Novos Arranjos Familiares: inquietações
sociológicas e dificuldades jurídicas*
Maria Das Graças Lucena De Medeiros
UFRN
Palavras chave: Arranjos familiares, Código Civil, Identidade de Gênero, Direito de
Família.
O presente trabalho, inserido no GT POPULAÇÃO E GÊNERO do XIII
ENCONTRO NACIONAL da ABEP de 2002, remete-se à análise das configurações
familiares sob a ótica de Gênero, Teoria Crítica Contemporânea que vem impulsionar a
revisão dos paradigmas sociológicos da atualidade.
Dentro
do
Tema
"NOVOS
ARRANJOS
FAMILIARES:
Inquietações
Sociológicas e Dificuldades Jurídicas", pretendemos levantar pontos discursivos , a
partir de um esboço sobre a evolução da família focando observações de alguns
estudiosos, onde chegaremos à Família Brasileira. Nesta, pretendemos destacar os
“novos modelos” dentro de um contexto sócio- cultural e jurídico onde segundo dados
estatísticos recém publicados pelo IBGE (PNAD E CENSO 2001), evidenciam-se
muitas alterações. Constata-se que no que diz respeito a organização interna da Família
Brasileira a partir da década de 90 para cá, as separações e divórcios adicionam um
grau de complexidade na média em que crescem os recasamentos, com tendências para
a variação nos diversos tipos de “Arranjos Familiares”, impulsionando assim a
necessidade da Legislação incorporar as mudanças em relação às Uniões Consensuais.
Iniciaremos resgatando autores que desvendaram estudos sobre as interrelações
da família no mundo desde a sua origem até os dias atuais.
No decorrer da história assistimos à várias mudanças no âmbito familiar, tanto
em seu interior quanto na sua relação com a sociedade. Philippe Àries, por exemplo, em
sua obra “História Social da Criança e da Família” (1981), refaz, através de um estudo
minucioso, a trajetória da Família Medieval à Família Moderna.
*
Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado
em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002.
Àries, faz inicialmente uma abordagem sobre a sociedade tradicional européia,
caracterizada pela transmissão geral de valores e conhecimentos em relação à
socialização da criança, características estas que nem eram asseguradas e nem
controladas pela família.
Define que a família antiga tinha por missão, a conservação dos bens, a prática
de um ofício comum a todos, e ajuda mútua no cotidiano de um mundo em que homem
e mulher não poderiam sobreviver isolados. As trocas afetivas e comunicações sociais,
eram feitas por intermédio de vizinhos, amigos, crianças e idosos, mulheres e homens
com possibilidades de se manifestarem livremente em seu meio.
Descreve mudanças significativas a partir do século XVI, onde assiste-se a um
processo de nuclearização da família, acompanhado da individualização de seus
membros
que
reivindicam
uma
progressiva
privacidade
o
que
alterará
significativamente os espaços de morar, havendo a diluição das famílias conjugais.
Mas, somente a partir da Idade Moderna, a família conjugal do século XIX,
tinha uma marca de “indivisão”, agrupada sob o domínio das relações de trabalho e que
originou a grande família patriarcal. (Do feudalismo X capitalismo).
O processo de industrialização associado à concentração de população nos pólos
urbanos e as profundas transformações no processo de trabalho, do local onde se
trabalha, e consequentemente na composição do grupo familiar e das relações entre seus
membros, levaram a uma mudança nas relações sociais, onde a família exerce o seu
papel de mediação entre indivíduos e comunidade, de encontro entre gerações.
Nos séculos XVIII e XIX, a família moderna - a família nuclear- substitui um
modo de produção baseado na mão de obra da família extensa. Entretanto, é no século
XIX, que a família burguesa – a unidade doméstica – compõe-se, sobretudo de pai, mãe
e filhos repartindo uma unidade habitacional. A esta família privatizada corresponde
uma concepção de unidade de moradia extremamente setorizada e compartimentada.
Assim, uma boa maneira de abordar as transformações que afetaram a vida
privada no século XX consiste em indagar sobre a evolução material do quadro
doméstico: a história da vida privada é, em primeiro lugar, a história do espaço em que
ela se inscreve. (Àries: 1981).
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Ainda para Àries, a partir da sociedade industrial, a família européia sofreu
mudanças consideráveis, marcadas, sobretudo pelas relações de trabalho e a entrada da
tecnologia na vida das pessoas. Ele ressalta a substituição da aprendizagem pela escola
como meio de educação, que mostra o novo papel desenvolvido pela criança e a
família nas sociedades industriais. Para o autor, começava aqui um longo processo de
enclausuramento das crianças, dos loucos, dos pobres e das prostitutas que se estenderia
até hoje, sob o nome de “escolarização.”
Uma outra visão clássica quanto a caracterização das relações familiares na
contemporaneidade, é a de Giddens (1993), onde se dedicou a estudar a caracterização
das relações familiares na contemporaneidade, compreendendo a transformação das
relações afetivo-sexuais a partir do seu conteúdo igualitarista.
Esta transformação é ampla e rica em conseqüências, pois implica na
reelaboração da intimidade de homens e mulheres, que são os/as protagonistas das
novas relações vivenciadas, tanto no cotidiano do casamento e da família quanto fora
do espaço institucional desta, nas relações afetivo-sexuais de uma maneira geral.
A construção da auto-identidade no mundo moderno significou uma ruptura com
uma ordem emocional que garantia ao sexo masculino o poder no relacionamento. “As
mulheres comuns, que tratam de suas vidas cotidianas, e também os grupos
conscientemente feministas - foram pioneiras em mudança de grande e ampla
importância” (GIDDENS, 1993).
Para ele, a expansão da reflexidade social implica uma maior autonomização dos
indivíduos. Esta autonomia, uma condição para interagir com as demais, implica,
portanto, reciprocidade e interdependência. Ele critica os autores que dão ênfase ao
individualismo como um valor necessariamente egoísta e desagregador, pois, ao
contrário, segundo seu pensamento, o individualismo é a base de reconstrução das
solidariedades sociais pautadas na autonomia e na interdependência. Desta forma,
Giddens reatualiza a discussão clássica da sociologia sobre as conseqüências do
individualismo na vida moderna.
Autores clássicos da sociologia como Weber (1989), Durkheim (1995), tambem
voltaram seu olhar para o individualismo. Para Weber, o individualismo é o
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desenvolvimento da subjetividade e da reflexividade, retirada a sua base primeira, que
era religiosa.
Durkheim (1995) aborda o individualismo como, de fato, uma autonomização
individual. Neste ponto, nada mais ilustrativo do que sua imagem da passagem de uma
sociabilidade marcada pela solidariedade mecânica - típica das sociedades tradicionais para uma outra, caracterizada pelo que ele denomina de solidariedade orgânica - típica
do capitalismo. A intensificação da divisão social do trabalho e o processo de
especialização dela decorrente são fontes de interdependência entre os homens na esfera
da produção, mas, simultaneamente, de um processo crescente de diferenciação entre os
mesmos. A civilização moderna, segundo Durkheim, através da diferenciação crescente
no processo produtivo, deu vez ao indivíduo enquanto ser singular e autônomo. Esta
autonomia tornou-se o valor estruturante de todas as nossas instituições políticas e
jurídicas - o ideal moral por excelência das nossas sociedades.
O individualismo e a reflexividade social - fatores que contribuíram para a
destradicionalização nas sociedades contemporâneas - são vividos na esfera da família
de forma intensa e inédita. Os críticos do individualismo sugerem que este também é
responsável pela desagregação familiar, pelo fim da autoridade parental. Tudo isso
envolvido num contexto de caos e desestruturação.
“O fortalecimento de comprometimento e obrigações familiares, desde que
baseado em confiança ativa, não parece ser incompatível com a diversidade das formas
familiares que atualmente estão sendo exploradas em todas as sociedades
industrializadas. As altas taxas de separação e de divórcio vieram para ficar, mas
podem-se perceber muitas maneiras pelas quais elas viriam a enriquecer a solidariedade
social em lugar de destruí-la. Por exemplo, o reconhecimento da importância primordial
dos direitos das crianças, junto com as responsabilidades em relação a elas, poderia
fornecer os próprios meios de consolidarmos os novos laços de parentesco que vemos
ao nosso redor - entre, digamos, dois grupos de pais e mães que também são padrastos
ou madrastas e as crianças que possuem em comum” (GIDDENS,1993).
Neste sentido, Giddens estabelece que o princípio das relações pós-tradicionais
impõe o respeito pelos direitos individuais também na família, incluindo desde questões
objetivas, tais quais a violência doméstica, como questões mais subjetivas, que tocam à
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realização individual de cada um. Uma família pós-tradicional compreende a realização
emocional e afetiva das pessoas, muito mais do que uma manutenção de papéis rígidos e
inflexíveis.
A posição de Giddens é contrária aos teóricos que procuram mostrar o
esfacelamento da família. Por isso, procura mostrar que a expansão da autonomia
individual atingiu também a vida privada e dotou os indivíduos de direitos, deveres,
responsabilidades e solidariedades uns em relação aos outros - o que se tornou possível
graças às formas familiares diversas e múltiplas.
Mencionaremos ainda
como importante para este estudo, a posição de
CASTELLS (2001), que se reporta aos relacionamentos interpessoais, marcados pela
violência e dominação originados na cultura e instituições do patriarcalismo. É para ele,
essencial, porém, tanto do ponto de vista analítico, quanto político, não esquecer o
enraizamento do patriarcalismo na estrutura familiar e na reprodução sociobiológica da
espécie,
contextualizados
histórica
e
culturalmente.
Castells
questiona
o
enfraquecimento do patriarcado, entretanto aponta indicadores que contribuem para o
declínio das formas tradicionais da família patriarcal, tais como: a transformação da
economia e do mercado de trabalho associado à abertura de oportunidades para as
mulheres no campo da educação; as transformações tecnológicas ocorridas na biologia,
farmacologia e medicina, controlando a
reprodução humana; a transformação
econômica e tecnológica, atingindo o patriarcalismo pelo desenvolvimento
do
movimento feminista; e a rápida difusão destas idéias em uma cultura globalizada, com
um movimento feminista altamente diversificado, desenvolvendo debates a partir da
experiência coletiva de construir ou reconstruir a identidade feminina.
A possibilidade de construção da auto-identidade, do estilo de vida e das formas
familiares não é igualmente aceita por toda a sociedade, há muitas mudanças e muitas
permanências “vão-se as instituições, ficam os valores”
e embora se constate
estatisticamente a pluralidade de formas familiares, na representação social a
legitimidade continua sendo unicamente da família conjugal. Ora, se a legitimidade
continua presa à uma forma familiar que não é mais hegemônica, as ambigüidade e
contradições estão sendo vividas por aqueles/as que não estão ancorados/as sob este
padrão.
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Bourdieu lembra a condição social da mulher solteira:
“(...)Seria preciso relatar aqui o testemunho daquelas mulheres que
entrevistamos recentemente, no decorrer de uma pesquisa sobre a miséria social e que,
por não se comportarem de acordo com a norma tácita que impõe, de maneira cada vez
mais imperativa à medida que envelhecemos, casar e ter filhos, falam todas das pressões
sociais exercidas sobre elas, para chamá-las à ordem, a se “comportar”, a encontrar um
cônjuge e a ter filhos - por exemplo, as fofocas e os problemas associados ao estatuto da
mulher sozinha, em festas ou jantares, ou a dificuldade de ser inteiramente levada a
sério,
porquanto
ser
social
incompleto,
inacabado
como
que
mutilado”
(Bourdieu,1996).
Ao abordarmos a Família Brasileira, e considerando os textos que revisam a sua
história,
encontra-se na categoria de um dos clássicos fundadores Gilberto Freyre
(com Casa Grande & Senzala de 1933). Quanto às idéias decisivas na configuração do
modelo patriarcal da família brasileira (MARIZA CORREIA, 1993), ao abordar o
tratamento dado à família na obra de Gilberto Freyre e Antonio Cândido, considera que
em ambos, “se o tempo concedido à sua dominação é por demais amplo, o espaço
social onde se inscreve essas unidades familiares é por demais estreito.” Enquanto que
(SAMARA, 1987), observa, no mesmo sentido, que no modelo genérico de estrutura
familiar foram “esquecidas as variações que ocorrem na organização da família em
função do tempo, do espaço e dos diferentes grupos sociais”.
Vemos que a família se estendeu à medida que a sociabilidade se retraiu. É
como se a família moderna tivesse substituído as antigas relações sociais desaparecidas
para permitir ao homem escapar a uma insustentável solidão moral.
Nesse sentido,
podemos falar de uma “privatização da família”, já que à
primeira vista , a evolução familiar passa pela perda de suas funções públicas, passando
a ter apenas funções privadas. Embora, não podemos obscurecer que também foi dentro
da família onde os indivíduos conquistaram o direito de ter uma vida privada autônoma.
Dentro dessa ótica, estão os lares compostos por uma única pessoa, (também chamada
de família monoparental ou unilateral), onde a vida privada doméstica foi inteiramente
absorvida pela vida individual, com reflexos no âmbito interno da moradia.
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O processo de industrialização associa-se à concentração de população nos polos
urbanos e a profundas transformações do processo de trabalho, bem como do local
onde se trabalha e consequentemente , as mudanças no grupo familiar e das relações
entre seus membros. A família muda, acompanha as transformações da sociedade, dado
que conserva seu papel fundamental na mediação entre indivíduos e comunidade, de
encontro entre gerações.
É importante considerar também neste estudo, que a sociedade contemporânea
vive em relação à sua juventude, um paradoxo. De um lado, tem-se uma cultura
marcada por uma supervalorização do jovem e do "ser jovem" que se expande como
valor canônico para todos os grupos de idade, se manifestando em representações
socioculturais múltiplas, que vão da publicidade à moda, da música às produções
televisivas. Essa dimensão que tem a ela relacionada, valores de vitalidade, dinamismo
e criatividade articula-se a outras características dos tempos modernos: a valorização
social do tempo livre, do lazer e do ócio.
A juventude seria pois o grupo social emblemático, com legitimidade para
assumir todas essas dimensões, que não coincide com sua inserção socioecônomica real,
sem horizontes profissionais, altas taxas de desemprego juvenil, falta de equipamentos
socioculturais, alimentam os fantasmas da marginalidade, da delinquência e da
possibilidade de rupturas da "nova ordem social".
Inserimos a juventude nesta abordagem, como um foco preocupante dentro da
família atual, independente de seu modelo. Pensar a juventude urbana pobre brasileira, é
pensar a situação mais geral da pobreza no país e a dinâmica de nossos centros urbanos.
Ela reflete as contradições de um século em que a globalização da economia e a
mundialização da cultura estruturam paradoxalmente seus contrários: exclusões,
localismos e territorializações.
Mesmo na mais restrita concepção de cidadania, como direitos e proteção, nossa
realidade se apresentou, não só limitada aos indivíduos com participação produtiva em
alguns setores de atividade ou categorias profissionais, que caracterizaria a cidadania
regulada, segundo Santos (1979), como incompleta no que se refere aos tipos e
qualidades de coberturas sociais.
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Para amplos setores, seus espaços de reconhecimento e proteção social
continuaram e continuam se dando em esferas privatizadas, seja no nível das famílias,
seja no das comunidades vicinais ou dos espaços religiosos.
Alguns estudiosos como Freyre, Cândido, Berquó, Goldani, Bruschini, Blay,
Saffiotti, Telles, Prado e outros(as), já salientam na família brasileira o fenômeno da
desagregação patriarcal , sendo palpável nos dados empíricos sobre o que eles
costumam chamar “arranjos familiares” ou “novos modelos de família”.
As tipologias sobre os novos arranjos variam muito quanto à denominação,
entretanto, os mais citados pelos estudiosos são: família nuclear (conjugal); família
extensa (consangüínea); família
unilateral; família monoparental. No Brasil, a
monoparentalidade responde pela diversificação dos arranjos familiares, segundo estudo
realizado por Goldani (1993), compreendendo os períodos de 1981 a 1989. Há um
decréscimo nas famílias formadas por casais e um aumento proporcional nas famílias
monoparentais, em sua maioria formadas por mãe com filhos.
No que se trata de organização interna da família na década de 90, observa-se
que as separações e divórcios adicionam um grau de complexidade na medida em que
crescem os recasamentos. É importante mencionar que o viver sozinho ou ficar solteiro
ou solteira por opção também será parte importante da vida urbana que está no
horizonte das pessoas.
Vale mencionar nesse sentido a passagem da família para a chamada fase de
pós-nuclearização, na qual o foco passará do casal e filhos para o indivíduo. Este
processo é considerado por muitos estudiosos como um retrocesso e responsável pela
perda da importância da família como instituição, associado a um modelo capitalismo
industrial X capitalismo de consumo, advindo com a revolução nas tecnologias
reprodutivas e com os movimentos de pós-modernismo cultural.
Como conseqüência relevante, na abordagem
mostrada por Goldani," A
constante preocupação e insegurança com as condições objetivas de vida para a maioria
da população
tem ofuscado as demais contradições e desigualdades da sociedade
brasileira e dificultando a construção de um modelo explicativo, que contemple a
complexidade, contradições e lutas existentes no interior desta sociedade. Neste
contexto se encontram as poucas e mal estudadas questões sobre as mudanças nas
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estruturas familiares. Ao contextualizar as mudanças pelas as quais passam as famílias
(principalmente a brasileira), deve-se ter presente as desigualdades regionais e raciais e
os macro-processos, a grosso modo caracterizados por ciclos econômicos combinando
crescimento e recessão, movimentos de redemocratização das instituições políticas,
lutas por direitos civis básicos, conquistas da cidadania e processos de modernidade
excludente" (GOLDANI, 1994)
Por sua vez, CHAUÍ (1989), refere-se às mudanças socio-culturais em relação à
família, com o surgimento da burguesia , que em sua forma clássica, tem um discurso
legislador, ético e pedagógico. "Fazia das Instituições como Pátria, Família, Empresa,
Escola, Estado (sempre escritos com letras maiúsculas), valores e reinos fundados de
fato e de direito. Por essa via, o discurso nomeava os detentores legítimos da autoridade:
o pai, o professor, o patrão, o governante, e, consequentemente, deixava explícita a
figura dos subordinados e a legitimidade da subordinação".
É necessário tambem lembrar,
que a mulher brasileira, principalmente das
camadas sociais média e alta, até o início do século XX estava confinada à esfera
doméstica, o que contrastava com a realidade vivida pelas mulheres norte-americanas e
européias durante essa mesma época. Dessa forma, a identidade social das mulheres
brasileiras era dada, durante aquele período, apenas pelo seu papel na família.
As transformações modernizantes, após 1930, possibilitaram a configuração de
uma nova feição da condição feminina para as mulheres desse segmento social. Elas
tiveram o seu papel social redefinido à luz das mudanças ocorridas na família e nas
condições sociais e econômicas. Elas conquistaram direitos políticos, asseguraram o
acesso à educação e passaram a ganhar o espaço público do trabalho. O estabelecimento
do novo padrão de atividade feminina permitiu a passagem da mulher das camadas
médias do status anterior de esposa e de mãe para o status de trabalhadora. A busca de
uma identidade própria e do reconhecimento social dessa identidade tiveram um
impacto profundo sobre o modelo dominante de família baseado na ética do provedor.
O trabalho extradoméstico, que era tido, até então, como uma atribuição
masculina, passou a integrar o cotidiano feminino das mulheres das camadas médias,
fazendo com que elas passassem a assumir o desafio da conciliação casa-trabalho, o que
trouxe conseqüências evidentes para as relações entre os gêneros. O celibato, a “chefia
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feminina”, as separações e os recasamentos transformaram-se em eventos cada vez mais
freqüentes na vida das mulheres, indicando um enfraquecimento da codificação do
masculino e do feminino no espaço privado.
Em decorrência dessas transformações, o tipo de família assentado na divisão
dos papéis sexuais homem- provedor e mulher-dona-de-casa entrou em crise a partir das
três últimas décadas. Atualmente, já não ocorre mais a separação entre as esferas
pública e privada na vida da maior parte das mulheres. Elas estão cada vez mais
integradas ao espaço público na qualidade de trabalhadora extradomiciliar, de coprovedora ou de provedora do grupo familiar. A crise verificada nesse tipo de família
correspondeu, em grande medida, à rápida e profunda mudança cultural levada a efeito
nas sociedades capitalistas contemporâneas.
Como se vê, o interesse pelo estudo da família, continua crescente dentre
estudiosos de várias áreas, havendo um intercâmbio considerável na concepção de
família, onde a mesma deixa de ser vista apenas como unidade de residência em
diferentes pontos do tempo, para ser considerada como um processo em que se dá
através de toda a vida de seus membros. Paralelamente à análises que explicam as
mudanças nas estruturas familiares como resultado de alterações nos processos (eventos
relacionados), há um movimento que privilegia a análise destes em sí mesmos, como
forma de aprofundar o entendimento das transformações ocorridas nas estruturas
familares. Assim, a “Família Colonial Extensa”, transformou-se na “Nuclear”, que
diminuiu para a Monoparental, reduzida à Unipessoal.
No seio dessas mudanças, há também que se considerar a visão jurídica sobre a
família, onde no campo dos direitos e responsabilidades que isto implica, a igualdade de
gênero e de oportunidades também ocupa um papel decisivo nos novos modelos de
família. No que diz respeito à legislação, evidenciam-se algumas alterações, já que até
então perdurava um modelo de família legitimada pelo casamento sob a “batuta” do
poder masculino, legitimado
desde a Família Patriarcal prevista no Código Civil
Brasileiro Antigo, aos novos arranjos que já não são alcançados em sua plenitude pelo
“Novo Código Civil” que se encontra em implantação atual no País.
Originalmente a família, no Direito Romano, tinha um contorno nítidamente
patriarcal, sendo considerada tudo aquilo que estivesse debaixo do poder paterno,
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mulher, filhos, escravos e até bens. A tradição Romanística teve uma forte influência
nas legislações modernas. No caso do direito brasileiro, houve uma predominância
considerável dos direitos canônicos e português, que representavam o pensamento da
Igreja no conceito da família. A Lei civil, sob esta influencia, manteve por longo tempo
o Princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal e a manutenção da eficácia do
casamento religioso, até a aprovação da Emenda nº 9, em 1977, que instituiu o divórcio
no Brasil. No que diz respeito à reforma do texto constitucional, há que se fazer um
retrospecto do tratamento jurídico dado à família nas Constituições Federais.
As constituições brasileiras sempre colocaram sob a sua proteção apenas a
família denominada “legítima”. A de 1934, correspondeu à resistência do catolicismo à
dissolubilidade do vínculo conjugal (Miranda, 1987). Da mesma forma, as de 1946,
1967 e 1969. Neste período, o Código civil desconheceu completamente a família
natural, a união de fato, reconhecida, apenas, pela Jurisprudência dos Tribunais.
A verdade é que a Constituição Federal de 1988, representou um marco na
evolução do conceito de família que trouxe no título ”Da família da Criança e do
Adolescente e do Idoso”, a ampliação do conceito de família, reconhecendo a união
estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, suprimindo a expressão
“constituída pelo casamento”. A situação anterior acarretava injustiças, sobretudo, às
mulheres que viviam em união consensual com os seus parceiros, tendo assim
sonegados seus direitos, e o exercício livre de sua cidadania.
O Novo Código Civil, aprovado pela Câmara dos Deputados em 15 de agosto
de 2001, após um trâmite legislativo iniciado em 1975, começou a gerar dúvidas quanto
à sua atualidade. Uma legislação que demorou quase 30 anos para ser aprovada e deve
levar pelos menos mais dois para entrar em vigor, já nasce obsoleta.
Em tempos de amor livre e liberdade sexual, a manutenção do adultério ainda
permanece como uma das razões para se dissolver um casamento, e ainda não se discute
como inserir as descobertas da biotecnologia no novo código. Dentre outras formas
conservadoras, define que a família passa a ser formada pelo casamento civil ou
religioso com efeitos civis, ou ainda pela união estável e pela comunidade formada por
qualquer dos pais com seus descendentes. Refere-se às mães solteiras que formam uma
família com seus filhos.
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Está claramente concretizado a exclusão da união entre homossexuais, pessoas
que moram sozinhas e outros tipos de arranjos existentes sem atender ao formato
previsto pela lei.
Ou seja, para tristeza de alguns segmentos da sociedade, a lei somente reconhece
como entidade familiar a convivencia de um homem e uma mulher, continuando à
margem do ordenamento jurídico, portanto, as uniões homossexuais, cada vez mais
frequentes, entre pessoas do mesmo sexo, bem como adoção de crianças por esses
casais. Entretanto, já tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei que aborda estas
“uniões consensuais”, sinalizando assim para um novo modelo familiar.
A evolução do conhecimento, os movimentos políticos e sociais do século XX e
o fenômeno da globalização, evidentemente, exigem mudanças profundas na estrutura
da família, não só no aspecto sociológico, como também no ordenamento jurídico
brasileiro.
Mesmo com o avanço dos estudos na ótica de gênero, vê-se que as uniões
consensuais, o concubinato, o companheirismo, seus avanços legítimos ainda conflita
com os legais. Na família constituida por homem e mulher, “legitimamente” o homem
ainda se apresenta como cabeça do casal, e a mulher na sociedade não pode exercer em
sua plenitude os direitos essenciais.
Tais afirmações, nos remete à Sociologia de Gênero, que nos parece a mais
adequada para abordar a questão da família, pois o gênero organiza as relações na
família, atribuindo papéis e funções diferentes e complementares entre homens e
mulheres. Essa abordagem rompe com a dicotomia entre a organização da vida privada
e a da vida pública, uma vez que apreende os valores e conteúdos de gênero subjacentes
a maior parte das relações sociais, sejam elas na família ou não, embora o nosso foco,
seja sua configuração nas relações familiares.
A igualdade deixou de ser um pressuposto para ser uma questão: analisar
mudanças culturais com relação à família; mudanças de valores com base na igualdade;
e mudanças nas formas e tipos de família. Essas mudanças se apresentam cheias de
filigranas, onde aquilo que parece ser “novo” pode ser uma “ressifignação”; e o que
aparente ser permanente, pode ter um conteúdo renovado.
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Assim, continuaremos tentando penetrar no universo dos códigos, da
conjugalidade do legítimo com o legal, para entendermos o estranho universo familiar,
cheio de ambiguidades e contradições e encontrarmos o lugar da sociologia da família e
do Gênero.
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AUTORA: MARIA DAS GRAÇAS LUCENA DE - Abep