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DA AMIZADE NIETZSCHIANA: POR UMA PSICOLOGIA NÔMADE
Mákellen Gonçalves Dias1
Lilian Ester Winter2
Luciano Bedin da Costa3
Oriana Holsbach Hadler4
RESUMO
Este escrito traz reflexões sobre o conceito de amizade em Nietzsche, compreendendo tal
como um lugar de experimento entre indivíduos, que afirmados sobre sua individualidade
interagem numa relação agonística aonde, divergências, distanciamentos, transformações e
transição, dão a tônica da relação amical nietzschiana. Relação esta que, por causar no
indivíduo o deslocamento, produz alterações, diferenciações do eu, as quais aqui tomamos por
produção de novas formas de habitar os espaços, formas de ser. Tomando a perspectiva de
uma Klínica como desvio, como criação, vislumbramos a possibilidade da compreensão da
relação amical como um dispositivo klínico. A possibilidade da amizade em Nietzsche se dá
por via da solidão, campo de cultivo do indivíduo, que conquistando o poder auto-regulativo,
artístico de sua existência, pode partilhar de si com os outros, com os amigos, e também em
vias de um distanciamento necessário que pode também remeter à psicologia um exercício
nômade sobre suas práticas.
Palavras-chave: amizade, Nietzsche, psicologia, distanciamento, klínica.
1
Bacharel em Psicologia pela Sociedade Educacional Três de Maio – Faculdade Três de Maio da turma de 2013.
E-mail: [email protected]
2
Psicóloga. Mestre em Desenvolvimento com ênfase em Gestão e Políticas de Desenvolvimento. Especialista
em Gestão Estratégica e Qualidade e Especialista em Gestão de Pessoas e Talentos. Coordenadora e professora
do Curso de Psicologia e professora de pós-graduação da Sociedade Educacional Três de Maio. E-mail:
[email protected]
3
Professor Adjunto da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É
integrante do Departamento de Estudos Básicos - DEBAS, atuando na área de Psicologia da Educação. Pesquisa
relações entre educação, arte, filosofia e saúde coletiva. Tem uma série de publicações voltadas às relações entre
vida e escritura. E-mail: [email protected]
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Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Psicóloga
graduada pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) e pós-graduada na Goldsmiths College - University of
London, Inglaterra. Psicodramatista pelo IDH-RS. Docente do Centro Universitário Metodista (IPA),
coordenando nesta instituição o Projeto 'Observatório de Juventudes'. Integrante do Núcleo E-politcs - Estudos
em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação pela UFRGS e colaboradora do grupo de pesquisa
Psicologia, Políticas Públicas e Subjetivação pela UCDB. E-mail: [email protected]
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ABSTRACT
This paper puts forward reflections on the concept of friendship to Nietzsche, understanding
such as an experimental place between individuals, that once having their individuality
affirmed, they interact in an agonistic relationship, in which divergences, distancing,
transformations and transitions give the tonic of the nietzschian friendship. Relation that, once
it causes deployment towards the individual, it produces alterations and self-differentiations,
which are taken by new ways of dwelling spaces, new ways of being. As conductor line to
this experiment it is taken the klinic perspective as deviation, creation, so it represents a
glimpsed en route for understanding the friendship relation as a klinical dispositive. The
possibility of the nietzschian friendship works through solitude, cultivation field of the
individual, that when conquering the self-regulated power, artistic of his existence, then the
one can share himself with other, with friends, and as well en route of a needed distancing
provoking psychology an nomad exercise towards its practices.
Key-Words: friendship, Nietzsche, psychology, distancing, klinic
INTRODUÇÃO
Ao contato inicial com a ideia nietzschiana de amizade, pudemos vislumbrar a
possibilidade da conciliação de uma temática muito mais atrelada a uma discussão filosófica,
do que uma prática psicológica, com um fazer psicológico, um fazer clínico. Compreendendo
que a clínica pode ser um ato de transformação, de criação do indivíduo, assim como a
relação amical também o é, a partir das especificidades da mesma estabelecemos uma
conexão entre ambas.
Desta forma, iremos trabalhar inicialmente uma condição básica para a amizade
nietzschiana, que é a conquista de si mesmo, a qual somente é alcançada pelo exercício da
solidão, e depois pela relação com o outro. O processo solitário será vislumbrado como um
auto-experimento do indivíduo, aonde através deste, poderá alcançar uma capacidade autolegisladora, sendo capaz de tornar-se um artista de si mesmo. Mostrando como a solidão se
liga diretamente à amizade pela necessidade da partilha de si, de sua conquista, do seu
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transbordamento, e como paradoxo da relação amical, pois ser amigo em Nietzsche implica
uma solidão a dois.
Na sequência do texto, veremos como as especificidades da relação amical
nietzschiana, tais como, distanciamento, infidelidade, mutabilidade, inimizade, vem constituir
uma relação agonística, que possibilita ao indivíduo um deslocamento, um desvio de si
mesmo, decorrente dos constantes embates com indivíduos diferentes de si.
Tomando como base a possibilidade de pensar a klínica como um fazer desviante,
transbordante, criativo, assim analisaremos como a amizade em Nietzsche pode ser entendida
como um dispositivo de um fazer klínico. Sob esta ótica, pensaremos como esta relação de
conflito constante pode vir a tensionar determinadas práticas „psi‟ sancionando uma existência
saudável, uma saúde a partir do entendimento nietzschiano, como possibilidade de adoecer e
curar-se, fortalecendo-se para novos embates e novos adoecimentos.
CULTIVO DE SI
Pensar a amizade em Nietzsche implica necessariamente uma ruptura com a ideia de
amizade constituída em nossa sociedade ocidental ao longo da história que nos fala de uma
relação de dissolução do eu no outro, já em Nietzsche encontraremos a condição primeira da
amizade, calcada na afirmação de si (ORTEGA, 2002).
A afirmação de si passa, por um processo de experimentação, e primeiramente por
uma auto-experimentação, e como descreve Nietzsche. A sociedade moderna encontra-se
atribulada demais, demasiadamente barulhenta, ligada a uma pretensa necessidade de um
constante estar junto dos outros, seja no trabalho, na escola, na família, em suma,
estabelecimentos e instituições que venham a valorizar uma noção de unidade coletiva, em
detrimento da expressão individual (NIETZSCHE, 2007 A, p. 303).
Nesse âmbito vemos o crescente aumento de redes sociais, facebook, twitter, thumblr,
entre outros, os quais demandam e capturam contatos, um aumento de „amigos‟, que
representam uma necessidade e governo de informação, de um se colocar na exterioridade o
tempo todo, uma virtualidade que toma conta e que convoca a um registro e contatos diretos
com o mundo, reduzindo a solidão a um estado patológico, quase nevrálgico, renegado pelas
pessoas como algo a temer.
Como meio para alcançar níveis de expressão individual que rompam com estas
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amarras coletivas, Nietzsche propõe o cultivo de si, que só seria possível na medida em que
há um distanciamento destes estabelecimentos e instituições. “Trata-se, antes, de um retorno à
calma e à serenidade perdidas pela modernidade e indispensáveis para a liberação do espírito”
(OLIVEIRA, 2011). Esse distanciamento refere-se à capacidade do indivíduo de sustentar-se
por si, e não de acordo com as convenções coletivas,
a distância aparece como pathos no sentido em que o homem forte é aquele que
possui em si mesmo o sentimento de poder que o distancia dos demais homens do
rebanho, como um refinado sentimento de domínio sobre si, de soberania e
autorregulação (OLIVEIRA, 2011, p. 59).
O personagem que vem encarnar este anseio de afirmação é nomeado por Nietzsche,
como espírito livre. O espírito livre seria aquele indivíduo que alcançou um despojamento tal,
seja de costumes, morais, afetivos, que passa a ser um legislador de sua própria existência, de
sua vida, negando acesso à força coletiva que vem transpor os limites de seu habitar o mundo.
Neste processo o indivíduo deve encontrar então, um lugar, um momento, para ficar só, para
estar solitário, pois “de fato, a solidão é para nós uma virtude, é uma inclinação sublime e
uma necessidade de pureza, que advinha que o contato com os homens – “em sociedade” –
tende inevitavelmente a se tornar impuro” (NIETZSCHE, 2006 BM, p. 206).
É na solidão que o indivíduo poderá entrar em contato com o seu eu, com aquele que
é. Porém em Nietzsche o eu, constitui-se de uma figuração diferente da qual estamos
habituados, a de um eu como representação identitária. Em Nietzsche não há uma identidade,
um eu pronto, constituído, delimitado e acabado em si. O eu do homem para Nietzsche (2008,
p. 24), é sempre algo em construção, em transformação, um andar, e não a moldura final de
uma constituição, como aponta um trecho do prólogo IV de ZA “o que é grande no homem é
ele ser uma ponte e não uma meta. O que se pode amar no homem é ele ser uma passagem e
um declínio”.
Desta forma podemos falar de um indivíduo em Nietzsche como um indivíduo
dividido, pois este é aquele que tem a noção de si, mas também já é aquele em que está se
tornando, um indivíduo em devir, em constituição, um processo. Um que se divide em dois,
principalmente em solidão, esse outro do eu, é aquilo que possibilita distanciar-se de si, e
vislumbrar a possibilidade de criação, de transição. Essa ideia de divisão pode ser encontrada
no discurso “Do Amigo” em ZA “„Junto de mim sempre há alguém em demasia‟ – assim
pensa o solitário. „Algumas vezes um sempre acaba por fazer dois, com o correr do tempo!‟”
(NIETZSCHE, 2008, p. 68).
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Porém devemos atentar para o risco de incorrer num equívoco comum da moral de
nossa sociedade, que seria a divisão do indivíduo perante o contato com outro indivíduo,
diluindo-se em dois, mas não dois de si, e sim um eu do outro indivíduo, “na moral, o homem
não se trata como um individuum, mas como um dividuum” (NIETZSCHE, 2007 HH, p. 80).
O homem existe então como uma aspiração, como aquele que mira o distante, que
busca outro eu na inconstância da existência, na experimentação de si e das relações que virá
a estabelecer. Nietzsche expressa claramente que o anseio do homem deve ser o
deslocamento, o distanciamento constante de si “mais elevado que o amor ao próximo é o
amor ao longínquo, ao que está por vir, acima ainda que o amor ao homem coloco o amor às
coisas e aos fantasmas” (NIETZSCHE, 2008 ZA, p. 72).
Como um devir, um por vir a ser, o indivíduo não pode ser enquadrado sob a
categoria de sujeito, pois esta expressa a ideia de uma constituição dada, de um ser fixo,
imutável, e implica um assujeitamento a moral coletiva, um submeter-se ao que Nietzsche
aponta como enfraquecimento da força individual. Em um fragmento póstumo de Nietzsche
citado por Oliveira (2011, p43) vemos que deste modo o sujeito como ideia é “uma coisa
como todas as demais: uma simplificação para designar como tal a força que propõe, inventa,
pensa, diferenciando-se do próprio supor, inventar, pensar mesmo”.
Pensar este indivíduo dividido como uma constante transformação é fundamental
para o entendimento do que se pretende com este escrito, que é mostrar que através da
experimentação, do entrelaçamento, de forças, de existências, o ser humano pode constituir-se
e desconstituir-se no intuito de buscar sempre um crescimento, uma caminhar em direção ao
que realmente se é, mesmo que este seja inalcançável, e por isso mesmo desejável.
Neste momento, em que viemos a falar de um ser humano, devemos considerar o que
tomamos por humano. Pois o humano considerado de forma geral pela sociedade, é aquele
que reúne em si as boas características do homem, de forma que não é incomum nos
depararmos com situações aonde alguém é acusado de não ser humano, por expressar
sentimentos que não condizem com esta pretensa boa moral. Nossa sociedade circundada por
uma moral cristã submeteu a figura humana ao assemelhamento divino, ao expressar a
igualdade do humano com um deus. Essa igualdade ao nível divino impõe ao homem, a
supressão de sentimentos e afetos, não condizentes com aquele, tais como raiva, egoísmo,
inveja, medo, sentimentos presentes em diversas afigurações humanas.
Desta forma, tomaremos aqui o humano, como um indivíduo que dispõe de uma
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gama de sentimentos “negativos” e “positivos”, que, no entanto para nós, não são de ordem
negativa ou positiva, mas sim humana, no sentido de ser aquilo que faz parte do homem. E ao
passo que tomamos o humano, como possuidor desta variedade de sentimentos e afetos, o
compreendemos como um movimento, de forma que não podemos dizer de um ser humano
estagnado, constituído e pronto, mas de um ser momento, lugar, instante, fluxo, só dessa
forma devemos tomar um ser.
Diante destas colocações sobre o indivíduo, devemos entender que tais atitudes só
podem ser tomadas quando se tem certa quantia de confiança própria, de autorregulação, de
capacidade modificadora, que só é alcançada primeiramente por experimentar-se afetado pelo
o que diz do ser humano.
Porém estar só, solitário, em nossa sociedade, constitui um ato suspeito, pois a ideia
de unidade é tão recorrente que torna quase inviável pensarmos em alguém que se desprenda
deste rebanho para experimentar a si mesmo, principalmente em um momento histórico em
que há uma pretensa valorização do indivíduo, que, no entanto só conduz a massificação e a
dissolução individual.
Mas vejamos sob a ótica de Nietzsche, que coloca a solidão como um lugar onde a
diferenciação entre o eu e mim, são produtoras de alterações no indivíduo. Sob este ângulo
somos levamos a perceber que a solidão em si não constitui um ato nocivo ao bem coletivo,
pois através desta diferenciação, deste experimentar-se, o indivíduo caminha na direção de ser
aquilo que se é, ou seja, daquilo que pode vir a ser.
Entretanto a solidão incorre no risco de demasiado aprofundamento em si, em que o
eu e o mim afundam em uma contemplação e experimentação profunda, que o indivíduo se
torna denso demais, um perigo para a necessária transformação. Neste ponto, Nietzsche
aponta a criação de um amigo ficcional, que venha a fazer justamente o papel de um terceiro,
Eu e mim estão sempre entabulando diálogos veementes. Como se poderia suportar
isto se não houvesse um amigo?
Para o solitário o amigo é sempre o terceiro. O terceiro é a bóia que impede o
diálogo de se afundar nas profundezas (NIETZSCHE, 2008 ZA, p. 68).
Posto isto, podemos compreender que o amigo nunca se mesclará ao eu, o amigo é
sempre outro, algo diferente, pois nele também há esta dualidão que compõe o indivíduo
solitário, há esse aprofundamento e sua potência transformadora, “é no embate entre estas
duas solidões (dualidão) que um outro se produziria – a este outro daríamos o nome de
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amizade” (COSTA; DIAS; HADLER, 2012).
Neste mesmo sentido Oliveira (2011, p. 60) traz da dualidade da solidão que esta é
“ao mesmo tempo uma premissa e um suporte para a relação de amizade, já que o indivíduo
em sua solidão deixa-se dividir entre aquele que é e que ele „tem acesso‟ como um segundo de
si mesmo através do isolamento”. Então, ser estranho ao outro é condição fundamental da
amizade Nietzschiana, pois ao diferir estamos criando no amigo um movimento, ao mesmo
tempo em que também me modifico, porém, uma modificação no outro eu, o eu do futuro, o
eu que está por vir, e não uma modificação em submissão ao ser do amigo.
Afirmado em sua capacidade de transformação, adquirida pela auto-experimentação,
o indivíduo sente-se cheio, sente-se capaz de partilhar de si aquilo que conquistou, sente-se
transbordante e apto a voltar ao convívio comum com outros, sendo que “na amizade, o que
os amigos compartilham é a alegria; ao contrário, na compaixão, os indivíduos tomam parte
da dor e da pena uns dos outros” (OLIVEIRA, 2011. p. 133).
Desta forma a solidão mostra-se um exercício que conduz o ser transbordante ao
contato com outros, de modo que
aquele que é livre é apresentado como o que perdeu o medo, e não vê nos inimigos a
não ser motivos de afirmação de si mesmo, e essa é a melhor tradução da fineza da
solidão, ou seja, livrar o indivíduo do medo dos outros, já que, afirmado em si, ele
não tem mais nada a temer (OLIVEIRA, 2011, p. 67).
Assim compreendemos que a solidão, não é um sentimento e um estado negativo, e
sim um modo de aprender a lidar com o outro, como nos aponta Nietzsche (apud OLIVEIRA
2011, p. 65) “busca a solidão para poder servir do melhor modo a muitos ou a todos (à
multidão): se a buscas por outra razão, te debilitará, adoecerá e fará de ti um membro
atrofiado”.
A solidão liga-se à amizade, justamente pela possibilidade desta representá-la em
dados momentos, já que nem sempre se é viável estar só, por assim dizer “a amizade é a
representação metafórica do claustro moderno no qual os indivíduos agem conforme si
mesmos e não se deixam transformar em „seres genéricos‟ guiados pela convenção social e
pela tradição” (OLIVEIRA, 2011, p. 40).
Esta era uma das aspirações de Nietzsche ao pensar em amizade, que esta fosse um
“viver amigavelmente em comum na maior simplicidade” (NIETZSCHE apud OLIVEIRA,
2011, p. 39), como o indivíduo vive quando só, quando pode ser aquilo que é, sem deixar-se
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levar pelas convenções e opiniões alheias, “é por isso que vou para a solidão - para não beber
das cisternas que estão dispostas para todos” (NIETZSCHE, 2007 A, p. 303), e não beber da
água de todos é o que enriquece o indivíduo, pois este se diferencia e só da diferença se pode
dizer de algo benéfico, algo que traga mudança e transições para um devir, um poder ser.
Sendo assim podemos perceber que,
Na amizade, buscar ser o que se é deixa de ser uma tentativa de melhoramento e
domesticação, fuga ou purificação (em busca de um ideal que o indivíduo deveria
ser), para ser um exercício constante de confusão entre a intimidade e o
distanciamento de devenientes submetidos ao jogo de forças característico da
vontade de poder (OLIVEIRA, 2011, p. 44)
Poder distanciar-se após um momento de intimidade consigo, ou com o amigo
acessível enquanto transição possibilita não um melhoramento, uma evolução, e sim o
exercício de conhecer-se e desconhecer-se a partir dos contatos estabelecidos.
Entendemos que a amizade é um espaço de experimentação e distanciamento, o
amigo se sente livre para estabelecer outras relações, entendo que o amigo deve permanecer
outro, um estranho, e não aquele que se apaga a nossa sombra.
“Os amigos são a prova de que o “eu” não pode ser visto a não ser como uma
constante mudança e transformação. A amizade, ela mesma, só pode ser entendida
como encontro temporário, o instante eterno que se deseja intenso e que faz de cada
um, dois e nunca uno. O amigo é, antes de tudo, o mascarado” (OLIVEIRA, 2011, p.
46-7)
Como caminho para o amigo, devemos entender que a solidão é um exercício
necessário, para podermos oferecer aos outros aquilo que de melhor temos, que é nossa
capacidade de não nos atermos a posses de si, e de outros, de estarmos dispostos a
compartilhar alegrias, de servir de passagem ao amigo, e não como um fim, que a psicologia
seja também capaz de se sentir solitária, de provar a si mesmo, de flexionarmo-nos e
desdobrarmo-nos a partir de um pensamento desapegado as verdades dogmáticas que podem a
vir a constituir uma prática do campo psicológico.
A AMIZADE COMO TENSIONAMENTO À PSICOLOGIA
Como um indivíduo transbordante pela conquista de si, se está pronto para ser amigo,
para ofertar ao outro, o que lhe é mais precioso, ele mesmo. Desta forma a amizade surgirá
como um espaço entre dois indivíduos, e não no interior de cada um, a amizade não é algo
que diz da interioridade, mas sim da relação com outra pessoa, aquilo que se dá entre eles, que
os separa e que os liga, sendo assim “a amizade é um interregno, um “entre” que caracteriza
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todas as relações: é o lugar da liberdade plena vivenciada pelo espírito livre como
representação do amigo” (OLIVEIRA, 2011, p. 47). Nesses termos vemos a amizade como
um espaço de experimento entre os indivíduos, de colocações, deslocamentos, e trajetos
criacionais, que possibilitam a reinvenção do próprio relacionamento.
Está é uma das características básicas da amizade nietzschiana, o respeito pela
individualidade, o respeito ao espaço do outro, sem um sentimento de posse. Como Oliveira
(2011) aponta comentando Nietzsche, aquele que é escravo não pode ser amigo, pois tende a
ver os outros como superiores e se rende a sua vontade. Enquanto aquele que é tirano não
pode ter amigo por tomar todos como sua posse, como subalternos, sendo que nas duas
ocasiões há um sentimento de posse, o que impossibilita a “abertura de um espaço de
alteridade autêntica – um poder-ser-outro que, paradoxalmente, constitui também um aceno e
um caminho em direção ao si-próprio” (GIACÓIA JÚNIOR in OLIVEIRA, 2011, p. 11).
Neste poder ser outro, vemos o amigo com admiração, mas uma admiração do que
também somos, a “nossa fé nos outros revela aquilo que desejaríamos poder acreditar em nós
mesmos. Nosso desejo de um amigo é nosso delator” (NIETZSCHE, 2008 ZA, p. 68). Sendo
então que a ligação se estabelece pela capacidade de uma outridade de si mesmo, e não do
amigo, ambos estariam em níveis existenciais equivalentes.
Porém os amigos estão na relação de forma transitória, sendo que sem um
componente possessivo, com a premissa da afirmação de si, ambos estão inclinados à
mudança, à criação, ao desvio, de forma que a amizade possibilita uma ordenação
momentânea, que afirma a individualidade de cada um, em um caminho que leva a se tornar
cada vez mais aquilo que se é (OLIVEIRA, 2011).
Sendo diferente de mim, o outro me é útil e de grande estima, este é o único modo
que podemos pensar em igualdade (OLIVEIRA, 2011). Somente pensando nas outras ciências
como diferentes, a psicologia pode se manter o que é, ou melhor, tornar-se o que é.
Frequentemente vemos a submissão da psicologia às normativas de outras ciências, que levam
à dissolução de uma definição, mesmo que temporária, de uma identidade enquanto campo do
conhecimento.
Nesses termos, cabe ressaltar que a psicologia à qual fazemos alusão neste breve
espaço de reflexões diz daquelas práticas que se tomam enquanto esquadrinhamento do
interior dos sujeitos; uma psicologia que se coloca enquanto ciência social patologizante
(ROSE, 2008). Apesar de saber-se que a psicologia contemporânea vem sofrendo
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transformações, questionando modos de fazer e determinados efeitos sobre a conduta das
pessoas, encontram-se inúmeras práticas em que ainda vigora um mandato sobre a alma dos
indivíduos, uma psicologia que vigora ora como uma disciplina benemérita (que vai trabalhar
com os pobres a fim de salvá-los), ora como aquela ciência progressista (que vai ajudar a
localizar os subversivos e rebeldes os diagnosticando e enquadrando).
Como Silva (2003) revela com propriedade, tal herança de uma psicologia que busca
respostas para o ser humano (encontrando estas em modelos comportamentais, culpabilizando
determinados momentos relacionais ou situando movimentos e ações a partir de determinantes
psíquicos, tomando somente um nível subjetivo, considerando este como algo interno e ahistórico, e não como um processo sócio-histórico e produzido no decorrer do tempo), deve-se
ao paradigma cientificista tradicional que vai produzindo modos de subjetivação nos quais a
psicologia se esmigalha: forjando teses que evocam o pensar no acontecimento, mas também
perpetuando a ciência do desajuste; mapeando o erro e, também, buscando superar a
Psicologia contemporânea que Foucault (1990) nos mostrou, aquela que se construiu nos
percalços da “análise do anormal, do patológico, do conflitual, uma reflexão das contradições
do homem com ele mesmo [...] uma psicologia do normal, do adaptativo, do ordenado" (p.
134-135).
Nesses termos cabe trazer a (des)ordem da amizade nietzschiana, pois o ideal desta
seria causar um incômodo a práticas normalizadoras. Dito de outra forma, a amizade para
Nietzsche convoca à relação entre dois indivíduos autolegisladores, dois espíritos livres, no
entanto mesmo aqueles que não atingiram ainda este status podem gerar no outro o processo
de diferenciação, que o deslocará de seu lugar de conforto.
Pensemos nos lugares de verdade em que a psicologia habita, de que forma poderia
ser útil o ideal de uma estagnação e uma devoção a premissas gerais que regessem o
pensamento psicológico. Podemos utilizar a compreensão de amizade nietzschiana
(OLIVEIRA, 2011), para desassossegar o lugar das práticas „psi‟, um espaço de construção e
desconstrução de seu fazer.
Possibilitar-nos ao novo, ao inesperado, ao desconhecido, em decorrência de nossas
experiências, é nos transformar; e aquele que se transforma experimenta mais, se torna
conhecedor de mais verdades, em seu sentido múltiplo, do que aqueles que se contentam em
delinear uma verdade única. Oliveira (2011, p. 22) nos mostra em uma leitura de Nietzsche
como este abandona a possibilidade “da determinação de padrões ou normas formadoras de
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algum cânone moral, já que seu projeto não busca algo a priori ou universal, ao contrário, está
arraigado nas experiências transitórias de cada indivíduo”.
Um interessante ponto da amizade nietzschiana pode ser estendido ao fazer
psicológico, que é a noção de não existência do “homem” fixo, universal, de modo que na
amizade a relação é assimétrica, nasce da diferença (OLIVEIRA, 2011). Compreender o
indivíduo como único, e em constante devir, é um modo possível de se pensar em uma forma
de trabalho psicológico, ou melhor, de uma existência psicológica, pois esta compreensão se
entendida por todos, pode nos levar ao estabelecimento de relações que em si, já seriam
profiláticas.
Tendo isto em mente, podemos compreender que qualquer tentativa de melhorias ou
correção do homem, apenas nos levará a criar barreiras limítrofes em suas capacidades,
lentamente conduzindo a um adoecimento de forças vitais (OLIVEIRA, 2011). Como na
amizade nietzschiana que é um espaço de experimento, confusão, incompreensão e
diferenciação, devemos nos aconselhar a permitir o silêncio, permitir um espaço entre
indivíduos, para que não caiamos na vulgaridade interpretacional do outro, sendo que o outro
não se interpreta, não se delimita, não se define, ele se transforma e só pode ser tocado na
impossibilidade do encontro, apenas como um outro que é ele, que constrói seu próprio modo
de ver e ser no mundo.
Para a amizade nietzschiana a possibilidade de adoecer, não se constitui em um
evento ruim, já que o indivíduo pode pelas indisposições da doença, aprofundar-se em si
mesmo, porém o “doente se volta para si, é agraciado pelos amigos, mas não pode retribuir,
por pensar apenas em si” (OLIVEIRA, 2011, p. 50), sendo assim somos capazes de entender a
doença como algo que sim, é danoso, mas também é gerador de possibilidades criativas, que
também pode fortalecer os laços afetivos.
Para Nietzsche (2006 BM, p. 200) “a dor profunda torna nobre; ela separa” traz a
possibilidade de o indivíduo experimentar ao extremo todos os componentes sentimentais do
humano, não caindo em uma tentativa de sepultar o sofrimento como algo que deve ser
repudiado e evitado, sendo que
a dor não é senão uma parte da existência que, em vez de empurrar para outros
mundos, deve conduzir o pensador, por probidade intelectual, a se tronar mais sábio
e forte com ela, aprendendo a discernir (porque é um iniciado) o aspecto saudável ou
doentio de todos os pensamentos e filosofias (OLIVEIRA, 2011, p. 55).
Desta forma, o próprio psicólogo poderia deslocar-se do modelo cristalizado de ver a
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dor como patologia, doença de si, para percebê-la como parte do processo de saúde do
paciente, e do mesmo modo deve compreender que o sofrimento intelectual que é trazido com
a criação de novas formas de pensar, também é integrante do pensamento psicológico.
Entretanto o sofrimento não é igualmente vivenciado por todos, Nietzsche classifica
dois tipos:
há duas espécies de sofredores: há em primeiro lugar aqueles que sofrem de
superabundância de vida, aqueles que reclamam uma arte dionisíaca e também uma
visão trágica da vida interior e exterior – e há em seguida aqueles que sofrem de um
empobrecimento de vida, que pedem à arte e ao conhecimento a calma, o silêncio, o
mar tranqüilo, ou ainda a embriaguez, as convulsões, o abalo, a loucura
(NIETZSCHE, 2006 GC, p. 289).
A partir disto devemos entender que o amigo nietzschiano é aquele que sofre de
abundância de vida, o que sempre quer compartilhar, quer sempre transbordar e ser novo, e é
como amigos do conhecimento psicológico que o conceito de amizade nietzschiano nos
convoca a uma possibilidade de nos perdermos e encontrarmos, não nos rendendo a um
pretenso Conhecimento, ou Verdade, mas inventando novas formas de habitar os lugares da
psicologia.
Porém a doença pode incorrer em egoísmo, e Nietzsche cita duas espécies de
egoísmo, uma em que cultivamos a nós mesmos, nos experimentamos, e outro egoísmo
fundado no sentimento de posse, daqueles indivíduos que querem centralizar os sentimentos
alheios (OLIVEIRA, 2011). Transportando esse pensamento egoísta para o campo psicológico
podemos nos tornar também egoístas, mas do tipo que cultiva a sua existência como um devir,
e não como aquele que toma seus estatutos como verdades universais.
Como Oliveira (2011) aponta, aqueles que se restabelecem após a doença são mais
dispostos a manter relações amigáveis, pois tiveram tempo e espaço de distanciar-se do outro,
e de cultivar a si mesmo, fatos que trazem a este indivíduo o desejo e a capacidade de
partilhar o encontro.
A capacidade do humano de curar-se explicita a necessidade de adoecer, ao olhar de
Nietzsche somente aquele que adoece é capaz de fortificar-se para doenças futuras,
fortificando sua força vital, sua própria existência, de forma que pensar em saúde só é
possível se atingirmos um ponto de “uma saúde que não somente se possui, mas que se deve
também conquistar sem cessar, porquanto sem cessar é sacrificada e precisa ser sacrificada”
(NIETZSCHE, 2008 GC, p. 304). Assim compreendemos que aqueles que supostamente
permanecem sadios por longos períodos serão mais intensamente arrebatados pelo sofrimento
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quando vierem a adoecer.
Como herança de nossa cultura médica em encarar a doença como algo totalmente
nocivo e negativo, pensamos que a cura só pode ser alcançada através da extirpação da
doença, de sua completa eliminação, porém atentemos ao que Nietzsche diz sobre o adoecer e
recuperar-se,
adoecer à maneira desses espíritos livres, ficar doente um bom tempo e depois, ainda
mais devagar, ainda mais devagar, ficar bom, quero dizer, “ficar melhor” de saúde.
Há sabedoria nisso, sabedoria de vida em receitar a si próprio durante muito tempo a
saúde apenas em pequenas doses (NIETZSCHE, 2007 HH, p. 25).
De tal modo, pensar uma prática psicológica baseada nesta doença é também pensar
um fazer clínico que aponte para a capacidade de criação, de reinvenção.
Habitualmente quando pensamos em clínica nos vem à mente aquela imagem de um
paciente deitado em um leito, enquanto aguarda a cura, esta clínica etimologicamente deriva
do termo grego Kliné. Já a klínica que propomos pensar aqui é uma klínica trazida por Costa e
Redin (2007), como klínica do desvio, da invenção, da transformação, qual podemos pensar a
partir da derivação da palavra grega klinamen. Este modo de ver busca visualizar novas
perspectivas para a klínica, como espaço de novas expressões individuais, não se trata de
ignorar as questões problemáticas do indivíduo, mas de investir ali onde o devir aponta, onde
a criação pede passagem, onde a experimentação da diferença ganha novos estatutos.
A amizade nietzschiana possibilita justamente isso, um espaço para experimentação
das diferenças, para pensar o novo, sendo que podemos nos utilizar disto para fazer tanto da
amizade quanto da klínica um “espaço para que se possa experimentar outras formas de viver,
espaço a ser construído criativamente por todos os agentes envolvidos” (COSTA e REDIN,
2007, p. 87). Um lugar onde possamos experimentar outras verdades, outros saberes, um
espaço aonde a própria psicologia pode se deslocar.
Pensamos que psicologias amigas, são aquelas que buscam se libertar da
“Psicologia”, com “P” maiúsculo que pensa conter em si todos os saberes e conhecimentos
acerca da sua prática e dos entendimentos sobre os indivíduos. Como na amizade a liberdade
espiritual se expressa como um “sentimento de poder enfrentar, guerrear, resistir, vencer e
nunca se deixar apropriar, mas, ao contrário, exercer o poder que vem de si mesmo”
(OLIVEIRA, 2011, p. 88). Acreditar neste poder que vem de si mesmo para alterar as formas
de expressões amicais e psicológicas é pensar em uma psicologia transbordante, que vai além
de si, que se espalha, que multiplica e cria.
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Como na solidão o indivíduo conhece a si mesmo, assim a psicologia também
poderia adotar este movimento de voltar-se para si, de conhecer-se, se ver como uma força
capaz de se transformar. Pensar em uma psicologia que possibilite ao indivíduo enxergar para
além das formas de fazer ver e falar que estão dadas no mundo, como o amigo na relação, que
consegue descobrir pela experimentação outra forma de ser, “estamos falando de um fazer ver
e ouvir o que está instituído, o que foi constituído e cristalizado numa dobra anestesiada para
assim, transgredir, fazer operar fissuras” (COSTA e REDIN, 2007, p. 89).
Se há uma psicologia capaz de klinicar através de uma sensibilidade, que desfaz
hábitos e pressupostos, que eram anteriores a relação com o outro, também a amizade pode
ser vista como um espaço klínico, sendo que a amizade é um sempre-outro, que não se prende
que se transforma na relação, o que queremos é uma psicologia, um fazer klínico como
possibilidade de saída, que não se cristalize, pois assim quando falamos de uma klínica, ela já
é outra. Sendo assim “klinicar passa muito mais por um modo de viver desejante e produtivo,
que por algo que nos identifica ou nos faz donos do saber klínico” (COSTA & REDIN, 2007,
p. 89).
Como nos apontam Costa e Redin (2007, p 89) “não precisamos de um “ser”
chamado klínica, mas de uma ocupação klínica do espaço”. Assim da mesma forma podemos
pensar a relação amical em Nietzsche, aonde não precisamos de um “ser” fixo, pronto,
concreto, chamado amigo, mas sim de um modo de ser amigo na relação, ser um amigo
mutável, criador, inventor, questionador, que por questionar inventa, “mas fazer perguntas é
também desfazer respostas. E desfazer respostas pode ser passagem para que se pense o que
ainda não foi pensado” (COSTA e REDIN, 2007, p. 89). É disto que se trata a amizade
nietzschiana, pensar o que não foi pensado, ser o novo.
Buscamos assim, uma psicologia nômade, que se desfaça de um sentido fixo, e de
classificações subjetivas, e sujeitos de estudo, para adentrar no campo do experimentalismo,
do cultivo da possibilidade e do novo. Podermos nas relações práticas que a psicologia
estabelece exercitar o amigo nietzschiano, guerreando e se fortalecendo, de uma forma
múltipla e multifacetada.
Como os amigos nietzschianos, que em sua relação experimental, e de combate estão
dispostos e abertos a várias interpretações (OLIVEIRA, 2011). A psicologia deve também
possibilitar-se falar em vários tons, cores, sabores, experimentar outras verdades, aceitar a
incompreensão como uma condição do conhecimento.
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Sendo assim, o sentimento a ser despertado na psicologia, é a vontade de mudança,
de viajar, de caminhar, poder deslocar-se e em cada novo lugar, a cada nova verdade se sentir
como em casa, na compreensão de que “na realidade, não tínhamos percebido que estávamos
percorrendo esse caminho” (NIETZSCHE, 2006 GC, p. 185), mas uma casa de passagem,
uma casa que dá abrigo aos andarilhos do saber. Nietzsche tem uma passagem muito bonita a
este respeito,
Gosto dos hábitos que não duram e os considero como meios inapreciáveis para
aprender muitas coisas e circunstâncias (...) assim acontece comigo com os
alimentos, ideias, homens, cidades, poemas, músicas, doutrinas, ordens do dia,
maneiras de viver. – em compensação, odeio os hábitos longos (...): por exemplo,
por uma função social, pelo convívio constante com os mesmos homens, por uma
residência fixa, por uma espécie definida de saúde (NIETZSCHE, 2006 GC, p. 2067).
Sendo que o amigo em Nietzsche é um nômade, aquele que não se apaga a sombra
do outro, que é absorvido, mas que continua sua viagem no caminho do autoconhecimento, a
psicologia também pode ser, ou estar, numa constante caminhada, em um andar destemido,
um passeio que admira a paisagem, não uma estrada que liga um saber ao outro, mas um sem
rumo que liga tudo a todos.
A psicologia deve desamarrar-se de suas convicções e instituições, que lhe impedem
de ser nômade, a psicologia parece às vezes ser casada com a verdade, quando deveria ser
amiga da mesma. Nietzsche por exemplo aponta o matrimônio como um enfraquecimento
moral, pois aqueles que se fixam, que se prendem, não são capazes de andar, de serem
nômades (OLIVEIRA, 2011).
Para Nietzsche o matrimônio, não possibilita o experimentalismo, por ser uma
instituição determinada por convenções morais externas, sendo que o amor matrimonial seria
ainda mais infértil para as experimentações de livre vontade, pois aos olhos de Nietzsche o
amor matrimonial representa um desejo de posse, em que o outro teria de diluir-se na relação,
ao invés de afirmar-se (OLIVEIRA, 2011). Por esta perspectiva, a psicologia pode investir no
modo de ser amigo, de ser daquele que atravessa de um lado para o outro, que caminha,
colocando de outra forma “se o amor é posse, a amizade é nomadismo. Se o amor nasce da
fraqueza que busca uma propriedade, a amizade se efetiva na força daqueles que se sentem
apoiados apenas em si mesmos” (OLIVEIRA, 2011, p. 102).
Se assim a psicologia fosse amarrada a alguma instituição, uma possível saída seria a
infidelidade, tal como esta se expressa na amizade. O indivíduo deve ser infiel a si mesmo, no
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caso da psicologia às suas convicções e verdades, e aos amigos o mesmo, além de serem
infiéis aos outros, trair-se e trair é o único modo de experimentar múltiplas verdades,
existências e formas de ser, pois
para o enriquecimento do conhecimento, pode haver mais interesse em não se
uniformizar dessa forma, mas em escutar a voz leve das diversas situações da vida;
estas comportam seus próprios pontos de vista. É assim que se assume uma parte de
gratidão à vida e à existência de muitos indivíduos, não se tratando a si mesmo como
um indivíduo fixo, consistente, uno (NIETZSCHE, 2007 HH, p. 341).
Isso nos mostra, que a única constância a que somos convocados a nos submeter é
ser sempre inconstante, já que para o saber “as convicções são inimigas da verdade mais
perigosas que as mentiras” (NIETZSCHE, 2007 HH, p. 311).
Da mesma forma Nietzsche contrapõe regularmente a amizade à família, pois na
amizade há uma relação que se autorregula, enquanto na família há um modelo socialmente
descrito, e essa percepção que causa em Nietzsche o estranhamento da comparação do amigo
com a figura familiar de um irmão,
os gregos que sabiam tão bem o que é um amigo – só eles dentre todos os povos
possuem um estudo filosófico profundo, múltiplo, da amizade, a ponto que são os
primeiros, e até aqui os últimos, para quem o amigo tenha aparecido como um
problemas digno de solução – esses mesmos gregos designaram os parentes com um
termo que é o superlativo da palavra “amigo”. Isso para mim é inexplicável”
(NIETZSCHE, 2007 HH, p. 249).
Assim vemos que para Nietzsche as condições da amizade não se reproduzem em
outras relações sociais, as quais são sempre regidas por uma moral externa. Considerando
isto, o psicólogo poderá estabelecer suas relações com seu campo de saber, voltadas para um
pensar amical, não se prendendo a formas institucionalizadas das práticas psicológicas.
E como promover rupturas para uma psicologia marcada por perpétuos movimentos
cristalizados
sob
óticas
patologizantes?
Como
pensar
determinados
movimentos,
experimentações, criações, invocar essa ciência a novos espaços, tensionando verdades a
priori e incitando a distanciamentos sobre pilares „seguros‟? Buscando adotar uma humildade
epistemológica, mas ousando criticar lugares de saber, o trecho-desfecho traz a noção de
amizade nietzschiana como um convite a outros olhares à psicologia, um convite para práticas
„psi‟ nômades...
EXPERIMENTANDO UMA PSICOLOGIA NÔMADE... CONSIDERAÇÕES FINAIS?
A mudança de paradigmas, de posição, de pensamento, é vista com certo desprezo de
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forma geral, mas cremos que estas são necessárias para se chegar a outros lugares, não que
isso garanta uma estabilidade, não se trata aqui de um modelo para uma verdade final, mas de
um pensar que aponte para conversas com o mundo, sem o receio de nos enganarmos, o erro
também é parte da caminhada, como aponta Nietzsche (2006 GC).
agora te parece como um erro alguma coisa que outrora amaste como uma verdade
ou pelo menos como uma probabilidade; tu a rejeitas para longe de ti e imaginas que
tua razão acaba de obter uma vitória. Mas talvez então, quando eras ainda outro – tu
és sempre um outro – esse erro te fosse tão necessário como todas as “verdades”
atuais, de algum modo como uma pele que te escondia e te velava muitas coisas que
ainda não podias ver. Foi tua nova vida e não tua razão que matou em ti essa ideia:
já não tens necessidade dela e agora ela se destrói por si mesmo e a sem-razão sai
dela como um verme (NIETZSCHE, 2006 GC, p. 214-5).
Com isto percebemos que a mudança de opinião – das nossas infidelidades - é algo
do humano, e pode ser da prática psicológica, do fazer klínico, aquele fazer que se transfere
conforme o relevo do campo que atravessa.
O ato de distanciar-se traz a possibilidade de vermos de fora o que somos, como
agimos e pensamos, como Nietzsche coloca “parece que tenho a necessidade de perspectivas
distantes para ter boa opinião das coisas” (NIETZSCHE, 2007 A, p. 301). Afastarmo-nos de
nossas práticas, nossas convenções e dogmas, pode ser um exercício klínico na invenção de
novas relações.
A distância aparece em Nietzsche como um pathos necessário, fundamental para o
fundamento de qualquer laço relacional, e também de qualquer entendimento acerca de
alguma coisa, como um sentimento daqueles que são capazes de encontrar em si o necessário
para continuar caminhando, sem apoiar-se e depender de outros (OLIVEIRA, 2011).
Na amizade nietzschiana a necessidade de distanciamento é marcante, tanto que
Nietzsche denomina a distância entre os amigos, como uma “amizade de astros”, uma
amizade daqueles que por estarem afirmados em si, e capazes de desprenderem-se das
necessidades dogmáticas, caminham em outras direções, direções opostas, e como os astros
não podem de fato se encontrarem em um mesmo lugar, como descrito no marcante poema de
Nietzsche “amizade de astros”, extraído aqui de Oliveira (2011)
Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas esta bem que
seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de
vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho;
podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, com já fizemos – e os bons navios
ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado
a seu destino e ter tido um só destino. Mas então a todo-poderosa força da nossa
missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez
nunca nos vejamos de novo – ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos
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reconhecermos: os diferentes mares e sois nos modificaram! Que tenhamos de nos
tornar estranhos uma para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos
nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se
tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente
uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e
metas estejam incluídas como pequenos trajetos – elevemo-nos a esse pensamento!
Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que
amigos no sentido dessa elevada possibilidade. – e assim vamos crer em nossa
amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra (p. 117).
Nesse sentido, a capacidade amical de se despedir, para trilhar o próprio caminho,
serve para olharmos a necessidade que temos de pensar uma psicologia que se distancie de si
mesma, e de seus “amigos”, ou seja, suas verdades.
Portanto pensar a amizade como um encontro fusional, assim como pensar a
psicologia como uma detentora de verdades, é crer que se conhece toda extensão de si e dos
outros,
eles eram amigos, mas deixaram de sê-lo e romperam simultaneamente de parte e de
outra, um porque se julgava desprezado demais, o outro porque se julgava
considerado demais – e nisso ambos se enganaram! – pois, nenhum deles se
conhecia suficientemente a si próprio (NIETZSCHE, 2007 A, p. 231).
Assim parece incoerente como em dados momentos a psicologia afirma conhecer a
fundo o indivíduos dos quais tenta dar conta, pensando em um indivíduo fixo e imutável.
O apego excessivo pelas verdades do campo clínico e psicológico acabam por vezes
por desgastar a própria imagem da psicologia, como amigos do conhecimento é importante
termos a coragem de nos distanciarmos do que nos é tão valoroso, como diz Nietzsche (2007
HH, p. 275) “viver perto demais de um homem é a mesma coisa que se retomássemos sempre
uma bela gravura com os dedos nus: um belo dia teremos nas mãos um péssimo papel sujo e
nada mais”, devemos respeitar a beleza constitutiva de cada indivíduo, não querendo tocá-lo
enquanto objeto, mas relacionarmo-nos com ele enquanto outro.
Quando nos distanciamos, nos tornamos outro, acabamos por vezes nos criando
inimigos, os quais não tendo um afeto suficiente para aceitar a diferença e manter o vínculo,
acreditam que tenhamos tomado o caminho errado, e já não podem conviver conosco em
amizade. Sendo assim, sejamos também inimigos, pois “inimizade é o campo da distância e o
lugar da resistência. Um estar próximo e um estar longe, separado na longitude de cada
indivíduo, mas unido no afeto e no respeito pela extensão do outro” (OLIVEIRA, p. 125).
Porém o inimigo é digno de respeito e apreço, pois nos colocará em uma situação de
resistência, de combate, que estimula nossas forças vitais e criativas.
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O próprio amigo deve ser encarado como inimigo, já que ele é um outro diferente de
mim, que me testa, que me desafia, que me coloca em experimento, e como ele não se
submete à mim, eu também não devo me submeter a ele, devemos estar em constantes atritos
com os amigos, divergir, devemos estar em guerra com nossas verdades. Como inimigo, o
amigo é aquele que nos impede de nos diluirmos na relação,
“Sê ao menos meu inimigo! – Assim fala o verdadeiro respeito que não se atreve a
solicitar a amizade.
Se quisermos ter um amigo, é preciso também lutar por ele. E para lutar é preciso
poder ser inimigo.
É preciso honrar no amigo o próprio inimigo. Podes aproximar-te de teu amigo sem
passar para o seu lado?
No amigo deve-se vislumbrar o melhor inimigo. Quando lhe resistes, é então que
mais te aproximas de seu coração.” (NIETZSCHE, 2008 ZA, p. 68).
Assim a disputa, o agon, o reconhecimento da rivalidade, da divergência é um
requisito para a amizade, e para o próprio pensamento. Como processo o saber psicológico
pode ser capaz de vivenciar-se ao caminhar, e não apenas buscar uma meta distante conhecida
como verdade, é no processo, na relação de encontro, desencontro, divergência, alegria,
tristeza, que o indivíduo se faz, é que as práticas psicológicas se fazem, que o habitar klínico
se constrói e desconstrói.
E é neste movimento de construção e desconstrução que se insere esse escrito, um
caminho percorrido com o pensamento, pensamento que necessita ser exercitado, e como
exercício não busca um fim, mas sim um caminhar. Estes pensamentos devem ser
disparadores, provocadores de outros pensamentos, não uma tentativa de findar uma discussão
ou verdade, assim aceitamos a impossibilidade do fim para este trabalho, apenas o desejo de
continuar caminhando.
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5 Oficinas de escrileituras: arte, educação e filosofia. Oficinas desenvolvidas em 2011.
Org. Carla Gonçalves Rodrigues. Pelotas: Editora Universitária/UFEPel, 2012, no prelo.
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para
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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: de se chega a ser o que se é. Trad. Antonio
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da amizade nietzschiana: por uma psicologia