Novos Arranjos Familiares: inquietações sociológicas e dificuldades jurídicas* Maria Das Graças Lucena De Medeiros UFRN Palavras chave: Arranjos familiares, Código Civil, Identidade de Gênero, Direito de Família. O presente trabalho, inserido no GT POPULAÇÃO E GÊNERO do XIII ENCONTRO NACIONAL da ABEP de 2002, remete-se à análise das configurações familiares sob a ótica de Gênero, Teoria Crítica Contemporânea que vem impulsionar a revisão dos paradigmas sociológicos da atualidade. Dentro do Tema "NOVOS ARRANJOS FAMILIARES: Inquietações Sociológicas e Dificuldades Jurídicas", pretendemos levantar pontos discursivos , a partir de um esboço sobre a evolução da família focando observações de alguns estudiosos, onde chegaremos à Família Brasileira. Nesta, pretendemos destacar os “novos modelos” dentro de um contexto sócio- cultural e jurídico onde segundo dados estatísticos recém publicados pelo IBGE (PNAD E CENSO 2001), evidenciam-se muitas alterações. Constata-se que no que diz respeito a organização interna da Família Brasileira a partir da década de 90 para cá, as separações e divórcios adicionam um grau de complexidade na média em que crescem os recasamentos, com tendências para a variação nos diversos tipos de “Arranjos Familiares”, impulsionando assim a necessidade da Legislação incorporar as mudanças em relação às Uniões Consensuais. Iniciaremos resgatando autores que desvendaram estudos sobre as interrelações da família no mundo desde a sua origem até os dias atuais. No decorrer da história assistimos à várias mudanças no âmbito familiar, tanto em seu interior quanto na sua relação com a sociedade. Philippe Àries, por exemplo, em sua obra “História Social da Criança e da Família” (1981), refaz, através de um estudo minucioso, a trajetória da Família Medieval à Família Moderna. * Trabalho apresentado no XIII Encontro da Associação Brasileira de Estudos Populacionais, realizado em Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil de 4 a 8 de novembro de 2002. Àries, faz inicialmente uma abordagem sobre a sociedade tradicional européia, caracterizada pela transmissão geral de valores e conhecimentos em relação à socialização da criança, características estas que nem eram asseguradas e nem controladas pela família. Define que a família antiga tinha por missão, a conservação dos bens, a prática de um ofício comum a todos, e ajuda mútua no cotidiano de um mundo em que homem e mulher não poderiam sobreviver isolados. As trocas afetivas e comunicações sociais, eram feitas por intermédio de vizinhos, amigos, crianças e idosos, mulheres e homens com possibilidades de se manifestarem livremente em seu meio. Descreve mudanças significativas a partir do século XVI, onde assiste-se a um processo de nuclearização da família, acompanhado da individualização de seus membros que reivindicam uma progressiva privacidade o que alterará significativamente os espaços de morar, havendo a diluição das famílias conjugais. Mas, somente a partir da Idade Moderna, a família conjugal do século XIX, tinha uma marca de “indivisão”, agrupada sob o domínio das relações de trabalho e que originou a grande família patriarcal. (Do feudalismo X capitalismo). O processo de industrialização associado à concentração de população nos pólos urbanos e as profundas transformações no processo de trabalho, do local onde se trabalha, e consequentemente na composição do grupo familiar e das relações entre seus membros, levaram a uma mudança nas relações sociais, onde a família exerce o seu papel de mediação entre indivíduos e comunidade, de encontro entre gerações. Nos séculos XVIII e XIX, a família moderna - a família nuclear- substitui um modo de produção baseado na mão de obra da família extensa. Entretanto, é no século XIX, que a família burguesa – a unidade doméstica – compõe-se, sobretudo de pai, mãe e filhos repartindo uma unidade habitacional. A esta família privatizada corresponde uma concepção de unidade de moradia extremamente setorizada e compartimentada. Assim, uma boa maneira de abordar as transformações que afetaram a vida privada no século XX consiste em indagar sobre a evolução material do quadro doméstico: a história da vida privada é, em primeiro lugar, a história do espaço em que ela se inscreve. (Àries: 1981). 2 Ainda para Àries, a partir da sociedade industrial, a família européia sofreu mudanças consideráveis, marcadas, sobretudo pelas relações de trabalho e a entrada da tecnologia na vida das pessoas. Ele ressalta a substituição da aprendizagem pela escola como meio de educação, que mostra o novo papel desenvolvido pela criança e a família nas sociedades industriais. Para o autor, começava aqui um longo processo de enclausuramento das crianças, dos loucos, dos pobres e das prostitutas que se estenderia até hoje, sob o nome de “escolarização.” Uma outra visão clássica quanto a caracterização das relações familiares na contemporaneidade, é a de Giddens (1993), onde se dedicou a estudar a caracterização das relações familiares na contemporaneidade, compreendendo a transformação das relações afetivo-sexuais a partir do seu conteúdo igualitarista. Esta transformação é ampla e rica em conseqüências, pois implica na reelaboração da intimidade de homens e mulheres, que são os/as protagonistas das novas relações vivenciadas, tanto no cotidiano do casamento e da família quanto fora do espaço institucional desta, nas relações afetivo-sexuais de uma maneira geral. A construção da auto-identidade no mundo moderno significou uma ruptura com uma ordem emocional que garantia ao sexo masculino o poder no relacionamento. “As mulheres comuns, que tratam de suas vidas cotidianas, e também os grupos conscientemente feministas - foram pioneiras em mudança de grande e ampla importância” (GIDDENS, 1993). Para ele, a expansão da reflexidade social implica uma maior autonomização dos indivíduos. Esta autonomia, uma condição para interagir com as demais, implica, portanto, reciprocidade e interdependência. Ele critica os autores que dão ênfase ao individualismo como um valor necessariamente egoísta e desagregador, pois, ao contrário, segundo seu pensamento, o individualismo é a base de reconstrução das solidariedades sociais pautadas na autonomia e na interdependência. Desta forma, Giddens reatualiza a discussão clássica da sociologia sobre as conseqüências do individualismo na vida moderna. Autores clássicos da sociologia como Weber (1989), Durkheim (1995), tambem voltaram seu olhar para o individualismo. Para Weber, o individualismo é o 3 desenvolvimento da subjetividade e da reflexividade, retirada a sua base primeira, que era religiosa. Durkheim (1995) aborda o individualismo como, de fato, uma autonomização individual. Neste ponto, nada mais ilustrativo do que sua imagem da passagem de uma sociabilidade marcada pela solidariedade mecânica - típica das sociedades tradicionais para uma outra, caracterizada pelo que ele denomina de solidariedade orgânica - típica do capitalismo. A intensificação da divisão social do trabalho e o processo de especialização dela decorrente são fontes de interdependência entre os homens na esfera da produção, mas, simultaneamente, de um processo crescente de diferenciação entre os mesmos. A civilização moderna, segundo Durkheim, através da diferenciação crescente no processo produtivo, deu vez ao indivíduo enquanto ser singular e autônomo. Esta autonomia tornou-se o valor estruturante de todas as nossas instituições políticas e jurídicas - o ideal moral por excelência das nossas sociedades. O individualismo e a reflexividade social - fatores que contribuíram para a destradicionalização nas sociedades contemporâneas - são vividos na esfera da família de forma intensa e inédita. Os críticos do individualismo sugerem que este também é responsável pela desagregação familiar, pelo fim da autoridade parental. Tudo isso envolvido num contexto de caos e desestruturação. “O fortalecimento de comprometimento e obrigações familiares, desde que baseado em confiança ativa, não parece ser incompatível com a diversidade das formas familiares que atualmente estão sendo exploradas em todas as sociedades industrializadas. As altas taxas de separação e de divórcio vieram para ficar, mas podem-se perceber muitas maneiras pelas quais elas viriam a enriquecer a solidariedade social em lugar de destruí-la. Por exemplo, o reconhecimento da importância primordial dos direitos das crianças, junto com as responsabilidades em relação a elas, poderia fornecer os próprios meios de consolidarmos os novos laços de parentesco que vemos ao nosso redor - entre, digamos, dois grupos de pais e mães que também são padrastos ou madrastas e as crianças que possuem em comum” (GIDDENS,1993). Neste sentido, Giddens estabelece que o princípio das relações pós-tradicionais impõe o respeito pelos direitos individuais também na família, incluindo desde questões objetivas, tais quais a violência doméstica, como questões mais subjetivas, que tocam à 4 realização individual de cada um. Uma família pós-tradicional compreende a realização emocional e afetiva das pessoas, muito mais do que uma manutenção de papéis rígidos e inflexíveis. A posição de Giddens é contrária aos teóricos que procuram mostrar o esfacelamento da família. Por isso, procura mostrar que a expansão da autonomia individual atingiu também a vida privada e dotou os indivíduos de direitos, deveres, responsabilidades e solidariedades uns em relação aos outros - o que se tornou possível graças às formas familiares diversas e múltiplas. Mencionaremos ainda como importante para este estudo, a posição de CASTELLS (2001), que se reporta aos relacionamentos interpessoais, marcados pela violência e dominação originados na cultura e instituições do patriarcalismo. É para ele, essencial, porém, tanto do ponto de vista analítico, quanto político, não esquecer o enraizamento do patriarcalismo na estrutura familiar e na reprodução sociobiológica da espécie, contextualizados histórica e culturalmente. Castells questiona o enfraquecimento do patriarcado, entretanto aponta indicadores que contribuem para o declínio das formas tradicionais da família patriarcal, tais como: a transformação da economia e do mercado de trabalho associado à abertura de oportunidades para as mulheres no campo da educação; as transformações tecnológicas ocorridas na biologia, farmacologia e medicina, controlando a reprodução humana; a transformação econômica e tecnológica, atingindo o patriarcalismo pelo desenvolvimento do movimento feminista; e a rápida difusão destas idéias em uma cultura globalizada, com um movimento feminista altamente diversificado, desenvolvendo debates a partir da experiência coletiva de construir ou reconstruir a identidade feminina. A possibilidade de construção da auto-identidade, do estilo de vida e das formas familiares não é igualmente aceita por toda a sociedade, há muitas mudanças e muitas permanências “vão-se as instituições, ficam os valores” e embora se constate estatisticamente a pluralidade de formas familiares, na representação social a legitimidade continua sendo unicamente da família conjugal. Ora, se a legitimidade continua presa à uma forma familiar que não é mais hegemônica, as ambigüidade e contradições estão sendo vividas por aqueles/as que não estão ancorados/as sob este padrão. 5 Bourdieu lembra a condição social da mulher solteira: “(...)Seria preciso relatar aqui o testemunho daquelas mulheres que entrevistamos recentemente, no decorrer de uma pesquisa sobre a miséria social e que, por não se comportarem de acordo com a norma tácita que impõe, de maneira cada vez mais imperativa à medida que envelhecemos, casar e ter filhos, falam todas das pressões sociais exercidas sobre elas, para chamá-las à ordem, a se “comportar”, a encontrar um cônjuge e a ter filhos - por exemplo, as fofocas e os problemas associados ao estatuto da mulher sozinha, em festas ou jantares, ou a dificuldade de ser inteiramente levada a sério, porquanto ser social incompleto, inacabado como que mutilado” (Bourdieu,1996). Ao abordarmos a Família Brasileira, e considerando os textos que revisam a sua história, encontra-se na categoria de um dos clássicos fundadores Gilberto Freyre (com Casa Grande & Senzala de 1933). Quanto às idéias decisivas na configuração do modelo patriarcal da família brasileira (MARIZA CORREIA, 1993), ao abordar o tratamento dado à família na obra de Gilberto Freyre e Antonio Cândido, considera que em ambos, “se o tempo concedido à sua dominação é por demais amplo, o espaço social onde se inscreve essas unidades familiares é por demais estreito.” Enquanto que (SAMARA, 1987), observa, no mesmo sentido, que no modelo genérico de estrutura familiar foram “esquecidas as variações que ocorrem na organização da família em função do tempo, do espaço e dos diferentes grupos sociais”. Vemos que a família se estendeu à medida que a sociabilidade se retraiu. É como se a família moderna tivesse substituído as antigas relações sociais desaparecidas para permitir ao homem escapar a uma insustentável solidão moral. Nesse sentido, podemos falar de uma “privatização da família”, já que à primeira vista , a evolução familiar passa pela perda de suas funções públicas, passando a ter apenas funções privadas. Embora, não podemos obscurecer que também foi dentro da família onde os indivíduos conquistaram o direito de ter uma vida privada autônoma. Dentro dessa ótica, estão os lares compostos por uma única pessoa, (também chamada de família monoparental ou unilateral), onde a vida privada doméstica foi inteiramente absorvida pela vida individual, com reflexos no âmbito interno da moradia. 6 O processo de industrialização associa-se à concentração de população nos polos urbanos e a profundas transformações do processo de trabalho, bem como do local onde se trabalha e consequentemente , as mudanças no grupo familiar e das relações entre seus membros. A família muda, acompanha as transformações da sociedade, dado que conserva seu papel fundamental na mediação entre indivíduos e comunidade, de encontro entre gerações. É importante considerar também neste estudo, que a sociedade contemporânea vive em relação à sua juventude, um paradoxo. De um lado, tem-se uma cultura marcada por uma supervalorização do jovem e do "ser jovem" que se expande como valor canônico para todos os grupos de idade, se manifestando em representações socioculturais múltiplas, que vão da publicidade à moda, da música às produções televisivas. Essa dimensão que tem a ela relacionada, valores de vitalidade, dinamismo e criatividade articula-se a outras características dos tempos modernos: a valorização social do tempo livre, do lazer e do ócio. A juventude seria pois o grupo social emblemático, com legitimidade para assumir todas essas dimensões, que não coincide com sua inserção socioecônomica real, sem horizontes profissionais, altas taxas de desemprego juvenil, falta de equipamentos socioculturais, alimentam os fantasmas da marginalidade, da delinquência e da possibilidade de rupturas da "nova ordem social". Inserimos a juventude nesta abordagem, como um foco preocupante dentro da família atual, independente de seu modelo. Pensar a juventude urbana pobre brasileira, é pensar a situação mais geral da pobreza no país e a dinâmica de nossos centros urbanos. Ela reflete as contradições de um século em que a globalização da economia e a mundialização da cultura estruturam paradoxalmente seus contrários: exclusões, localismos e territorializações. Mesmo na mais restrita concepção de cidadania, como direitos e proteção, nossa realidade se apresentou, não só limitada aos indivíduos com participação produtiva em alguns setores de atividade ou categorias profissionais, que caracterizaria a cidadania regulada, segundo Santos (1979), como incompleta no que se refere aos tipos e qualidades de coberturas sociais. 7 Para amplos setores, seus espaços de reconhecimento e proteção social continuaram e continuam se dando em esferas privatizadas, seja no nível das famílias, seja no das comunidades vicinais ou dos espaços religiosos. Alguns estudiosos como Freyre, Cândido, Berquó, Goldani, Bruschini, Blay, Saffiotti, Telles, Prado e outros(as), já salientam na família brasileira o fenômeno da desagregação patriarcal , sendo palpável nos dados empíricos sobre o que eles costumam chamar “arranjos familiares” ou “novos modelos de família”. As tipologias sobre os novos arranjos variam muito quanto à denominação, entretanto, os mais citados pelos estudiosos são: família nuclear (conjugal); família extensa (consangüínea); família unilateral; família monoparental. No Brasil, a monoparentalidade responde pela diversificação dos arranjos familiares, segundo estudo realizado por Goldani (1993), compreendendo os períodos de 1981 a 1989. Há um decréscimo nas famílias formadas por casais e um aumento proporcional nas famílias monoparentais, em sua maioria formadas por mãe com filhos. No que se trata de organização interna da família na década de 90, observa-se que as separações e divórcios adicionam um grau de complexidade na medida em que crescem os recasamentos. É importante mencionar que o viver sozinho ou ficar solteiro ou solteira por opção também será parte importante da vida urbana que está no horizonte das pessoas. Vale mencionar nesse sentido a passagem da família para a chamada fase de pós-nuclearização, na qual o foco passará do casal e filhos para o indivíduo. Este processo é considerado por muitos estudiosos como um retrocesso e responsável pela perda da importância da família como instituição, associado a um modelo capitalismo industrial X capitalismo de consumo, advindo com a revolução nas tecnologias reprodutivas e com os movimentos de pós-modernismo cultural. Como conseqüência relevante, na abordagem mostrada por Goldani," A constante preocupação e insegurança com as condições objetivas de vida para a maioria da população tem ofuscado as demais contradições e desigualdades da sociedade brasileira e dificultando a construção de um modelo explicativo, que contemple a complexidade, contradições e lutas existentes no interior desta sociedade. Neste contexto se encontram as poucas e mal estudadas questões sobre as mudanças nas 8 estruturas familiares. Ao contextualizar as mudanças pelas as quais passam as famílias (principalmente a brasileira), deve-se ter presente as desigualdades regionais e raciais e os macro-processos, a grosso modo caracterizados por ciclos econômicos combinando crescimento e recessão, movimentos de redemocratização das instituições políticas, lutas por direitos civis básicos, conquistas da cidadania e processos de modernidade excludente" (GOLDANI, 1994) Por sua vez, CHAUÍ (1989), refere-se às mudanças socio-culturais em relação à família, com o surgimento da burguesia , que em sua forma clássica, tem um discurso legislador, ético e pedagógico. "Fazia das Instituições como Pátria, Família, Empresa, Escola, Estado (sempre escritos com letras maiúsculas), valores e reinos fundados de fato e de direito. Por essa via, o discurso nomeava os detentores legítimos da autoridade: o pai, o professor, o patrão, o governante, e, consequentemente, deixava explícita a figura dos subordinados e a legitimidade da subordinação". É necessário tambem lembrar, que a mulher brasileira, principalmente das camadas sociais média e alta, até o início do século XX estava confinada à esfera doméstica, o que contrastava com a realidade vivida pelas mulheres norte-americanas e européias durante essa mesma época. Dessa forma, a identidade social das mulheres brasileiras era dada, durante aquele período, apenas pelo seu papel na família. As transformações modernizantes, após 1930, possibilitaram a configuração de uma nova feição da condição feminina para as mulheres desse segmento social. Elas tiveram o seu papel social redefinido à luz das mudanças ocorridas na família e nas condições sociais e econômicas. Elas conquistaram direitos políticos, asseguraram o acesso à educação e passaram a ganhar o espaço público do trabalho. O estabelecimento do novo padrão de atividade feminina permitiu a passagem da mulher das camadas médias do status anterior de esposa e de mãe para o status de trabalhadora. A busca de uma identidade própria e do reconhecimento social dessa identidade tiveram um impacto profundo sobre o modelo dominante de família baseado na ética do provedor. O trabalho extradoméstico, que era tido, até então, como uma atribuição masculina, passou a integrar o cotidiano feminino das mulheres das camadas médias, fazendo com que elas passassem a assumir o desafio da conciliação casa-trabalho, o que trouxe conseqüências evidentes para as relações entre os gêneros. O celibato, a “chefia 9 feminina”, as separações e os recasamentos transformaram-se em eventos cada vez mais freqüentes na vida das mulheres, indicando um enfraquecimento da codificação do masculino e do feminino no espaço privado. Em decorrência dessas transformações, o tipo de família assentado na divisão dos papéis sexuais homem- provedor e mulher-dona-de-casa entrou em crise a partir das três últimas décadas. Atualmente, já não ocorre mais a separação entre as esferas pública e privada na vida da maior parte das mulheres. Elas estão cada vez mais integradas ao espaço público na qualidade de trabalhadora extradomiciliar, de coprovedora ou de provedora do grupo familiar. A crise verificada nesse tipo de família correspondeu, em grande medida, à rápida e profunda mudança cultural levada a efeito nas sociedades capitalistas contemporâneas. Como se vê, o interesse pelo estudo da família, continua crescente dentre estudiosos de várias áreas, havendo um intercâmbio considerável na concepção de família, onde a mesma deixa de ser vista apenas como unidade de residência em diferentes pontos do tempo, para ser considerada como um processo em que se dá através de toda a vida de seus membros. Paralelamente à análises que explicam as mudanças nas estruturas familiares como resultado de alterações nos processos (eventos relacionados), há um movimento que privilegia a análise destes em sí mesmos, como forma de aprofundar o entendimento das transformações ocorridas nas estruturas familares. Assim, a “Família Colonial Extensa”, transformou-se na “Nuclear”, que diminuiu para a Monoparental, reduzida à Unipessoal. No seio dessas mudanças, há também que se considerar a visão jurídica sobre a família, onde no campo dos direitos e responsabilidades que isto implica, a igualdade de gênero e de oportunidades também ocupa um papel decisivo nos novos modelos de família. No que diz respeito à legislação, evidenciam-se algumas alterações, já que até então perdurava um modelo de família legitimada pelo casamento sob a “batuta” do poder masculino, legitimado desde a Família Patriarcal prevista no Código Civil Brasileiro Antigo, aos novos arranjos que já não são alcançados em sua plenitude pelo “Novo Código Civil” que se encontra em implantação atual no País. Originalmente a família, no Direito Romano, tinha um contorno nítidamente patriarcal, sendo considerada tudo aquilo que estivesse debaixo do poder paterno, 10 mulher, filhos, escravos e até bens. A tradição Romanística teve uma forte influência nas legislações modernas. No caso do direito brasileiro, houve uma predominância considerável dos direitos canônicos e português, que representavam o pensamento da Igreja no conceito da família. A Lei civil, sob esta influencia, manteve por longo tempo o Princípio da indissolubilidade do vínculo conjugal e a manutenção da eficácia do casamento religioso, até a aprovação da Emenda nº 9, em 1977, que instituiu o divórcio no Brasil. No que diz respeito à reforma do texto constitucional, há que se fazer um retrospecto do tratamento jurídico dado à família nas Constituições Federais. As constituições brasileiras sempre colocaram sob a sua proteção apenas a família denominada “legítima”. A de 1934, correspondeu à resistência do catolicismo à dissolubilidade do vínculo conjugal (Miranda, 1987). Da mesma forma, as de 1946, 1967 e 1969. Neste período, o Código civil desconheceu completamente a família natural, a união de fato, reconhecida, apenas, pela Jurisprudência dos Tribunais. A verdade é que a Constituição Federal de 1988, representou um marco na evolução do conceito de família que trouxe no título ”Da família da Criança e do Adolescente e do Idoso”, a ampliação do conceito de família, reconhecendo a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, suprimindo a expressão “constituída pelo casamento”. A situação anterior acarretava injustiças, sobretudo, às mulheres que viviam em união consensual com os seus parceiros, tendo assim sonegados seus direitos, e o exercício livre de sua cidadania. O Novo Código Civil, aprovado pela Câmara dos Deputados em 15 de agosto de 2001, após um trâmite legislativo iniciado em 1975, começou a gerar dúvidas quanto à sua atualidade. Uma legislação que demorou quase 30 anos para ser aprovada e deve levar pelos menos mais dois para entrar em vigor, já nasce obsoleta. Em tempos de amor livre e liberdade sexual, a manutenção do adultério ainda permanece como uma das razões para se dissolver um casamento, e ainda não se discute como inserir as descobertas da biotecnologia no novo código. Dentre outras formas conservadoras, define que a família passa a ser formada pelo casamento civil ou religioso com efeitos civis, ou ainda pela união estável e pela comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes. Refere-se às mães solteiras que formam uma família com seus filhos. 11 Está claramente concretizado a exclusão da união entre homossexuais, pessoas que moram sozinhas e outros tipos de arranjos existentes sem atender ao formato previsto pela lei. Ou seja, para tristeza de alguns segmentos da sociedade, a lei somente reconhece como entidade familiar a convivencia de um homem e uma mulher, continuando à margem do ordenamento jurídico, portanto, as uniões homossexuais, cada vez mais frequentes, entre pessoas do mesmo sexo, bem como adoção de crianças por esses casais. Entretanto, já tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei que aborda estas “uniões consensuais”, sinalizando assim para um novo modelo familiar. A evolução do conhecimento, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização, evidentemente, exigem mudanças profundas na estrutura da família, não só no aspecto sociológico, como também no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo com o avanço dos estudos na ótica de gênero, vê-se que as uniões consensuais, o concubinato, o companheirismo, seus avanços legítimos ainda conflita com os legais. Na família constituida por homem e mulher, “legitimamente” o homem ainda se apresenta como cabeça do casal, e a mulher na sociedade não pode exercer em sua plenitude os direitos essenciais. Tais afirmações, nos remete à Sociologia de Gênero, que nos parece a mais adequada para abordar a questão da família, pois o gênero organiza as relações na família, atribuindo papéis e funções diferentes e complementares entre homens e mulheres. Essa abordagem rompe com a dicotomia entre a organização da vida privada e a da vida pública, uma vez que apreende os valores e conteúdos de gênero subjacentes a maior parte das relações sociais, sejam elas na família ou não, embora o nosso foco, seja sua configuração nas relações familiares. A igualdade deixou de ser um pressuposto para ser uma questão: analisar mudanças culturais com relação à família; mudanças de valores com base na igualdade; e mudanças nas formas e tipos de família. Essas mudanças se apresentam cheias de filigranas, onde aquilo que parece ser “novo” pode ser uma “ressifignação”; e o que aparente ser permanente, pode ter um conteúdo renovado. 12 Assim, continuaremos tentando penetrar no universo dos códigos, da conjugalidade do legítimo com o legal, para entendermos o estranho universo familiar, cheio de ambiguidades e contradições e encontrarmos o lugar da sociologia da família e do Gênero. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ÀRIES, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC, 1981. CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Vol. 2. CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (org). A Família Contemporânea em Debate. Sâo Paulo: EDUC/Cortez, 2000. CHAUÍ, Marilena de Sousa. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas.4.São Paulo: Cortez, 1989. CHAVES, Antonio. Lições de Direito Civil. Direito de Família. Vol. I. Revista dos Tribunais. 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