A LÓGICA ANTICONCORRENCIAL DAS MEDIDAS ANTIDUMPING Isabela Maiolino* Isabela Monteiro de Oliveira** Resumo Pretende-se demonstrar que o antidumping consiste em medida essencialmente protecionista, uma vez que, ao resguardar o mercado nacional, acaba se sobrepondo aos princípios constitucionais da livre concorrência e da livre iniciativa. É preciso verificar se as medidas antidumping, ao imporem barreiras à entrada de novos agentes econômicos, são utilizadas como mecanismo facilitador para prática de condutas anticoncorrenciais. Palavras-chave: dumping; medidas antidumping; direito concorrencial; medidas protecionistas. Abstract This paper intends to demonstrate that the anti-dumping is essentially protectionist, once it guard the national companies to the detriment of the constitutional principles of free enterprise and free competition. It is necessary to establish if the application of the anti-dumping measures, by imposing entrance barriers to new economic agents, it is used as means to facilitate the practice of anticompetitive conducts. Key-words: dumping; anti-dumping measures; antitrust law; protectionists measures 1. Introdução Em linhas gerais, considera-se dumping a introdução de um produto em determinado mercado a um preço de exportação inferior ao seu valor normal, sendo este geralmente aferido como o preço praticado no mercado de origem. Pela defesa comercial, tal prática é classificada como desleal e é combatida com fulcro no Acordo * Graduanda em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e em Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Email: [email protected] ** Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Email: [email protected] 1 Antidumping, elaborado no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC e integrado ao ordenamento brasileiro por meio do Decreto Legislativo nº 301, de 1994. O objetivo do presente estudo consiste em analisar o dumping e o direito antidumping, com base nos princípios da livre concorrência e da livre iniciativa, consagrados no ordenamento jurídico brasileiro e devidamente protegidos pelo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência – SBDC. Busca-se verificar se o direito antidumping pode ser considerado medida essencialmente protecionista e se, em razão das barreiras que impõe à entrada de novos agentes econômicos no mercado doméstico, é utilizado como facilitador da criação e da manutenção de cartéis nos mercados que visa a proteger – tendo este trabalho foco no mercado brasileiro. O método utilizado para atingir os objetivos estabelecidos neste estudo será o analítico-dedutivo, buscando-se esclarecer conceitos e elucidar proposições a partir de pesquisa bibliográfica em textos legais, doutrinários, livros e artigos relacionados à temática. O artigo está dividido de forma que, primeiramente, descreve-se a defesa comercial brasileira. No segundo tópico, trata-se do dumping e da aplicação da medida antidumping, seguindo-se da diferenciação entre os chamados dumping pró-competitivo e dumping anticompetitivo. Posteriormente, fala-se da lógica anticoncorrencial da medida antidumping, e o porquê de considerar-se a sua aplicação como um facilitador da prática de cartel por agentes nacionais. A hipótese inicial é a de que o antidumping constitui medida essencialmente protecionista e, em razão da geração de barreira artificial à entrada de novos agentes competidores, torna-se um mecanismo facilitador da cartelização do mercado nacional, haja vista ser utilizado para salvaguardar interesses individuais de agentes econômicos nacionais. 1 O referido Decreto aprovou a Ata Final da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, 1947 (GATT) 2 2. Defesa comercial brasileira O sistema de defesa comercial brasileiro é composto pela Secretaria de Comércio Exterior – Secex, pelo Departamento de Defesa Comercial – Decom e pela Câmara de Comércio Exterior – Camex. Os dois primeiros órgãos fazem parte do Ministério da Indústria, Desenvolvimento e Comércio Exterior - MDIC2, e a Camex é um órgão interministerial que compõe o Conselho de Governo da Presidência da República. De acordo com o art. 5º do Decreto nº 8.058/13, compete a Decex “iniciar a investigação antidumping, encerrar a investigação sem aplicação de medidas, prorrogar o prazo para a conclusão da investigação, encerrar a pedido do peticionário a investigação sem julgamento de mérito, iniciar uma revisão de direito antidumping ou extingui-la”. O art. 6º do referido Decreto estabeleceu que o Decom é a autoridade investigadora, cabendo a ele a condução do processo administrativo relacionado ao dumping. Já à Camex cabe a aplicação dos direitos antidumping com base no parecer final elaborado pelo Decom, de acordo com o art. 2º da mesma norma. 3. O dumping Segundo o artigo VI do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, 19473 (GATT), considera-se dumping a introdução de um produto em um país com um valor abaixo do normal (preço do produto fixado no país de origem). Para combater essa prática desleal, aplicam-se as medidas antidumping, que consistem na “imposição de direitos aduaneiros sobre produtos de empresas que discriminam mercados”, e “se materializam na cobrança de valores adicionais no momento da importação do produto” (Barral e Brogini, 2007, p. 34), sendo esses direitos cobrados pela Secretaria da Receita Federal. Contudo, o dumping não deve ser confundido com o preço predatório, que é a venda de um produto no mercado nacional abaixo do preço de custo. Diferentemente do 2 Os dados completos referentes à estrutura do MDIC foram retirados do site: http://www.mdic.gov.br/arquivos/dwnl_1271101778.gif 3 O GATT de 1947 foi adotado pelo GATT de 1994, em vigor no Brasil. Foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.355, que promulgou a Ata Final que incorporou os resultados da Rodada Uruguai de Negociações Multilaterais do GATT. 3 dumping, aquele é considerado um ilícito concorrencial, conforme a Lei nº 12.529, de 2011. As medidas contra o dumping estão elencadas no Decreto nº 8.058, de 2013, que também regulamentou os procedimentos investigativos contra essa prática. Contudo, a prática de dumping não é motivo suficiente para a condenação e a aplicação de direito antidumping, pois deve restar comprovado que essa prática gerou dano ao mercado interno em um setor específico4 e que existe nexo causal entre o dano e a prática de dumping. A comprovação do dano deve ser explicitada na denúncia feita ao Decom. Passemos a análise do dumping pró-competitivo e o anticompetitivo. 3.1 Dumping pró-competitivo e dumping anticompetitivo Alguns autores preconizam a diferenciação entre o dumping pró-competitivo e o dumping anticompetitivo. Marceau (1995) pontua alguns aspectos relacionados à chamada discriminação de preços, que é a característica marcante do dumping: (i) apesar da perda de lucros pelos competidores diretos5 do mercado doméstico, resultando no desemprego de alguns trabalhadores, os preços baixos de um determinado bem gerarão benefícios para os produtores de bens derivados que o utilizam em sua constituição, e para os consumidores diretos do bem e dos produtos que o empregam; (ii) a discriminação de preços pode ser pró-competitiva se serve para interromper uma situação de monopólio ou para obstar uma colusão anticompetitiva, como um cartel6. Tais fatores evidenciam como a prática de dumping pode favorecer o cenário de concorrência do mercado importador, trazendo benefícios não só para os consumidores, mas também para própria indústria doméstica, uma vez que os preços baixos do produto objeto do dumping beneficiariam os setores da indústria que utilizam esse produto como insumo para a fabricação de produtos derivados. Barral (2000) explica que “o Acordo Antidumping da Rodada Uruguai – AARU esclareceu que o conceito de dano deve ser entendido como a) dano material a uma indústria nacional, b) ameaça de dano material a uma indústria nacional, ou c) atraso real na implantação de uma indústria nacional”. 5 Que produzem o mesmo bem, situando-se no mesmo mercado relevante. 6 De acordo com Marceau (1995), se o cartel é internacional, um óbice a sua continuidade pode ser benéfico tanto para o país importador quanto para o exportador. 4 4 Por outro lado, há um tipo de discriminação de preços que é considerada anticompetitiva, caracterizada pela “predação”7. Existem diversas classificações que elencam os diferentes tipos de dumping, incluindo aquela que traz a definição do chamado dumping predatório, como um equivalente transnacional do preço predatório, já abordado no tópico anterior. Em caso de dumping predatório, uma empresa de um país “A” vende a uma empresa de um país “B”, um produto a um preço abaixo do seu preço de custo por um tempo suficiente para conseguir tirar os seus concorrentes do mercado e, posteriormente, desfrutar dos lucros do monopólio. Assim, o dumping predatório seria uma modalidade de dumping anticompetitivo, uma vez que, ao contrário do dumping não predatório, tem como objetivo conquistar o mercado com preços baixos, a fim de eliminar os concorrentes do mercado importador e, posteriormente, dominar esse mercado. No entanto, ainda que, em teoria, o dumping predatório configure prática de concorrência desleal e anticoncorrencial de maior gravidade, é pertinente salientar o que já foi destacado pela Suprema Corte norte-americana, no caso Cargill8, o qual contém extensa discussão sobre o motivo pela qual os esquemas de preço predatório raramente têm sucesso: “In order to succeed in a sustained campaign of predatory pricing, a predator must be able to absorb the market shares of its rivals once prices have been cut. If it cannot do so, its attempt at predation will presumably fail, because there will remain in the market sufficient demand for the competitors' goods at a higher price, and the competitors will not be driven out of business. (…) It is also important to examine the barriers to entry into the market, because ‘without barriers to entry it would presumably be impossible to maintain supracompetitive prices for an extended time.’ Matsushita, 475 U.S., at 591, n. 15, 106 S.Ct., at 1358, n. 15.” Ante o exposto, ressalta-se que o entendimento contido no referido precedente concerne à possibilidade da prática de preço predatório, mas também pode ser aplicado ao dumping predatório por analogia, uma vez que, ainda que esses institutos pertençam Segundo Cordovil (2009, p. 171), “[a] predação no mercado internacional é a discriminação de preços entre o mercado doméstico e o mercado de exportação, com venda, no último, por um preço abaixo do preço de custo, com o objetivo de eliminar competidores e manter ou adquirir posição dominante no mercado”. 8 Estados Unidos da América. U.S. Supreme Court. Cargill, 479 U.S. at 121 7 5 a esferas de competência diferentes, ambos têm como objetivo a limitação da concorrência, a dominação do mercado e o aumento arbitrário do lucro (predação)9. Dessa forma, entende-se que o dumping predatório, isto é, o único tipo de dumping que poderia ser considerado anticompetitivo, na verdade é bastante incomum e raramente bem sucedido. Isso se deve ao fato de que, ainda que determinada empresa possua poder de mercado suficiente para manter um preço predatório pelo tempo necessário para afastar os concorrentes do mercado, a probabilidade de recuperação dos lucros perdidos é extremamente baixa – motivo pelo qual seria uma prática economicamente irracional. 4. A lógica anticoncorrencial das medidas antidumping Tratemos do choque entre a defesa da concorrência e a defesa comercial. Segundo Cordovil (2009), a relação entre a defesa da concorrência e a liberalização do comércio internacional é de complementaridade, uma vez que a abertura dos países ao comércio internacional provoca a concorrência entre fornecedores e, consequentemente, possibilita diversas vantagens aos consumidores, como o aumento da oferta, a diminuição dos preços, a melhora na qualidade dos produtos e a alocação mais eficiente dos recursos disponíveis. Não obstante essa complementaridade, existe um aspecto do comércio internacional que costuma entrar em conflito com as políticas de defesa da concorrência: a defesa comercial. O direito antidumping, como conjunto de leis e medidas de defesa comercial, possui finalidades que entram constantemente em conflito com o bem jurídico protegido pelo direito antitruste. Conquanto os defensores do antidumping preconizem que este visa a preservar a capacidade de concorrer de determinados agentes do mercado, por vezes a sua aplicação acaba resultando em efeitos deletérios à concorrência. Tal conflito gera discussões sobre Esse entendimento já foi reproduzido pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade no julgamento do Processo Administrativo nº 08000.013002/1995-97, que reconheceu que o preço predatório é prática “[I]rracional e raramente é observada no mundo real. Esse ceticismo se deve à irracionalidade presumida de uma firma na prática de preços em níveis predatórios para maximizar lucros. (...) Ainda que a firma engajasse em tal conduta e fosse bem sucedida na eliminação dos rivais, para ser lucrativo, a firma predadora necessitaria recuperar as perdas por meio de elevação de preços mais tarde a níveis supracompetitivos. Num ambiente de completa informação, preços em tais níveis atrairia [sic] novos competidores (na esperança de obter lucros supranormais), reduzindo as chances da firma de recuperação de suas perdas” (p. 04). 9 6 se a existência de um mecanismo de proteção às indústrias nacionais, muitas vezes carente das mesmas eficiências das economias desenvolvidas, justificaria a clara violação aos princípios constitucionais da livre concorrência e da livre iniciativa. A defesa comercial, caracterizada pela aplicação do antidumping, configura medida anticompetitiva, visto que as restrições que são impostas ao produto objeto do dumping, com o fim de proteger a indústria doméstica, desmotivam a entrada de concorrentes estrangeiros no mercado nacional, diminuindo a diversidade dos produtos ofertados. Existem diversas consequências que podem advir da aplicação das medidas antidumping. Não seria desarrazoado sustentar que o antidumping pode funcionar como um recurso utilizado por empresas nacionais para impedir a entrada de concorrentes estrangeiros, a fim de manter o seu poder de mercado ou mesmo de sustentar uma situação de monopólio ou oligopólio, pois um dos fatores marcantes para a perpetuação de um mercado fechado são as barreiras à entrada10. Como ensinado por Barral (2007), a liberalização é sempre caracterizada como um fator positivo, uma vez que implica um aumento da concorrência entre produtores, o que leva a outros benefícios para o bem-estar nacional. Por outro lado, o autor destaca que, na vida real, os governos acabam sofrendo pressões dos produtores nacionais, que sofrem com a maior concorrência. Assim, o argumento comumente utilizado para justificar a existência do direito antidumping é a necessidade de se proteger as empresas do país importador que não conhecem as mesmas eficiências ou que não possuem o mesmo grau de desenvolvimento das empresas do país exportador. No entanto, essa não é a realidade predominante no contexto da utilização do antidumping. Consoante o Guia de Avaliação de Concorrência da OCDE, vol. II, p. 21, “[d]e um modo geral, as barreiras à entrada podem ser definidas como os factores que dificultam a entrada de empresas novas no mercado relevante. Avaliar a extensão destas barreiras é importante, pois fornece-nos uma perspectiva do grau potencial de concorrência que as empresas estabelecidas podem enfrentar. Por exemplo, se as barreiras à entrada forem elevadas, as empresas incumbentes podem assumir comportamentos restritivos da concorrência, aumentar os preços e desfrutar lucros elevados, sem o receio de que a entrada de novos fornecedores comprometa os seus proveitos. Dito de outra forma, quanto menor o nível de barreiras à entrada, maior será o grau potencial de concorrência, verificando-se ainda um efeito disciplinador sobre as empresas estabelecidas no mercado, cujo poder de mercado é restringido”. Fonte: http://www.oecd.org/daf/competition/49418818.pdf. 10 7 Analisemos a situação brasileira. Ainda que não possa ser considerado um país desenvolvido, o Brasil encontra-se atualmente entre as maiores economias do mundo, considerado o critério de Produto Interno Bruto – PIB. Os dados mais atuais do Banco Mundial (16 de dezembro de 2014)11, mostram o Brasil na 7ª posição no ranking mundial de PIB. Assim, verifica-se que não há fragilidade inerente à indústria brasileira que justifique a adoção de medidas essencialmente protecionistas. Não obstante, dentre os países integrantes do G-20, o Brasil é o que mais inicia investigações antidumping12, o que confronta as justificativas pró-antidumping expostas até então – somos, inclusive, conhecidos como um país protecionista13. Diante desse cenário, pondera-se se o argumento de que o dumping é prejudicial às economias subdesenvolvidas, cujas indústrias nacionais não teriam condições de competir sem tais medidas protecionistas, justifica a adoção dessa política num contexto em que a maior parte das alegações de dumping visa à defesa de interesses individuais, sem motivação que justifique o prejuízo aos consumidores. 5. O Antidumping como meio facilitador da cartelização Segundo Pierce, Jr. (2000), o direito antidumping facilita a formação, a manutenção e o enforcement de cartéis. Tal constatação é utilizada para justificar o seu posicionamento no sentido de deveria haver apenas duas opções em vista dos problemas concorrenciais gerados pelo antidumping: de um lado, a abolição do direito antidumping; e de outro, o reconhecimento da necessidade de empreender vigorosas investigações antitruste das empresas que acionam aquele mecanismo de proteção, como alternativa a uma medida mais drástica. 11 World Development Indicators, The World Bank. GDP ranking. Fonte: http://data.worldbank.org/datacatalog/GDP-ranking-table 12 De acordo com o 12th Reports on G20 and Investment Measures, o Brasil foi o país com o maior número de abertura de investigações antidumping tanto em 2012 quanto em 2014, ficando em 2º lugar em 2013, perdendo apenas para os Estados Unidos no referido ano. 13 Exemplo disso é a atual disputa aberta pela União Europeia contra o Brasil em razão de impostos sobre produtos importados. “Brazil applies high internal taxes in several sectors, such as automobiles, information technologies, and machines used by industry and professionals. Brazilian products, unlike imported ones, can however benefit from selective exemptions or reductions. As a result, goods manufactured in the EU and sold in Brazil face higher taxes than Brazilian products. For instance, the tax on imported vehicles may exceed that collected on Brazilian-made cars by 30% of a car's value. Combined with customs duties levied at the border and other charges, this may amount in some cases to a prohibitive tax of 80% on the import value. In addition, Brazil restricts trade by requiring Brazilian manufacturers to use domestic components as a condition to benefit from tax advantages. This promotes import substitution by inducing foreign producers to relocate to Brazil and to limit foreign sourcing. This hurts EU exporters of finished products and their components.” Fonte: http://europa.eu/rapid/pressrelease_IP-14-1224_en.htm 8 O ônus imposto aos produtores que buscam vender no mercado importador funciona como um reforço negativo, dissuadindo esses agentes de competirem em países que iniciam a investigação antidumping. Em face da barreira à entrada de novos competidores, o mercado torna-se hostil para novos agentes econômicos, em especial para aqueles que buscam atuar em mercados oligopolizados. Dada a hipótese de um mercado já cartelizado, ou um mercado marcado por concentração de poder econômico, percebe-se que é interessante para os agentes que fazem parte de um cartel, ou que possuem uma fatia considerável do mercado, que não haja a entrada de novos competidores no mercado. Como exemplo, podemos citar o emblemático “cartel do cimento”, julgado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, em 201414. No referido caso, o Cade aplicou multas a quatro das maiores produtoras de cimento e concreto do país, tendo a soma das multas chegado ao valor de R$ 3,1 bilhões (o maior já aplicado na história do Cade). As provas da conduta indicam que o ilícito durou pelo menos de 1987 a 2007 e que a atuação do cartel trouxe consideráveis prejuízos à economia brasileira, uma vez que a sua atividade gerou uma “estrutura de mercado ilícita”15. Não obstante a concentração de mercado que caracterizou o período de atuação do cartel do cimento, bem como a mencionada estrutura de mercado ilícita, dados do Decom demonstram que houve abertura de investigação antidumping pelo Brasil no mercado de cimento, em face de Cuba e da Venezuela, em 05 de julho de 1996, tendo havido a aplicação do direito16. O mesmo ocorreu em, 13 de julho de 1999, em relação ao México e, novamente, à Venezuela17. Em 27 de julho de 2005, foi aberta investigação de revisão relativamente a esses últimos países, com a aplicação de direitos antidumping por meio da Resolução Camex n° 18 em julho de 2006, e Resolução nº 36 em novembro de 2007, respectivamente18. Foram aplicados direitos de 22,5% ao México e 19,4% à Venezuela, os quais foram suspensos apenas em 02 de setembro de 2010. 14 BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. 08012.011142/2006-79, julgado em 28/05/14. 15 IDEM, voto do Conselheiro-Relator Alessandro Octaviani, p. 385. 16 Dados retirados do Relatório Decom – 2010, p. 24. 17 IDEM, p. 26. 18 IDEM, p. 29 e 44. 9 Processo Administrativo Os referidos dados mostram que a aplicação das medidas antidumping coincidiu, em boa medida, com o período de atuação do cartel, o que significa que elas foram acionadas com a justificativa de resguardar um mercado que, na verdade, já se encontrava cartelizado. Assim, se a estrutura de mercado ilícita gerada pelo cartel já havia formado barreiras à entrada de novos competidores, a aplicação das medidas antidumping apenas reforçou a estrutura de mercado fechada e oligopolizada. Assim, apesar de o direito antidumping ser constantemente descrito como uma forma de garantir que os participantes dos mercados internacionais consigam promover o chamado fair trade, essa assertiva não seria exata, sendo a principal característica do direito antidumping o protecionismo a ele inerente (Pierce Jr., 2000). Isso porque as vantagens possivelmente associadas ao antidumping podem ser mitigadas pelos danos à concorrência. O precedente citado, referente ao cartel do cimento, corrobora essa assertiva. Se não houvesse ocorrido a aplicação do direito antidumping, o mercado nacional teria alguma possibilidade de adquirir cimento e concreto a um preço competitivo – ainda que praticado por meio de dumping. 6. Conclusão Ao longo do trabalho, descrevemos o mecanismo pelo qual se aplica o direito antidumping no Brasil, as classificações desse instituto e as justificativas usualmente utilizadas para sustentar a sua adoção. Explicou-se, também, qual é a relação entre as medidas antidumping e o direito da concorrência, que consagra os princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência. Sendo uma medida protecionista, que visa a proteger a indústria nacional, a as medidas antidumping podem ser caracterizadas como uma barreira à entrada de novos competidores, que buscam ganhar mercado através de vendas com valores mais baixos que os praticados no país de origem – mas não abaixo do preço de custo, o que configuraria dumping predatório. Ainda, demonstrou-se que o dumping predatório, a única modalidade de dumping que é anticompetitiva e que deve ser reprimida, na verdade consiste em prática pouco observada e que raramente obtém sucesso, o que se justifica pelos riscos a ela 10 associados. Tais riscos servem de desestímulo ao agente econômico que deseja praticar o dumping predatório com o objetivo de eliminar seus concorrentes do mercado. Aliado às demais barreiras comumente impostas aos agentes internacionais, como a alta carga tributária e o desafio de buscar novos mercados, o direito antidumping não só protege o mercado interno da concorrência com os produtos estrangeiros, como também pode servir de facilitador à promoção de ilícitos anticoncorrenciais, em especial a formação de cartel. Ainda que esse artigo possa ser classificado como um estudo preliminar da relação entre as medidas antidumping e a supressão da concorrência, com efeitos deletérios para a economia nacional, confirmou-se, até aqui, a hipótese inicial: por ser medida protecionista que busca salvaguardar a indústria nacional, o antidumping é recurso utilizado pelos agentes do mercado doméstico para resguardar interesses individuais (de empresas monopolistas ou oligopolistas), podendo contribuir para a promoção, manutenção e enforcement de condutas de cartel – ainda que façam uso de medidas legitimadas pela OMC. Assim, encerramos o trabalho com a ilustre frase de Barral e Brogini (2007, p. 19), que resumiria a hipótese de que agentes econômicos fazem uso das medidas antidumping como mecanismo de impedimento da entrada de novos agentes econômicos, tornando a indústria nacional mais fechada e protecionista: “concorrência sempre é bem-vinda, desde que no mercado dos outros”. 11 BIBLIOGRAFIA BARRAL, Welber. BROGINI, Gilvan. Manual Prático de Defesa Comercial. São Paulo: Lex Editora, 2007.BRASIL. BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08000.013002/1995-97. Relator Conselheiro Mércio Felsky, julgado em 30/05/2001. ______. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo 08012.011142/2006-79. Relator Conselheiro Alessandro Octaviani, julgado em 28/05/14. ______. Decreto nº 8.058 de 2013. Acesso em 12/06/15. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d8058.htm ______. 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