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A INEFETIVIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO
ESTADO BRASILEIRO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO
AOS DIREITOS HUMANOS EM FACE ÀS GARANTIAS JUDICIAIS
Adriana Moura Mattos da Silva1
RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade compreender o funcionamento do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos em sua perspectiva de integração ao
Direito Brasileiro, buscando identificar suas falhas e correlacionando-as com o
cumprimento das sentenças de responsabilização do Estado Brasileiro por violações aos
direitos humanos proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte
IDH).
ABSTRACT: The present work has by finality the comprehension of the operation of
the Inter-American System of Human Rights in its interactional perspective with the
Brazilian Law, chasing the identification of its flaws, correlating them with the
fulfillment of the sentences of Brazilian State’s accountability for violations to the
human rights, these pronounced by the Inter-American Court of Human Rights.
1 A ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA E AS SENTENÇAS DA CORTE IDH
O Estado Brasileiro ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
apenas em 07 de setembro de 1992, promulgando-a em âmbito interno através do
Decreto nº 678, de 06 de novembro do mesmo ano. O reconhecimento da competência
da Corte Interamericana, porém, ocorreu apenas em 10 de dezembro de 1998.
À data da respectiva ratificação, não havia ainda, na Constituição Federal do
Brasil, a regra constante do §3º do art. 5º, que somente foi acrescentada através da
Emenda Constitucional nº 45, em 30 de dezembro de 2004. Esta, atualmente, prevê que
tratados de direitos humanos aprovados com quorum de Emenda Constitucional - qual
seja votação por três quintos de cada Casa em dois turnos de votação - adquirem status
1
Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, pós-graduanda em Direito Constitucional pela
Rede LFG/JusPodivm.
2
de norma constitucional, passando a integrar espécie de “bloco de constitucionalidade”
no ordenamento jurídico nacional.
A incorporação de tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro
antes de 2004, portanto, não possuía regras especifícas nem quaisquer distinções aos
tratados de direitos humanos, funcionando todos eles, a partir de sua promulgação, com
status de Lei Ordinária.
Com a modificação causada pela EC nº 45/2004, entretanto, apresentou-se uma
divergência, relativa ao que ocorreria com os tratados de direitos humanos
anteriormente promulgados, se adquiririam tacitamente status constitucional ou não.
Até então, a regra prevalecente nos julgados do STF era lex posteriori derrogat
legi priori, pela qual a norma do tratado poderia ser modificada pela legislação
posterior, ainda que infraconstitucional, posto que de mesmo nível hierárquico. Esse
entendimento, porém, abria margem ao descumprimento unilateral dos tratados, indo de
encontro diretamente com compromissos assumidos pelo Estado perante a Comunidade
Internacional. Evidenciava-se, portanto, a necessidade de uma revisitação à
jurisprudência do Supremo, a fim de readequá-la à ordem internacional da atualidade.
O Supremo Tribunal Federal (STF), chamado à solução do impasse, no
julgamento unânime do Recurso Extraordinário 446.3432 em 03 de dezembro de 2008,
seguindo o voto do Exm.º Ministro Gilmar Mendes3, decidiu pela modificação do
entendimento do STF acerca do status dos tratados de direitos humanos anteriores à EC
nº 45/2004 .
Seguindo a lógica de Gilmar Mendes no julgamento de 2008, os tratados
anteriores à EC nº 45/2004 não integrariam o chamado “bloco de constitucionalidade”,
posto que não submetidos à votação de quorum especial e consequentemente não
possuidores de status constitucional; entretanto, dada a distinção constitucional a partir
do §3º do art. 5º, estes também não poderiam continuar com status infraconstitucional
simples, passando a possuir status denominado “supralegal”.
Esse posicionamento já tinha sido defendido pelo Ministro Sepúlveda Pertence
no julgamento do Recurso em Habeas Corpus (RHC) de nº 79.785, no ano de 2000,
mas à época foi rechaçado pela maioria do plenário do Tribunal.
2
O Recurso Extraordinário 446.343 discutiu, no STF, a questão da constitucionalidade da prisão do
depositário infiel, tema trazido à tona em razão da proibição de prisão por dívidas constante do art. 7.7 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
3
O inteiro teor do julgamento encontra-se disponível em < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=595444 >. Acesso em 06 mar. 2013.
3
A supralegalidade caracteriza-se, para o STF, pela superioridade hierárquica a
normas infraconstitucionais, mas ainda assim inferioridade perante a Constituição. Na
lição do eminente Ministro Gilmar Mendes:
Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos
humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu
caráter especial em relação aos demais atos normativos
internacionais, também seriam dotados de um atributo de
supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não
poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam
lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los
à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no
contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.
Ressalte-se,
ainda,
que
em
caso
de
inconformidade
de
normas
infraconstitucionais em relação a tratados de direitos humanos anteriores à regra
especializante, esses operariam um “efeito paralisante” sobre a norma contraditória,
efeito este operado assim que promulgada a sua validade em âmbito interno e
alcançando inclusive norma de vigência posterior.
Ainda no voto do Eminente Ministro:
[...] diante do inequívoco caráter especial dos tratados
internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos,
não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento
jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na
Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de
toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela
conflitante.
Dessa forma, a exemplo da questão da prisão do depositário infiel, defendeu o
Exm.º Ministro que não houve revogação do dispositivo da Constituição Federal que
prevê tal modalidade, mas sim a perda de aplicabilidade do mesmo, em razão do efeito
paralisante que o Pacto de San José operou sobre a legislação infraconstitucional que a
disciplina, notadamente o Código Civil Brasileiro.
Tal julgado foi responsável pela definitiva fixação do entendimento do STF no
sentido de conferir aos tratados internacionais firmados pelo Brasil o status de norma
supralegal, o que, porém, não impede a submissão dos mesmos ao controle de
4
constitucionalidade, haja vista se encontrarem em nível hierárquico inferior à
Constituição Federal.
Assim sendo, até o momento, apenas dois tratados a respeito de direitos
humanos foram recepcionados conforme as regras do §3º do art. 5º da CF: a Convenção
Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo
Facultativo, ambos promulgados por força do Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009,
sendo os demais tratados ainda considerados infraconstitucionais.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, portanto, por ser anterior à regra
e consequentemente não tendo sido submetida à votação especial, permanece, pelo
entendimento do STF, com mero status supralegal, operando somente efeito paralisante
sobre o ordenamento jurídico brasileiro que esteja em desconformidade com seu texto.
É também essa dificuldade do Estado Brasileiro em lidar com normas
internacionais perante seu modelo constitucional a responsável pelos resultados pouco
eficazes das recomendações da CIDH e também das sentenças e resoluções da Corte
IDH.
Esse é, talvez, o maior obstáculo à verdadeira concretização da jurisdição
internacional no âmbito do direito interno brasileiro, realidade inclusive aplicável a
diversos outros países da América submetidos ao regime da Convenção. Entretanto, há
de se notar um claro atraso do Brasil em face aos demais países, que buscam já prever
constitucionalmente solução apta à incorporação dos tratados de que fazem parte. A
Constituição Venezuelana4, por exemplo, traz em seu bojo a atribuição de hierarquia
constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, bem como sua
aplicabilidade imediata e direta, cuja hermenêutica será sempre a mais razoável ao
indivíduo. De mesmo modo, a Constituição Argentina5 elenca um rol de diplomas
internacionais possuidores de status constitucional, incluindo aí os tratados de direitos
humanos. O próprio Paraguai6 e também o Uruguai7 trazem previsão de um integração
jurídica à ordem internacional, celebrando a unidade jurídica do sistema interno e
externo.
4
Art. 23 da Constituição Venezuelana. Disponível em < http://www.cgr.gob.ve/contenido.php?Cod=048
>. Acesso em 11 mar. 2013.
5
Art. 75.22 da Constituição Argentina. Disponível em < http://www.senado.gov.ar/web/interes/
constitucion/atribuciones.php >. Acesso em 11 mar. 2013.
6
Art. 145 da Constituição Paraguaia. Disponível em < http://www.constitution.org/cons/paraguay.htm >.
Acesso em 11 mar. 2013.
7
Art. 6º da Constituição Uruguaia. Disponível em < http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/
const004.htm >. Acesso em 11 mar. 2013.
5
A prática cotidiana de integração de precedentes e normas ao direito interno tem
grande destaque no Sistema Europeu, mas ainda se encontra a passos lentos no contexto
Americano, especialmente no Brasil.
1.1 A implementação das sentenças no Brasil
A implementação de sentenças da Corte pode ocorrer de duas formas: sponte
propria (voluntária) ou forçada. Nesse momento, nos dedicamos às formas e
mecanismos de implementação voluntária das sentenças pelo Estado Brasileiro. Em
ponto posterior nos dedicaremos à análise da implementação forçada como maneira apta
a solucionar o descumprimento de sentenças.
Em referência à implementação voluntária, consoante o art. 69 da Convenção, o
Estado-Parte obriga-se a atender ao seu dever de cumprimento, atendido pelo Poder
Executivo na efetivação do título executivo judicial materializado na sentença da Corte,
assim como pelo Poder Legislativo, materializado em rol de obrigações limitado8.
No caso brasileiro, em primeiro plano, é importante diferenciar a natureza
jurídica das sentenças de natureza não nacional, que se dividem em duas categorias:
“internacionais” – a exemplo das sentenças de tribunais internacionais como a Corte
IDH – e “estrangeiras” – proferidas pelo Poder Judiciário de país diverso.
As sentenças da Corte Interamericana subsumem-se a um conceito de jurisdição
própria e plenamente integrável ao direito nacional9. Uma vez que o Estado tenha se
submetido à sua jurisdição, suas sentenças possuem eficácia plena e aplicabilidade
imediata no âmbito interno, valendo como qualquer outra sentença nacional que
estabeleça um título executivo, ao contrário das sentenças estrangeiras, que por
disposição constitucional10 exigem a homologação para operação de efeitos no território
nacional.
Pouco após a ratificação da competência da Corte IDH, em 2000, e em
consequência da dificuldade de distinção, pelos parlamentares brasileiros, entre
sentenças internacionais e estrangeiras, foi iniciada a tramitação do Projeto de Lei nº
8
Ver COELHO, 2008, p. 161-162.
Frise-se que, em se tratando de um tribunal internacional, a sentença não é proferida sob nenhuma
soberania específica, possuindo natureza jurídica internacional e, portanto, não sendo estrangeira. Ver
COELHO, 2008, p. 93.
10
Art. 105, inciso I, alínea “i” da Constituição Federal, que estabelece a competência do Superior
Tribunal de Justiça para a homologação das sentenças estrangeiras.
9
6
3.214/00, visando dispor sobre os efeitos jurídicos das sentenças da Corte IDH em
âmbito interno.
Inicialmente, o projeto de lei visava reafirmar a aplicabilidade imediata da
sentença da Corte, em plena consonância com a Convenção Americana e acentuando
ainda seu caráter de título executivo judicial com garantia desse seu aspecto para a
execução contra a Fazenda Pública. No texto da proposta original elaborada pelo
Deputado Federal Marcos Rolim11:
Art.1º As decisões da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos,
constituídas pela Convenção Americana de Direitos Humanos,
cuja jurisdição foi reconhecida pelo Decreto Legislativo 678, de
06 de novembro de 1992, produzem efeitos jurídicos imediatos
no âmbito do ordenamento interno brasileiro.
Art.2o Quando as decisões forem de caráter indenizatório,
constituir-se-ão em títulos executivos judiciais e estarão sujeitas
à execução direta contra a Fazenda Pública Federal.
§1o _ O valor a ser fixado na indenização respeitará os
parâmetros fixados pelos organismos internacionais.
§2o _ O crédito terá, para todos os efeitos legais, natureza
alimentícia.
Art.3o Será cabível ação regressiva da União contra as pessoas
físicas ou jurídicas, privadas ou públicas, responsáveis direta ou
indiretamente pelos atos ilícitos que ensejaram a decisão de
caráter indenizatório.
Art.4o Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Entretanto, em 08 de agosto de 2001 é aprovada Emenda Substitutiva - pela
Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara de Deputados – que
passa a exigir a homologação da sentença, em sessenta dias, perante o Supremo
Tribunal Federal12.
11
BRASIL. Projeto de Lei nº 3.214, de 08 de agosto de 2000. Dispõe sobre os efeitos jurídicos das
decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos
Humanos e dá outras providências. Inteiro teor disponível em <http://imagem.camara.gov.br/
MostraIntegraImagem.asp?strSiglaProp=PL&intProp=3214&intAnoProp=2000&intParteProp=2>.
Acesso em 25 mar. 2013.
12
“Artigo 1º O Poder Executivo encaminhará as decisões proferidas pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos em casos em que o Brasil foi parte, ao Supremo Tribunal Federal, com vistas à
homologação, no prazo de sessenta dias, contados da data em que for delas cientificado.
Artigo 2º O Supremo Tribunal Federal processará e julgará a homologação das decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos no prazo de sessenta dias, contados de seu recebimento.”
Saliente-se que ainda não havia ocorrido a modificação operada pela EC nº 45/2004 que transferiu a
competência de homologação de sentença estrangeira do STF para o STJ.
7
Como assevera Rodrigo Meirelles Gaspar Coelho, com a modificação, o projeto
regulamentador foi desvirtuado, propondo “um sistema retrógrado e contrário à
interpretação sistemática da Convenção Americana e do ordenamento jurídico
nacionalI”13.
Desde o arquivamento da proposta legal, em 31 de janeiro de 2003, entretanto,
não há uma mobilização do Poder Legislativo para a a regulamentação de eficácia das
sentenças da Corte, no Brasil.
Apenas em novembro de 201014, o Conselho Nacional de Justiça lançou o
programa denominado “Justiça Plena”, com a finalidade de monitorar e dar
transparência ao andamento de processos judiciais com grande repercussão social,
trabalhando para a sua maior agilidade. As causas monitoráveis mais frequentes são
criminais, ações civis públicas, ações populares, ações de defesa do consumidor,
improbidade administrativa e meio-ambiente.
A iniciativa reúne oito órgãos relacionados ao Judiciário e promoção de direitos
no Brasil: Ministério da Justiça (MJ), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), AdvocaciaGeral da União (AGU), Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria
Pública da União e dos Estados e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão
(PFDC). Esses órgãos coordenadores são responsáveis não somente pela estruturação do
sistema e monitoramento, mas também pela indicação das causas a serem
acompanhadas, juntamente às Corregedorias Nacionais (Corregedoria Nacional de
Justiça, da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho) e das Corregedorias das Justiças
Estaduais e do Distrito Federal.
Dentre os processos de repercussão social, o programa inclui em seu
monitoramento as causas relativas às sentenças da Corte IDH. Entretanto, a efetivação
desse controle é dependente de troca de ofícios entre o CNJ e os tribunais competentes
pelas causas, todas controladas por um sistema próprio, o Sistema de Acompanhamento
de Processos de Relevância Social (SAPRS).
Atualmente, esse sistema acompanha oitenta processos em andamento e possui
doze casos já finalizados15, dentre eles, destaque-se, as causas relativas aos casos
Ximenes Lopes, Escher e outros (já concluído) e Garibaldi, o assassinato da missionária
13
Consultar COELHO, 2008, p. 101.
Portaria nº 77 de 23 de novembro de 2010.
15
Dados do relatório do programa divulgado pelo CNJ em 03/07/2012. Disponível em < http://
www.cnj.jus.br/images/programas/justica-plena/relatorio_justicaplena.pdf >. Acesso em 14 mar. 2013.
14
8
Dorothy Stang, da deputada Ceci Cunha e do sindicalista José Dutra, dentre tantas
outras causas.
No contexto atual brasileiro, essa é a única medida adotada para uma supervisão
interna do cumprimento das sentenças internacionais da Corte CIDH.
Evidentemente que o projeto do CNJ traz frutos positivos às causas de
repercussão, vez que uma vigilância mais proeminente sobre a atividade judiciária
brasileira é apta a evitar o abandono processual e a excessiva duração do processo.
Porém, é importante salientar uma atuação ainda incipiente do programa ora relatado, na
medida em que permanece funcionando através, principalmente, de troca de
informações, sem uma atuação mais positiva sobre a atividade judiciária. Ademais, esse
monitoramento atua exclusivamente sobre as questões processuais da causa
internacional, não cuidando de supervisionar as demais medidas impostas ao Estado
quando de sua responsabilização, como os pagamentos de reparações (realizado através
da edição de decretos) e implementação das medidas de satisfação.
1.2 Os casos do Estado Brasileiro na Corte IDH
Até o presente momento, o Estado Brasileiro já foi julgado por violações aos
direitos humanos em cinco diferentes casos sob a jurisdição da Corte IDH.
Todos os casos, sem exceção, giraram em torno da questão das garantias
judiciais e da proteção judicial – ainda que não de forma principal -, em razão da
ausência de devido processo legal ou razoável duração do processo no tocante à punição
de responsáveis pelos crimes ensejadores das demandas.
1.3.1 Caso Ximenes Lopes
Em 22 de novembro de 1999 foi recebida pela CIDH a denúncia de nº 12.237. O
que viria a ser o primeiro caso brasileiro submetido à apreciação contenciosa da Corte
IDH – e sentenciado em desfavor do Estado Brasileiro – derivou-se de uma petição de
iniciativa individual.
Damião Ximenes Lopes, brasileiro, portador de doença psiquiátrica de baixa
gravidade, em virtude de mais uma crise da doença, tinha sido internado por sua mãe
em “hospício”, como ocorrido em diversas outras de suas crises. Entretanto, dessa
9
última vez, Damião viria a falecer na instituição, em razão de amplos maus tratos
sofridos durante sua internação para tratamento.
Apesar de datada de 1999, a denúncia somente foi encaminhada como demanda
para a competência da Corte IDH em 1º de outubro de 2004, após 5 anos de trâmite
perante a CIDH. O principal motivo da demora na evolução do caso se deu em razão da
ausência de cumprimento, por parte do Estado brasileiro, da expedição de informações
solicitadas pela Comissão, não tendo enviado nenhuma resposta até 9 de outubro de
2002.
A despeito de inicialmente tramitar perante a Comissão por violações aos artigos
4 e 5 da Convenção (direito à vida e direito à integridade física, respectivamente), o
caso chega à Corte com o acréscimo de violações aos artigos 8 e 25 da mesma
Convenção (direito às garantias judiciais e proteção judicial, respectivamente), em razão
da ineficiência do Estado Brasileiro na solução da causa em prisma interno.
Superando as questões preliminares, a Corte passou ao procedimento
contencioso do caso Ximenes Lopes vs. Brasil, cuja demanda foi recebida para
verificação de responsabilidade do Estado Brasileiro, pelas seguintes razões:
[...] pelas supostas condições desumanas e degradantes da sua
hospitalização; pelos alegados golpes e ataques contra a
integridade pessoal de que se alega ter sido vítima por parte dos
funcionários da Casa de Repouso Guararapes (doravante
denominada ‘Casa de Repouso Guararapes’ ou ‘hospital’); por
sua morte enquanto se encontrava ali submetido a tratamento
psiquiátrico; bem como pela suposta falta de investigação e
garantias judiciais que caracterizam seu caso e o mantém na
impunidade. [...]
Acrescentou a Comissão que os fatos deste caso se vêem
agravados pela situação de vulnerabilidade em que se encontram
as pessoas portadoras de deficiência mental, bem como pela
especial obrigação do Estado de oferecer proteção às pessoas
que se encontram sob o cuidado de centros de saúde que
integram o Sistema Único de Saúde do Estado.16
No julgamento, a Corte considerou que o Estado Brasileiro não acatou nenhuma
das pretensões sobre reparações e custas formuladas pela Comissão e representantes.
Em contraponto, o Estado Brasileiro alegou não ter ferido os artigos 8 (garantias
16
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes versus Brasil. Sentença de 04 de
julho de 2006. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>,
Acesso em 04 fev. de 2013.
10
judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção, pois adotou todas as medidas cabíveis
para a investigação e processamento do fato em âmbito interno. Entretanto, o Estado
reconheceu sua responsabilidade no tocante à violação ao direito à vida e integridade
física da vítima.
Assim, a sentença foi proferida no sentido de estabelecer um dever estatal de
observância das necessidades específicas de pessoas acometidas por doenças mentais,
dada sua extrema vulnerabilidade. O tratamento, para a Corte, deve ser realizado de
forma a atender ao melhor interesse do paciente, prezando sempre por sua dignidade e
autonomia, para que se reduza o impacto da doença e seja possível uma melhora na
qualidade de vida.
Pela relevância do tema sobre pessoas portadoras de deficiência mental, a Corte
também expande seu entendimento para a fixação de importante precedente
jurisprudencial fixando o direito ao “respeito à dignidade e à autonomia das pessoas
portadoras de deficiência mental e a um atendimento médico eficaz”, que se traduz em
duas vertentes: o direito aos cuidados mínimos e internação digna e a não recomendação
da sujeição, considerada medida extremamente agressiva.
Como corolários dos direitos fixados, a Corte determinou ainda deveres do
Estado quanto aos portadores de deficiência mental, quais sejam o dever de cuidar,
regular, fiscalizar e investigar, para prevenção e punição de violações.
Assim sendo, após a extensa análise de provas, a Corte conclui pela
responsabilização do Estado Brasileiro pela violação dos direitos de Damião Ximenes
Lopes e também de sua família. Veja-se:
[...] que por haver faltado com seus deveres de respeito,
prevenção e proteção, com relação à morte e os tratos cruéis,
desumanos e degradantes sofridos pelo senhor Damião Ximenes
Lopes, o Estado tem responsabilidade pela violação dos direitos
à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e
5.2 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse
mesmo tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes
Lopes.17
A Corte considera, com base no acima exposto, que o Estado
tem responsabilidade pela violação do direito à integridade
pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em
relação com o artigo 1.1 do mesmo tratado, em detrimento das
senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes
17
Sentença, § 150.
11
Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme
Ximenes Lopes.18
A Corte conclui que o Estado não proporcionou às familiares de
Ximenes Lopes um recurso efetivo para garantir o acesso à
justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação,
identificação, o processo e, se for o caso, a punição dos
responsáveis e a reparação das conseqüências das violações. O
Estado tem, por conseguinte, responsabilidade pela violação dos
direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados
nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com
o artigo 1.1 desse mesmo tratado, em detrimento das senhoras
Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda.19
A título de reparação, foram determinadas como partes lesadas o senhor Damião
Ximenes Lopes, bem como sua irmã Irene, sua mãe Albertina e seus irmão e pai,
destinando oitenta por cento do valor de indenização para divisão igualitária entre Irene
e Albertina e os restantes vinte por cento para divisão igualitária entre o irmão e o pai da
vítima.
A título de dano material, foram fixadas as seguintes reparações:
(i) em favor de Irene Ximenes Lopes Miranda, a quantia de US$ 41.850,00 a
título de perda de ingressos, por ter esta deixado seu emprego em razão da
causa;
(ii) em favor de Albertina Viana Lopes, a quantia de US$ 1.500,00 a título de
dano emergente, em razão dos gastos funerários e do transporte do corpo
para a necropsia.
Por dano imaterial, foram determinadas as seguintes reparações:
(i) em favor de Damião Ximenes Lopes, a quantia de US$ 50.000,00,
concedidas porque “não recebeu assistência médica nem tratamento
adequados como paciente portador de deficiência mental, que por sua
condição era especialmente vulnerável e foi submetido a tratamentos cruéis
desumanos e degradantes enquanto esteve hospitalizado na Casa de
Repouso Guararapes, situação que se viu agravada com sua morte”20,
distribuída pela proporção fixada entre sua mãe, irmã, irmão e pai;
(ii) em favor de Albertina Viana Lopes, a quantia de US$ 30.000,00 em razão
do “profundo sofrimento e angústia que lhe causou ver a situação deplorável
18
Id., § 163.
Id., § 206.
20
Sentença, § 237, “a”.
19
12
em que se encontrava seu filho na Casa de Repouso Guararapes e seu
conseqüente falecimento; e as seqüelas físicas e psicológicas posteriormente
produzidas”21;
(iii) em favor de Irene Ximenes Lopes Miranda o valor de US$ 25.000,00, pelo
sofrimento causado pela morte de seu irmão e todos os transtornos
decorrentes dos processos em âmbito nacional e internacional por ela
acompanhados;
(iv) em favor de Francisco Leopoldino Lopes (pai) e Cosme Ximenes Lopes
(irmão), o valor de US$ 10.000,00 para cada, quanto ao pai pelo sofrimento
com a morte do filho e quanto ao irmão pelas consequências psicológicas
desencadeadas pela morte da vítima.
No tocante às medidas de satisfação e garantias de não repetição, a Corte
estabeleceu três medidas principais:
(i) Obrigação de investigar os fatos que geraram as violações averiguadas no
caso, a fim de garantir aos familiares da vítima o conhecimento da verdade
dos fatos e por constituir “forma de esclarecimento fundamental para que a
sociedade possa desenvolver mecanismos próprios de desaprovação e
prevenção de violações como essas no futuro”22, buscando ainda reparar a
impunidade verificada no caso após os seis anos do fato;
(ii) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande
circulação, por uma vez no prazo de seis meses;
(iii) Estabelecimento de programas de capacitação “para o pessoal médico, de
psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem
como para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em
especial sobre os princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido às
pessoas portadoras de deficiência mental, de acordo com as normas
internacionais sobre a matéria e as dispostas nesta Sentença” 23;
(iv) A Corte considerou que a sentença, com análise de mérito e das
consequências dos fatos por si só consiste em forma de reparação à família
da vítima e também uma forma de contribuir para que os fatos não se
repitam.
21
Id., § 237, “b”.
Id., § 245.
23
Sentença, § 250.
22
13
A título de custas, fixou a quantia de US$ 10.000,00 a fim de que fossem
ressarcidos os gastos da família de Damião Ximenes Lopes e também do Centro de
Justiça Global, organização que a representou.
Determinou-se, ainda, que o cumprimento das obrigações de pagamento, pelo
Estado, deveriam ser realizadas em dinheiro, no prazo de um ano da notificação da
sentença, diretamente aos beneficiários, em dólares ou seu equivalente em reais, sem
qualquer dedução ou redução. Em caso de mora, concedeu-se a correção por juros no
equivalente bancário brasileiro. Quanto à efetivação das demais medidas, estabeleceu-se
o prazo específico determinado pela sentença ou o “prazo razoável” para seu
cumprimento.
As reparações pecuniárias contra o Estado Brasileiro foram cumpridas dentro do
prazo da sentença, através do Decreto 6.185, de 13 de agosto de 2007, com os valores
publicados convertidos em reais. A sentença, porém, como se verifica, não garantiu o
real cumprimento das obrigações em “prazo razoável” no tocante às questões
processuais.
No âmbito cível, a ação foi julgada em primeiro grau e em apelação somente no
ano de 2010 (mais de quatro anos após a sentença da Corte), confirmando a condenação
dos sócios da Casa de Repouso Guararapes ao pagamento de R$ 150.000,00 pela morte
de Damião Ximenes à sua mãe, Albertina.
A sentença de mérito da causa penal, esta iniciada no ano de 2000, foi proferida
apenas em 29 de junho de 2009, mais de nove anos de seu início e após mais de três
anos da sentença da Corte IDH, reconhecendo a culpabilidade dos réus pelo crime de
maus tratos qualificado pelo resultado morte, atribuindo-lhes pena de seis anos de
reclusão.
Entretanto, houve apelação, pelos réus. É apenas em 27 de novembro de 2012
que o processo penal é julgado definitivamente, resultando no reconhecimento da
extinção de punibilidade por prescrição, em razão da desclassificação do crime de maus
tratos qualificado pelo resultado morte para maus tratos simples. A Segunda Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará considerou não existirem indícios
suficientes da morte em razão única e exclusiva dos maus tratos, declarando as perícias
e necropsias realizadas no cadáver de Damião Ximenes como inconclusivas no tocante
às lesões que por ele teriam sido sofridas, desclassificando o crime para maus tratos
14
simples. É o que se verifica no excerto de acórdão publicado no Diário de Justiça do
Ceará24:
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DELITO DE MAUS
TRATOS QUALIFICADO PELO RESULTADO MORTE.
AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO NEXO DE
CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA DOS ACUSADOS E
O ÓBITO DA VÍTIMA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O
CRIME DE MAUS TRATOS SIMPLES. PRESCRIÇÃO EM
ABSTRATO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. Inexistindo
provas suficientes, imperiosa se torna a desclassificação do
crime de maus-tratos qualificado pelo resultado morte (art. 136,
§ 2º, do CPB) para sua forma simples (art. 136, caput, do CPB),
em virtude da ausência de alicerce probatório capaz de
evidenciar o nexo de causalidade entre as condutas dolosas
(expor a perigo a vida ou a saúde) e o resultado culposo
(óbito). 2. As duas necropsias realizadas no ofendido (uma delas
pós-exumática) não foram capazes de atestar a causa mortis,
constando das conclusões dos laudos ‘’(...) tratar-se de morte
real de causa indeterminada (...)’. O auto de exame cadavérico
pós-exumático chega mesmo a descrever que "(...) o crânio
apresentava integridade de todos os seus ossos. Os demais ossos
deste corpo também não apresentam fraturas (...)’. 3. Outrossim,
tendo em vista o frágil estado de saúde do ofendido, que, antes
da entrada na casa de repouso, já não vinha se alimentando
direito e nem dormindo ou tomando sua medicação, existe a
possibilidade considerável da vítima ter falecido por
enfermidade pré-existente ao internamento, o que
representaria concausa absoluta ou relativamente
independente (art. 13, caput e § 1º, do CPB), excluindo o
nexo de causalidade da conduta dos acusados em relação ao
óbito. 4. A indeterminação pericial da causa da morte e a
possibilidade concreta da existência de concausa
independente, envolvendo circunstâncias que não estavam
na linha de desdobramento físico das ações e omissões
imputadas aos acusados, por força do princípio do ‘in dubio
pro reo’, excluem a responsabilidade pelo resultado,
restando somente a responsabilização pelos pelos atos
praticados. 5. Operada a desclassificação, há que se reconhecer
restar configurada, nos termos do art. 109, inciso V, da Lei
Penal Codificada, a prescrição em abstrato da pretensão
punitiva, uma vez que a pena máxima prevista para o delito
do art. 136, caput, do CPB, é de 01 (um) ano de detenção. É
que, da data do recebimento da denúncia (07/04/2000) até a
data da publicação da sentença (29/06/2009), transcorreram
mais de 04 (quatro) anos. 6. Apelo parcialmente provido,
todavia, reconhecendo-se de ofício a extinção da
24
DJCE, 30/11/2012, Caderno 2 – Justiça, pág. 64.
15
punibilidade. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os
presentes autos de apelação-crime, acorda a Turma Julgadora da
Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do
Ceará, sem divergência de votos, em conhecer do recurso, por
ser próprio e tempestivo, para dar-lhe parcial provimento,
reconhecendo-se de ofício a extinção da punibilidade, tudo nos
termos do voto do relator. (grifo nosso, supressão no original)
É de se concluir, portanto, que, apesar de terminadas as investigações e a
apuração de responsabilidade, a sentença da Corte não foi capaz de garantir a
condenação penal dos responsáveis pela violação de forma integral, nem mesmo
conseguiu concretizar, em prazo razoável, a conclusão das investigações acerca da
responsabilidade pelos fatos. Ademais, o papel supervisional da Corte se restringiu a
três resoluções25 de avaliação das medidas adotadas pelo Estado e cumprimento ou não
das reparações, realizados com base em troca de ofícios com o Brasil acerca do
andamento dos processos judiciais bem como sobre o pagamento das reparações
pecuniárias.
1.2.2 Caso Nogueira de Carvalho e outro
Em 11 de dezembro de 1997 a CIDH recebeu a denúncia de nº 12.508, que seria
submetida à jurisdição da Corte IDH em 13 de janeiro de 2005, originária de petição
interposta por três grupos de defesa dos direitos humanos, de âmbito nacional e
internacional26.
A causa versou sobre a responsabilidade do Estado Brasileiro pela morte do
advogado Gilson Nogueira de Carvalho, que militava no Rio Grande do Norte contra a
impunidade, especialmente na denúncia das atividades criminais de grupos de
extermínio formados por policiais militares.
Ainda perante a Comissão, houve apenas uma comunicação do Estado
Brasileiro, informando que o processo penal originário se encontrava em fase de
pronúncia. Nos próximos anos de tramitação da petição, porém, não houve respostas e a
CIDH considerou o esgotamento implícito dos recursos internos quando da submissão
da causa à Corte IDH.
25
Em 02 de maio de 2008, em 21 de setembro de 2009 e em 17 de maio de 2010.
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal (CDHMP), Holocaust Human Project e
Group of International Human Rights Law Students. O caso foi iniciado pelos pais da vítima, com o
auxílio da Justiça Global.
26
16
Apesar do acervo probatório, sendo esse basicamente testemunhal, a Corte
considerou-o limitado, decidindo pela não comprovação da responsabilidade do Estado
Brasileiro por violação aos artigos 8 e 25 da Convenção (garantias judiciais e proteção
judicial), arquivando a demanda.
1.2.3 Caso Escher e outros
Em 20 de dezembro de 2007 foi recebida pela Corte a demanda originária da
Comissão, de número 12.353, iniciada em 26 de dezembro de 2000, referente ao caso
denominado Escher e outros vs. Brasil. A petição que tramitou perante a Comissão teve
sua origem graças às organizações Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. e
Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais. Posteriormente entraram na causa
diversas entidades como representantes das vítimas, incluindo-se o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e novamente a Justiça Global. A causa foi
julgada em definitivo na data de 06 de julho de 2009.
O caso foi submetido à Corte especialmente por se tratar de “oportunidade
valiosa para o aperfeiçoamento da jurisprudência interamericana sobre a tutela do
direito à privacidade e do direito à liberdade de associação, assim como os limites do
exercício do poder público”27, versando sobre as garantias judiciais (art. 8.1), proteção
da honra e da dignidade (art. 11), liberdade de associação (art. 16) e proteção judicial
(art. 25), além das violações à obrigação de respeito ao Pacto de San José.
A causa versou sobre a interceptação ilegal de linhas telefônicas dos dirigentes
das associações conectadas ao MST, fundada em decisão judicial desfundamentada e a
requerimento de autoridades policiais, cujas gravações posteriormente foram fornecidas
à imprensa brasileira e reproduzidas por esta em meio escrito e audiovisual.
A Corte decidiu pelo rol de vítimas como composto por Arlei José Escher,
Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni,
alguns deles ouvidos na ocasião da audiência pública realizada em 2008.
Em referência ao art. 11 da Convenção (proteção da honra e dignidade),
considerou-se, conforme precedentes da Corte, o sigilo de ligações telefônicas como
27
Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Escher e outros versus Brasil. Sentença de 06 de
julho de 2009. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_200_por.pdf>.
Acesso em 04 fev. 2013.
17
uma derivação do próprio direito à vida privada consignado no dispositivo
convencional, asseverando:
[...] o artigo 11 aplica-se às conversas telefônicas
independentemente do conteúdo destas, inclusive, pode
compreender tanto as operações técnicas dirigidas a registrar
esse conteúdo, mediante sua gravação e escuta, como qualquer
outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o
destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que
ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e
duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados
sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da
gravação das conversas. Finalmente, a proteção à vida privada
se concretiza com o direito a que sujeitos distintos dos
interlocutores não conheçam ilicitamente o conteúdo das
conversas telefônicas ou de outros aspectos, como os já
elencados, próprios do processo de comunicação.”28 (grifo
nosso)
Avançou, ainda, no sentido da proteção à honra e reputação do indivíduo, cujo
teor valorativo decorre diretamente de sua conduta perante a sociedade.
Em extensa análise do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente quanto às
normas aplicáveis à interceptação telefônica, a Corte considerou que não foram
observados os requisitos constantes do próprio ordenamento interno brasileiro para a
instauração da vigilância questionada, qualificando a ilegalidade da mesma, concluindo
pela violação, pelo Brasil, do direito à vida privada das vítimas. Decidiu, ainda, que em
razão da divulgação dos resultados das escutas, operou-se também violação aos direitos
à vida privada, à honra e à reputação das vítimas.
A respeito do direito à liberdade de associação, a Corte decidiu no sentido de a
interceptação telefônica realizada sobre as ligações das vítimas interferiram diretamente
em seu direito de associar-se, na medida em que a divulgação de seu teor afetou as
atividades desenvolvidas pelas instituições que integravam, impingindo-lhes grande
temor.
Quanto às questões judiciais, decidiu a Corte pela procedência das violações no
âmbito processual penal pela ausência de atuação do Estado Brasileiro com a devida
diligência nos atos investigativos. No mesmo sentido, quanto aos procedimentos
administrativos, considerou a inexistência de atuação do Estado no sentido da
28
Sentença, § 118.
18
responsabilidade
administrativa
pela
fundamentação/justificação
das
medidas
determinantes à instalação das escutas telefônicas. Quanto às ações civis e ao mandado
de segurança que versaram sobre os fatos, não considerou haver nenhuma violação.
Ainda na análise de pedidos, decidiu a Corte pela inexistência de violação à
cláusula federal (art. 28 da Convenção) em relação aos artigos 1 e 2 do mesmo tratado.
Assim, determinadas as violações, procedeu o Tribunal à fixação das reparações
dos danos por elas causados.
A respeito do dano material, não foram fixados valores reparativos por ausência
de prova de prejuízos às associações envolvidas nos fatos, não constando dos autos
estimativa de valores prejudicados em razão da divulgação do conteúdo da
interceptação.
A título de dano imaterial, em razão das circunstâncias do caso, foi fixado o
valor de U$S 20.000,00 para cada uma das vítimas, a ser pago diretamente às mesmas e
em prazo de um ano. Novamente, como no caso Ximenes Lopes, considerou-se a
sentença uma forma de reparação per se.
Como garantias de não repetição, foram fixadas as seguintes medidas:
(i) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande
circulação bem como jornal de grande circulação no Paraná, por uma vez no
prazo de seis meses, bem como em site web dentro do prazo de dois meses;
(ii) Reconhecimento público da responsabilidade internacional;
(iii) Dever de investigar os fatos que resultaram na causa.
A demanda da Comissão de revogação da Lei nº 15.662/07 (do Estado do
Paraná) foi indeferida por ter a Corte a considerado inadequada à reparação da causa,
assim como o pleito de capacitação das autoridades investigativas brasileiras na medida
em que já existente programa com mesma finalidade.
A título de ressarcimento de custas processuais, fixou-se o valor de U$S
10.000,00, pago a cada vítima.
Em referência ao cumprimento das obrigações estabelecidas pela sentença, o
Estado Brasileiro realizou o pagamento às vítimas da causa através do Decreto nº 7.158
de 20 de abril de 2010, dentro do prazo de um ano fixado na decisão. A publicação da
sentença se deu no jornal “O Globo” de 23 de julho de 2010, no jornal “Correio
Paranaense” de 10 de agosto de 2010 e no Diário Oficial de 27 de setembro de 2010.
A respeito das investigações, alegou o Estado Brasileiro a ocorrência da
prescrição dos fatos, argumento acatado pela Corte. A supervisão, assim, foi concluída
19
em 19 de junho de 2012, em sua segunda resolução sobre o caso, três anos após o
sentenciamento.
Evidentemente que a Corte não pode, sob pena de violar as próprias garantias da
Convenção, coagir o Estado a cumprir investigação de fato já prescrito, mas essa
questão é mais uma demonstração da fragilidade do sistema e sua completa dependência
aos procedimentos internos. No caso, resta cristalina a não concretização das
investigações e consequente ausência de desfecho, às vítimas, acerca da verdade dos
fatos, pela própria morosidade da Justiça brasileira. Pode-se considerar, dessa forma,
que apesar de dada por concluída a supervisão da sentença, essa não alcançou sua
máxima efetividade.
1.2.4 Caso Garibaldi
Na data de 06 de maio de 2003 foi recebida, pela Comissão, a denúncia de nº
12.478, versando sobre as violações de direito praticadas pelo Brasil em face das
investigações do assassinato de Sétimo Garibaldi, no ano de 1998. A demanda foi
submetida à Corte em 24 de dezembro de 2007 e teve sua sentença prolatada quase dois
anos depois, em 23 de setembro de 2009. A petição foi originada através da
representação de diversas organizações, a exemplo da Justiça Global, Rede Nacional de
Advogados e Advogadas Populares e MST.
Sétimo Garibaldi, que participava de uma ocupação do MST em uma
propriedade no interior do Estado do Paraná, faleceu em decorrência de ataque ao
acampamento onde se encontrava.
Pela Comissão, foram alegadas as violações aos artigos 8 (garantias judiciai) e
25 da Convenção (proteção judicial), incluindo ainda a violação ao art. 1º na medida do
descumprimento de observância dos direitos consagrados em seu bojo.
A respeito da violação às garantias judiciais, decidiu a Corte pela sua
procedência, na medida em que o Estado não cumpriu com diligência seu dever
investigativo, concluindo que o lapso de mais de cinco anos de investigação em âmbito
interno ultrapassou excessivamente o prazo razoável, caracterizando uma denegação de
justiça aos familiares da vítima29 e a consequente responsabilidade pela violação dos
direitos constantes dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção.
29
Sentença, § 139.
20
Quanto à violação à cláusula federal (art. 28) alegada pela Comissão, esta foi
denegada na mesma linha do caso Escher e outros.
A título de reparação, no tocante às medidas de satisfação e garantias de não
repetição, a Corte determinou ao Brasil:
(i) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande
circulação bem como jornal de grande circulação no Paraná, por uma vez no
prazo de seis meses, bem como em site web dentro do prazo de dois meses,
pelo período de um ano;
(ii) Dever de investigar os fatos que resultaram na causa e proceder
administrativamente para investigação e sanção das faltas possivelmente
cometidas pelos agentes legais.
Foram negados os requerimentos da Comissão e dos representantes acerca do
reconhecimento público da responsabilidade internacional por não haver violação
aplicável às vítimas, assim como o pedido de revogação da Lei nº 15.662/0730 (do
Estado do Paraná), por não ser demonstrada a violação aos preceitos da Convenção.
Também foi denegado o pedido de cumprimento ao art. 10 do Código de Processo Penal
Brasileiro, na medida em que a Corte não pode influenciar em investigações das quais
não tenha conhecimento. Por fim, quanto às outras medidas de reparação solicitadas à
Corte, referentes a uma política para os trabalhadores sem terra, estas também foram
denegadas pelo mesmo motivo de se encontrarem além da esfera de avaliação de mérito
do Tribunal.
A título de dano material e imaterial foram fixados os seguintes valores:
(i) U$S 1.000,00 em benefício de Iracema Garibaldi, a título de danos materiais
sofridos em razão dos gastos com a busca de apoio de seus familiares ao
caso;
(ii) U$S 50.000,00 em favor de Iracema Garibaldi pelo sofrimento psicológico,
angústia e incerteza, sofridos pela negação de justiça pelo homicídio de
Sétimo Garibaldi;
(iii) U$S 20.000,00 em favor de cada um dos seis filhos de Sétimo e Iracema
Garibaldi, pelos mesmos motivos explanados no item (ii).
30
Saliente-se que a Lei nº 15.662/07 promulgada pelo Estado do Paraná também foi suscitada no caso
Escher e outros. Essa lei concedeu, à Juíza Elisabeth Khater, o status de cidadã honorária do Estado do
Paraná.
21
Como custas e gastos, foram estabelecidos U$S 8.000,00 a serem pagos a
Iracema Garibaldi, englobando possíveis gastos futuros derivados da causa.
O pagamento dos valores reparatórios e de custas foi efetuado através do
Decreto nº 7.307 de 22 de setembro de 2010, atualizado em reais, na véspera de
completar-se um ano da sentença da Corte.
Quanto às medidas de investigação, conforme resolução de supervisão de
sentença datada de 20 de fevereiro de 2010 e, portanto quase três anos após a mesma,
reiterou a necessidade do Estado Brasileiro em “conduzir eficazmente e dentro de um
prazo razoável o inquérito e qualquer processo que chegar a abrir, como consequência
deste, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor
Garibaldi [...]”, ao verificar que as medidas investigativas ainda encontravam-se
insuficientes à solução da causa. Desde então, porém, não foi efetivada qualquer
resolução nova acerca da causa, permanecendo a mesma supervisionada pelo
descumprimento acima relatado.
Atualmente, a causa penal acerca da morte de Sétimo Garibaldi encontra-se,
ainda, à espera de solução perante o Superior Tribunal de Justiça, em grau de Recurso
Especial31, relativamente à discussão do trancamento da ação promovida por habeas
corpus pela defesa do acusado, ainda no ano de 2012.
1.2.5 Caso Gomes Lund e outros
Talvez a principal causa brasileira já tramitada perante a Corte Interamericana
seja o caso Gomes Lund e outros, mais conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Ao
contrário das demais causas sentenciadas brasileiras, a principal matéria em discussão
não era a violação de garantias judiciais e proteção judicial, apesar de também
constantes do rol de direitos não observados pelo Estado Brasileiro. Em contrário, o
destaque da causa se deve essencialmente por trazer à tona a discussão sobre os atos
cometidos pelo Estado Brasileiro durante o período da Ditadura Militar, bem como
discutir a Lei de Anistia32, sendo o primeiro caso, na Corte, a avaliar as violações de
direitos ocorridas nesse período, bem como a reconhecê-las como responsabilidade do
Estado.
31
32
Desde 24 de dezembro de 2012 o Recurso Especial de nº 1351177 encontra-se concluso ao relator.
Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979.
22
O caso em comento iniciou-se em 06 de março de 2001, sob petição (de nº
11.552) de duas reconhecidas organizações de defesa dos direitos humanos: CEJIL
(cuja sigla em português é traduzida para Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e
Human Rights Watch, especificamente seu escritório pertinente às Américas. A
submissão à Corte, entretanto, ocorreu apenas em 26 de março de 2009.
Requereu, a Comissão, o reconhecimento de uma série de violações a direitos
pelo Estado Brasileiro em referência às operações do Exército para combate à Guerrilha
do Araguaia. Consoante consta do parágrafo de nº 2 da sentença:
[...] responsabilidade [do Estado] pela detenção arbitrária,
tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros
do Partido Comunista do Brasil […] e camponeses da região,
[…] resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas
entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do
Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–
1985)”. A Comissão também submeteu o caso à Corte porque,
“em virtude da Lei No. 6.683/79 […], o Estado não realizou
uma investigação penal com a finalidade de julgar e punir as
pessoas responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70
vítimas e a execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva
[…]; porque os recursos judiciais de natureza civil, com vistas a
obter informações sobre os fatos, não foram efetivos para
assegurar aos familiares dos desaparecidos e da pessoa
executada o acesso a informação sobre a Guerrilha do Araguaia;
porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo
Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à
informação pelos familiares; e porque o desaparecimento das
vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade
dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à
informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos
familiares dos desaparecidos e da pessoa executada”. A
Comissão solicitou ao Tribunal que declare que o Estado é
responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos
3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4
(direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à
liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de
pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial), da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão
com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de
respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar
disposições de direito interno) da mesma Convenção. (grifo
nosso)
A primeira seção da sentença dedicou-se aos direitos de reconhecimento de
personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoais, combinadas à
23
obrigação geral do Estado de respeito aos direitos convencionais. A Comissão alegou
que o desaparecimento forçado é crime contra a humanidade e o Estado Brasileiro agiu
deliberadamente para que ocorresse o desencontro de informações para não-localização
das vítimas. O Brasil não retrucou sua responsabilidade, reconhecendo historicamente a
ocorrência dos fatos.
Traçando um panorama dos desaparecimentos forçados durante a ditatura militar
brasileira, bem como sobre a atuação da Guerrilha do Araguaia e as ações do governo
brasileiro durante e após os fatos, a Corte concluiu pela responsabilidade do Estado
Brasileiro pela violação aos direitos supramencionados em razão dos desaparecimentos
forçados.
Passando-se à análise da violação às garantias e proteção judiciais, a Corte
analisou a causa sob a ótica da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979)33. A Comissão
asseverou que a investigação e punição pelos desaparecimentos forçados foram
impedidas em função de tal Lei e que esta não poderia, em nenhuma medida, impedir
que o Estado cumprisse a obrigação de processamento de responsáveis por violações
aos direitos humanos. A Lei foi defendida pelo Estado Brasileiro em razão da
bilateralidade de sua anistia. A Corte concluiu, em consonância à sua ampla
jurisprudência sobre análises análogas de outros Estados34, que devido à aplicação e
interpretação da Lei de Anistia, estas sem efeitos jurídicos, o Brasil violou os direitos
contidos no art. 8 e 25 da Convenção, bem como seu dever de adequar a sua legislação à
mesmo, proporcionando a ausência de investigação, processamento e punição dos fatos.
Quanto à liberdade de pensamento e de expressão, a Comissão sustentou a
existência de restrição indevida ao direito de acesso à informação, considerando o
desinteresse do Estado em fornecer informação acerca das violações de direitos
humanos por ele cometidas, entre as circunstâncias das ações promovidas pelos
familiares dos integrantes da Guerrilha e a constante recusa de entrega de documentos
esclarecedores.
A respeito da integridade pessoal, definiu-se a existência de violação à
integridade das vítimas e de parte de seus familiares.
33 Em 29 de abril de 2010, o STF, no julgamento da ADPF nº 153, decidiu pela recepção da Lei de
Anistia pela Constituição Federal de 1988, ressalvando-se “o desembaraço dos mecanismos que ainda
dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura”.
Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf>. Acesso em
20 mar. 2013.
34
A exemplo de Argentina, Chile etc. (casos Barrios Altos, Almonacid Arellano e Goiburú, dentre
outros).
24
No tocante às reparações estabelecidas, em face à sua quantidade, cabe
transcrever parte da sentença que as fixou e condensou:
8.
Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação.
9.
O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição
ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim
de
esclarecê-los,
determinar
as
correspondentes
responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e
consequências que a lei preveja, em conformidade com o
estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença.
10. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar
o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso,
identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em
conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da
presente Sentencia.
11. O Estado deve oferecer o tratamento médico e
psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o
caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o
estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença.
12. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em
conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente
Sentença.
13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento
de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do
presente caso, em conformidade com o estabelecido no
parágrafo 277 da presente Sentença.
14. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em
matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável,
um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos
humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças
Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo
283 da presente Sentença.
15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas
que sejam necessárias para tipificar o delito de
desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os
parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no
parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com
esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que
garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em
relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado
através dos mecanismos existentes no direito interno.
16. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de
busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre
a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a
violações de direitos humanos ocorridas durante o regime
militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo
292 da presente Sentença.
17. O Estado deve pagar as quantias fixadas nos parágrafos
304, 311 e 318 da presente Sentença, a título de indenização
25
por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas
e gastos, nos termos dos parágrafos 302 a 305, 309 a 312 e 316
a 324 desta decisão.
18. O Estado deve realizar uma convocatória, em, ao menos,
um jornal de circulação nacional e um da região onde
ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra
modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses,
contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das
pessoas indicadas no parágrafo 119 da presente Sentença
aportem prova suficiente que permita ao Estado identificá-los
e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei
No. 9.140/95 e desta Sentença, nos termos do parágrafo 120 e
252 da mesma.
19. O Estado deve permitir que, por um prazo de seis meses,
contado a partir da notificação da presente Sentença, os
familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias
de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de
Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam
apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de
indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos
no direito interno pela Lei No. 9.140/95, conforme os termos do
parágrafo 303 da presente Sentença.
Diante da inexistência, ainda, de resolução relativa ao cumprimento das
reparações supra transcritas, não será possível vencer alguns pontos.
Como consequência dessa causa, em 18 de novembro de 2011 foram
sancionadas as Leis 12.527 e 12.528. A primeira, com a finalidade de regulamentar o
acesso à informação constante de órgãos públicos. A segunda, relativa à criação da
Comissão da Verdade, que perpassa diretamente a obrigação do Estado Brasileiro em
investigar os fatos e atribuir responsabilidade pelos desaparecimentos forçados da
Guerrilha do Araguaia.
A Comissão da Verdade tem por objetivo esclarecer os fatos relacionados aos
crimes praticados contra militantes sob a vigência da Ditadura Militar no Brasil. Mais
especificamente quanto ao Caso Gomes Lund, vem atuando com a intenção de
identificar as vítimas (sua localização e também de seus restos mortais) dos
desaparecimentos forçados da Guerrilha do Araguaia. Atua, de mesmo modo, na
identificação dos agentes causadores das violações. Também a fim de localizar os
corpos, foi criado o Grupo de Trabalho Tocantins, posteriormente renomeado para
Grupo de Trabalho Araguaia, que trabalha com a análise de documentos públicos e
expedições de busca.
26
Em relatório submetido à Corte e efetuado pela Procuradoria Geral do Brasil35,
também foram narradas diversas ações judiciais (ressaltem-se as ações civis públicas
promovidas pelo Ministério Público) que visam à responsabilização pelos fatos e
solicitação de indenização por parte dos familiares das vítimas.
A respeito do tratamento médico e psicológico, o Brasil alegou a cobertura do
Serviço Único de Saúde (SUS) aos familiares das vítimas.
Já no tocante às publicações, conforme o relatório acima citado, ambas foram
realizadas e a sentença também foi disponibilizada on-line em site específico.
A sentença, com os nomes dos capítulos e subtítulos – sem as
notas de rodapé –, e sua parte resolutiva foi publicada
integralmente no Diário Oficial da União em 15 de junho de
2011. O resumo da sentença foi publicado no jornal O Globo em
15 de junho de 2011.
A pedido dos familiares das vítimas, o ato público de responsabilização não foi
efetivado pelo Estado Brasileiro.
A título da obrigação de instituição de programa de direitos humanos nas forças
armadas, o mesmo foi elaborado, mas ainda encontra-se em fase inicial perante o
Ministério da Defesa.
Por fim, quanto à tipificação do crime de desaparecimento forçado, foram
demonstradas as tramitações de dois projetos de Lei e da Convenção Americana sobre o
Desaparecimento Forçado de Pessoas. Não há, ainda, porém, uma definição concreta do
tipo penal nem mesmo sua incorporação definitiva ao direito interno.
2 A (IN)EFICÁCIA DA IMPLEMENTAÇÃO DAS SENTENÇAS DA CORTE
IDH NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA
Como visto caso a caso em capítulo anterior, as sentenças da Corte
Interamericana já proferidas contra o Estado Brasileiro não podem ser consideradas
como efetiva e integralmente cumpridas, por diversos motivos. Saliente-se que o
cumprimento integral da sentença é dever do Estado perante o Sistema Interamericano,
conforme disposição expressa do art. 68.1 da Convenção, apesar de os meios internos
35
Disponível em <http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/
relatorios-1/Escrito%2014%20de%20dezembro%20de%202011.pdf>. Acesso em 20 mar. 2013.
27
de sua concretização serem estabelecidos com certa liberdade pelo Estado
responsabilizado.
A exemplo do Caso Ximenes Lopes, cuja conclusão ocorreu após seis anos de
sentenciamento pela Corte e com a finalização das investigações penais no sentido de
reconhecimento da prescrição, não há como se reconhecer uma contribuição positiva do
Sistema Interamericano para o resultado definitivo nesse espeque. Evidencia-se, de
pronto, que a morosidade do sistema processual brasileiro continuou prevalecendo
mesmo após a responsabilização do Estado.
O mesmo se pode afirmar quanto ao caso Escher, cujo resultado definitivo foi
apenas verificável em 2012, três anos após a sentença da Corte, e que culminou com o
reconhecimento da prescrição, impedindo a própria reabertura da investigação dos fatos.
Também há de se destacar que o caso Garibaldi se encontra ainda sem desfecho,
permanecendo a supervisão de sua sentença em aberto, justamente em relação ao não
cumprimento integral da obrigação de investigação dos fatos, mesmo após três anos de
sentenciamento.
Mesmo quanto ao caso Gomes Lund e outros, com pouco mais de dois anos de
sentenciamento, este não foi, ainda, sequer submetido ao sistema de supervisão de
sentenças, não constando quaisquer relatórios ou resoluções da Corte a seu respeito.
Inicialmente, em se tratando de um país marcado pelo sistema judiciário pouco
eficiente36, e em um contexto de causas submetidas à Corte relativas essencialmente às
garantias judiciais, não se pode falar em efetividade de decisões. O Brasil,
reconhecidamente marcado por uma estrutura judiciária deficiente, abriga uma infeliz
tradição de violação ao princípio da razoável duração do processo, destacando-se
principalmente a lentidão de investigações penais.
A simples determinação sentencial, aliada a um sistema supervisional das
medidas ainda fragilizado, não possui o condão de impulsionar o funcionamento do
processo judiciário brasileiro, não surtindo os efeitos esperados dentro do prazo
36
A morosidade do Judiciário brasileiro traduz-se na insatisfação de seus protagonistas. Em pesquisa de
satisfação realizada pelo CNJ no ano de 2011, com a participação de mais de dezoito mil usuários da
Justiça dentre partes e advogados e em todo o Brasil, 56,7% dos entrevistados afirmou que os processos
nunca são concluídos no prazo previsto pela Legislação, enquanto 30,3% afirmaram que em poucas vezes
isso ocorria. A insatisfação evidencia-se, portanto, em alcance de mais de 86% dos usuários dos sistemas
judiciários brasileiros. Na mesma pesquisa, em relação aos magistrados, dos 803 profissionais
participantes, 80,3% deles respondeu que o volume de trabalho atribuído não permite a conclusão dos
processos no prazo legal. Dados do CNJ. Disponível em < http://www.cnj.jus.br/gestao-eplanejamento/gestao-e-planejamento-do-judiciario/pesquisa-de-satisfacao-e-clima-organizacional>.
Acesso em 19 mar. 2013.
28
esperado, o prazo “razoável”. Ainda que encerrados os procedimento de supervisão de
sentença, pela Corte, com o reconhecimento de cumprimento das medidas, é essencial
distinguir o cumprimento “possível” do cumprimento “devido”.
As determinações da Corte em face da República Brasileira visam à reparação
dos danos de forma ampla, atingindo diretamente a reintegração da dignidade da vítima
e o direito de conhecimento da verdade dos fatos. Não se busca uma condenação que
ultrapasse os limites do devido processo legal, mas uma verdadeira investigação que
resulte na descoberta da verdade da causa, com atribuição da responsabilidade
individual de agentes e/ou pessoas envolvidas.
Naturalmente, a condenação penal e/ou administrativa aplicáveis serão
decorrentes da investigação adequada, na medida em que conhecidos os fatos e
determinada a culpabilidade dos sujeitos ativos das violações. Exigir-se a condenação,
porém, não contempla a análise da causa sob o prisma do devido processo legal.
Assim, permanece a Corte refém da concretização de suas imposições em
âmbito interno, dependente da transformação de um sistema processual lento em um
sistema obediente ao princípio do processo de duração razoável. E isso não se verifica,
pela própria evidência dos casos de responsabilização sofridos pelo Brasil.
A cultura jurídica brasileira de supremacia constitucional ainda apresenta
entraves à evolução da integração ao Sistema Interamericano e demais sistemas
internacionais,
pouco
valorizando
a
estrutura
supranacional
normativa
e
jurisdicionalmente.
A mera existência da obrigatoriedade de implementação das sentenças da Corte
IDH – decorrente da submissão voluntária à sua jurisdição – não possui “força” apta a
combater, por si só, essa cultura tão enraizada na sociedade brasileira,
consequentemente não garantindo sua efetividade plena.
O papel do Sistema Interamericano, todavia, não é de todo inócuo perante o
Estado Brasileiro. Evidentemente que as recomendações da Comissão e decisões da
Corte encontram obstáculos graves à sua concretização no plano da realidade fática,
mas o mero processamento das demandas possui um papel educativo fundamental para
a própria transformação dessa “resistência” da ordem jurídica brasileira à intervenção
internacional.
E, ressalte-se, não apenas um papel educativo, mas também uma influência
possivelmente formadora de jurisprudência interna consoante aos julgados da Corte,
resultante na internalização gradual do Sistema.
29
A maior dificuldade das mudanças graduais é, por essa razão, a satisfação das
causas já julgadas.
A necessidade de uma política de supervisão de sentenças mais ativa é também
responsável por parte dessa morosidade no cumprimento de decisões. Das causas
narradas no tópico anterior, demonstrou-se uma média de duas resoluções de supervisão
por causa, em lapsos de duração de dois a seis anos, extremamente intercalados.
A ausência de uma política de sanções ao descumprimento de sentenças e
resoluções também se revela fundamental para o desvalor das mesmas pelo EstadoParte, notadamente o Brasil. Em um sistema pouco tradicional de integração
supranacional como o americano, o estabelecimento de sanções tem papel educativo
fundamental para o enraizamento de seus preceitos.
Ainda que a sanção apresente-se em perspectiva, e não concretamente, a sua
simples previsão já possui caráter iminentemente preventivo às condutas violadoras,
uma vez que a possibilidade de punição atua sobre o Estado como forma de influência
em suas decisões políticas.
2.1 Soluções ao descumprimento de sentenças
Como já salientado, o Sistema Interamericano necessita estabelecer mecanismos
mais concretos de atuação quanto ao descumprimento das sentenças da Corte respectiva.
Considerando-se que, para a sentença ser proferida, na maior parte dos casos, já
houve a tramitação do processo perante a Comissão e presume-se o descumprimento das
recomendações por ela emitidas, a desobediência às obrigações sentenciais caracteriza
uma dupla falta de compromisso do Estado para com seus deveres de proteção aos
direitos humanos.
A Prof. Flávia Piovesan37, em seu posicionamento do qual compartilhamos,
defende a necessidade de estabelecimento de sanções aos Estados que descumpram as
decisões internacionais, a exemplo de expulsão pela Assembleia Geral da OEA - de
forma análoga à possibilidade de expulsão do Conselho da Europa, no Sistema Europeu.
Há de se mencionar que existe a possibilidade de suspensão do Estado-membro,
aplicável, por analogia, a violações de direitos humanos, vez que já existente quanto a
rupturas da ordem democrática38.
37
38
Ver PIOVESAN, 2012, p. 158.
Fundamento presente no art. 9, “a” da Carta da OEA.
30
É necessário, para isso, promover uma maior integração entre os órgãos políticos
da OEA e os órgãos do Sistema Interamericano, para que aqueles possam adotar
medidas relativas ao cumprimento de disposições da Corte e Comissão, fortalecendo
seu grau de vinculação e consequentemente difundindo o respeito à Convenção no
Continente Americano.
Essa mudança, entretanto, presume uma ampla reforma da própria concepção da
normatividade internacional nas Américas, a fim de superar o posicionamento nãointervencionista ainda em voga.
As transformações necessárias não envolvem, porém, grandes modificações
normativas, pois a própria Carta da OEA traz previsões genéricas que podem ser
aplicáveis à solução da controvérsia. Caracterizam-se, principalmente, por uma
mudança de atitude dos órgãos envolvidos no Sistema Interamericano, a fim de que
atuem mais concretamente, não apenas quanto à promoção dos direitos humanos, mas
també quanto à condenação de suas violações.
André de Carvalho Ramos39 assevera que, apesar de não constar na Carta da
OEA quaisquer preceitos específicos quanto a sanções por violações de direitos
humanos, esta possui cláusula geral aberta em seu art. 53, que teria o condão de
autorizar esse tipo de conduta por parte da Assembleia Geral da organização:
A Assembleia Geral da OEA é o órgão político final no
procedimento de responsabilização internacional do Estado
diante de descumprimentos do rol de direitos fundamentais
constantes da Declaração Americana de Direitos e Deveres do
Homem e a Carta da OEA.
Nesse sentido, estabelece o artigo 54, alínea a, que compete à
Assembleia Geral ‘decidir a ação e as políticas gerais da
Organização’ o que abrange avaliar a situação de respeito aos
direitos humanos nos Estados membros.
Esse órgão, constituído de representantes de todos os Estados
signatários, tem cunho eminentemente político e analisa todas as
informações referentes a uma determinada situação de violação
de direitos humanos (encaminhadas pelos Estados ou pela
Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e recomenda a
adoção de medidas pelos Estados. No caso de não cumprimento
da recomendação da Assembleia Geral, o Estado fere a Carta da
OEA, possibilitando a edição de sanções coletivas adiante
expostas.
Embora o artigo 53 não mencione expressamente o poder de
ordenar sanções, incumbiria à Assembleia da OEA, enquanto
39
Consultar RAMOS, 2012a, p. 192.
31
órgão central da organização, propor sanções coletivas pelo
descumprimento dos preceitos da OEA, o que no caso, seria o
desrespeito aos direitos humanos. [...]
É de se ressaltar que a possibilidade sustentada pelo Professor adequa-se
perfeitamente ao sistema da OEA, vez que a Comissão e a Corte possuem a
incumbência de, anualmente, apresentar seu relatório, à Assembleia Geral, acerca dos
casos por ela tramitados. As violações de direitos humanos nele constantes, porém, não
são devidamente avaliadas e discutidas na esfera política da organização, possibilidade
essa que poderia autorizar, conforme o entendimento acima transcrito, a edição de
medidas sancionatórias com a capacidade de forçar o cumprimento de recomendações e
sentenças.
Essa possibilidade já contempla os Estados não participantes do Pacto de San
José, no tocante às obrigações da Carta da OEA, em referência ao relatório da
Comissão, o que amplia o alcance da proteção dos direitos humanos sem
necessariamente impor o tratado aos países não aderentes. Entretanto, a sua análise
continua precária, havendo apenas uma classificação do acompanhamento das
recomendações em “cumprimento total”, “cumprimento parcial” e “pendente de
cumprimento”.
Assevere-se, ainda, que, no tocante à Corte, a mera “sanção” pela inclusão de
casos não cumpridos no relatório anual da Corte à Assembleia Geral da OEA (art. 65 da
Convenção), também não opera efeitos práticos.
Ademais, há de se questionar a eficácia do modelo bifásico ainda vigente no
Sistema Interamericano, que acaba por redundar em uma demora processual, o que em
muitos casos facilita a ocorrência, em âmbito interno, de prescrições de crimes, por
exemplo. Destaca ainda o proficiente André de Carvalho Ramos40:
A lentidão do processamento dos casos desde a data da petição
da vítima de violação aos direitos humanos na Comissão até
uma sentença definitiva da Corte Interamericana também chama
a atenção. Há casos nos quais a Comissão gasta anos para se
convencer sobre a existência ou não de violação de direitos
humanos e, então, decidir propor uma ação de responsabilidade
internacional contra o Estado pretensamente infrator na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que, por seu turno,
também gasta anos para sentenciar o caso.
40
Consultar RAMOS, 2012a, p. 246.
32
No Sistema Interamericano, noutro giro, ao contrário do Europeu, não existe a
instituição supervisora do Comitê de Ministros, capaz de avaliar as violações.
Por fim, frise-se a necessidade de uma efetiva ampliação do rol de legitimação à
propositura de petições perante a Corte IDH, que hoje se restringe à Comissão (a
colegitimação dos Estados-membros nunca foi exercida), exatamente pela necessidade
de processamento prévio da demanda, que em nada auxilia o acesso direto à justiça
internacional por parte dos sujeitos mais interessados em sua concretização: os
cidadãos.
A propositura individual de ações diretamente perante a Corte é peça
fundamental para a difusão do Sistema entre os cidadãos dos países nele envolvidos.
Quanto maior a quantidade de protagonistas do sistema, maior a difusão da informação
acerca de suas decisões e, por consequência, maior a cobrança de cumprimento, vez
que, atingida diretamente a sociedade, esta se posiciona como fiscalizadora e exige
resultados, postura que tende a contaminar as instituições e órgãos nacionais.
Essa ampliação, porém, deve ser acompanhada de ampla reforma estrutural –
inclusive com a atribuição de caráter permanente ao seu funcionamento - a fim de que
se confira à Corte a possibilidade de analisar as demandas recebidas com a devida
diligência e de forma eficaz. Evidente que a popularização do sistema repercutirá
diretamente no aumento de demandas e, para sua análise ser, de fato, veloz e efetiva, a
Corte não poderá funcionar apenas em períodos alternados.
Saliente-se que essa reforma não pode ser desprovida da devida reconfiguração
estrutural do sistema - realizada de forma preparativa - o qual necessita, além de melhor
aparelhamento (envolvendo desde estrutura física a pessoal), de maior divulgação e
facilitação quanto a seu acesso, deixando-se claras as regras de funcionamento, a fim de
que não seja a Corte confundida com uma quarta instância jurisdicional.
Por fim, em um cenário ideal de real atuação positiva e ampla do Sistema
Interamericano, será possível atribuir à Corte maior legitimidade e força decisiva
através da obrigatoriedade não só de adesão à Convenção, como também de
reconhecimento da competência jurisdicional da Corte, atitudes essas que poderão ser
convertidas em condição essencial para integrar e participar da OEA e de seus órgãos
relacionados.
Em face à existência de diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, é
importante realizar o estudo de cada um deles, com a finalidade de identificar, na sua
33
estrutura
e
funcionamento,
soluções
ao
descumprimento
de
medidas
de
responsabilização internacional, as quais eventualmente possam ser aplicáveis ao
Sistema Interamericano no auxílio ao seu desenvolvimento e na superação do modelo
atualmente falho.
2.1.1 Sistema Europeu
Dentre os sistemas de proteção aos direitos humanos em funcionamento, aquele
mais consolidado e fortalecido, e de forma melhor integrada à sociedade tutelada, é o
existente na Europa.
O Sistema Europeu surge diretamente provocado pelas atrocidades da II Guerra
Mundial, contextualizando-se em um momento de ruptura e consequente reconstrução
dos direitos humanos, alinhando-se à busca pela integração e cooperação entre os países
europeus.
Dentro desse contexto facilitado de atuação, por ser a Europa uma região mais
homogênea e juridicamente integrada, os desafios ao cumprimento dos deveres de
proteção aos direitos humanos reduz-se cabalmente em comparação ao Sistema
Interamericano, atuante sobre região com sérias desigualdades quanto à sua proteção e
mesmo quanto ao regime democrático adotado nos seus países-membro. Atualmente,
com a inserção de países do Leste Europeu no Sistema, apresentam-se maiores
dificuldades à sua concretização, mas ainda de forma pontual.
A Corte Europeia, dentre as cortes regionais, demonstra-se mais judicializada, e
seu acesso é facilitado de modo que qualquer cidadão pode perante ela postular
diretamente41, sem a necessidade de intermediação de uma Comissão42, como no caso
interamericano.
Deve-se salientar, ainda, o preparo doutrinário e cultural dos Estados europeus
para a aceitação de um Tribunal Internacional que delibere acerca de seu direito interno
e também sobre fatos desenrolados sob a tutela de sua soberania. A resistência à
integração entre Corte e direito interno demonstra-se praticamente superada, muito em
41
Simultaneamente à mudança no funcionamento do Sistema houve um crescimento exponencial das
demandas perante a Corte na medida em que se ampliou o acesso à mesma. Foi necessário, portanto, um
reaparelhamento a fim de se atender satisfatoriamente às provocações, e uma mudança de postura da
Corte no sentido de atuar mais energicamente no estabelecimento de medidas de reparação e prevenção.
42
O Sistema Europeu já possuiu uma Comissão com funções análogas às do Sistema Interamericano,
entretanto, a partir de 1998, com a adoção do Protocolo nº 11, a dualidade Comissão/Corte foi substituída
por uma Corte permanente cuja competência perpassa inclusive sobre a análise de admissibilidade da
demanda.
34
razão da própria evolução da União Europeia, que alimentou o sentimento de
supranacionalidade ali presente, ultrapassando a lógica não-intervencionista ainda
presente no Continente Americano.
Esse sentimento supranacional é responsável por conferir à Convenção Europeia
uma ideia de ordem pública regional, bem como de uma noção mais atinente à sua
constitucionalidade material, facilitando a absorção de seus preceitos e as consequentes
responsabilizações por suas violações.
Além disto, a obrigatoriedade da jurisdição da Corte Europeia (art. 32 da
Convenção Europeia) não permite escusas dos Estados à proteção dos Direitos
Humanos, a exemplo do que ocorre no Continente Americano.
Em sua jurisprudência, ainda, a Corte Europeia já firmou entendimento que a
permite maiores intervenções no direito interno dos Estados-parte, sentimento
compartilhado por estes, proporcionando a opção de fixação de obrigações de realizar
importantes mudanças normativas, algo ainda extremamente discutido no âmbito das
Américas.
Quando não possível, porém, o retorno ao status quo ante de maneira integral
em razão do direito interno, a Corte Europeia tem competência para firmar uma
indenização pecuniária substitutiva, que faz coisa julgada.
Noutro giro, existem diversos mecanismos de pressão para o cumprimento das
sentenças proferidas pela Corte43. Além de um Comitê de Ministros44 com competência
supervisional e composto por todos os Estados submetidos à sua jurisdição, outras
formas de pressão são amplamente praticadas, como as diplomáticas (em função do
interesse de integração da União Europeia e mesmo de participação da organização),
bem como o power of embarassment45 (poder da vergonha) de ser considerado Estado
violador perante o Comitê de Ministros e à Comunidade Europeia como um todo.
43
Inicialmente, e em razão do texto da Convenção Europeia (art.41), as medidas estipuladas pela Corte
encontravam entraves à sua implementação por autorizar o descumprimento quando conflitante a decisão
com o direito interno do país responsabilizado, permanecendo as sentenças com caráter meramente
declaratório da violação de direitos. Com a mudança de postura da Corte, que passou a determinar
efetivas obrigações para o Estado violador, com apoio do Comitê de Ministros, as sentenças passaram a
ser efetivamente “condenatórias”. Ver RAMOS, 2012a, p. 177.
44
Órgão do Conselho da Europa que possui competência no Sistema Europeu, notadamente de supervisão
sentencial conforme art. 46 da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
45
O power of embarassement tem grande papel preventivo no Continente Europeu em razão das
consequências da Segunda Guerra Mundial. As violações trágicas de direitos humanos descobertas na
Alemanha, por exemplo, foram motivo de vergonha de toda a Europa perante a Comunidade
Internacional, exatamente por, naquele continente, existir um sentimento de unidade muito vivo entre
seus Estados. Essa ideia de unicidade traz, aos Estados, um sentimento de dever de vigilância não só
sobre atos seus, mas também de seus vizinhos.
35
Há de se destacar a medida mais grave de sanção ao Estado violador e
decumpridor de sentenças, qual seja a possibilidade de expulsão do Conselho da
Europa46. Essa possibilidade, por atacar fundamentalmente a cultura de integração
europeia e a própria possibilidade de participação da política do continente, demonstrase altamente eficaz na prevenção de violações ao Pacto Europeu.
Apesar de se demonstrar como um sistema de funcionamento exemplar, a
existência da previsão do art. 41 da Convenção47 é capaz de permitir descumprimentos.
Ainda que a Corte tenha mudado seu entendimento a fim de trabalhar mais
positivamente, a norma ainda existe, e pode sofrer outras mudanças interpretativas
significantes, que não sejam necessariamente relacionadas à melhoria do sistema.
Por fim, é necessário ponderar acerca do acesso direto à jurisdição da Corte, vez
que o amplo acesso pode ser mal compreendido pelos cidadãos, banalizando-se o
funcionamento da mesma. Esse apelo em causas descabidas - que necessariamente
passam pela análise de admissibilidade -, provocados por um mero descontentamento
com a decisão final pátria, já sobrecarregam o sistema, per se.
2.1.2 Sistema Universal
Enquanto o sistema regional europeu de proteção é o mais consolidado, o
Sistema Universal existente no âmbito da ONU é o mais complexo, composto de forma
convencional (através dos tratados) e mesmo extraconvencional (através de resoluções
dos órgãos da ONU).
O sistema convencional é, por si só, composto de três mecanismos
diferenciados: não contencioso (pela aplicação de técnicas internacionais de solução e
controvérsias); quase judicial – esse dividido em petições de Estados e de particulares ; e contencioso, efetivado perante a Corte Internacional de Justiça. De outro lado, o
sistema extraconvencional compõe-se por procedimentos especiais efetivados perante
órgãos da ONU e com base no dever geral de cooperação internacional dos Estados com
os direitos humanos (Carta da ONU, art. 55 e 56).48
46
Fundamentada nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho, que preveem o dever de cada Estadomembro em respeitar os direitos humanos e a possibilidade de expulsão por determinação do Comitê de
Ministros.
47
“Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno
da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o
Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário.”.
48
Ver RAMOS, 2012a, p. 75.
36
O mecanismo convencional não contencioso efetiva-se por meio de relatórios
periódicos subsidiados por informes dos Estados-parte dos tratados, estes analisados a
fim de serem condensados no relatório final por cada comitê específico do tratado. Esse
controle, apesar de mais abstrato, vem ensejando medidas concretas por parte dos
comitês, inclusive com visitas in loco.
Com esse sistema de comitês, foi estabelecido o notório Comitê de Direitos
Humanos, que atua no âmbito do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Seu
procedimento envolve exame de admissibilidade, instrução probatória e fase
deliberativa, na qual o Comitê adota uma deliberação concluindo ou não pela existência
de violação.
A respeito do mecanismo convencional quase judicial, há de se dividir entre
petições dos Estados e petições de indivíduos. No primeiro, os Estados possuem a
faculdade de demandarem entre si, enquanto no segundo os indivíduos podem
demandar contra o Estado.
No tocante ao mecanismo convencional judicial, a apuração das violações de
direitos humanos se dá perante e Corte Internacional de Justiça (CIJ), a fim de
estabelecer ou não a responsabilidade internacional do Estado pelos fatos. Somente
podem demandar perante a CIJ os Estados, e o reconhecimento da sua competência é
facultativa. As suas decisões, porém, são dotadas de extrema força, na medida em que o
sistema de punições vigente no âmbito da ONU é essencialmente mais concreto e possui
diversas possibilidades de sanção a Estados infratores (a exemplo dos conhecidos
embargos internacionais, suspensões e até a mais grave, expulsão da Assembleia Geral
da ONU e também de seus órgãos).
Por fim, quanto aos mecanismos extraconvencionais, estes se tratam da
aplicação de técnicas do soft law49 à política dos direitos humanos.
Pode-se concluir, portanto, que o sistema universal é extremamente setorizado, o
que facilita a sua atuação. Ademais, existem competências específicas para demandas
específicas, fato que auxilia no controle e supervisão de medidas impostas. Ao final, é
ainda verificável uma maior força no sistema, na medida em que as Nações Unidas são
órgão internacional amplamente reconhecido e têm legitimidade de atuação variada para
estabelecer sanções e restrições aos países violadores de direitos humanos.
49
Elementos como resoluções, declarações, princípios, declarações etc.
37
No tocante à competência jurisdicional da CIJ, porém, essa é bastante limitada,
haja vista que o acesso à mesma não permite a atuação direta do indivíduo nem mesmo
de organismos não estatais, conhecendo como partes apenas os Estados (art. 34.1 do
Estatuto), não focando na questão central dos direitos humanos: os interesses do
indivíduo.
2.1.3 Sistema Africano
O sistema de proteção aos direitos humanos existente no Continente Africano é
o mais recente e incipiente dentre os regionais, não se encontrando, ainda, sequer
consolidado. O maior retrato disso é o fato de a Carta Africana dos Direitos do Homem
e dos Povos ter sido adotada apenas em 1981 e entrado em vigor somente em 1986,
quando inclusive o Sistema Interamericano encontrava-se já em pleno funcionamento.
Isso se deve, essencialmente, aos problemas tradicionais daquela região, notadamente os
acúmulos históricos de luta contra desconlonização, pela autodeterminação dos povos e
respeito à diversidade cultural e social.
A grande dificuldade do sistema, ainda maior que no continente americano, é
adequar o direito interno às previsões do direito internacional. Mesmo ratificando
inúmeros tratados sobre direitos humanos, os Estados Africanos enfrentam graves e
constantes violações, de forma sistemática (diversas guerras civis, sistemas estruturais
básicos deficitários, regimes ditatoriais etc.).
Há grandes dificuldades em estabelecer os parâmetros de funcionamento da
Corte em razão de diversas declarações facultativas constantes do Protocolo. Ainda que
um Estado o tenha ratificado, este pode, por exemplo, não reconhecer determinada
legitimação, caracterizando limitação ao acesso individual e até mesmo de ONGs à
Corte.
Além disso, não constam do Sistema Africano regras claras de supervisão das
sentenças, nem mesmo uma definição clara entre atuação da Comissão e da Corte.
Seus maiores desafios são, portanto, consolidar-se – com a afirmação de
credibilidade da Corte - e superar as dificiências estruturais do Continente onde se
insere, harmonizando o cumprimento de sentenças à consolidação do regime
democrático nos Estados.
2.2 Soluções em Direito interno
38
Efetivamente, com a implementação do programa “Justiça Plena” pelo CNJ, o
acompanhamento das causas relativas às sentenças da Corte – e também das
recomendações da Comissão – foi facilitado, mas ainda não se encontra plenamente
consolidado e muito menos é realizado de forma completa.
Enquanto as obrigações sentenciais forem relativas ao pagamento de valores e
outras medidas reparativas mais simples (como publicação de sentenças, divulgação da
causa etc.), a supervisão é facilitada exatamente pelo Estado brasileiro não impor
entraves ao seu cumprimento. Eventualmente os pagamentos e medidas são cumpridas
próximo ao fim dos prazos, mas ainda não houve caso de descumprimento evidente dos
mesmos.
Entretanto, quando as obrigações se referem ao âmbito judicial, há diversos
problemas quanto à concretização das medidas. A Corte costuma exigir a investigação e
atribuição de responsabilidade aos culpados pelo fato violador de direitos humanos,
enquanto que o direito interno brasileiro apresenta diversos obstáculos à sua
materialização. A prescrição de um crime, por exemplo, tem aptidão de desautorizar
inclusive a investigação dos fatos, não se operando apenas sobre o direito de ação.
Neste giro, como já destacado, é possível desde 2011 acompanhar as medidas
relativas à investigação e punição dos agentes violadores através do Programa Justiça
Plena, implementado pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com diversos
órgãos do sistema judiciário, mas o sistema ainda encontra-se em fase inicial,
necessitando de melhor aparelhamento e estabelecimento de formas de controle mais
efetivas, uma vez que ainda refém da voluntariedade dos tribunais em responder às
comunicações e ofícios solicitantes de informações.
Ademais, saliente-se que a Corte tem competência para determinar medidas
legislativas em direito interno e, nesse caso, não há um controle efetivo de nenhum
órgão ou instituição do Estado, apenas da supervisão realizada pela Corte IDH.
Com o fracasso do Projeto de Lei nº 3.214/00, porém, não houve novas
tentativas de positivação da controvérsia, o que poderia, em muito, ter auxiliado no
cumprimento das sentenças já proferidas e estabelecido um standard de conduta
nacional perante esse tipo de situação, com a atribuição concreta da competência para
acompanhamento interno de seu cumprimento, que ainda permanece genericamente sob
guarda do Poder Executivo.
39
Ainda assim, mesmo que se adotem medidas legislativas, demonstra-se
necessária uma adequação do entendimento praticado pelos tribunais superiores
brasileiros à forma interpretativa das normas convencionais, a fim de que se evitem
controvérsias como aquela causada pela Lei de Anistia, analisada perante o STF e
também perante a Corte IDH no Caso Gomes Lund. Um grande passo para isso já vem
sendo dado em alguns países pela simples aplicação ou mesmo pela simples discussão
do precedente jurisprudencial internacional em âmbito interno, através dos tribunais
superiores.
Essencial, por fim, a mudança do pensamento excessivamente cartesiano acerca
da não-constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos já ratificados
anteriormente à EC nº 45/2004. A homogeneização do valor atribuído às normas
internacionais de direitos humanos, de mesma natureza, é essencial para o seu
fortalecimento como uma unidade protetiva e dotada de força suficiente para incentivar
mudanças internas de conduta do Estado, de sua legislação e de seu sistema processual.
CONCLUSÕES
Da análise das causas onde o Estado Brasileiro figurou como parte, sua grande
maioria relacionava-se à violações das garantias judiciais constantes do art. 8º da
Convenção Americana, especialmente no tocante à razoável duração do processo, o que
culminou, por diversas vezes, na demora injustificada para a averiguação dos fatos e
atribuição de responsabilidade.
Constatou-se, ainda, que o Brasil apresenta um sistema judicial interno
deficitário e, por essa razão, vem sendo responsabilizado reiteradamente pelo Sistema
Interamericano no tocante à violação das garantias judiciais consagradas na Convenção
Americana de Direitos Humanos.
Notadamente quanto essas garantias judiciais, foi possível perceber que as
sentenças de responsabilização proferidas pela Corte Interamericana encontram entraves
à sua efetivação integral em razão desse sistema interno deficitário brasileiro, mas
também em decorrência da fragilidade do sistema de supervisão de cumprimento da
Corte.
Por essas razões, o contexto atual do sistema interamericano exige a elaboração
de políticas positivas para efetivar o respeito às decisões da Corte IDH, realizando-se
40
um controle de cumprimento de sentenças que não dependa exclusivamente da
voluntariedade do Estado em fornecer informações.
Uma forma de solucionar tal controvérsia é através do estabelecimento de
sanções no âmbito da OEA. Considerando que o Sistema Interamericano possui vias de
conexão com a Assembleia Geral da Organização, o melhor relacionamento entre as
esferas do sistema (política e causídica) tem o condão de conferir maior força às
decisões da Corte IDH, especialmente através da fixação de sanções concretas aos
Estados violadores.
A mudança necessária não exige especificamente alterações normativas amplas,
mas, de fato, uma mudança de paradigma de atuação dos órgãos envolvidos no Sistema
Interamericano, de forma que fiscalizem, cobrem e sancionem os Estados violadores
mais positivamente.
Verificou-se possível, através do estudo da Carta da OEA, o exercício da
competência da Assembleia Geral da OEA em punir Estados membros que violem,
reiteradamente, os direitos humanos. Essa competência deriva essencialmente da
competência da Assembleia Geral em avaliar o cumprimento dos deveres dos Estados –
dentre eles encontra-se a obediência aos direitos humanos -, relacionando-se também
com a possibilidade de suspensão do membro de sua participação na Organização por
ruptura de regime democrático.
Realizando, ainda, um estudo em direito comparado, concluiu-se também que o
Sistema Interamericano encontra-se ainda em consolidação, apesar de encontrar-se já
em pleno funcionamento e ter alcançado maior notoriedade nas últimas décadas. A sua
estrutura, porém, continua apresentando deficiências já superadas pelo modelo Europeu,
de excelência, que hoje permite a petição individual direta perante a Corte e adota um
sistema unifásico de estrutura, que em muito facilita a sua difusão.
Consoante tais conclusões, pode-se finalizar no sentido de que o Brasil, com sua
cultura ainda por demais não-intervencionista, necessita de mecanismos positivos
internacionais para que respeite de forma integral a Convenção Americana e as decisões
provenientes de seus órgãos anexos, a fim de internalizar as condutas necessárias e criar
políticas internas de obediência e cumprimento. Uma vez que não possível o
cumprimento voluntário integral das sentenças da Corte no Brasil, faz-se indispensável
a fixação de medidas para o cumprimento forçado das mesmas, a fim de que se tutele o
maior bem protegido pelos direitos humanos: o ser humano.
41
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