conquanto se apresente a expiração do prazo de apresentação como
motivo suficiente para vedar a devolução do título por ausência de fundos
(embora isso não conste de forma expressa do Manual Operacional da Compe),
no caso dos autos ainda vale acrescentar que o cheque já estava prescrito quando
se deu a apresentação. Dessa forma ainda mais evidente se apresenta a conclusão
de que ele não poderia ter sido devolvido com fundamento nos “motivos 11 e
12”.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
369
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
28. - Com efeito, se o cheque já estava prescrito, segundo afirmado
pela sentença e reconhecido pelo próprio acórdão, incidia de forma expressa
a orientação contida no referido item 8.2, do Manual, proibindo não só a
devolução por falta de fundos, como também o registro da ocorrência no
Cadastro de Emitentes de Cheques sem fundos - CCF.
29. - Tem-se, portanto, uma clara hipótese de defeito na prestação do
serviço bancário, visto que o banco recorrido não atendeu a regramento
administrativo baixado de forma cogente pelo órgão regulador, estabelecendo-se,
portanto, a sua responsabilidade objetiva pelos danos deflagrados ao consumidor,
nos termos do artigo 14 da Lei n. 8.078/1990.
30. - Assim, considerando: a) existência de ato ilícito praticado pela
instituição financeira - devolução de cheque por motivo indevido; b) o dano
moral sofrido pelo correntista que surge in re ipsa da inscrição do seu nome em
cadastro de inadimplentes - CCF e c) o patente nexo causal entre o defeito na
prestação do serviço e o dano, não há como negar o direito à indenização.
31. - Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial, para julgar
procedente o pedido, condenando o Recorrido a pagar R$ 5.000,00 (cinco
mil reais) a título de indenização por danos morais, corrigidos desde esta data,
acrescidos de juros moratórios desde o evento danoso (Súmula n. 54-STJ).
32. - Em razão da sucumbência, condena-se o Recorrido ao pagamento
das custas processuais e dos honorários advocatícios, estes fixados em 20% (vinte
por cento) da condenação.
RECURSO ESPECIAL N. 1.302.900-MG (2012/0006413-5)
Relator: Ministro Sidnei Beneti
Recorrente: Samarco Mineração S/A
Advogado: João Dácio Rolim e outro(s)
Recorrido: Aristides Luiz Vitório
Advogado: Antônio Marques Carraro Júnior e outro(s)
370
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
EMENTA
Direito Civil e Processual Civil. Arbitragem. Acordo optando pela
arbitragem homologado em juízo. Pretensão anulatória. Competência
do juízo arbitral. Inadmissibilidade da judicialização prematura.
1. - Nos termos do artigo 8º, parágrafo único, da Lei de
Arbitragem a alegação de nulidade da cláusula arbitral instituída em
Acordo Judicial homologado e, bem assim, do contrato que a contém,
deve ser submetida, em primeiro lugar, à decisão do próprio árbitro,
inadmissível a judicialização prematura pela via oblíqua do retorno
ao Juízo.
2. - Mesmo no caso de o acordo de vontades no qual estabelecida
a cláusula arbitral no caso de haver sido homologado judicialmente,
não se admite prematura ação anulatória diretamente perante o Poder
Judiciário, devendo ser preservada a solução arbitral, sob pena de se
abrir caminho para a frustração do instrumento alternativo de solução
da controvérsia.
3. - Extingue-se, sem julgamento do mérito (CPC, art. 267, VII),
ação que visa anular acordo de solução de controvérsias via arbitragem,
preservando-se a jurisdição arbitral consensual para o julgamento
das controvérsias entre as partes, ante a opção das partes pela forma
alternativa de jurisdição.
4. - Recurso Especial provido e sentença que julgou extinto o
processo judicial restabelecida.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do(a)
Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino,
Ricardo Villas Bôas Cueva, Nancy Andrighi e Massami Uyeda votaram com o
Sr. Ministro Relator.
Dr(a). Ariene D’ Arc Diniz e Amaral, pela parte recorrente: Samarco
Mineração S/A.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
371
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Brasília (DF), 9 de outubro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Sidnei Beneti, Relator
DJe 16.10.2012
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Samarco Mineração S/A interpõe recurso
especial com fundamento nas alíneas a e c do inciso III do artigo 105 da
Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do
Estado de Minas Gerais, Relator o Desembargador José Flávio de Almeida, cuja
ementa ora se transcreve (fls. 1.067):
Direito Processual Civil e Civil. Ação de anulação de ato jurídico. Acordo
homologado judicialmente nulidade. Cláusula compromissória. Vício de
consentimento. Competência. Sendo o o julgamento de mérito prejudicado pelo
acolhimento de preliminar de incompetência absoluta do Juízo, a sentença não
incorre em julgamento citra petita por não examinar os pedidos da inicial. - Cabe
ao Poder Judiciário decidir sobre nulidade de acordo homologado judicialmente
em que se instituiu cláusula compromissória de arbitragem.
2. - Os embargos de declaração opostos foram rejeitados (fls. 1.094-1.102).
3. - A Recorrente alega que o Tribunal de origem teria violado o artigo
535 do Código de Processo Civil ao deixar de se manifestar sobre os temas
suscitados nos embargos de declaração.
Sustenta que aquele Tribunal, ao entender que o Poder Judiciário estaria
autorizado a examinar as alegações de invalidade do acordo homologado
judicialmente em sede do qual pactuada cláusula arbitral, teria violado os artigos
269, III; 267, V; 467; 468 e 471 do Código de Processo Civil, tendo em vista
que a referida sentença homologatória já havia transitado em julgado, não sendo
possível reformá-la.
Aduz contrariedade aos artigos 104, 171 e 849 do Código Civil, visto que
não haveria vício de consentimento na eleição da cláusula arbitral.
Afirma violados os artigos 1º; 8º, parágrafo único; e 20 da Lei n.
9.307/1996, nos termos dos quais competiria à Câmara de Arbitragem decidir
acerca das nulidades invocadas na ação ordinária.
372
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Registra, finalmente, que o feito deveria ter sido extinto, com fundamento
no artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, em razão da existência
de pressuposto negativo de desenvolvimento válido e regular do processo,
consistente na convenção de arbitragem.
Aponta dissídio jurisprudencial, colacionando precedentes de outros
Tribunais.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Sidnei Beneti (Relator): 4. - Consta dos autos, que, por ato
do Presidente da República, (Decreto-Lei n. 75.424, de 27.2.1975), foi instituída
servidão de passagem em favor da Samarco Mineração S/A, para passagem de
tubulação subterrânea com diâmetro de 20 polegadas, numa faixa de 35 metros
de largura, com extensão de 346 km, atravessando os Estados de Minas Gerais
e Espírito Santo e, naturalmente, passando por várias propriedades particulares,
dentre elas a do ora Recorrido.
5. - Ao longo de vários anos a Sanmarco, detentora da servidão, teria
permitido, sem qualquer oposição, que fossem erigidas, de boa-fé, construções
e benfeitorias dentro da faixa estipulada, bem como teria promovido o
desmatamento das áreas próximas, provocando assoreamento de cursos d’água,
erosão e desmatamento. Tudo isso teria ocasionado, além de prejuízos sociais e
ambientais, também a desvalorização da propriedade, seja pelo seccionamento
do imóvel, seja pela inviabilização de nele se explorarem determinadas culturas,
seja, ainda, pela ocupação da faixa de solo afeada pela servidão e pela ocupação
de pessoas que ali se instalaram, inicialmente em caráter provisório, mas com o
tempo, definitivo.
6. - Diante dessas circunstâncias e considerando que a Samarco Mineração
S/A estava já implementando a instalação de uma segunda linha do mineroduto,
o Recorrido ajuizou uma ação cautelar de produção antecipada de provas com o
objetivo de apurar os prejuízos experimentados (fls. 42-45).
7. - Em 20.3.2007, no curso dessa ação cautelar de produção de provas,
e na presença do Advogado Wellington Queiroz de Castro que também figura
na petição inicial como patrono do Recorrido, embora sem assinar a referida
petição, foi celebrado acordo judicial, posto nos seguintes termos (fls. 355-358):
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
373
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...) Considerando os prejuízos acumulados pela requerida com o atraso
na liberação das áreas objeto dos levantamentos periciais; considerando a
necessidade de apuração na prova pericial dos danos alegados pelo requerente
em razão da execução das obras do mineroduto; as partes, no intuito de encerrar
e prevenir litígio, resolvem transacionar direitos e obrigações, celebrando acordo
nos seguintes termos e condições: 1) Todos os danos eventualmente apurados,
em virtude da implantação das linhas do mineroduto (dentro da faixa de servidão)
serão recompostos pela requerida, nos termos e condições sugeridos nos laudos
periciais, observados os princípios gerais do direito. (...) 5) Os termos da presente
transação se aplicam a todos os processos relativos a medidas cautelares de
Produção Antecipada de Provas, cautelares de Atentado; Interdito proibitório e
quaisquer outros processos relacionados às obras do mineroduto distribuidos ou
que sejam distribuidos até o dia 21 de março do ano em curso. (...) 10) As partes
constituem cláusula compromissória de arbitragem, tomando-se como base os
laudos periciais a serem entregues nos termos deste acordo, elegendo a Camarb,
com foro em Belo Horizonte, para dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias
decorrentes de sua aplicação. (...)
Na mesma audiência o Juízo extinguiu o processo mediante homologação
do acordo em referência, esclarecendo que (fls. 357):
Os levantamentos e vistorias deverão ser feitos no prazo de 10 (dez) dias úteis,
iniciando-se, no dia 22.3.2007. Fica assinado o prazo de 25 (vinte e cinco) dias para
apresentação de todos os laudos, finando-se este no dia 30 de abril de 2007. O
sr. Perito, neste ato, assume o compromisso de bem desempenhar suas funções,
intimado dos prazos ora assinalados por este juízo.
Como se vê, as partes firmaram um acordo, por meio do qual a Mineradora
se comprometeu a recompor todos os danos eventualmente apurados, em
conformidade com o que viesse a ser apurado em perícia realizada por um perito
oficial nomeado judicialmente.
No pacto, as partes instituíram uma cláusula compromissória de arbitragem,
com a eleição da Camare (Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil) para
dirimir quaisquer dúvidas ou controvérsias decorrentes do acordo e da perícia.
8. - Em 6.5.2009, no entanto, o ora Recorrido ingressou com nova ação
ordinária (fls. 04-37), distribuída por conexão à referida ação cautelar de
produção antecipada de provas, visando à anulação da sentença homologatória e
da cláusula compromissória, afirmando que: a) o perito nomeado para calcular os
danos ocorridos foi cooptado pela Ré, b) que ele não tinha registro no CEA, c)
que não teriam sido observados os requisitos técnicos e científicos necessários a
374
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
elaboração do laudo; d) que o órgão arbitral eleito pelas partes Camarb não teria
competência técnica para dirimir o conflito, porque sua finalidade institucional
é a solução de disputas comerciais; e) que a cláusula compromissória está eivada
pelo vício da lesão, já que o Autor não estava suficientemente esclarecido dos
seus efeitos, sendo certo, ademais que ela seria prejudicial aos seus interesses
diante do flagrante desequilíbrio entre as obrigações impostas às partes; e f )
que teriam sido desrespeitados os termos do acordo relativos ao objeto da
indenização. Na mesma oportunidade ainda requereu indenização por danos
materiais e morais, além da participação nos lucros da empresa, entre outros
pedidos.
9. - A Sentença julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, nos
termos do artigo 267, VII, do Código de Processo Civil, afirmando que a
validade e eficácia da convenção de arbitragem deveria ser analisada e decidida
primeiramente, de ofício ou por provocação, pelo próprio árbitro (fls. 969-971).
10. - O recurso de apelação do Autor foi provido em acórdão do TJMG
assim ementado (fls. 1.067):
Direito Processual Civil e Civil. Ação de anulação de ato jurídico. Acordo
homologado judicialmente nulidade. Cláusula compromissória. Vício de
consentimento. Competência. Sendo o o julgamento de mérito prejudicado pelo
acolhimento de preliminar de incompetência absoluta do Juízo, a sentença não
incorre em julgamento citra petita por não examinar os pedidos da inicial. - Cabe
ao Poder Judiciário decidir sobre nulidade de acordo homologado judicialmente
em que se instituiu cláusula compromissória de arbitragem.
11. - O TJMG, decidiu em sentido diverso no julgamento das apelações
que deu origem aos REsp n. 1.288.251 e n. 1.279.194-MG, ambos da relatoria
do E. Desembargador José Marcos Vieira, cujas ementas estão assim redigidas:
Apelação cível. Ação anulatória de ato jurídico cumulada com indenização por
danos. Cláusula compromissória. Arbitragem. Incompetência da Justiça Comum.
Extinção. Art. 267, VII, do CPC. Manutenção da sentença. 1 - Estipulando as partes,
no acordo previamente firmado, cláusula compromissória de arbitragem, a
solução de conflitos dele decorrentes deverá ser submetida ao Juízo Arbitral, o
que afasta a competência do Poder Judiciário e, consequentemente, da Justiça
Comum. 2 - Apelo Provido.
12. - Ainda consta para julgamento conjunto o REsp n. 1.311.597-MG,
cujo acórdão recorrido está assim ementado:
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
375
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Processual Civil. Nulidade da sentença. Julgamento citra petita. Inocorrência.
Cláusula compromissória instituída em acordo judicial. Processo do qual o autor
não foi parte. Aplicação do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996. Inexistência de
anuência expressa com a cláusula arbitral. Nulidade declarada.
- Ao entender ser impossível a análise do feito por ter existido entre as partes
acordo que remete a discussão dos autos à arbitragem, não há que se falar em
sentença incompleta ou que deixou de apreciar todos os pedidos formulados,
porque esta simplesmente decidiu com base em uma questão preliminar.
- É cediço que não pode o Juiz adentrar ao mérito do procedimento arbitral,
uma vez instituído. Contudo, é possível que se analise a ocorrência de nulidades
no procedimento arbitral, levando-se em consideração as disposições da Lei n.
9.307/1996.
- Não tendo a vontade da parte sido manifestada de forma livre e pessoal, eis
que a cláusula compromissória constou de processo envolvendo outras partes e
foi estendida a outros signatários, deve-se declarar a sua nulidade, ante à violação
do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/1996.
- A autonomia da vontade é o sustentáculo da validade da cláusula arbitral,
razão pela qual se não houver expressa aquiescência das partes quanto à sua
instituição, deve ser tida por ineficaz.
Rejeitar as preliminares e dar provimento ao apelo.
(TJMG, APC n. 1.0003.09.030673-3/001, 12ª Câmara Cível, Rel. Des. Nilo Lacerda,
DJe de 30.5.2011).
13. - No caso dos autos, a questão fundamental é saber se a convenção de
arbitragem firmada pelas partes no processo cautelar de produção antecipada de
provas prejudica o conhecimento da ação ordinária proposta.
14. - A arbitragem, como se sabe, é um dos mais antigos métodos de
composição heteronômica de conflitos.
JACOB DOLINGER lembra que a instituição arbitral aparece em escritos
antigos da história do povo judeu, especialmente no Pentateuco, indicando uma
série de contendas clássicas resolvidas por métodos alternativos como o episódio
da divisão das terras entre Abrahão e Lot, o confronto entre o Rei Abimelec
e Abrahão sobre o poço d’água em suas terras e a disputa entre Jacob e Labão
na ida do primeiro para a Terra de Canaã. (DOLINGER, Jacob. Conciliação
e Arbitragem no Direito Judaico, Apud: AYOUB, Luiz Roberto. Arbitragem: o
acesso à Justiça e a efetividade do processo uma nova proposta.: Lumen Juris. Rio de
Janeiro, 2005, p. 23).
376
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No Direito Romano, a arbitragem facultativa sempre foi aceita e mesmo
incentivada. A arbitragem obrigatória figurou como método de resolução de
litígios durante o período compreendido entre as fases das ações da lei (legis
actiones) e do processo formulário (per formulas). (MOREIRA ALVES, José
Carlos. Direito Romano. Apud: ALVIM, José Eduardo Carreira. 3ª ed.: Forense.
Rio de Janeiro, 2007, p. 2-3).
Apesar da ancestralidade do instituto, não alcançou ele em tempos mais
recentes, ao menos no ordenamento nacional, o prestígio e a repercussão a
ele asseguradas no de decorrer da história. Nesse sentido se revela apropriada
a crítica atribuída a CARREIRA ALVIM, (Ob. loc. cit) no sentido de que a
Arbitragem continuará a ser, infelizmente, uma ilustre desconhecida na prática
jurídica brasileira.
15. - Em várias oportunidades analisei o instituto da arbitragem,
ressaltando-lhe a importância histórica e apontando a coincidência do
arrefecimento do seu uso com momentos de fascínio pelo centralismo e
controle estatais em detrimento da liberdade individual, de que se nutem os
instrumentos de “Alternative Dispute Resolution”, entre os quais a arbitragem
(cf. “Perspectivas da Arbitragem no Processo Civil Brasileiro” - RT 696/78;
JUTACIV-SP 137/7; JUTACIV-SP 136/6; RJM 95/402; 39. “Arbitragem:
Panorama da evolução” - JUTACIV-SP 138/6; “Resolução Alternativa de
Conflitos e Constitucionalidade”, em “Constituição de 1988 - 10 Anos”, Coord.
Antonio Carlos Mathias Coltro, Ed. Juares de Oliveira, 1999; Estudos em
Homenagem ao Prof. KAZUO WATANABE).
O caso dos autos, de acordo judicial para remessa de discórdias à
solução arbitral, encontra espelho em úteis modalidades de encaminhamento
de controvérsias já judicializadas à arbitragem, como ressaltado em alguns
dos escritos acima lembrados, entre as quais a modalidade mais marcante, a
denominada “Court Annexed Arbitration”, realiza-se, em muitos Estados e,
mesmo na Justiça Federal dos Estados Unidos da América do Norte, mediante
remessa compulsória, do caso, pelo Juízo, “ex-officio”, à via arbitral, quando via
mais adequada à solução da controvérsia, como detectado inicialmente pelo Juízo
- e no caso de “court annexed arbitration”, nem mesmo há prévia manifestação de
vontade dos litigantes, no sentido da arbitragem, como ocorrido nestes autos,
em que elas próprias, as partes, entre as quais o ora Recorrido, optaram pela
arbitragem que, ulteriormente, veio o Recorrido a tentar recusar. Para a volta à
via judicial.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
377
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
16. - A Lei n. 9.307/1996 desponta nesse cenário como um divisor de
águas. Ela supera com vantagem o modelo anterior, do juízo arbitral, que
submetia necessariamente a sentença arbitral ao crivo do Poder Judiciário para
conferir-lhe eficácia. Segundo destaca CARLOS ALBERTO CARMONA
(A arbitragem no processo civil brasileiro: Malheiros, São Paulo, 1993) a Lei n.
9.307/1996 fortaleceu a claúsula compromissória, eliminou a necessidade de
homologação do laudo arbitral e, por último, disciplinou a homologação pelo
Supremo Tribunal Federal (competência hoje atribuída a este Superior Tribunal
de Justiça) da sentença arbitral estrangeira, afastando a necessidade da dupla
homologação.
17. - O artigo 8º, da Lei n. 9.307/1996, determina que:
Art. 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que
estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a
nulidade da cláusula compromissória.
Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das
partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de
arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.
Como se vê, o dispositivo em comento estabelece não apenas a autonomia
da cláusula de arbitragem em relação ao negócio jurídico no bojo da qual
ela é estabelecida (caput), mas também estabelece que a competência para
decidir acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem, aí
compreendida a cláusula e o compromisso arbitral, é do árbitro designado pelas
partes.
Na parte final do dispositivo consta ainda a indicação de que a competência
do árbitro para sindicar os vícios da convenção de arbitragem se estende ao
exame da higidez do próprio contrato em sede do qual foi estabelecida a
cláusula compromissória.
18. - Essa mesma orientação, de confiar diretamente ao próprio árbitro a
investigação sobre alegados vícios de invalidade (processual ou material) pode
ser verificada, ainda a partir do artigo 15 da Lei, que estabelece:
Art. 15. A parte interessada em argüir a recusa do árbitro apresentará, nos
termos do art. 20, a respectiva exceção, diretamente ao árbitro ou ao presidente
do Tribunal Arbitral, deduzindo suas razões e apresentando as provas pertinentes.
Consulte-se, também, o artigo 20 da mesma Lei que estabelece:
378
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Art. 20. A parte que pretender argüir questões relativas à competência,
suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade,
invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira
oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem.
Referido dispositivo está inserido no Capítulo IV, que trata do
procedimento arbitral a indicar, que a arguição das questões ali referidas e, bem
assim, o processamento dessas arguições, deve ocorrer no curso do procedimento
arbitral, perante o próprio árbitro.
19. - Mais do que uma simples coincidência, essa orientação reflete,
de forma cristalina, a opção do legislador em estabelecer, a partir da Lei n.
9.307/1996, um arcabouço normativo que permita à Arbitragem afirmar-se
e desenvolver-se como modelo viável e eficaz de resolução de conflitos, tanto
quanto possível autônomo em relação ao Poder Judiciário.
Não por outro motivo se alçou a sentença arbitral, independentemente
de trânsito em julgado ou de homologação judicial, à condição título executivo
judicial (artigo 475-N, IV, do Código de Processo Civil c.c. 18 da Lei n.
9.307/1996). Não por outro motivo, também, o Poder Judiciário está impedido
de revisar o mérito da sentença arbitral.
20. - É bem verdade que a Lei pôs à disposição da parte a ação anulatória
de sentença arbitral (artigo 33, § 1º da Lei n. 9.307/1996), facultando-lhe,
igualmente, arguir judicialmente referida nulidade em sede de embargos do
devedor, por ocasião da execução da referida sentença (artigo 33, § 3º, da Lei n.
9.307/1996).
Essa possibilidade, contudo, não subverte a orientação antes assinalada,
segundo a qual os vícios verificados em momento anterior ao da prolação da
sentença devem ser arguídos primeiramente perante o árbitro.
21. - No caso dos autos, a ação proposta pelo Autor ora Recorrido
visa, essencialmente, a desconstituir: a) a sentença judicial que homologou o
contrato em sede do qual contemplada a cláusula arbitral, b) a própria cláusula
compromissória. A propósito, vale lembrar que todos os argumentos relativos ao
instituto da Lesão e à nulidade a perícia realizada constituem, em última análise,
causas de pedir afetas a esses dois pedidos.
22. - Os pedidos enquadram-se na hipótese do já citado artigo 8º, parágrafo
único, da Lei n. 9.307/1996, nos termos do qual os vícios relativos à cláusula
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
379
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
arbitral e ao contrato que a estipulou devem ser suscitados primeiramente
perante o próprio árbitro.
23. - Não há como acolher o argumento trazido no acórdão recorrido, no
sentido de que seria contrário ao princípio da economia processual impedir
a parte interessada de arguir judicialmente, desde logo, referidas nulidades,
permitindo-lhe fazê-lo somente após a sentença arbitral.
É que ao contrário, as alegações de nulidade invocadas podem vir a ser já de
início acolhidas pelo árbitro, hipótese em que não se justificaria a ação judicial,
de modo que não se justifica “saltar” a arbitragem em prol da judicialização
prematura, nulificando-se por via obliqua, a opção arbitral e abalando-se,
o próprio prestígio do instituto da Arbitragem, que se formaria verdadeiro
expletivo no sistema processual que a quis forma judicial consensual de solução
de controvérsias, ao lado da jurisdição estatal.
De qualquer forma, independentemente da orientação principiológica que
se adote, não há como superar o comando expresso da norma.
LUIZ ANTONIO SCAVONE JÚNIOR, comentando o artigo 8º da
Lei n. 9.307/1996, afirma o seguinte (Manual de Arbitragem, 4ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010, p. 87):
O significado do dispositivo, portanto, indica que qualquer alegação de
nulidade do contrato ou da cláusula arbitral, diante de sua existência e seguindo
o espírito da lei, deve ser dirimida pela arbitragem e não pelo Poder Judiciário.
A lei pretendeu, neste sentido, “fechar uma brecha” que permitiria às partes,
sempre que alegassem a nulidade da cláusula arbitral ou do contrato, ignorar o
pacto de arbitragem e acessar o Poder Judiciário para dirimir o conflito.
Em resumo, ainda que o conflito verse sobre a nulidade do próprio contrato
ou da cláusula arbitral, a controvérsia deverá ser decidida inicialmente pela
arbitragem e não pelo Poder Judiciário, ainda que as partes tenham resilido
bilateralmente o contrato e a controvérsia verse sobre o distrato.
Este foi o espírito da lei (mens legis).
(SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antonio, Manual de Arbitragem, 4ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2010, p. 87).
24. - O Acórdão recorrido também argumentou que a questão poderia
ser decidida pelo Poder Judiciário porque, nos termos do artigo 20 da Lei n.
9.307/1996, a competência do árbitro somente se iniciaria após instaurada a
380
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
arbitragem, de maneira que, não tendo ela sido instaurada no caso concreto, não
haveria embaraço ao que o próprio judiciário apreciasse a questão.
25. - Tem-se, contudo, indubitavelmente que o artigo 20 da Lei n.
9.0307/1996 não autoriza essa conclusão proclamada pelo acórdão recorrido. O
dispositivo em questão, já transcrito, assinala que “a parte que pretender argüir
(...) nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazêlo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da
arbitragem”.
Não é lícito extrair, a partir de uma interpretação a contrario sensu do
texto legal, aniquiladora do próprio sistema da arbitragem, que a parte esteja
já autorizada a arguir a nulidade da convenção de arbitragem perante o Poder
Judiciário (...) antes da instituição da arbitragem! Essa conclusão, conforme
reiteradamente afirmado, contraria não apenas o espírito da Lei n. 9.307/1996,
como a determinação expressa contida no artigo 8º, parágrafo único, da mesma
norma.
26. - Também não é possível admitir que compete ao Poder Judiciário,
com exclusividade decidir a respeito da pretensão anulatória de sentença
homologatória de acordo judicial pelo qual as partes tenham optado pela
jurisdição arbitral.
Em primeiro lugar porque a homologação judicial de acordo firmado entre
as partes é elemento acidental do ato e não interfere na eficácia que esse acordo,
de qualquer forma, teria entre as partes signatárias.
Em segundo lugar, porque a nulidade da sentença não é pleiteada no caso
sob alegação de vício de afeto à atividade jurisdicional do Juízo homologador,
mas fincadas em alegações contrárias ao próprio acordo que foi levado à
homologação. O vício arguído diz respeito, portanto, ao contrato entabulado
pelas próprias partes que, como é evidente, antecede logicamente à chancela que
veio a ser conferida pela atuação judicial homologatória.
27. - De rigor, portanto, reconhecer o acerto da sentença em extinguir o
processo sem julgamento de mérito com fundamento no artigo 267, VII, do
Código de Processo Civil, tendo em vista a presença do destacado pressuposto
negativo de desenvolvimento válido e regular do processo.
28. - Restam prejudicados os demais temas trazidos no Recurso Especial.
29. - Ante o exposto, dá-se provimento ao Recurso Especial para
restabelecer a sentença, nos exatos termos em que proferida.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
381
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO ESPECIAL N. 1.335.622-DF (2012/0041973-0)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Alberdan Nascimento de Araújo e outro
Advogado: Jose Emiliano Paes Landim Neto e outro(s)
Recorrido: Hospital Santa Lúcia S/A
Advogado: Roberto de Souza Moscoso e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Responsabilidade civil. Violação do art. 535
do CPC. Inexistência. Súmula n. 7-STJ. Não incidência. Hospital
particular. Recusa de atendimento. Omissão. Perda de uma chance.
Danos morais. Cabimento.
1. Não viola o artigo 535 do Código de Processo Civil, nem
importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que adotou,
para a resolução da causa, fundamentação suficiente, porém diversa
da pretendida pelo recorrente, para decidir de modo integral a
controvérsia posta.
2. Não há falar, na espécie, no óbice contido na Súmula n.
7-STJ, porquanto para a resolução da questão, basta a valoração
das consequências jurídicas dos fatos incontroversos para a correta
interpretação do direito. Precedentes.
3. A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental
do nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material
dos direitos fundamentais e somente estará assegurada quando for
possível ao homem uma existência compatível com uma vida digna, na
qual estão presentes, no mínimo, saúde, educação e segurança.
4. Restando evidenciado que nossas leis estão refletindo e
representando quais as prerrogativas que devem ser prioritariamente
observadas, a recusa de atendimento médico, que privilegiou trâmites
burocráticos em detrimento da saúde da menor, não tem respaldo
legal ou moral.
5. A omissão adquire relevância jurídica e torna o omitente
responsável quando este tem o dever jurídico de agir, de praticar um
382
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ato para impedir o resultado, como na hipótese, criando, assim, sua
omissão, risco da ocorrência do resultado.
6. A simples chance (de cura ou sobrevivência) passa a ser
considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação
indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada.
7. Na linha dos precedentes deste Tribunal Superior de Justiça,
restando evidentes os requisitos ensejadores ao ressarcimento por
ilícito civil, a indenização por danos morais é medida que se impõe.
8. Recurso especial parcialmente provido.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Sidnei Beneti, a
Turma, por maioria, conhecer em parte do recurso especial e, nessa parte, darlhe provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a) Relator(a). Vencida,
parcialmente, a Sra. Ministra Nancy Andrighi. Votaram com o Sr. Ministro
Relator os Srs. Ministros Massami Uyeda, Sidnei Beneti e Paulo de Tarso
Sanseverino.
Brasília (DF), 18 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 27.2.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto por Alberdan Nascimento de Araújo e outro contra acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, assim ementado:
Reparação de danos. Morte. Paciente oriundo da rede hospitalar pública.
Decisão liminar. Nosocômio privado. Não recebimento. Ordem judicial. Ausência
de intimação oficial. Responsabilidade objetiva. Evento danoso. Nexo de
causalidade. Comprovação. Inexistência.
Conquanto sejam os estabelecimentos hospitalares fornecedores de serviços,
somente responderão pelos danos causados a pacientes, caso esteja comprovada
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
383
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
a existência de relação de consumo entre eles e/ou comprovado o nexo de
causalidade entre a conduta e o resultado danoso, tal como na responsabilidade
civil prevista no art. 957 do Código Civil pelo dano advindo do cometimento
de ato ilícito. Não estando comprovado que o paciente veio a óbito apenas
em decorrência da recusa do nosocômio réu, integrante da rede hospitalar
privada, em interná-lo em uma de suas unidades de terapia intensiva como
cumprimento de decisão liminar exarada em desfavor do Estado e da qual não
fora oficialmente intimado, correta se mostra a sua não condenação a indenizar os
danos suportados pelos genitores do paciente com o óbito de seu filho (fl. 518).
Foram opostos declaratórios, com efeitos infringentes, ao argumento de
que o acórdão não levou em consideração as provas dos autos, principalmente
no tocante aos relatórios médicos elaborados pela equipe médica do Hospital
Regional de Taguatinga.
Os embargos foram rejeitados, restando assim sumariado o acórdão:
Processual Civil. Embargos de declaração. Ausência de omissão, contradição
ou obscuridade no acórdão. Rejeição.
Rejeitam-se os embargos de declaração em que se alega a existência de
omissões e contradições no acórdão embargado, quando inexistentes quaisquer
vícios e notório o propósito do embargante de provocar o reexame de questões
já decididas para obter a modificação do julgado. A discordância da parte quanto
ao entendimento adotado pela Turma deve ser apresentada na sede recursal
adequada. Sem lugar também os embargos para fins de prequestionamento,
quando inexistentes quaisquer dos vícios previstos no art. 535 do CPC. Havendo
erro material, o decisum pode ser corrigido de ofício pelo julgador, conforme
estabelece o artigo 463, inciso I, do Código de Processo Civil (fl. 679).
Na origem, Alberdan Nascimento de Araújo e Cícera de Oliveira Silva
propuseram ação indenizatória contra o Hospital Santa Lúcia, na qual buscam
o ressarcimento pelos danos materiais e morais que sofreram em decorrência do
falecimento da filha menor do casal.
Contam que no dia 18 de julho de 2007 encaminharam a filha menor, então
com oito meses de vida, ao Hospital Regional de Taguatinga com os sintomas
de tosse seca, coriza hialina e obstrução nasal, dispnéia, febre, hipoatividade
e falta de apetite (fl. 6). Com o agravamento do quadro clínico, a criança foi
internada.
Após vários exames, em virtude da evolução da doença, na madrugada do
dia 21 de julho foi iniciado tratamento com antibiótico e sedação. Por volta das
8h50min do mesmo dia o quadro clínico era gravíssimo e, por não possuir o
384
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
hospital público estrutura para o tratamento, os médicos orientaram os pais a
conseguir vaga em hospital privado, mesmo que por meio de decisão judicial.
Narram que a liminar foi deferida no final da tarde do dia 21 de julho e
que às 20h30min o médico que acompanhava a menor no Hospital Regional de
Taguatinga - HRT comunicou à médica plantonista do Hospital Santa Lúcia
sobre a decisão e foi informado que o hospital receberia a paciente mediante a
apresentação da cópia da decisão liminar.
Buscando agilizar o recebimento da menor, o próprio médico do HRT
dirigiu-se com a cópia da liminar ao hospital recorrido, que se recusou a receber
a menor ao fundamento de que a decisão impressa da internet não tinha valor
legal.
Diante de tal quadro fático, não restou alternativa a não ser manter a criança
na enfermaria do HRT, respirando sob ventilação mecânica, em equipamento
ultrapassado. À 1h30min do dia 22 de julho, a paciente veio a falecer.
Concluem a narração sustentando que a morte da criança poderia ter sido
evitada com o uso de equipamentos adequados e que o réu, ao negar o pronto
atendimento, obrigação que lhe cabia, acabou por agravar o quadro clínico que
levou ao óbito da menor.
O juízo de primeiro grau julgou improcedente o pedido. O Tribunal local,
ratificando a sentença, entendeu que
(...) para que se possa responsabilizar o hospital pelo evento danoso ocorrido, é
necessário apurar a existência de nexo de causalidade entre o ato ilícito imputado, in
casu, a negativa de recebimento da paciente enferma nas dependências do hospital/
apelado, e o dano causado à vítima, ou seja, faz-se necessário averiguar se restou
comprovado que a morte da filha dos autores/apelantes deu-se em razão da omissão
do hospital/apelante.
(...)
E pelo que apreciei dos autos, tenho que, de fato, não houve comprovação
(i) de que o hospital/apelado tivesse a obrigação jurídica de receber a criança em
seu estabelecimento, tampouco (ii) de que a morte da paciente tenha ocorrido
unicamente da negativa do hospital/apelado de acolhê-la em suas dependências.
Da ponderação de tudo o que se extrai dos autos, embora se chegue
à conclusão de que o óbito da filha dos autores/apelantes tenha decorrido do
grave estado clínico que a acometera naquela ocasião, aliada à falta de tratamento
adequado para as necessidades vindicadas pelo caso (...) É bem verdade que, de
certa forma, havendo nessa decisão judicial a ordem para que determinado
hospital, em havendo vagas disponíveis, procedesse à internação da paciente,
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
385
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
não há como não entender que, em verdade, também recai sobre terceiro o ônus
de arcar com o provimento judicial proferido em desfavor de outrem.
Contudo, mesmo que o caso envolva a tentativa de salvaguardar a vida de uma
pessoa, não se poderia exigir que o hospital/apelado cumprisse a decisão judicial
liminar baseada em documento não oficial e que, por isso, tinha caráter meramente
informativo.
Quero com isso dizer que, em verdade, apesar da gravidade do estado de saúde
da filha dos autores/apelantes e da urgência que a sua condução para o leito da
UTI pediátrica exigia, não se pode dizer que o hospital/apelado tenha incorrido em
omissão de socorro, tampouco que possa ser responsabilizado pela morte da criança
enferma.
Se o serviço médico-hospitalar prestado pelo hospital público não foi eficiente
e adequado o suficiente para proporcionar à paciente o tratamento que seu caso
necessitava, sendo necessário empreender ações com escopo de compelir o
Estado a providenciar um leito de UTI, seja na rede pública ou na rede privada, e,
em decorrência do tempo exigido para pôr em prática essas medidas tenha sido
demasiado para a urgência que o quadro clínico da paciente exigia, para mim
está claro que o fator determinante de sua morte não pode ser imputado ao fato do
hospital particular se negar a autorizar a transferência e a internação dessa paciente
para suas instalações, pois as despesas daí advindas não seriam arcadas pelos
genitores da paciente, mas pelo Estado.
Em razão disso, entendo não haver elementos de prova suficientes para
discordar do entendimento exposto pela MM. Juíza sentenciante, no sentido
de não responsabilizar o nosocômio/apelado, uma vez que não correra qualquer
causa a justificar a sua responsabilidade.
Dessa forma, inexistindo o direito de os autores/apelantes exigirem do réu/
apelado que aceitassem a transferência e internação de sua filha em um leito de UTI
daquele nosocômio, entendo ausente o nexo de causalidade entre a conduta alegada
como ilícita e o dano experimentado, estando, por isso, isento o hospital/apelado de
arcar com qualquer indenização.
(...) (fls. 661-662 - grifou-se).
Agora, pela via especial, os recorrentes pretendem a reforma do julgado
sustentando, de início, violação do artigo 535 do Código de Processo Civil,
porquanto foram negligenciados vários documentos acostados aos autos, além
de não terem sido corretamente avaliados os testemunhos, principalmente
quanto ao depoimento prestado pelo Dr. Antônio José Francisco Pereira dos
Santos, um dos responsáveis pelo atendimento da menor.
Em seguida, apontaram como violados os artigos 186, 187, 927 e 951 do
Código Civil e artigos 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica.
386
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Para tanto, sustentaram que
(...) o hospital Santa Lúcia, ora recorrido, agiu de forma omissiva ao não
providenciar à paciente (...) sua devida internação em uma de suas Unidades de
Terapia Intensiva, ao argumento que a cópia da decisão liminar deferida para
que o Distrito Federal arcasse com as despesas decorrentes do seu tratamento
no hospital particular não possuía valor legal, pois o hospital não havia sido
devidamente intimado da decisão exarada pelo Poder Judiciário. Logo, incorreu
na responsabilidade civil objetiva em indenizar, a uma porque houve o dano
(morte da menor), a duas é flagrante a omissão médico-hospitalar em não
recepcionar a menor, que necessitava de cuidados intensos (UTI), a três nexo de
causalidade está plenamente demonstrado pelo elo que une o dano à conduta
omissiva perpetrada pelo Recorrido.
(...)
O não recebimento da paciente não fora providenciado e muito menos acatado
pelos membros do Hospital Santa Lúcia, sob o mero argumento que não haviam
recebido ordem judicial que os obrigasse a recepcionar a paciente em estado
gravíssimo.
(...)
É claro que o Recorrido agiu contrário aos preceitos impostos pela medicina. Os
hospitais funcionam para atender àqueles que lhes recorrem e não para causarlhes mal, sofrimento, angústia ou até mesmo a morte, pois na hipótese dos autos
prestigiou-se a forma em detrimento da própria vida.
(...)
No tocante a boa-fé, esta também restou inobservada, a uma porque o Hospital
Santa Lúcia já havia se prontificado em receber a paciente, quando a liminar fosse
deferida pelo Douto Juízo, bastando apenas à apresentação da cópia liminar
impressa do site do TJDFT para a devida internação da menor em uma de suas
Unidades de Terapia Intensiva, o que de fato não veio a ocorrer.
(...)
Verifica-se, portanto, o dever do Hospital Santa Lúcia assegurar aos cidadãos
o direito à saúde, à vida, garantia esta resguardada pela Constituição Federal
e Legislação infraconstitucional, sendo certo que na hipótese dos autos a
menor deveria ter sido atendida pelo Recorrido com absoluta prioridade
independentemente de intimação oficial para o nosocômio privado para o seu
devido cumprimento, restando claro e evidente que uma ordem judicial sem
intimação oficial não pode obstar em hipótese alguma o atendimento a criança
que à época estava apenas com 08 (oito) meses de idade.
Assim, a garantia de prioridade compreende a primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias, e no caso em tela o socorro fora negligenciado,
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
387
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
sendo a dignidade da pessoa humana ultrajada pelo Recorrido, pois em detrimento
à absoluta prioridade do direito à vida da menor, prestigiou o formalismo em não
ter sido devidamente intimado da decisão liminar que autorizava o recebimento da
menor em suas dependências as expensas do Ente Público.
(...)
O Hospital particular avocou para si o dever de prestar saúde pública aos que dela
necessitam, devendo, portanto, zelar pela eficiência e por métodos que não agravem
ainda mais a situação já penosa dos cidadãos que a ela recorrem. (...) É notório
o nexo de causalidade perpetrado em sua conduta, a uma porque o dano fora
patente (morte da menor) e o ato ilícito fora decorrente de sua conduta omissiva
em não fornecer uma de suas Unidades de Terapia Intensiva par atendimento e
tratamento (...).
(...)
Como se vê, o Réu não detinha o arbítrio de recusar o atendimento da paciente que
se encontrava em estado gravíssimo, prestigiou-se a forma, ou melhor, a burocracia
da não intimação oficial do Hospital Santa Lúcia, em detrimento do bem jurídico
mais importante e valioso, qual seja: a vida. Esclareça-se que a dinâmica dos fatos,
mais precisamente o momento do deferimento da ordem liminar que autorizava
a transferência da menor para hospitais da rede pública ou na impossibilidade
de fazê-lo, que o Distrito Federal arcasse integralmente com as despesa em UTI
da rede particular, fora às 17h02m do dia 27.7.2006 (sexta-feira), não podendo
os pais, enfermeiros, médicos da rede pública esperarem a burocracia do Poder
Judiciário, leia-se oficial de justiça plantonista para seu devido cumprimento, pois
uma vida estava sendo perdida, o que efetivamente ocorreu.
(...)
Denota-se que a Unidade de Terapia Intensiva era essencial para a sobrevivência
(...). Se o réu tivesse, desde o início da luta dos profissionais da saúde pública,
assinalado que não receberia a paciente tão somente com a cópia da decisão liminar
deferida pelo Poder Judiciário, os funcionários, médicos, enfermeiros do Hospital
Regional de Taguatinga teriam procurado outro hospital particular que a recebesse,
pois a situação era de risco e os profissionais da saúde que a ajudaram queriam que a
transferência ocorresse da forma menos gravosa à paciente em questão, sem contar
que o mais absurdo é que o hospital Santa Lúcia havia se comprometido a receber a
paciente apenas com a cópia da liminar deferida, pois o caso era gravíssimo.
(...)
In casu, o Réu não tinha como não providenciar o atendimento da menor, uma
vez que o caso era grave, urgente e de risco iminente. Caso o Réu se atentasse aos
princípios básicos do Código de Ética Médica, teria oportunizado seu pronto
atendimento e quem sabe a morte da menor poderia ter sido evitada e ele estaria
no ambiente familiar junto aos seus pais.
(...) (fls. 695-702 - grifou-se).
388
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Sem contrarrazões (fl. 759), não foi o especial admitido, sendo, no entanto,
por força da decisão de fls. 801-802, conhecido o agravo, determinando-se sua
reautuação como especial.
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator):
1. Da violação do artigo 535, inciso II, do CPC.
De início, quanto à negativa de prestação jurisdicional, é de se afastar
qualquer negativa de vigência ao artigo 535, inciso II, do Código de Processo
Civil, haja vista que a questão controvertida foi enfrentada de forma clara e
motivada, nos expressos limites em que proposta a demanda, não se prestando
os declaratórios ao reexame de matéria já decidida, à luz dos fundamentos
invocados pelos recorrentes, nem ao revolvimento probatório sob o enfoque dos
embargantes.
De tanto, inexiste vício a ser corrigido em sede de embargos de declaração.
Quanto à questão central do inconformismo, é necessário, contudo, tecer
algumas considerações.
2. Código de Ética Médica.
Não pode ser conhecido o recurso especial quanto à alegada ofensa aos
artigos 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, pois tal espécie de
ato normativo não está abrangida no conceito de “tratado ou lei federal” inserido
na alínea a, do inciso III, do art. 105, da Constituição Federal (AgRg no REsp
n. 1.055.776-SP, 1ª T., Min. Teori Albino Zavascki, DJe 16.11.2011; e AgRg
no Ag n. 1.421.611-RJ, 2ª T., Min. Mauro Campbell Marques, DJe 9.12.2011).
3. Não incidência da Súmula n. 7-STJ.
A controvérsia diz respeito a pedido de indenização por dano moral e
material decorrente de óbito de filha menor por ato ilícito.
Ao que se tem, restaram expressamente delimitadas tanto na sentença
quanto no voto condutor a situação fática dos autos e a questão jurídica
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
389
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
controvertida. Por sua vez, no apelo excepcional, os recorrentes não se insurgem a
respeito da veracidade das provas, mas tão somente no tocante às consequências
do julgamento, tendo em vista os fatos delineados.
Assim, para a resolução da controvérsia, portanto, mostra-se desnecessário
qualquer revolvimento probatório, bastando o enquadramento jurídico de fatos
já descritos e tornados incontroversos pelo órgão julgador, a afastar o óbice da
Súmula n. 7 desta Corte.
Com efeito, o cerne do inconformismo está na qualificação jurídica da
conduta do recorrido e a sua relação com o dano.
Nessa seara, peço vênia para transcrever a lição do ilustre Ministro Teori
Albino Zavascki:
(...)
Por nexo causal entende-se a relação – de natureza lógico-normativa, e não
fática – entre dois fatos (ou dois conjuntos de fato): a conduta do agente e o
resultado danoso. Fazer juízo sobre nexo causal não é, portanto, revolver prova, e
sim estabelecer, a partir de fatos dados como provados, a relação lógica (de causa
e efeito) que entre eles existe (ou não existe). Trata-se, em outras palavras, de
pura atividade interpretativa, exercida por raciocínio lógico e à luz do sistema
normativo. Daí não haver qualquer óbice de enfrentar, se for o caso, mesmo nas
instâncias extraordinárias (recurso especial ou recurso extraordinário), as questões
a ele relativas. Nesse ponto, é pacífica a jurisprudência assentada no STF
(especialmente ao tratar da responsabilidade civil do Estado), no sentido de que o
exame do nexo causal, estabelecido a partir de fatos tidos como certos, constitui
típica atividade de qualificação jurídica desses fatos e não de exame de prova.
Paradigmático, nesse sentido, o precedente do RE n. 130.764, 1ª Turma, Min.
Moreira Alves, DJ de 7.8.1992 (REsp n. 843.060-RJ - grifou-se).
Assim, delimitado o âmbito de conhecimento do recurso, passa-se à análise
do cerne da controvérsia.
4. Da omissão.
De início, quanto à conduta do agente, em sua literalidade, as instâncias
ordinárias concluíram no sentido de que o hospital não estava obrigado a
receber a paciente, porquanto a “omissão capaz de evidenciar a responsabilidade
civil é aquela que se revela juridicamente relevante, o que deve ser entendido
como o deixar de fazer algo a que estava juridicamente obrigado”.
A questão que ora se apresenta é repassada de sensibilidade e graveza: o
acesso à saúde e o direito à vida.
390
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Ora, a interpretação das normas jurídicas em geral deve observar não
apenas os princípios, mas também os fundamentos em que se ampara a
República Federativa do Brasil, dentre eles a dignidade da pessoa humana,
como consta do art. 1º, inciso III, da Constituição Federal:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
Essa disposição normativa não é mera construção retórica. Ao contrário,
deve ser interpretada como um balizamento a toda atividade estatal, não apenas
no desenvolvimento de políticas públicas que atentem para os fundamentos
eleitos como basilares à organização do Estado brasileiro, mas, da mesma forma,
no exercício das funções legislativa e judiciária.
A dignidade da pessoa humana, alçada a princípio fundamental do
nosso ordenamento jurídico, é vetor para a consecução material dos direitos
fundamentais e somente estará assegurada quando for possível ao homem uma
existência compatível com uma vida digna, na qual estão presentes, no mínimo,
saúde, educação e segurança.
Em outras palavras, esse valor é revelado pela Constituição Federal por
meio dos direitos fundamentais, aos quais confere caráter sistêmico e unitário.
Luís Roberto Barroso bem analisa a dignidade da pessoa humana como
princípio que
(...) identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a
todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação,
independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A
dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com
as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço
para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para
as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais. Partindo da
premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua
indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam
como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da
pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam
visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso
de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
391
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
fundamental e acesso à justiça (Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 381
- grifou-se).
Outrossim, não resta dúvida do caráter de serviço público dos prestadores
de serviço de saúde ante o que expressa o artigo 6º da Constituição Federal:
“São direitos sociais, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social,
a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma
desta Constituição” (grifou-se).
Além deste, o artigo 196, também é contundente quando diz que “a saúde
é direito de todos e dever do Estado, garantindo (...) acesso universal igualitário
às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
A Lei Maior positivou, ainda, no artigo 5º, incisos X e XXII, a conduta
diligente e prudente, na perspectiva de efetivar o princípio neminem laedere (não
lesar a ninguém) desencadeando a obrigação de reparar os danos patrimoniais
ou extrapatrimoniais injustos se evidenciados do próprio fato.
Em consonância com o preceito maior, a Lei n. 8.080/1990, denominada
de Lei Orgânica da Saúde, dispõe:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover
as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução
de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e
de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso
universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e
recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da
sociedade. (grifou-se).
É o que se extrai da preciosa lição de José Afonso da Silva, quando discorre
acerca da garantia constitucional à saúde:
(...)
É espantoso como um bem extraordinariamente relevante à vida humana só
agora é elevado à condição de direito fundamental do homem. E há de informarse pelo princípio de que o direito igual à vida de todos os seres humanos significa
também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um tratamento condigno
de acordo com o estado atual da ciência médica, independentemente de sua
situação econômica, sob pena de não ter muito valor sua consignação em normas
constitucionais.
392
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
O tema não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior,
que dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção à saúde,
mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e
epidemias. Agora é diferente, trata-se de um direito do homem. (Curso de Direito
Constitucional Positivo, 20ª ed., p. 307-308 - grifou-se).
Outrossim, preceituam os artigos 1º e 3º da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto
da Criança e do Adolescente-ECA):
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.
(...)
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta
Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades
e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade (grifou-se).
Já o art. 4º desse diploma legal veicula o princípio da proteção preferencial,
em regime de absoluta prioridade, sobretudo na efetivação de direitos referentes
à vida, à saúde, à educação e à dignidade, assim preconizando:
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a
proteção à infância e à juventude. (grifou-se).
O artigo 5º, por sua vez, dispõe que “nenhuma criança ou adolescente será
objeto de qualquer forma de negligência ou discriminação (...), por ação ou
omissão, aos seus direitos fundamentais”.
No caso, havia inescapavelmente a necessidade de pronto atendimento da
menor, cuja recusa caracteriza omissão de socorro.
Veja-se, a propósito, os artigos 186, 187 e 927 do Código Civil:
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
393
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito. (grifou-se).
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes. (grifou-se).
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de
outrem. (grifou-se).
Outra não é a lição de Caio Mário, quando diz
(...)
Das modalidades de risco, eu me inclino pela subespécie que deu origem à
teoria do risco criado. Como já mencionei (...) Depois de haver o art. 929 deste
Projeto (art. 927 do Código) enunciado o dever ressarcitório fundado no conceito
subjetivo, seu parágrafo único esposa a doutrina do risco criado, a dizer que,
independentemente da culpa, e dos casos especificados em lei, haverá obrigação
de reparar o dano quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. (Responsabilidade
civil, 9ª ed. Rio de Janeiro, p. 284 - grifou-se).
Não menos importante, o Código Penal dita que:
Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco
pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao
desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro
da autoridade pública:
(...)
Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão
corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte.
Art. 135-A. Exigir cheque-caução, nota promissória ou qualquer garantia, bem
como o preenchimento prévio de formulários administrativos, como condição
para o atendimento médico-hospitalar emergencial:
(...)
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se da negativa de
atendimento resulta lesão corporal de natureza grave, e até o triplo se resulta a
morte.
394
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
No caso concreto, a funcionária do hospital tinha, no mínimo, o dever de
permitir o acesso da criança ao atendimento médico, ainda que emergencial, um
ato simples que poderia ter salvado uma vida. Prestar socorro é dever de todo e
qualquer cidadão.
Significa a exigência de atuar no propósito de não lesar nem cometer danos
injustos a bem de pessoa inocente e, assim, cumprir os deveres de cuidado e de
agir como determinado pela ordem jurídica. É o que a doutrina proclama como
falta contra a legalidade constitucional.
Evidenciado, portanto, que nossas leis disciplinam os direitos e garantias
que devem ser prioritariamente observados, a recusa na recepção da paciente,
que privilegiou trâmites burocráticos em detrimento do atendimento hospitalar,
não tem respaldo legal ou moral.
De outra parte, não se pode aceitar a recusa pela instância ordinária do
valor da decisão judicial contida no site do Tribunal local, porquanto, como
já decidido por esta Turma, “com o advento da Lei n. 11.419/2006, que veio
disciplinar ‘(...) o uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais,
comunicação de atos e transmissão de peças processuais’, acredita-se que a tese
de que as informações processuais fornecidas pelos sites oficiais dos Tribunais de
Justiça e/ou Tribunais Regionais Federais, somente possuem cunho informativo
perdeu sua força, na medida em que, agora está vigente a legislação necessária
para que todas as informações veiculadas pelo sistema sejam consideradas
oficiais” (REsp n. 1.186.276-RS, DJe 3.2.2011, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe
3.2.2011).
Não se sustenta, ainda, a isenção de responsabilidade pela ausência da
presença da criança no momento do pedido da internação, haja vista que a
recusa do atendimento não se deu por esse motivo, como já exposto.
Em verdade, por qualquer ângulo que se observe, ao negar a prestação
fundamental à criança, nas circunstâncias dos autos, o hospital recorrido
humilhou a cidadania, descumpriu o seu dever constitucional e praticou atentado
à dignidade humana e à vida.
5. Do nexo causal.
Dispondo o artigo 37, § 6º, da Constituição Federal que “As pessoas
jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviço público
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
395
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
(...)”, tem-se que todos que vivem em sociedade estão na condição de portadores de um
papel, e somente quando a violação deste papel for determinante para a produção do
evento lesivo é que este pode ser imputado ao sujeito.
Ao mesmo tempo, o artigo 932 do Código Civil, em seu inciso III,
dispõe que “são também responsáveis pela reparação civil (...) o empregador ou
comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho
que lhes deve competir, ou em razão dele”.
Não se desconhece que no direito brasileiro vige o princípio de causalidade
adequada e, por outros, o princípio do dano direto e imediato, cujo enunciado pode
ser expresso em duas partes: a primeira (que decorre, a contrario sensu, do art.
159 do CC/1916 e do art. 927 do CC/2002, que fixa a indispensabilidade do
nexo causal) dispõe que ninguém pode ser responsabilizado por aquilo a que não
tiver dado causa; e a outra (que decorre do art. 1.060 do CC/1916 e do art. 403
do CC/2002 e que fixa o conteúdo e os limites do nexo causal) diz que somente
se considera causa o evento que produziu direta e concretamente o resultado danoso.
Com razão, uma das condições básicas para a concessão da indenização
nos casos de responsabilidade civil é o nexo causal certo entre a falha e o dano.
Ou seja, ou se reconhece o ato e o relaciona ao dano ou julga-se absolutamente
improcedente o pedido, é a regra do tudo ou nada.
Na espécie, contudo, há peculiaridades que atraem outro enfoque para o
deslinde da causa.
Com efeito, não há como ser aplicado de forma pura o princípio de
causalidade adequada, também não se está promovendo debates a respeito
da sua relativização, mas não se pode deixar de apreciar, diante dos fatos
exaustivamente analisados, que a questão envolve uma conduta (omissão) que
poderia ter garantido a chance de um resultado diverso.
A esse respeito, Miguel Kfouri Neto comenta:
Não há olvidar as condições de trabalho dos nossos médicos, mormente
em hospitais públicos ou ligados à Previdência (...) Nada disso elide, por óbvio,
a crassa imprudência, a omissão pura e simples ou o injustificado desvio de
conduta, sempre passíveis de punição (Culpa Médica e ônus da Prova, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002, p. 111).
Com razão, a doutrina, ainda tímida no âmbito cível, tem-se firmado
no sentido de que a omissão adquire relevância jurídica e torna o omitente
responsável pelo dano, quando este tem o dever jurídico de agir, de praticar um
396
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
ato para impedir o resultado, e se omite assumindo o risco pela ocorrência do
resultado.
O dever geral de prevenção do perigo encontra a sua base de sustentação
em razões não só normativas como também ética, inserto no princípio geral do
já citado neminem laedere.
É de se enfatizar no plano dogmático este princípio geral, o qual, embora
não expressamente plasmado em preceito legal, decorre de várias normas do
nosso ordenamento, no sentido de que, tendo o dever jurídico de agir, quem
está diante de uma situação de risco ou perigo, deve tomar as providências
necessárias para prevenir os danos daí relacionados.
Desse modo, a relação entre a omissão do hospital e o dano à paciente
não é natural, mas estritamente jurídica. Ao omitir-se, o nosocômio acabou
evidenciando o dano, ao reduzir substancialmente a possibilidade de
sobrevivência da menor.
Do direito comparado, a propósito, traz-se a lição de Joseph H. King Jr.
(Reduction of likelihood reformulation and other retrofitting of the loss-of-a-chance
doctrine, 1998, p. 507), que ao comentar o parágrafo 323 do Restatement (Second)
of Torts assevera que aquele que se incumbe de prestar, de forma gratuita
ou onerosa, serviços que são reconhecidos como necessários para garantir a
segurança pessoal e patrimonial de outrem deverá ser responsabilizado pelos
danos físicos causados à vítima, se a sua negligência tiver aumentado os riscos
para a consecução do dano.
Em casos tais, não impedir o resultado, significa permitir que a causa
opere. Sobre o tema, Sérgio Cavalieri Filho esclarece que
(...) Não há dúvida, entretanto, agora já examinada a omissão pelo aspecto
normativo, de que o Direito nos impõe, muitas vezes, o dever de agir, casos
em que, nos omitindo, além de violar dever jurídico, deixamos de impedir a
ocorrência de um resultado. Dessa forma, embora a omissão não dê causa a
nenhum resultado, não desencadeie qualquer nexo causal, pode ser causa para não
impedir o resultado.
Ora, não impedir significa permitir que a causa opere. O omitente, portanto,
coopera na realização do evento com uma condição negativa: ou deixando de
se movimentar, ou não impedindo que o resultado se concretize. Responde por
esse resultado não porque o causou com a omissão, mas porque não o impediu,
realizando a conduta a que estava obrigado. (“Programa de Responsabilidade Civil”,
Malheiros, 9ª ed., p. 65 - grifou-se).
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
397
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Dessume-se, portanto, que é indiscutível que, no caso em apreço, o hospital
pode não ter causado diretamente o resultado morte, mas tinha a obrigação legal
e não o impediu, privando a paciente de uma chance de receber um tratamento
digno que, talvez, pudesse lhe garantir uma sobrevida.
Em suma, a omissão está em relação de causalidade não com o evento
morte, mas com a interrupção do tratamento, ao qual tinha a obrigação jurídica
de realizar, ainda que nunca se venha a saber se geraria resultado positivo ou
negativo para a vítima.
6. Da perda de uma chance de cura ou sobrevivência (perte d’une chance
de survie ou guérison)
Como bem anotou José Carlos Moreira Alves, “determinar a natureza
jurídica de um instituto é estabelecer o seu enquadramento dentro de uma das
categorias dogmáticas admitidas no sistema jurídico” (Da Alienação Fiduciária
em Garantia, Saraiva, 1973, p. 45).
Jurisprudência e doutrina francesas, referências por excelência no âmbito
da responsabilidade civil, desde a década de sessenta, chamam de perte d´une
chance, e pontificaram o entendimento de que a pessoa prejudicada por esse
rompimento indevido faz jus a alguma sorte de reparação civil.
Sustentam, ainda, a existência de duas hipóteses da perda de uma chance.
A primeira é denominada de “casos clássicos” de perda de uma chance,
representando as situações em que se possui um dano autônomo e independente
do final. A segunda trata dos casos de perda de uma chance na seara médica.
Da Revista Síntese Trabalhista - RST (n. 277, julho/2012, p. 34), extrai-se
um caso emblemático julgado pela 1ª Câmara da Corte de Cassação da França,
em julho de 1964, que inaugurou na jurisprudência francesa os fundamentos da
teoria da perda de uma chance.
O caso narrou a acusação e a posterior condenação de um médico ao
pagamento de uma pensão devido à verificação de falta grave contra as técnicas
da medicina, sendo que foi considerado desnecessário o procedimento adotado
pelo médico, consistente em amputar os braços de uma criança para facilitar o
parto.
A Corte francesa considerou haver um erro de diagnóstico, que redundou
em tratamento inadequado. Entendeu-se, logo em sede de 1ª instância, que
entre a conduta médica e a invalidez do menor, não se podia estabelecer de modo
398
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
preciso um nexo de causalidade. Contudo, a Corte de Cassação assentou que as
presunções suficientemente graves, precisas e harmônicas podem conduzir à
responsabilidade.
Tal entendimento foi acatado a partir da avaliação do fato de o médico
haver perdido uma chance de agir de modo diverso, condenando-o a uma
indenização de 65.000 francos.
Outro leading case a ser citado é o caso Hicks v. United States, julgado
em 1966. Uma paciente que sofria de dores abdominais foi atendida pelo
plantonista e liberada para retornar somente oito horas mais tarde. Antes,
porém, veio a falecer. O dano final (morte) foi indenizado, mesmo sem a prova
inequívoca da conditio sine qua non, isto é, a vítima poderia ter falecido devido ao
normal desenvolvimento da doença, mesmo que adequadamente tratada.
Nas precisas palavras de Jean Penneau, citadas por Rafael Peteffi da Silva,
tem-se que “Na perspectiva clássica da perda de chances, um ato ilícito (une faute)
está em relação de causalidade certa com a interrupção de um processo do qual
nunca se saberá se teria sido gerador de elementos positivos ou negativos: em
razão deste ato ilícito um estudante não pôde apresentar-se ao exame, um cavalo
não pôde participar de uma corrida. Assim, devem-se apreciar as chances que
tinha o estudante de passar no exame ou o cavalo de ganhar a corrida. Portanto,
aqui, é bem a apreciação do prejuízo que está diretamente em causa. A perda
de chances de cura ou de sobrevida coloca-se em uma perspectiva bem diferente:
aqui, o paciente está morto ou inválido; o processo foi até o seu último estágio
e conhece-se o prejuízo final.” (Responsabilidade Civil pela Perda de uma
Chance, Ed. Atlas, 2007, p. 84-85).
É de se concluir, portanto, que, ainda que sem garantia de cura, seria
possível o restabelecimento da criança em alguma medida (completo, ou parcial,
pelo menos, conceito que inclui o prolongamento temporal de sua vida), caso
tivesse sido atendida.
A questão da perda da chance de cura ou sobrevivência se afigura na
situação fática definitiva, que nada mais modificará, haja vista que o fato do qual
originou o prejuízo está consumado, e no presente caso, quanto ao direito à vida,
seu fundamento não pode ser outro que a própria dignidade humana.
Isso porque o que se indeniza na responsabilidade por perda de chance outra
coisa não é senão a própria chance perdida.
Caio Mário da Silva Pereira, já citado, analisando a situação da perda de
uma chance, leciona que
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
399
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A doutrina moderna assenta bem os extremos: o que é significativo é que
a chance perdida tenha algum valor, do qual a vítima se privou. Weill e Terré
lembram, ainda, como exemplos o caso da pessoa que deixou de adquirir um
imóvel por culpa do notário ou de ganhar um processo pela falha do escrivão ou
do advogado (...) Ulderico Pires dos Santos registra decisão do Supremo Tribunal
Federal reconhecendo a legitimidade da companheira para pleitear indenização
(...). É claro, então, que se a ação se fundar em mero dano hipotético, não cabe
reparação. Mas esta será devida se se considerar, dentro na idéia da perda de
uma oportunidade (perte d’une chance) e puder situar-se a certeza do dano. Daí
dizer Yves Chartier que a reparação da perda de uma chance repousa em uma
probabilidade e uma certeza: que a chance seria realizada e que a vantagem perdida
resultaria em prejuízo. (Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 4142 - grifou-se).
Do voto proferido pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior (REsp n.
57.529-DF, DJ 23.6.1997), conquanto vencido, extrai-se os ensinamentos de
Geneviève Viney, quando afirma:
(...) o caráter futuro do dano não se constitui em empecilho para que se admita
a responsabilidade civil, sendo comum nos casos de danos contínuos, como
na indenização por incapacidade física, ou por morte do obrigado a prestar
alimentos, etc. A oportunidade, a chance de obter uma situação futura é uma
realidade concreto, ainda que não o seja a real concretização dessa perspectiva; é
um fato do mundo, um dado da realidade, tanto que o bilhete de loteria tem valor,
o próprio seguro repousa sobre a idéia de chance. A dificuldade de sua avaliação
não é maior do que avaliar o dano moral pela morte de um filho, ou o dote devido
à mulher agravada em sua honra (art. 1.548 do CC). É preciso, porém, estabelecer
linhas limitadores: a chance deve ser real e séria; o lesado estar efetivamente em
condições pessoais de concorrer à situação futura esperada; deve haver proximidade
de tempo entre a ação do agente e o momento em que seria realizado o ato futuro;
a reparação deve necessariamente ser menor do que o valor da vantagem perdia
(Viney, Geneviève, La responsabilité, in Traité de Droit Civil, Jacques Ghestin, LGDJ,
1982, 341 e seguintes). (grifou-se).
A chance perdida consiste na privação de uma probabilidade, não
hipotética, de sucesso em pretensão assegurada pelo direito e frustrada por
conduta ignóbil do causador do dano. Em verdade, a perda de uma chance já
existia no momento da recusa do hospital em receber a menor.
Miguel Kfouri Neto, além de tratar detalhadamente da responsabilidade
pela perda de uma chance na seara médica, ratifica tal entendimento, quando
afirma que “a chance perdida deve ser ‘séria’, ou ‘real e séria’. É necessário
400
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
demonstrar a realidade do prejuízo final, que não pode ser evitado” (Culpa
Médica e ônus da Prova, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 111).
A chance perdida reparável, reforça Cavalieri, “deverá caracterizar um
prejuízo material ou imaterial resultante de fato consumado, não hipotético”
(Programa de Responsabilidade Civil, 9ª ed., p. 77).
O fato é certo: a menor faleceu. A simples chance (de cura ou sobrevivência),
no presente caso, é que passa a ser considerada como bem juridicamente
protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível
de ser reparada. A perda de chance, aqui, se arruma por inteiro, como um alerta
ao cuidado dos que lidam com a vida humana.
Em outros termos, ao se afastar a expectativa de restabelecimento
pela realização de um exame, de um outro tratamento ou pela utilização de
equipamentos mais modernos, houve interferência indevida na esfera jurídica
de terceiro.
Tratando do tema, Miguel Maria de Serpa Lopes aduz que: “Tem-se
entendido pela admissibilidade do ressarcimento em tais casos, quando a
possibilidade de obter lucro ou evitar prejuízo era muito fundada, isto é, quando
mais do que possibilidade havia numa probabilidade suficiente, é de se admitir
que o responsável indenize essa frustração. Tal indenização, porém, se refere
à própria chance, que o juiz apreciará in concreto, e não ao lucro ou perda que
dela era objeto, uma vez que o que falhou foi a chance, cuja natureza é sempre
problemática na sua realização”. (Curso de Direito Civil, vol. II, 5ª ed, p. 375376).
Esta Corte, não obstante tratar de casos considerados clássico, assim já se
manifestou:
Responsabilidade civil. Advocacia. Perda do prazo para contestar. Indenização
por danos materiais formulada pelo cliente em face do patrono. Prejuízo material
plenamente individualizado na inicial. Aplicação da teoria da perda de uma
chance. Condenação em danos morais. Julgamento extra petita reconhecido.
1. A teoria da perda de uma chance (perte d’une chance) visa à responsabilização
do agente causador não de um dano emergente, tampouco de lucros cessantes, mas
de algo intermediário entre um e outro, precisamente a perda da possibilidade de se
buscar posição mais vantajosa que muito provavelmente se alcançaria, não fosse
o ato ilícito praticado. Nesse passo, a perda de uma chance - desde que essa seja
razoável, séria e real, e não somente fluida ou hipotética - é considerada uma lesão
às justas expectativas frustradas do indivíduo, que, ao perseguir uma posição jurídica
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
401
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
mais vantajosa, teve o curso normal dos acontecimentos interrompido por ato ilícito
de terceiro.
(...)
4. Recurso especial conhecido em parte e provido (REsp n. 1.190.180-RS,
Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16.11.2010, DJe
22.11.2010 - grifou-se).
Direito Civil e Processual Civil. Recurso especial. 1) negativa de prestação
jurisdicional afastada. 2) perda de chance que gera dever de indenizar. 3)
candidato a vereador, sobre quem publicada notícia falsa, não eleito por reduzida
margem de votos. 4) fato da perda da chance que constitui matéria fática não
reexaminável pelo STJ.
(...)
II. - As Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte vêm reconhecendo
a possibilidade de indenização pelo benefício cuja chance de obter a parte lesada
perdeu, mas que tinha possibilidade de ser obtida.
(...)
V. - Recurso Especial improvido (REsp n. 821.004-MG, Rel. Ministro Sidnei
Beneti, Terceira Turma, julgado em 19.8.2010, DJe 24.9.2010).
Cotejando-se esses entendimentos com a situação dos autos, consistente
no benefício cuja chance a criança perdeu, verifica-se que, caso o tratamento
fosse realizado, poderia a filha do autores ter tido a chance de, ao menos,
sobreviver. Incontestável, portanto, o direito dos pais à reparação de acordo com
a teoria dos danos reflexos ou por ricochete.
Com efeito, os pais agem defendendo direito próprio, inerente à sua
personalidade, que é ofendida com o desrespeito à saúde e à vida de sua
filha, que, por sua vez, tinha direito à integridade física e moral garantido por
normas constitucionais e civis, daí falar-se em violação reflexa, em tese, assim se
limitando a incidência da norma no presente caso.
7. Conclusão.
Presentes os requisitos ensejadores do ressarcimento por ilícito civil, é de
se reconhecer a violação do artigo 927 do Código Civil e, por consequência, o
direito dos recorrentes à pretensão indenizatória. Nos termos do artigo 257 do
Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, aplica-se, desde já, o direito
à espécie.
402
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Constatada a omissão do recorrido, poderiam advir daí danos materiais e
morais. Nessa ordem de ideias, irrefutável a situação de sofrimento vivenciada
injustamente pelos pais, causada única e exclusivamente pela recusa de
atendimento médico à filha, que lhes retirou a chance do tratamento.
A propósito, cumpre destacar a lição de Sérgio Sabi:
Em conclusão, haverá casos em que a perda da chance, além de representar
um dano material, poderá, também, ser considerada um “agregador” do dano
moral. Por outro lado, haverá casos em que apesar de não ser possível indenizar
o dano material, decorrente da perda da chance, em razão da falta dos requisitos
necessários, será possível conceder uma indenização por danos morais em razão
da frustrada expectativa. (Responsabilidade Civil por Perda de uma Chance,
Editora Atlas, São Paulo/SP, 2006, p. 56).
Nesse diapasão, doutrina e jurisprudência convergem no sentido de que
para a fixação do valor da compensação pelos danos morais deve-se considerar
a extensão do dano experimentado pela vítima, a repercussão no meio social e a
situação econômica das partes, para que se chegue a uma justa composição, sem
olvidar a finalidade de punição do causador do dano de forma a desestimulá-lo
da prática futura de atos semelhantes, evitando-se, sempre, que o ressarcimento
se transforme em fonte de enriquecimento injustificado.
A sanção, contudo, não deve corresponder a reparação à indenização pelo
dano morte, mas em razão da ausência de atuar do hospital e o dano sofrido,
considerado, no caso, a perda de uma chance de sobrevivência.
Seguindo as peculiaridades da causa, devem ser fixados os danos morais na
importância de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para cada um dos autores.
Quanto aos danos materiais, estes estão atrelados ao pedido de
pensionamento até a data em que a vítima completaria 25 anos.
Contudo, na espécie, não há como concluir, mesmo na esfera da
probabilidade, que o atendimento pelo recorrido impediria o resultado. De
fato, não há como se equiparar, nesse caso, a perda da vida ao invés da perda
da oportunidade de obter a vantagem do tratamento, como o que se acaba por
transformar a chance em realidade.
Explica-se: considerando que não há como ser ligada a conduta da ré
ao evento morte – não há como ter certeza de que, ainda que prestado o
atendimento de emergência de forma adequada, a paciente sobreviveria –, a
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
403
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
indenização deve ater-se apenas ao dano moral, excluído o material. Mesmo
porque, como já dito, não se pode indenizar o possível resultado. Não se indeniza
o que a vítima hipoteticamente deixou de lucrar, mas, sim, a oportunidade
existente em seu patrimônio no momento em que ocorreu o ato danoso.
O que os pais perderam, repita-se, é a chance do tratamento e não a
continuidade da vida. A falta reside na chance de cura de sua filha, e não na
própria cura.
Falta, assim, pressuposto essencial à condenação do recorrente ao
pagamento do pensionamento, nos termos em que formulado.
Juros legais nos termos da Súmula n. 54-STJ e correção monetária a
partir desta data. Sucumbentes, arcarão as partes com as custas e os honorários
advocatícios fixados em 10% sobre o importe da condenação, nos termos do
artigo 21 do Código de Processo Civil, respeitada a gratuidade de justiça, se o
caso.
Em vista do exposto, conheço em parte do recurso especial e nesta parte
dou-lhe provimento, nos termos delineados.
É como voto.
VOTO-VISTA
A Sra. Ministra Nancy Andrighi: Cuida-se de recurso especial interposto
por Alberdan Nascimento de Araújo e Cícera de Oliveira Silva, com fundamento no
art. 105, III, a e c, da CF, contra acórdão proferido pelo TJ-DF.
Ação: de indenização por danos materiais e morais, ajuizada pelos
recorrentes em desfavor do Hospital Santa Lúcia S.A.
Depreende-se dos autos que a filha dos autores, então com 08 meses
de vida, estava internada no Hospital de Taguatinga com quadro clínico
considerado gravíssimo, a demandar tratamento não disponibilizado por aquele
nosocômio, em unidade de terapia intensiva, motivo pelo qual os médicos
aconselharam a transferência para hospital privado.
Os recorrentes obtiveram decisão judicial autorizando a transferência, mas
o hospital recorrido se recusou a receber a criança, sob o argumento de que a
cópia da liminar que fora apresentada, extraída da Internet, não tinha valor legal.
Mantida na enfermaria do Hospital de Taguatinga, a menor veio a óbito.
404
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Sentença: embora reconheça a omissão do hospital, julgou improcedentes
os pedidos iniciais, por entender que a conduta da recorrida não foi determinante
para o evento morte (fls. 470-482, e-STJ).
Acórdão: o TJ-DF negou provimento ao apelo dos recorrentes, mantendo
na íntegra a sentença (fls. 657-663, e-STJ).
Recurso especial: alega violação dos arts. 535 do CPC; 186, 187, 927 e
951 do CC/2002; e 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, bem
como dissídio jurisprudencial (fls. 687-710, e-STJ).
Prévio juízo de admissibilidade: o TJ-DF negou seguimento ao recurso
especial (fls. 760-764, e-STJ). Inconformados, os recorrentes interpuseram
o AREsp n. 150.310-DF, provido pelo i. Min. Relator para determinar a
reautuação do processo como recurso especial.
Voto do Relator: dá provimento ao recurso especial para, aplicando a
teoria da perda da chance, condenar o recorrido ao pagamento de danos morais
arbitrados em R$ 50.000,00. Deixa, contudo, de condenar o hospital em danos
materiais, sob a alegação de que não se poderia indenizar um resultado incerto.
Revisados os fatos, decido.
Cinge-se a lide a determinar a validade de decisão liminar extraída da
Internet, bem como a aplicabilidade da teoria da perda da chance para hipóteses
de erro médico.
Inicialmente, no que tange às preliminares de ausência de negativa de
prestação jurisdicional e de impossibilidade de conhecimento do recurso especial
à luz dos arts. 1º, 6º, 7º, 9º, 29, 47 e 58 do Código de Ética Médica, acompanho
na íntegra o voto do i. Min. Relator.
Da mesma forma, acompanho integralmente o voto condutor em relação
à caracterização da conduta omissiva do recorrido, tendo em vista a clara
necessidade de pronto atendimento da menor.
Ao se recusar a receber a criança, unicamente porque, naquele momento de
extrema urgência, teria sido apresentado documento reputado inábil, o hospital
evidentemente excedeu os limites impostos por lei ao exercício dos seus direitos,
violando o art. 187 do CC/2002.
Diante do risco iminente de morte, o comportamento esperado – sobretudo
de um hospital – era a prestação dos primeiros socorros à paciente, para somente
então preocupar-se com questões secundárias, de ordem burocrática.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
405
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Não bastasse isso, o motivo apresentado pelo recorrido para não aceitar
a internação da menor – de que cópia de liminar extraída da Internet não
teria valor legal – sequer pode ser considerado plausível, na medida em que
o uso do meio eletrônico na tramitação de processos judiciais e comunicação
de atos encontra-se disciplinado desde 2006, por ocasião da edição da Lei n.
11.419/2006. Nesse sentido, inclusive, o REsp n. 1.186.276-RS, 3ª Turma, Rel.
Min. Massami Uyeda, DJe de 3.2.2011, alçado a paradigma pelo i. Min. Relator.
Assim, independentemente do ângulo pelo qual se analise a questão, não se
encontra justificativa para a conduta omissiva do hospital.
Resta, por fim, apreciar a questão relativa ao nexo causal entre a conduta
omissiva do recorrido e óbito da filha dos recorrentes.
O i. Min. Relator constrói seu voto em torno na mitigação do princípio da
causalidade adequada, aplicando a teoria da perda da chance.
Entretanto, como bem frisado no voto condutor, esse caso exige que a
teoria da perda da chance seja analisada sob outra perspectiva, diversa daquela
que vem sendo enfrentada por esta Corte, qual seja, a denominada perda da
chance clássica, em que há o desaparecimento de uma oportunidade de ganho
em favor do lesado.
Nessas hipóteses, há sempre certeza quanto à autoria do fato que frustrou
a oportunidade, e incerteza quanto à existência ou à extensão dos danos
decorrentes desse fato. Assim, por exemplo, quando uma pessoa impede outra
de participar de um concurso de perguntas e respostas, não há dúvidas de quem
causou o impedimento, e a única incerteza diz respeito a qual seria o resultado
do certame e que benefícios seriam auferidos pela vítima caso dele participasse
até o fim. Por isso a indenização é fixada mediante uma redução percentual do
ganho que, em princípio, poderia ser auferido pelo prejudicado. Dessasrte, se
este tinha 60% de chances de sucesso caso tivesse aproveitado a oportunidade
perdida, a indenização será fixada em 60% sobre o valor total dos hipotéticos
lucros cessantes.
Na espécie, contudo, a oportunidade perdida é de um tratamento de saúde
que poderia interromper um processo danoso em curso, que levou a paciente à morte.
Aqui, a extensão do dano já está definida, e o que resta saber é se esse dano
teve como concausa a conduta do recorrido. A incerteza, portanto, não está
na consequência. Por isso ganha relevo a alegação da ausência de nexo causal.
A conduta do hospital não provocou a doença que levou ao óbito mas pode
eventualmente ter frustrado a oportunidade de cura. Essa circunstância suscita
406
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
novos questionamentos acerca da teoria da perda da chance, porquanto a coloca
em confronto mais claro com a regra do art. 403 do CC/2002, que veda a
indenização de danos indiretamente gerados pela conduta do agente.
Exatamente por esse motivo, a doutrina especializada observa que a teoria
da perda da chance nas hipóteses de erro médico não vem sendo pacificamente
aceita no direito comparado. Tanto Fernando Noronha (Direito das obrigações:
fundamentos do direito das obrigações – introdução à responsabilidade civil, vol. I, São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 669) ), como Rafael Peteffi da Silva (Responsabilidade
civil pela perda de uma chance: uma análise de direito comparado e brasileiro, São
Paulo: Atlas, p. 222 e ss.) dão conta da existência de viva controvérsia no direito
francês acerca da matéria. Assim, a partir do trabalho pioneiro de René Savatier,
que em primeiro lugar enxergou a diferença aqui apontada, diversos autores vêm
negando a aplicação da teoria da perda da chance à seara médica.
A título exemplificativo, Jean Penneau, autor de obra de grande envergadura
sobre o tema (La responsabilité du medecin. Paris: Dalloz, 1992, apud Fernando
Noronha, op. cit., 678), afirma que as situações de certeza quanto ao resultado e
incerteza quanto à causa não podem ser dirimidas mediante a simples redução
proporcional da indenização. Em vez disso, a incerteza quanto à causa deve
ser resolvida em um processo regular de produção de provas, de modo que, se
comprovado o nexo causal entre a conduta do médico e o prejuízo causado ao
paciente, este lhe deverá pagar uma indenização integral, não uma indenização
proporcional ao grau de plausibilidade da oportunidade perdida. Se não ficar
comprovada a culpa, por outro lado, indenização nenhuma será devida. Para o
erro médico, portanto, o critério seria de tudo ou nada.
Referido autor pondera, inclusive, que a jurisprudência deveria “cessar
de se lançar em acrobacias intelectuais – que são a porta aberta a todos os
arbítrios - nos termos das quais se pretende indenizar um inapreensível prejuízo
intermediário”.
Para os defensores dessa corrente, a dúvida quanto ao nexo causal deveria
levar ao julgamento de improcedência do pedido. Apenas nas hipóteses em que o
liame causal estivesse plenamente demonstrado, poderia haver um julgamento
de procedência da pretensão do lesado, com reparação integral do dano.
Autorizar que se aplique a teoria da perda da chance para processos aleatórios já
concluídos implicaria o “paraíso de juízes indecisos (incertains), [como] dizia o
decano Savatier”. A indenização parcial, portanto, demonstraria uma confusão
do julgador, entre “o grau de pretensa chance perdida com o grau de sua própria
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
407
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
dúvida sobre a causalidade”. No mesmo sentido é a opinião de Yvone LambertFaivre (Droit du dammage corporel. Systèmes d’indemnisation. 3ª ed., Paris: Dallos,
1996, apud Fernando Magalhães, op. loc. cit.)
Essas críticas, conquanto robustas, não justificam a exclusão da doutrina
da perda da chance para a seara médica. A dificuldade de trato da questão está
justamente em que os defensores da diferenciação entre a perda da chance
clássica e a perda da chance no ramo médico situam o fator aleatório, de modo
equivocado, num processo de mitigação do nexo causal com o resultado. Sem
demonstração clara de que um determinado dano decorreu, no todo ou em
parte, da conduta de um agente, é de fato muito difícil admitir que esse agente
seja condenado à sua reparação. Admiti-lo implicaria romper com o princípio
da conditio sine qua non, que é pressuposto inafastável da responsabilidade civil
nos sistemas de matriz romano-germânica.
A solução para esse impasse, contudo, está em notar que a responsabilidade civil
pela perda da chance não atua, nem mesmo na seara médica, no campo da mitigação
do nexo causal com o resultado. A perda da chance, em verdade, consubstancia
uma modalidade autônoma de indenização, passível de ser invocada nas hipóteses em
que não se puder apurar a responsabilidade direta do agente pelo dano final. Nessas
situações, o agente não responde pelo resultado para o qual sua conduta pode ter
contribuído, mas apenas pela chance de que ele privou a vítima. Com isso, resolvese, de maneira eficiente, toda a perplexidade que a apuração do nexo causal pode
suscitar.
Para a compreensão dessa forma de pensar a matéria, pode-se mencionar
a explanação de Rafael Pettefi da Silva (op. cit., pp. 71 e ss.) – conquanto esse
autor não advogue a perda da chance como dano autônomo:
A disciplina do “Law and Economics”, tão difundida na América do Norte e
comprometida a analisar os efeitos econômicos das instituições jurídicas, passou
a considerar o aumento de riscos e a perda de chances como “commodities”,
avaliando-os como danos tangíveis, merecedores de grande importância
conceitual.
Note-se que essa abertura epistemológica, em relação ao reconhecimento das
chances perdidas como danos indenizáveis, é observada como algo indissociável
da evolução tecnológica.
(...)
Apesar das críticas ao baixo caráter de certeza que ainda envolvem algumas
estatísticas – responsáveis pelo dito popular que estas se constituiriam em mais
408
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
uma forma de mentira – acredita-se que, de acordo com o paradigma solidarista,
a mesma argumentação utilizada para respaldar a reparação dos danos morais
poderia ser aqui utilizada: “a condição de impossibilidade matematicamente
exata da avaliação só pode ser tomada em benefício da vítima e não em seu
prejuízo”.
Por intermédio dos argumentos expostos, grande parte da doutrina assevera
que a teoria da responsabilidade pela perda de uma chance não necessita de noção
de nexo de causalidade alternativa para ser validada. Apenas uma maior abertura
conceitual em relação aos danos indenizáveis seria absolutamente suficiente para
a aplicação da teoria da perda de uma chance nos diversos ordenamentos jurídicos.
Ainda segundo esse autor, cabe ao Professor Joseph King Jr., no direito
americano, o esboço dos fundamentos para a admissão da responsabilidade civil
pela perda da chance, como uma modalidade autônoma de dano. Nas palavras de
Rafael Peteffi da Silva:
A propósito, Joseph King Jr. vislumbra as chances perdidas pela vítima como
um dano autônomo e perfeitamente reparável, sendo despicienda qualquer
utilização alternativa do nexo de causalidade. O autor afirma que os Tribunais
têm falhado em identificar a chance perdida como um dano reparável, pois
a interpretam apenas como uma possível causa para a perda definitiva da
vantagem esperada pela vítima.
Desse modo, algo que é visceralmente probabilístico passa a ser encarado
como certeza ou como impossibilidade absoluta. É exatamente devido a esse erro
de abordagem que os Tribunais, quando se deparam com a evidente injustiça
advinda da total improcedência de uma espécie típica de responsabilidade pela
perda de uma chance, acabam por tentar modificar o padrão “tudo ou nada” da
causalidade, ao invés de reconhecer que a perda da chance, por si só, representa
um dano reparável. (pp. 75-76).
O valor dessa doutrina, em que pesem todas as críticas a que foi submetida,
está em que, a partir da percepção de que a chance, como bem jurídico autônomo,
é que foi subtraída da vítima, o nexo causal entre a perda desse bem e a conduta
do agente torna-se direto. Não há necessidade de se apurar se o bem final (a vida,
na hipótese deste processo) foi tolhido da vítima. O fato é que a chance de viver
lhe foi subtraída, e isso basta. O desafio, portanto, torna-se apenas quantificar
esse dano, ou seja, apurar qual o valor econômico da chance perdida.
Não se desconhece as graves críticas que esta posição pode suscitar.
Os doutrinadores que têm se dedicado ao estudo do tema manifestam justa
preocupação com o “risco sistemático” inerente ao tema, receosos quanto à
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
409
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ampliação das possibilidades de relativização do nexo causal. Nesse sentido,
podemos citar as seguintes considerações de Rafael Peteffi sobre o assunto:
Saliente-se, conforme já exposto no Capítulo 2, a enorme preocupação que
alguns juristas franceses, como René Savatier e Jean Penneau, demonstravam em
relação ao “perigo sistemático” engendrado pelas chances perdidas avaliadas após
o completo desenrolar do processo aleatório.
Como a certeza absoluta em termos de nexo de causalidade é muito raramente
encontrada, não mais seriam observadas condenações integrais dos danos
sofridos pela vítima. O juiz deixaria de perquirir quem realmente causou o dano,
para saber qual a percentagem de chances que o agente tirou da vítima.
De fato, a regra do tudo ou nada estaria sepultada, pois as sentenças de
improcedência também ficariam cada vez mais raras, tendo em vista que a dúvida
sobre o nexo de causalidade passaria a gerar uma reparação parcial do prejuízo,
“medida pelo grau de incerteza que cerca o livre convencimento do juiz”. É por
esta razão que René Savatier declarava que a teoria da perda de uma chance
aplicada à seara médica seria o paraíso do juiz indeciso.
(...)
Importante observar que, em França, ao aludido “perigo sistemático”
representado pela perda da chance de cura é dada tanta importância que, exceto
pela célebre manifestação de Jacques Boré, nenhum outro jurista advoga pela
aplicação da causalidade parcial. Portanto, mais uma vez se verifica a defesa da
fórmula “tudo ou nada” quando se trata de causalidade: ou a vítima resta sem
qualquer reparação, já que o nexo causal não foi provado; ou se trabalha com
presunções de causalidade, tentando alcançar a reparação do dano final.
É forçoso reconhecer, por outro lado, que a necessidade de se prevenir
o referido “risco sistemático” não pode levar à completa negação da teoria
para as hipóteses de erro médico, porquanto fazê-lo também poderia gerar
resultados catastróficos. Invocando o direito norte-americano, Rafael Peteffi faz,
em contraponto aos temores manifestados pela doutrina francesa, as seguintes
observações:
Em defesa da adoção da teoria da perda de uma chance na seara médica,
tem-se como principal argumento o caráter pedagógico (deterrence) que deve
desempenhar a responsabilidade civil, isto é, o dever de indenizar o dano causado
deve desmotivar o agente, bem como toda a sociedade, de cometer novamente
o mesmo ato ofensivo.
A não-adoção da teoria da perda de uma chance permitiria que os profissionais
da área da saúde tivessem pouco cuidado com pacientes terminais ou com
poucas chances de vida. Esta situação é facilmente explicável, pois enorme seria
410
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
a dificuldade de provar o nexo de causalidade certo e direto entre a falha médica
ou hospitalar e a morte do paciente, já que este, muito provavelmente, morreria
pela evolução endógena da doença, mesmo com uma conduta médica exemplar.
Assim, a falha médica não se caracterizaria como uma condição necessária para o
surgimento do dano.
Em Mckellips v. Saint Francis Hosp e em Roberson v. Counselman, a Suprema
Corte de Oklahoma e a Suprema Corte do Kansas, respectivamente, absorveram
bem a matéria, afirmando, ao fundamentar as deciões, que os profissionais da
saúde estariam totalmente livres de sua responsabilidade, mesmo em se tratando
do erro mais grosseiro, se o paciente apresentasse poucas chances de viver.
A Suprema Corte do Arizona, em Thompson v. Sun City Community Hosp.,
argumentou que, quando um médico, por falha sua, retira trinta por cento (30%)
de chances de sobrevivência de um grupo de cem pacientes, que efetivamente
morrem, é “estatisticamente irrefutável” que alguns desses pacientes faleceram
devido à falha médica. Entretanto, o repúdio à teoria da perda de uma chance faz
com que nenhum desses pacientes possa requerer qualquer tipo de indenização,
já que é impossível provar o nexo de causalidade entre a morte do paciente e a
falha médica, decretando a irresponsabilidade absoluta dos médicos.
Há, por derradeiro, uma última crítica à autonomia conceitual da perda da
chance, como direito autônomo à reparação civil. Trata-se da seguinte objeção,
formulada por Rafael Peteffi (op. Cit., p. 106 e 107):
A necessidade de arquitetar presunções para provar o nexo de causalidade
entre a conduta do réu e o dano final ocorre exatamente pela impossibilidade
de se admitir um dano autônomo e independente consubstanciado nas chances
perdidas. Essa impossibilidade é cabalmente verificada pelo já comentado
exercício de argumentação, efetuado por autores franceses e norte-americanos.
Nesse sentido, se um médico comete um terrível erro técnico, aumentando o
risco de morte de uma paciente (ou diminuindo as suas chances de viver) e,
mesmo assim, o paciente recupera a sua saúde perfeita, a maioria da doutrina
acredita que não há dano passível de reparação. Portanto, esse “prejuízo distinto
do benefício esperado” parece ser difícil de imaginar nos casos em que o processo
aleatório chegou até o final, já que se apresenta dependente da definitiva perda
da vantagem esperada pela vítima (pp. 106-107).
Essa crítica, contudo, também não se sustenta. No exemplo fornecido por
Peteffi não há efetiva perda da chance quanto ao resultado-morte. Se o processo
causal chegou a seu fim e o paciente viveu, não obstante a falha médica, não se
pode dizer que o profissional de saúde tenha lhe subtraído uma chance qualquer.
Por questões afeitas à compleição física da vítima ou por quaisquer outros
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
411
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
fatores independentes da conduta médica, as chances de sobrevivência daquele
paciente sempre foram integrais.
Vale lembrar que a oportunidade de obtenção de um resultado só pode se
considerar frustrada se esse resultado não é atingido por outro modo. Seria, para
utilizar um exemplo mais simples, de perda de chance clássica, o mesmo que
discutir a responsabilização de uma pessoa que impediu outra de realizar uma
prova de concurso, na hipótese em que essa prova tenha sido posteriormente
anulada e repetida.
Talvez no exemplo fornecido por Peteffi seja possível dizer que a correta
atuação do profissional de saúde possibilitasse ao paciente um processo de
convalescência mais confortável ou mais veloz. Mas nessa situação, poderíamos
individualizar um bem jurídico autônomo lesado pela omissão do médico
– justamente a chance de gozar de maior qualidade de vida durante a
convalescência.
Vê-se, portanto, que, nesta como em tantas outras questões mais sensíveis
do direito, sempre haverá muito debate. Contudo, sopesados os argumentos
de defesa de cada uma das posições em conflito, a que apresenta melhores
soluções é a consideração da perda da chance como bem jurídico autônomo,
mesmo nas hipóteses de responsabilidade civil médica. Todas as perplexidades
que a aplicação dessa teoria possa suscitar resolvem-se, assim, no âmbito da
quantificação do dano.
Na hipótese específica dos autos, não obstante reconheça a incidência
da teoria da perda da chance – afirmando que, caso tivesse sido atendida pelo
recorrido, a menor teria alguma perspectiva de sobrevivência – o i. Min. Relator
rejeita o pedido de condenação por danos materiais, sob o argumento de que
não se indeniza prejuízo hipotético, ressalvando não haver como afirmar, com
certeza, que a conduta do hospital impediria o resultado.
A despeito disso, julga procedente o pedido de indenização moral,
afirmando não se tratar de reparação pela morte da criança, mas pela perda da
chance de sobrevivência decorrente da omissão do hospital.
Rogando ao i. Min. Relator as mais elevadas vênias, penso ter havido
confusão na apreciação do nexo de causalidade enquanto requisito indispensável
à caracterização de cada um dos danos. Salvo melhor juízo foram levados em
consideração diferentes liames de causalidade: para o dano material buscou-se
nexo entre o comportamento do hospital e o resultado morte, enquanto para o
412
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
dano moral procurou-se nexo entre a referida conduta e a redução de chance de
sobrevivência do paciente.
Daí as diferentes conclusões alcançadas, admitindo a existência de dano
moral, mas afastando a presença do dano material.
Ocorre que, em se tratando de perda da chance, há um único nexo de
causalidade a ser perquirido, ligado, como visto, não ao resultado final (morte)
para o qual a conduta do agente pode ou não ter contribuído, mas apenas à
oportunidade que se privou. Trata-se, pois, de quantificar em que medida a
conduta do hospital contribuiu para a chance (de viver) perdida.
Nesse aspecto, deve-se: (i) verificar a presença de uma chance concreta,
real, com alto grau de probabilidade de obter um benefício ou sofrer um
prejuízo; (ii) confirmar se a ação ou omissão do agente tem nexo causal com a
perda da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo
se estabeleça diretamente com o objeto final); (iii) atentar para o fato de que o
dano não é o benefício perdido, porque este é sempre hipotético.
A partir daí, a reparação civil pela perda de uma chance se dará pelo
estabelecimento de uma indenização para esse bem jurídico autônomo, em
uma proporção aplicada sobre o dano final experimentado, fixada conforme a
probabilidade da chance perdida de alterar esse resultado danoso.
Transpondo essas considerações para a hipótese dos autos, deve-se apurar
se a internação em UTI – impossibilitada pela conduta omissiva do hospital –
traria à menor uma chance real e concreta de sobrevivência e, em caso afirmativo,
qual seria, percentualmente, essa chance. Esse percentual incidirá sobre o
prejuízo integral – material e moral – suportado pelos recorrentes por força do
falecimento da menor, atuando como um quantificador do dano, de modo a se
obter uma indenização exclusivamente pela perda da chance. Por outro lado,
constatada a inexistência de uma oportunidade efetiva de sobrevivência, não
estaremos diante de uma perda da chance indenizável.
No particular, porém, o TJ-DF se pautou pela ausência de nexo de
causalidade entre a conduta do recorrido e o evento morte, deixando de apreciar,
a partir da aplicação da teoria da perda da chance, até que ponto a transferência
da menor para o hospital poderia ter evitado o seu falecimento, ou seja, em que
medida a sua internação na UTI aumentaria a sua expectativa de vida.
Diante disso, como essa quantificação está a depender do revolvimento do
substrato fático-probatório dos autos, torna-se inviável a aplicação do direito
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
413
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
à espécie com base no art. 257 do RISTJ, sendo imperiosa a baixa dos autos à
origem para que o Tribunal local assim proceda.
Não bastasse isso, verifica-se que não foi produzida nos autos prova técnica
tendente a determinar se a internação em unidade de terapia intensiva teria
conferido à paciente uma chance real e concreta de sobrevivência. Trata-se de
elemento indispensável à averiguação de se estar diante de uma perda da chance
indenizável, o qual não pode ser substituído pela experiência individual dos
julgadores, carecedores que são de conhecimento médico específico.
Importante ressaltar, por fim, que esta análise não pode ser obstada por
uma suposta falta de legitimidade das partes para pleitear o direito em causa.
É verdade, por um lado, que a oportunidade de cura ou de gozar de uma sobrevida
mais confortável é direito personalíssimo da paciente. Seu falecimento, portanto,
não implica transferência desse direito aos herdeiros. Contudo, a oportunidade
de gozar a companhia de um ente querido, com ele convivendo livre de sua
doença, ou mesmo de acompanha-lo num processo melhor de convalescência,
é direito autônomo de cada uma das pessoas que com o de cujus mantinham
uma relação de afeto. O dano, portanto, causado pela morte, afeta a todos em
sua esfera individual, cada qual por um motivo específico, como sói ocorrer
em todas as situações em que se pleiteia indenização por força da perda de um
ente querido. Em síntese, indeniza-se a chance perdida de não sofrer o abalo
derivado dessa perda.
Forte nessas razões, peço vênia para divergir em parte do voto do i. Min.
Relator, reconhecendo a conduta omissiva do hospital recorrido, porém com
a determinação de baixa dos autos à origem para que se apure, com base nos
parâmetros delimitados na fundamentação e mediante realização de perícia
técnica, em que medida essa conduta reduziu a chance de sobrevivência da
menor.
VOTO-VISTA (CONCORDANTE COM O RELATOR)
O Sr. Ministro Sidnei Beneti: 1. - Meu voto acompanha a conclusão do E.
Relator, dando provimento ao Recurso Especial para julgar a ação procedente em
parte e condenar o Recorrido: a) ao pagamento de indenização por danos morais
no valor de R$ 50.000,00 para cada um dos autores, genitores da menor Analice
Nascimento de Oliveira (nascida a 6.11.2005 e falecida no dia 22.7.2006), que
veio a falecer em meio à omissão de atendimento médico-hospitalar, com juros
414
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
legais, contados a partir da data do óbito (Súmula n. 54-STJ), divididas custas
e despesas processuais entre as partes e fixados os honorários advocatícios ao
patrocínio em prol dos autores em 10% do valor da condenação corrigido (CPC,
art. 230, § 3º); b) afastar o pensionamento pretendido pelo fato da morte da
filha menor, pleiteado pelos Recorrentes na inicial.
2. - Ao exame da petição inicial, que oferece o balizamento de tudo o
que é juridicamente licito julgar no processo, em observância aos princípios
da adstrição e do contraditório, bem como à análise da sentença, que julgou
improcedente a ação, e do Acórdão, que integralmente a confirmou, concluise que a ação cumulou apenas pretensão à indenização por danos materiais e
morais decorrentes do fato da morte da menor – não tendo, a petição inicial, a
sentença e o Acórdão recorrido chamado a exame a sofisticada e especialíssima
causa de pedir de indenização por perda da chance, não referida em nenhuma
dessas peças, causa de pedir essa a que os votos do E. Relator e da E. Minª.
em parte divergente dedicaram, é bom que se diga, algumas das mais eruditas
e cuidadosas peças judiciais a respeito da teoria da perda da chance e suas
implicações.
3. - Com efeito, a inicial narra os percalços para obtenção do atendimento
da menor, de oito meses de idade, iniciados em 18.7.2006, levada ao Hospital
Regional de Taguatinga, passando a experimentar piora médica progressiva,
com recomendação de transferência a hospital com melhores recursos,
obtendo-lhe os médicos vaga no Hospital Santa Lúcia, para o que a Defensoria
Pública impetrou Mandado de Segurança, não tendo sido, contudo, a menor,
imediatamente internada para passar a receber atendimento, em virtude de
questões burocráticas de cumprimento do Mandado de Segurança.
Assim fixou, a inicial, a causa de pedir, sem alusão a indenização por perda
de chance: “Estão evidentes que restou configurado os requisitos que enseja a
Responsabilidade Civil do Hospital, quais sejam: a) dano material ou moral
sofrido por alguém; b) uma ação ou omissão antijurídica imputável; c) nexo
de causalidade entre o dano e a ação ou omissão, restando assim comprovado
que existiu a omissão do serviço, ensejando a responsabilidade civil do mesmo”
(e-STJ fls. 8) e conclui ubicando legalmente o caso em dispositivos do Código
Civil/2002 relativos à responsabilidade civil profissional normal, sem invocação
da teoria da perda de uma chance, ou seja, arts. 186, 187, 927 e 951 (e-STJ, fls.
10).
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
415
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
4. - O nexo de causalidade está bem demonstrado, ante a renitência de não
atender, procrastinando os cuidados médicos, com grande sofrimento moral
para os autores, que padeciam de ver a criança na trilha de perder a vida, o que
realmente acabou acontecendo. Houve omissão, realmente, ante o desvio, em
vez do atendimento pronto, para os desvãos das considerações burocráticas e
administrativas, inclusive quanto a requisitos de atendimento a Mandado de
Segurança.
5. - Na matéria fática subjacente, fixada pela sentença e pelo Acórdão, em
nenhum momento se firmou que a omissão foi a causa da morte da menor, mas,
segundo a sentença e o acórdão, estabeleceu-se que a enfermidade para a qual
não encontrada cura é que causou a morte da menor.
Diante dessa conclusão fática, intocável a esta altura (Súmula n. 7-STJ),
impossível estabelecer indenização pelo fato da morte, restando, contudo, a
indenização por dano moral, de total evidência inclusive pela sentença e pelo
acórdão.
6. - Não ubicada a pretensão em perda de uma chance, resta, realmente, por
indenizar os penosos danos material e moral sofridos pelos autores.
7. - Pelo exposto, meu voto acompanha a conclusão do E. Relator, nos
termos resumidos ao início deste voto, com fundamento diverso do da perda de
uma chance.
VOTO
O Sr. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Relator): Srs. Ministros, com a
vênia a Sra. Ministra Nancy Andrighi, acompanho o voto do eminente Relator.
RECURSO ESPECIAL N. 1.345.653-SP (2011/0197772-0)
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva
Recorrente: Autovel Auto Valadares Ltda. e outro
Advogados: Carlos Mário da Silva Velloso Filho e outro(s)
Hélio Rubens Batista Ribeiro Costa e outro(s)
416
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Recorrido: Ford Motor Company Brasil Ltda.
Advogados: Maria Helena Ortiz Bragaglia e outro(s)
Halisson Adriano Costa e outro(s)
EMENTA
Recurso especial. Direito Empresarial. Lei Renato Ferrari.
Exceção do contrato não cumprido. Súmulas n. 5 e n. 7-STJ. Não
incidência. Descumprimento da avença. Pagamento antecipado
ao faturamento. Ausência de previsão na convenção de marcas.
Impossibilidade. Violação do art. 476/CC. Restabelecimento da
sentença.
1. Não há falar nos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e n. 7-STJ
quando a questão trazida à apreciação desta Corte Superior for
unicamente de direito, ou de direito e de fato, e não houver a necessidade
de revisão do quadro probatório já delineado soberanamente pelas
instâncias ordinárias, como na espécie.
2. O contrato de concessão para venda de veículos automotivos é
de natureza estritamente empresarial, tipificado na Lei n. 6.729/1979,
denominada Lei Renato Ferrari, na qual estão estabelecidos, de
forma genérica, os direitos e obrigações tanto do concedente quanto
do concessionário, determinando, ainda, o regramento mínimo a ser
observado pelas pessoas jurídicas contratualmente ligadas. E como
se não bastasse, o citado diploma trouxe para o direito comercial
uma inovação: a convenção das categorias econômicas e a convenção
da marca como fontes supletivas de direitos e obrigações para os
integrantes da relação contratual.
3. “- A exceção de contrato não cumprido somente pode ser
oposta quando a lei ou o próprio contrato não determinar a quem cabe
primeiro cumprir a obrigação. (...) A recusa da parte em cumprir sua
obrigação deve guardar proporcionalidade com a inadimplência do
outro, não havendo de se cogitar da argüição da exceção de contrato
não cumprido quando o descumprimento é parcial e mínimo” (REsp
n. 981.750-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 23.4.2010).
4. Diante da ausência de previsão na convenção de marcas de que
o pagamento do preço seria efetuado antes do faturamento do pedido
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
417
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
de mercadoria, o acórdão acabou por violar o artigo 476 do Código
Civil.
5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas, decide a
Terceira Turma, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos
do voto do(a) Sr(a) Ministro(a) Relator(a). Os Srs. Ministros Nancy Andrighi,
Sidnei Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 4 de dezembro de 2012 (data do julgamento).
Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator
DJe 20.2.2013
RELATÓRIO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: Trata-se de recurso especial
interposto por Autovel Auto Valadares Ltda. e Camilo dos Santos Neto, com
fundamento na alínea a do permissivo constitucional, contra acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim ementado:
Contrato de concessão para revenda de veículos automotores. Indenização.
Descabimento no caso concreto. Rescisão verificada por culpa do concessionário.
Recurso do réu provido, prejudicado o do autor (fl. 3.539).
Os embargos declaratórios foram rejeitados (fls. 3561-3.562).
Narra a inicial que a Autovel e a Ford mantiveram contrato de concessão
de veículos automotores, sendo a ação proposta em virtude do descumprimento,
pela montadora, de obrigações assumidas quando da negociação de venda de
outras duas bandeiras, também de titularidade do sócio (2º recorrente) Camilo
dos Santos Neto, nos seguintes moldes: Camilo (sócio de Autovel) renunciaria
gratuitamente às outras duas concessões de que era titular e a Ford praticaria
condições mais vantajosas na remanescente (Autovel), comprometendo-se a
faturar-lhe 180 (cento e oitenta) veículos por mês pelo prazo mínimo de 8 (oito)
anos.
418
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Alegando que o acordo não foi cumprido, a parte recorrente propôs
demanda contra a Ford, que, em defesa, sustentou que o comprometimento
de faturamento de veículo limitou-se à falta de pagamento, constituindo justa
causa para a rescisão da concessão e para sua própria desoneração da obrigação
reconhecida de faturamento mensal de 180 (cento e oitenta) unidades à
concessionária.
O Tribunal Estadual, reformando a sentença de procedência do pedido,
proveu a apelação da Ford, firme em que a recusa de faturamento foi lícita,
haja vista que a concessionária deixou de efetuar previamente o respectivo
pagamento.
Inconformada, após a rejeição dos declaratórios, nas razões do apelo
especial, a parte recorrente sustenta que:
(...)
9. A improcedência da ação resultado do provimento da apelação da Ford,
pelo v. acórdão objeto deste recurso, decorreu do reconhecimento de justa
causa para a rescisão do contrato de concessão entre as partes e, outrossim, da
aceitação da tese segundo a qual a montadora estava desobrigada de cumprir
a obrigação assumida quando das renúncias das duas outras bandeiras pelo
Sr. Camilo, no sentido de faturar-lhe 180 (cento e oitenta) veículos. Por ora, a
delimitação temporal (oito anos, conforme petitório e 16 meses, nos termos da r.
sentença) é irrelevante, pois primeiro se há de demonstrar a obrigação em si para
depois se tratar do seu respectivo prazo.
10. Sobre o ponto, segue-se a interpretação jurídica que lhe deu o v. acórdão
recorrido:
(...) aqueles veículos não foram enviados, tendo o réu sustentado que
tal ocorreu porque o autor não efetivou o correspondente pagamento. (...)
o requerido agiu no regular exercício de seu direito ao se negar a fornecer
os veículos sem a contrapartida consistente no pagamento antecipado do
preço, providência essa autorizada pela parte final do artigo 11 da Lei n.
6.729/1979 (grifado pelos recorrentes).
11. Esta é, na essência, a fundamentação do v. acórdão recorrido: a Ford
obrigou-se a faturar 180 (cento e oitenta) veículos por mês à Autovel (primeira
recorrente) mas foi lícito deixar de cumprir sua obrigação porque não houve
pagamento dos mencionados veículos, na forma da sistemática estabelecida
entre as partes.
12. Para justificar a licitude do descumprimento da obrigação de faturamento
de 180 (cento e oitenta) veículos por mês à recorrente, o v. acórdão valeu-se da
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
419
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
previsão contida no art. 11, parte final, da Lei Renato Ferrari (devidamente por ele
prequestionado):
Art. 11. O pagamento do preço das mercadorias fornecidas pelo
concedente não poderá ser exigido, no todo ou em parte, antes do
faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede de
distribuição.
13. Tendo assentido com a alegação de comprometimento de faturamento de
180 veículos por mês à Autovel - circunstância de resto não negada pela própria
Ford -, o v. acórdão recorrido concluiu, que o não fornecimento de veículos pela
concedente à concessionária teria decorrido, outrossim, da falta de pagamento por
parte da revenda. Assim, a premissa equivocada adotada pela Ford e acolhida pelo
v. acórdão para legitimar a desobrigação do faturamento de veículos à Autovel é
a ausência de pagamento pela concessionária. Ambos confundem “faturamento”
com “fornecimento”, “remessa”, “envio” e “entrega” de veículos.
14. O art. 11 da Lei n. 6.729/1979 estabelece “que o pagamento do preço das
mercadorias fornecidas pelo concedente não poderá ser exigido, no todo ou em
parte, antes do faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede
de distribuição”, de modo que, muito claramente, a lei de regência adota como
regra a inexigibilidade do pagamento (total ou parcial) antes do faturamento, e
apenas excepcionalmente admite que seja antecipado à entrega/remessa/envio
dos veículos.
(...)
15. Para aplicar a partícula final do art. 11 da Lei Renato Ferrari e a exceção nela
contemplada, o v. acórdão deixa a entender que o regime de exceção que, por lei,
está circunscrito a “ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição”,
regularia a relação jurídica entre as partes porque “os veículos encomendados à
montadora haviam de ser pagos à vista e antecipadamente (...) pois na espécie
nada indicava terem as partes convencionado adoção de um sistema diverso
para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de o concessionário ser
dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de proceder a tal pagamento
à vista” (tanto assim” - prossegue o acórdão – “aliás, que nas encomendas
posteriores àquela carta o autor sempre aludiu a pagamento prévio”).
16. O v. acórdão confunde (e nesse ponto há a violação ao direito federal
infraconstitucional) o instituto jurídico da obrigação de pagar com a forma de se
efetivar o pagamento.
17. Pagamento, mesmo à vista, só se exige após o faturamento, em correta
interpretação do art. 11, da Lei Renato Ferrari.
18. A devolução da interpretação da aplicação da lei federal, na espécie
concreta, passa pelo exame da repartição legal relativa à obrigação das partes
na relação de concessão relativas, a da concedente, ao faturamento, e da
420
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
concessionária, ao pagamento, na forma do art. 476 do Código Civil, segundo o
qual “nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua
obrigação, pode exigir o implemento da do outro”.
19. Sintetizando o recurso: as partes acordaram o faturamento mensal de 180
veículos por mês, e eles nunca foram faturados. O v. acórdão recorrido aplicou
a parte final do art. 11 da Lei Renato Ferrari legitimando a não entrega dos
veículos por falta de pagamento. Contudo, interpreta equivocadamente o direito
federal infraconstitucional, pois, à luz do regime obrigacional estabelecido pela
lei de concessão e pelo Código Civil, uma obrigação só pode ser exigida depois
de se verificar o cumprimento da outra. Mesmo que possa ser aplicado o regime
de exceção do art. 11 da Lei Ferrari, sua interpretação é no sentido de que ele
informa a condição de pagamento do faturamento (à vista, antecipadamente)
mas não exime a montadora de faturar os veículos.
(...)
21. A interpretação dada ao art. 11, parte final, da Lei Ferrari pelo v. acórdão torna
impossível de ser cumprida a obrigação de pagar, mesmo à vista e antecipadamente,
o “envio” e o “fornecimento” de veículos, porque eles sempre dependem do precedente
e necessário faturamento.
22. Faturamento é o ato de faturar, consolidar todos os pedidos comerciais
em título ou documento do qual se possa extrair o seu respectivo valor para
pagamento. Só aí entram as obrigações subsequentes de remessa e envio dos
veículos e de pagamento, via de regra, ou, pelo regime excepcional da parte
final do art. 11, da Lei Renato Ferrari, do pagamento antecipado ou à vista e de
posterior remessa e envio dos veículo. Foi este ato de faturar a que se comprometeu
a recorrida e o qual jamais adimpliu.
23. À luz do art. 476, do Código Civil pede-se ao e. Superior Tribunal de Justiça
que diga da interpretação e aplicação, no caso concreto, do art. 11, mesmo em sua
parte final, da Lei Renato Ferrari, no sentido de aplicar o direito à espécie e definir
a ordem das obrigações estabelecidas entre as partes de contrato de concessão
comercial de veículos automotores. A ordem é a seguinte: 1) a concessionária
formula pedidos (não há controvérsia a respeito disto nos autos); 2) a montadora
fatura o pedido (no sentido de consolidar todos os pedidos comerciais em título
o ou documento do qual se possa extrair o seu respectivo valor para pagamento);
3) os veículos são “remetidos” ou “enviados” (para manter a terminologia do v.
acórdão) à concessionária, aí sim - e apenas agora - entrando a modalidade do
pagamento (...) (fls. 3.570-3.576).
Em decorrência de tanto, afirma que o acórdão violou o disposto nos artigos
476 do Código Civil e 11 da Lei Renato Ferrari, haja vista que descumpriu a
ordem estabelecida entre as partes de contrato de concessão comercial de
veículos automotores ao determinar o cumprimento de “prestação impossível à
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
421
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
primeira recorrente, pois, sem saber do valor da fatura, não tinha como proceder
nem à vista, nem a prazo, ao respectivo pagamento” (fl. 3.576).
Contrarrazões às fls. 3.588-3.595, no sentido de que não há falar “(...) em
qualquer violação pelo v. acórdão recorrido ao artigo 11 da Lei n. 6.729/1979,
tampouco ao artigo 476 do Código Civil, na medida em que a sistemática
do contrato de concessão mantido entre as partes era clara e evidente de que
os pagamentos eram efetuados sempre à vista, e por ocasião do pedido de
fornecimento” (fl. 3.594).
O agravo interposto contra a decisão de inadmissibilidade do especial foi
provido para determinar sua inclusão em pauta (fl. 3.637).
É o relatório.
VOTO
O Sr. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (Relator): 1. Ao que se tem dos
autos, trata-se de ação indenizatória proposta por revendedor de veículos e seus
sócios com o fim de reconhecer que, sem justa causa, a ora recorrida encerrou
o contrato de concessão comercial, bem como os obrigou a pagar indenização
pelos danos daí decorrentes.
O pedido inicial foi julgado procedente, restando assim delineado o quadro
fático incontroverso:
(...)
As partes mantiveram relacionamento comercial ao longo de vários anos,
pelo qual a revendedora Autovel distribuiu veículos e peças fornecidos pela
montadora, sob sua bandeira.
O problema de relacionamento se iniciou quando o co-autor, Camilo dos
Santos Neto, co-proprietário de outra concessionária Ford, a Grande Capital,
sediada em Belo Horizonte-MG iniciou litígio com seu então sócio Paulo Cézar da
Silva, gerando a derrocada deste empreendimento.
A ré passou a negar-lhe crédito, não só na empresa que estava em litígio entre
os sócios, como também nas empresas de co-propriedade de Camilo dos Santos
Neto, dentre elas a Autovel, cujo outro sócio era Manoel Andrade de Souza.
Visando a composição com a ré, Camilo Santos Neto e o seu ex-sócio na
concessionária Grande Capital (Paulo Cézar), entabularam acordo com a empresaré pelo qual renunciavam a seus direitos sobre a bandeira em questão.
422
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Para tanto, o Gerente do Distrito Belo Horizonte da montadora-ré expediu
carta ratificando os termos de proposta efetuada em reunião anteriormente
havida, assumindo obrigação de compensar tais pessoas “através do aumento
do faturamento de veículos, que proporcionam margens de lucro ‘maior’ para as
empresas as quais elei continuavam a atuar como co-proprietórios (fís. 176).
(...)
O co-autor Camilo Santo Neto, em “nova correspondência (fls. 178) reafirmou seu
interesse no negócio, desde que cumprida a condição do faturamento mensal de 180
(cento e oitenta veículos) durante oito anos.
(...)
A empresa-ré, após a efetivação da renúncia, através do mesmo Gerente
do Distrito de Belo Horizonte, Sr. Wagner Mantovani, comunicou as empresas
Autovel e Sanvel dando conta que haviam sido cumpridas todas as exigências
formuladas para transferência da empresa Grande Capital, razão pela qual iria
restabelecer o faturamento de veículos e peças (fls. 184) (...)
Tal promessa não foi cumprida.
(...)
Ainda no final do ano de 1995 a ré deixou de fornecer veículos e peças,
ara a empresa Autovel, sendo que tal situação perdurou até a subscrição do
acordo de composição entre as partes. Logo no inicio de 1996. em decorrência
do descumprimento por parte dos sócios da concessionária Grande Capital, a
montadora Ford deixou novamente de faturar veículos para a autora Autovel.
A mudança desta situação, segundo a própria ré, somente aconteceria com a
renúncia por parte de Camilo e Paulo Cézar à bandeira Grande Capital, o que se
efetivou em 4.11.1996 (carta juntada às fís. 183).
A partir de então o faturamento de veículos à Autovel seria retomado.
(...)
Uma vez formulada a renúncia à franquia de Belo Horizonte, sob a promessa
de linhas de crédito vantajosas e do fornecimento diferenciado de veículos com
liquidez no mercado, a empresa-ré deixou de cumprir com suas promessas, não
atendendo os pedidos formulados pela Autovel.
(...)
Não medra, outrossim, a assertiva no sentido de que os pagamentos
deveriam ser prévios, mormente porque a prova documental e oral deram conta
que, via de regra, a prática comercial mantida entre a Ford e as concessionários
fazia-se através do pedido de faturamento de veículos com o conseqüente lançado do
débito na conta corrente mantida pelo sistema denominado “Floor Plan”.
Assim, para que pudesse ocorrer o creditamento em favor da ré, esta deveria
atender previamente o pedido formulado, efetuando o faturamento do veículo
solicitado.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
423
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Assim, tenho que a ré não cumpriu a obrigação firmada quando da subscrição
da renúncia da concessão de Belo Horizonte, no sentido de compensar a Autovel,
em face da renúncia ceita pelo co-autor Camilo, com o fornecimento mensal de
180 veículos Ford.
(...) (fls. 3.278-3.285 - grifou-se).
O Tribunal Estadual inverteu o julgamento, firme nas seguintes premissas:
(...)
Os autores asseveraram que sem justo motivo o réu deixou de fornecer
aqueles veículos e, depois, sem prévio aviso considerou encerrada a concessão,
quadro que levou a empresa a paralisar suas atividades, o que provocou prejuízos
econômicos e afetou sua imagem, tendo também abalado o conceito dos sócios.
(...)
Como se informou na petição inicial, um dos concessionários do grupo
econômico não honrou débito assumido junto à instituição financeira ligada ao
réu, que com isso suspendeu a linha de crédito disponibilizada ao autor, empresa
do mesmo grupo.
Para solucionar a pendência os sócios concordaram em renunciar à concessão
outorgada à empresa devedora e, como compensação, a montadora forneceria
maior quantidade de veículos ao concessionário remanescente, isso de modo a
permitir aumento dos lucros.
Tal quadro ficou bem revelado pela prova, especialmente pelas cartas enviadas
pela Ford ao autor (fís. 176 179), na qual ela confirmou que entregaria ao parceiro
a mesma quantidade de veículos que enviada ao outro concessionário.
Certo, porém, é que aqueles veículos não foram enviados, tendo o réu
sustentado que tal ocorreu porque o autor não efetivou o correspondente
pagamento.
Ora, estava nos autos que os veículos encomendados à montadora haviam de
ser pagos à vista e antecipadamente (fls. 602).
Tal circunstância não foi desmentida pelo autor, que até juntou documentos
que comprovavam ser aquele o proceder usual no relacionamento entre o
concessionário a montadora (fls. 384 e seguintes).
Certo, ainda, que para aquele fim as partes mantinham um sistema de
conta-corrente na qual eram lançados os créditos e débitos decorrentes dos
faturamentos, cabendo ao concessionário servir-se de recursos próprios ou obtidos
no mercado financeiro, assim como dos fundos disponibilizados pelo Plano de
Capitalização (fls. 603-606).
Pois na espécie nada indicava terem as partes convencionado adoção de
um sistema diverso para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de
o concessionário ser dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de
424
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
proceder a tal pagamento à vista. (...) em carta seguinte a montadora anotou
que as operações entre as empresas já podiam ter “continuidade normal” e que
seria reiniciado “o faturamento de veículos” (fls. 183), indicações que evidenciavam
não terem as partes alterado o regime de pagamento.
(...)
De todo modo, o fato é que o requerido agiu no regular exercício de seu
direito ao se negar a fornecer os veículos sem a contrapartida consistente no
pagamento antecipado do preço, providência autorizada pela parte final do
artigo 11 da Lei n. 6.729/1979.
(...) (fls. 3.541-3.545 - grifou-se).
Ao que se tem, portanto, na sentença, diante da situação fática dos autos,
restou decidido que “(...) Não medra, outrossim, a assertiva no ‘sentido de que os
pagamentos deveriam ser prévios, (...) via de regra, a prática comercial mantida
entre a Ford e as concessionários fazia-se através do pedido de faturamento de
veículos com o conseqüente lançado do débito na conta corrente mantida pelo
sistema denominado ‘Floor Plan’. Assim, para que pudesse ocorrer o creditamento
em favor da ré, esta deveria atender previamente o pedido formulado, efetuando o
faturamento do veículo solicitado” (fl. 3.285 - grifou-se).
Por outro lado, diante do mesmo quadro fático, o Tribunal local entendeu
que “(...) para aquele fim as partes mantinham um sistema de conta-corrente na
qual eram lançados os créditos e débitos decorrentes dos faturamentos, cabendo
ao concessionário servir-se de recursos próprios ou obtidos no mercado financeiro,
assim como dos fundos disponibilizados pelo Plano de Capitalização (fls. 603-606).
Pois na espécie nada indicava terem as partes convencionado adoção de um sistema
diverso para a efetivação dos pagamentos, isto é, no sentido de o concessionário ser
dispensado de pagar pelos veículos ou desobrigado de proceder a tal pagamento à
vista. (...) o fato é que o requerido agiu no regular exercício de seu direito ao se negar
a fornecer os veículos sem a contrapartida consistente no pagamento antecipado do
preço, providência autorizada pela parte final do artigo 11 da Lei n. 6.729/1979”
(fl. 3.545 - grifou-se).
Ora, no caso, ao interpretar a obrigação de cada um dos contratantes,
decidiram em flagrante divergência, o que, em princípio, inviabilizaria o
conhecimento do presente apelo pelos óbices das Súmulas n. 5 e n. 7 do
Superior Tribunal de Justiça.
Assim, seria possível imaginar que a adoção de tese diversa da esposada pelo
acórdão reclamaria investigação probatória. Todavia, após leitura minudente das
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
425
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
duas decisões, verifica-se que a questão em exame é eminentemente jurídica
e não exige que se adentre o campo das provas ou o debate acerca de cláusula
contratual.
Isso porque a questão radica unicamente na ordem para que se proceda o
pagamento à vista: se antes ou depois do faturamento.
Desse modo, não obstante divergirem quanto ao direito das partes, cada
julgado reconhece a existência das obrigações (faturamento e pagamento) e,
portanto, em comum, permitem a incidência da exceção do contrato não cumprido
(art. 476 do CC/2002) (fl. 3.562).
2. Delimitado o âmbito de conhecimento do apelo extremo, passa-se à
análise do mérito do inconformismo.
Antes, porém, mister se faz um breve comentário sobre a legislação que
rege a matéria.
Em 29 de novembro de 1979 foi publicada a Lei n. 6.729 que dispôs sobre
a concessão comercial entre produtores e distribuidores de veículos automotores
de via terrestre. Na elaboração da lei, agiu o legislador com grande avanço e
coragem, reconhecendo e tipificando uma das modalidades contratual mais
controvertida, que surgiu com o crescimento industrial no setor automobilístico.
Em conferência proferida em 1972, no Instituto dos Advogados Brasileiros
- IAB, o Prof. Rubens Requião já antecipava que:
O contrato de concessão de venda com exclusividade constitui, sem dúvida,
uma nova técnica de comercialização, de organização do mercado distribuidor de
produtos industrializados ou de alta tecnicidade, de que tanto falam os autores
europeus. Através desse sistema, a empresa comercial se relaciona com a empresa
industrial, de forma a manter, cada uma a integridade de sua personalidade jurídica.
(...) A empresa industrial se restringe a vender, em grosso, os seus produtos para
concessionários que irão revendê-los, ao retalho, sob o seu controle técnico e sob
sua estreita vigilância. (Revista Forense - vol 271 - Ano 76 - p. 30-31).
De fato, a Lei Renato Ferrari, como ficou conhecida, apresenta
peculiaridades da concessão comercial. A mais evidente é o controle externo
do concedente, ou seja, controle contratual que lhe permite planificar sua
produção e zelar pela marca acompanhando o produto desde a fabricação até
a comercialização. Para isso, o concessionária, por sua vez, se obriga a revender,
com exclusividade, a mercadoria objeto da concessão através de sua empresa, da
qual é titular independente.
426
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Além disso, outras peculiaridades devem ser destacadas: i) é um contrato
mercantil entre comerciantes (concedente e concessionário) e ii) é um contrato
típico, porquanto suas cláusulas e condições estão previstas e são regidas pela
própria Lei n. 6.729/1979.
Como se percebe, o contrato de concessão para venda de veículos
automotivos é de natureza estritamente empresarial, tipificado na Lei n.
6.729/1979, que estabelece, de forma genérica, direitos e obrigações tanto
do concedente quanto do concessionário, prescrevendo, ainda, o regramento
mínimo a ser observado pelas pessoas jurídicas contratualmente ligadas.
E como se não bastasse, o citado diploma trouxe para o então direito
comercial uma inovação: a convenção das categorias econômicas e a convenção
da marca como fontes supletivas de direitos e obrigações para os integrantes da
relação contratual.
A Convenção de Categorias Econômicas produz efeitos no tocante a
terceiros, ou seja, os componentes das respectivas categorias tornam-se
vinculados através de um pacto normativo. Possuindo similaridade com as
convenções coletivas de trabalho, tais pactos não tinham sido, até então, previstos
no âmbito comercial.
Por outro lado, exatamente por se tratar de um diploma legal que tem
como um de seus objetos a regulação de relações de mercado de todo um setor
econômico, teve o legislador também a preocupação de estabelecer algumas
permissões entre os contratantes, reconhecendo a necessidade de lhes delegar a
fixação de determinadas questões, através das Convenções das Marcas.
Tais instrumentos normativos (convenção de categorias econômicas e
convenção da marca) têm força de lei e estão assim previstas:
Art. 17. As relações objeto desta Lei serão também reguladas por convenção
que, mediante solicitação do produtor ou de qualquer uma das entidades adiante
indicadas, deverão ser celebradas com força de lei, entre:
I - as categorias econômicas de produtores e distribuidores de veículos
automotores, cada uma representada pela respectiva entidade civil ou, na
falta desta, por outra entidade competente, qualquer delas sempre de âmbito
nacional, designadas convenções das categorias econômicas;
II - cada produtor e a respectiva rede de distribuição, esta através da entidade civil
de âmbito nacional que a represente, designadas convenções da marca.
§ 1º Qualquer dos signatários dos atos referidos neste artigo poderá proceder
ao seu registro no Cartório competente do Distrito Federal e à sua publicação
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
427
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
no Diário Oficial da União, a fim de valerem contra terceiros em todo território
nacional.
§ 2º Independentemente de convenções, a entidade representativa da
categoria econômica ou da rede de distribuição da respectiva marca poderá
diligenciar a solução de dúvidas e controvérsias, no que tange às relações entre
concedente e concessionário.
Art. 18. Celebrar-se-ão convenções das categorias econômicas para:
I - explicitar princípios e normas de interesse dos produtores e distribuidores
de veículos automotores;
Il - declarar a entidade civil representativa de rede de distribuição;
III - resolver, por decisão arbitral, as questões que lhe forem submetidas pelo
produtor e a entidade representativa da respectiva rede de distribuição;
IV - disciplinar, por juízo declaratório, assuntos pertinentes às convenções da
marca, por solicitação de produtor ou entidade representativa da respectiva rede
de distribuição.
Art. 19. Celebrar-se-ão convenções da marca para estabelecer normas e
procedimentos relativos a:
I - atendimento de veículos automotores em garantia ou revisão (art. 3º, inciso
II);
II - uso gratuito da marca do concedente (art. 3º, inciso IlI);
III - inclusão na concessão de produtos lançados na sua vigência e modalidades
auxiliares de venda (art. 3º § 2º, alínea a; § 3º);
IV - Comercialização de outros bens e prestação de outros serviços (art. 4º,
parágrafo único);
V - fixação de área demarcada e distâncias mínimas, abertura de filiais e outros
estabelecimentos (art. 5º, incisos I e II; § 4º);
VI - venda de componentes em área demarcada diversa (art. 5º, § 3º);
VII - novas concessões e condições de mercado para sua contratação ou
extinção de concessão existente (art. 6º, incisos I e II);
VIII - quota de veículos automotores, reajustes anuais, ajustamentos cabíveis,
abrangência quanto a modalidades auxiliares de venda (art. 7º, §§ 1º, 2º, 3º e 4º) e
incidência de vendas diretas (art. 15, § 2º);
IX - pedidos e fornecimentos de mercadoria (art. 9º);
X - estoques do concessionário (art. 10 e §§ 1º e 2º);
XI - alteração de época de pagamento (art. 11);
XII - cobrança de encargos sobre o preço da mercadoria (art. 13, parágrafo único);
428
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
XIII - margem de comercialização, inclusive quanto a sua alteração em
casos excepecionais (art. 14 e parágrafo único), seu percentual atribuído a
concessionário de domicílio do comprador (art. 5º § 2º);
XIV - vendas diretas, com especificação de compradores especiais, limites
das vendas pelo concedente sem mediação de concessionário, atribuição de
faculdade a concessionários para venda à Administração Pública e ao Corpo
Diplomático, caracterização de frotistas de veículos automotores, valor de
margem de comercialização e de contraprestação de revisões, demais regras de
procedimento (art. 15, § 1º);
XV - regime de penalidades gradativas (art. 22, § 1º);
XVI - especificação de outras reparações (art. 24, inciso IV);
XVII - contratações para prestação de assistência técnica e comercialização de
componentes (art. 28);
XVIII - outras matérias previstas nesta Lei e as que as partes julgarem de
interesse comum. (grifou-se).
E o indigitado artigo 11 dita que “O pagamento do preço das mercadorias
fornecidas pelo concedente não poderá ser exigido, no todo ou em parte, antes
do faturamento, salvo ajuste diverso entre o concedente e sua rede de distribuição.”
(grifou-se)
De fato, os elementos reais, no contrato de concessão comercial, são o
objeto e o preço. E com o intuito de acabar com o abuso de certas concedentes
que exigiam o pagamento antecipado, passou-se a determinar que o preço
somente poderá ser exigido após o faturamento, a não ser que haja ajuste de
maneira diferente entre os contratantes.
Posto isso, volta-ao caso em apreço.
3. Com efeito, em 1983 foi firmada a Primeira Convenção da Categoria
Econômica dos Produtores e da Categoria Econômica dos Distribuidores de
Veículos Automotores, entrando em vigor no dia 16 de janeiro de 1984, da qual
se extrai:
Capítulo XII
Dos Pedidos do Distribuidor e Fornecimento do Produtor
(...)
Art. 2º. Em convenção de marca, serão especificados:
I - os prazos para programação de encomendas do distribuidor; para
apresentação do pedido do distribuidor ao produtor; para eventual recusa do
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
429
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
produtor a pedido formulado pelo distribuidor; para entrega pelo produtor das
mercadorias solicitadas;
II - as condições e forma de pagamento do preço da mercadoria e seus eventuais
encargos;
(...) (www.fenabrave.com.br - grifou-se).
Em seguida, a Primeira Convenção da Marca Ford, firmada em 10 de abril
de 1985, com vigência após 60 (sessenta) dias de sua assinatura, determinou:
Capítulo XII
Dos Pedidos do Concessionário e Fornecimento da Ford
Art. 1º Os pedidos dos concessionários, integrantes da Rede de Distribuição,
e os fornecimentos da Ford corresponderão à quota de veículos automotores e
enquadrar-se-ão no índice de fidelidade de componentes.
Art. 2º Os pedidos dos concessionários, integrantes da Rede de Distribuição,
à Ford, terão sua validade sujeita a formulação por escrito, e especificação
correta e completa da mercadoria, respeitados os padrões normais bem como a
consignação das demais condições estabelecidas, no presente Capítulo.
(...)
II - Condições e Forma de Pagamento do Preço da Mercadoria e seus Eventuais
Encargos:
(a) o pagamento do preços das mercadorias solicitadas pelo concessionário,
à Ford, e seus eventuais encargos, será realizado, sempre, pelo concessionário, à
vista, contra entrega, ressalvado casos especiais decorrentes de implementação,
por iniciativa da Ford, de programas especiais de comercialização, objetivando o
atendimento de situações especiais de mercado, de qualquer natureza.
(b) No caso de o concessionário se utilizar de planos especiais para financiamento
de seu estoque, deverá manter linha de crédito adequada.
(...) (fls. 873-874 - grifou-se).
E ainda, no mesmo sentido, transcreve-se o Décimo Sétimo Termo de Ajuste da
Alteração da Convenção de Marcas, de 26.7.1993, no qual expressamente diz:
1. Considerando que a aquisição de veículos automotores da marca Ford junto
à Autolatina pelos concessionários da Rede de Distribuição Ford (concessionários)
é efetivada mediante o pagamento à vista do preço estabelecido pela Autolatina
com a utilização de recursos próprios dos concessionários ou provenientes de
financiamento contratado, diretamente, pelos concessionários com qualquer
entidade do Sistema Financeiro Nacional;
(...) (fl. 956 - grifou-se).
430
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
Ao que se tem, portanto, independentemente do modo (sistema “Floor
Plan”, financiamento bancário ou dinheiro), o pagamento sempre foi à vista,
e isso restou incontroverso nos autos. Contudo, em nenhum momento foi
resolvido que o pagamento seria efetuado antecipadamente ao faturamento.
Desse modo, não existindo na Convenção de Marcas a determinação do
pagamento antecipado, o preço somente poderá ser exigido após o faturamento,
nos termos do artigo 11 da Lei Ferrari, em sua primeira parte.
Assim, se ao longo dos anos optou a concessionária por aderir a financiamentos
ou outros tipos de contratos bancários para operacionalizar a atividade empresarial,
ou até mesmo com recursos próprios, só poderia ser penalizada se, após o faturamento,
deixasse de cumprir sua obrigação de pagar à vista, já que a assunção dos riscos
econômicos é imanente à própria relação contratual em comento.
Em verdade, a concessionária acabou por assumir riscos que poderiam
advir do inadimplemento contratual após o faturamento dos 180 (cento e
oitenta) veículos, porém, não poderia, antes desse momento, a concedente impor
penalidades se sequer restaram faturados, conforme previamente combinado.
É o que dispõe o artigo 476 do Código Civil:
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida
a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Com efeito, somente ocorrendo o descumprimento da obrigação de uma
das partes, pode a outra deixar de cumprir sua parcela na obrigação, porque, em
tese, poderá não receber o que lhe seria devido.
Outra não é a lição de Carvalho Santos:
(...) Realmente, no contrato bilateral as obrigações são equivalentes uma da
outra, de forma que a parte que exige a prestação da outra, sem ter cumprido a
sua, desnatura o caráter da obrigação da qual reclama pagamento, pois a encara
como se fosse isolada não levando em conta a equivalência (...). (Código Civil
Brasileiro Interpretado, Liv. Freitas Bastos, 12ª ed. Vol. XV, p. 237).
É o que se colhe, também, de Sílvio Rodrigues:
(...) A exceptio non adimpleti contractus é igualmente instrumento útil para
compelir o devedor a pagar seu débito, pois a recusa de uma das partes ao
cumprimento da obrigação pode surgir como elemento de compulsão a atua
sobre a atitude da outra. Seu campo de ação é o terreno das convenções
sinalagmáticas, pois só se pode compreendê-la nos negócios jurídicos onde
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
431
REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
haja prestações recíprocas. Além de recíprocas, é mister que as prestações sejam
simultâneas, pois, caso contrário, sendo diferente o momento da exigibilidade,
não podem as partes invocar tal defesa (...). (Direito Civil, Saraiva, Vol. 3, 12ª ed,
1983, p. 83).
Ainda, os ensinamentos de Pontes de Miranda:
(...) Nos contratos bilaterais, o credor também é devedor, de modo que, se
do devedor, que é credor, não quer adimplir, o devedor, que é credor, se pode
recusar a adimplir. (Tratado de Direito Privado, Borsoi, 2ª ed. Vol. 26, Cap. V, §
3.122, n. 1).
Outro, a propósito, não é o entendimento já firmado nesta egrégia
Terceria Turma, conforme bem elucidou a ilustre Ministra Nancy Andrighi, no
julgamento do REsp n. 981.750-MG, assim ementado:
Direito Civil. Contratos. Rescisão. Prévia constituição em mora. Necessidade.
Exceção de contrato não cumprido. Requisitos. Nulidade parcial. Manutenção do
núcleo do negócio jurídico. Boa-fé objetiva. Requisitos.
(...)
- A exceção de contrato não cumprido somente pode ser oposta quando a lei
ou o próprio contrato não determinar a quem cabe primeiro cumprir a obrigação.
Estabelecida a sucessividade do adimplemento, o contraente que deve satisfazer a
prestação antes do outro não pode recusar-se a cumpri-la sob a conjectura de que
este não satisfará a que lhe corre. Já aquele que detém o direito de realizar por
último a prestação pode postergá-la enquanto o outro contratante não satisfizer
sua própria obrigação. A recusa da parte em cumprir sua obrigação deve guardar
proporcionalidade com a inadimplência do outro, não havendo de se cogitar da
argüição da exceção de contrato não cumprido quando o descumprimento é parcial
e mínimo.
(...)
- A boa-fé objetiva se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo
objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada
pessoa ajuste a própria conduta a esse modelo, agindo como agiria uma pessoa
honesta, escorreita e leal.
(...)
Recurso especial a que se nega provimento (REsp n. 981.750-MG, Terceira
Turma, julgado em 13.4.2010, DJe 23.4.2010 - grifou-se).
A bem da verdade, o que ocorreu foi um abuso de direito, contrariando
o artigo 11 da Lei Renato Ferrari, o qual, ao ser analisado juntamente com
432
Jurisprudência da TERCEIRA TURMA
os artigos 17 e 19 da citada norma, legitima a condenação da ora recorrida ao
pagamento dos prejuízos a que dera causa.
De mais a mais, não se pode esquecer que, conforme preleciona Gladston
Mamede, “exige o art. 1º da Lei das Duplicatas que o vendedor extraia uma
respectiva fatura para apresentação ao comprador. Essa fatura é um documento
no qual são discriminadas as mercadorias vendidas (quantidade, qualidade e
valor); a fatura não se confunde com a nota fiscal das mercadorias e o próprio
parágrafo 1º deixa claro ser possível que a fatura seja extraída indicando somente
os números e valores das notas parciais expedidas por ocasião das vendas,
despachos ou entrega das mercadorias. A fatura, vê-se, é um instrumento
no qual se aterma (reduz a termo escrito) (...) É, portanto, uma conta, como
coloquialmente se diz: uma relação escrita do que se entregou ou fez e o valor
correspondente, que deverá ser pago pelo comprador ou pelo que se beneficiou
do serviço prestado. Uma conta que se assina, reconhecendo a existência do
negócio e, se não há o respectivo pagamento, do crédito correspondente.”
(Títulos de Crédito, De acordo com o Novo Código Civil, Atlas, 2003, p. 302).
Em vista de todo o exposto, dou provimento ao recurso especial para
restabelecer a sentença.
É o voto.
RSTJ, a. 25, (229): 309-433, janeiro/março 2013
433
Download

RSTJ 229.indd - Site seguro do STJ