XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
PRÁTICAS POLÍTICO-PEDAGÓGICAS COTIDIANAS: NARRATIVAS
EM SALA DE AULA.
Eunice Maria Ferreira Silva
(Universidade Federal Fluminense)
Resumo.
Neste trabalho trago um recorte de minha tese de doutoramento em educação
cujo foco é o estudo das práticas político-pedagógicas em uma Escola Normal de
formação de professores e professoras dos anos iniciais do ciclo, localizada na Baixada
Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Nele problematizo a prática de aula de uma das
duas professoras participantes como sujeitos atuantes no processo de investigação.
Nesse movimento investigativo, algumas das narrativas das alunas são selecionadas
bem como certas conversas que acontecem entre elas em seu cotidiano. Ao priorizar a
narrativa como prática político-pedagógica, a professora da aula em foco demonstra
favorecer o trabalho coletivo e a fala de si, além da prática de ouvir o outro para melhor
compreendê-lo; esse é um acontecimento que vai se dando de modo tal que os sujeitos
em formação também vão se (re) descobrindo narradores de si e de suas realidades
circundantes. Por meio de minha quase imersão no contexto cultural, político e social
escolar, vou também compreendendo com a pesquisa que apesar de a escola e,
sobretudo a aula, muitas vezes, ser um espaço-tempo de controle e de regulação das
ações escolares, muitos de seus sujeitos dele se apropriam possibilitados por múltiplas
interações que lhes permitem elaborar conhecimentos de si e de suas realidades de
pertencimento. E, desse modo, as práticas narrativas dos sujeitos em aula parecem
possibilitar a compreensão de certas armadilhas hegemônicas que assolam a educação
pública; armadilhas ideológicas que naturalizam a classificação, fortalecendo a
hierarquização. Com isso, acentuam-se individualismos, competições e isolamentos
entre os sujeitos na escola e na vida, além de muito contribuir para certa
homogeneização da sociedade moderna contemporânea como um todo.
Palavras-chave: Práticas Político-Pedagógicas. Narrativas Cotidianas. Sala de Aula.
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Para início de conversa...
No presente artigo, trago ao debate o trabalho docente de uma escola de
formação de professoras, da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. Opto
por uma prática de sala de aula que acontece no pátio externo da escola com uma das
sete turmas do segundo ano normal na disciplina Prática Pedagógica e Iniciação à
Pesquisa1 – PPIP. Nesta aula, apesar da escola ser um espaço e tempo de controle e de
regulação das ações estudantis especialmente, as alunas e alunos se apoderam daquele
espaço-tempo escolar que lhes possibilitam múltiplas interações entre elas e eles
mesmos e a professora da turma. Parecem estabelecer relações que permitem elaborar
conhecimentos sobre si e sua realidade. Elas trazem à tona em suas narrativas situações
que experimentam na escola e em seus contextos sociais de pertencimento. Ali mesmo,
no pátio, naqueles momentos destinados à aula, vamos percebendo um esforço para se
encontrarem em suas narrativas. Em alguns instantes da aula, são levadas a falar a
respeito de si, em outros momentos se calam para ouvir as narrativas das outras que
também tentam dizer a sua palavra. Contudo, elas e eles, inicialmente, permanecem
hesitantes, mas não deixam de aceitar o convite de sua professora para se narrarem e,
assim, algumas e alguns, lentamente, vão se (re) descobrindo narradoras de si mesmos e
de sua realidade.
Trazem narrativas que nos favorecem pensar acerca da concepção de educação
moderna que privilegia uma certa lógica hegemônica e formal de produzir
conhecimentos e, assim, se impor como um modelo uniforme de conhecimento que se
sobrepõe às pluralidades de saberes que habitam a escola e a vida. Dessa forma, são
criadas dicotomias entre certo/errado, sujeito/objeto que escamoteiam a complexidade
cotidiana. Lógica binária que impõe um trabalho pedagógico marcado dentro de um
espaço delimitado e de um tempo cronometrado. Diante dessa lógica, a informação
transmitida pela escola torna-se essencial à aprendizagem; essa informação / prescrição
baseada no conhecimento hegemônico contido nos conteúdos curriculares universais,
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acabam por desconectar-se das narrativas e das experiências vividas pelos diferentes
sujeitos escolares. Para Benjamim, na contramão da narrativa vem a informação.
Atualmente, os sujeitos – não somente nessa aula – quase sempre se envolvem
com um conturbado montante de informações consumidas cotidianamente. Muitas delas
efêmeras, passageiras e sem sentido porque quase impedem a reflexão a respeito da
realidade social, política, econômica e cultural circundante. Informações que chegam à
escola para serem consumidas aos borbotões, umas sobrepondo-se às outras.
Informações que levam para a execução de tarefas sem necessidade de pensar e sem a
exigência da busca de outras “verdades” geradas pelas dúvidas que levam as pesquisas.
Ou ainda reconhecendo os conhecimentos embutidos nas próprias experiências do fazer
cotidiano. Informação marchetada de certa dose da concepção instrumental do
conhecimento oficial. Seria uma instrumentalização subjacente à ideologia hegemônica
que separa na escola e depois na própria vida os sujeitos que sabem dos que não sabem
o conhecimento escolar considerado como o “verdadeiro” e único conhecimento?
Com o movimento de pesquisa na escola, venho pensando que o conhecimento
reconhecido pela hegemonia oficial, – o conhecimento dominante que regula, classifica,
hierarquiza e separa os sujeitos considerados bons dos maus, os que aprendem dos que
não aprendem, os disciplinados dos indisciplinados –, pode toar como um conhecimento
que serve para instituir o “diferente” – aquele sujeito que não consegue se adequar às
normas escolares, dentre suas múltiplas possibilidades de inadequação ao controle
escolar.
Nesse sentido, a ideologia impregnada na educação moderna parece se destinar
aos “talentosos”, deixando de fora aquelas e aqueles que Ainda-Não2 conseguem
aprender os conhecimentos estritamente escolares e, assim, demonstram certo fracasso
escolar perante os constantes processos de avaliação. Mas, poderíamos nos questionar:
de quem seria mesmo o fracasso? É um fracasso da escola? Ou seria o fracasso dos
sujeitos que não entendem o prescrito dentro de um modelo único – que se faz de
informações –, muitas vezes sem sentido, em uma sequência que se pauta pelo aparato
ideologizante das políticas educacionais oficiais, fortalecendo ainda mais o poder
hierarquizante / modernizante da escola?
Bem sabemos que muitos de nós, não conseguimos que nossos saberes sejam
reconhecidos no âmbito escolar. Muitos temos nossos saberes da experiência
desqualificados. No entanto, qual seria mesmo a importância do conhecimento
hegemônico na vida cotidiana das alunas e alunos em formação para a docência?
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A escola atual parece restringir seu papel cultural e social à transmissão de
ensinamentos considerados essenciais à formação estudantil. Ao focar no ensino
repetitivo do fazer “a lição”, a escola acaba por lavar suas mãos em relação aos
diferentes sujeitos que não as fazem dentro de uma medida uniforme. Tal prática
pedagógica nos leva a pensar que a atenção ao acesso e à permanência dos alunos e
alunas na escola se sobrepõe ao reconhecimento das suas experiências.
O Movimento da Sala de Aula...
Chego à escola. Coloco-me em redobrada atenção para perceber o que se passa e
o que lá acontece. A professora formadora dialoga com sua turma. Ela propõe uma
atividade de leitura e de discussão do texto “Conto de Escola”, de Machado de Assis,
atividade já iniciada na aula anterior. Sugere à turma estabelecer um debate a respeito
da educação moderna na qual ainda estamos inseridos na atualidade. Mesmo assim,
insiste muito mais em debater a respeito da escola conservadora, como se ela existisse
fora de nós. Percebo que, mesmo desejando libertar-se dessa escola que nos constitui,
insiste em trazer ao debate a escola, sem muito dizer da imensidão de conservadorismo
que corre em nossas próprias veias.
A professora estimula os alunos e as alunas a questionarem a educação
experimentada da infância aos dias atuais com o propósito de pensar sobre a educação
que estamos fazendo junto às gerações de sujeitos das classes populares que adentram
pela escola sem pedir licença. Retoma a leitura do texto “Conto de Escola” de Machado
de Assis. Acrescenta à discussão, a questão mercantil da educação, em que se dá a troca
da explicação por uma moeda de ouro e o conhecimento vira uma simples mercadoria.
Vão discorrendo sobre uma leitura possível do texto. Enquanto falam, ela transcreve
para o quadro.
Nesse movimento de tentar dialogar sobre as diferentes possibilidades de leituras
do texto, a turma vai se envolvendo com o tema e fazendo sua própria leitura. A
professora convida sua turma para distribuir-se em sete grupos de cinco alunas cada; em
seguida, apresenta sua proposta: narrar a infância na escola ao mesmo tempo em que
tecem uma colcha de retalhos com as sobras de panos lisos, quadriculados, listrados
pintados, multicores, retalhos para serem costurados à mão. Pouco interferindo na
proposta da professora – vão se agrupando sobre os tapetes artesanais trançados em tear.
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Os tapetes ficam esparramados pelo chão por onde também se espalham os sujeitos,
aventurando-se nas conversas sobre a infância na escola, muitas nessa mesma escola.
A professora vai passeando pelos sete grupos. Movimenta-se durante todo o
tempo, parando ora aqui e ali, ora acolá. Aconchega-se para acompanhar as conversas e
a confecção de parte da colcha com os retalhos que estão sendo costurados uns aos
outros. Sugere que os grupos costurem uma parte da colcha para que, ao final, juntem
todos os pedaços costurados por todos os grupos, formando uma colcha com os retalhos
emendados entre si, uma colcha a partir das sobras de retalhos de diferentes formas e
cores, ao mesmo tempo em que vão narrando suas histórias. Em meio às costuras dos
pequenos retalhos nascem as narrativas. Fazer a colcha e elaborar o pensamento,
soltando a voz, vozes anônimas de gente anônima, narradores e narradoras sem
reconhecimento, gentes de experiências desconhecidas que carregam saberes
camuflados pelo tecnicismo “puro”, regido sob uma única perspectiva política, aquela
perspectiva da homogeneização; homogeneização que traz a hierarquização e a
classificação dos sujeitos e de seus saberes da experiência feita na escola, como nos
ensina Paulo Freire.
Narram com dificuldade e costuram com mais dificuldade ainda. Parece que
narrar o cotidiano, falando de sentimentos e de coisas da vida, assim como fazer coisas
comuns e costurar aproveitando as sobras de panos já usadas com uma finalidade, são
atividades menores e, portanto, fora da “moda” do mundo global que consome e joga no
lixo ou quando muito distribui restos aos que nada possuem.
Assim como os panos vão sendo emendados uns aos outros, alunos e alunas
também vão tentando narrar-se; “estudo desde os quatro anos aqui..., não chorei quando
cheguei aqui, hoje me lembro que minha mãe é que chorou”, diz a aluna ‘C’; já ‘B’
conta que “nem olhou pra trás, sua professora era a ‘G’, com aquele jeitinho carinhoso
de falar, ela me cativou, outro dia mesmo estava vendo as fotos; depois veio a ‘V’, a
‘A’; a aluna ‘B’ traz os nomes e os jeitos das professoras com quem estudou ao longo
de sua trajetória no ensino fundamental. Ela ressalta, ainda, que
Se eu for pra outra escola vou me sentir excluída; moro aqui perto, no Gramacho
[bairro de Duque de Caxias]; até hoje me lembro da professora Keiva, ela nunca
mais vai sair da minha memória, me lembro de como ela resolveu a situação de
dois alunos brigando na nossa sala: amarrou os dois com fita durex na cadeira;
eu quando não queria copiar o dever, eu levantava e colocava uma barata na
mochila da Kelli que hoje nem quer saber de estudar. No recreio, às vezes eu
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ficava muito triste porque tinha um menino maluquinho que corria atrás da
gente, ele era da sala dos especiais; eu tinha muito medo dele. Tive dificuldade
pra conseguir uma vaga aqui, minha mãe foi pedir prum vereador a minha vaga e
só assim consegui entrar aqui, isso já tem muito tempo; estudar aqui era muito
difícil, todo mundo queria vir pra cá.
A aluna ‘D’ emenda com suas idéias:
Brincar naquele parquinho, merendar naquela cozinha que agora está bem mais
bonita é uma coisa que gosto muito. Sempre estudei com minha mãe por perto,
cheguei aqui com seis anos; eu e minha irmã gêmea entramos atrasadas; minha
mãe ficou como voluntária e trabalha até hoje aqui, deixou de ser voluntária e já
está efetiva; ela é funcionária, cuida da portaria e faz pedagogia.
Ela interrompe sua fala e pergunta-me: “você é professora? Aonde você dá
aula?” Digo-lhe que é aqui mesmo em Duque de Caxias, bem pertinho da escola. A
menina intrigada me questiona, mas “é só lá?” Respondo com uma pitada de
curiosidade a respeito do que pensa: você acha mesmo que eu deveria trabalhar também
em outras escolas?
Acho! Pelo salário que não é tão bom assim; sabe, não é que eu não quero ser
professora, mas é que prefiro entrar na área do petróleo e gás; ouvi dizer que é
uma boa área de trabalho, tenho medo de me arrepender mais tarde, de não tentar
outras coisas; mas mesmo assim, quero ser formada em professora, mesmo que
não seja pra trabalhar porque aqui você é formada em alguma coisa; é claro que a
gente começa do baixo e pode subir na carreira; não falei nada porque não quero
lembrar da infância na escola... foi muito ruim, demorei a aprender, fui
reprovada e ficava muito triste com isto... estou aqui porque quero e gosto de
lidar com as crianças.
As narrativas nos oferecem, possivelmente, muitas chaves de compreensão. Não
tenho olhos para vê-las todas em suas diferentes perspectivas. Sinto-me limitada diante
da complexidade das narrativas. Ricas em detalhes, poderiam possibilitar-me uma
escritura mais contundente a respeito da escola moderna que nos habita. Mesmo assim,
arrisco-me trazendo algumas considerações, sabedora de que não consigo compreendêlas na sua inteireza e na sutileza das minúcias que se apresentam. Venho aprendendo
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com os sujeitos da pesquisa que “devemos compreender o que vemos ou, do contrário,
não o vemos” (VON FOERSTER, 1996, p. 71).
Nesse movimento dos sujeitos em suas narrativas quanto da professora em sua
prática político-pedagógica, envolvo-me ‘com’ para compreendê-las. Busco as
contribuições de Paulo Freire para pensar a educação na escola de formação. Freire
transporta-me ao acontecimento do “dizer a palavra”. Ao pronunciar sua existência e a
relação que estabelece com a escola no lugar de pertencimento, os sujeitos pensam e
dizem de sua experiência na escola, deixando-se “quase” desvendar, ou colocando à
mostra seus saberes, possibilitando-lhes serem sujeitos que fazem história. Ao dizermos
nossa palavra, assumimos nossa história de existência e nossa condição de sujeito de
direitos.
A professora opta por uma prática pedagógica que tenta não focar em
explicações totalizantes, de conjuntura global, impositivas e carregadas de concepções
absolutas e de respostas únicas. Parece desejar uma proposta coletiva de trabalho de
criação que possibilite problematizar as ações cotidianas por meio da linguagem
narrativa. Aposta no dizer a palavra, no trazer a existência dos sujeitos. Narrativas que
nos fazem pensar a respeito do que sentimos, do que fazemos ou podemos fazer.
Narrativas, em primeira pessoa, que se mostram como recriações do que
experimentamos e se constituem de nossas fragilidades diante do ato complexo da fala.
Essa forma de aprendizagem-ensino-aprendizagem-pesquisa não se mostra como teoria
desconectada da prática. Pode ser compreendida como uma teoria em movimento, ou
seja, uma prática teórica de lidar com os diferentes sujeitos que habitam o espaço-tempo
escolar cotidiano.
Portanto, ao trabalhar com uma pedagogia que se mostra “comprometida” com
as narrativas da vida escolar, a professora prioriza o diálogo na contramão das macroexplicações que coloca o sujeito em um lugar passivo de receptor. Contudo, direciona
seu trabalho pedagógico para aquilo que acredita ser importante na formação docente a
partir de si mesma. Ali emerge certa contradição: ao mesmo tempo em que parece
valorizar as diferentes narrativas, não desloca sua mensagem do texto machadiano e do
tema da escola conservadora, fidelidade ao foco, essencial para ela, assim compreendo,
acrescido da armadilha do tempo cronometrado da aula. Pois, ao retomar o tema da
discussão do texto, a sineta anuncia o final da aula. Na escola, aceitamos o tempo
cronometrado, o tempo linear que de certa forma acaba por estratificar a aula e por
diluir os pensamentos dos sujeitos que se narram no espaço também delimitado.
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Alguns Saberes Cambiantes...
Os momentos da aula parecem dedicados às diferentes formas de compartilhar
saberes entre os estudantes e a professora. Caminham entre diferentes idas e vindas
como tentativa de dar vazão ao pensamento que cada um carrega da escola, por meio de
suas narrativas na contramão da prescrição curricular. Trazem da vida fora da escola
questões que nos levam a rever o papel docente e a refletir na função social e política
da educação pública.
Assim, a aula se mostra como um acontecimento, uma experiência de ouvir e
dizer a palavra com o outro; mas, nos leva também a pensar na aula espetáculo, na aula
estandardizada à semelhança das propagandas em geral, especialmente as televisivas
que nos impulsionam ao consumismo. Aquela aula se transforma em momentos de
partilha de saberes da experiência, embora a professora não consiga escapar de oferecer
as suas próprias orientações, prática que, de certo modo, interfere nas narrativas. Pareceme que, naquele momento, a professora não abre mão do papel professoral, mesmo que
procure trazer a expressão individual de cada um. Emergem os contraditórios que nos
habitam. Contudo, a prática pedagógica tende a ser um desafio a ser vencido e
conquistado: garantir de certo modo a pluralidade de saberes dos sujeitos, considerando
suas diferentes experiências na escola e, ao mesmo tempo, lutando contra a
homogeneização social.
Alunos e alunas aproveitam ao seu modo os momentos de reflexão. Trazem suas
próprias e singulares maneiras de se pronunciar diante de suas experiências. Pensam no
passado e trazem-no ao presente. O presente é continuação do passado. A narrativa pode
ser uma forma do sujeito, diferente um do outro, expressar seu sentimento e comunicarse de uma forma artesanal, tecendo reflexões a respeito das próprias experiências na
vida.
Uma aluna nos aponta um dos problemas da escola, nossa ferida exposta:
acentuamos as diferenças entre os sujeitos; classificamos; separamos os “normais” dos
vistos como “anormais”. Dicotomias que tanto nos incomodam na escola e na sociedade
moderna. Pois, essa mesma escola que convive com os binarismos, hierarquizando os
sujeitos e seus saberes, acentua a separação, o individualismo, a segregação. Sabemos
que os discriminados como diferentes são os que resistem, não se deixando encaixar em
um modelo padrão de normalidade escolar e social.
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As normalidades e anormalidades são discursivamente construídas e socialmente
produzidas na escola, mas, quase sempre, ultrapassam os muros da escola. São
diferenças que subalternizam os sujeitos, diferenças que invisibilizam subjetividades;
diferenças que justificam classificações e separações.
Nesse contexto é que as narrativas contribuem para enxergarmos a
complexidade das situações cotidianas das experiências por não se configurarem como a
verdade absoluta trazida pelo exemplo de um único sujeito. Por meio dela, cada um de
nós, cada sujeito traz seu ponto de vista, apresenta sua lógica, defende sua versão acerca
dos acontecimentos, estreita suas relações políticas, compartilha experiências. As
narrativas se apresentam como possibilidades de diluição de certas armadilhas
hegemônicas, armadilhas que nos constituem, nos formatam sem delas nos darmos
conta.
No entrecruzamento da voz anônima da professora com as vozes dos estudantes
anônimos também, trazem à tona saberes escondidos pela homogeneização curricular
que contamina o cotidiano da escola. Narrar experiências no emaranhado do espaçotempo que se mantém uniforme e cronometrado, nos parece um compromisso político
da professora. Narrativas que se deixam envolver pelas formas artesanais de
comunicação, trazem as vozes na contramão do espaço fechado da sala de aula, focado
na prescrição, impossibilitando a interação.
Por isso, mesmo que a prática político-pedagógica aconteça dentro de um espaço
definido, dentro de um tempo linear que se pauta em modelos burocráticos, hierárquicos
e marcados por relações de poder autoritárias, essa prática pode se metamorfosear em
possibilidades fortalecedoras de criação: espaços narrativos, espaços de sociabilidade,
espaços de produção de cultura. Espaços que escapolem por entre as brechas deixadas
pela pretendida homogeneização.
Boaventura (2006) nos faz pensar que estes tempos da modernidade trazem
consigo a “monocultura do tempo linear” (p. 794), tempo único e universal que
comprime o presente e expande o futuro, um futuro dilatado que vive de espera de nele
chegarmos um dia, quem sabe. Porém, quando lá chegamos, nesse futuro desejado, ele
parece congelado e quase idêntico ao passado ou quando nele entramos, esse futuro
aparenta uma homogeneidade, um vazio, tudo muito igual mesmo diante das múltiplas
diferenças dos sujeitos. Tempo de sofrimento do hoje em nome da redenção que, talvez,
possa vir em um distante e incerto futuro.
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A professora faz um esforço para romper com a prática pedagógica instrumental
quando elege um texto de literatura brasileira, texto que nos provoca com suas
insinuações sobre a vida cotidiana da escola do século XIX. Com base nele, podemos
compreender a escola que vivemos hoje, carregada da tradição da modernidade que
insiste em se perpetuar dentro do modelo de uma pedagogia racionalista. Pedagogia que,
segundo Julia Varela (2001), procura produzir “uma certa organização escolar e certas
formas de transmissão sem questionar nunca a arbitrariedade dessa organização, nem
tampouco o estatuto dos saberes que são objeto da transmissão (p. 93)”.
Contudo, na contramão dessa organização disciplinar, os sujeitos escolares
tendem a abandonar de alguma maneira as normas prescritas sem sua participação. A
participação nos levam para interações, (des)ocultando os próprios saberes, saberes
encharcados das culturas que permeiam a vida na escola, possibilitando experiências da
vida que se misturam ao trabalho pedagógico escolar. A vida no lugar, no contexto de
pertencimento nos possibilita repensar a transformação da própria vida.
Notas
1
PPIP – Prática Pedagógica e Iniciação à Pesquisa.
2
Ainda-Não é um conceito proposto por Ernst Bloch ao ressaltar que o possível é o mais incerto, o mais
ignorado conceito da filosofia ocidental (Bloch, 1995, p. 241, apud Santos, 2004a, p. 794). Estas são
considerações feitas por Inês Barbosa de Oliveira, em seu livro Boaventura & a Educação. Belo
Horizonte: Autêntica, 2008. (p. 86).
Referências bibliográficas.
BLOCH, Ernest (1995), The Principle of Hope. Cambridge, Mass.: MIT Press.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento: disfunções de segunda ordem. In:
SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Tradução
Jussara Haubert Rodrigues. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
MACHADO DE ASSIS, J. M. Conto de Escola. São Paulo: Ed. Cosacnaify, 2002.
OLIVEIRA, Inês Barbosa de. Boaventura & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica,
2008.
SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia
das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). Conhecimento prudente
para uma vida decente: um discurso sobre as Ciências revisitado. 2. ed. São Paulo:
Cortez, 2006.
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VARELA, Julia. O estatuto do saber-pedagógico. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.).
O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
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