Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR DAYENNY NEVES MIRANDA Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR DAYENNY NEVES MIRANDA Tese Doutoral submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). Orientadora:Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman. Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro Faculdade de Letras Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa A poética de Raúl González Tuñón, lirismo de um Caminhador Dayenny Neves Miranda Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas. Banca examinadora: 25 de fevereiro de 2014 _____________________________________________________ Profª. Doutora Mariluci da Cunha Guberman (Presidente) _____________________________________________________ Profª Doutora Cláudia Heloísa I. Luna - PPG Letras Neolatinas/UFRJ _____________________________________________________ Profº Doutora Diana Araújo Pereira – UNILA/PR ______________________________________________________ Profª. Doutora Ximena Antonia Díaz Merino – UNIOESTE/PR ______________________________________________________ Profº. Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – CEFET/RJ ______________________________________________________ Profª Doutora Sônia Cristina K. Reis – PPG Letras Neolatinas/UFRJ (Suplente) ______________________________________________________ Profª Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ (Suplente) Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 3 RESUMO A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR Dayenny Neves Miranda Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas). A presente pesquisa consiste em analisar criticamente a poética do escritor argentino Raúl González Tuñón, nas seguintes obras: El Violín del Diablo (1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada (1936); Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien que Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952); Antologias: Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. de Héctor Yánover (1962), Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. de Luis Osvaldo Tedesco (1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética, ed. de Héctor Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida, compilação: Adolfo González Tuñón e Eduardo Álvarez Tuñón (2011). A relevância dessa análise se deve à significativa produção poética que envolve a temática da imagem citadina, sob a ótica surrealista, e da imagem social durante a Guerra Civil espanhola. Destaca-se a personagem Juancito Caminador, que evidencia o aspecto autobiográfico da obra poética tuñoneana. Pela participação ativa do poeta na Vanguarda argentina, tratou-se também da contextualização de González Tuñón nesse movimento. Pelo fato de sua poesia apresentar características do surrealismo, pesquisou-se não só essa estética, mas também como se constrói a imagem surrealista das cidades de Buenos Aires e Paris e a atuação de suas personagens. Pela participação do poeta na Guerra Civil espanhola, verificou-se, em sua poesia social, como se revelam as imagens bélicas do conflito espanhol e suas representações humanas. Este estudo ainda apresenta uma comparação entre a imagem poética e a imagem fotográfica da guerra ocorrida na Espanha. Pela intrigante presença de Juancito Caminador, buscou-se, em algumas obras do escritor argentino, investigar a representação dessa personagem como a possível construção autobiográfica do poeta. Palavras-chave: poesia, cidade, Guerra Civil espanhola, autobiografia Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 4 RESUMEN A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR Dayenny Neves Miranda Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas). La presente investigación consiste en analizar criticamente la poética del escritor argentino Raúl González Tuñón, en las siguientes obras: El Violín del Diablo (1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada (1936); Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien que Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952); Antologías: Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. de Héctor Yánover (1962), Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. de Luis Osvaldo Tedesco (1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética, ed. de Héctor Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida, compilação: Adolfo González Tuñón e Eduardo Álvarez Tuñón (2011). La relevancia de ese análisis se debe a la significativa producción poética que envuelve la temática de la imagen citadina, bajo la óptica surrealista, y de la imagen social durante la Guerra Civil española. Se destaca el personaje Juancito Caminador, que evidencia el aspecto autobiográfico de la obra poética tuñoneana. Por la participación activa del poeta en la Vanguardia argentina, se trató también de la contextualización de González Tuñón en ese movimiento. Por el hecho de su poesía presentar características del surrealismo, se investigó no sólo esa estética, sino también cómo se construye la imagen surrealista de las ciudades de Buenos Aires y de Paris y la actuación de sus personajes. Por la participación del poeta en la Guerra Civil española, se verificó, en su poesía social, como se revelan las imágenes bélicas del conflicto español y sus representaciones humanas. Este estudio presenta aún una comparación entre la imagen poética y la fotográfica de la guerra ocurrida en España. Por la cuestionadora presencia de Juancito Caminador, se buscó, en algunas obras del escritor argentino, investigar la representación de ese personaje como una posible construcción autobiográfica del poeta. Palabras clave: poesía, ciudad, Guerra Civil española, autobiografía Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 5 ABSTRACT A POÉTICA DE RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN, LIRISMO DE UM CAMINHADOR Dayenny Neves Miranda Orientadora: Profª Drª Mariluci da Cunha Guberman Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, da Faculdade de Letras, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Literaturas Hispânicas). The present research consists critically to analyse poetical of the Argentine writer Raúl González Tuñón, in the following works: El Violín del Diablo (1926), La Calle del Agujero en la Media (1930), La Rosa Blindada (1936); Todos Bailan. Los Poemas de Juancito Caminador (1935), Hay Alguien que Está Esperando. El Penúltimo Viaje de Juancito Caminador (1952); Anthologies: Poemas de Raúl González Tuñón Antología, sel. of Héctor Yánover (1962), Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, sel. of Luis Osvaldo Tedesco (1983), Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética, ed. of Héctor Yánover (1989), Raúl González Tuñón Poesía Reunida, compilation: Adolfo González Tuñón and Eduardo Álvarez Tuñón (2011). The relevance of this analysis must to the significant poetical production that involves the thematic one of the urban image, under the optical of the surrealist, and the social image during the Spanish Civil War. She is highlighted personage Juancito Caminador, who evidences the autobiographic aspect of the tuñoneana poetical work. For the active participation of the poet in the Argentine Vanguard, it was also about the contextualização of González Tuñón in this movement. For the fact of its poetry to present characteristics of the surrealism, searched not only this aesthetic one, but also as it constructs to the surrealist image of the cities of Buenos Aires and Paris and the performance of its personages. For the participation of the poet in the Spanish Civil War, it was verified, in its social poetry, as to the warlike images of the Spanish conflict and its human representations show. This study still it presents a comparison between the poetical image and the photographic image of the occured war in Spain. For the intriguing presence of Juancito Caminador, one searched, in some works of the Argentine writer, to research the representation of this personage as the possible autobiographic construction of the poet. Keyword-: poetry, city, Spanish Civil War, autobiography Rio de Janeiro Fevereiro de 2014 6 Dedicatória A Deus, pela vida e pela benção de me conceder saúde e força. Agradeço por ter me agraciado com a presença de pessoas tão especiais durante minha vida, mesmo aquelas que não estão mais presentes. Por ter ouvidos minhas orações, e foram tantas. E, principalmente por sua fidelidade e amor incondicional. Tenho orgulho de ser chamada sua filha e de poder chamar-te meu Pai! Ao meu esposo Leonardo, pelo amor demonstrado, pela paciência, pelo seu apoio e por sua absoluta compreensão. Agradeço por acreditar em mim, por me motivar quando queria desistir. Peço desculpas por não ter te acompanhado nos últimos meses por conta deste estudo. À minha mãe, por me amar e por me ajudar em tudo que eu precisava. Por ter feito minha matrícula na Faculdade de Letras e pelos conselhos de sempre prosseguir nos estudos. Eles me ajudaram a chegar até aqui! Que Jesus os abençoe. Amo vocês!!! 7 Dedicatória Especial Querida Orientadora Profª. Drª. Mariluci Guberman, E stava em meus últimos anos de graduação, fazendo a disciplina FUNDHISP. Entreguei um trabalho sobre a poesia de Sor Juana Inês de la Cruz e fui comunicada de que a professora queria falar comigo. Pensei que meu trabalho poderia ter ficado ruim. Para minha surpresa, a senhora tinha gostado e me convidou para integrar seu grupo de pesquisa. Aceitei imediatamente, sem querer saber se teria bolsa ou não, o que eu queria era aprender e, pela primeira vez, alguém acreditou em mim, alguém me deu uma oportunidade e me olhou. Achava que iria passar pela faculdade como uma página em branco, mas a senhora me ajudou a construir uma emocionante lauda lírica. Lembro-me perfeitamente do dia em que distribuiu os autores e me disse: leva esse livro para casa, leia essa primeira poesia e me diga o que você acha. Foi nesse dia que conheci a poesia de Raúl González Tuñón e me encantei. Sua sensibilidade a levou a dar-me o autor que seria perfeito para mim, e daí por diante a identificação com o universo hispânico só cresceu. Professora Mariluci, por ser uma excelente profissional, mas acima de tudo por ser esse excepcional ser humano, agradeço por sua dedicação e motivação incansável, por sua paciência infinita e por sua confiança em mim e nesta pesquisa. Agradeço pelos livros emprestados, por sua obstinação em me ajudar a conseguir novos suportes teóricos e novas bibliografias que me auxiliaram nessa escritura, pelas longas horas de reuniões, pela primorosa correção, enfim, espero seguir com a especial escola que Deus me presenteou, a escola “Gubermaniana” de ser. E, assim, ter para com meus alunos o mesmo respeito e carinho que tem comigo. Nossa caminhada nunca terminará, pois sempre serei sua fiel escudeira, a caminhadora que caminha contigo, aquela que está sempre disposta a aprender mais e mais. A senhora sempre será minha eterna PROFESSORA! 8 Agradecimentos A o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo amplo subsídio financeiro que me foi concedido, o qual me possibilitou aprofundar minhas pesquisas e concluir o presente estudo. Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, pelo suporte técnico e incentivo acadêmico durante o curso. Ao Professor Dr. Alcmeno Bastos, por sua compreensão e sabedoria, que me ajudou a entender um pouco mais sobre literatura fantástica. Ao Professor Dr. Antonio Ferreira da Silva Júnior, por seu conhecimento e simplicidade. Agradeço a participação no Exame de Qualificação e as sugestões dadas após a leitura detalhada de parte do estudo. À Profa. Dra. Débora Ribeiro Lopes Zoletti, por seu exemplo de humildade e participação no Exame de Qualificação, proporcionando importantes considerações teóricas para esta pesquisa. À Coorda. Profa. Dra. Sonia Reis, pelo exemplo de profissionalismo e dedicação. À Profa. Dra. Ângela Correa, pelo apoio nos momentos turbulentos, pela paciência e, principalmente pela grande simplicidade e humildade em dividir com o outro e entendê-lo. À Profa. Dra. Marília Santanna Villar, por suas observações nas ocasiões do Colóquio de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. A todos os meus professores da Faculdade de Letras/UFRJ e, em especial, ao Setor de Espanhol e ao de Literatura Hispano-Americana. À Profa. Titular Dra. Isis Fernandes Braga, que, com seriedade e competência, expandiu minhas ideias na Pós-Graduação com uma importante base teórica durante o curso “A fotografia, espelho da sociedade”, realizado na Pós-Graduação da Escola de Belas Artes da UFRJ, contribuindo para a tessitura do quarto capítulo da minha dissertação, intitulado “A imagem da Guerra Civil espanhola”. Destaco também a pronta dedicação em sugerir e acrescentar informações essenciais sobre a fotografia, consequentemente sobre a imagem, que foram pertinentes à análise. 9 Agradecimentos Especiais A todos meus familiares, principalmente Tio Ignácio e Tia Felicidade pelo seu carinho e pelo constante incentivo moral e financeiro durante a graduação. Ao meu amigo Antonio, pela amizade e incentivo, e por ter me proporcionado o acesso a alguns recursos bibliográficos durante a pesquisa. Ao meu grande amigo Heitor, pelas horas de terapia impagáveis, por me fazer sorrir quando na verdade queria chorar. Agradeço pelos risos e presença em momentos de angústias e, principalmente por aguentar os meus devaneios. À minha amiga Jamille, por suas orações, palavras de incentivo e carinho que me acalmaram nos momentos de desespero. A minha amiga Aline, por sua ajuda, compreensão e torcida. Peço desculpas por tê-la abandonado nos últimos meses de finalização desse estudo. As minhas amigas Bárbara e Fabiana, pelo auxílio na correção do texto e pontuações adequadas, além de seu apoio e compreensão nos momentos em que eu precisava. Aos meus amigos do trabalho, especialmente Edimar, Luciana, Viviane Mury, Vera, William, Verinha, Vaninha e Edson, que me aconselharam e me apoiaram em todos os momentos. 10 MIRANDA, Dayenny. A poética de Raúl González Tuñón, lirismo de um caminhador. Dayenny Neves Miranda. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2014. xiv, 291.: il.; 30 cm. Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman. Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2014. Referências bibliográficas: f. 265-273. 1. Poesia. 2. Cidade. 3. Guerra Civil espanhola. 4. Autobiografia. I. Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. III. Título. A poética de Raúl González Tuñón, lirismo de um caminhador. 11 Sinopse Análise crítico-literária da obra poética do escritor argentino Raúl González Tuñón. Abordagem da Vanguarda Argentina, bem como dos percursos realizados pelo autor. Ênfase para a análise da imagem citadina e surrealista e da imagem social na Guerra Civil espanhola. Abordagem da personificação de Juancito Caminador à luz da autobiografia. Estudo dos símbolos populares de Buenos Aires, Paris, do conflito bélico espanhol e da presença de Juancito Caminador. 12 M e había ocurrido el nacer y el vagabundear adolescente -cuando era chico miraba llover y me gustaban los agrios dulces […] y cuando de pronto me vi corriendo delante de la muerte -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanosla vida me pareció tremendamente deliciosa y tremendamente, verdaderamente peligrosa. Raúl González Tuñón 13 Sumário Introdução ........................................................................................................ 17 O INÍCIO DA CAMINHADA A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN 1- O passeio da poesia pela modernidade: As Vanguardas Argentinas .......................................................................................................................... 30 2- O Caminhar citadino de um poeta ............................................................... 47 2.1- Em Buenos Aires............................................................................ 47 2.2- Em Paris ......................................................................................... 60 2.3- Nas cidades espanholas ................................................................ 65 CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR 3- Transitando pela imponência da imagem .................................................... 78 3.1- O desfilar da imagem surrealista portenha .................................... 85 3.2- O primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo ........ 88 “Eche veinte centavos en la ranura” ........................................... 89 “Música de los puertos”............................................................... 95 “Adiós a Buenos Aires” ............................................................. 102 “Poetango de la Belle Époque” ................................................. 114 “Motivo para una cajita de música” ........................................... 127 3.3- Pelas ruas parisienses em constante exaltação lírica ................. 135 3.4- O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase ......................... 138 14 “Las viejas catedrales” .............................................................. 139 “Poema del Boulevard Saint Michel” ........................................ 147 “La calle del paso de la Mula” ……………......................……… 154 4- O impacto imagético da Guerra Civil espanhola ....................................... 162 4.1- A defesa da República Espanhola .................................................... 162 4.2- Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936 ..................... 165 4.2.1- As imagens fotográficas da guerra ........................................... 167 4.2.2- O terceiro caminhar: as cidades espanholas do caos .............. 176 “La libertaria” ............................................................................. 177 “Cuidado que viene el Tercio” ................................................... 185 “Domingo Ferreiro” ................................................................... 190 O ÚLTIMO PERCURSO O TRANSEUNTE JUANCITO CAMINADOR 5- A personificação na poesia ........................................................................ 203 5.1- O poeta e a personagem ................................................................... 209 5.2- O último caminhar: O caminhador no espaço poético ...................... 219 “Juancito Caminador” .......................................................................... 220 “Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador) ..... 231 “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador” ........................................................................... 237 “El poeta murió al amanecer” .............................................................. 244 Conclusão ...................................................................................................... 253 15 Bibliografia ..................................................................................................... 265 Anexos ........................................................................................................... 274 Fotos e caricaturas ................................................................................... 274 Poemas analisados .................................................................................. 275 Capas das 1ª ed. dos livros ...................................................................... 290 16 Introdução Iniciamos nossa caminhada pela poética de Raúl González Tuñón realizando um levantamento das obras publicadas pelo escritor. Foram ao total 21 livros de poesia, 1 livro teórico, 6 antologias poéticas (4 publicadas em vida) e 4 obras de teatro, fora as incontáveis matérias jornalísticas, notas críticas, entre outras, publicadas nos jornais em que trabalhou. Nesta vasta produção, podemos identificar as distintas fases do poeta, que, influenciado por seu tempo, retratou em sua lírica a realidade a que o homem do século XX estava submetido. No Mestrado, durante uma fascinante caminhada pela historiografia poética da Argentina, pude aprender, através dos textos estudados, a importância das manifestações culturais e artísticas produzidas em Buenos Aires. Este momento, em que visualizei o imaginário portenho, revelou-me o esplendor do canto poético do escritor argentino Raúl González Tuñón (19051974): a representação simbólica da cidade, suas ruas e formas, como um corpo imaginário, e as relações sociais conflitantes. Em minha Dissertação de Mestrado, foram abordadas poesias de duas localidades distintas, as quais abarcam duas etapas também díspares de sua obra poética: a surrealista, de Buenos Aires, e a social, da Espanha. No entanto, outras fases da poética tuñoneana não foram contempladas, pela exiguidade do tempo de Mestrado. A fim de dar continuidade aos estudos iniciados anteriormente no curso de Mestrado em Letras Neolatinas, Literaturas Hispânicas, sob a orientação da Profa. Dra. Mariluci da Cunha Guberman, retomamos a pesquisa passada para 17 aprofundar e ampliar nossa discussão e análise. Interessou-nos, nesta nova etapa, investigar o modo como o poeta argentino em questão emprega, em sua produção poética, a imagem da capital francesa e como se constitui a questão da personificação do autor em sua obra. Além de Paris, são abordadas também a capital da Argentina e algumas cidades da Espanha durante a Guerra Civil. Cabe ressaltar a importância do poeta argentino no universo literário, pois ele percorreu diversos países, como Brasil, França, Espanha e grande parte da América do Sul e da Ásia, expressando poeticamente o que observou nesses lugares: na Argentina, ampliou seu universo de conhecimento e, a partir das inúmeras viagens, estreitou os temas de suas poesias, como a cidade, as viagens, as revoluções, a aventura e o cotidiano. O cerne da investigação sobre as poesias tuñoneanas traduziu-se pela representação das cidades, pela constituição da imagem citadina, pelo olhar do sujeito-lírico para a urbe, por sua memória e, também, pela representação de Juancito Caminador (possível construção autobiográfica) em sua obra. Em contato com as obras de Raúl González Tuñón, interessei-me pela poética e estratégia de sua poesia, que conseguem exprimir simultaneamente o real e o imaginário. Entretanto, deparei-me com um problema: a escassa divulgação da vida e da obra de González Tuñón no Brasil; inclusive, seu nome é pouco conhecido por pesquisadores brasileiros. Esse fato foi um desafio que me impulsionou a buscar e a aprofundar meus estudos sobre esse autor. Nos últimos anos, na Argentina, a obra tuñoneana passou a ser revisitada, sendo fonte de inspiração para grandes autores contemporâneos, como Juan Gelman. Assim começaram a reeditar alguns dos livros de Raúl González Tuñón e, inclusive, em 2005, houve uma homenagem no centenário 18 de seu nascimento, juntamente com um concurso de poesia que levou seu nome, além da mostra de um vídeo sobre seu poema, “Juancito Caminador”, entre outras homenagens. Nesta Tese de Doutorado, foram abordadas algumas poesias de Raúl González Tuñón compreendidas no período de 1926 a 1974, dos seguintes livros: El violín del diablo (1926); La Calle del Agujero en la Media (1930); La Rosa Blindada. Homenaje a la insurrección de Asturias y otros poemas revolucionarios (1936); Todos Bailan. Los poemas de Juancito Caminador (1935); Hay alguien que está esperando. El penúltimo viaje de Juancito Caminador (1952); Poemas de Raúl González Tuñón Antología, seleção de Héctor Yánover (1962); Raúl González Tuñón Poemas de Buenos Aires, seleção de Luis Osvaldo Tedesco (1983); Poemas de Raúl González Tuñón Antología Poética, edição de Héctor Yánover (1989); Raúl González Tuñón Poesía Reunida, compilação de Adolfo González Tuñón e Eduardo Álvarez Tuñón (2011). Selecionamos, nessas obras, poemas que tratam das cidades de Buenos Aires, Paris e algumas da Espanha, além dos poemas que abordam a figura de Juancito Caminador. Essa seleção levou em conta a limitação do corpus desta pesquisa, pois se contemplasse toda a produção poética de González Tuñón não terminaria em tempo determinado pelas instituições reguladoras. São poemas que abarcam outras cidades e países como Brasil e Cingapura. Percebemos a importância da cidade em sua produção e, para este fim, tratamos de como o poeta observa, sente e registra o espaço urbano e seus símbolos, que se imprimiram em sua memória. Ao pensarmos no olhar do 19 poeta em relação à cidade, tornaram-se necessários os estudos sobre o olhar e a imagem, bem como sobre a memória, a qual possibilita o registro literário. Esta pesquisa divide-se em três partes: (1) O início da caminhada. A Vanguarda argentina e Raúll González Tuñón; (2) Caminhando pelas urbes modernas. As múltiplas imagens líricas de um caminhador e (3) O último percurso. O transeunte Juancito Caminador. Na primeira parte, intitulada O início da caminhada. A Vanguarda argentina e Raúl González Tuñón, faz-se referência ao início da peregrinação do poeta e contém dois capítulos: no primeiro, elaboramos uma breve contextualização do poeta na Vanguarda argentina e, no segundo, um panorama de sua biografia. Por selecionar a cidade como objeto de estudo, torna-se indispensável o conhecimento de como a capital argentina, bem como a capital parisiense e as localidades espanholas foram apreendidas pelo olhar do autor, e o que essas urbes significaram para ele. A obra de Raúl González Tuñón, participante ativo de movimentos artístico-literários que fizeram parte da Vanguarda argentina, como Florida e Boedo, exige a contextualização do poeta nessa época tão fértil para o mundo artístico argentino. Com esse fim, pesquisamos, no capítulo 1, as Vanguardas argentinas (ZANETTI, 1980/1986); (GARCÍA FELGUERA, 1993) e os manifestos da Vanguarda (OSORIO, 1988); (SCHWARTZ, 1995), que são necessários para que tenhamos uma melhor compreensão e dimensão de suas obras poéticas. Raúl González Tuñón (1905-1974) nasceu em Buenos Aires, filho de imigrantes espanhóis; sua mãe faleceu quando ele ainda era criança e tinha sete anos; seu pai, operário, morreu atropelado por um ônibus com pouco mais 20 de cinqüenta anos. González Tuñón foi jornalista e poeta, mas pode-se dizer que foi mais poeta que jornalista. Desde a infância, González Tuñón viveu cercado de magia e política. Sua casa, no bairro Once, estava próxima à Praça do Once, que era um lindo bosque, de onde partiam as famosas manifestações socialistas sempre no dia primeiro de maio. Já sua imaginação era despertada pelos sons dos apitos dos trens e pelos constantes passeios ao porto na companhia de seu avô materno. A esse contexto histórico do autor foi dedicado o capítulo 2 desta tese, intitulado “O caminhar citadino de um poeta...”, e subdividido em: “Buenos Aires”, “Paris” e “Cidades espanholas”. Nesses subcapítulos, fazemos um breve estudo do poeta em seus momentos argentino, parisiense e espanhol. Na segunda parte, denominada Caminhando pelas urbes modernas. As múltiplas imagens líricas de um caminhador, analisa-se a construção da imagem poética tuñoneana nas urbes acima citadas. Para esse fim, apresentamos o capítulo 3, intitulado “Transitando pela imponência da imagem”, que está subdivido em quatro subcapítulos. No primeiro subcapítulo, “O desfilar da imagem surrealista portenha”, aportamos à questão da estética surrealista em Buenos Aires. Para tanto, tomamos como modelo os estudos sobre o conceito surrealista de PAZ (1983). No segundo, “O primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo”, a partir da seleção de cinco poemas, analisamos as imagens surrealistas da capital portenha e como elas atuam nesses poemas do escritor argentino. Percebe-se a importância da cidade (LYNCH, 1999) em sua produção e, por isso, tratamos de como o poeta observa e sente o espaço urbano, como o registra e como esse espaço e seus símbolos (ELIADE, 1991) se imprimem em 21 sua memória. Ao se pensar no olhar do poeta em relação à cidade, tornaramse necessários os estudos sobre o olhar (NOVAES, 1988) e a imagem (SAMAIN, 2005, VILLAFAÑE, 2002). Raúl González Tuñón, como quase todos os poetas de sua época, participou da corrente surrealista, por isso algumas de suas poesias apontam para a transformação do homem através da liberação do subconsciente. Como verificamos no poema “Eche veinte centavos en la ranura”, do livro El violín del diablo, o poeta parte do real e ingressa subconscientemente em sua infância, com o propósito de vivenciar de novo uma etapa feliz de sua vida, através de uma linguagem lúdica. O porto, ambiente constantemente cantado na lírica tuñoneana, foi ressaltado na análise do poema “Música de los puertos”, no qual o poeta expressa seu particular gosto pelos diversos sons produzidos nesse ambiente plural, bem como pelos lugares mais recônditos e pelos símbolos que mais o instigaram a escrever sobre esse baixo mundo portenho, tão ignorado pelas camadas sociais mais altas, mas que provocou a González Tuñón, estimulando-o a dar forma a esse mundo em suas páginas literárias, carregadas de experiências mundanas. Seu particular gosto pelos submundos portenhos, pelo cotidiano desses lugares, por suas gentes e por seus estabelecimentos emblemáticos, fizeram de González Tuñón um cancioneiro citadino, e isso pode ser percebido por meio da análise do poema “Adiós a Buenos Aires”, onde o eu lírico se despede da cidade através de um suave e detalhado passeio por suas ruas. Na composição poética, “Poetango de la Belle Époque”, do livro La veleta y la antena, o poeta se posiciona como o cancioneiro da cidade, 22 evocando de maneira fantasiosa e criativa os espaços por onde passou. Com o seu rememorar, ele propicia ao leitor a imersão em sensações nostálgicas e irreais, exaltando todo o ambiente citadino de forma quase que universal. No contexto surrealista, encontramos o poema “Motivo para una cajita de música”, do livro A la sombra de los barrios amados, em que o eu lírico exalta o cotidiano e o bairro, revelando seu amor pela cidade, por seus locais. Como um excelente observador, o poeta descreve nostalgicamente o ambiente citadino. Nesses versos o sonho será o mecanismo empregado para provocar o lúdico, simbolizado pela “caixinha de música”. No terceiro subcapítulo desta tese, intitulado “Pelas ruas parisienses em constante exaltação lírica”, abordamos o desenvolvimento do Surrealismo tuñoneano em Paris e suas influências. No quarto e último subcapítulo, denominado “O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase”, analisamos três poemas que abordam essa metrópole, investigando, por meio da observação poética do autor, como está construída a imagem tuñoneana da capital francesa, seus símbolos, sua gente. No capitulo 4, “O impacto imagético da Guerra Civil espanhola”, a poesia lírica surrealista cede espaço para o estudo da poesia social de Raúl González Tuñón. Esse capítulo está dividido em “A defesa da República espanhola”, parte em que fazemos um breve estudo sobre o movimento republicano na capital espanhola durante o enfrentamento com as tropas do General Francisco Franco, e em “Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936”. Este último subdivido em “As imagens fotográficas da guerra” e “O terceiro caminhar: As cidades do caos na Espanha”. 23 Para trabalhar a imagem do caos, empregamos o estudo de CALABRESE (1994), no qual o autor discorre sobre o conceito de objeto fractal aplicado à literatura. Este conceito foi amplamente empregado na pesquisa durante a discussão sobre a imagem poética e a imagem fotográfica. Por trabalhar com algumas fotografias bélicas, fez-se necessário o estudo da construção da fotografia de guerra (SOUSA, 1998), desde o seu princípio até o que se chegou com a Guerra Civil espanhola, quando se empregou, neste trabalho, fotografias de um importante fotógrafo espanhol desse período: Agustí Centelles (1909-1985). O primeiro poema, que inaugura a série de análises sobre a Guerra Civil espanhola, trata de “La Libertaria”. Nessa composição, o eu lírico deixa expresso sua comoção diante de um acontecimento brutal que marcou o cenário mundial: a morte de uma jovem de 13 anos durante um confronto entre os soldados e os mineiros asturianos. Esse poema também se assemelha a um hino republicano, pois toda sua métrica garante o ritmo durante sua leitura. O segundo poema abordado é “Cuidado, que viene el Tercio”. Nessa composição, o autor usa seus recursos poéticos para, através do eu lírico, alertar a população perante a constante ameaça. Também, por sua rima e disposição de seus versos, cria-se uma composição muito semelhante a um tipo de marcha comprometida com a guerra. Apesar de manter propostas surrealistas, não podemos deixar de destacar outro marco importante em sua obra que é o caráter social como tema frequente em alguns de seus livros. Destacamos também o poema “Domingo Ferreiro”, pertencente ao livro Hay alguien que está esperando. El penúltimo viaje de Juancito Caminador, que denuncia os desmandos e crueldades praticadas na época da Guerra Civil 24 espanhola. Devido à publicação de quatro obras voltadas para essa temática, não poderíamos deixar de abordar as cidades espanholas na época do conflito bélico na Espanha. Na terceira parte desta tese, intitulada O último percurso. O transeunte Juancito Caminador, aborda-se a representação dessa personagem na obra poética de Raúl González Tuñón. No derradeiro capítulo 5, “A personificação na poesia”, tratamos a questão da autobiografia nos poemas tuñoneanos a partir dos estudos de Philippe Lejeune (1994) e da Revista Anthropos (1991). São dois seus subcapítulos. O primeiro, “O poeta e a personagem” aborda a construção da personagem, a relação entre um e outro, seus pontos consonantes e dissonantes. No segundo, “O último caminhar: o caminhador no espaço poético”, foram analisados quatro poemas relacionados a Juancito Caminhador, com o propósito de averiguar a representação deste como uma possível personificação autobiográfica. No primeiro poema, intitulado “Juancito Caminador”, a partir da apresentação da personagem e sua trajetória verificamos as possíveis confluências existentes entre ela e seu criador, bem como sua particular relação com o espaço físico da cidade e seus elementos, a fim de confirmar essa personagem como uma provável personificação do autor na obra. Em “Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador), buscamos dados que comprovassem a experiência autobiográfica como o exercício pretendido pelo autor, ao atribuir a Juancito a autoria desse e de outros poemas, como também de “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador”, onde o próprio, de forma 25 irônica pressupõe a sua morte. Esse “poder” manifestado pela personagem está vinculado ao livre poder criador do poeta em dar voz e forma a esta que poderia ser o seu reflexo “flaneante”. No último poema analisado, “El poeta murió al amanecer”, verificamos o cumprimento do pleno exercício do pacto autobiográfico existente entre autorpersonagem-sujeito poético, empregado no texto em questão, como forma de testificar Juancito Caminador como um intento tuñoneano de se tornar eternizado em seus versos poéticos, na forma como gostaria de ser reconhecido pelos futuros leitores de sua obra. Os problemas sociais e políticos sempre estiveram no centro da ação e da reflexão de González Tuñón, assim como também a consciência de que a poesia deveria acompanhar os processos históricos. Apesar de possuir livros premiados, de integrar vários movimentos de suma importância na arte literária e de ter convivido com grandes nomes da literatura mundial, como Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Federico García Lorca e Miguel Hernández, suas poesias, até bem pouco tempo, eram pouco divulgadas. Talvez tanto esquecimento não seja casual, em se tratando de alguém cuja voz política se deixou escutar muito longe dos círculos oficiais. Por convicção e eleição própria, sua conduta foi transgressora do poder instituído e, por isso, ficou à margem. Seus poemas retratam essa marginalidade. Em uma entrevista ao escritor e crítico argentino Horacio Salas, González Tuñón elege seus livros prediletos, El violín del diablo, 1926; La calle del agujero en la media, 1930 e La rosa blindada, 1936. O primeiro relata suas andanças juvenis no porto, nos subúrbios, no baixo mundo portenho, tema de toda obra, onde descreve como ninguém esse lado marginalizado de Buenos 26 Aires, como os cafetões e os cabarés de marinheiros, prostitutas, ladrões e canalhas; o segundo, aduz ao deslumbramento que Paris lhe causou com suas mulheres, esquinas, bares e boemia; o terceiro, um livro que reúne algumas ideias políticas da época, González Tuñón se converte em ante-sala da sangrenta Guerra Civil espanhola. Percebemos que Raúl González Tuñón não se acovardava perante o sistema político e que nunca deixou de cantar a alma humana em seus versos. O autor considerava pertinentes todas as formas de expressão e todos os tipos temáticos, sua única preocupação era que respeitassem o desejo primeiro do espírito humano, a fidelidade ideológica. Afirma González Tuñón em seu autorretrato (1997:42) “Para mí todas las formas, todos los temas son válidos. Lo importante es que respondan a un impulso auténtico”. Rául González Tuñón não tinha problemas em ser considerado pouco rebuscado, pelo contrário, gostava disso. Segundo o autor (1997:42), “um poeta popular puede devenir poeta culto, pero difícilmente a la inversa”. Para o autor, mais importante que se enclausurar em uma biblioteca, é ir para a rua e vivenciar a cidade, beber o conhecimento que ela oferece, desfrutar do seu prazer, entregar-se à urbe e permitir o embriagar-se dela, para assim retratá-la de forma fiel e sensível. O objetivo de González Tuñón, durante sua caminhada em busca da forma perfeita entre vida e ofício, era fazer-se entender, levar para o outro sua beleza poética. Cantar o amor e a vida. Doar-se em verso e prosa. Entregar sua alma à sua lírica... 27 O INÍCIO DA CAMINHADA A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN 28 1. O PASSEIO DA POESIA PELA MODERNIDADE: AS VANGUARDAS ARGENTINAS llí estaba la gente de Florida, que representaba una inquietud, la búsqueda de nuevas formas expresivas. […] Igualmente respetable era la inquietud social del grupo Boedo. Ambos son dos grupos interesantes de la pequeña historia literaria porteña. A Raúl González Tuñón 29 O INÍCIO DA CAMINHADA A VANGUARDA ARGENTINA E RAÚL GONZÁLEZ TUÑÓN 1 – O passeio da poesia pela modernidade: As Vanguardas Argentinas Durante o início do século XX, o movimento vanguardista se associou diretamente ao Modernismo Hispano-Americano do final do século XIX, que teve como expoente o escritor nicaraguense Rubén Darío. Escritores de ambos os períodos apresentavam-se como homens do novo século, declarando uma literatura fruto de um presente histórico, marcado por intensas transformações, e negando toda uma estética tradicionalmente denominada como padrão e emblema da elite. Inaugura-se um novo tempo, um novo pensamento se forma; agora, o momento é de Modernidade. Enunciada através de um dualismo incessante, ora tradicional ora revolucionária, essa nova perspectiva passa não somente a surpreender e extasiar, mas também a negar movimentos artísticoculturais anteriores aos seus, iniciando, desta forma, o que Octavio Paz (1989:17) escritor, poeta e critico mexicano, chamou de “tradição da ruptura”. Autor de inúmeros livros, Octavio Paz é referência quando se trata do conceito de modernidade. Em La otra voz, ele afirma que a modernidade “começa como uma crítica à religião, à filosofia, à moral, ao direito, à história, à economia e à política. A crítica é sua principal marca distintiva” (PAZ, 1990:32 T.A). Com a modernidade, as artes passaram a ser críticas de si mesmas, a pensar e serem repensadas enquanto participantes da crítica do mundo. As polêmicas ideias nascidas da crítica como a democracia, a separação entre a Igreja e o Estado, o desaparecimento dos privilégios da nobreza, a liberdade de crenças e opiniões, se difundiram rapidamente por quase todos os países 30 europeus e pelos Estados Unidos e foram por estes, compartilhadas. Contudo, no final do século XIX, as grandes cidades de nossa civilização começam a sofrer uma profunda crise que afetou tanto as instituições sociais, políticas e econômicas como o sistema de crença e valores. Assim, o século XX se inicia com essa crise da modernidade, caracterizada pela incerteza diante dos valores e ideias que formaram a modernidade. Em meio a esse contexto de modernidade, surgem as novas linguagens artísticas, que agora priorizam a arte como reflexão. Outrora as artes tinham como função a contemplação estética e eram destinadas às camadas mais altas da sociedade. Com a modernidade, elas se resignificam, tornando-se ação de uma coletividade. A nova poesia passa a representar o reflexo da realidade e o poeta passa a ser o crítico do real, empenhando-se em registrar por meio de sua linguagem artística “as descontinuidades e intermitências da consciência e dos sentimentos humanos”. (PAZ, 1990:40-41. T.A.) A poesia moderna tem como cerne a reflexão, fazer pensar e expressarse por meio da harmonização das palavras, construindo a noção de revolução. Assim para Paz (1990:60), a nova poesia passa a unir-se à ideia de revolução e esta transforma-se no “mito central da modernidade”. A revolução, agindo como ruptura, como crítica aos valores tradicionais, propicia ao poeta estar em consonância com sua época. Para Raúl González Tuñón, o poeta deve sempre estar comprometido com o momento no qual se vive, por isso para ele a poesia deve expressar “el encuentro de la armonía con su tiempo” (1976:10) A poesia de González Tuñón expressa liberdade formal, audácia, imaginação, as quais são também reveladoras de uma poesia em ação, enfim 31 de uma poesia revolucionária. Em seu único livro teórico La literatura resplandeciente, o poeta tece o que para ele significa a poesia (1976: 141): La poesía es una e indivisible. El poeta que dice: “Esto que hago es circunstancial, para cumplir con mi tiempo; en cambio, debo cuidar la poesía mía, íntima...” es un divagador, un farsante. El verso ¿cómo? ¿De acuerdo a las rígidas preceptivas? ¿En total desacuerdo? El verso libre, mejor. La rima, si viene y sin abusar de ella. ¿El soneto? Una cosa linda, restringida. Lo hicieron muy bien los italianos y sus geniales imitadores españoles. Creemos que no los han superado. ¿El soneto? Un cofre. ¡Hay que poner muchas cosas adentro! Mejor desbordarse, inundarse, deparramarse (aunque no tanto). El hecho de que rechacemos una poesía ultradesquiciada –en general malas copias de viejas experiencias- no justifica a los campeones del sonsonete. Poetas hay que merecen el elogio de los críticos parroquiales porque publican libros llamados diáfanos y de rimas fáciles. Ni unos ni otros. Ni los ultradesquiciados de trivial conformismo en el fondo, ni los que se sujetan a las preceptivas baratas y jamás rompieron el vidrio de la ventana de una academia... (GONZÁLEZ TUÑÓN, 1976:141). Desta forma, González Tuñón reafirma sua crença em uma poesia que provoque a crítica no outro, que cause uma revolução com suas formas e conteúdos e que possibilite a inovação do ato de criação, enfim uma poesia que esteja dirigida a re-invenção de um mundo através da palavra e da reflexão. Ao olhar o objeto, apreendemos dele um significado e o retemos em nosso íntimo particular. A poesia enquanto objeto permite-nos pensar e processar seus vocábulos a partir de associações imagísticas. Segundo Paz (1990:136. T.A.) “Ela é a memória feita imagem e a imagem transformada em voz [...] e essa voz é a voz do homem que está adormecido no fundo de cada homem”. A poesia exercita nossa imaginação e assim nos ensina a reconhecer as diferenças e a descobrir as semelhanças, pois só ela é capaz de trazer à 32 tona essa imagem singular que grita no silêncio. Só ela possibilita libertar nossos sentidos da percepção original. Segundo Octavio Paz (1990:49. T.A.) “a poesia moderna, desde seu nascimento, foi simultânea afirmação e negação da modernidade”. Por meio dessa negação e afirmação, a poesia moderna construiu seus alicerces e fomentou o surgimento de inúmeros movimentos artístico-literários tanto na Europa quanto na América Hispânica. A partir do século XX novas expressões artísticas irrompem na América Latina, ocasionando uma divergência entre o Modernismo Hispano-americano e o ressoar dos primórdios do que viria a ser o movimento das Vanguardas, que inovadoramente marcaram as tendências artística-literárias dos anos 20. De um lado, o grupo dos pós-modernistas, que primava pela simplicidade lírica, pela musicalidade e condenava o prosaísmo sentimental; do outro lado, estavam os mais radicais, os vanguardistas, que, adeptos da ruptura e da renovação da arte até suas últimas possibilidades, buscavam a liberdade artística, exaltavam a plasticidade e a espacialidade dessa nova estética: a Vanguarda. (In: GUBERMAN, 2009:27) O termo vanguarda origina-se do francês avant-garde, que se refere, no contexto militar, a todo deslocamento de uma força que vai para frente do restante em ação ou ataque. Essa palavra já era utilizada no século XIX para se referir às tendências progressistas da época. A primeira menção registrada encontra-se no ensaio de O. Rodrigues, L’artiste, le savant et l’industriel (1825), porém sua abrangência ao conjunto de movimentos artísticos, que inovou o século XX, só acontece a partir do período bélico. Por isso, foi amplamente 33 utilizada para definir o período artístico e literário que antecedeu a Primeira Guerra Mundial e inovou a época de entreguerras. A Vanguarda surge na Espanha diante de um cenário político e social decadente, estabelecido pela crise de 1898. O primeiro movimento vanguardista na Espanha foi inaugurado por Ramón Gómez de la Serna ao publicar El concepto de la nueva literatura em 1908. Em meio ao conceito de Gómez de la Serna, também se desenvolveu o Ultraísmo em 1918. Este aspirava a uma arte liberada dos empecilhos da razão, uma literatura que funcionasse como um jogo disparado e afortunado, sem regras que limitassem a imaginação do poeta. Na América Hispânica, a vanguarda poética surge durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Mexicana (1910), porém, nesse início de movimento, os poetas parecem ignorar esses dois grandes conflitos políticos, detêm-se na estética e decidem avançar na linguagem através da metáfora, que será a grande fonte de inspiração desses escritores. Como já dito, o movimento de vanguardas marcou as novas tendências artísticas do século XX. Esse movimento primava pela plasticidade e pela espacialidade. Como uma crítica aos valores tradicionais do Modernismo de Rubén Darío1, o início do século XX representou um período de profundas mudanças na história literária e artística tanto dos países hispano-americanos como dos países europeus. Os diversos movimentos de vanguarda, nascidos tanto em solo europeu, quanto em solo hispano-americano apontavam para uma mesma direção: a ruptura com o tradicional. Devido à pluralidade de tradições influenciadas por 1 Rubén Darío, poeta e prosador nicaragüense (1867-1916), foi o iniciador e o máximo representante do Modernismo literário em língua espanhola, um estilo rico em musicalidade, que pretendia inovar a arte poética. 34 diversos fatores (sociais, culturais, políticos, econômicos e tecnológicos), os movimentos de vanguarda tiveram várias ramificações na Europa: Cubismo, Expressionismo, Futurismo, Dadaísmo, Ultraísmo, Surrealismo. Na América Hispânica, as vanguardas irrompem quase simultaneamente em diferentes países, embora com distintas denominações (Criacionismo no Chile, Estridentismo e Contemporâneos no México; Ultraísmo, Martínfierrismo e Surrealismo na Argentina). As vanguardas hispano-americanas podem ser divididas em duas fases. A primeira com os movimentos Criacionista, Ultraísta e Estridentista, que parecem culminar em 1926, quando se publica a antologia Indice de la nueva poesía americana, que contribuirá para a segunda fase da vanguarda, o Surrealismo. O momento inaugural das vanguardas na América Hispânica teve origem no Chile, em 1914, através da leitura do manifesto Non serviam, do poeta chileno Vicente Huidobro. Os alicerces estéticos desse texto, que fundam o Criacionismo, vinculados ao exercício da leitura pública, fazem dele o primeiro exemplo daquilo que se postulou chamar de Vanguarda da América Hispânica. Neste e em outros manifestos, surgem os principais conceitos criacionistas de Huidobro, segundo Schwartz (1995:75): “uma arte autônoma e antimimética”. Declara o manifesto (In: SCHWARTZ, 1995:203): No he de ser tu esclavo, madre natura; seré tu amo. Te servirás de mi; está bien. No quiero y no puedo evitarlo; pero yo también me serviré de ti. Yo tendré mis árboles que no serán como los tuyos, tendré mis montañas, tendré mis ríos y mis mares, tendré mi cielo y mis estrellas.2 2 Manifesto lido por Vicente Huidobro no Ateneo de Santiago do Chile, em 1914, e reproduzido em Jorge Schwartz, Vanguarda Latino-Americanas, p.203. 35 Verifica-se nessa nova estética a busca pela verdadeira criação poética. Huidobro exalta o poeta criador e condena o imitador. Dessa forma, Huidobro expõe seu desejo de fazer uma poesia criada por si mesmo e, portanto, diferente de toda a que já foi feita, ou seja, não quer imitar, mas sim criar uma nova realidade. Ele mesmo afirma em seu poema, intitulado “Arte poética” (1976): Por qué cantáis la rosa, ¡oh, Poetas! Hacedla florecer en el poema. Com essas palavras, o autor sintetiza o Criacionismo, pois ele critica nitidamente a ideia da arte como imitação da natureza. A partir das acepções vanguardistas do Criacionismo, jovens escritores espanhóis (Rafael Cansinos Assens, Guilhermo de Torres, etc) inovam lançando em 1918 o primeiro manifesto Ultraísta, intitulado Ultra. Esse manifesto também irá influenciar Jorge Luis Borges, que por estes anos se fazia presente na Espanha. Segundo Guberman (2009:39), “é por intermédio de Jorge Luis Borges que o movimento ultraísta adentra na América Hispânica, inicialmente na Argentina, em 1921, com a publicação do manifesto Ultraísmo, na revista Nosotros”. Este se caracterizava pelas seguintes propostas estéticas (In: SCHWARTZ, 1995:109): 1) redução da lírica ao seu elemento primordial: a metáfora.; 2) supressão das frases de recheio, dos nexos e dos adjetivos inúteis.; 3) abolição dos trabalhos ornamentais, do confessionalismo, da circunstanciação, das prédicas e da nebulosidade rebuscada.; 4) síntese de duas ou mais imagens em uma, ampliando desse modo a sua faculdade de sugestão. A entrada oficial da Argentina no conturbado mundo da vanguarda ocorre também com a publicação (em 1921 e 1922) dos dois números da 36 revista mural Prisma, afixados nos muros de Buenos Aires, da revista Proa e dos livros Veinte Poemas para ser Leídos en el Tranvía (1922), de Oliverio Girondo, e Fervor de Buenos Aires (1923), de Jorge Luis Borges que, após tantos anos no exterior, redescobre sua cidade natal e, influenciado por esse fato, publica seu primeiro livro de poemas, Fervor de Buenos Aires, no qual se verifica a influência da estética ultraísta. Seu estusiasmo pelo movimento Ultraísta espanhol foi, segundo Schwartz (1995:105), o “catalisador na formação da vanguarda Argentina”. O momento político que a Argentina presenciava era propício às transformações. Em 1926, com sua eleição à presidência da República, Hipólito Yrigoyen consegue abalar as forças oligárquicas e principia um governo de reformas sociais que concederá à classe média almejar, pela primeira vez, a possibilidade de uma real participação na vida nacional. O governo de Yrigoyen também foi caracterizado, no ano de 1918, por uma respeitável reforma universitária, que provocou a mudança do sistema educacional argentino e ressoou por toda América Latina. Do mesmo modo, o pós-guerra e a Revolução Russa trouxeram grande influência ideológica para os intelectuais e para a constituição do gosto literário. A partir de 1922, toda ebulição intelectual argentina desencadeia uma explosão de manifestos, editoriais, folhetos e, principalmente, revistas. Tais instrumentos propiciaram maior dinamismo ao espírito de ruptura dos grupos vanguardistas. Nessa década, a Argentina presenciou o surgimento de oitenta e três novas revistas. Toda essa variedade multiforme refletia as polarizações e as tendências que não demoraram a se apresentar. São exemplos os binômios 37 nacional/cosmopolita e poesia pura/poesia engajada, que determinaram os perfis ideológicos das revistas. Após Prisma, a primeira dessas revistas foi Proa, organizada em sua primeira fase (1922-1923) por Borges, Eduardo González Lanuza e Francisco Piñero. Se Prisma e Proa foram as precursoras das revistas de vanguarda, foi com Martín Fierro (1924-1927) que o movimento de fato se consolidou na Argentina. Além dos manifestos, muitas dessas revistas eram dirigidas por Oliverio Girondo e Jorge Luis Borges. Segundo Óscar Collazos (1977), “em 1924 o Ultraísmo chegou a seu ápice”. Borges e outros escritores retomam a revista Proa na sua 2ª etapa; enquanto isso surge a publicação mais revolucionária da vanguarda argentina: a Revista Martín Fierro dirigida por Evar Méndez e Oliverio Girondo como mentor intelectual. Essa revista, que já existia desde 1904, dirigida por Alberto Ghiraldo, e apresentava tendências anarquistas, foi a mais representativa da vanguarda portenha, devido à sua íntima relação com as propostas revolucionárias de inovação total da arte, bem como pelo caráter polêmico que matizava a revista. De acordo com Evar Méndez, MARTÍN FIERRO aparece quase exclusivamente como um jornal de poetas, e em suas páginas registrou-se o mais fiel reflexo do movimento literário de nossa juventude durante os últimos anos, no que havia de mais vivente e moderno e mais vinculado com a poesia, e precisamente a nova poesia. (In: OSORIO, 1988:232). Segundo Jorge Schwartz (1995:105), o impacto das informações das novas tendências e o caráter polêmico dos temas apresentados definiram Martín Fierro como um divisor de águas na cultura argentina. A revista possuía 38 uma função crítica, criadora e informativa, o que significou um abandono quase total dos critérios tradicionais. Oliverio Girondo, principal representante do movimento martinfierrista, como se assumisse o papel de anunciador da nova estética portenha, escreve o Manifesto Martín Fierro, publicado pela primeira vez no quarto número da revista, em 15 de maio de 1924. Nesse manifesto, Girondo condena a arte mimética e afirma que existe a capacidade de cada um criar sua verdadeira e única arte: Diante do mimetismo que eles demonstram... Diante da incapacidade de contemplar a vida sem escalar as estantes das bibliotecas… Martín Fierro tem fé em nossa fonética, em nossa visão, em nossas maneiras, em nosso ouvido, em nossa capacidade digestiva e de assimilação. (In: SCHWARTZ, 1995:115-116). O nome Martín Fierro recobra a obra do escritor argentino José Hernández, poema épico que canta o regionalismo portenho sob a figura do gaucho Martín Fierro, ídolo da raça argentina e símbolo das riquezas tradicionais provenientes de seu país. Ao contrário de Hernández, contudo, os representantes da Martín Fierro não intencionavam transformar a revista num protagonista contemporâneo de um exasperado nacionalismo portenho, conforme os escritores românticos do século XIX, tão pouco outorgar tal tema como lema de sua geração, recusa claramente explícita em seu manifesto (In: SCHWARTZ, 1995:115) “Diante da ridícula necessidade de fundamentar o nosso nacionalismo intelectual, insuflando valores falsos que à primeira alfinetada murcham como porquinhos”. O intento dos martinfierristas era o de contribuir na propagação da arte universal com o que se tinha de mais 39 nacional: a forma de expressão e o discurso argentino. Logo, a eleição do nome, mais do que reportar a todo esse espírito moderno de construção e afirmação da identidade nacional, se originou para exprimir que a voz, da qual se utilizariam suas páginas, era genuinamente argentina. Dentre todas as polêmicas contidas em suas páginas, destacam-se os confrontos entre os grupos literários Boedo e Florida, pólos antagônicos da intelectualidade argentina. Esses grupos surgiram de uma grande bipolarização intelectual formada em Buenos Aires no inicio do século XX: de um lado, o grupo popular Boedo, representado por escritores de acentuado localismo e com propostas literárias socializantes; do outro, o grupo elitista Florida, representado por escritores de exacerbado cosmopolitismo e favoráveis a uma aproximação entre a Argentina e os mais importantes centros intelectuais e culturais da Europa. Florida e Boedo nomeiam ruas de Buenos Aires, localidades com características sociais totalmente díspares. A primeira é uma das vias mais importante da capital argentina, localizada numa região elegante e comercial; a outra se localiza nos arredores da capital, nos subúrbios onde os habitantes são na maioria imigrantes e proletários. Apesar da acepção das duas correntes ser pouco precisa e a distinção entre ambas por vezes confusa, elas estão bem representadas. Do lado de Florida estão os martinfierristas, como: Oliveiro Girondo, Eduardo González Lanuza, Evar Méndez, Jorge Luis Borges, etc, todos reunidos ao redor de uma série de publicações que abrange desde a folha mural Prisma e as revistas Proa (1ª e 2ª fases) até, sobretudo, a Martín Fierro (2ª fase). Esta foi a mais cosmopolita e renovadora das revistas argentinas do período. Em suas 40 páginas, seus organizadores primavam pela incondicional marca da nova estética artística, utilizando-se da ironia, do sarcasmo e do humor, aliados à expressão metafórica ressaltada, principalmente, nas poesias. No lado oposto, empenhados na literatura como meio apropriado de refletir e alterar os rumos da sociedade, estão Roberto Mariane, Leonidas Barletta, Álvaro Yunque e os irmãos Tuñón. Seus modelos são o realismonaturalismo, a literatura russa e a revista Clarté. Seu entusiasmo está na narrativa comprometida com a realidade, que procura descrever um mundo recém-saído do caos da Primeira Guerra Mundial e que tem na Revolução Russa um modelo de evolução social. O grupo possui como instrumento de comunicação cultural as revistas Renovación, Los Pensadores, Claridad e La Campana de Palo. Para Jorge Schwartz (1995), apesar da polêmica entre os dois grupos, existem autores que não pertencem a nenhum dos grupos e são de difícil classificação, como Roberto Arlt, ou aqueles que participaram em revistas de ambos os grupos, como Álvaro Yunque, representante de Boedo, que escreveu para Proa, ou Rául González Tuñón, para Martín Fierro. Contudo, poderíamos afirmar que Raúl González Tuñón compartilhava mais da estética do grupo Florida, pois utilizava amplamente a ironia, o humor e o sarcasmo na maioria das construções metafóricas de seus versos líricos. No entanto, por sua condição social, localista e até ideológica defendia também uma literatura provocadora da reflexão, que fosse capaz de mudar os rumos da sociedade através do emprego da realidade como meio de evolução social. Daí, ele mesmo afirmar em seu autorretrato (1997) que o homem deveria estar comprometido com seu tempo, que sua arte deveria acompanhar e retratar os 41 acontecimentos mundiais. Por isso mesmo, o título de uma de suas antologias poéticas, Diálogo del hombre con su tiempo (1965), representa o comprometimento de González Tuñón com sua época. Boedo e Florida discutiam também sobre a preocupação com o idioma espanhol, ou melhor, com a língua “argentina”. Esta contestação tem sua raiz no século XIX, acendida pelas tendências nacionalistas dos anos 20. “A Martín Fierro tem fé em nossa fonética”, afirma Oliverio Girondo no Manifesto Martín Fierro. Já os autores boedistas consideram imprescindível agregar à língua literária as influências do enorme contingente de imigrantes dos anos 20 e protestam contra a maneira como são classificados pelo grupo Florida, que os define (In: SCHWARTZ, 1992:15) “filhos da espanholada, da italianada, da russalhada, que escrevem mal, sem estilo porque escrevem como ouvem falar nas ruas”. A procedência de ordem social do conflito entre Boedo e Florida reflete de forma clara, no sistema dos sons articulados, tais crenças diferenciadas. Outra polêmica ocasionada pela Martín Fierro foi a repercussão dada ao artigo intitulado “Madrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica”, publicado no jornal madrilenho La Gaceta Literaria (abril de 1927), no qual o escritor Guillermo de Torre, integrante do Ultraísmo espanhol e colaborador de várias revistas de vanguarda latino-americana, critica a influência francesa e italiana na cultura hispano-americana, enaltecendo o eixo Madri–América Hispânica como o único intercâmbio possível entre seus antigos colonizados. Vejamos o trecho extraído do livro de Jorge Schwartz (1992:103): Pois chegou o momento de manifestar claramente o nosso critério. Não podemos mais contemplar com indiferença essa constante captação latinista 42 das juventudes de fala espanhola, esse desfile enorme de estudantes, escritores e artistas em direção à França e Itália, elegendo tais países como centro de suas atividades (sem ao menos se dignarem tocar num ponto espanhol) ou considerando nosso país campo de turismo pitoresco. Daí então a necessidade urgente de propor e exaltar Madri como o meridiano intelectual da Hispano-América. A nosso ver, as novas gerações de estudantes e intelectuais deveriam romper a corrente equivocada de seus antepassados, aprestando-se a penetrar na atmosfera intelectual da Espanha, certos de que aqui podem encontrar não apenas uma acolhida cordial mas até mesmo uma atenção autêntica – mais desinteressada e eficaz do que a que encontram em Paris, por exemplo, representada por meia dúzia de hábeis aproveitadores do latinismo. Em meio a esta declaração desafortunada e preconceituosa, ocorre uma indignação geral na América Latina, que apesar de desejosa pela inovação da arte, possuía uma forte consciência patriótica. Logo, coube a Jorge Luis Borges a publicação em Martín Fierro de um protesto ardente e anticolonialista, denominado “Madri, ¿meridiano intelectual de Hispanoamérica? Sobre el meridiano de una gaceta”, publicado no número 42 da revista Martín Fierro de 10 de julho de 1927. Vejamos um trecho extraído de Jorge Schwartz (1992:105): A sediciosa nova geração espanhola nos convida a estabelecer em Madri (!) o meridiano intelectual desta América. Todos os motivos nos incitam a recusar com entusiasmo o convite. Hei de opinar numa só página de caderno; não os esgotarei. [...] P.S. Não quero ser indigno de minhas lembranças nem pretendo me fazer forasteiro nas que sei guardar de Madri; mas o momento não é de salamaleques, é de verdades. Borges, assim como todos os representantes da intelectualidade argentina, não tinha a intenção de eliminar a cultura espanhola das tradições 43 portenhas, tão pouco menosprezá-la, mas jamais se condenaria a um colonialismo indireto conforme o pretendido por Torre. Já afirmavam os martinfierristas em 1924, em seu manifesto (In: SCHWARTZ, 1995:116): “MARTÍN FIERRO acredita na importância da contribuição intelectual da América, prévia tesourada a todo cordão umbilical”. Está claro que o manifesto Martín Fierro representou a consolidação do movimento vanguardista argentino, e que a questão do caráter nacional suscitada na literatura deu inicio a um debate permanente nas letras latinoamericanas; entretanto, por motivos políticos a revista deixa de circular em 1927. A incessante busca por romper com os antigos conceitos e tradicionais formas artísticas do Romantismo do século XIX foi a força motriz que impulsionou os pensadores e intelectuais desde o Modernismo de 1880 até as Vanguardas do século XX. Essa ideia de ruptura empregada como objetivo de renovação da arte foi a norteadora da trajetória artística hispano-americana desde José Martí até Jorge Luis Borges. Nomes como Rubén Darío, Oliveiro Girondo, Evar Méndez, Vicente Huidobro e Raúl González Tuñón também devem ser recordados como importantes defensores da expressão da modernidade e realizadores das grandes rupturas e novas fundações artísticoliterárias do início do século XX. Enfim, a Modernidade, período de negação e inovação, refletia no homem a angústia diante da incerteza de se entregar a uma nova vida estabelecida nos padrões de uma ideologia revolucionária. O medo do desconhecido, de não saber aonde todas essas mudanças chegariam ou o que poderiam ocasionar, fizera aflorar no homem um sentimento de insegurança. O 44 progresso avassalador, que destruía tudo a sua volta em favor da modernidade, determinou a ideologia do inicio do século XX e propiciou o surgimento da nostalgia, sentimento corrente em muitas obras poéticas. 45 2. O CAMINHAR CITADINO DE UM POETA... Y O que anduve y anduve sé cuán emocionante es partir y volver en los años fecundos de aventura y de lucha. “Ivonne de Galais” - Raúl González Tuñón 46 2 – O caminhar citadino de um poeta... Ah, yo te enseñaré a sentir, a caminar, a cantar a la ciudad. Raúl González Tuñón 2.1- Em Buenos Aires Sabe-se que a biografia utilizada como a única maneira de valorizar a obra de um autor não é pertinente muito menos adequada. Entretanto, para o estudo da poesia de Raúl González Tuñón, a relação existente entre a vida e a obra pode permitir uma leitura mais elucidativa, já que o conhecimento da biografia proporciona o entendimento de certas alusões em seus poemas. González Tuñón nasceu em 29 de março de 1905 na rua Saavedra 614, do bairro do Once, em Buenos Aires, Argentina. Foi o sexto de sete irmãos de uma família de imigrantes espanhóis. Junto a sua família também viviam seus avós maternos e duas tias. Certa vez o autor expressou, em entrevista ao escritor argentino Horacio Salas (entrevista que deu origem a um livro), um resumo de sua vida, rico em detalhes, anedotas e opiniões, que formam “o outro lado” de seus poemas. Ou seja, comentou sobre as pessoas, os acontecimentos e os lugares que o estimularam a transformá-los em matéria poética. Entre todas as recordações, provavelmente as que são mais significativas e que o próprio autor declarou como decisivas em sua trajetória poética são as referências a seus dois avôs: Mirá, creo que el hecho de haber nacido oyendo los pitazos de una estación de ferrocarril, el haber ido todos los domingos durante mi infancia al puerto a comer pescaditos fritos con mi abuelo Manuel Tuñón, y las historias que me contaba mi 47 padre sobre mi otro abuelo, el imaginero, incidieron en mi vida extraordinariamente. Porque mi amor por los puertos y el vagabundaje y los viajes me vienen de ahí. Y en mi sangre y en mi poesía siguen presentes. El imaginero, que es Juancito Caminador,[...]. Y el poeta social, que sería, de algún modo, Manuel Tuñón. (In: Recordando a Tuñón, 1997:28). Durante toda sua infância, o autor viveu junto a seu avô materno, Manuel Tuñón, um mineiro asturiano que trabalhava como metalúrgico na antiga casa Snockel - palavra corrente em seus poemas - e que era socialista como o seu pai. González Tuñón atribui a esse avô sua filiação às causas populares e políticas e, segundo ele, todo esse deslumbramento foi despertado enquanto criança (In: ZANETTI, 1980/1986: 123): “yo tenía nueve años cuando mi abuelo me llevó por primera vez a una manifestación. Yo estaba fascinado”. Essa diferenciação entre seus dois avôs inaugura as duas vertentes de sua obra, que a crítica tratou de caracterizar, como poeta lírico e poeta social. E o próprio autor afirma (In: ZANETTI, 1980/1986: 123): “en mí coexisten las dos constantes que existen en mi obra y en mi vida: la poesía como diálogo del hombre con su tiempo y como aventura total del espíritu, continúan configurando nuestra actitud, al margen de todo sectarismo”. O percurso de González Tuñón pode ser identificado por quatro vocábulos: jornalista, viajante, poeta e militante (do partido Comunista). Raúl González Tuñón está longe de ser um poeta imêmore no contexto da literatura argentina, entretanto, sua obra é pouco divulgada. O reconhecimento que se realiza de sua produção geralmente não provem da crítica oficial. Por todos os motivos, esta situação um tanto quanto marginal é a que dificulta sua inclusão nos grupos Florida ou Boedo, cuja vinculação a um ou a outro permanece ambígua. Ao percorrer os textos sobre a polêmica, seria 48 simples elaborar uma lista de autores que o situasse em um ou outro grupo. Para se estabelecer conexões entre Florida ou Boedo, deve-se considerar os poemas de El violín del diablo e Miércoles de Ceniza, que foram produzidos durante o período em que os grupos disputavam o cenário literário. Dos mais de vinte e cinco publicados por González Tuñón, é mínima a proporção que se poderia vincular à discussão. Sua maior produção se une à outros acontecimentos literários e/ou políticos. Considerando as inúmeras declarações do próprio autor, torna-se notória sua filiação aos Martínfierristas. Compartilha com eles o interesse pela pratica poética, a ruptura contra todo academicismo, especialmente contra os clichês modernistas sustentados pela literatura oficial, a valorização da imagem e da metáfora, a atitude lúdica, o exercício do verso livre e o aparente abandono da rima. A estes elementos poder-se-ia somar a atração que exerciam as correntes européias de ruptura nesses jovens. A maioria destes participava da redação de Martín Fierro e pertencia a famílias da oligarquia ou relacionadas a ela, enquanto González Tuñón, filho de imigrantes espanhóis, era vinculado ao proletariado urbano. Além de sua atividade de jornalista, mantinha com a cidade, com seu povo, com sua língua, outra relação. Essa procedência, essa atenção com personagens marginais e carentes, certamente foi uma das causas que o levou a imprimir outro rumo a sua produção. No grupo Boedo, González Tuñón afirmou ter bons amigos, com os quais compartilhou encontros de café e com os que chegou a colaborar na revista boedista Conducta, somente em 1942, quando já tinha terminado a disputa. As atividades sociais e políticas sempre estiveram no cerne de sua ponderação, assim como a consciência de que a poesia deveria acompanhar 49 as evoluções históricas; por isso, não é incoerente que o tenham associado ao grupo Boedo. Tanto sua atividade poética quanto seu trabalho como jornalista começam quase que concomitantemente entre 1922 e 1925. Seu primeiro poema foi publicado em Caras y Caretas3. Após essa publicação colabora nas revistas Inicial e Proa e, por fim, integra ativamente a redação de Martín Fierro. A partir de 1925 inicia efetivamente seu trabalho no periódico Crítica e, depois em La Nación, El Hogar, Mundo Argentino e, em 1948, no Clarín. De todas essas publicações foi no diário Crítica que sua carreira jornalística começou, pois foi onde o autor registrou suas mais relevantes recordações. Com uma aguçada percepção, seu diretor, Botana4, logo percebeu o espírito aventureiro e livre de González Tuñón, afirmando: “Este Raúl [...] es un pajáro y hay que tratar de tenerlo siempre afuera”. Esta precisa observação de Botana permitiu que o poeta viajasse, como correspondente do diário, a Tucumán (1927), Brasil (1931), Chaco paraguaio durante a guerra em 1932, Patagônia (1933). Suas vivências nesses lugares serviram de estímulo para sua produção poética. Seu primeiro livro, El violín del diablo, surge em 1926 graças a seu irmão Enrique, também escritor, que tinha enviado os originais a um concurso organizado por Manuel Gleizer5 para jovens escritores. O livro ganha o 3 Foi um semanário argentino publicado entre os anos de 1898 a 1941. Foi fundado por Eustaquio Pellicer e foi extremamente popular, sobretudo na primeira época dirigido por José Sixto Álvarez. Em seu desenho destacavam-se as imagens de grande qualidade e em seus textos combinava o humor com o jornalismo mais comprometido, que acompanhou a construção da Argentina moderna e deu conta dos fenômenos políticos, sociais e culturais que atravessaram o país. 4 Natalio Félix Botana Millares, empresário jornalístico uruguaio radicado em Buenos Aires, nasceu em 8 de setembro de 1888 e morreu em 7 de agosto de 1941 em um acidente de carro. O jornalista uruguaio fundou o diário Crítica em 15 de setembro de 1913. O Jornal possuía um tom sensacionalista e chegou a ser um dos mais vendidos do país. Deixou de ser editado em 1962. 5 Nascido em 5 de junho de 1889, imigrante da Rússia, Manuel Gleizer chegou à Argentina por volta de 1900; foi camponês, vendedor ambulante e livreiro. Em 1918, com 29 anos, passa a viver no bairro Villa 50 concurso e como prêmio é publicado. Nessa obra, o poeta aborda os submundos portenhos e a periferia, retratando ternamente essa Buenos Aires de pensões, cafetões, cabarés, marinheiros, prostitutas, ladrões e canalhas. Livro de quarenta e nove poemas que descrevem suas perambulações juvenis no porto, nos subúrbios e nos cortiços. Em El violín del diablo encontra-se um poema escrito quando González Tuñón tinha pouco mais de quinze anos, portanto, em 1920. Esta composição poética, intitulada “Eche veinte centavos en la ranura”, é considerada pela maioria dos críticos como a mais brilhante de seu início de carreira. Nesse poema o autor evoca a zona portuária de Buenos Aires, onde com intensa atividade diurna e noturna existiam insólitos estabelecimentos, nos quais abundavam salões de novidades: no hall se encontravam máquinas, em que ao se colocar a moeda de vinte centavos e girar uma manivela, viam-se paisagens de países distantes, que despertavam o sonho de viajar, fotografias de artistas e postais um tanto quanto pornográficos. Foi esse clima alucinante, como afirma o escritor, que o inspirou a escrever o poema: Fui al Paseo de Julio muchas veces y un día ya me deslumbró, me emocionó totalmente. Fue Eche veinte centavos en la ranura. En esos parques de diversiones increíbles, surrealistas antes del surrealismo, había de todo. […] Salí totalmente fascinado. Había una cantina muy atorranta y simpatiquísima y allí me metí para reunir esos elementos que me habían impresionado. Era un repentista. (In: Recordando a Tuñón, 1997:32). Com essa declaração e esse poema, Raúl González Tuñón antecipa o Surrealismo, como também ocorreu com o poeta peruano César Vallejo. A obra Crespo. Após três anos de compra e venda de livros, Gleizer abre pela primeira vez as portas de sua livraria, La Cultura. Em 1922 fundou uma editora que entrou para a história por marcar o rumo da literatura argentina dos anos vinte. Manuel Gleizer, grande impulsor das letras argentinas, morreu em 3 de março de 1966. 51 abarca descrições do mundo marginal: a mulher mais gorda do mundo, o anão, as tristezas do circo, os portos… O grotesco, a paródia gestual de um mundo desprezado, que encantou a literatura da época, se opõem aos salões resplandecentes da belle époque. Essa temática social cujos reflexos contemporizaram o período de entre-guerras marca o início poético de González Tuñón e o seduz: o mundo canalha e menosprezado, que o poeta vislumbra, torna-se envolvente. O livro atinge um modesto êxito, Rául González Tuñón passa a ser notado nos ambientes literários, atinge a redação do jornal Crítica, que, no âmbito jornalístico, outorgava status de elite da modernidade a quem dele participava. Sobre El violín del diablo vale ressaltar a opinião de Macedonio Fernández, quando o jurado que devia julgar os prêmios municipais à nova geração, que esperava algum reconhecimento, considera o seguinte: El violín [...] seguirá siendo lo que es: una realidad poética de primera agua, un gran libro de un notable poeta, henchido de belleza, de originalidad y de gracia expresiva [...] Raúl González Tuñón, con o sin el premio, es una de las figuras más vigorosas de la nueva generación literaria. (In: SALAS, Cuadernos Hispanoamericanos, 2005:111). Segundo González Tuñón, essa espontaneidade e as inspirações com que o mundo visível o presenteavam refletiram-se em seus livros posteriores. Em contrapartida a atividade jornalística também o seduzia, já que a imprensa argentina conheceu a maior liberdade de expressão do país entre os anos 1918 e 1930, o jornalismo possibilitava ao poeta estar atento às vivências e aos problemas do país e do mundo. 52 Buenos Aires vivia um momento de apogeu do teatro nacional, do circo, dos tangos, do jazz norte-americano. Os poetas, principalmente, González Tuñón vivia com uma extraordinária intensidade e enaltecia a cidade, ao mesmo tempo que cantava a alma do portenho. Foi por essa época que o poeta se interessou pela composição musical, o tango, que, após ter sido reconhecido no exterior, tinha retornado a seu país com um intenso glamour e valorização. González Tuñón, que como Ricardo Güiraldes e Oliverio Girondo, era um grande bailarino, não podia excluir-se do ar de época que pairava sobre a cidade, onde os compassos das orquestras, bem como a voz de Carlos Gardel, presenteavam as caminhadas noturnas dos escritores por esse espaço citadino. Assim, decide escrever alguns tangos exaltando a urbe em constante processo de transformação, embora também marcasse, em algumas canções, a nostalgia do deslumbramento primário por essa capital. Em 1928, Raúl González Tuñón ganha o Prêmio Municipal com seu segundo livro Miércoles de Ceniza, obra que retrata suas experiências durante o ano que percorreu a região argentina de La Rioja6. Nessa produção literária o autor descobre o seu país, ou melhor, o interior de seu país e realiza um reconhecimento de si próprio, bem como da história da Argentina. Com poucas variações da obra anterior, o livro continua com a mesma temática, salvo a incorporação do tango como tema protagônico de diversos poemas. Era evidente: a música de Buenos Aires, depois de ter conquistado as capitais 6 La Rioja é uma cidade da Argentina e capital da Província de La Rioja. Está localizada na porção centrooriental da província. A cidade foi fundada, em 1591, pelo nobre espanhol Juan Ramírez de Veleasco, na época governador da província de Tucumán, que batizou a nova cidade de “Todos los Santos de la Nueva Rioja”, em homenagem à sua terra natal na Espanha. Em 20 de maio de 1591, foi instalada a prefeitura e traçou-se o tecido urbano citadino. Por ter sido uma das primeiras cidades fundadas na região e devido ao isolamento geográfico, até hoje, a localidade conserva características coloniais tanto da arquitetura quanto das antigas tradições. 53 européias, retorna com sua aura de triunfo, contribuindo para sua maior difusão e popularidade. Com o valor da premiação, González Tuñón convida seu grande amigo, o também poeta Sixto Pondal Rios, a viajar para a Europa, mais precisamente para Paris, em 1929. Da experiência vivida na capital francesa, frutificará o seu terceiro livro La calle del agujero en la media (1930). Esta etapa da vida de Tuñón será aclarada no próximo subcapítulo. González Tuñón está diante de uma Buenos Aires em processo de transfomação. Como jornalista se lança em direção aos espaços marginais, onde estão as notícias interessantes, os desconhecidos, como ele afirma em seu quarto livro El otro lado de la estrella (1934:151): Conheço desgraçados, errantes, seres anacrônicos, traseiros cansados, rotos e levados a lugares inimagináveis. O mundo das cidades passa, indiferente, ao lado desses seres. As cidades os tragam. Ninguém vê suas lágrimas, nem ouve sua absurda linguagem, nem vê a surda gargalhada que contrai seus rostos quando explode a loucura, nem lê a simples nota policial que fala de cadáveres encontrados no rio. Nossa profissão, que é uma das mais amargas, sempre nos colocou em contato com essa gente.(...) (Ibid, In SARLO, 2010:282) Logo, devido a seu ofício de jornalista, sua sensibilidade se direciona para a percepção dos marginais sociais, do povo mais carente vítima das transformações urbanas, dos limites da metrópole que cincunda o porto. Sua cidade é a dos pobres, dos oprimidos, dos contraventores, dos marinheiros em viagem, das prostitutas, das pessoas que estão à margem e que ninguém vê. Desta forma, a poesia portenha ganha uma nova forma pictórica, diferente dos costumbristas e da mitologia urbana que Borges estava inventando. Os 54 armazéns, o tango e o compradrio ainda são relatados em seus dois primeiros livros, mas vão perdendo força devido à falta de referências às tradições, pois, como se sabe, ele era filho de imgrantes espanhóis pobres, que foram viver em um bairro carente das tradições locais. Em Buenos Aires, próximo ao porto, proletários, estudantes e desempregados ocuparam antigos imóveis criando a Villa Desocupación, e González Tuñón foi designado pelo jornal a contar o que acontecia naquele lugar. Figurando entre o povo, escreveu uma grande reportagem sobre essas vidas, intitulada “La ciudad del hambre”. Também quando organizaram uma passeata em protesto, González Tuñón esteve com eles enquanto a polícia atirava e batia na população, que corria entre suas casas de papelão. Como reação imediata, Raúl González Tuñón fundou na capital argentina, em 1933, a revista Contra e publicou seu poema “Las brigadas del choque”, uma espécie de arte poética e discurso ideológico, que define seu posicionamento contra a burguesia e contra a guarda civil. Por causa desse poema é preso, solto após pagar fiança e processado. Após esse acontecimento, viaja para Espanha e lá tem conhecimento de sua sentença: dois anos de prisão condicional por incitação à rebelião, o que gera, imediatamente, um manifesto de protesto redigidos por seus companheiros. Assiste, em Paris, ao Primeiro Congresso de Intelectuais para a Defesa da Cultura e retorna à Argentina. A revista desaparece após a publicação de cinco números. González Tuñón, quando esteve no Brasil, na revolução liderada por Getúlio Vargas, escreveu quase todo seu quarto livro, El otro lado de la estrella, que seria publicado anos mais tarde, em 1934. Por isso, o poeta não acreditava na poética nacionalista e afirmou (In: Recordando a Tuñón, 1997: 33): “La 55 poesía es internacional, porque cuando más nacional es, más internacional se torna”. Nesta obra, González Tuñón continua esta mesma fase de sua poesia: o verso amplo que chega a se fundir com a prosa. Ainda escreve um dos seus melhores poemas de amor, “Lluvia”, dedicado a sua primeira esposa Amparo Mon: “Te quiero con toda la ternura de la lluvia. Te quiero con toda la furia de la lluvia. Te quiero con todos los tambores de la lluvia. Te quiero con todos los violines de la lluvia”. Em 1935 publica seu quinto livro, Todos bailan, poemas de Juancito Caminador, uma espécie de “personificação” do poeta, imaginado a partir de uma etiqueta de whisky Johnnie Walker, onde se via uma personagem com bastão e um chapéu caminhando pelo mundo. Certo de seu ofício como poeta, González Tuñón canta agora não somente o amor e a vida descomprometida, mas também os homens dispostos a uma atitude de solidariedade e de combate. Seus poemas alertam para o clima de pré-guerra europeu, o apogeu do jazz, os gangsters dos Estados Unidos, ou seja, já preparavam o leitor para o advento de sua poesia social. Após passar alguns anos na Espanha, o escritor regressa a sua pátria e segue suas viagens pela América Latina. Viaja por Guadalupe, Martinica, Lima e Valparaiso, onde permanece por algum tempo. Em 1940 morre sua primeira esposa Amparo Mon, com quem havia se casado em 1935. Em 1941 publica sua décima obra, Canciones del tercer frente, que reúne quatro livros: Himnos y canciones, A nosotros, la poesía, Las calles y las islas e Los caprichos de Juancito Caminador. O escritor dedica essa obra aos amigos que fez pelo mundo, e nela segue a presença da personagem Juancito Caminador. Ainda em 1941 se muda para o Chile onde vive até 1945. Na terra de Pablo Neruda 56 funda o diário El siglo, escrevendo duas colunas diárias, dando continuidade ao seu estilo mordaz e irreverente. Enquanto isso, na Argentina de 1943, explode a reforma populista com o governo peronista. Ainda no Chile, em 1943, publicou Himno de pólvora, com poemas e textos em prosa, cujo tema central trata dos feitos da guerra, e a belíssima Elegía en la muerte de Miguel Hernández. Após o conflito bélico espanhol, sua poesia será um entrelaçado, onde o social e o político se entrecruzarão com uma atitude lírica gerida pela nostalgia e pela ternura. Afirma o poeta: Creo que todo tiempo por venir será mejor. Creo, sí, que en el tiempo pasado […] siempre hay algo que fue mejor, entrañable, que es lo que merece perdurar y forma la base sutil de ese sentimiento tan puro que es la nostalgia. […] Creo que no es uno el que se mete en la época, es la época la que se mete en uno, con sus ráfagas puras e impuras. (In: Recordando a Tuñón, 1997: 36) Em terra chilenas, no ano de 1944, conhece uma outra mulher: Irma Falcón, em um comitê de ajuda à França da Resistência. Apaixonam-se e vivem juntos por cerca de um ano. Contudo dois anos após a implementação da política populista da Argentina peronista, o poeta decide regressar a Buenos Aires, em 1945, deixando Irma. Porém uma parte sua ficava no Chile: um ano depois, 1946, nascia Aurora Amparo, sua filha. Em 1945 publica seu Primer Canto Argentino. Essa composição poética está estruturada em quatro partes, nas quais se alternam a história passada e a presente, uma espécie de canto geral das lutas do povo argentino. É a etapa de acentuação política na obra de González Tuñón, portanto, pode-se dizer que o acento está colocado na poesia e que os sonhos, a vida cotidiana, a magia são quase imperceptíveis perante seu discurso político. 57 No início dos anos cinqüenta, Raúl González Tuñón conhece outro amor de sua vida: Nélida Rodríguez Márquez, que o acompanharia até sua morte. Casa-se com ela, em 1952, e publica Hay alguien que está esperando. Nesse livro, como os que se sucederão, o autor retoma o lirismo dos primeiros poemas e recorda as pessoas queridas já ausentes. Em Todos los hombres del mundo son hermanos (1954), o poeta volta a buscar os objetos poéticos que o arrebataram no início de sua carreira. Desta forma, reaparecem em seus poemas o bairro, o tango, o porto e sua vida pessoal; embora nenhum desses elementos deixassem de ser aludidos em suas composições, eles se encontravam mais discretos e menos evidentes. A la sombra de los barrios amados (1957) constitui uma etapa de síntese da poética tuñoneana, retomando os objetos e os lugares que o deslumbraram quando jovem. Também escreve poemas em homenagem às pessoas com quem vive ou viveu. Nessa fase sua poética, totalmente consolidada, reflete o convívio harmonioso do poeta social com o poeta lírico. A partir de então sua vida transcorre em pleno exercício poético. Admirado pelos jovens poetas, surpresos com a sua generosidade, seu tratamento sempre amável com os que se iniciam nessa profissão, um grupo juvenil, próximo à estética de González Tuñón, formou uma aliança literária chamada “El pan duro”, que funcionou do ano de 1955 a 1957. Desta coligação surgirá o primeiro livro de Juan Gelman: Violín y otras cuestiones, em que González Tuñón escreve o prólogo, e José Luis Mangieri criará a editora La Rosa Blindada, na qual serão publicadas algumas das últimas produções de Raúl González Tuñón. 58 Entre 1945 e o ano de sua morte, o escritor vive em Buenos Aires, porém sua disposição para as viagens o leva em 1953, 1958 e 1971 a participar de diferentes celebrações na União Soviética. Também viaja para La Habana em 1963 onde forma o corpo de jurado de poesia para o Premio Casa de las Américas. Na primeira dessas viagens, além de conhecer a União Soviética, como integrante da primeira delegação cultural, visita Varsóvia, Praga, Pequim e Shangai. Anos mais tarde viaja como convidado especial ao Primeiro Congresso de Escritores de Ásia e da África, percorrendo ainda Moscou, Estocolmo, Amsterdam e Genebra. A ultima década de vida de Raúl González Tuñón foi intensamente produtiva: Demanda contra el olvido (1963), Poemas para el atril de una pianola (1965), Crónicas del país de nunca jamás (1965), El rumbo de las islas perdidas (1969), La veleta y la antena (1969) e dois livros póstumos La literatura resplandeciente (1976) e El banco en la plaza (1977). Diferente dos seus outros livros, La literatura resplandeciente (1976) é um texto teórico onde o autor desenvolve o conceito de “realismo romântico” , pois essa era a denominação que ele atribuía a sua estética literária. O termo substantivo, e por isso central, é o do realismo ao que se acrescenta o qualificativo romântico. Inverter a ordem seria alterar a proposta do poeta. Este conceito parte da compreensão de que todo grande escritor reflete a sua época e, portanto, é realista. Para fazê-lo, usa fatos cotidianos, situações da vida e os transforma em linguagem literária, imprimindo a marca pessoal do autor. É uma composição de vocábulos que remetem a uma época específica, porém poderia ajustar-se a todas, inclusive a atual. Para González Tuñón houve 59 realistas românticos em todos os tempos. Ainda nesse livro, inclui várias crônicas. Raúl González Tuñón também chegou a produzir obras de teatro. No total foram quatro: Reunión a medianoche (La casa de remate) em 1934, La calle donde yace el corazón (El desconocido), escrita durante a década de trinta, mas incluída em seu último volume, Dan tres vueltas y luego se van, em colaboração com Nicolás Olivari em 1934 e La cueva caliente em 1957. O escritor também produziu quatro antologias poéticas, uma delas publicada pela editora Losada em 1974, Antologia poética de Raúl González Tuñón; antes havia organizado: La luna con gatillo (1957), em dois volumes, Diálogo del hombre con su tiempo (1965), seleção breve que inclui poemas escritos entre os anos de 1925 e 1964; nesse mesmo ano, Poesía de Raúl González Tuñón. Em 1968 é premiado pela Fundación Argentina para la Poesía, com o “Grand Premio de Honor”. Em 1970 lhe é outorgado um prêmio pela Fundación Odol, que premiava, a cada dois anos, poetas novos e antigos da Argentina. Em 1972 recebe o Grand Premio de Honor de la Sociedad Argentina de Escritores (SADE). Na noite anterior a sua morte escreve seu último poema. Estava por completar setenta anos e parte no dia 14 de agosto de 1974 para se encontrar com Federico García Lorca, Miguel Hernández, Amparo Mon, seu irmão Enrique e seu avô socialista, para caminhar pelo céu, pintando-o de poema e de revoluções... 2.2- Em Paris 60 Como todos os jovens poetas da época, González Tuñón sonhava em conhecer a Europa, mais precisamente Paris, por esta ser o berço da intelectualidade literária europeia. Contudo, por ser de origem humilde, o escritor não possuía qualquer recurso financeiro que lhe possibilitasse chegar à Europa. Então, por volta de 1928, Tuñón participa do “Concurso Municipal de Poesia” e seu segundo livro ganha o concurso. Com esse dinheiro, o poeta convida seu amigo Sixto Pondal Ríos e, em 1929, os dois partem em direção à cidade luz. Realiza a viagem em um barco espanhol chamado Cabo Palos, que em seu percurso ia parando nos portos de algumas cidades. Foi assim que González Tuñón conheceu: Santos, Rio de Janeiro e, depois toda a costa espanhola, as Canárias, Alicante, Málaga, Valência, Barcelona e, por fim, Marselha e Paris. Sua experiência na cidade parisiense provocará um grande amadurecimento não só em sua obra, mas também nele mesmo enquanto homem. O dinheiro do prêmio acabou rapidamente. Assim, para permanecer na França, ele e Pondal enviavam notas ao jornal Crítica, que pagava a eles o mesmo valor que o La Nación, um valor alto em comparação a este prestigiado jornal. Mas, até o dinheiro chegar, passaram muitas necessidades, fome, e muitas vezes, eram socorridos pela generosidade do correspondente do jornal Crítica na Europa, Edmundo Guibourg, que lhes dava de comer. Essa viagem foi um marco para sua poesia. Sua trajetória pelo Velho Mundo tem duração de um ano; percorre algumas cidades espanholas, mas se estabelece realmente em Paris. Nessa cidade vincula-se a círculos literários e entra em contato com o Surrealismo. Apesar de não ter um profundo 61 conhecimento da estética surrealista, o autor já possuía inúmeros poemas que se inseriam nessa corrente. González Tuñón não acreditava ser um surrealista nato, mas suas poesias apontavam para a liberação livre do inconsciente humano, permitindo que muitos críticos, entre eles Héctor Yánover (In: SALAS, 1975:170) afirme: “Raúl como ninguém viveu sua aventura e seu tempo. Como ninguém o testemunhou. Foi surrealista, ainda sem sabê-lo, nosso melhor surrealista. Foi surrealista, foi mágico. É mágico”. E segue sua pontual observação sobre o estilo tuñoneano de ser e escrever, “Sempre esteve – tal como agora- com os jovens, porque ele é jovem. Sempre esteve com a revolução porque todo poeta é a revolução”7. Da experiência vivida na cidade francesa surge, no mesmo ano (1930), seu terceiro livro La calle del agujero en la media, no qual exerce uma versificação menos formal e amplia o verso livre. Sua poesia ganha liberdade e desprende-se de costumes poéticos passados como os versos rítmicos alexandrinos. Desta forma escreve poemas, como “La cerveza del pescador de Schiltiheim”, “La calle del agujero en la media” e “Escrito sobre una mesa de Montparnasse”, que muitos críticos consideram sua melhor composição poética e que integra o conjunto de trabalhos mais representativos da vanguarda latinoamericana de inícios do século XX. Nesse último poema González Tuñón expressa seu deslumbramento por Paris, sua sensação de solidão e comenta (2005:28): “Vengo de Buenos Aires, digo a mis amigos desconocidos, de Buenos Aires que es tres veces más grande que París y tres veces más pequeña.” Em toda sua obra poética percebe-se um argentino apaixonado por 7 Raúl como nadie vivió su aventura y su tiempo. Como nadie lo testimonió. Fue surrealista, aún sin saberlo, nuestro mejor surrealista. Fue realista, fue mágico. Es mágico. Siempre estuvo – tal como ahora- con los jóvenes, porque él es joven. Siempre estuvo por la revolución porque todo poeta es la revolución. 62 Paris, por suas mulheres, por suas esquinas, por sua boemia, enfim pelo Surrealismo. Entretanto a Paris que extasiou o poeta, não é só aquela que também encantou a outros poetas latino-americanos, aquela dos lugares mais elegantes e renomados. A Paris tuñoneana vai mais além, penetra no profundo do que toda cidade tem, no que a faz ser totalmente uma cidade, mas que aos olhos da maioria dos estrangeiros não se mostra, ou não lhe agrada: seu subúrbio. Por isso, González Tuñón pode afirmar em suas poesias uma Paris autêntica e real, uma cidade de todos, ricos e pobres, uma cidade totalizante. Em uma carta que Raúl González Tuñón escreve para seu irmão Enrique, desde Paris, em novembro de 1929, ele declara sua experiência parisiense e faz uma crítica aos literários que falam de Paris como se realmente a conhecessem, mas que só andaram na Paris do glamour: (In: ORGAMBIDE, 1998:235-236): Puede hablar de París quien ha sabido pulsar su vida multiforme, quien vive como simple y oscuro ciudadano en esta ciudad adorable. Creo que a mi regreso llevaré una lección de entusiasmo y de modestia. Al contrario de ciertos literatoides latinoamericanos que vuelven a su país hablando de todo sin haber salido del gran boulevard o el bullicio elegante de alguna boîte – que a mí también me gusta, aunque prefiero los barrios proletarios como Menilmontant, el bal mussette de la plazuela de Contrescarpe, las tabernas y las carnicerías de la rue Mouffetard, la plaza du Tertre, y la plaza Blanche – donde es “toujours dimanche”, las ferias ambulantes y el camión cocina donde, siguiéndolo barrio tras barrio, como apenas por dos francos y me queda para un buen “coup de rouge”, un tinto francés maravilloso... [...] Guibourg y Daniel Schweitzer, me hicieron conocer casi todos los barrios de las “Puertas” de París. 63 Ainda nesta carta, podemos perceber suas impressões e algumas de suas reflexões políticas e estéticas: sua admiração pelo comunismo, sua dura crítica aos escritores argentinos mais afortunados, que conseguiam o desejado sucesso na cidade luz usando meios obscuros, como a influência da Embaixada ou a compra de críticos baratos, seu particular gosto por grandes escritores franceses como Apollinaire, Zola, Mallarmé, Cézanne, Baudelaire, Rimbaud, Aloysius Bertrand, sua opção pelo realismo e seu descobrimento e reconhecimento da estética surrealista. Suas andanças por Paris o comovem, o colocam constantemente em reflexão sobre si mesmo e sobre o mundo e, ainda que o apogeu do Surrealismo já tivesse passado, ele havia deixado um limite preciso: um antes e um depois na poesia moderna. A Paris de 29 respirava um “ar de surrealismo”, era possível vislumbrá-lo em cada canto da cidade e Tuñón o absorve, embriaga-se dele e o exerce em sua obra. Os símbolos da modernidade como o cinema e o jazz abrem o caminho de temas e formas que seguirão em toda sua obra. É nesta etapa que ao eu central da poesia se acrescenta a presença de uma segunda pessoa: “los camaradas”, os proletários, as mulheres que o encantam, um amigo saxofonista, o vendedor de globos, etc. Além disso, sua posição política ainda não está totalmente solidificada. Por fim, após passar um ano na capital francesa, González Tuñón retorna a Buenos Aires devido ao fechamento irregular do diário Crítica, pelo então presidente General Uriburu, o qual havia chegado ao poder através de um golpe militar aplicado no governo de Hipólito Yrigoyen. Como Tuñón sentia uma profunda gratidão pelo diretor do jornal, Natalio Botana, ao qual devia 64 muito, pois era tratado pelo mesmo como se fosse um filho, ele decide não se filiar a nenhum outro periódico da época e viaja para o Brasil. A capital francesa representa para o poeta seu sonho concretizado, seu deslumbre juvenil. Nela, ele pôde afirmar seu ofício de poeta e ser “lúdicamente” endossado por muitos de seus autores favoritos, principalmente, Baudelaire e seu flâneur, com os quais o autor demostrava profunda identificação. A Paris tuñoneana é a Paris de um estrangeiro, mas ao mesmo tempo é a Paris de um “legítimo” europeu, que procurou concretizar em sua poesia uma cidade estonteante com raios de luminosidade que revelam uma realidade com algo de surreal. 2.3- Nas cidades espanholas Esta etapa corresponde à segunda fase da obra de González Tuñón. Nela o poeta assinala sua confiança no papel do artista como indivíduo dentro da sociedade e indica a mobilidade do escritor, membro do Partido Comunista, que aceitava a doutrina do mesmo, sem contudo abandonar o olhar crítico pessoal de sua poesia, acreditando que o poeta deve estar sempre muito consciente de suas convicções e sentimentos. González Tuñón, por ter vivenciado o processo político do peronismo 8, na Argentina, e observado a lentidão das mudanças sociais, tratou de mostrar 8 Peronismo é a denominação dada genericamente ao movimento nacional justicialista criado e liderado a partir do pensamento de Juan Domingo Perón eleito presidente da Argentina em 1946, 1951 e 1973. Perón possuía um governo popular apoiado pela Igreja, pelo Exército e pelo Movimento sindical, e baseava-se num forte nacionalismo, centralizado no poder do Estado. Perón ainda contava com o carisma da primeira-dama, Eva Perón. Apesar disso, seu governo mostrava-se autoritarista e punia de forma severa quem fizesse críticas ao governo. 65 em sua poesia civil e heróica o caminho a seguir e o exemplo dos grandes lutadores. Os versos de González Tuñón possuem uma qualidade lírica exemplar, bem como a identificação sensível do autor com os temas que aborda. O político e o poeta vivem em busca de um mundo melhor. Foi um fervoroso militante antifascista e participou de alguns acontecimentos políticos europeus, como a greve dos mineiros de Asturias (1935) e a Guerra Civil espanhola (1936-1939). Toda sua obra composta nessa fase toma como tema fundamental esses dois eventos. Ao visualizar os confrontos ocorridos em terras espanholas, durante os anos que ali permaneceu, o poeta foi arrebatado por um sentimento comovedor, que o levou a escrever La rosa blindada (1936), Ocho documentos de hoy (1936), Las puertas del fuego (1938) e La muerte en Madrid (1939). Em sua segunda viagem à Europa, em 1935, Raúl González Tuñón chega à Espanha pela primeira vez, ainda que antes tivesse estado em vários portos desse país. Essa foi uma viagem de lua de mel, após seu casamento com Amparo Mon, sua primeira esposa. De acordo com o autor, sua segunda viagem corresponde ao que ele chamou de memorável em sua vida de poeta, de jornalista, de homem do seu tempo, foi a que mais deixou marcas em suas experiências. Viveu por quase um ano na capital espanhola, e conforme suas palavras (In: Recordando a Tuñón, 1997:37): Viví en constante estado de exaltación lírica, pero también de exaltación civil. Me encontré allí (ya en Buenos Aires había escrito el poema “La Libertaria”) y fui a saludar a La Pasionaria9 y ella 9 Isidora Deolores Ibárruri Gómez (também conhecida como La Pasionaria) foi uma líder comunista espanhola. Nasceu em Gallarta, uma localidade de Biscaia (província do País Basco) na Espanha, em 9 de dezembro de 1895. Em 1918 escreve seu primeiro artigo assinado com o pseudônimo de La Pasionaria, que a acompanha a vida toda. Em 15 de abril de 1920, filia-se ao Partido Comunista espanhol, no qual permaneceria por toda sua vida, e o qual presidiria a partir de 1960. Ela distinguiu-se durante a Guerra 66 me contó- minuciosamente- todo el drama de Asturias, me sentí tremendamente tocado. Assim que chega à Espanha, González Tuñón, que já tinha conhecido a Federico García Lorca em Buenos Aires, entra em contato com ele e com Pablo Neruda, na época Cônsul do Chile naquele país. O escritor argentino ao saber de sua condenação na Argentina, por incitação à rebelião, ganha a solidariedade dos poetas espanhóis, Vicente Aleixandre, Rafael Alberti, Miguel Hernández e León Felipe, que assinam um manifesto de protesto, levado por César Vallejo para Paris, onde o ratificam também André Gide, André Malraux, Louis Aragon, Jean Cassou, entre outros. Imediatamente González Tuñón se associa ao mundo intelectual madrilenho e se comove intensamente com a repressão do levantamento de Asturias. A ideologia se unia nesse caso à origem de seu avô asturiano, que despertou seu sentimento revolucionário, expresso nos poemas “Recuerdo de Manuel Tuñón” e “La copla al servicio de la revolución”: Este último registrado a seguir. En Mieres nació mi abuelo, mi abuela en Pola de Siero. La capital de mi sangre se debe llamar Oviedo. O poema autobiográfico “La copla al servicio de la revolución”, expressa a identificação irrestrita avô-poeta através de comparações, que levaram González Tuñón ao mundo do combate e da poesia. Civil espanhola, na oposição ao General Franco. Exilou-se na URSS após a vitória de Franco, e regressou a Espanha em 1977. Faleceu em Madri em 1989. 67 Esse confronto dos mineiros asturianos, em 1935, impressionou o poeta, posto que jamais tinha visto uma realidade tão violenta e cruel, nem mesmo durante os anos em que foi correspondente do diário Crítica. O resultado desse choque com a realidade foi a elaboração poética, esta vez dura e combativa de La rosa blindada em 1936, onde, a partir de um tema bélico a poesia se expressa tanto em verso rimado quanto em longos períodos de verso livre e prosa. Essa obra reúne todos os elementos fundamentais da “épica” de González Tuñón, ações heróicas dos mineiros com suas mulheres e filhos, a história de Aída La Fuente morta em um vale mineiro de Asturias e poemas onde anteciparia o sangrento levantamento de Franco. A península estava em ebulição: o enfrentamento entre esquerda e direita era iminente e chegaria em julho de 1936. González Tuñón começa a escrever La rosa blindada. Esse livro foi o precursor da poesia social na América Latina, visto que não se tinha notícias de obras poéticas desse cunho antes da publicação do referido livro. Raúl González Tuñón também seria o responsável pela transformação na poesia de Miguel Hernández, em direção a uma temática mais enraizada com sua circunstância política, conforme afirma o autor Andrés Sorel no seu livro Miguel Hernández, escritor y poeta de la revolución (1976). Conforme González Tuñón (In: CUADERNOS HISPANOAMERICANOS, 1978:97), Miguel Hernández [...] continuaba la línea de una retórica muy brillante. [...], pero trabajaba dentro de las formas tradicionales hispánicas. Él me oyó discutir alguna vez con Neruda. Yo estaba muy dolido por el drama de la cuenca minera […] Yo reiteraba aquellas palabras de Jacques Roumains, el gran poeta haitiano […] La frase es de su ensayo La poesía como arma, y expresa: “Hay momentos en la historia del mundo en que la poesía deviene un arma, puede y debe convertirse en un arma”. Miguel me dio una cita en una 68 tabernita […] Tenía los ojos llenos de preguntas. Yo insistía en la posibilidad de una eventual interpretación poética en determinados hechos sociales, y le insistía en que el caso es buscar la forma que corresponda mejor al contenido […]. No sé si aquel día Miguel quedó convencido, aunque más tarde tuve motivos para pensar que sí. A poucos meses do regresso de González Tuñón a Buenos Aires, explode a Guerra Civil na Espanha. Na Argentina reinava o autoritarismo e o poeta era observado pelo governo. Após publicar Ocho documentos de hoy, onde reunia parte de seu trabalho solidário com a República espanhola, teve conhecimento do assassinato de Federico García Lorca e decidiu que seu lugar seria na Espanha. Consegue, então, que La Nueva España, um jornal republicano editado em Buenos Aires, o enviasse como correspondente de guerra. Dessa experiência surgiram Las puertas del fuego e La muerte en Madrid. Nesse último livro dedica o poema “Muerte del poeta” a seu grande amigo García Lorca. Abaixo está um dos trechos do poema (In: GONZÁLEZ TUÑÓN, 1976:131): ¡Qué muerte enamorada de su muerte! ¡Qué fusilado corazón tan vivo! ¡Qué luna de ceniza tan ardiente en dónde se desploma Federico!... Como jornalista, conservou a mesma comoção nas notas que enviara a El Diario de Buenos Aires, e ao jornal republicano La Nueva España, para os quais fora designado correspondente a fim de noticiar tais confrontos. Nessa função, visita as frentes de Jarama e Utrera, testemunha a defesa de Madri, percorre Barcelona e Valência participa ativamente do “Segundo Congreso 69 Internacional en Defensa de la Cultura” e do “Congreso de Intelectuales Antifascistas” em Valência, em 1937. Nesta época, um fato marca profundamente a vida do poeta das revoluções: em 1935, Federico García Lorca, León Felipe e, sobretudo, Miguel Hernández, que segundo o poeta o seguiu, sabiam que ele estava escrevendo os poemas de La rosa blindada; imediatamente, León Felipe organizou um ato no Ateneu de Madri, durante o qual González Tuñón leu os poemas mais combativos do livro em questão. Conforme o escritor argentino, ao terminar sua leitura, aproxima-se uma jovem de luto e pede-lhe uma cópia da composição poética “La Libertaria”, alegando ser irmã de Aida La Fuente, a protagonista do poema. Passam-se dois anos e González Tuñón volta à Espanha como correspondente, de acordo com suas próprias palavras (In: Recordando a Tuñón, 1997:38): [...] se realizan en Madrid un homenaje a los periodistas de todo el mundo que estábamos allí. Era un acto con el folklore de los distintos países representados. En una de esas, el acto termina con un coro solemne que canta La libertaria. Me quedé impresionado con eso. No dijeron quién era el autor. Fui al escenario dispuesto a decirlo, pero una lamparita me iluminó. […] en lugar de decir que yo era el autor, pregunté quién era el autor. Me dijeron: “Un autor desconocido, autor anónimo”. ¡Autor anónimo! ¡A los 32 años! Ao contrário de outros poetas para os quais a militância adquiriu um papel primordial, González Tuñón pôde fugir à doutrina a golpes de poesia. Inclusive seus artigos em jornais comunistas revelam sua lucidez e seu espírito crítico. É fundamental confrontar os poemas sociais com o prólogo de González Tuñón em La rosa blindada, no qual ele define o que deve ser poesia: 70 Y si una pretensión tengo es la de ser un poeta revolucionario, la de haber abandonado esa especie de virtuosismo burgués decadente, no para caer en la vulgar crónica chabacana que pretende ser clara y directa y resulta ñoña, sino para vincular mi sensibilidad y mi conocimiento de la técnica del oficio a los hechos sociales que sacuden al mundo. Sin que lo político menoscabe a lo artístico o viceversa, confundiendo, más bien, ambas realidades en una., (In: GONZÁLEZ TUÑÓN 1962:12) Ainda no prólogo, González Tuñón explica que uma poesia revolucionária deve conter três características, para ser autêntica: 1º Cuando poesía y revolución se confunden, son consubstanciales […]. Es decir no menoscabando la poesía en sí, haciéndola perdurable por su contenido estético además de su contenido humano. 2º Cuando el contenido social corresponde a la nueva técnica. No se trata de negar el proceso poético […], pero resulta absurdo componer hoy poemas ceñidos a tal o cual regla formal. 3º Pero no hay que confundir técnica nueva […] con travesuras gramaticales, etc., o poemas sin ritmo […]. Porque, generalmente, esa actitud poética que fue una reacción saludable contra el academismo, está reñida con ese ritmo de marcha, de himno […] que debe tener casi siempre el poema revolucionario. Llamo “técnica nueva” al conocimiento y a la superación de todas las técnicas, a la desenvoltura que nos da ese conocimiento, a la libertad de tonos, ritmos, imágenes, palabras, y a lo que siempre tuvieron los poetas de cada época creadora,[…] a lo que sigue la línea poética que nació con la primera palabra pronunciada por el hombre en la tierra: a la personalidad de un poeta. (In: GONZÁLEZ TUÑÓN 1962:13/14) Já foi dito anteriormente que La rosa blindada e La muerte en Madrid correspondem ao período de aproximação de González Tuñón à Espanha e à Guerra Civil, e que nessa época sua poesia sofre uma profunda transformação. No seu primeiro momento ficaram a exaltação do eu e de seu mundo; no segundo, que trata da poesia bélica, não se dissipam essas características, 71 mas se incorporam de outra maneira: o eu lírico se direciona para o outro, transformando-se em um sentimento universal. Em La rosa blindada, o poeta recorre à narrativa e, em La muerte en Madrid, insere estrofes populares da guerra em forma de epígrafes. Esta eleição implica uma mudança em sua concepção poética, sobre a qual adverte no prólogo. A transformação identifica-se com a problemática espanhola: utilizar a narrativa ou as estrofes é inscrever-se em uma tradição; neste caso, tipicamente popular, é dar conta da Espanha ainda que não se a nomeie. Raúl González Tuñón afirma (In: ZANETTI, 1980/1986:134): “Si quiero llegar al pueblo español debo partir de él, de su lenguaje, de sus tradiciones, y por ello elige el romance o las coplas”. A narrativa não é o único registro empregado por González Tuñón, abundam os poemas compostos com quartetos ou tercetos octossilábicos. Contudo o poeta conserva o gosto e a liberdade de empregar diversos tipos de estrofes em um mesmo poema ou o verso livre ou o poema em prosa. A rima também preserva a mesma independência. É considerável o papel de pioneiro que exerce Raúl González Tuñón entre os poetas espanhóis dessa época. O episódio sobre a difusão que teve seu poema “La Libertaria” serve de exemplo. O poeta se empenhava em descobrir uma forma poética significativa que amalgamasse e acompanhasse os processos históricos. A carta que o poeta mexicano Octavio Paz envia ao sobrinho de Raúl González Tuñón aborda essa importante influência que a poesia tuñoneana gerou, tanto nos poetas hispano-americanos quanto nos poetas espanhóis (In:ORGAMBIDE, 1997:119): 72 México D. F., 12 de noviembre de 1993 Sr. Eduardo Álvarez Tuñón … Aún está viva en mi memoria la tarde en que lo conocí, en julio de 1937, en Madrid. Me lo presentó mi compatriota Sequeiros, en las vísperas del Congreso de Escritores para la Defensa de la Cultura. Él ya era un consagrado y me impresionó ese hombre suave y firme, que había escrito los más encendidos poemas sobre el pueblo español. Recuerdo haberlo oído leer “La libertaria”, ese poema en el cual todos los oficios de España confluyen como un rezo. Para esa generación escribir poesía combativa era escribir a la sombra de Raúl González Tuñón. Es el Rubén Darío de la poesía social y no cometo una herejía si afirmo que España en el corazón de Neruda y España aparta de mí este cáliz, de Vallejo, no hubieran podido ser sin La rosa blindada. […] Desconozco su restante producción, pero recuerdo que Luis Cernuda me dijo que era también un importante poeta lírico. Todo me aleja de aquellos años, pero en mi biblioteca guardo La rosa blindada porque es un hito. Lo saluda, Octavio Paz O estudo de certos vocábulos que se repetem e adquirem outro significado dentro da obra tuñoneana, constituindo um campo semântico, é essencial para que se elabore uma adequada análise crítica de sua produção. Um bom exemplo é o caso do livro La rosa blindada, em que é notória a conjunção de formas tradicionais e formas modernas. Nele o substantivo “rosa” adquire outro significado que, somado ao adjetivo “blindada”, remete ao campo da guerra. Essa é uma das construções marcantes da poética de González Tuñón, sendo fácil localizá-la em diferentes momentos. A metáfora nucleadora, “rosa blindada” abriga signos aparentemente antagônicos, visto que “rosa” representa a vida, e “blindada” o que não pode ser visto; portanto, a anulação da vida, a morte. Este jogo antitético pode ser apreciado na produção tuñoneana. Segundo o autor, em Conversaciones con Raúl González Tuñón 73 (1975:135), afirma ao escritor Horacio Salas que não tinha medo de repetir-se em seus poemas: “Pienso que citar varias veces el barco en la botella, las cajitas de música, las veletas, no es repetirse, sino seguir moviéndose en medio de los símbolos que siempre he amado”. Raúl González Tuñón assiste ao surgimento das milícias populares. Vive nas ruas e seu coração está em guerra. Observa as crianças mortas por um bombardeio. Blinda a rosa. Saúda o quinto Regimento. Marcha com os voluntários. Descobre o caos. Conhece La Pasionaria. Sua poesia é um registro fiel: a morte de García Lorca, os tanques de guerra, os aviões, a morte de Antonio Machado... Toda a Espanha está nele, nessa poesia em ação a serviço do combate contra o fascismo. Enlutada. Rebelde. Revolucionária. Guerreira. Em um trem, no caminhão de soldados, entre os estampidos das bombas e a conversa sincera dos companheiros, Raúl González Tuñón escreve seus poemas. Canta. Conta. Resplandecem as evidências da destruição (In: “Algunos Secretos del Levantamiento de Octubre”, GONZÁLEZ TUÑÓN, 1936:18): Donde el carbón se junta con la sangre y la ametralladora bailarina lanza sus abanicos de metralla donde todo termina. Em meio ao choque, à desordem do espaço citadino, surge a melhor poesia social de Raúl González Tuñón, a que se alimenta do imediato, da indignação perante a realidade urgente do compromisso civil e da paixão individual. A poesia que carrega o ritmo compadecido da guerra e a experiência 74 vital de sensações vis (In: “Muerte de Antonio Machado” e “La Libertad” GONZÁLEZ TUÑÓN, 2011:187/184): miran crecer aromo, mirto y parra y entre los huesos la raíz del grito; para su tumba campo de granito y el polvo de oro para su guitarra. ------------------------------------------------Hay que ser piedra o pura flor o agua conocer el secreto violeta de la pólvora, haber visto morir delante del relámpago, conocer la importancia del ajo y el espliego, haber andado al sol, bajo la lluvia, al frío, haber visto un soldado con el fusil ardiente, cantando, sin embargo, la Libertad querida. Esse importante poeta, que procurou amalgamar sua vida à sua obra, como se as fusionasse para alcançar a perfeita composição poética, a que aflorasse no leitor a diversidade de sentimentos que se tem e que por vezes se esquece em uma gaveta. Esse bravo autor, enunciador do bem e do mal, da fantasia e da realidade, que proporciona ao leitor abrir essa gaveta e dela tirar sua bandeira, pode ser lembrado conforme suas próprias palavras (In: “El Poeta Murió al Amanecer”, GONZÁLEZ TUÑÓN, 1983:26): Fue un poeta completo de su vida y su obra. Escribió versos casi celestes, casi mágicos, de invención verdadera, y como hombre de su tiempo que era, también ardientes cantos y poemas civiles de esquinas y banderas. 75 CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR 76 3. TRANSITANDO PELA IMPONÊNCIA DA IMAGEM P or ser tan nacional proyectó su estatura a la morena América y al París que en Europa es la rosa del mapa. Su voz fue el instrumento, voz Gardel, voz mañana, voz para la memoria de un cielo con ventana. “El cantor” - Raúl González Tuñón 77 CAMINHANDO PELAS URBES MODERNAS AS MÚLTIPLAS IMAGENS LÍRICAS DE UM CAMINHADOR 3 – Transitando pela imponência da imagem Como já dito anteriormente, a arte moderna surgiu de uma ruptura com os ideais sociais, culturais, ideológicos do século XIX, que propiciaram o surgimento de diversos movimentos de vanguarda na Europa do século XX e, quase que simultaneamente, também na América Latina. A primeira manifestação vanguardista na América Hispânica foi o Criacionismo. Este era um movimento marcado pela ruptura com a arte mimética: para os criacionistas a poesia não deve ser mimética, mas sim criação pura. Com o descobrimento da fotografia, no século XIX, modifica-se o sentimento da verdadeira arte, pois para expressar a arte mimética já existe esse novo invento. Daí a grande repulsa da arte como cópia da natureza. Nessa fase o mais importante era a expressão do sentimento perante a natureza, ou seja, o que interessava era o que ela despertava no poeta, não mais o reflexo do real, e sim o que se apreende desse real. O Criacionismo de Huidobro, influenciado por Paul Valèry, preocupa-se com a imagem poética. A poesia, que em 1888 com Darío se transformara em palavra-música, com o poeta chileno volta-se para a plasticidade e funda a palavra-pintura. Em seu poema “Canción Nueva”, Huidobro (1976) ilustra o Criacionismo, pois faz uma espécie de canto à poesia inovadora. Ele utiliza um conjunto de elementos e princípios teórico-poéticos que oferecem uma percepção de suas concepções: “La primera condición del poeta es crear, la 78 segunda, crear, y la tercera, crear”. Por meio da preocupação com a plasticidade das imagens e do movimento no poema, Huidobro insere efeitos estéticos que proporcionam à obra o surgimento de uma poesia-pintura, valorizando o aspecto visual. A partir desse movimento, surgiram dois mais, o Ultraísmo espanhol e o argentino, ambos vistos por Vicente Huidobro como imitações de seu Criacionismo. Após a publicação, em Madri, do manifesto Ultra (1918), por autores como Guillermo de Torre, Rafael Cansinos Assens entre outros, Jorge Luis Borges em 1921, influenciado por esse manifesto Ultra, lança o movimento Ultraísta em Buenos Aires. Nesse texto, o autor comenta a chegada de uma nova estética, a qual tinha como objetivo mudar o panorama literário, por isso faz uma critica à estética Modernista, afirmando que: “la belleza Ruberiana es cosa madura y colmada [...] y por esto es una cosa acabada, concluida”; portanto, é preciso haver mudança na arte literária. Para o movimento ultraísta, a poesia deve ser múltipla, possuir vários significados e, por isso, seu elemento primordial é a metáfora. A autonomia desta é o principal objetivo de Ultra, como se pode observar: Nossa arte quer superar esses artifícios de sempre e descobrir facetas insuspeitadas no mundo. Temos sintetizado a poesia em seu elemento primordial: a metáfora, à qual concedemos uma máxima independência, mais além dos joguinhos daqueles que comparam entre si coisas de forma semelhante, equiparando um circo à lua. Cada verso de nossos poemas possui sua vida individual e representa uma visão inédita. O Ultraísmo tende assim à formação de uma mitologia emocional e variável. (In: GUBERMAN, 2009:40) As propostas estéticas ultraístas para a nova forma poética eram denotar a negação, e seu objetivo com tal negação era o de despir a arte como 79 forma de alcançar a “poesia pura”. Essa proposta de “poesia pura” já havia sido discutida anos antes pelo poeta francês Paul Valéry (1896). A partir de um ensaio de fundamental valor para a literatura européia, Valery, inaugura um novo conceito para a poesia. Este deveria contrapor a pureza da poesia ao absurdo da existência humana. Sequencialmente ao Ultraísmo surge o Martínfierrismo na Argentina a partir da publicação da revista Martín Fierro, em 1924. Esta, que já existia desde 1904, dirigida por Alberto Ghiraldo, apresentava tendências anarquistas e, em 1924, irrompe em solo portenho a segunda fase (1924-1927) dessa revista, sob a direção de Evar Méndez, propondo a renovação estética. É nesse período, mais precisamente em seu quarto número, que se lança o “Manifiesto Martín Fierro”, elaborado por Oliveiro Girondo, e que identificou o perfil vanguardista desse grupo. Além de Martín Fierro (1924-1927) e da publicação Revista Oral, que registrava as tendências do grupo Florida, outras revistas tiveram participações especiais para a solidificação do movimento vanguardista argentino, como, por exemplo, as que arrolavam as tendências do grupo de Boedo: Los pensadores (1922), Revista del Pueblo (1926) e Los Nuevos (1924). Já alguns livros que marcaram a consolidação da vanguarda, são Coplas, de Luis L. Franco, Exposición de la Actual Poesía Argentina (1923), dirigido por César Tiempo e Pedro J. Vignale. A Vanguarda foi uma estética, uma linguagem, uma visão do mundo, ou seja, se funda e se rompe com a intenção de mudar a realidade. Em 1924 surge uma nova linguagem na poesia, que permite ao poeta utilizar livremente as palavras, as ideias e as associações. Trata-se da segunda fase da 80 Vanguarda, o Surrealismo, fundado por André Breton, em Paris, com a publicação do Primeiro Manifesto Surrealista. A palavra surrealismo foi criada em Paris, em 1917, pelo escritor Guillaume Apollinaire, que a empregou para descrever a inovação artística, que não poderia ser descrita como “surrealista”, no sentido hoje atribuído ao termo. No entanto, no manifesto que lançou o movimento surrealista, Breton adotou essa palavra, “nomeando de surrealismo o novo modo de expressão de que dispomos e que gostaríamos de apresentar aos nossos amigos”. Breton, (1985:58) define “Surrealismo” da seguinte maneira: Substantivo, masculino. Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral. A escritura automática, a expressão verbal, seja através do poema ou através da prosa, constitui um dos patamares angulares do Surrealismo. Breton utilizou o vocábulo surrealismo para descrever as práticas literárias e artísticas dele próprio e de seus “amigos”. Iniciada em Paris, na década de 20, terminou por abranger a poesia, a pintura, a prosa, a escultura, a fotografia, o cinema e o intervencionismo. Inicialmente, o Surrealismo se restringiu à arte literária e só depois se estendeu para as artes visuais com Surrealismo e Pintura, escrito em 1925 por Breton. Em 1924, no Manifesto do Surrealismo, Breton conceituou o automatismo psíquico puro como a prática artística surrealista mais importante, o principal caminho de acesso ao maravilhoso. A definição proposta por Breton enfatiza a natureza absoluta do automatismo surrealista: poesia, pintura, prosa, 81 deveriam se originar do encadeamento das primeiras palavras ou imagens que ocorressem à mente. O despertar da escrita automática fez emergir no homem a sublimação mais genuína do “mundo das imagens”. Ele pode “soltar do seu mais íntimo interior todos os simulacros aprisionados no recôndito de sua mente. Segundo Breton (1924), em seu Manifesto do Surrealismo, o poeta francês Pierre Reverdy, escrevera outrora (In: BRETON, 1985:52): A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos remotas. Quanto mais longínquas e justas forem as afinidades de duas realidades próximas, tanto mais forte será a imagem – mais poder emotivo e realidade poética ela possuirá...etc. O homem por não possuir domínio sobre seu inconsciente confere independência às imagens quiméricas. Essas imagens surrealistas, assim como as imagens dos entorpecentes, são autônomas, ou seja, não mais são evocadas pelo homem, mas se lhe oferecem, espontaneamente, despoticamente. O homem não pode mandá-las embora, porque a vontade não tem mais força e não mais governa a consciência. Nesse momento, as imagens surrealistas assumem o papel de “protagonistas da história”. O surrealismo possibilitou ao homem do século XX superar todos os condicionamentos de ordem social, cultural e histórica que lhe eram impostos, levando-o a refugiar-se na única camada não contaminada, o inconsciente e suas imagens. Por isso mesmo, Octavio Paz afirma (1983:34) que o Surrealismo é uma atitude do espírito humano, cujo propósito é subversivo: 82 “abolir esta realidad que una civilización vacilante nos ha impuesto como la sola y única verdadera”. As imagens oníricas possibilitam certos arquétipos para esta subversão da realidade. E não somente as oníricas; outros estados similares desde a loucura como a sonolência, ocasionam ruptura e reacomodações da nossa visão do real. É no eclodir do inconsciente que as imagens adquirem poder e se tornam indissolúveis como as palavras. Ao longo dos anos 20, o Surrealismo foi uma sucessão de encontros, vernissagens, publicações e lançamentos. Como um apelo em favor da renovação das atividades surrealistas, Breton escreveu um segundo manifesto do Surrealismo em 1930, no qual relata as dificuldades experimentadas pelos movimentos e insiste em sua visão do surrealismo como um caminho rumo a um mundo mental de infinitas possibilidades, enfatizando a obsessão do primeiro manifesto pelo irracional, o espontâneo e o inconsciente. Neste segundo manifesto do Surrealismo, a vanguarda reafirma seu caráter de questionadora dos valores estéticos e se inicia como um movimento de luta contra a ordem social estabelecida, principalmente contra toda estrutura de poder centralizador. Na América, todas as mudanças sociais impostas pela vida moderna impulsionaram imperativamente a atualização da poesia, a qual só poderia ser alcançada por meio da fusão de elementos cotidianos que adentravam progressivamente na vida diária do homem, através de imagens inéditas que se apresentavam à sociedade a partir dos costumes, da moda e dos inventos científicos do novo tempo, além da internacionalização de novos pensamentos filosófico-sociais como as doutrinas de Marx e da revolução social da Rússia. 83 Todo um século de dominação de uma classe havia sido deixado para trás, a poesia abandonara as formas literárias antigas e lançava-se, audaciosamente, nesse novo século que se apresentava como motivador da conquista da liberdade de expressão através de uma simplista visão do universo que a pusesse a salvo da antiga ditadura estética. As novas descobertas científicas, as novas formas de vida, enfim, as novas realidades sociais e mecânicas tornam-se novas fontes imagéticas para poesia. A originalidade de imagens se apresenta espontaneamente na poesia com os novíssimos descobrimentos e mudanças da realidade cotidiana. A imagem social adquire força e toma posse do espaço lírico antes mais frequentado por uma imagem romântica do mundo real. Segundo o escritor Jorge Carrera Andrade, Halina Izdebska, no seu comentário de L’Espirit Nouveau sobre a poesia russa atual, enumera a acessibilidade da poesia às massas, os meios democráticos de expressão, o sentimento da solidariedade cósmica e o misticismo às avessas ou ateísmo como características dessa atual lírica. Essas linhas podem-se aplicar em geral à poesia de vanguarda. O vanguardismo latino-americano apropria-se dos novos valores, propõe fazer da poesia um fator da vida, parte integrante do cotidiano citadino. Nessa nova poesia vanguardista o “eu” limitado cede espaço para o conjunto social. A imagem poética passa a exprimir os desejos da coletividade. O sentimento de solidariedade com o mundo, devido ao cosmopolitismo, está admiravelmente presente nas poesias desta segunda etapa do Surrealismo. A poesia de vanguarda latino-americana persegue rumos mais amplos, busca um toque mais humano e mais livre e orienta-se para uma estética de 84 conteúdo social. A partir da apropriação da imagem da cidade, de seus elementos e arquétipos, a poesia vanguardista assume o papel de protagonista do século XX retratando, vastamente em suas páginas o homem e a Cosmópolis. Os dilemas sociais, os anseios e expectativas deste indivíduo para com o novo mundo, irão impulsioná-lo gradativamente para a crise existencial humana da pós-modernidade. Em suma, segundo o teórico Jorge Schwartz (1995), o movimento surrealista foi muito mais que uma corrente estética e um movimento artístico, ele revelou algo que nem mesmo André Breton podia prevê: uma atitude surrealista. Todos os artistas e escritores que se envolveram com o Surrealismo pregavam muito além de apenas uma estética, eles o vivenciavam diariamente, bebiam, respiravam e se expressavam a partir do conceito surrealista. Suas prontidões e formas de ver a realidade eram surrealistas. A credulidade de que o Surrealismo mudaria o mundo foi o lema desses grandes artistas e escritores do início do século XX. 3.1- O desfilar da imagem surrealista portenha O escritor argentino Aldo Pellegrini foi o responsável por organizar o primeiro grupo surrealista em Buenos Aires em 1926. Autor da primeira Antología de la Poesía Surrealista, apreciada por Breton, ele divulgou essa prática para outros escritores argentinos da época. Conforme Pellegrini, o Surrealismo: 85 Promove a manifestação espontânea da imaginação por meio do automatismo, o material dos sonhos, e os estados crepusculares, mediúnicos e delirantes. Desta maneira consegue derrubar as fronteiras entre a ficção e a realidade, e desencadear aproximações insólitas entre 10 elementos originariamente afastados ou opostos. É notório que Raúl González Tuñón, na Argentina, pertenceu à geração de Jorge Luis Borges, Oliveiro Girondo, Roberto Arlt, Ricardo Güiraldes, entre outros, compreendendo assim a corrente surrealista. Na poesia, junto a Borges, González Tuñón foi um dos poetas que desenvolveu com mais coesão o tema urbano, porém a diferença está na abordagem tuñoneana que focaliza mais o papel do ser humano, sobretudo o do homem pobre na cultura citadina, situando-os no seu espaço social e no seu trabalho. Como uma constante, desenterra os elementos de uma mitologia urbana (o bohêmio, a prostituta, o cantor, etc.), onde o simples, o popular, possui o papel protagônico. Raúl González Tuñón elabora suas poesias de temática urbana a partir da observação de espaços comuns, como o porto, a rua, o cortiço, o circo... Passa a descrever esse mundo, em seus poemas, localizando o leitor na Buenos Aires da época em questão, seus costumes e as peculiaridades dos grupos sócio-econômicos oprimidos. Seu amor pelo povo operário, assim como sua fé na possibilidade de mudança e transformação social tornam sua poesia única. Essa atitude de tomar uma grande cidade como tema poético não tinha antecedentes literários na América Latina. Até o século XIX, era quase desconhecida, um dos primeiros que se atreveu a dedicar uma obra total à 10 Promueve la manifestación espontánea de la imaginación por medio del automatismo, el material de los sueños, y los estados crepusculares, mediúmnicos y delirantes. De esta manera consigue derribar las fronteras entre la ficción y la realidad, y desencadenar aproximaciones insólitas entre elementos originariamente alejados u opuestos. 86 grande metrópole foi o renomado poeta francês Charles Baudelaire, o qual descreveu Paris com enorme fervor. Na Argentina, à partir do escritor Evaristo Carriego, com seu poema “La canción del barrio”, o subúrbio de Buenos Aires, espaço da cidade, ingressou na literatura como tema poético habitual. Seguidores dessa temática, os jovens poetas da década de vinte, entre eles González Tuñón, decidiram revelar a cidade mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia portenha, que não estivesse somente povoada de personagens baderneiros, de cortiços e de casas pouco conceituadas. A nova poesia teria que resgatar do esquecimento a simplicidade, a população trabalhadora, o clima peculiar e familiar dos bairros e ruas, enfim, o cotidiano da urbe moderna. Raúl González Tuñón foi um dos poucos poetas que assumiu esta temática citadina ao longo de toda sua obra, tanto que alguns poemas desse cunho aparecem inclusive em seu livro póstumo El banco de la plaza (1977) e, segundo o seu mais expressivo biógrafo Héctor Yánover (In: CUADERNOS HISPANOAMERICANOS, 1978:101) “quien no lo ha leído no ha leído poesía argentina”. As poesias de González Tuñón exercem uma influência singular quando se escondem nas dobras da memória, aglutinando-se com o inconsciente coletivo ou individual. Nesse território do Surrealismo encontram-se poemas como “Eche veinte centavos en la ranura”, “Escrito sobre una mesa en Montparnasse”, “Poetango de la Belle Époque”, “Motivo para una cajita de música” e as inúmeras andanças de “Juancito Caminador”, poemas que contribuem para fundamentação da modernidade literária na poesia argentina do século XX. 87 Nessa liberação do inconsciente, isto é, nesse automatismo psíquico dos poetas foi que surgiram poesias de suma importância para toda a literatura mundial. O Surrealismo foi a libertação do pensamento mais íntimo, que possibilitou, principalmente, para González Tuñón o desabrochar de sua produção literária. É importante ressaltar que antes mesmo da chegada da corrente surrealista na Argentina, o autor já elaborava composições dentro dessa linha poética. Exemplo disto é o seu poema “Eche veinte centavos en la ranura”, escrito pelo poeta aos 15 anos de idade, ou seja, em 1920. Esse movimento literário foi o marco da obra tuñoneana e, a partir dele, foram desenvolvidas outras formas de expressão, surgiram novas correntes de cunho social que também arrebataram o escritor argentino, mas a imagem surrealista nunca se fez ausente em suas obras. 3.2- O primeiro caminhar: Buenos Aires, a cidade do espetáculo Yo los invito a conquistar al provenir. Raúl González Tuñón Na primeira parte deste estudo, será tratada a cidade de Buenos Aires. Raúl González Tuñón foi um dos melhores observadores e amantes dessa urbe: bairros, personagens típicas dos locais mais marginalizados dessa capital, como o porto, predominam em sua poesia. O autor, ao mesmo tempo que aborda o cosmopolitismo, observa atentamente os acontecimentos políticosociais que ocorrem na cidade argentina, bem como no mundo. 88 Raúl González Tuñón é um poeta citadino, pois opta por tomar como elemento primordial de sua lírica sua própria cidade e as de outros países. Seus temas preferidos foram “os submundos portenhos”, o que levou Jorge Luis Borges a considerá-lo conforme Nora Domínguez (In: Zanetti, 1980/1986:128) “o outro poeta suburbano”, na dedicatória de Luna de enfrente. Embora haja muitos temas que coincidam com os da produção de Borges como, por exemplo, a valorização dos bairros, dos armazéns, dos instrumentos musicais, a obra de Raúl González Tuñón, durante muito tempo esteve marginalizada: ele não conseguiu, como a maioria dos poetas, um significativo reconhecimento em vida. “Eche veinte centavos en la ranura” O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, de sua autoria e que compõe El violín del diablo (1926), é uma sensível retratação do porto de Buenos Aires e de suas personagens típicas, construídas no poema através de arquétipos11 e alegorias12, formando um mundo de metáforas. Em “Eche veinte centavos en la ranura”, o eu lírico flutua entre o real e o sonho. Por meio do real ele regressa à infância criando assim dois grandes campos semânticos, que, nesse poema, formam parte das imagens poéticas de uma cidade: circo e porto. Esses campos semânticos figuram como alegorias da vida. Para entendê-los é necessário lançar mão do conhecimento 11 [arquétipo] modelo de seres criados; padrão; exemplar; que serve de modelo; original. In: Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (1993). 12 [alegoría] [serve] para expressar poeticamente um pensamento, a partir de comparações ou metáforas [e] se estabelece uma correspondência entre elementos imaginários. Tomadas literalmente, as alegorias oferecem um sentido insuficiente, mas este se [completa] com o sentido do contexto. (In: BERISTÁIN, 1992. T.A.). 89 de mundo, assim teremos suporte para comprovar que ambos despertam em cada um de nós sensações e recordações similares: A pesar de la sala sucia y oscura de gentes y de lámparas luminosa si quiere ver la vida color de rosa eche veinte centavos en la ranura. Y no ponga los ojos en esa hermosa que frunce de promesas la boca impura. Eche veinte centavos en la ranura si quiere ver la vida color de rosa. El dolor mata, amigo, la vida es dura, y ya que usted no tiene hogar ni esposa si quiere ver la vida color de rosa eche veinte centavos en la ranura O poema “Eche veinte centavos en la ranura”, divide-se em seis partes. Na primeira, o sujeito poético se dirige ao leitor tentando persuadi-lo a fugir do real e entrar num mundo de fantasias, na “vida color de rosa” (vv. 3, 8 e 11). Há um jogo de antíteses, como claro x escuro no primeiro e segundo verso, puro x impuro no sexto e sétimo verso, além de duas grandes metáforas nucleadoras13 do poema, que são: vida cor de rosa x vida dura. A poesia está apoiada nestas duas grandes metáforas nucleadoras, nas quais se inserem outras, como o porto e o circo. Essas metáforas harmonizam toda a composição poética, imprimindo um sentido explícito. Feita a leitura da estrofe, percebe-se também a representação sutil de um ambiente de luxuria, onde se encontram mulheres livres do porto, cafetões e outros tipos: Lamparillas de la Kermesse, títeres y titiriteros, volver a ser niño otra vez y andar entre los marineros de Liverpool o de Suez. 13 [Metáfora nucleadora] [Las] metáforas ligadas a los elementos primitivos y a la experiencia común, se prestan de una manera peculiar al proceso de rejuvenecimiento de la imagen por el empleo de otra metáfora tomada del mismo campo semántico. In: LE GUERN (1985). 90 Na segunda parte do poema há uma nítida regressão por parte do eu lírico ao mundo infantil, que se comprova principalmente no verso “volver a ser niño otra vez”. Surge ao final um novo espaço lírico que será predominante em toda a obra, o porto. A criação desse espaço poético é comprovada através de um recurso muito utilizado pela poesia tuñoneana, denominado por Nora Dominguez (1980/1986) de nominação. Nesse caso, a nominação se deu pela citação de “Liverpool o de Suez”, que apesar de serem lugares distantes da realidade argentina, conseguem estabelecer um clima de familiaridade, pois ambos são portos: Teatrillos de utilería. Detrás de esos turbios cristales hay una sala sombría: Paraísos artificiales. Na terceira parte, o sujeito poético através de metáforas, retoma o porto de modo realista: um lugar onde se tira proveito, onde as futilidades predominam, nada é tão nítido nesse local, até mesmo os cristais, que lá se encontram, não são claros e escondem um mundo sem luz, escuro, onde trabalham mulheres escravizadas que, por meio da sedução, criam a ilusão desse falso paraíso: Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos ¡Aquí hay mujer y manzanilla! Aquí hay olvido, aquí hay refrescos. Pero sobre todo mujeres para los hombres de los puertos que prenden con alfileres sus ojos en los ojos muertos. No debe tener esqueleto el enano de Sarrasani, que bien parece un amuleto de la joyería Escasany. 91 Salta la cuerda, sáltala, ojos de rata, cara de clown y el trala-trala-trálala ritma en tu viejo corazón. Estampas, luces, musiquillas, misterios de los reservados donde entrarán a hurtadillas los marineros alucinados. Y fiesta, fiesta casi idiota y tragicómica y grotesca. Pero otra esperanza remota de vida miliunanochesca... A quarta parte foi dividida em quatro estrofes. Na primeira, o eu lírico retrata o porto, agora não mais distante da realidade argentina, por se tratar do próprio porto de sua cidade. Entretanto, esse ambiente poético, que é tão característico de algumas cidades, não tem nada de belo à primeira vista. O sujeito poético revela literalmente todo cotidiano de impureza, promiscuidade e mistério que envolve o porto: Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos O primeiro verso inicia com uma expressão luminosa, mas os reflexos que são produzidos por essa luz não iluminam, não trazem vida, somente escuridão e morte. No porto existem mulheres, bebidas, esquecimentos, recordações e marinheiros que procuram essas mulheres desesperançadas para se satisfazerem. Tudo isto é expresso pelo eu lírico através de um sublime jogo de metáforas que dá mais amplitude à imaginação do leitor. Na segunda estrofe, o sujeito poético cria uma atmosfera circense, ao trazer à tona seus pensamentos de criança, relembrando o circo que um dia viu nesse lugar. Para atribuir a essa parte um caráter verossímil, o poeta emprega palavras que simbolizam lugares reais nessa sociedade, como “Sarrasani e Escasany”. Esta é mais uma das características da poética tuñoneana, e se 92 denomina, conforme Nora Domínguez (1980/1986) auto-referência. Além de utilizar o vocábulo “clown” da língua inglesa para manter a rima e o vínculo com a imagem do circo, também emprega, nessa parte, a carnavalização das personagens, embora o anão e o palhaço sejam verdadeiros arquétipos. Na terceira e quarta estrofe, o eu lírico volta à realidade e continua retratando esse ambiente periférico portenho. Ainda sobre um olhar realista, ele deixa subentendido todo o “poder” que a vida marginal exerce nos homens, criando um ar misterioso ao redor desse espaço. Lugar este onde nem tudo é revelado, onde a sedução impera e cria uma falsa ilusão de felicidade, através de festas que iludem os homens, levando-os a uma vida de prazeres. Na quarta estrofe, a intertextualidade apresenta-se através da expressão “vida miliunanochesca”, uma alusão ao livro das Mil e uma Noites, enfatizando ainda mais essa vida de prazeres que é o sonho da maioria dos seres humanos. A imagem criada neste momento do poema é um cenário vivo mentalizado a partir de referenciais, como bordéis, prostíbulos e lugares semelhantes a esses. Nesses lugares ocorrem festas fúteis e grotescas, onde, muitas vezes, os homens por um momento feliz de prazer levam para suas mulheres, como um presente amargo, enfermidades. Percebe-se, nesse momento, que o poeta com o artifício da linguagem conseguiu produzir uma imagem bem definida, capaz até de revelar um “aspecto social” (In: LYNCH, 1997:5). Embora o ambiente seja repudiado pela sociedade, por seu papel negativo, é a partir dessa negatividade que se espelha o poema: ¡Qué lindo es ir a ver la mujer la mujer más gorda del mundo! Entrar con un miedo profundo pensando en la giganta de Baudelaire... 93 Nos engañaremos, no hay duda, si desnuda nunca muy desnuda, si barbuda nunca muy barbuda será la mujer Pero ese momento de miedo profundo... ¡Qué lindo es ir a ver la mujer, la mujer más gorda del mundo! Na penúltima parte, o sujeito poético retorna ao circo e imagina certa personagem desse lugar. Só que agora ele trata essa personagem de forma grotesca. O poeta novamente joga com a intertextualidade quando cita “la giganta”, elemento também da composição poética “A giganta” de As Flores do Mal, do poeta francês Charles Baudelaire (1985:149). Esse elemento, por sua vez, cria um elo entre sonho e fantasia, imprimindo um pouco de erotismo à obra, já que nesse poema um homem passeava pelo corpo desnudo da giganta. Em toda essa parte há a alusão à personagem do circo, “la mujer más gorda del mundo”, que causa curiosidade e espanto em todos os homens. Assim, pode-se afirmar que essa mulher por despertar imaginação e fazer parte da fantasia circense é mais um dos arquétipos tuñoneanos. Y no se inmute, amigo, la vida es dura, con la filosofía poco se goza. Si quiere ver la vida color de rosa. Eche veinte centavos en la ranura Na última parte, o eu lírico volta a se dirigir ao leitor e, mais uma vez, o convida a entrar nesse mundo de sonho e fantasia, em que tudo é alegre e perfeito. O poeta afirma que com filosofia pouco se aproveita a vida e que para vivê-la intensamente é necessário experimentá-la, senti-la, deixar-se levar por 94 ela sem medo. A vida cor de rosa que o sujeito poético vem oferecendo ao longo do poema é uma fuga do real para o imaginário do prazer. O poeta empregou muitas metáforas nesse poema por acreditar, certamente, na força semântica dessa figura de linguagem, a metáfora, um elemento capaz de unir o real e o sonho. O porto simboliza a “vida dura”, pois o trabalho é árduo, as pessoas que circulam são na maioria marginalizadas, quase tudo de mais baixo e promíscuo se encontra no porto. Já o circo simboliza a vida de sonho e fantasia, de brincadeiras e esperanças, “vida cor de rosa”, que leva o homem a retornar a sua infância e sonhar com uma vida melhor. Tanto o porto quanto o circo surgem como imagens da cidade e, em algum momento, vistas aos olhos sensíveis de um autor, podem se transformar em poesia, sendo configuradas como alegorias da vida, por fazer parte das fantasias que cada indivíduo guarda em sua memória. Em cada um desses espaços poéticos se encontram pessoas comuns a esses lugares, que servem portanto para caracterizá-los: no porto, estivadores, marinheiros, mulheres livres; no circo, palhaços, anões, mulheres barbudas... Todas essas personagens não só se constituem como arquétipos, mas também como alegorias da ilusão, visto que através delas o homem pode viver o real ou regressar à infância e sonhar em ser feliz... “Música de los puertos” O poema “Música de los puertos”, pertencente ao seu primeiro livro de poesias intitulado El violín del diablo (1926), é uma evocação a sonoridade peculiar e particular da diversa musicalidade existente no porto. Em uma longa e única estrofe poética, o poeta propaga sua lírica à semelhança de uma 95 balada rítmica, a fim de representar toda a musicalidade portuária de uma forma intensa e singular. Em meio a um lugar transitório, o sujeito do poema observa atentamente os sons originais que perambulam pelas redondezas do cais e provocam constantes mudanças nesse ambiente aglutinador de sonhos e desesperanças: Música de los puertos siempre igual y distinta. Banderas con iguales colores para todos los ojos iguales y distintos. Proa de la esperanza. Jugo de nostalgia. Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Te estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas. Inclinas tu cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos de cielo en la desesperanza. Os cincos primeiros versos do poema se referem à diversidade na unidade que há dentro do ambiente portuário, pois o mesmo acolhe e recebe pessoas de inúmeras procedências, com cultura e visões de mundo diversas que encontram na música uma possibilidade de fraternidade, a partir de uma linguagem universal que é a melodia. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1921:115), em seu texto La metáfora, define a mesma como “uma identificação voluntária de dois ou mais conceitos distintos, com a finalidade de gerar emoções”, sendo assim as metáforas “Proa de la esperanza” e “Jugo de nostalgia” simbolizam sentimentos angustiantes, pois na primeira metáfora a esperança está posta em último plano, já que a proa se encontra na parte dianteira da embarcação e na segunda, a nostalgia se encontra na forma “suco”, líquida, ou seja, liquidificando-se, esvaindo-se devido sua fluidez. Desta forma, a música age 96 como propulsora da esperança e da nostalgia, por quanto desperta no homem emoções a partir de alguma melodia. Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Nos versos 7 e 8, o sujeito lírico humaniza a música, pois além de denominá-la como mulher ele atribui à mesma características humanas. A imagem privilegiando o afetivo é uma das características da poética tuñoneana. Segundo o escritor Kevin Lynch (1997) em seu texto “A Imagem do Ambiente”, cada pessoa possui inúmeras associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Essas imagens não são somente de elementos visuais, concretos e determinados. Cada ser humano, ao longo de sua vida, é capaz de aglutinar milhões de imagens visuais e, também, sensoriais. Nos versos 9 e 10, “te estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas”, notase que a música admitida como “sujeito humanizado”, não só transita por espaços físicos e integrados à cidade, como “muelles” (cais do porto), mas também invade espaços menos acessíveis, como o espaço emocional através da metáfora “recovecos de las almas”, (caminhos das almas). A música é capaz de cumprir o papel de instigadora e integradora da imagem visível e invisível, pois, ao se ouvir uma melodia, que se assoma ao indivíduo, este imediatamente a transfere para seu espaço emocional, resumindo o lugar à emoção por meio desse objeto abstrato que é a música. Isto não significa que exista um espaço dual, mas sim um só e mesmo espaço que, por um lado, é exterioridade e, por outro interioridade, particular manifestação “in-tensa” do “ex-tenso”, como afirma o escritor Fernando Aínsa (1998) em “Del espacio 97 mítico a la utopia degradada: los signos duales de la ciudad en la narrativa latinoamericana”. O professor Carlos Azambuja (2003), em seu texto “A Aurora da Imagem”, afirma que as imagens se constroem primordialmente pela sensação de uma presença, não importa se concreta, verdadeira ou não. Esta é a condição para a sua própria formação e deve ser distinta de nós mesmos, os seus observadores. Logo, a ideia de música dos portos permite ao leitor mais atento percebê-la como fruto da experiência de se fazer contato, encontrar algo que o afeta a ponto de ser sentido dentre o conjunto de todas as outras coisas que o envolvem. Dessa forma, a partir de vivências noturnas dentro do eixo cidade-porto, o eu lírico mais uma vez cria imagens surreais por meio da humanização da melodia portuária, ao se referir à “mujer”: “Inclinas tu cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos de cielo en la desesperanza”, nos versos 11, 12, 13 e 14. Essa emoção e ação tipicamente humana atribuída a elementos não humanos, forma uma imagem que transmite a sensação de desilusão e abandono, ratificada pelos substantivos “cansancio” e “desesperanza”. Nas tabernas a música sempre se faz presente e, geralmente, seu funcionamento começa à noite e termina na madrugada, quando, cansados, os músicos pendem de seus instrumentos para descansar e pensam na vida que se segue e em seus projetos particulares. Os desejos dos homens estão aludidos nos versos acima citados através de dois símbolos: “ventanas (janelas)” e “cielo (céu)”. Segundo o Dicionário de símbolos (CHEVALIER, 2002: 512), a janela “enquanto abertura para o ar e para luz, significa receptividade”, ou seja, eles esperam, porém esta aspiração do homem 98 representada pelo vocábulo céu (significando “a consciência, o absoluto das aspirações do homem, como a plenitude da sua busca, como o lugar possível de uma perfeição do seu espírito[...]” (In: CHEVALIER, 2002: 230)) não transmite esperança, porque as janelas são órfãs de pedaços de céu, são a própria desesperança. Logo, a imagem sensorial é a da melancolia, imagem esta que é bem peculiar à música, já que a mesma pode suscitar no homem lembranças de um tempo perdido. Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se izaron a los vientos más extraños. Patio sonoro, evocador y bueno para los hombres que no saben patios. No tienes ni cabellos ni manos. Eres sonido nada más. Entras despacio, convincente. Avivas el fuego de una pipa y desarrugas una frente. Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se izaron a los vientos más extraños. Nos versos 15, 16, 17 e 18, o sujeito-poético reafirma a intercontinentalidade da música portuária, denominando-a de poliglota e configurando nesta característica toda liberdade rítmica que a música transmite. Ela é a única capaz de ser igual, pois sua construção está explicitamente vinculada aos sons e, ao mesmo tempo diferente, devido à melodia particular de cada cultura. É nessa diversidade da unidade que a música se torna universal e concomitantemente nacional; assim como a poesia, que quanto mais nacional, tanto mais internacional se torna, de acordo com as próprias palavras de González Tuñón: “La poesía es internacional, porque 99 cuando más nacional es, más internacional se torna”(In: ORGAMBIDE, 1997:33). Como já afirmado anteriormente, ao longo da poesia, o eu lírico humaniza a música, mas também a revela apenas como som, nos versos 21 e 22, “No tienes ni cabellos, ni manos. Eres sonido nada más”. Para ele, embora a música também possa assumir forma personificada, humanizada em sentidos, ela também é presença abstrata, não possui nenhuma característica física. Nos versos que se seguem, o eu lírico cria uma atmosfera nebulosa, a partir da construção de uma imagem musical penetrante e persuasiva que entra sorrateiramente e convence, no verso 23, “Entras despacio, convincente”. Essa imagem transmite ao leitor uma agradável visão ilusória de que, através da música, tudo se transforma, até mesmo os ânimos, versos 24 e 25, “Avivas el fuego de una pipa y desarrugas una frente”. Música de los puertos. Muchas y una. Pirata que te robas los espíritus y los llevas de un muelle hacia otro muelle. Faro invisible y guiador de oídos. Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia en padre-nuestro. Ya vengas tormentosa y lúgubre o ya pierdas tu tono siniestro. Música de los puertos. Muchas y una. Uma vez mais, o eu-poético usa o paralelismo da diversidade na unidade para afirmar a característica única da música, aquela que trabalha com varias realidades de uma forma singular, para atingir as emoções. 100 Nos versos seguintes, o eu-poético cria uma imagem móvel, fluida e lírica para exaltar o som melódico do porto. A partir de símbolos, como “pirata” e “cais do porto (muelle)” e das metáforas “farol invisível, guiador de ouvidos”, o poeta atribui à música o poder de manipular nosso espírito, nosso imaginário por meio do real, do som. Versos 28 e 29, “Pirata que te robas los espíritus y los llevas de un muelle hacia otro”. A música, personificada na forma de pirata rouba o espírito humano. Se por um lado, os piratas são os ladrões dos mares, que costumam roubar objetos valiosos; por outro lado, o “pirata da poesia” objetiva roubar o que há de vital no ser humano, sua alma, e levá-la de um lugar a outro. Essa mobilidade espacial pode ser entendida como uma mobilidade sensorial, imaginária, pois é o “pirata-música” que conduz essa mobilidade a partir do primeiro cais, tomado como foco da realidade em que está inserido o homem e, do segundo cais como o destino final, o imaginário. É por meio do real que o homem atinge o imaginário e a música é o meio capaz de realizar essa transição. Além de transportadora da realidade para o imaginário, a música está colocada em posição de norteadora da alma humana, verso 30 “Faro invisible y guiador de oídos”, pois o farol que aí está é invisível, ou seja, o farol não guia pela visibilidade real, mas sim pela “visibilidade imaginária”, pelos sentidos humanos. É por meio do ouvir que ele norteia o espírito do homem. Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia en padre-nuestro, nestes versos, o poeta coloca a música como transformadora da realidade. Ela é capaz de modificar o ambiente (“rompes un ademán”), já que acaba com formalidades, de apaziguar situações de perigo (“apagas un cuchillo”), pois, conforme o Dicionário de símbolos (Chevalier, 101 2002:414), “o símbolo da faca é, frequentemente, associado à ideia de execução, de morte, vingança[...]” e até de transformar palavras grosseiras em vocabulário imaculado (“transformas una blasfemia en padre-nuestro”). Os últimos versos encerram uma imagem totalizadora da música, que, ao longo do poema, o poeta vem detalhando. Para ele, a melodia portuária pode ser traduzida numa imagem transitória de tensão e melancolia “Ya vengas tormentosa y lúgubre”, a se dissolver (“o ya pierdas tu tono siniestro”) numa imagem agradável. Toda diversidade da música do porto, toda tensão e melancolia, deságua na harmonia, na unidade rítmica que age como modificadora da realidade, transportando o individuo a “outra realidade” mais agradável e feliz. Percebe-se que em todo o poema o poeta joga com percepções e sentimentos caóticos que se dissipam em sensações prazerosas, ou seja, percebe-se que a partir do caos emerge a beleza poética e, conforme González Tuñón (1976: 143): “La poesía es ese maravilloso equilíbrio entre la armonía y el caos”. ‘‘Adiós a Buenos Aires’’ A composição poética ‘‘Adiós a Buenos Aires’’ a ser analisada, pertencente ao livro El violín del diablo (1926), foi selecionada por se tratar, como o título sugere, de uma saudação à cidade. A poesia está divida em 9 estrofes, com números de versos dissonantes e um verso livre. Nela, encontrase um sujeito lírico que canta meticulosamente cada ambiente citadino do seu cotidiano em tom de partida. As imagens poéticas construídas ao longo das 102 estrofes permitem ao leitor transitar por cada local mais tradicional da capital argentina e senti-la em completude nessa época áurea do início da modernidade urbana. Como um cantor apaixonado, o eu lírico caminha pelos versos do poema exaltando e ressaltando uma Buenos Aires com características particulares. Declarando seu amor por essa urbe ele, imagisticamente, vai construindo, no decorrer da leitura poética, imagens citadinas que de forma ambivalente cumprem um papel social e ao mesmo tempo emocional. A partir dessa imagem indissociável, percebe-se que o sujeito poético e a cidade se fundem em uma só forma, como se se tornassem uma única e mesma Imagem. Já não vive o sujeito sem a cidade, já a cidade não existe sem o sujeito. Ambos estão imbricados, ambos são dependentes de si mesmos. ¡Adiós, Buenos Aires! Por que te quiero tanto me voy por los caminos para envolver recuerdos en la cinta hiladora de la soledad. Supe encontrar tus ríos de silencio pero tropiezo siempre con tus Niágaras de bullicio. Y supe andar sintiéndome, creándome un Buenos Aires dentro de mí mismo. Na primeira estrofe da poesia encontramos uma imagem emocional, carregada de afetividade, pois o eu lírico, ao se despedir, declara seu amor pela cidade. Porém, essa não é uma despedida tradicional, mas sim uma despedida com sentido de partida ao íntimo interior dessa urbe, com o intuito de imersão nas profundezas dela, para conhecê-la na plenitude do seu âmago. Por isso, o poeta declara: “Por que te quiero tanto me voy por los caminos para envolver recuerdos en la cinta hiladora de la soledad.” Ele afirma que vai pelos 103 caminhos dessa cidade para envolver recordações na fita fiadora da solidão. Logo, ele quer ter experiências para guardar consigo mesmo, na sua solidão poética e a metáfora “cinta hiladora de la soledad”, será a forma empregada por ele para retê-las. Na segunda estrofe, o sujeito do poema ingressa mais profundamente no íntimo citadino. Ele afirma (“Supe encontrar tus ríos de silencio pero tropiezo siempre con tus Niágaras de bullicio.”) que soube encontrar o profundo silêncio da cidade, mas sempre tropeça nas suas intensas inquietações. A partir das metáforas “tus rios de silencio”/ teus rios de silêncio e “tus Niágaras de bullicio”/ tuas “cataratas” de inquietação, verifica-se que o eu-poético atribui qualidades humanas à cidade (silêncio/inquietação), outorgando a ela status de “ser vivo”. Num grau de intimidade ímpar, nos versos “Y supe andar sintiéndome, creándome/ un Buenos Aires dentro de mí mismo”, percebe-se o quanto o sujeito do poema está inserido no cotidiano da cidade, o quanto ele e a sua musa, a cidade, são cúmplices, pois agora ele a absorveu a tal ponto que ela passou a existir na existência dele próprio. Ambos se fundiram em uma única Imagem. Pode-se dizer que a Imagem instalada dentro da poesia resulta do que surgiu do encontro entre o sujeito e o objeto e, segundo o professor Carlos Azambuja (2003: 3): Ela é, portanto, formada a partir de tudo aquilo que um sujeito pode perceber sobre um objeto que se apresenta, ou seja, se faz presente para este mesmo sujeito. A Imagem é assim, fruto da experiência de se fazer contato, encontrar algo que nos afeta a ponto de ser destacado dentre o conjunto de todas as outras coisas que nos envolvem. Perceber imagens é, portanto, uma constante produção de diferenciação. 104 Assim, essa Imagem indissociável será refletida em toda a construção do poema, onde o sujeito (poeta) e o objeto (a cidade) mutuamente envolvidos estão em contínuo processo de resignificação. Nas estrofes abaixo, percebe-se que o poeta ao olhar para dentro de si, para a cidade contida nele próprio, encontra imagens que lhe são afetivas, imagens que fazem parte da sua vida social; desta forma ele exalta o seu invisível pelo visível que lhe é significativo, pois “é possível ver o invisível, que o visível está povoado de invisíveis a ver”. (In: NOVAES, 1988:32). En la boca, cafés de camareras. Frivolidad amena por Florida y en las pistas livianas de tus patios guitarras encendidas. Historias en el mundo más anciano de tus calles- y la emoción de hierro de tus puentes, tus grúas y tus tráficos y en los poemas de tus rascacielos… Allá una fiesta en torno de la lámparaaquí un Hotel “Las Palmas” siniestro revuelo de murciélagos de calma. Y más allá una novia rezando su rosario de soledades en el rincón de un pueblo, pueblo con una luna grande, con una luna grande en los cabellos. “En la Boca, cafés de camareras.”, a partir deste primeiro verso da terceira estrofe, o sujeito-poético inicia seu percurso pelas localidades mais conhecidas e frequentadas da capital argentina (La Boca e Florida). Pela experiência do olhar, que segundo Marilena Chauí (In: NOVAES, 1988:33) é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si, ele consegue exprimir toda a sua visão integradora da sociedade na qual está inserido. Em seus versos poéticos “Frivolidad amena por Florida/ y en las pistas livianas de tus patios/ guitarras encendidas”, ele desenha mentalmente e 105 emocionalmente uma Buenos Aires desconhecida para muitos, porém reconhecida por todos. Por meio dos substantivos “Florida, pátios, guitarras” (Florida/quintal/violão) o poeta transmite esse reconhecimento popular, pois a rua Florida é a mais tradicional rua de Buenos Aires, onde se encontra tudo; O quintal é um elemento primordial para a cultura portenha, visto que era nesse ambiente onde aconteciam as melhores festas de milongas; e o violão é representante emblemático do maior patrimônio imaterial argentino, o tango. Já com o emprego dos adjetivos “frivolidad amena, livianas, encendidas” (superficialidade agradável/leves/intensas), o poeta marca com sutileza as características de cada um desses espaços citadinos. Cada pessoa é um ser no mundo e o mundo é no ser, singular. Cada indivíduo tem seu olhar próprio para o mundo e o mundo para ele, contudo os elementos simbólicos de cada cultura permitem ao indivíduo certo reconhecimento mutuo e, assim ao se reconhecer no objeto, ele se reconhece a si mesmo e aos outros, num constante processo de unidade cultural. Nos quatros primeiros versos da quarta estrofe, o eu lírico destaca a passagem do tempo de outrora: “Historias en el mundo más anciano de tus calles” ao tempo moderno nos versos 2, 3 e 4 (y la emoción de hierro/ de tus puentes, tus grúas y tus tráficos/ y en los poemas de tus rascacielos...), imagens da modernização da cidade, pois a chegada “dos metais”, pontes, gruas, tráficos e dos altos edifícios, emocionam o sujeito poético ao ponto de ele comparar a cidade a uma poesia. Para González Tuñón as cidades e seus elementos como: ruas, monumentos, pessoas, músicas, rotina..., sempre o comoveram, o impulsionaram ao canto poético. Sua admiração e o desejo de ser/estar na urbe, de se integrar a ela fizeram com que ele vivesse em plena 106 harmonia com esse espaço geográfico e o traduzisse ao ápice de suas emoções líricas. Dos versos 5 ao 9 da quarta estrofe, o poeta trabalha com três perspectivas. Por meio dos advérbios de lugar (Allá, aquí) e da locução adverbial (y más allá) ele estabelece uma relação de imagens que revelam não só lugares existentes (Hotel Las Palmas) como também hábitos citadinos (fiesta y una novia rezando su rosario). Nesses três olhares para a cidade o eu lírico se põe na condição de espectador, como se ele estivesse olhando em todas as direções e observando as características emocionais de cada uma delas: nas festas ao redor da luz, alegria; no hotel, possivelmente abandonado, “siniestro revuelto de murciélagos de calma” (sinistro vôo de calmos morcegos), terror; a noiva rezando seu rosário de solidão, tristeza. E nesse “suburbio” do povo (en el rincón de un pueblo) onde a noiva está rezando, vê-se retratada uma imagem de esperança. Esta seria uma possível alusão a “luna grande”, término empregado pelo poeta espanhol Federico García Lorca em seu livro Romancero Gitano, pois para García Lorca “luna grande” representava esperança. Desta forma o poeta recupera esta expressão para designar a esperança portenha através dos versos (pueblo con una luna grande/ con una luna grande en los cabellos.) Luna Park- puñetazos que se rompen en las cornetas radiotelefónicasy la vulgaridad grasienta y fofa de tus pobres burgueses extranjeros. Y a pesar de tartufos y cretinos, el río allá, - ¡magnífico de olas! Maipú Pigall – pintura en los espíritus y pose hasta en las almas… pero un color, mucho color subido y Alsina y Maldonado y las Barracas en un temblor de tangos compadritos Y allá, el río magnífico. 107 Y el silencio dormido de tus calles más solas. Na quinta estrofe, o eu lírico segue descrevendo os ambientes mais particulares de Buenos Aires. A partir da citação de lugares ícones da Argentina como: Luna Park, Maipú Pigall, Alsina, Maldonado, Barracas, se estabelece com o leitor uma relação de reconhecimento, já que o emprego deste artifício ocasiona um efeito de verossimilhança. Muitas são as imagens citadinas refletidas no olhar atento e sensível do poeta e muitos são os sentimentos despertados pela unicidade dessas imagens. O sujeito do poema não nos priva de nenhuma sensação, e ao plasmar suas imagens ele desperta em nós leitores uma Buenos Aires que só um legítimo portenho conheceria. Desta forma, nós, meros espectadores de sua lírica, como que enfeitiçados pelo apelo emocional de suas imagens sensoriais, imergimos em seus versos e nos sentimos co-participantes na construção de sua imagem citadina. Nós passamos a ser dela e ela nossa, cria-se uma identificação que nos outorga, temporariamente, a condição de cidadãos dessa cidade. Só a poesia é capaz de aflorar nossos sentidos, pois só ela é capaz de penetrar na essência de nossa alma. Ainda nessa estrofe, a partir do quinto verso, o sujeito do poema segue expondo as imagens citadinas que permeiam seu mundo, um mundo que é ao mesmo tempo marginal e magnífico: “Y a pesar de tartufos y cretinos, el río allá, - ¡magnífico de olas!”. O lado marginal está representado pelos “tartufos e cretinos” (impostores e cretinos). Deve-se recordar que “tartufo” é o nome de uma comédia francesa de Moliére de grande êxito. Nela, tartufo é um grande mentiroso e enganador. Já o lado magnífico está revelado por meio da imagem 108 do rio, um rio que é intocável e esplendoroso, pois está lá (allá), o Rio de La Plata. Este simboliza a vida, pois dele se recebe seu alimento mais precioso, a água. Nos versos 7, 8 e 9: “Maipú Pigall- pintura en los espíritus y pose hasta en las almas…pero un color, mucho color subido”, através de sutil jogo de palavras, o eu lírico cria uma imagem de sedução e usando também o recurso da auto-referência ele sinaliza este particular local que era o luxuoso cabaré Maipú Pigall, onde os grandes nomes do tango realizavam suas apresentações, suas composições musicais, onde dançavam de maneira mais íntima, enfim onde as notas dos instrumentos musicais, como se fossem pinceladas do pintor, fluíam até se assomarem à perfeita harmonia da melodia, para eclodir em tango, em pintura audível. Por meio da analogia “pintura en los espíritus” e “pose hasta en las almas”, ele destaca a importância deste ambiente, o qual penetrava no interior de seus freqüentadores para se refletir como imponente obra de arte. Contudo, esse ambiente de garbo e elegância, emblemático para a geração da época, também apresentava um lado mais frívolo e envolvente “pero un color, mucho color subido”, que quer dizer, mas uma cor, muita cor intensa, forte e atrevidamente sedutora. Desse modo, a arte musical e a arte da sedução se unem em um mesmo espaço, tornando-se uma imagem dual que marca tanto o espaço físico, geográfico como um espaço emocional, afetivo. Nos versos 9, 10, 11 e 12, o sujeito do poema segue seu percurso pelos confins de Buenos Aires ressaltando outros lugares onde se ouviam e tocavam tangos como Alsina, Maldonado e as Barracas. Ambos eram clubes de bairros portenhos que competiam com os grandes salões de tango a exemplo de 109 Maipú Pigall. A imagem poética revelada para essas localidades são de locais mais simples onde muitas vezes o tango despertava provocações entre seus praticantes, por isso o poeta cita: “en un temblor de tangos compadritos” (em um temor de tangos que buscam briga, que provocam). Em meio a toda discrepância desses lugares (Maipú Pigall e os clubes de bairro) o rio, “Y allá, el río magnífico”, continua lá, intocável, fiel integrante da composição do imaginário portenho. Essa imagem sugerida pela repetição das palavras “rio” e “magnífico” sinaliza a importância da identificação dos argentinos com o rio, o quanto ele é referência emblemática para a população, pois conforme palavras do professor Carlos Azambuja (2003:5), “é fundamental na sensação de uma imagem que a sua presença, nos afete, faça-se sentir e, com isso, produza sentido”. Por isso, a imagem do rio é tão substancial e integradora para os habitantes da cidade. O verso livre também é um recurso estilístico muito usado na poética de González Tuñón. Em “Y el silencio dormido de tus calles más solas”, o sujeitolírico reflete a imagem noturna da cidade, uma vez que as ruas estão a sós, silenciosas e adormecidas. É interessante observar que as ruas (calles) da cidade funcionam como se fossem os vasos comunicantes de um lugar a outro, de um bairro a outro... elas atuam como caminho para a observação, como elo de percepção das imagens citadinas. O poeta ao olhar por meio delas percebe diferentes realidades e as transfere para sua lírica, por isso ele é capaz de olhar em todas as direções e trazer localidades diversas para dentro de seu objeto impalpável, a poesia. Y esas cuatro mujeres y esas cuatro pensiones (y esos recuerdos locos de mi infancia 110 vestidos de tambores que suenan siempre al borde de mi alma). Y un narguilo en el turbio rincón de un café turco Y un narquile en el turbio rincón de un café turco Las paredes de un año que dejó entrar el frío por los cuatro costados por los cuatro puntos cardinales del vicio: lo bello, lo sublime, lo ridículo y lo sombrío. Na sexta estrofe, por meio de indagações indiretas o sujeito do poema se interroga a si mesmo buscando sentido para algumas imagens citadinas de seu cotidiano. Ao mesmo tempo em que ele estabelece uma relação com o tempo presente, ele também alude a uma época de sua vida, a infância, criando um paralelismo entre o tempo atual e o tempo passado. Percebe-se que a infância é instigadora, pois suas recordações loucas estão sempre repercutindo como um eco em sua alma. O retorno a infância é algo muito comum nas poesias iniciais de Raúl González Tuñón, pois é nela que ele busca o íntimo e o sensível de seu eu mais puro, para retratar em sua lírica. Ela funciona como uma imagem propulsora do subconsciente. Muitas são as poesias desse primeiro livro cuja temática aponta para o mundo infantil do poeta. Na sétima estrofe, o eu-poético segue com suas indagações expondo por meio do seu olhar as imagens citadinas que o seduzem. Ele joga com a tradução da palavra “narguilo” que em árabe é conhecida por “narquile, ressaltando a diferença entre a cultura moura e a cultura argentina. Sabe-se que, entre outras coisas, uma parede serve de proteção contra o meio externo. Nos versos 3, 4, 5 desta estrofe, o eu lírico cria uma alusão de não proteção, pois as paredes que deveriam proteger deixaram entrar o frio por todos os lados, em todas as direções. Desta forma, a imagem construída é a de um 111 sujeito que está experimentando a cidade de forma plena, viciando-se nela, por isso ele expressa sentimentos tão antagônicos como o belo e o ridículo, o sublime e o sombrio. Ele, como um experimentador citadino, se vê imerso em tudo o que a cidade lhe apresenta: “Las paredes de un año que dejó entrar el frio por los cuatro costados por los cuatro puntos cardinales del vicio: lo bello, lo sublime, lo ridículo y lo sombrio”. Observador atento da urbe que o contagia, o sujeito do poema, na oitava estrofe, alude a uma imagem devastadora, porém peculiar para a sociedade, principalmente artística, da época: (Posada de la Desolación: dos hombres que llevaban la mano a las narices, abufandados de desconfianzay un polvo amargo como la desgracia… Luego, una ausencia de maravedises con una ausencia de esperanza. A voz que emana do objeto, ou seja, a imagem suscitada evidencia a postura crítica desse sujeito-lírico, pois põe no visível o que o vocábulo “Desolación” evidencia, fazendo ser o que é dito. Desta forma, a imagem refletida no poema é a imagem da droga, da cocaína e o que ela provoca na vida do ser humano. Toda a visão do eu-poético aponta para um olhar reflexivo, que analisa criticamente o consumo da droga, por isso o uso de parêntesis inicial, destacando essa estrofe das outras. O uso da palavra “Posada”- pousada, também faz referência a esse momento em que o poeta pousou o seu olhar sobre esta determinada imagem a registrando em sua memória. O eu lírico descreve esta estrofe como se estivesse diante de uma cena urbana. É possível perceber o ato de usar a droga, “llevaban la mano a 112 las narices, abufandados de desconfianza- y un polvo amargo” (levavam a mão aos narizes, cheios de desconfianza- e um pó amargo) e a consequência desse uso, “como la desgracia... Luego, una ausencia de maravedises con una ausencia de esperanza” (como a desgraça… Logo, uma ausência de dinheiro com uma ausência de esperança). A construção dessa imagem poética está enraizada no olhar aguçado do poeta que provoca, instiga e evoca o objeto, que se apresentando é tomado de assalto pelo uso da memória. Yo ya recuperé mis entusiasmos en la tienda del sol. ¡Adiós Buenos Aires! Me voy a las montañas de los guías y a los llanos de los rastreadores para volver con guías en el alma y rastreadores en el corazón. A última estrofe revela uma imagem restauradora. O olhar do poeta, após ter percorrido a madrugada e ter registrado várias imagens em sua memória, agora olha para o nascer do dia com entusiasmo, “Yo ya recuperé mis entusiasmos en la tienda del sol”. É como se após embriagar-se com a cidade, ele agora fosse despertado com um novo vigor, um novo estado de ânimo que o impelisse a seguir adiante, amalgamando ainda mais experiências com esse objeto que provoca e evoca sua íntima voz poética. Em tom de despedida dessa alta madrugada, o sujeito do poema estabelece uma nova caminhada para essa urbe. Ele afirma “Me voy a las montañas de los guías y a los llanos de los rastreadores para volver con guías en el alma y rastreadores en el corazón”, ou seja, ele vai buscar orientação e pistas em todos os lugares dessa cidade, dos mais altos aos mais baixos (montanhas e planícies), para assim poder retornar com a alma centrada e o coração cheio de vivências. 113 Por fim, percebe-se que o eu lírico construiu toda a imagem poética baseado na descrição sensorial/emocional/visual de Buenos Aires. Ele transita por toda a cidade desde zonas mais elitizadas como Maipú Pigall, Luna Park e Florida a lugares mais humildes como Alsina, Maldonado e Barracas. Como um cantor citadino, ele evoca múltiplas imagens que se convergem nele mesmo e a partir dele recobram sentido para fundir-se em uma única Imagem, onde observador e observado se conjugam mutuamente em constante fluir de resignificação. Assim, Raúl González Tuñón propaga sua crença de que o homem está no mundo e o mundo está no homem, ambos são Imagens indissociáveis e estão comprometidos com seu tempo, experimentando e amplamente sendo experimentados. “Poetango de la belle époque” O poema “Poetango de la belle époque” a ser analisado a seguir, foi extraído do livro La veleta y la antena de 1971, a penúltima obra poética de Raúl González Tuñón. Tanto A la sombra de los barrios amados (1957), como La veleta y la antena constituem uma etapa de síntese da obra tuñoneana. Como afirma a escritora Nora Domínguez:(1980/1986:130. TA) … nesta etapa convivem em uma situação de equilíbrio o chamado poeta social e o mais individual. É, talvez, sua etapa mais homogênea; nas anteriores havia em todos os casos um livro que destacava sobre os outros, aqui não se pode fazer essa distinção. 114 Em La literatura resplandeciente (1976), seu único livro teórico, González Tuñón desenvolve, como afirmado anteriormente, o conceito de realismo romântico, o qual, segundo ele, deve estender todas as artes, inclusive a poesia. Segundo ele (1976:10): No hablamos de arte puro, de arte por el arte y tampoco proponemos un arte de propaganda, decimos sencillamente arte, simplemente literatura, que cuando es auténtico no es ni ha sido jamás evasión, sino reflejo y aun invención. […]. Un arte, una literatura, en fin, que considerando todos los matices, los caminos infinitos, la vasta geografía de la realidad y la imaginación, tiene sus raíces en la tierra y de ésta asciende “flamboyant” (como la pintura abstracta del chileno Vargas Rosas) enviada hacia la altura, hacia el futuro. No nos gustan las clasificaciones, pero lo designaríamos como realismo romántico. Contudo, este conceito se fortalecerá nesta etapa de conjunção entre fantasia e consciência, que são os espaços a que nos remetem La veleta y la antena. Raúl González Tuñón utiliza o substantivo realismo acrescentando a ele o qualificativo romântico. Para o autor, houve realistas românticos em todas as épocas. O escritor argentino afirma: Eso que tiene el arte auténtico: la realidad (no su copia, mediocre, además, y de inspiración libresca) el hecho humano y el artista que lo interpreta, lo desentraña, lo explica, lo muestra, lo da vuelta, si se quiere, lo inventa, pero siempre real, humano y aún demasiado humano. Y absolutamente en proyección universal. (De “El camino” en Hay alguien que está esperando, 1952) Em “Poetango de la belle époque”, percebe-se a presença desse conceito mesclado ao Surrealismo. O título do poema sugere esse realismo 115 romântico. O eu lírico, para marcar seu envolvimento total com a poesia, joga com as palavras numa apreciável junção de poeta + tango, criando assim um neologismo que nomeia o poeta como um cantor e, no caso de González Tuñón, um cantor da cidade. Essa identificação com a música é revelada pelas palavras do próprio autor em seu texto auto-retrato (In: ORGAMBIDE, 1997:33) quando afirma: “porque no soy un químico del verso sino un cantor, en el sentido más neto de la palabra”. Em quase toda sua obra, percebe-se a marca da musicalidade, tanto que muitas de suas poesias foram transformadas pelo Quarteto Cedrón em canções, especialmente em tangos, como é o caso de “Eche veinte centavos en la ranura”, “Juancito Caminador”, “La Libertaria”, entre outras. Este poeta-cantor também faz menção à corrente à qual pertence, ou seja, apresenta sua filiação literária, no caso, à La Belle Époque. Esta foi uma época na história da França, que começou no fim do século XIX e durou até a Primeira Guerra mundial. A belle époque foi considerada uma era de ouro da beleza artística e intelectual, marcada por profundas transformações culturais, que se traduziram como novos modos de pensar e viver o cotidiano. Ao se intitular “poetango de la belle époque”, o sujeito do poema atribui a seus versos toda a grandeza daquele período áureo da arte literária. Ele evoca para sua poesia todo o glamour que rodeia este período de inovação, emblematizando e embelezando, desta forma, sua lírica. O poema está divido em duas partes, cada parte com três estrofes de versos díspares. Na primeira parte, o sujeito poético revela uma cidade com seus locais e personagens típicas. São imagens alusivas a uma cidade que se modificou, abandonando o encanto do antigo para ceder passagem ao novo, 116 ao moderno. Na segunda parte, o eu lírico se dirige diretamente à cidade e, em meio aos relatos de experiências passadas neste ambiente urbano, renova a esperança de futuros cantos poéticos. La noche de la razzia los herreros cantaban y quedaron después de la tormenta súbita la sombra vigilante del árbol esquinero y el silencio insolente del arrabal herido. … Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás? tenía su encanto, eh, la belle époque, mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia implacable y ansiosa. Nos quatro primeiros versos, da primeira estrofe, dessa primeira parte, o poeta indica uma mobilização perante o foco de sua observação (a cidade), não somente o pensamento, a verbalização (linguagem – ideologia) do poeta, mas também os mecanismos (consciente-inconsciente) de sua percepção. Esses dados de sua percepção pouco informam sobre sua visão poética, porém indicam a presença de uma atitude receptiva, mobilizadora e, sem dúvida, sensível aos estímulos do real concreto. Nos versos acima, o autor descreve um acontecimento situando tempo (“la noche”) e espaço (“arrabal”). Por meio de metáforas, registra conscientemente os problemas sociais que ocorrem nesse ambiente citadino: “sombra vigilante” / “arrabal herido”. Também mostra a preocupação da população, aqui representada pelos ‘herreros’, que vivem nos subúrbios, atentos a possíveis tribulações. Ainda se pode entender esses versos como se o poeta estivesse mergulhado no subconsciente e de lá fosse arrancado ferozmente, para logo a seguir refletir sobre o real. Esta interpretação seria possível se comparada a este momento literário do eu-poético com o próprio momento do autor. Como já foi citado, o início da obra tuñoneana está marcado pelo Surrealismo, depois 117 esse estilo é sobreposto por um estilo mais social, mais tenaz e, nas suas obras posteriores, o escritor retoma do interior de sua memória o fabuloso e inquietante mundo dos sonhos. Uma das características da poética de Raúl González Tuñón é o emprego de citações e referências. É o que se verifica no quinto verso da estrofe, “... Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás?”, quando o eu lírico utiliza, apesar de ter alterado o pronome pessoal tú para vos, um verso do poema “España en el corazón”: “Raúl, te acuerdas?” elaborado pelo escritor chileno Pablo Neruda (2004:118) em homenagem ao autor argentino. Essa intertextualidade adotada estabelece uma interação entre o texto original e o que o cita, revelando um novo objeto de leitura. Com referência ao mesmo verso, a pontuação adotada no início é um recurso muito recorrente na poética tuñoneana, pois, segundo seu criador, permite que a imaginação do leitor, a partir do que já leu, crie suas próprias inferências, construindo assim uma significação individual. Esse apelo à recordação do autor feito pelo eu lírico é uma forma de personificação, que reforça a vinculação do gosto de ambos por um mesmo estilo de época; ao mesmo tempo, marca um saudosismo, uma nostalgia por aquela época que tanto assombrava aos jovens escritores do mundo, sedentos daquela “nova arte”. Absorvido pelo inconsciente14, o eu-poético perambula por esse ambiente oculto, voltando seu olhar para antigos espaços e formando imagens aparentemente desconexas do mundo real. 14 [Inconsciente] o psquismo não é redutível ao consciente e [...] certos “conteúdos” só se tornam acessíveis à consciência depois de superadas certas resistências [...]. In: Lampanche e Pontalis (1992). 118 Por sobre los exilios y las muertes, los gobiernos volteados y el último tranvía que dobló hacia la vaga estación del ocaso veo ahora en la gris esfumatura de la distancia, que es el tiempo, el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha con su perfil de patio, con su siempre domingo. La tarima del trío musicante en Barracas palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango y ese Bar y Billares saliendo a la vereda donde una vez Aieta sacó viruta al fueye junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto cayó luego de haber proyectado en su sábana la última película del hondo cine mudo. Nesses versos, o sujeito do poema emerge num túnel do tempo e recorda fatos e locais que estiveram presentes em sua vida em um momento anterior. Cita a sucessão de governos fracassados que se estabeleceram na Argentina, explicitando como foi o término dos mesmos “exilio y muertes”. E como representante do último sopro de imaginação, que conduz o processo criador até a nostalgia, o “tranvía”. Esse condutor, ao chegar a alguma estação, qualquer ponto, permite que o eu lírico vislumbre, através do tempo, a época esplendorosa de um local familiar “perfil de pátio”, extremamente vivaz, que era a “Vuelta de Rocha”. Este ambiente portenho era conhecido pelos vários eventos de domingo e, principalmente, pelas apresentações de tango. No poema, há uma identificação do bairro “Vuelta de Rocha” através da recordação. A partir da observação do sujeito-poético, se conhece esse espaço urbano. Contudo, esse olhar é mais maduro, o olhar do viajante. González Tuñón já havia percorrido diversos países e vivenciado inúmeras culturas, logo, o seu olhar havia se transformado, e sua cidade agora era vista com outros olhos. Conforme o sociólogo Sérgio Cardoso (In: NOVAES, 1988:359-360): “[...] o distanciamento das viagens não desenraiza o sujeito, apenas diferencia seu mundo”. González Tuñón, apesar de ter conhecido várias localidades, nunca deixou de ser o mais legítimo portenho e admirador do tango. 119 A nostalgia precede e sucede Raúl González Tuñón. Sua cidade é nostalgia, é tango. De acordo com Héctor Yanóver (Apud: 55), “Poesía y música son una misma cosa. Y en la medida que buscamos la expresión de Buenos Aires, escribimos innumerables tangos con música de poema”. O autor sempre declarou seu amor pelos bairros dos subúrbios da capital argentina que fizeram parte de sua vida. Em muitas de suas obras é possível encontrar referências a alguns desses bairros como el Once, el Judío, Riachuelo, entre outros. Nessa poesia, ele descreve com saudosismo a região de La Boca. O eu lírico cita seus bares, sua música, seus cantores e o cinema Buen Orden que não existe mais. Nada lhe escapa. Com o olhar aguçado do viajante, ele vai relatando, através de sua memória, fatos, objetos, pessoas que emergem de seu subconsciente. De forma quase mecânica, como se mudasse a tela do cinema, o sujeito poético mergulha ainda mais no interior de sua memória, aproximando-se ao automatismo psíquico. Y reflejada en otra pantalla, en la memoria, pasa ahora la insomne y extraña singladura del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos. Los vidrios de colores del bailetín insólito con su pianola henchida de cálidas mazurkas y el pop-art inefable de los muñecos móviles y los juegos lumínicos vibrando en el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismocon su violín de lata y el barco en la botella que amamos para siempre. Y la noche soltando su empecinado grillo por la gran selva de cemento. La buseca del Chanta y el vendedor de globos. Nessa parte do poema se percebe “o máximo de precisão para o máximo de desvario", forma que, conforme o escritor mexicano Octavio Paz 120 (1983:15), pode condensar o Surrealismo. A partir de várias enumerações, que parecem aleatórias, Raúl González Tuñón reflete ludicamente em sua poesia seu subconsciente. Se anteriormente percebíamos a flutuação do consciente, agora não mais, posto que há uma profunda absorção interiorizada de suas percepções mentais. A insônia também está associada ao subconsciente e, nesses primeiros versos, a encontramos vinculada à memória. É uma espécie de “memória inconsciente” ocasionada pela ausência do sono. A aparente dicotomia “angél/monstruos” forma um jogo análogo a outros pares, luz/trevas, claro/escuro, bem/ mal, quando o sujeito do poema registra esse ambiente citadino (“Paseo de Julio”) efetuando um intenso confronto urbano entre o bem e o mal. Essa dualidade de Raúl González Tuñón é adequada a sua preocupação também aparentemente dicotômica pela política e a literatura, o real e o mágico, o militarismo e a aventura, o nacional e o universal, interesses que não se submetem uns aos outros, mas que se complementam na visão do poeta por esse mundo. Um mundo que o perturbava e sempre o assombrava. Ele mesmo declara em seu auto-retrato (Apud: 32): Contempla el mundo. Porque contemplando el mundo se aprenden más cosas que encerrándose años y años en una biblioteca como hicieron muchos escritores. Porque contemplando el mundo uno aprende a luchar por todo aquello que pueda embellecerlo y contra todo aquello que lo afea. De acordo com Mircea Eliade (1991: 8-9), “as imagens, os símbolos e os mitos não são criações irresponsáveis da psique; elas respondem a uma necessidade e preenchem uma função: revelar as mais secretas modalidades 121 do ser”. Por meio dessas inúmeras imagens, o sujeito lírico deixa registrado, no poema, símbolos que são frequentes em sua obra, como: “el barco en la botella”, “el vendedor de globos” e “el grillo”. Estas alegorias integram o mundo infantil sempre retomado nos poemas tuñoneanos. A insistente recorrência ao subconsciente infantil aciona a liberação da memória individual, que desembocará no surrealismo, uma importante estratégia usada por González Tuñón para se atingir o inconsciente em suas obras. No surrealismo, as palavras ganham vida. É como se elas fossem autosuficientes e, por isso, comandassem o fluir do canto imagístico, representado em versos e estrofes poéticas. Assim, ao mencionar “bailetín” e “mazurkas”, o sujeito do poema concede ritmo e sensualidade à estrofe já que os dois vocábulos se referem à dança. Ainda na mesma estrofe, verifica-se uma vez mais o comprometimento do poeta com o surrealismo. Ele vê nas grandes invenções do século (“muñecos móviles”, “juegos lumínicos”) a perpetuação dessa corrente literária: “el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismo”. Também marca a importância da supra-realidade em sua obra, pois retoma parte do título do seu primeiro livro El violín del diablo, “violín” totalmente surrealista, para demonstrar a retomada desse estilo em sua produção poética. A imagem desta grande selva de cimento, ou seja, a cidade moderna, mais uma metáfora utilizada como recurso poético, não afugenta seu canto de amor e nostalgia de uma urbe que mescla o novo com o antigo. Conforme Justo Villafañe (2002: 13), “o mundo da imagem esta aí, com seu tremendo poder de sugestão e sua indubitável influência social, suas incógnitas e problemas, que exigem uma solução imediata, mesmo que seja ilusória”. 122 Na segunda parte do poema há um direcionamento da observação do eu lírico, que antes passeava pelas ruas e bairros da cidade, e agora se dirige a essa cidade como um todo. Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro que inspiró largamente mi verso impuro y puro a la luz de la estrella del bosque de ladrillo. Te caminé, te olí, te bebí, te canté: dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero, nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre. Em um momento de profunda exaltação lírica, o sujeito do poema declara seu amor pela cidade, um amor incondicional, pois ama tanto o ruim quanto o bom (impuro/puro) que ela tem. Essa aparente dicotomia o inspirou a criar seus versos, que assim como a cidade, são sujos e limpos, e estão impregnados totalmente com o urbano, mas, principalmente, com o marginal do lado urbano. Buenos Aires desde o início da lírica tuñoenana foi cantada exaustivamente como principal motivo poético. Conforme o escritor alemão Walter Benjamin (In: PEIXOTO, 2004: 99), “o surrealismo dá voz a esse mundo de coisas, em cujo centro está a cidade”. González Tuñón fundou a cidade mediante palavras, contribuindo a edificar uma mitologia portenha que não estivesse só povoada de marginais, cortiços e lupanares. A poesia trataria de resgatar do esquecimento cenas de suas ruas, matizes da paisagem e personagens anônimos, não o épico, e sim o cotidiano; não somente o heroico, mas também o monótono. De acordo com Kevin Lynch (1997:103), um ambiente não se apresenta de uma única forma. A cada observador lhe é atribuída a função de recriar uma imagem mental da realidade, que naquele momento é captada por seu olhar: 123 O ambiente visual torna-se parte integrante da vida dos habitantes. A cidade não é de modo algum perfeita, mesmo no sentido restrito da imaginabilidade, nem todo o seu sucesso visual se deve apenas a essa qualidade, mas parece haver um prazer simples e automático, um sentimento de satisfação, presença e certeza, que decorre da simples contemplação da cidade ou da possibilidade de caminhar por suas ruas. O sujeito do poema revela sua vivência citadina como experiência desde o sensorial. Ele emprega os cincos sentidos do corpo humano para retratar tudo que absorveu da capital argentina. O caminhar é a ação mais completa porque envolve todos os sentidos. Talvez, por isso Buenos Aires é representada na poética de González Tuñón de forma constante e incansável. Ao caminhar vemos, ouvimos, tocamos e sentimos aromas que nos recordam sabores, enfim, nos envolvemos mutuamente numa interação ímpar entre o sujeito e o ambiente. Porém, o eu-poético enfatiza essas sensações ao discriminá-las; “Te caminé, te olí, te bebí, te canté” e registra toda sua comoção por essa urbe evocadora através de sua música poética. Certa vez, disse o poeta (In: GONZÁLEZ TUÑÓN 2005:113): “...la música amontonada del mundo...”. Esta frase é utilizada em outras poesias tuñoneanas e sintetiza a ideia de uma cidade vivente, em pleno desenvolvimento, que “pulsa” e “olha” adiante. A poesia de Raúl González Tuñón é uma tessitura em que o social e o político se entrelaçam como em uma atitude lírica regida pela nostalgia e pela ternura. Percebe-se uma confirmação da relação entre sua vida e sua fundamentação poética: “nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre”. Essas duas vertentes, a lírica e a social, sempre frequentaram as páginas das escrituras tuñoneanas: o sujeito do poema afirma que 124 abandonou o lado escuro e áspero da boemia, mas que a mesma segue presente em suas entranhas. En las cosas que nombro está la poesía y aún crece en mi duende tu aventura y se asoma a mis ojos reflejando al destino de esa magia plural de ciudades que forman el país argentino, imán de las bitácoras, en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza. Verifica-se que o eu lírico se intitula nomeador da poesia e, portanto, detentor do conhecimento poético. Como um sujeito criador, o poeta dá vida às palavras, aos objetos e aos espaços, transformando-os em alegorias ilusórias. Conforme Octavio Paz (1983:201. T.A.) “as palavras são paraquedas que se abrem em pleno voo [...] Antes de tocar a terra, estalam e dissolvem-se em explosões coloridas”. Desta forma, seria como se os vocábulos se despregassem do inconsciente poético e fossem se agrupando para compor o poema e, no momento da leitura, se dissipam. De acordo com o autor Kevin Lynch (1997: 1), “olhar para as cidades pode dar um prazer especial”. Na poesia de González Tuñón, encontram-se indícios de prazer através de detalhes da observação, que funda a constante exaltação desse ambiente urbano. Para o poeta, a grande aventura do inconsciente está na comoção, no assombro que os objetos e os espaços citadinos lhe causam. Esse descobrir, desvendar o desconhecido, surpreender o destino é que move o sujeito-poético. Conforme o sujeito do poema, o país é formado por cidades tão plurais que encantam o transeunte. Essa diversidade é derivada dos muitos substratos culturais da Argentina, especialmente de Buenos Aires, onde vários imigrantes se estabeleceram. Os poetas mais originais, que cantaram a capital argentina, 125 advertiram que não se poderia cantar o inexistente e, por isso, buscaram seus motivos nas histórias simples e nos seres desconhecidos; retiraram seus ídolos do próprio povo e acrescentaram a cadência do tango à poesia. Baseando-se nessa busca, González Tuñón retrata como principais elementos inerentes a sua poética citadina, o simples e o popular existentes em cada lugar. A imagem espelhada é uma imagem aflorada do subconsciente, uma imagem do desejo poético sobre Buenos Aires. O eu lírico deixa evidente a esperança que habita no país argentino, o qual é denominado como aglutinador de direções “imán de las bitácoras”. A realidade e a imaginação sobrevivem na memória e afloram por meio dos símbolos empregados pela poesia. Percebe-se que o eu lírico se relaciona com o poema por meio do subconsciente, do qual saltam as imagens plurais da sociedade argentina. Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve -laboriosas, angélicas o canallas y absurdasy el resplandor de las belles époques en los mapas sutiles de soñados países que me están esperando en el futuro. De acordo com o poeta Jorge Luis Borges (In SARLO, 1995: 20. T.A.), “a cidade é o teatro por excelência do intelectual, e tanto os escritores quanto seu público são atores urbanos”. Nessa estrofe, o sujeito do poema realiza uma síntese de seu percurso como espectador desse ambiente. As cidades por onde andou estão sendo resgatadas de seu subconsciente: “ese perfil de niebla de ciudades que anduve”. Através de adjetivos “-laboriosas, angélicas o canallas y absurdas”, o poeta qualifica as cosmópolis que percorreu com seu canto. Essa dualidade constante entre o bem e o mal (“angélicas o canallas”) reflete a incansável busca pela exaltação do marginal, não o discriminando, 126 mas revelando a integração entre esses elementos, pois em todo lado negativo reside o positivo. Conforme Raúl González Tuñón (In SALAS, 1975): “Era un mundo increíble, canalla, sombrío y tremendo, pero dentro de esa canallería había algo de angelical también [...] todo lo imaginable y lo inimaginable, un mundo sórdido y al mismo tiempo puro”. O olhar analisador que Raúl González Tuñón lança sobre a cidade se deve a sua obstinada busca pelo novo sem desprezar o antigo. Sérgio Cardoso (In NOVAES, 1988: 358) em seu texto o “Olhar do viajante” exemplifica essa forma de enxergar o mundo ao seu redor. Para ele, o olhar não se anestesia na amplitude de um espaço; ao contrário, está sempre em busca de barreiras que despertem e fixem sua atenção. Essa procura pelo novo é o que impulsiona González Tuñón a percorrer o mundo, é o que o motiva a seguir sonhando com espaços, pessoas ou objetos cotidianos distantes de sua realidade, mas que o assombram vivazmente e proporcionam a ele projetar-se no amanhã, no desconhecido de maneira destemida. Para o autor ainda há países a descobrir e esse é o desejo que mantém pulsando sua imaginação. Certa vez, afirmou (1997: 48): “y mi corazón continúa alegre y violento como el corazón alborotado de un mundo nuevo”. Sua fé é inabalável. Não pode deixar de crer, é um poeta... “Motivo para una cajita de música” O poema “Motivo para una cajita de música” a ser analisado a seguir compõe o livro A la sombra de los barrios amados (1957), que é considerado, 127 pela crítica, como seu livro explicitamente portenho. Mesmo após terem passados trinta e um anos da publicação de seu primeiro livro, a poesia de González Tuñón é tão fresca como a inicial. Nessa obra convivem em equilíbrio o individual do poeta e o social. É uma etapa de síntese do poeta, na qual há uma conjunção da fantasia e da consciência, que são lugares a que nos remetem suas obras. O poeta retoma sua escritura inicial carregada de lirismo, metáforas e arquétipos, embora agora a mesma tenha um matiz nostálgico. “Motivo para una cajita de música” está composta por três estrofes com número de versos desigual, além de dois versos livres. Este último recurso é frequentemente usado na poética tuñoneana. Qual seria o motivo para uma caixinha de música? Será que ela é capaz de nos transportar da consciência para o sonho? Sabe-se que caixinha é um símbolo feminino interpretado como uma representação do inconsciente, mas caixinha de música teria a mesma simbologia? Essas indagações buscam responder acerca de um objeto tão comum e ao mesmo tempo tão fantástico. Ao abrir a caixinha de música, emerge-se subitamente, no subconsciente e, pode-se passar o tempo sem se dar conta dele, é como se o tempo parasse por alguns instantes. Esse objeto é capaz de produzir sensações ímpares e fabricar, através dos desejos, os sonhos. Nesse mundo mágico, que a caixinha de música aflora, nota-se que o escritor empregou esse título em seu poema, por representar um canto de amor ao cotidiano fabuloso das ruas do bairro da cidade moderna. A caixinha, criadora da fantasia, estímulo do inconsciente, está sujeita ao desejo, sendo, portanto, um objeto que provoca a escritura surrealista. 128 Através das armas da imaginação aliada à poesia, o movimento surrealista propunha a transformação do mundo. En otoño, las calles, en el barrio, se tiñen de una especial atmósfera, de silencio con alas. Casi con el aroma de un estío apenas olvidado. Son calles como sueños pero despiertas, lúcidas. Os três primeiros versos da primeira estrofe anunciam a chegada do outono, por meio de efeitos causados em certos elementos citadinos, como as ruas. Para o sujeito-poético essa estação o comove, pois o envolve em uma atmosfera que desperta sua imaginação, representado no poema pela metáfora “silencio con alas”. Pode-se entender essa comparação, posto que em silêncio há ausência de som, supondo-se um estado de inércia. Como asas (“alas”) simbolizam alçar vôo, a junção dessas duas palavras (“con alas”) significa a imaginação do poeta no momento de sua inspiração artística. De acordo com o sujeito-poético, essa atmosfera é especial, pois propicia o mergulho psíquico aflorando o subconsciente e liberando de forma automática os seus mais reclusos pensamentos. À liberação do inconsciente deu-se o nome de Surrealismo, termo muito empregado durante a segunda fase da vanguarda argentina. Para Guberman, entretanto, cabe lembrar que a essa parte desconhecida o homem não tem acesso, ele não consegue atingir o inconsciente, o mais próximo que ele pode chegar é ao subconsciente. Para o escritor mexicano Octavio Paz (1986:138139. TA), o Surrealismo: ... no parte de uma teoria da realidade: tampouco é uma doutrina da liberdade. Se trata bem mais do exercício concreto da liberdade, isto é, de por em 129 ação a livre disposição do homem em um corpo a corpo com o real. Desde o principio a concepção surrealista não distingue entre o conhecimento poético da realidade e sua transformação: conhecer é um ato que transforma aquilo que se conhece. A atividade poética volta a ser uma 15 operação mágica. Essa atitude do poeta em ir de encontro com a realidade está impressa na poesia pela utilização de um espaço concreto, real, “las calles del barrio”. A criação dessa imagem, interiorizada e intimista, revela que essas ruas são conhecidas ou peculiares ao cotidiano do eu lírico. O teórico Fernando Aínsa (1998:171. TA) sintetiza muito bem a relação entre o espaço externo e o interno, em que “a espacialidade externa que gera a ordem urbana tem sempre o reverso de uma espacialidade intensa vivida interiormente”. Desta forma, apresenta-se um único espaço, revelador tanto do concreto, do externalizado, quanto do intimista, do interiorizado. Evidencia-se que esse espaço social (bairros), comum à população, tem no agente do poema uma representação própria, fruto de seus íntimos desejos. Assim, o bairro se apresenta como tópico para a nostalgia intimista. À semelhança do poema anterior, Raúl González Tuñón emprega como recurso poético marcas sutis dos sentidos humanos, como visão, tato, olfato, paladar e audição. Nessa primeira estrofe do poema está explicitado o sentido da visão, pois para perceber a transformação das cores, “las calles [...] se tiñen”, é necessária a percepção visual. Também nos dois versos que se seguem, o poeta faz uso do olfato: “el aroma de un estío”. Dessa forma, ele atribui características humanas a seu poema, ele o humaniza, dando-lhe vida. 15 ...no parte de una teoría de la realidad: tampoco es una doctrina de la libertad. Se trata más bien del ejercicio concreto de la libertad, esto es, de poner en acción la libre disposición del hombre en un cuerpo a cuerpo con lo real. Desde el principio la concepción surrealista no distingue entre el conocimiento poético de la realidad y su transformación: conocer es un acto que transforma aquello que se conoce. La actividad poética vuelve a ser una operación mágica. 130 Ao citar “otoño” e “estío”, o sujeito do poema deixa evidente a recente mudança de estações. Através dos vocábulos “casi” e “olvidado” se registra esse fortuito momento, em que a transição de uma estação para outra deixa seu fugaz aroma. Para o poeta, o outono é a época propícia à imaginação, pois é a temporada de transformação das árvores, que perdem suas folhas e depois ganham novas folhagens. Do mesmo modo, atua o sujeito criador, que abandona conceitos passados, emerge num silêncio e permite a fluidez da consciência como o vento do outono que se propaga nas ruas, além de lograr uma nova folha poética. Na sua busca constante pela perfeição poética, o sujeito do poema se apropria da imagem das ruas e por meio dessa interação entre o sujeito e o objeto, ou seja, por essa interferência do homem, o objeto se subjetiva. Conforme Octavio Paz (1986: 139. TA.), “Nunca é possível ver o objeto em si; sempre está iluminado pelo olho que o vê, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o oprime ou o empunha”. No processo de seu delírio, o sujeito do poema pousa seu olhar sobre o ambiente mais vivaz da cidade, as ruas. Estas são responsáveis pela circulação da população e de seus bens de consumo. O poeta apropria-se dessa situação e baseia seu canto nesse espaço social e integrado, como se quisesse atribuir a sua obra a mesma fluidez e vivacidade das ruas. No universo das ruas a vida acontece. Esses espaços urbanos quase sempre habitaram o inconsciente humano, pois eles representam a liberdade e o desejo de se conhecer o desconhecido. Geralmente o que se procura ou o que se precisa se encontra na rua, logo, esse ambiente comovedor da cidade é 131 responsável por despertar o desejo e incitar a imaginação, pois como afirma Octavio Paz (1986: 137. TA): …o homem tem “poderes” que constituem nossa própria maneira de ser e se chamam: imaginação e desejo. O homem é um ser que imagina e sua razão mesma não é senão uma das formas desse contínuo imaginar. Em sua essência, imaginar é ir mais além de si mesmo, projetar-se, continuo transcender-se. Ser que imagina porque deseja, o homem é o ser capaz de transformar o universo 16 inteiro em imagem do seu desejo. O eu lírico compara as ruas com os sonhos, com os desejos ocultos, com as fantasias que permeiam os pensamentos de todos nós e que através do inconsciente libertamos. Apesar de essas ruas representarem o “mundo dos sonhos”, elas são para o poeta despertas e lúcidas, pois carregam a realidade. Novamente há uma humanização na poesia ao se atribuirem características humanas, “despiertas, lúcidas”, a um espaço físico. Soñar es estar vivo. Siempre amaré estas calles, con su color de pueblo, cuna de la esperanza, camino del recuerdo. Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños. Soñar es estar vivo. Com esta afirmação, percebe-se que o sonho é a força motriz do ser humano. Sem os sonhos continuaríamos existindo? Talvez, mas deixaríamos de viver, de vivenciar experiências lúdicas, de nos projetar no futuro. A noção de tempo perderia o sentido, já que o amanhã não teria qualquer significação na vida do homem. Por isso, para o poeta a necessidade 16 Constituyen nuestra manera propia de ser y se llaman: imaginación y deseo. El hombre es un ser que imagina y su razón misma no es sino una de las formas de ese continuo imaginar. En su esencia, imaginar es ir más allá de sí mismo, proyectarse, continuo trascenderse. Ser que imagina porque desea, el hombre es el ser capaz de transformar el universo entero en imagen de su deseo. 132 de sonhar, de imaginar é vital e a utilização do surrealismo faz-se necessária. O surrealismo continuará representando um convite à aventura interior, ao redescobrimento de nós mesmos. O homem, movido pelo desejo, almeja somar-se à imagem de seu desejo e assim se transformar em imagem. O homem é imagem, e o Surrealismo a faz sua. Através de diversas metáforas, que propiciam a imaginação, funda-se uma imagem sentimental e subjetiva das ruas. Como foi dito, neste estudo, as ruas cantadas no poema, provavelmente, têm vinculação com a história do sujeito poético, que afirma seu amor eterno pelo espaço urbano. Essas ruas também mostram parte da vida de Raúl González Tuñón. Sabe-se que o autor cresceu em um bairro de operários, sendo assim, a metáfora “calles con su color de pueblo” remete às ruas desse bairro repleto de trabalhadores. O poeta percebe o seu amanhã no espaço social carregado de simbologias; segundo ele, as ruas carregam a possibilidade do devir, guardam a esperança. Quando caminhamos por alguma rua, que fez parte de nossa vida, ativamos o mecanismo da memória e mergulhamos dentro do túnel do tempo, relembrando episódios que marcaram o nosso viver. Imergimos no consciente com a intenção de trazer à tona a consciência esquecida. Seria possível recordar o passado sem interferências fantasiosas? Não podemos garantir a pureza da consciência anterior, pois o passado é algo pertencente ao subconsciente, já está impregnado pelo que foi e pelo que gostaríamos que tivesse sido. Nenhuma pessoa poderia relatar puros acontecimentos de sua vida sem que os mesmos carregassem substratos imaginativos impossíveis de se afirmarem como discursos féis ao acontecido. O passado é um tempo que 133 pertence também ao inconsciente e, portanto, um dos mecanismos do surrealismo. O convívio diário do poeta com as ruas foi fundamental, pois proporcionou inspiração para seus futuros cantos à cidade: “Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas - Me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños”. Toda experiência citadina dele propiciou a escritura de sua poesia. Como uma espécie de retribuição, o poeta devolve para essas ruas a liberdade do inconsciente, o sonho. O fato de González Tuñón ter sido boêmio das altas madrugadas, de ter um particular gosto pela vida, principalmente noturna, aproxima sua biografia a sua poesia. Certa vez, o escritor afirmou “no conozco nada más conmovedor que la vida”. Assim sendo, após ter usufruído de madrugadas e recarregado sua energia, o eu-poético se pôs a escrever para essa mesma cidade, presenteando-a com seu poema. El poema es sueño. En otoño, las calles… En otoño, las calles melancólicas, sueñan que viven porque saben que saben porque sueñan. O poema para o eu lírico é sonho, já que o sonho vem do desejo e este vem da imaginação, conformando o inconsciente e o subconsciente que irão desemborcar no Surrealismo. Nesse sentido, a poesia constituiria, então, uma expressão do espírito humano. Na última estrofe, o poeta usa reticências para permitir que o leitor deixe sua imaginação fluir. Ao empregar essa pontuação também transmite a sensação do transcorrer da poesia: “En otoño, las calles…”. As ruas estão 134 repletas de melancolia, de tristeza, porém não deixam de sonhar. Essa melancolia pode ser atribuída ao outono onde as ruas espelham uma imagem de decomposição da paisagem. É como se não houvesse mais vida e o mundo estivesse se apagando, visto que as plantas mudam suas colorações ou perdem suas folhagens. O sonho, então, é o responsável pela vitalidade desse espaço social, é indispensável para que se mantenha vivo, pulsante no imaginário citadino. Através do paralelismo “viven porque saben / saben porque sueñan”, o sujeito do poema enfatiza sua fé no amanhã. Segundo ele, as ruas fervem, têm o seu fluir assegurado porque são, antes de tudo, motivadoras do desejo, do sonho, e esse poder de imaginação, que elas carregam, proporciona sabedoria e transmissão da cultura popular, dos mitos e lendas tão correntes nas avenidas citadinas. Sonhar é saber esperar uma nova estação. 3.3- Pelas ruas parisienses “em constante exaltação lírica” Embriagaos de vino, de poesía o de amor, pero ¡embriagaos! Charles Baudelaire Raúl González Tuñón viaja a Paris em 1930. Nesta época a capital francesa havia se transformado em um centro mundial da vanguarda artística e havia construído sua reputação entre intelectuais e livres pensadores. Daí, o constante desejo de inúmeros artistas em conhecer o berço da cultura moderna e absorver a estética das artes francesas. O poeta argentino não ficou imune a esse desejo e, ao chegar a Paris, caminhou pela capital francesa e nela 135 aprimorou sua estética literária através de sua obra La calle del agujero en la media. A partir de sua vivência nessa cidade, ele inicia em sua lírica uma tentativa de síntese de diversos elementos da poesia contemporânea. No seu livro, por assim dizer, parisiense, podemos verificar um procedimento já anteriormente utilizado em Miércoles de Ceniza e que se denomina, conforme Pedro Orgambide, “inventário” poético. Este procedimento consiste na tradução do observado em rápidas e instantâneas referências sequenciais do cotidiano. São tentativas de fixar o fugaz, porém muda a forma: a primeira maneira rítmica e em cadência do poeta adolescente é substituída pelo emprego do verso livre, de amplo período. Também se torna mais evidente sua preocupação social, que aparece integrada à observação detalhada do poeta que percorre os bares, as ruas, os fundos de quintal, enfim, as margens de Paris, enquanto enfrenta as lembranças das imagens semelhantes de sua própria e distante cidade natal. Essas vivências na capital francesa revelam a influência sofrida por González Tuñón e contribuem para a transformação do cidadão portenho em cidadão do mundo. Ainda que carregue sempre dentro de si o amor a sua pátria e nunca deixe de ser um legítimo argentino, ele agora olha para essa cidade e se sente parte dela, o que lhe possibilita extrair de Paris sua melhor essência, conforme atesta a escritora argentina Beatriz Sarlo (2010:303), “seu eu poético articula a mistura de ‘espírito’ europeu e ‘temperamento’ argentino”, de forma permanente e inseparável. Se, nos dois primeiros livros de González Tuñón, o seu particular gosto e sua obstinada busca por objetos poéticos citadinos o aproximam temporariamente da linha poética de Evaristo Carriego, sobretudo em sua obra 136 La canción del barrio (1912), em sua experiência parisiense, ele afirma seu estilo próprio e imprime a sua lírica um tom mais pessoal. Esse poeta adolescente, que a princípio percorre os submundos de sua cidade natal e do interior de seu país, lutando entre a pureza e a perdição, chega ao subúrbio parisiense já com um olhar apurado de alguém que encontra, nesse ambiente, um dos motivos para seu canto poético. Ao compararmos as duas primeiras obras de Tuñón, El violín del diablo e Miércoles de ceniza, com La calle del agujero en la media, percebemos nitidamente uma transformação em sua poética. Desde o título, o livro já anuncia sua filiação ao Surrealismo, movimento ao qual aprimora em sua viagem a Paris. O Surrealismo propiciou à estética tuñoneana uma possível associação da vanguarda e do compromisso político-social, os quais se percebiam como incompatíveis nos movimentos portenhos de 1925 e, principalmente, na concepção dos primeiros surrealistas, divididos entre o materialismo histórico de Marx e as leituras psicanalíticas de Freud. La calle del agujero en la media é considerado pela crítica como um de seus melhores livros. Nele, nos encontramos com um jovem ansioso, sôfrego em desvendar, rastrear cada metro quadrado da cidade, seus lugares e sua gente, e exaltá-los através da visão do argentino deslumbrado por Paris, mas que não esquece suas origens. O livro se compõe de trinta e quatro poemas, escritos em verso livre e em prosa, que revelam o caminhar de um jovem argentino em Paris. Desde o título, o poeta impõe seu olhar portenho, agregado a uma perspectiva e uma paisagem sociocultural diversa. González Tuñón elabora a cidade parisiense 137 através de um discurso fraternal, solidário, participante, em poemas que excedem a aventura pessoal. A partir das análises seguintes de alguns poemas elaborados em sua passagem por Paris, verificaremos o aprimoramento de sua estética, bem como o amadurecimento do seu olhar poético e social para com a urbe moderna. 3.4- O segundo caminhar: Paris, a cidade do êxtase Nesta etapa do presente estudo, além de apresentarmos a cidade parisiense, seus elementos constitutivos da construção poética tuñoneana, também observaremos correspondências entre as imagens poéticas de Buenos Aires e de Paris, sugeridas nos versos de González Tuñón. Raúl González Tuñón, poeta que voltava o seu olhar para a periferia e que vivia em Buenos Aires, acompanhava atentamente a transformação do espaço urbano, bem como dos cidadãos que estavam se adequando àquele novo ambiente e àquela nova forma de pensar a cidade. Em meio a essa assimilação da urbe moderna, González Tuñón seleciona os subúrbios e suas personagens como objetos para sua poética. Esses lugares e essas personagens, que parecem não acompanhar os avanços da cidade, são descartados, marginalizados, sendo excluídos daquele novo espaço urbano. Por isso, González Tuñón opta por cantar, também em seus versos, estereótipos como o mendigo, o cego, a prostituta, os boêmios, que são salientados com a chegada da modernidade. 138 O escritor argentino, por seu ofício de jornalista e correspondente, tinha presente em sua vida as viagens, que muito lhe agradavam, pois era a partir delas que o autor se inteirava das culturas de outras regiões e do ambiente de outras cidades, podendo observar criticamente o surgimento e crescimento desse novo espaço urbano. Logo, as viagens de González Tuñón se transformam em condição indispensável para a construção de sua poesia, conforme afirma Beatriz Sarlo (2010:302): “A viagem se torna, assim, uma necessidade e uma condição da literatura”. Esta condição pode ser constatada no poema “La cerveza del pescador Schiltigheim”, que abre La calle del agujero en la media: Para que bebamos la rubia cerveza del pescador Schiltigheim es necesario no asustarse de partir y volver, camaradas. Estamos en una encrucijada de caminos que parten y caminos que vuelven. Em permanente contato não somente com o mundo ao seu redor, mas também com a literatura mundial, Raúl González Tuñón não poderia deixar de relatar em seus poemas essa transformação citadina. Contudo, para esse jovem poeta, a experiência de apreensão do fenômeno urbano, em terras francesas, funcionaria como um divisor em sua vida e obra. “Las viejas catedrales” Ao chegar ao Velho Mundo, por meio de sua sagaz observação do espaço citadino, Tuñón percebe uma cidade em evolução e uma cidade que ostenta seu ar histórico. Desta forma, o autor não reconhece somente a nova 139 cidade, a antiga é para ele tão ou mais expressiva que a moderna. Muitos de seus poemas exaltam a convivência do obsoleto com o moderno, duas cidades em uma só, convivendo harmoniosamente. A exaltação ao antigo pode ser observada no poema “Las viejas catedrales”, onde o poeta se coloca a aclamar um elemento arquitetônico e emblemático para Europa: suas catedrais. Nesta composição poética, González Tuñón revela essas edificações de forma bem peculiar. Canta em seus versos tudo o que acompanhou esses templos do Velho Mundo, inclusive o surgimento da nova cidade. Não despreza a história dessas construções; ao contrário, as localiza no tempo e na topografia, tratando-as ainda com certa imponência dentro desse ambiente de grandes avanços industriais. Para uma melhor análise de “Las viejas catedrales”, optamos por dividir o poema em três partes. Em cada uma delas se encontram marcas específicas, como na primeira, em que o poeta tem com a catedral uma relação mais sensorial e descritiva do seu ambiente interno. Na segunda parte, ele passeia pela “católica urbe parisiense” e cita exemplos de grandes catedrais dessa cidade, ressaltando o ambiente externo nos quais estão situadas. Na terceira parte, o sujeito lírico trata da questão histórica que essas igrejas experimentaram, passando a ser emblemáticas. Na primeira parte, verificam-se as sensações de olfato, audição, tato e, especificamente, da visão. É esta que possibilita o registro das outras, pois se pode sentir não só com os olhos, mas também com a boca, com o ouvido, com o nariz e com as mãos. Assim, o olhar impõe ao sujeito um ato relevante, mais reflexivo e contemplativo. Vejamos o poema: 140 Amo las viejas catedrales. En las cuchilladas de sus troneras adivino a la Edad Media fusilando al mundo. Amo la música helada de sus vitraux y el olor a sagradas vestiduras bajo las arcadas que en la noche son curiosa asamblea de ángeles y murciélagos. Los recintos azules poblados por el aliento de una época cuando los hombres aún no habían conquistado a Dios. Y el corazón de cera de sus vírgenes y las mutiladas imágenes y el olor húmedo de las santerías, encrucijada de sombras que antes fueron realidad en la tierra y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la guerra. No primeiro verso do poema, o eu lírico afirma seu amor por esses templos do cristianismo, ratificado ao longo da composição poética. Com isso, percebemos seu primeiro êxtase perante a cidade. Como o olhar primário do estrangeiro, o sujeito apreende de forma contemplativa o mobiliário urbano, atribuindo-lhe sentido na constituição desse espaço citadino. No segundo e no terceiro versos, o poeta faz alusão a uma época marcante para a igreja católica, a Idade Média. Assim, ao se colocar em um tempo anterior, González Tuñón instaura, no universo poético, uma crítica a essa época em que a Igreja Católica cometeu muitas crueldades. A presença simbólica de “cuchilladas” (navalhas), por exemplo, remete ao poder bélico que essa instituição detinha, permitindo-lhe “fuzilar o mundo”. Do quarto ao décimo oitavo verso, o eu lírico descreve o ambiente cristão, realizando uma série de composições metafóricas reveladoras de imagens sinestésicas, como “música helada” (música gelada), “olor a sagradas vestiduras” (cheiro de sagradas batinas), “aliento de una época” (hálito de uma época), “olor húmedo de las santerías” (cheiro humedo do beatismo). Essas 141 metáforas manifestam uma apreciação ao ambiente interno das igrejas, mas sutilmente revelam uma crítica à Igreja. A imagem criada do quarto ao sétimo verso alude ao ambiente litúrgico como um lugar frio onde, ao cair da noite, luz e trevas se misturam. A antítese, outra figura de pensamento da poética tuñoneana, está presente na alusão ao tradicional embate visual de “ángeles y murciélagos”, que simbolizam a convivência dessa luz com as trevas. Do oitavo verso ao décimo primeiro, revela-se a imagem de um momento específico do espaço eclesiástico, onde este agia como impedimento para que se estabelecesse a relação direta do homem com Deus. Portanto, essa imagem permite ao leitor “visualizar” essa época e também perceber a crítica subliminar à posição da igreja católica. A Idade Média, período que González Tuñón aborda no poema as deteriorações sociais e econômicas, surge a partir do décimo quinto verso até o décimo oitavo, pela simbologia “encrucijada de sombras que antes fueron realidad en / la tierra / y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la / guerra.” As sombras marcam esse momento histórico, tratado por muitos historiadores como um período de trevas para a história da Europa. Após uma descrição interna das catedrais, na segunda parte, o eu lírico descreve externamente duas grandes catedrais francesas, ícones arquitetônicos do cristianismo, sem deixar de citar outro ícone, La Sainte Chapelle: Amo las viejas catedrales inmóviles, definitivas, sonoras, clavadas en el verde corazón de la Europa. Esos trasatlánticos de Dios, tan viajeros, que son amados de los pájaros y contra cuyos muros 142 discurren al sol los mendigos y los ciegos. A Nôtre Dame de París venían las palomas y los juglares y una ciudad nació bajo su sombra fresca. La Sainte Chapelle presenció duelos de ángeles; he ahí los cristales que nos hablan del color de su sangre. Más allá, en un país de bebedores de sidra hace tiempo que la bella durmiente – del cielo aguarda a que un nuevo fervor la despierte: he dicho Chartres. Na segunda parte do poema, do primeiro ao terceiro verso, as palavras do eu-poético refletem a magnitude que essas igrejas representaram, representam e representarão, visto que para González Tuñón elas são “inmóviles, definitivas”, ou seja, estão petrificadas no tempo e no espaço urbano, remetendo-nos ao passado que já não é cabível na presente realidade. O sujeito poético também as localiza no ambiente citadino, referindo-se a Paris como o “verde corazón de la Europa”. Do quarto ao sexto verso, visualizamos uma cena cotidiana e comum dentro do cenário que envolve as catedrais. González Tuñón atribui a esse espaço toda a imponência que ele exige, já que o poeta, simbolicamente, é um “viajero” (viajante) e presenciou muitas mudanças através do tempo, incorporando, assim, status de um dos “transatlánticos de Dios”. Este ambiente (onde geralmente visualizamos os pássaros, que se escondem nas silhuetas das catedrais) é também o cenário onde encontramos os marginalizados, os miseráveis, como o “mendigo” e o “ciego”. González Tuñón resgata essas personagens descartadas pela sociedade moderna e as dignifica em sua poética. Nela, esses elementos aparecem como integrantes dessa cidade. Dessa forma podemos encontrar o cego, em seu poema “La calle del agujero en la media”, com alegria e felicidade, “el ciego está cantando”. 143 Do sétimo ao décimo sexto verso, observamos a construção de rápidas imagens que se movimentam no poema a partir da referência nominal das emblemáticas catedrais francesas, postas em ordem cronológica de edificação. Estas, por meio do reconhecimento espacial e cultural, estabelecem com o leitor uma identificação, como se este fosse o espectador de uma cena da história. O poeta, ao citar Nôtre Dame, “conta” um pouco da história da capital francesa que foi construída ao redor dessa catedral. A imagem da Sainte Chapelle faz surgir dos seus vitrais rosáceos para o poeta os versos “cristales que nos hablan del color de su sangre”. Por fim, chegamos à última parada, a cadetral de Chartres. Também é reveladoramente histórica e geográfica a imagem construída nessa cena, pois o poeta deixa evidente a localização desse templo em outra cidade parisiense, através do emprego da locução adverbial de lugar “más allá”. Além disso, o sujeito-lírico faz alusão a um fato histórico ocorrido nessa catedral: grande parte dela foi destruída em um incêndio. Depois do ocorrido, ela foi reconstruída, por isso, “un nuevo fervor la despierte”. Como podemos observar, a partir da poesia tuñoneana, o leitor pode viajar não só pelas cidades francesas, mas também pela história que as envolve. A poesia de González Tuñón torna o leitor co-participativo em sua viagem, ao mesmo tempo em que informa sobre os fatos históricos e sociais das urbes. Na obra tuñoneana, história e poesia caminham lado a lado, em um contínuo contar e cantar os espaços citadinos que o extasiaram, como afirma Orgambide (1998:155): [...] A poesia é parte da história, sim, mas também interprete das sutis transformações do tempo. [...] Para Tuñón, [...] ela é simplesmente, variáveis de 144 um só e compartido transcorrer – individual e histórico – onde o poeta é, “memória do tempo”, na medida em que interpreta e exalta a comum aventura dos homens. [T.A.] Na terceira e última parte, ainda olhando para o passado dessas catedrais, González Tuñón vê uma cidade anterior, que carrega em si a História da Humanidade, transmitindo-a no tempo presente, ou seja, ele a reconhece nas marcas temporais, que a integram à história do homem na sociedade: Amo las viejas catedrales. Son del tiempo de los enanitos, de los trasgos y de los gnomos y de los alquimistas de pesados grimorios. Y del Papa de los Locos. Fueron la otra taberna en la vida de Utrillo. Las inscripciones de sus tumbas hicieron la poesía. Los colores de sus vitraux hicieron la música. Las historias de sus santos prepararon las revoluciones y sus intrigas fueron largo tiempo adorno del mundo. Hoy, yo adoro el olor de sus túneles, los secretos de sus tabernáculos, las figuras de sus hornacinas, sus vidrios de losanges y la atrevida imaginería de sus pórticos y sus sagrarios Oh, viejas catedrales, inmóviles, definitivas, sonoras, Clavadas en el verde corazón de la Europa. ¡Oh, Transatlánticos! Do primeiro ao sexto verso do poema, percebemos a alusão ao passado histórico e lendário da cidade, através de símbolos como “enanitos, trasgos, gnomos” (anõezinhos, duendes, gnomos). Estes aludem às lendas primitivas da humanidade, sendo inicialmente relatados por alquimistas em seus livros de misticismo e rituais (grimorios). Na sociedade moderna adquirem status de seres fantasiosos pertencentes à mitologia. Já a referência a “Papa de los Locos” e a “Utrillo” estabelecem vinculação com fatos históricos que aconteceram no início da formação das cidades. “Papa de los Locos” alude à 145 “Festa dos Loucos”, realizada pelo corpo eclesiástico da igreja católica, onde se elegia alguém como Papa e, dentro da igreja, com as portas trancadas, se cometiam grandes sacrilégios, uma vez ao ano. Outra personalidade existente foi o pintor “Utrillo”, que era alcoólatra e após se livrar do vício se torna fanático pelo catolicismo. Por isso o poeta afirma que las catedrais “fueron la otra taberna de Utrillo”, comparando catedrais com tabernas, devido à obsessão do pintor por ambas. Do sétimo verso ao décimo primeiro, o eu lírico discorre sobre outros ambientes internos das catedrais, como: os cemitérios dos clérigos, muitas vezes localizados na nave da igreja, apresentando inscrições sobre a vida e o repousar de seus sacerdotes. Também os vitrais, que o poeta associa à música desses templos, uma vez que favorecem a acústica do templo. Ainda, têm-se as histórias das batalhas dos santos católicos que estimularam as grandes guerras, bem como suas intrigas, as quais seduziram, durante muitos séculos, grande parte da humanidade. Do décimo segundo ao último verso do poema, percebemos que o sujeito-lírico, após emergir em particulares e históricas recordações sobre as catedrais, submerge desse tempo de outrora para reintegrá-las no tempo presente, através do advérbio “hoy” (hoje) e, consequentemente, direcionar o leitor, tornando-o cúmplice passivo de suas reminiscências. A permanente adoração à presença esplendorosa das catedrais fica mais uma vez evidente nos três últimos versos, onde o poeta as exalta de forma reiterativa por meio da interjeição “Oh!”. Desta forma, percebemos que o olhar extasiado do poeta é um olhar de quem não só reconhece o processo histórico dessas construções, mas também admira a beleza e a suntuosidade de suas formas. Assim, ele 146 amalgama seus sentimentos de caráter pessoal com outros de caráter coletivo, constituindo sua poesia, conforme Pedro Orgambide (1998:66), em “uma sorte de romântico anarquismo político”. Para o autor A fusão, desde uma estrita observação política, pode parecer ingênua (só ressalta um inconformista sentimento antiburguês desde uma ótica individualista), porém a poética de Tuñón adianta, a feliz dualidade do poeta social e do poeta lírico de quem inserta sua autobiografia em uma história geral dos homens. [T.A.] É notável que o poeta argentino registre em seus versos a magnitude da igreja católica através dos tempos embora, por mais que ela ainda conserve seu caráter sagrado, não seja mais aquela imaculada e intocável dos séculos passados. Antes, a igreja católica com sua aura era contemplada de longe e incontestavelmente. A partir da aceleração urbana, ou seja, da modernidade, essa contemplação foi reduzida, contestada. Isso acarreta a decadência da imperiosidade desse sistema religioso, de sua aura e, ainda que o olhar do estrangeiro reconheça a perda dessa mácula religiosa, ele percebe a imponência poderosa de suas edificações históricas, inevitavelmente extasiando-se diante delas. “Poema del Boulevard Saint Michel” Muitas ruas e localidades parisienses foram cantadas em La calle del agujero en la media. Seja Montparnasse seja Boulevard Saint Michel ou localidades periféricas, González Tuñón faz um recorte e traça um plano: 147 coloca no centro uma margem que efetivamente viu, e para a qual encontrou uma forma. Os estabelecimentos sofisticados ou os precários bares, os grandes ou humildes cabarés, as importantes personalidades ou o povo desprestigiado, marginalizado, todos se encontram e dialogam na poesia tuñoneana em uma aparente oposição, mas que, ao se sintetizarem, compõem em totalidade o espaço citadino da capital francesa. No “Poema del Boulevard Saint Michel”, encontramos essa unidade que foi amplamente empregada em sua obra. O poeta transita desde ambientes sofisticados até os mais populares, que integram as ruas de Paris, tornando-os elementos significativos na vinculação do homem com o cenário urbano e conferindo-lhes autenticidade. Esse “caráter de veracidade” empregado a partir da citação de nomes de pessoas reais, de lugares representativos para as cidades, dos costumes peculiares de cada região, é uma característica da obra poética de González Tuñón. Para facilitar a análise, dividimos esse poema em prosa em cinco partes. Na primeira, o eu lírico, no momento presente, indaga aos leitores sobre alguns espaços dessa metrópole. Na segunda, ele se refere ao Boulevard Saint Michel com uma espécie de saudosismo dos estabelecimentos e das pessoas que passaram por este espaço, auxiliando na composição do passado dessa rua. Na terceira, o poeta faz uma descrição atual citando alguns espaços que são emblemáticos nesta cidade. Na quarta parte, o eu lírico realiza uma profunda exaltação à cidade luz e, na última parte, ele realiza uma espécie de reflexão sobre este cenário urbano e seus componentes. Já na abertura do poema, percebemos este sujeito-poético totalmente integrado à cidade, como se dela fizesse parte. Para acentuar a intimidade com 148 o ambiente, González Tuñón lança mão da linguagem coloquial de seus habitantes, aproximando-se dessa emblemática rua parisiense e estabelecendo com ela uma unidade intrínseca: El viejo Bul Mich, la calle del mundo. ¿Ustedes conocen sus ventanas grises, sus fanfarrias, su alegría de colegial en libertad, sus muchachas, el Hotel Daciá, donde vive mi amigo Daniel Schweitzer, el Luxemburgo y el Cabaret des Noctambules? Nessa primeira parte, encontramos um sujeito-lírico totalmente íntimo da cidade ao ponto de compartilhá-la com o leitor. Ele não se sente um estranho em Paris, já está totalmente adaptado à urbe e sua gente. O sentimento do desenraizar na poesia tuñoneana é o que a impulsiona desde as margens citadinas, primeiramente portenhas, ao patamar internacional, afirmação ratificada por Beatriz Sarlo (2011:284): “... a poesia de RGT descreve um itinerário a partir da margem cosmopolita em direção ao internacionalismo”. As perguntas realizadas por González Tuñón, através da citação de características do Boulevard Saint Michel com suas janelas acinzentadas, suas fanfarras, sua alegria de estudantes (está próxima à Sorbonne), suas garotas, seu luxuoso hotel Daciá e seu famoso Cabaret Noctambules, aguçam a curiosidade do leitor e, consequentemente o atraem, levando-o a ingressar no universo citadino parisiense. Dessa forma, o poeta “de posse” desse olhar acentuado realiza suas reflexões acompanhadas por esse “leitor-viajante”. Na segunda parte, González Tuñón caminha por essa rua observando seus antigos estabelecimentos e sua gente, e construindo imagens poéticas para os mesmos. Usando uma série de adjetivos (“antiguos”, “descamisados”, “hondas”, “exóticos”, “canallas”, “fanfarrones”) ele os qualifica. Este artifício, 149 empregado pelo poeta, além de caracterizar sua poesia, nos oferece subsídios para conhecer a forma de ver a vida do poeta e como ele a representa, já que trataremos mais adiante de um possível pacto autobiográfico entre autor e personagem. El viejo Bul Mich de los antiguos puesteros y los boliches de estudiantes y de pintores descamisados. Encrucijada de hondas librerías y tugurios exóticos, de canallas rincones en donde soñaron y bebieron veinte poetas, ya olvidados y fanfarrones lansquenettes. Ao percorrer o Boulevard, o sujeito do poema, com um olhar sensível, saudoso e deslumbrado, retrata uma rua com memórias importantes para a cidade: antigos mercadinhos (“antiguos puesteros”), de bares simples para pessoas com pouco dinheiro, como estudantes e pintores pobres (“los boliches”), de grandes livrarias (“hondas librerías”), de espeluncas exóticas (“tugurios”) e de malandras biroscas (“canallas rincones”) onde, em um tempo passado, os poetas e os mercenários (“lansquenettes”) beberam e sonharam. Com o poeta, o leitor pode passear por esse ambiente e imaginar a imagem do Boulevard Saint Michel da década de 30. Na terceira parte da composição poética, o sujeito do poema continua seu perambular citadino destacando elementos significativos de Paris. Contudo, agora ele se retira do passado e se posiciona no presente (“Hoy”), transportando o leitor para o tempo atual: Hoy tras el paredón de Père Lachaise descansa aquella gente miserable y sutil, traviesa y errante. Oscar Wilde, con su corona seca de letras doradas que dicen: “A mi inquilino” 150 se acuerda, se acuerda de cuando atravesaba rumbo a la Closerie des Lilas el viejo Bul Mich, al que tal vez yo no vuelva jamás. Yo, de quien dirán: Otro poeta ya olvidado y que en él me interné alucinado volviendo de los muelles con cuatro libros raros y una espesa borrachera conseguida en el turbio rumor de los mercados. Ao longo do poema, percebemos que González Tuñón executa um constante movimento de “ir e vir” do passado para o presente. Esse movimento está vinculado à memória do sujeito-lírico e a seu expressivo conhecimento dos hábitos locais, que lhe permitem tratar do passado dessa localidade com a mesma propriedade de um citadino parisiense, e olhar para o presente e para si mesmo de forma reflexiva, reconhecendo-se como um estrangeiro nessa urbe. Por isso, ele pode abordar os que estão no cemitério Père Lachaise, recordar um ambiente (“Closerie des Lilás”) que era habitual para os intelectuais, como Oscar Wilde, e, ao mesmo tempo, se questionar sobre a possibilidade de voltar ao Boulevard, revelando, assim, sua estrangeiridade. Nos cinco últimos versos, o eu lírico se volta para si e relata suas experiências no Boulevard Saint Michel. Reflexivo, se coloca no mesmo lugar daqueles “vinte poetas” da parte anterior do poema, no lugar em que nenhum artista deseja estar, no esquecimento (“ya olvidado”). A quarta parte do poema revela uma rua singular, na qual quase todas as pessoas do mundo se encontram: Recodo de los gitanos. Puerto embanderado de canciones de todas las lenguas y de todas las voces. Circo del arte, feria de la cultura humana, camino a Montparnasse. A partir da reverência a essa rua internacional, González Tuñón se põe a exaltá-la. Essa “calle del mundo”, forma como o poeta se refere a ela no início 151 do poema, está marcada como epicentro mundial (“puerto embanderado”), como integradora de todos os povos (“de canciones de todas las lenguas”) e de todas as vozes (“y de todas las voces”). Síntese da mistura urbana, o “viejo” Bul Saint Michel é tratado como uma cidade que expõe e exala arte e história. Cidade do espetáculo (“circo del arte”), das belezas arquitetônicas históricas (“feria de la cultura humana”) que conduz o viajante a outras possíveis experiências citadinas (“camino a Montparnasse”). González Tuñón encara essa rua como um “tecido”, ou melhor, uma “pele” que guarda as marcas do passado, mas ao mesmo tempo atribui a elas novas significações. O olhar aguçado do poeta consegue perceber a modernização dessa urbe, sua internacionalização, e percebe, também, seu passado histórico, que deixou marcas significativas em suas vias, sem que isso reflita um desejo ao retorno dos tempos de outrora. Desta forma, o poeta exalta o Boulevard Saint Michel sem um sentimento nostálgico, assim como afirma Sarlo (2010:309) “... a percepção de RGT está preparada para captar as transformações da cidade moderna, as mudanças que ainda deixam ver os traços do passado, as ruínas da história observadas de uma perspectiva distante, sem o desejo do regresso”. Na última parte do poema, o eu lírico se aproxima dos leitores, colocando-os em uma situação de intimidade, de amigos que compartilham juntos, pois os denomina faticamente de “camaradas”. Também chama a atenção para uma figura que é comum no cenário urbano, além de finalizar sua reflexão sobre o “viejo Bul Mich”: Un buen recuerdo, camaradas, lo vale. Esse viejo Bul Mich de madrugadas altas, de mujeres que nos amaron por amor, 152 mujeres sin mañana y sin ayer, usadas por todos como los espejos y las palabras. Ese viejo Bul Mich de quien dirán: Una calle, ya olvidada. Porque las calles, igual que los hombres, caminan un trecho por el mundo y pasan. Amante das altas madrugadas, González Tuñón vem ressaltar a atmosfera boemia, existente nesse curto período temporal, e, também, um dos icônicos símbolos que perambulam pela madrugada. De forma agradecida, o poeta ressalta uma personagem que é emblemática em sua poesia, a prostituta. O autor argentino a vê com uma concepção de beleza. Ao retratar em seus versos a prostituta, Raúl González Tuñón o faz de maneira singela e com um profundo lirismo, não a desrespeita e não a vê com um olhar repressor, contrariamente, a vê com um olhar de grande pesar e respeito. Nos quatro últimos versos, o olhar poético que apreende a cidade e a espelha encerra sua reflexão sobre essa grande rua parisiense. Essa rua é equiparada por González Tuñón à experiência de vida dos homens, uma vida efêmera, que tem um momento de ápice, de grande representatividade, e depois declina, passa ao esquecimento. Toda a história e importância que essa avenida teve para a moderna capital parisiense, atualmente, já não é lembrada. É a esse esquecimento que o poeta ser refere, por isso canta em seus versos: “porque las calles, igual que los hombres,/ caminan un trecho por el mundo y pasan”. A “experiência do choque”, que o olhar do estrangeiro González Tuñón vivencia, lhe permite reconhecer e identificar os mais recônditos espaços, ruas e personagens parisienses. Também lhe propicia criar, simbolicamente, uma cidade integradora, unindo não só o seu lado esplendoroso, mas também o seu lado mais obscuro e marginal. 153 Assim, Raúl González Tuñón, a partir de seu olhar e suas reflexões, revela uma urbe moderna com os problemas que a modernidade trouxe. O poeta não os oculta, nem tenta camuflar o real, ao contrário, relata o que presencia: luxo e miséria, beleza e destruição, ordem e caos, exaltação e reflexão. “La calle del Paso de la Mula” O poema em prosa, “La calle del Paso de la Mula”, foi dividido em cinco partes por questões metodológicas, pois sua extensão requer uma delimitação. Na primeira, na terceira e na quinta parte, o eu lírico descreve atentamente as paisagens citadinas do cotidiano que observa. Na segunda parte, ele realiza uma reflexão sobre a morte e, na quarta parte, o poeta faz uma auto-reflexão. Composto na primeira pessoa do plural, o poema inclui o leitor como participante em seus versos. Ele divide com o poeta o espaço observado, suas opiniões, ou seja, é colocado na mesma condição do poeta, na de coautor. González Tuñón vivencia o glamour desta nova Paris, observa-a atentamente como se fosse um flâneur, esse personagem crítico engendrado por Charles Baudelaire. Seu olhar aguçado em direção à multidão e para todos os seres que lá se encontram reflete sobre a vivência cotidiana dessas personagens. À semelhança de Charles Baudelaire, González Tuñón, no poema “La calle del paso de la mula”, descreve a vida diária da cidade e de seus habitantes: 154 La mosca cautiva bajo la campana de vidrio y el niño que juega porque el sol es bondadoso. Fíjate cómo igual que hoy, igual que ayer, igual que mañana, nuestro vecino pasa, recoge su botella de leche, arroja al suelo el boleto del subterráneo y sacando el reloj penetra a la casa, a su vida de todos los días, igual que ayer, igual que mañana, igual que siempre. Nestes versos o autor, além de assinalar o cotidiano, parece estancar o tempo, que não muda. A vida diária urbana não tem para ele qualquer possibilidade de mudança, ela é imutável e repetitiva. Toda modernização do espaço já ocorreu, e esse flâneur observa essa estagnação sem esperar o amanhã. Ele sinaliza, criticamente, os elementos da vida moderna que não permitem mais pensar o futuro diferente do atual, concebendo desta forma, uma visão monótona e rotineira do mundo. Na segunda parte, ao olhar para as pontes de Paris, o poeta imerge em pensamentos que o levam a imaginar a presença vital dessas pontes no cenário urbano. Esses pensamentos o conduzem para a própria existência humana e sua relação com a morte: Sólo los puentes, esas piedras cargadas de secretos, seguirán por los siglos sobre el río pensativo del tiempo. Nosotros nos quejamos de morirnos tan pronto. Vivimos ya una muerte piadosa, tanto que hasta esperamos morirnos una tarde. Para o sujeito do poema, as pontes carregam a história da cidade, pois testemunharam sua construção, o que leva González Tuñón a usar a metáfora “piedras cargadas de secretos”, para se referir às pontes. Outra metáfora é a do “río pensativo del tiempo”, em que o rio, senhor do tempo, simboliza o fluir 155 da vida. Somente as pontes e o rio sobrevivem ao tempo. Tanto um quanto outro se humanizam no poema, ou seja, o eu lírico lhes atribui características humanas, um artifício comum na poética tuñoneana. Ainda nesta segunda parte, evidencia-se a alusão à permanência temporal do homem no mundo. Comprovamos essa tensão poética nos três últimos versos, onde o poeta, ao assomar-se ao leitor, inclui-se no discurso e reconhece o medo da morte, inerente à condição humana. Desta forma, percebemos que o sujeito do poema tem noção da mudança temporal, do passar do tempo, e essa noção o impele a refletir sobre a constante ameaça da morte. Ao temê-la (“hasta esperamos morirnos una tarde”), o homem vive cotidianamente, mas morre um pouco a cada dia (“vivimos ya una muerte piadosa”), por isso, González Tuñón faz considerações sobre a reclamação de morrer tão cedo (“nos quejamos de morirnos tan pronto”). Na terceira parte da construção lírica, esse poeta-observador segue relatando sua sagaz percepção do cenário urbano que vê nesta rua: La esquina adonde van a acostarse los ómnibus. Un hombre que pregunta una dirección vaga. Un muchacho que entra silbando al mingitorio. El afiche del jabón Cadum, ¿sabes? - el niño que posó tiene ahora cincuenta y dos años y Toribio, Toribio Sánchez que nos hizo reír allá abajo, se emborracha con él todas las noches. Como observador da cidade parisiense, González Tuñón agrega a sua poesia espaços que emergiram com o progresso da cidade, como o “subterrâneo” (metro), o “mingitorio” (mictório público), o “afiche del jabón” (cartaz de propaganda) e os “ómnibus”. Essas ocorrências em seus poemas 156 marcam a importância desses elementos que compõem a cidade moderna e, simultaneamente, as mudanças do comportamento social. Percebemos, nessa parte, que o poeta descreve a vida citadina como se estivesse pintando uma paisagem. Contudo ao direcionar-se ao leitor, através da pergunta ¿“sabes”?, ele interrompe a pintura, e informa sobre a atual idade do bebê que aparece na imagem presente do cartaz da propaganda do sabonete Cadum. Através da interrupção da sintaxe, ele fragmenta a imagem que estava sendo construída, e como afirma Sarlo (2010:296), “nenhuma de suas imagens se desenvolve por completo: tal como aparecem, podem ser consideradas pedaços de uma imagem maior que o poema desarticula e em relação à qual se desenha”. A pergunta sugerida ao leitor funciona como estopim para a criação de uma imagem insólita, pois o menino da propaganda era um bebê nos anos 30, como podemos observar na própria imagem da propaganda ao lado direito. Então, como pode já estar com 52 anos? E mais, pode Toribio Sánchez, um provável argentino, já que o poeta afirma que ele os fez rir lá embaixo, referindo-se topográficamente à Argentina, embriagar-se com este “menino” todas as noites? Por não encontrarmos referências a Toribio Sánchez, podemos dizer que, provavelmente ele é mais uma personagem que participa do mundo ficcional do poeta. Essa fragmentação da imagem para a revelação de alguma outra informação, ou imagem, é típica na poesia tuñoneana e funciona como reveladora da imagem do seu subconsciente irônico e sarcástico. 157 Na quarta parte do poema, González Tuñón exalta sua condição de poeta revelando seu comprometimento com a arte literária, com as palavras e com a aventura, como ocorre com os jovens poetas: Nuestro vecino se levantará con el alba y nosotros, nosotros estaremos aún desvelados leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas, solos, solos, en la íntima isla de los abrazos. Somos jóvenes y viviremos en otra calle, en otra ciudad. A imagem criada no primeiro verso, retoma a rotina do vizinho acima mencionado, enfatizando seu perfil de homem trabalhador, que “se levantará con el alba”. Esta rotina está comparada à rotina de boêmia dos poetas, pois enquanto esses homens vão ao trabalho, os poetas se envolvem com suas leituras, suas reflexões e discussões, enfim, seus sonhos. Sabemos que existem quatro pontos cardeais, quatro ventos, quatro pilares do Universo, quatro fases da lua, quatro estações, etc. De acordo com o Dicionário de símbolos (2002:759), uma das significações para o número quatro seria a “plenitude, universalidade, símbolo totalizador do criado e do revelado”. Sendo assim, ao citar “leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas”, ou seja, ao citar o número quatro, o poeta faz alusão a seu ato criador, revelador das imagens que foram registradas em sua memória pela apreensão atenta do seu olhar. O artista em vias de composição da sua arte necessita entrar em contato consigo, com o seu interior, necessita estar só, isolado, para que possa encontrar sua essência, essa que criará as condições necessárias para que se consolide o ato criador. Daí a afirmação do poeta em “solos, solos, en la íntima isla de los abrazos”, referindo-se a esse momento em que o poeta se pousa e repousa em si mesmo, no aconchego do seu mundo intimista, para de lá extrair 158 as significações que representarão a sua verdade artística. O poeta, ao expor a sua verdade mais oculta, evidencia as fragilidades do seu “eu”. Nos dois últimos versos, González Tuñón afirma seu ímpeto por buscar outras ruas, outras cidades, ímpeto bem comum de um homem jovem, pois este acredita ser capaz de desbravar o desconhecido, de revelar o oculto e com isso mudar o mundo. Essa posição de lançar-se ao porvir, de estar no presente mas ambicionar o futuro, é característica da poética tuñoneana e será o fio condutor para sua poética de cunho social, pois conforme Sarlo (2010:286) “sua poesia define-se no tempo presente ou tensionada em direção ao futuro (cada vez mais futura, à medida que se politiza)”. Na última parte do poema, o eu poético volta a imergir na descrição do ambiente citadino e retoma os elementos que compõem significativamente o seu campo visual, além de pontuar outros: Fíjate, todos los paisajes nos hacen pequeños. Estarán allí siempre. La esquina adonde van a acostarse los ómnibus. Los puentes. El afiche del jabón Cadum. La mosca cautiva bajo la campana de vidrio y el niño que juega porque el sol es bondadoso. Vino y licores. Comisarías. Ostras Claires y Portuguesas. El colchonero. Nesta última parte, percebemos que o sujeito do poema elabora sua última reflexão sobre a imagem da cidade que se apresenta a seus olhos. González Tuñón reconhece a insignificância do homem (“todos los paisajes nos hacen pequeños”) perante a grandiosidade das modernas ruas citadinas (“Estarán allí siempre”). O poeta entende que somos passageiros em um ambiente perpétuo, ou seja, somos pequenos componentes de um espetáculo eterno e magistral, protagonizado pela cidade. Para ele, em todo o tempo, 159 passageira é a vida, e o homem - por ser portador dessa vida - torna-se um elemento fugaz dentro do ambiente urbano. O que temos se vai e somente o que somos permanece. Por isso, o desejo artístico de González Tuñón em registrar sua essência em linhas poéticas. Ao entrar em contato com a realidade da cidade luz, não só sua poética se transforma, mas também o poeta, enquanto homem que inicia seu amadurecimento sóciopolítico. É um processo que se inicia em Paris, mas que irá se completar em sua poética posterior. Como afirma Sarlo (2010:312), Sua literatura está mudando em contato com a realidade sociopolítica e pode ser lida como corpus que processa o impacto da história internacional, de onde extrai novas possibilidades não apenas temáticas, mas também construtivas, na medida em que esses novos textos da primeira metade dos anos 30 são endereçados, muito diretamente, à intervenção pública. Toda a experiência com o espaço moderno da cidade parisiense, o contato com diálogos mais politizados e as reflexões obtidas a partir dessas observações, bem como sua ainda imprecisa definição política, contribuíram para o advento da próxima etapa poética de González Tuñón, de tendência social, a qual será assumida nas primeiras insurreições que eclodirão no grande confronto bélico espanhol de 1936, que abordaremos no próximo capítulo. 160 4. O IMPACTO IMAGÉTICO DA GUERRA CIVIL ESPANHOLA A migo que por Madrid viviendo entre el cañoneo dices a tu patria en canto firme de nuestro deseo la República Argentina nos dio en la guerra tu aliento Raúl González Tuñón, voz del plata madrileño. Rafael Alberti 161 4 – O impacto imagético da Guerra Civil espanhola Si algún día me voy a la guerra, a pelear en los frentes leales, correría mi sangre a raudales como corren las olas del mar. “La sangre a torrentes”, Raúl González Tuñón 4.1- A defesa da República espanhola A Guerra Civil espanhola (1936-1939) foi o evento mais traumático que ocorreu antes da segunda Guerra Mundial. Nela estiveram presentes quase todas as ideias de um conflito bélico, que marcou o século XX. De um lado se posicionavam as forças do nacionalismo e do fascismo, aliadas às classes e instituições tradicionais da Espanha (o Exército, a Igreja e o Latifúndio); de outro lado, a Frente Popular que formava o governo Republicano, representando os sindicatos, os partidos de esquerda e os partidários da democracia. Para a Direita espanhola tratava-se de uma Cruzada para libertar o país da influência comunista e reintegrar os valores da Espanha tradicional, autoritária e católica. Portanto era preciso acabar com a República, que havia sido proclamada em 1931, com a queda da monarquia. No entanto, para a Esquerda, era necessário terminar com o avanço do fascismo que já havia conquistado a Itália, a Alemanha e a Áustria. Conforme as decisões da Internacional Comunista de 1935, ela deveria aproximar-se dos partidos democráticos de classe média e formar uma Frente Popular com o intuito de acabar com a onda de vitórias nazi-fascistas. Desta maneira, socialistas, comunistas, anarquistas e democratas liberais deveriam unir-se a fim de terminar com a tendência mundial favorável aos regimes direitistas. 162 Esse panorama de amplo enfrentamento ideológico fez com que a Guerra Civil deixasse de ser um acontecimento singularmente espanhol para se converter numa prova, em que forças disputavam a hegemonia do mundo. Nela envolveram-se a Alemanha nazista e a Itália fascista, que apoiavam o golpe do General Francisco Franco. Em contrapartida a União Soviética aderiu ao governo Republicano. A Espanha de 1930 vivia uma era de completo atraso em relação aos outros países europeus. Era governada pelo exército, pela igreja católica e pelo latifúndio. Mantinha seu passado imperial grandioso a alto custo. A Igreja continuava a condenar a modernidade. No campo existiam mais de três milhões de camponeses pobres que eram submetidos ainda às práticas feudais e dominados por cinquenta mil fidalgos proprietários de terras. Como resultado da grave crise econômica de 30, iniciada pela quebra da bolsa de Nova Iorque, a ditadura do General Primo Rivera foi derrubada e, por conseguinte, caiu também a monarquia. O Rei Alfonso XIII foi obrigado a exilar-se e proclamouse a República em 1931, chamada de “República de Trabalhadores”. Seus idealizadores esperavam que a Espanha pudesse alinhar-se com seus vizinhos ocidentais e partir para uma reforma modernizante, que separasse Estado e Igreja, inserindo assim as grandes conquistas sociais e eleitorais recentes, além de assegurar a diversidade política e partidária, a liberdade de expressão e organização sindical. Porém o país terminou por conhecer um cruel enfrentamento de classes, posto que a crise, seguida de uma grande depressão econômica, gerou uma frustração total na sociedade espanhola. Iniciam-se assim inúmeras eleições que acabam por incitar ainda mais a população que, descontente, vai para as ruas protestar. Com um golpe militar 163 dado pela direita em 18 de julho de 1936 explode uma das mais sangrentas guerras que a Europa vivenciaria. A Guerra Civil espanhola movimentou diversas correntes ideológicas e partidárias. Dentre as que apoiaram a direita podemos destacar nomes como Hitler, Salazar, juntamente com os fascistas da Falange espanhola liderados por José Antônio e pelo General Francisco Franco. A esquerda teve o apoio de diversos partidos e organizações como PCE (Partido Comunista Espanhol), FAI (Federação Anarquista Ibérica), UGT (União Geral dos Trabalhadores) entre outros, além de contar com os democratas liberais, com os republicanos e mais alguns partidos autônomos (Esquerda catalã, os galegos e o Partido Nacional Basco). Na literatura, esse conflito bélico ganhou inúmeros representantes, dentre os quais estão alguns dos poetas mais famosos do mundo hispânico, como Raúl González Tuñón, Pablo Neruda, Federico García Lorca, César Vallejo, Antonio Machado, Miguel Hernández e Rafael Alberti. Esses poetas contribuíram muito com a República espanhola, pois, através de suas críticas, crônicas e poesias enviadas para os jornais da época, eles transmitiam todo o horror dessa guerra tão cruel, dando a conhecer ao mundo o caos que vivia a Espanha. Também organizavam alianças intelectuais que tinham a intenção de ajudar os republicanos. No mundo das imagens contamos com grandes fotógrafos, que vão contribuir, com suas fotografias pulsantes, para a chegada da informação à população mundial. Entre eles cabe destacar as fotografias de Robert Capa, David Seymour, Cartier-Bresson, José Suárez e Agustí Centelles. A maioria destes fotógrafos escolheu sem hesitar o lado dos republicanos por 164 compartilharem das mesmas visões românticas e utópicas. Essas fotografias vão causar grande horror e tristeza na população, por retratarem com veracidade os milhares de mortos e a destruição desmedida que ocorria em solo espanhol. 4.2- Percorrendo as imagens bélicas da Espanha de 1936 Para entender melhor o período caótico da Guerra Civil espanhola é preciso analisar a proporção e a dimensão que representa a palavra caos, bem como suas implicações dentro desse contexto. “Confusão dos elementos, antes da criação do mundo; grande desordem; balbúrdia; babel”, assim está definido o vocábulo caos pelo dicionário brasileiro da língua portuguesa. Esta definição explica o que é este evento, porém não atenta para dimensão e implicação do estabelecimento caótico dentro do contexto mundial, termo que foi muito empregado durante a revolução industrial e que, nos atuais tempos, é frequentemente usado no chamado mundo moderno pelos mais variados ramos de estudo. Para um melhor aprofundamento do termo, tem-se o estudo do investigador e professor italiano Omar Calabrese. No capítulo sexto de seu livro La era neobarroca, o estudioso problematiza o caos. Segundo ele (1994:132), desde as origens do pensamento filosófico ocidental se contrapõem duas séries de noções: a ordem e a desordem. A ordem é denominada por Calabrese como “un principio de regularidad”, ela pode definir e prever fenômenos, enquanto a desordem abarca tudo que foge à regularidade, ou seja, tudo o que é irregular, azar, caos, indefinido, imprevisível e inteligível. 165 Para Calabrese, fenômenos aparentemente sistêmicos podem ser suscetíveis a dinâmicas de turbulências, que propiciam a transformação do que era regular e ordenado em desordenado e irregular. A dinâmica de certos fenômenos, que tendem a grandes complexidades, hoje nomeamos de caos. Omar Calabrese (1994:136) se baseia na concepção matemática de Benoit Mandelbrot, Les objets fractals, na qual o “objeto fractal” consiste em “cualquier cosa cuya forma sea extremadamente irregular, extremadamente interrumpida o accidentada [...]. Un ‘objeto fractal’ es, por tanto, un objeto físico (natural o artificial) que muestra intuitivamente una forma fractal” Não só se baseando nesta consideração, como também em algumas outras, o professor italiano amplia o sentido de objeto fractal agregando a ele a noção de cultura e arte. Segundo ele (1994:142), [...] cualquier objeto se torna en objeto estético sólo después de una valorización por parte de un sujeto individual o colectivo. Sin embargo, también es verdad que las figuras fractales poseen al menos un carácter capaz de ser valorizado como estético: lo maravilloso. Com base nesta afirmação de Calabrese, pode-se entender de que maneira acontecimentos trágicos, como por exemplo, os conflitos bélicos, transformam-se em maravilhosas obras artísticas. Dentro desta concepção é compreensível que reconheçam a beleza de Guernica, quadro pintado por Pablo Picasso, que retrata o horror de uma batalha, e da literatura latinoamericana de Juan Carlos Onetti, que aborda o caos através da fragmentação, do vazio, da desolação. Com as fotografias de guerra também se pode observar esse aspecto de lo maravilloso, pois as mesmas retratam a captação de um instante caótico da realidade, imortalizado pela fragmentação da 166 imagem impressa em concretismos, que ao ser recebido e observado por um receptor, visualiza uma verdadeira obra prima. Diversos acontecimentos trágicos, como a Guerra Civil espanhola, revelaram ao mundo o caos. Depois ocasionaram na população a sensação de vazio e a constatação da impotência humana perante a ciência, que, associada a uma desordem do poder, a sua fragmentação, pode arruinar não só o planeta mas também a todos os seres vivos. 4.2.1- As imagens fotográficas da guerra A fotografia, nascida em um âmbito positivista, foi vista quase unicamente como registro visual da verdade, tendo sido adotada, nessa condição, pela imprensa. Com a evolução das práticas foto-jornalísticas, esses gêneros realistas passaram do domínio do real para o domínio do crível, já no final do século XIX, devido à manipulação das imagens em função de objetivos que nada tinham a ver com a verdade, mas, de fato, com o que se podia crer. Em meio a esse processo de criação dos fotógrafos surge o fotojornalismo, carregado de cultura e ideologia, representando através das fotografias a realidade histórica e testemunhal de uma sociedade, embora às vezes influenciado pela visão realista de seu autor. Até se chegar ao fotojornalismo, a fotografia passou por diversas fases. Nasce na chamada câmara clara e escura, depois surge o pictoralismo, movimento que objetivava a integração da fotografia às artes plásticas, bem como a fotografia de retrato, que imitava os cenários utilizados pela pintura e, assim por diante, até o aparecimento das primeiras manifestações do 167 fotojornalismo no momento em que os fotógrafos apontam a câmera para um episódio, tendo em vista fazer chegar essa imagem a um público com intenção testemunhal. O fotojornalismo se nutre principalmente de acontecimentos bélicos e revoluções. A primeira guerra para onde os jornais enviaram seus correspondentes foi a Guerra Americano-Mexicana de 1846-1848. Apesar de serem feitas por um daguerreotipista anônimo, as imagens registravam soldados e oficiais de guerra antes da batalha. A muitas revoluções foram enviados fotógrafos e com isso o desenvolvimento da fotografia de imprensa foi-se transformando com afinco e, em meados do século XIX, inicia-se a edição de publicações ilustradas da revista The Ilustrated London News. Seu fundador, Herbert Ingram, afirmou que daria aos seus leitores informação continuadamente dos acontecimentos mundiais e nacionais mais relevantes da sociedade à política, com a ajuda de imagens variadas e realistas. Nos seus primeiros cinco anos a tiragem dessa revista aumenta relevantemente e indica o crescente gosto social pela imagem. A fotografia de imprensa foi e é de suma importância para a evolução da população proporciona enquanto indivíduos integração, participantes interação e de contribui uma sociedade. assiduamente para Ela o desenvolvimento tanto de seu emissor quanto de seu receptor. Além disso, o fotojornalismo possui cinco forças que ocasionaram e ocasionam sua evolução, são elas: a ação pessoal onde cada fotógrafo elege por influência própria adotar ou não certos recursos; a ação social que a fotografia de imprensa produz nas pessoas e na sociedade; a ação ideológica onde se verificam as semelhanças de visões do mundo por parte dos fotógrafos; a ação cultural que 168 vê o fotojornalismo como produto de cultura e a ação tecnológica que perspectiva a fotografia jornalística como um produtor da tecnologia. Essas ações, expostas pelo autor Jorge Pedro Sousa,17 confirmam a importância da fotografia de imprensa para seu próprio meio, bem como para os indivíduos e a sociedade. Fotojornalismo, segundo o dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009) é o “gênero de jornalismo em que a fotografia é primordial na veiculação das notícias”. O fotojornalismo preenche uma função bem determinada e tem características próprias. O impacto é elemento fundamental. A informação é imprescindível, assim como a atualidade e o interesse social. Já na década de cinqüenta do século XIX, a fotografia havia se beneficiado dos avanços técnicos, químicos e óticos, que lhe possibilitaram abdicar dos estúdios e partir para a documentação de imagens do mundo com o realismo que a pintura não conseguia. Portanto a fotografia de pronto se tornou instrumento de prova, testemunho e verdade e, depois, a época lhe deu status de “espelho do real”. Essa qualidade de autenticidade e sentido utilitário da fotografia é desde suas origens uma particularidade essencial que faz deste meio o ideal para criar testemunhos de forma verídica, como por exemplo as batalhas, uma importante forma de propagar essa prática. Desde sua origem as guerras foram adotadas como tema principal pela arte de fotografar. Até o descobrimento da fotografia, os conflitos bélicos eram algo longínquo e de certo modo excitante. A população desconhecia os cruéis detalhes desses conflitos: cadáveres, feridos e mutilados estavam somente nos textos ou nas pinturas. Foi assim que a participação britânica na Guerra da 17 T ermo extraído do site http://ubista.ubi.pt/~comum/sousa-jorge-pedro-historia_fotojorn1.htm 169 Criméia (1854-55), com o conseqüente interesse da população, levou o editor Thomas Agnew a convidar o fotógrafo oficial do Museu Britânico, Roger Fenton, a ir à frente da batalha, para cobrir “foto-jornalísticamente” o evento. As fotografias produzidas por Fenton na Guerra da Crimeia foram publicadas na imprensa sob a forma de gravuras, e constituíram o primeiro indício do privilégio que o fotojornalismo vai conceder à cobertura de conflitos bélicos. Roger Fenton, considerado como primeiro repórte fotográfico, tinha como missão realizar fotos do referido conflito com o intuito de acalmar os temores da opinião pública britânica sobre as tropas que ali estavam. Suas fotografias não mostram o horror da dor e da morte, ao contrário, são imagens de soldados e oficiais sorridentes, posando para o fotógrafo, ou imagens dos campos de batalha limpos de cadáveres, porém repletos de balas de canhão. Com a primeira cobertura foto-jornalística de guerra, realizada por Fenton, nasce a censura prévia no fotojornalismo. Por isso as fotos de Fenton não revelavam a dureza dos combates, mas sim a “guerra fictícia”, com soldados longe da frente de batalha. É ainda a guerra com sua mácula de heroísmo, tão habitualmente apresentada pela pintura. Cabe ressaltar também as limitações técnicas, já que nessa época os materiais utilizados eram pesados e difíceis de operar, fato que impossibilitava chegar a tempo de fotografar os instantes fugazes de uma batalha. Durante a Guerra da Secessão americana de 1861, realizam-se inúmeras fotografias dos acontecimentos. Ao contrário do que aconteceu a Fenton, durante a Guerra da Secessão, sem censura, começou a aparecer uma estética do horror. Utiliza-se a fotografia para denunciar as atrocidades da guerra, assim como para denunciar o adversário ou para registrar episódios 170 importantes da memória coletiva do país. Diferente de Fenton, muitos dos que fotografaram a guerra civil americana eram independentes, e não possuíam nenhum tipo de censura na hora de forjar a crueldade dos acontecimentos. A Guerra da Secessão contribuiu em vários aspectos para o desenvolvimento da fotografia de guerra, bem como para o fotojornalismo. A guerra foi despida de sua auréola de epopéia, a fotografia passou a ser vista como força atuante e capaz de persuadir devido ao seu realismo. Os fotógrafos tiveram a noção de que era preciso estar perto do acontecimento quando este ocorresse. Também a noção de que a fotografia possuía uma carga dramática superior à da pintura levaram os fotógrafos a vislumbrar o poder do novo meio. Outro conflito que propagou a fotografia de guerra foi a Guerra Civil espanhola. Nela vários fotógrafos espanhóis, até então desconhecidos, distinguiram-se durante o conflito que ensangüentou seu país. Dentre eles está Agustí Centelles, que cobriu exaustivamente a frente de Aragão. Conforme C. Brothers, a fotografia sobre a Guerra Civil da Espanha tinha notoriamente fins persuasivos, especialmente porque o conflito provocou intensa polarização política na Europa. A conseqüente exposição das fotos traumáticas dos acontecimentos violentos nas casas de família ocasionaram mudanças em toda sociedade. Depois da fotografia, a guerra nunca mais seria a mesma. Com o novo meio, o leitor era projetado num mundo mais próximo, mais real, mais cruel. Neste momento a escrita cede espaço para a imagem. É desta forma que a publicidade utilizará a fotografia de guerra a seu favor. Agustí Centelles nasceu em Grao (Valência) na Espanha em 1909, e foi junto com seus pais viver em Barcelona a partir de um ano de idade, por isso 171 pode ser considerado mais barcelonês que valenciano. Já muito jovem se iniciou na fotografia trabalhando no jornal El día gráfico, onde publicou suas primeiras fotografias. Foi neste diário, onde começou a trabalhar como aprendiz de Ramón Baños, que assimilou a técnica do retrato. Anos mais tarde foi ajudante de Josep Baldosa, o qual haveria de introduzi-lo no mundo do fotojornalismo. Porém em 1934 principia por conta própria sua carreira de fotógrafo fazendo reportagens nas ruas, espetáculos, esportes para vender aos jornais da época como: La Publicitat, Diari de Barcelona, Última hora, L’Opinió, La Vanguardia e La Rambla . É considerado o precursor do fotojornalismo na Espanha (denominado como o Robert Capa espanhol), no entanto, sua obra sobre a Guerra Civil espanhola só foi reconhecida após muitos anos. Com a morte de Franco (1975) e a chegada da democracia na Espanha, Centelles retorna à França (1976), recupera a mala com seus negativos e publica-os; com isso recebe, em 1984, o Prêmio Nacional de Fotografia pelo Ministério de Cultura da Espanha. Autor de Agustí Centelles: La lucidez de la mejor fotografía de guerra, falece em 01 dezembro de 1985, aos 76 anos, em Barcelona, esse grande nome do fotojornalismo espanhol. Centelles foi um dos primeiros fotógrafos que utilizou uma câmera Leica na Espanha. Essa câmera possibilitou-lhe colaborar como reporter gráfico em diversos jornais da época. Sendo o terceiro fotógrafo a utilizar este tipo de câmera, conseguiu realizar através dela um tipo de fotografia diferente das que existiam na época. Os retratos de Centelles tinham uma grande força expressiva abandonando as clássicas fotografias planas, sem relevo, que até 172 então eram feitas e que estavam, de certo modo, condicionadas pelas câmeras de placas e pela utilização do magnésio. Como fotógrafo não buscava a criatividade, mas sim mostrar a crua realidade. Suas fotografias eram autênticas, verídicas e expressavam o cotidiano de preocupação e horror da sociedade espanhola. As primeiras fotografias de um conflito bélico, considerando como o primeiro evento fotojornalístico, a Guerra da Criméia, realizadas por Roger Fenton, não apresentavam nenhum indício de guerra. Eram imagens manipuladas de soldados bem instalados, longe da frente, campos de batalhas sem mortos, ou seja, imagens de uma “falsa guerra”, em que o fotógrafo se preocupava em retratar o “glamour” bélico como se fazia na pintura. Esse primeiro registro visual de uma guerra é totalmente distinto do registro visual de Centelles, pois enquanto o fotógrafo espanhol fotografava o real, a dor, a morte e o desespero o outro fotografava o falso heroísmo, a falsa alegria dos soldados, os falsos campos sem corpos. Em certa ocasião, Agustí Centelles declarou em uma entrevista: “Yo me daba cuenta de que el reportaje gráfico de entonces era muy amanerado y estético. Y a mí esto no me gustaba. Yo sentía la necesidad de reflejar una cosa más viva”.18 Por isso buscava realizar fotos livres de qualquer intervenção, puras, num cenário real e vivo conhecido pela população. Na fotografia19 exposta ao lado, a objetiva de Centelles capta uma imagem de tristeza onde se percebem indícios de uma revolução. Cavalos mortos, pessoas tapando o nariz para 18 19 http://es.wikipedia.org/wiki/Agust%C3%Ad_Centelles Centelles. Incineração de cavalos mortos na Praça Catalunha – 19/07/36. 173 não sentir o mal-cheiro; nesse momento, o fotógrafo consegue registrar até mesmo a fumaça produzida pela incineração dos equinos mortos. Mais uma vez, ele marca com a veracidade de suas fotografias a imagem caótica que será exposta para a população. O perspectiva fotógrafo apresentar tinha como os objetos Centelles. Jogos de crianças – 1936. focados sobre um plano principal tais como são percebidos pela vista, para que assim suas fotos resultassem no mais natural possível. Sua lente captava o centro, porém nunca deixava de registrar e dar a devida importância ao todo. Em muitas de suas fotografias o todo simbolizava mais que o centro, ou seja, o objeto focado em segundo plano tinha mais significação do que o objeto focado em primeiro plano. Esta afirmação pode ser confirmada pela observação da foto acima. Pioneiro da reportagem moderna, considerando que a Guerra Civil da Espanha foi o primeiro grande Centelles. Tomada de Montearagón pelos milicianos – 09/1936 conflito bélico que mereceu uma atenção especial por parte dos meios de comunicação internacional, o que pode determinar o começo do fotojornalismo, Centelles foi uma figura que marcou definitivamente esse gênero. Ele conseguiu através de sua Leica e de sua técnica criar imagens impactantes, cheias de dinamismo e espontaneidade; movimentou-se entre os campos de batalha e os conflitos citadinos, e com isso pôde registrar na íntegra e com beleza o caos espanhol 174 de 1936-1939. Agustí Centelles foi o primeiro fotógrafo a registrar, em 18 de julho de 1936, as primeiras imagens do fracassado levantamento dos militares fascistas nas ruas de Barcelona. Com grande risco de vida, ele sai pela cidade colhendo imagens chocantes do que seria o início da Guerra Civil espanhola. Ao iniciar o conflito bélico, Centelles foi destinado para a frente de Aragón e Catalunha junto com as milícias populares do exército republicano, e se dedicou a elaborar reportagens sobre as tropas dessas frentes para La Revista, sendo suas imagens também exploradas por ambas as frentes em suas propagandas. Realizou reportagens sobre a conquista de Truel e sobre a batalha de Belchite. Foi também colaborador do Comissariado de propaganda da Generalitat de Catalunha e encarregado do arquivo do exército da Catalunha em Barcelona. Uma fotografia muito divulgada durante o conflito, conhecida por muitos e que também foi capa de importantes jornais, é a dos três guardas de assalto armados com fuzis atrás de um cavalo morto. Esta fotografia, exposta ao lado, na época, foi muito utilizada em cartazes propagandísticos a favor dos republicanos. Nela percebe-se que a desordem ocasionada pela ruptura da ordem Centelles. Guardas de assalto fazem barricadas (Barcelona,19/07/1936) política, inaugurou uma cidade caótica. Em 1939, Centelles se auto-exilou na França e levou consigo os negativos mais relevantes assim como as câmeras fotográficas. Esteve preso em diversos campos de concentração onde conseguiu salvar seus negativos, devido a uma carteira de jornalista expedida pelas autoridades francesas, 175 estabelecendo um pequeno laboratório fotográfico no campo de Bram. Desta forma, conforme mostra a fotografia ao lado, consegue registrar a dramática situação dos refugiados espanhóis. Em 1976, Agustí Centelles ao recuperar a maleta com seus negativos e, já com a chegada da democracia, expõe suas imagens, transformando-se num símbolo do fotojornalismo de guerra. Portanto, esse conflito bélico Campo de concentração de Bram (França, 1939) tornou-se para o referido fotógrafo o maior acontecimento de sua vida profissional, que proporcionou seu reconhecimento nacionalmente como um dos maiores fotógrafos da Espanha. 4.2.2- O terceiro caminhar: As cidades do caos na Espanha Raúl González Tuñón foi um poeta preocupado com o social, com a classe proletária, com as injustiças, entre tantos outros temas. Com a Guerra Civil espanhola se pode ver sua vertente política e solidária. O conflito bélico espanhol trouxe para o autor argentino não só quatro novos livros, como foi citado no segundo capítulo, e importantes amizades, mas principalmente um novo olhar sobre a poesia, um novo fazer poético com abordagem social, como um meio de comunicação com a massa, visto que ele também era jornalista. Ao chegar à Espanha, e se deparar com a violenta crise dos mineiros asturianos, González Tuñón decide regressar a Buenos Aires, escrever notas para um jornal e organizar a Seção Hispano-Americana da Aliança de Intelectuais Antifascistas, com o intuito de informar os acontecimentos que 176 ocorriam na Espanha. Porém, antes de voltar à Argentina, o poeta conversa com mineiros asturianos, que o fazem recordar de seu avô Manuel Tuñón. A partir deste fato, o autor começa a escrever La Rosa Blindada, livro chave que abre o caminho da poesia social na América Latina. Em terras espanholas, como correspondente de guerra, Raúl González Tuñón verá que a morte está nas ruas e nos campos, compartirlhará a dor e os bombardeios com Nicolás Guillén, Antonio Machado, García Lorca, entre outros. Raúl González Tuñón passa a ser o primeiro a escrever poemas em solidariedade aos que lutavam pela liberdade da Espanha, retratando toda a comoção vivida nessa guerra. Por este motivo, o poeta chileno Pablo Neruda afirma que “Rául, fue el primero que blindó la rosa” e Octavio Paz sentencia que sem La Rosa Blindada não teria existido nem España en el corazón, de Neruda, nem España aparta de mí este cáliz, de César Vallejo. A Guerra Civil espanhola teve em González Tuñón um intérprete poético à altura dessas façanhas. O próprio autor afirma, em seu auto-retrato, que a Guerra Civil não só o modificou na forma lírica, mas também lhe permitiu ser mais atuante na sociedade. O escritor argentino sempre foi um homem comprometido com seu tempo e esse comprometimento foi constantemente aludido em sua poética. “La Libertaria”, toda manchada de sangue O poema “La Libertaria” foi escrito em memória de Aída Lafuente, uma jovem de 16 anos que morreu defendendo sua região durante a revolução de 177 outubro de 1934, ocorrida na bacia de Cuenca em Asturias. O poema foi cantado como uma homenagem ao encerramento do II Congreso de Escritores Antifascistas para la Defensa de la Cultura realizado na cidade de Valência em 1937. Essa composição poética está formada por seis estrofes com alternância nos números de seus versos. A maioria das estrofes possui versos paralelos e anafóricos, que sustentam a cadência rítmica da poesia, tornando-a semelhante a um hino suavizado e caracterizando-a como uma espécie de “copla popular”, muito comum na obra tuñoneana desse período. Estaba toda manchada de sangre, estaba toda matando a los guardias, estaba toda manchada de barro, estaba toda manchada de cielo, estaba toda manchada de España. A estrofe que inaugura o poema é uma descrição de Aída Lafuente no momento de sua morte, pois o sujeito poético afirma através do verso inicial a impregnação de seu corpo pelo sangue, uma alusão ao fim da vida de Aída. Relatos da época revelam que essa jovem armada com uma metralhadora se juntou a um defensor da cidade na tentativa de evitar a entrada dos inimigos em Asturias, por isso o poeta descreve “estaba toda matando a los guardias". Nos versos seguintes, por meio da repetição de “manchada”, enfatiza-se o idealismo dessa figura, pois esse vocábulo contribui para a formação de uma imagem de profundo comprometimento com o conflito asturiano, que ora deixa marcas de barro, ora de céu e até mesmo de seu país. O barro, por simbolizar tanto a matéria-prima que encontramos na natureza quanto a formação do ser humano, imprime no poema um valor local e, ao mesmo tempo humano, pois 178 estar manchado de barro implica na exaltação de sua região por carregar a terra em seu corpo e do homem por ser oriundo do barro, conforme o relato bíblico. Uma das simbologias do vocábulo céu é o absoluto das aspirações humanas20. Essa significação se adequa ao contexto poético da composição, visto que marca a morte dessa jovem. O verso final revela uma imagem patriótica de Aída, a qual foi capaz de sacrificar sua vida em virtude de seus ideais políticos. Na segunda estrofe o eu lírico convoca a população espanhola ao enterro de Aída Lafuente, e para isto emprega o verbo venir no imperativo “ven”: Ven catalán jornalero a su entierro, ven campesino andaluz a su entierro, ven a su entierro yuntero extremeño, ven a su entierro pescador gallego, ven leñador vizcaíno a su entierro, ven labrador castellano a su entierro, no dejéis solo al minero asturiano. Através de uma enumeração de pessoas de distintas regiões espanholas e ocupações de diversos tipos, o poeta passeia por várias localidades da Espanha, pedindo a presença indiscriminada de todos no sepultamento. Assim, vincula-se a imagem dessa jovem ao comprometimento político de toda uma nação. O vocábulo “entierro” empregado repetidamente em todos os versos, exceto no último, enfatiza o fim do ideal de vida de uma jovem; ao mesmo tempo, alerta para que a luta mineira não seja enterrada com ela. Pela cultura popular, o enterro seria uma forma de reunir pessoas em um encontro final para despedidas. González Tuñón aplica esse significado com 20 O símbolo deste vocábulo se encontra em: CHEVALIER, Jean – GHEERBRANT, Alain. Diccionario de símbolos. 5ª ed. Barcelona: Herder, 1995 179 intuito de unir, provocando reflexão na população espanhola pela luta da permanência de seus objetivos e, conseqüentemente, pela repulsa daquele crime cruel. Essa comoção é justificada no último verso quando o sujeito poético pede para que essa população, convocada ao enterro, não deixe sozinho o mineiro asturiano, mineiro este que representa todos os outros que lutaram contra aquela fatal revolução outubriana de 1934, a qual seria o ponto de partida para a eclosão da Guerra Civil espanhola. Sabe-se que Raúl González Tuñón usa, freqüentemente, como recurso poético, dados de sua vida particular. Em vários poemas o autor deixa registrados pessoas, gostos e lugares comuns de sua vivência. Em “La Libertaria”, há uma personificação representada pela presença do mineiro asturiano, que se vincularia à imagem de seu avô materno Manuel Tuñón, que era de Asturias, operário e socialista. A imagem nessa obra tuñoneana encontra-se mediada por impressões particulares do autor, construindo assim uma imagem social e de caráter individual. Contudo, deve-se ressaltar que o olhar, que apreende essas imagens e as decodifica em versos poéticos, é o de um argentino, portanto, um olhar estrangeiro, que, de acordo com o autor Nelson Brissac Peixoto (1988:363), “aquele que não é do lugar, [...] que acabou de chegar, é capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber”. Dessa forma a poesia de González Tuñón é fundamental para entender que ver é apenas uma atitude mecânica e passiva, enquanto olhar implica em um questionamento daquilo que se vê, sendo completamente reflexivo. O que conduz os versos de “La Libertaria”, bem como os outros textos contidos nos seus quatro livros sobre a Guerra Civil espanhola, é a reflexão. 180 Na terceira estrofe o sujeito poético segue convocando a população para o enterro de Aída, explicando os motivos pelos quais o povo deve vir: Ven, porque estaba manchada de España, ven, porque era la novia de Octubre, ven, porque era la rosa de Octubre, ven, porque era la novia de España. Através de uma gradação em série de adjuntos adnominais, ele atribui a essa personagem feminina um caráter nacional “manchada de España”, tornando-a assim um emblema daquela revolução mineira que assolava o país. Com conotação afetiva “novia”, ele a situa dentro do movimento da insurreição asturiana, ocorrido exatamente no mês citado no poema. Assim “novia de octubre” se refere à mulher comprometida com aquela insurreição. Como é mundialmente conhecida, a rosa simboliza mulher e beleza, no entanto, em 1919, uma mulher lutadora contra o governo em favor de seus ideais comunistas, chamada de Rosa de Luxemburgo, foi assassinada durante o regime que formava os primórdios do nazismo alemão, marcando assim seu nome como um emblema de mulheres revolucionárias. Pode-se dizer que Aída Lafuente era conhecida como “La rosa roja de Asturias” devido a esse ícone feminino de luta. Também se observa que quando o sujeito poético nomeia “la rosa de octubre” ele a toma como a maior representante daquele sangrento conflito, além de atribuir a essa jovem uma singela beleza. Verifica-se no último verso que por meio do adjunto adnominal “novia de España” se estabelece na composição poética uma justificativa central para a presença permanente dos ideais asturianos dentro da insurreição, pois a metáfora marca o comprometimento e o amor que essa figura feminina tinha por seu país. 181 Nessa estrofe o eu lírico pede que a morte de Aída não se perca, que a ideologia dessa luta não seja abandonada, “no dejéis sola su tumba del campo”, visto que, no campo, em conjunção com a natureza, a vida intensifica seu caráter cíclico. No dejéis sola su tumba del campo donde se mezcla el carbón y la sangre, florezca siempre la flor de su sangre sobre su cuerpo vestido de rojo, no dejéis sola su tumba del aire. Tanto “carbón” quanto “sangre” estão relacionados na obra tuñoneana com guerra e morte. Por sua vez, “el carbón” se relaciona com pó, com ruínas, com ossos, sendo um objeto fractal (fragmentado) peculiar ao ambiente caótico e indicador de início e fim, pois conforme as escrituras bíblicas “do pó viemos ao pó retornaremos”. O poeta, ao misturar a cinza com o sangue, amplia o sentido inicial de “carbón” já que, por estar debaixo da terra, essa mescla pode germinar, crescer e se transformar em árvore. Assim, a cinza se humaniza porque, ainda que subterrânea, trabalha. Comprova-se essa humanização no verso seguinte pelo florescer da flor que simboliza a regeneração da vida. Também, pode-se assinalar o verso “florezca siempre la flor de su sangre”, como uma exposição do desejo do poeta pela permanência da ideologia combatente dos mineiros através da imagem da flor. Cinza-morte, entendidos no poema como carvão-sangue, são geradores de vida, deles florescerá sempre a flor, ou seja, nascerá sempre o pensamento, a reflexão sobre o que acontece naquele ambiente de intensos combates. Também é possível confrontar o sangue com a relação morte-vida. Morte quando alude a “rio de sangue” e vida como doadora universal, “flor de su 182 sangre”, sangue que não se estanca, flui constantemente, é móvil e fecundo. Ao final, o sujeito poético retoma a palavra “tumba” para enfatizar a relevância do sepultamento. Através do adjunto adnominal “tumba del campo” e “tumba del aire”, o eu lírico cria um paradoxo, marcando a morte como uma metáfora da vida e o ar como a consciência do homem que pelo cotidiano tende a esquecer os fatos. Cuando desfilan los guardias de asalto, cuando el obispo revista las tropas, cuando el verdugo tortura al minero, ella, agitando su túnica roja, quiere salir de la tumba del viento, quiere salir y llamaros hermanos y renovaros valor y esperanza Na penúltima estrofe o sujeito lírico enumera acontecimentos comuns naquele cotidiano, como: invasão dos soldados, revistas das tropas e os crimes de torturas, porém essa aparente citação é uma alusão irônica às barbáries que ocorriam durante o confronto mineiro. Daí o motivo para o levante daquela que foi a mártir da revolução de Cuenca, daquela que empunhou a bandeira do movimento asturiano. Mais uma vez o poeta retoma o vocábulo “tumba”, estabelecendo junto com “viento” a memória da heroína, que quer simbolicamente sair do túmulo, figurar eternamente como uma esperança, por isso o poeta incita “renovaros valor y esperanza”. O sujeito lírico ressalta na poesia duas imagens, uma que está no nível explícito e outra, no nível implícito, por isso mesmo intuída a partir da observação minuciosa dos detalhes concedidos pelo poeta. Em primeiro plano é revelada a imagem de Aída Lafuente, marcada em todo o poema através do gênero e dos símbolos universais femininos: flor, noiva e rosa. No nível implícito é descrita uma imagem abstrata, percebida pela junção dos 183 significados de algumas palavras ao acontecimento de outubro. Trata-se de uma representação ideológica e política que começava a despontar dentro da obra tuñoneana. y recordaros la fecha de Octubre cuando caían las frutas de acero y estaba toda manchada de España y estaba toda la novia de Octubre y estaba toda la rosa de Octubre y estaba toda la novia de España. Ao final, o poeta insiste na rememoração constante do dia e mês em que Aída foi morta, mês este que marca na Europa o outono, estação onde caem as folhas, por isso “Cuando caían las frutas de acero”. No entanto, essas frutas não saciam a fome, são frutas que não podem ser comidas, são de aço. A imagem que esse alimento revela, o anunciador de momentos difíceis, prevê um cruel futuro para a Espanha. Frutas simbolizam abundância, porém “frutas de acero” seria abundância de ferros, aço, elementos que compõem as munições e as armas, objetos agora habituais dentro das casas e regiões espanholas, indicadores de uma possível guerra. Ainda na última estrofe, percebe-se que o poeta retoma, por meio de aliterações, a ideia inicial, pois emprega uma parte da primeira estrofe com adjuntos adnominais usados na terceira estrofe para aludir a la libertaria. Observa-se também que “novia de Octubre”, “rosa de Octubre” e “novia de España” formam uma gradação que parte de um valor regional para um valor nacional, já que o conflito ocorrido na região de Asturias se refletiu em toda Espanha. 184 “Cuidado, que viene el Tercio”, da marcha militar ao ritmo do poema O poema “Cuidado, que viene el Tercio” pertence ao livro La Rosa Blindada, publicado em maio de 1936, sendo o primeiro livro de poesias de González Tuñón com a temática de revoluções populares na Espanha, incluindo a Guerra Civil. Por sua cadência e disposição de seus versos e estrofes, a composição poética, assemelha-se a uma espécie de marcha suavizada. Nesse período da obra de González Tuñón suas poesias se impregnavam de ritmo e, concomitantemente, se caracterizavam pelo verso livre, como se poderá verificar nesse poema. A imagem poética nessa obra surge através de uma linguagem que anuncia a guerra. Já no título do poema, o poeta chama a atenção para as batalhas que começavam a ocorrer em solo espanhol, devido a visões políticas divergentes entre o governo da época e a monarquia, que havia sido derrubada anos antes pelos republicanos. Em todas as estrofes há um alerta para a chegada dos soldados, os quais combatem a serviço de seu general. Essa constância de chamadas, que o sujeito poético ressalta dentro do poema, causa no leitor uma sensação de insegurança, que acaba envolvendo-se nesse clima de tensão tão peculiar à população na época do conflito espanhol. Com isso o autor revela para seu leitor a imagem de uma sociedade amedrontada e acuada pela ameaça das tropas franquistas que trouxeram o caos. La Legión ha entrado a España. O primeiro verso que inaugura o poema é de sobreaviso para o leitor, que representa a população espanhola, visto que na época em questão o texto 185 em prosa ou verso era a maior e melhor forma de comunicação com a massa. Observa-se que o autor coloca o vocábulo “Legión” em maiúscula. Poder-se-ia entender essa atitude como exaltação dos soldados que compõem o exército inimigo atribuindo a eles poder, mesmo sendo este poder destrutivo. Outra maneira de compreender este vocábulo é vê-lo como uma forma mascarada de insulto às tropas militares, pois “legión” também se define, conforme a Bíblia, por demônios. Assim o autor estaria denominando pejorativamente tal exército e expondo sua posição em relação à guerra. A primeira estrofe do poema expressa uma preocupação do eu lírico em alertar as pessoas comuns da sociedade para cuidarem e protegerem aquilo que amam, pois os soldados franquistas, denominados por González Tuñón de “lobos” (termo que o autor retoma no poema Domingo Ferreiro), estavam chegando e vinham para destruir. Eles tinham “el desierto en el alma”, ou seja, eram desalmados. Hombre, cuida tu mujer, obrero, guarda tu casa. Mira que vienen los lobos con el desierto en el alma. Na segunda estrofe o sujeito poético alerta ao trabalhador rural, que para o autor é uma pessoa com poucos recursos. Pobre colono, defiende tu finca, la hipotecada, que no te van a dejar ni verdura ni majada. O eu lírico avisa ao colono que defenda sua fazenda que está hipotecada, pois os que chegam não deixarão nenhuma forma de 186 sobrevivência para ele, reafirmando a entrada em terra espanhola dos que trazem a ruína e a dor. A terceira estrofe dá indícios da crise econômica que sofria a Espanha, não era só o fazendeiro que tinha seu bem hipotecado, mas também o comerciante tinha sua loja com baixos lucros. Novamente o poeta pede ao povo que tenha cuidado com sua família e com seus bens, já que o vil exército condecorado, como o próprio sujeito-lírico afirma no poema, pode tomar tudo sem qualquer explicação. La Legión ha entrado a España. Cierra, pequeño burgués tu tienda de renta flaca. Guarda tu novia, muchacho, de la hez condecorada. Todos, segundo o poeta merecem ser alertados, inclusive a meretriz, depreciada pela sociedade. Para o eu lírico esta mulher de vida livre é como qualquer outro membro da comunidade, que luta, sofre e trabalha pela sobrevivência. Prostituta, ten cuidado que no te invadan la casa los rufianes de la arena que pegan, pero no pagan. Raúl González Tuñón, em muitos de seus poemas, retrata essa personagem menosprezada, com o intuito de elevar sua condição humana perante a sociedade e, assim, diminuir o preconceito em torno desse arquétipo da realidade citadina. Por este motivo o autor canta em seus versos essa mulher tão esquecida propositalmente pela população. Ele humaniza a prostituta, marginalizada perante o olhar popular. Na obra tuñoneana a imagem 187 da meretriz nunca é representada negativamente, ao contrário, é apresentada com respeito e até com pesar. Sabe-se que é de seu interesse lírico revelar as personagens que estão à margem, expô-las de forma bela, nunca com preconceito ou desprezo. Nessa estrofe o poeta descreve a atitude covarde dos soldados, chamados por ele de “rufianes de la arena”, que invadem, abusam e usufruem da prostituta, simplesmente pela imposição de seu poder e de sua força. Mais uma vez o eu lírico registra a entrada dos militares franquistas que trazem a desordem para a Espanha. Na quinta estrofe o sujeito poético volta seu olhar para a Igreja e segue recomendando cuidados. Ainda na mesma estrofe ele cita de uma forma irônica a figura do “tahur” que representa o malandro portuário. La Legión ha entrado a España. Cura, cuida tu sobrina y el tesoro de tu arca. Tahur, ándate a los puertos que para fulleros basta. Cria-se então um paralelo entre a imagem do representante eclesiástico e a do homem errante que perambula nos portos à procura de um bom negócio. Essas imagens, como as anteriores, são imagens sociais. Em toda poesia o eu lírico alude a personagens comuns singulares que permeiam a cidade e o campo. Assim, mesclando diferentes classes sociais, “obrero, colono, burgués, prostituta, cura, tahur, bodeguero”, o poeta deixa transparecer seu olhar igualitário, no qual todos os homens são dignos e, como todos, podem ser vitimados pelo governo. Apesar de a sociedade diferenciar pessoas por classe econômica e social, o sujeito do poema deixa representado através 188 de seus versos uma imagem igualitária de todos os homens, pois todos podem ser submetidos ao poderio dos que lutam pela monarquia. Na sexta estrofe o poeta segue avisando às pessoas comuns do povo para que tomem cuidado. Nesse momento, o eu lírico se volta para uma personagem que vive em um ambiente comum, como as bodegas, os bares, as casas de show. Bodeguero, tus corambres esconde en la cueva vasta que ya vienen los que traen el desierto en la garganta. O sujeito poético determina que o dono da bodega esconda na cova sua fome de vingança e sua raiva. O poeta se utiliza de um recurso estilístico, o neologismo (“corambres”), para que a personagem possa dissimular sua fome de justiça, de coragem e rancor perante as tropas franquistas. Dessa forma ele aglutina o vocábulo “color” (cor) ao vocábulo “hambres” (fomes) formando “corambres” que, no plural, associa sua fome biológica a sua fome de vingança. La Legión ha entrado a España. Que ya vienen galopando sobre la angustia de España, asesinando palomas y fusilando cigarras, que ya vienen galopando sobre la angustia de España los soldados enemigos de la dignidad humana. La Legión ha entrado a España. Nas duas últimas estrofes o eu poético se apóia no paralelismo para expressar sua ideia final. Repete os dois primeiros versos da penúltima estrofe, 189 na última estrofe, enfatizando a situação de desespero e angústia que começava a se estabelecer na Espanha. Assim, pode-se afirmar que a regularidade e ordem citadina habitual, destruídas pela fragmentação social, estabelecem na sociedade espanhola a desordem, que culminará no vazio caótico deixado pela guerra. Na penúltima estrofe o sujeito do poema, além de descrever a entrada das tropas de Franco em solo espanhol, revela também um panorama de caos, horror, morte, enfim, desolação, pois afirma que os soldados vêm para acabar com a paz e harmonia, simbolizada no poema pelo vocábulo “palomas” (pombas). Ainda evidencia a morte brutal da celebração da vida, representada pelas cigarras, as quais cantam para celebrar o dia vindouro. Ao final o sujeito poético segue com sua crítica atroz sobre o exército do general Francisco Franco. Afirma que eles são soldados inimigos da dignidade humana, pois os mesmos vinham espalhando desgraça, crueldade e dor sobre toda população espanhola. Termina justificando novamente que todo esse ambiente de intensa fragmentação geradora do caos acontece devido à entrada dessas tropas na Espanha. Desta forma percebemos que o poema “Cuidado, que viene el tercio” é de uma composição poética cíclica, pois começa e termina com versos idênticos: “La Legión ha entrado a España”. Por ser cíclica, também se autorecria, ou seja, a ordem inicial é interrompida pela desordem, porém ao final o poeta retoma o princípio de regularidade para novamente estabelecer o caos, com isto a poesia não se finda. “Domingo Ferreiro”, toque a gaita... 190 Tanto a imagem fotográfica quanto a poética apresentam singularidades e pontos em comum com o meio que a produz, como se pode verificar nas diversas fotos do fotógrafo espanhol Agustí Centelles e na poesia do poeta e jornalista argentino Raúl González Tuñón. Ambas têm em comum o mesmo tema ou pano de fundo, a Guerra Civil espanhola, onde fotógrafo e poeta se aproximam com o mesmo objetivo: denunciar o brutal massacre em terras espanholas. O poema “Domingo Ferreiro” pertence à Poemas hallados en una maleta extraviada, que está localizado na quarta parte do livro Hay alguien que está esperando. (El penúltimo viaje de Juancito Caminador) (1952), de Raúl González Tuñón, e as fotografias são do fotógrafo Agustí Centelles, as quais retratam alguns conflitos ocorridos durante a Guerra Civil espanhola. Poesia e fotos serão expostos paralelamente e as suas análises. A criação da imagem nesta poesia se dá através do conhecimento que temos sobre guerras. Esse saber irá aflorar nossa sensibilidade, e no decorrer da leitura formaremos continuamente imagens associadas ao período bélico. Ao final nos deparamos com uma imagem que define bem o que é uma guerra: “perdas contínuas de compaixão, de alegrias, de esperanças, enfim perdas de (Praça de Catalunha, o coração de Barcelona ao final do dia – 19 /07/36) vidas”. Toca la gaita Domingo Ferreiro toca la gaita... «¡Non queiro, non queiro!» Porque están llenas de sangre las rías, porque no quiero, no quiero, no quiero. 191 Na primeira estrofe o poeta incita a Domingo Ferreiro que toque sua gaita, mas ele se nega a tocá-la. Esta negação tão particular é representada em língua galega no verso: “¡Non queiro, non queiro!”, assim se cria no poema um pequeno diálogo entre autor e personagem. Este diálogo apresenta uma linguagem de ruptura: o autor em linguagem imperativa ordena que Domingo Ferreiro toque a gaita, logo a seguir a personagem responde negativamente em língua galega. No terceiro verso, Ferreiro retoma sua voz e justifica o motivo de tal negação: as “rías” estão repletas de sangue, sangue de uma guerra de difusas ideologias, onde ambos os lados estavam mais preocupados em impor suas ideias políticas e eliminar seus adversários. As “rías”, freqüentemente, na literatura simbolizam a vida, pois além de possuírem seu ciclo vital ativo, também são as responsáveis pelo alimento da população. Entretanto, a obra revela as “rías” como anunciadora da morte, do caos em que havia se transformado a Espanha de 36. Naquele momento a terra passou a não ser digna de música, mas sim de lamento. A imagem criada nessa primeira estrofe, através da forma simbólica das “rías”, desperta no leitor a sensação de horror e morte vivida pelas pessoas daquela época. Os leitores sentem essa mesma sensação ao verem expressas a destruição e a morte na fotografia. A imagem fotográfica exprime essa tristeza, pois retrata o que ocorria nas cidades espanholas, através do olhar preciso de Centelles. As imagens poéticas são produzidas através da ordenação de vocábulos, versos e estrofes, dependendo, portanto, da competência de um poeta para despertar a imaginação do leitor, já as imagens fotográficas são produzidas por um aprisionamento físico de partes do mundo visível, isto é, 192 imagens que dependem de um instrumento de registro, implicando então a presença de objetos reais e preexistentes. Por tratar-se de um cenário físico, real e integrado a nosso mundo (a Guerra Civil espanhola e o local onde ela aconteceu), a imagem criada nesta poesia desempenha um papel social, pois por meio dela se pode sentir como o autor percebeu tal acontecimento. Y se secaron los ramos floridos que ella traía en la falda del viento, que ella traía a su novio soldado o pescador, labrador, marinero. (Saída de milicianos em Barcelona – 07/1936) A segunda estrofe expressa todo o espírito de tristeza que se vivia na Espanha: a alegria morrera juntamente com as cores vivas, as flores secaram, o vento não trazia mais aquela doce melodia da gaita aos homens daquela terra. Essa fotografia foi exposta juntamente com esta estrofe, neste estudo, pois simboliza a despedida de um casal. Na foto encontram-se tanto o soldado quanto “ela”, e ao lêr-se a estrofe e compará-la com a foto, percebe-se um ambiente de desilusão e falta de esperança, que é finalizado com o beijo de um futuro incerto. Seria a despedida de tempos brandos para o início de tempos revoltos. O registro da imagem poética depende de um suporte, quase sempre uma superfície, como o papel, que possa servir de receptáculo para a fixação dos significados, registrados pela caneta esferográfica, que um artista utiliza para deixar impressos no papel seus significantes. Sem dúvida o principal 193 instrumento possibilitador da fixação da imagem poética é a caneta, que como prolongamento dos dedos e dos movimentos da mão, permite desenvolver com maestria sua utilização. É na visibilidade da escritura que está impressa a marca de seu agente. (Trincheira em Belchite – 09/1937) Sobre Galicia ha caído la peste, ay, los oscuros sargentos vinieron. Están colgando en los pinos los hombres, toca la gaita, no quiero, no quiero. “Sobre Galicia ha caído la peste”: assim se inicia a terceira estrofe que vem revelar nitidamente, através de seus harmoniosos versos, como atuavam as tropas franquistas, denunciando os desmandos e crueldades praticados naquela região. O General Franco e seu exército haviam chegado à Galicia e, junto com eles, a dor, a morte e a destruição. Aquele momento não era mais propício para a música festiva galega e, novamente, o autor se nega a tocar a gaita. O terceiro verso, “Están colgando en los pinos los hombres”, revela horror, crueldade e dor, porque “colgar en los pinos” seria pendurar as pessoas nos pinheiros, ou seja, cravá-las nas árvores. A quem cravar? Certamente aos homens a favor da república que lutavam contra o exército de Franco. A fotografia acima, exposta concomitantemente com o poema, nos revela que esses homens estariam entrincheirados nesse ambiente caótico estabelecido pela fragmentação política da sociedade. Seus olhares para cima esboçam preocupação, o que marca verdadeiramente a tensão que sofriam 194 esses soldados, resultado do congelamento de um fato enquadrado. Essa imagem, sendo uma cena real, funciona como registro do confronto entre o sujeito e o mundo. O que resulta disso não é só uma imagem, mas um objeto único autêntico e, por isso mesmo, carregado de certa solenidade, fruto do privilégio da impressão primeira daquele instante raro, no qual poeta e fotógrafo pousaram seus olhares sobre o mundo, dando forma a esse olhar num gesto irrepetível. (Guardas de Assalto e Civis comemoram a vitória sobre os militares revoltosos em Barcelona – 19 /07/36) Nuestros hermanos que están allá abajo pronto vendrán a vengar a los muertos, pronto vendrán en mitad del verano, pronto vendrán en mitad del invierno. Na quarta estrofe, o poeta expõe claramente sua posição em relação à guerra quando cita: “Nuestros hermanos que están allá abajo”, com isso ele se insere no grupo dos que são a favor da República espanhola, pois os que estavam geograficamente abaixo eram os republicanos, que ainda mantinham o controle da capital. Na sua esperança guerreira, o autor afirma que sua “gente” virá vingar os amigos mortos, não importando se virão no verão ou no inverno, pois certamente perceberão a humilhação e o sofrimento do povo galego. A imagem formada nessa estrofe é de revolta e vingança. O autor desperta esse sentimento no leitor através de um misto de imagens: uma, espaço vivo e real, região onde estão os companheiros da república; outra, imagem sensorial de rancor e raiva. 195 A fotografia de guerra paralelamente a essa estrofe vem marcar a esperança de ajuda e reparação dos vários companheiros assassinados e, simultaneamente, simbolizar todo o contingente indiscriminado de pessoas que morriam. Nessas fotos observamos ora a gana com que lutavam os republicanos, ora o caos de dor e destruição que assolava o país. Nessas imagens instauradoras, fundem-se, num gesto indissociável, o sujeito que a cria, o objeto criado e a fonte da criação. (Miliciano na Frente de Aragão – 1937) El que no ha muerto andará por el monte y en las aldeas cayeron los buenos. Ay, que no vayan los lobos al monte, toca la gaita, no quiero, no quiero. Na quinta estrofe, o autor louva os sobreviventes da guerra, aproximando-os a Deus e colocando-os no monte 21, já que este é o símbolo da ligação entre terra e céu. Evidentemente, González Tuñón também demonstra solidariedade aos que morreram pela República, pois mesmo que os sangrentos soldados não subam ao monte para acabar com os poucos que restaram, ele não tocará a gaita em memória a seus companheiros mortos. Nessa estrofe o elo estratégico foi criado através da imagem ambiental física. O leitor percebe o quadro mental do mundo físico exterior e o apreende. O ambiente trabalhado foi o monte e a aldeia. Buscando as imagens que temos sobre esses referentes, descobrimos que o monte refere-se a um ambiente alto, de difícil acesso; enquanto a aldeia, a planície, lugar acessível. Desta 21 [Monte] Esta definição encontra-se em CHEVALIER & GHEERBRANT (1995) p.616. 196 maneira, depreende-se que os republicanos estão no monte, tentando proteger-se, e seus amigos mortos na aldeia, onde ocorreu possivelmente a batalha. A imagem anterior, do homem andando no monte, assinala claramente esse momento da poesia, onde o soldado protege seu território de possíveis invasões. A posição focada pelo fotógrafo nesta foto, coloca o objeto em posição elevada e próxima do céu (assim como no poema), o que pode indicar uma possível simpatia do repórter com a República. O emissor da imagem, através do enquadramento, recorta o real sob seu ponto de vista e, por isso pode propor diversas interpretações em função da sua subjetividade. (Frente de Aragão – setembro de 1938) Ya llegarán las valientes milicias para acabar con la hez del desierto. Ya llegarán en mitad de la Historia, ya llegarán en mitad de los tiempos. A sexta estrofe anuncia a vinda das milícias republicanas, que, mesmo em desvantagem, lutavam bravamente para combater aquelas deploráveis tropas franquistas vindas do deserto ocidental. Essas valentes milícias chegarão na metade da guerra, na metade do tempo que resta para o triunfo. A imagem que surge nessa estrofe é a da esperança, uma imagem sensorial. Percebe-se com essa imagem que o autor tinha certeza da vitória das tropas republicanas e, a partir desse pensamento utópico, fica nítido o posicionamento de González Tuñón durante a guerra. A figura das tropas em direção à frente de batalha, captada pela objetiva de Centelles, demonstra através do cenário toda a dimensão que o referido 197 fotógrafo conseguia impor entre o sujeito e o mundo. Por meio da poesia, podese imaginar o ambiente e, através da fotografia, o constatá-lo. Enquanto o criador das imagens poéticas deve ter, fundamentalmente, sensibilidade e imaginação para a figuração, o agente fotográfico necessita de capacidade perceptiva e prontidão para reagir no momento certo. Toca la gaita... ¡que baile el obispo! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque no es hora de fiesta en España, porque no quiero, no quiero, no quiero. (Bombardeio de Lleida – 2 /11 / 3 7) Na sétima estrofe, o autor ironiza a Igreja Católica com a expressão “¡que baile el obispo!” referindo-se à grande indiferença mantida pelo clero aos intensos massacres que ocorriam durante a Guerra Civil espanhola. Normalmente, tocar a gaita é festejar com música bons momentos, mas como tocar a peculiar melodia desse instrumento se os únicos sons ouvidos eram os dos gritos e dos bombardeios daquela sangrenta batalha? A fotografia exposta transmite esse desespero, essa tristeza, esse momento impróprio para festas. Com tamanha vivacidade, Centelles reproduz nessa imagem uma realidade singular, uma propaganda da violência para qual o mundo atentava. No entanto, se as imagens poéticas resultam de um gesto idílico, fruto de uma simpatia, ou de seu oposto, em relação ao mundo, as imagens fotográficas decorrem de uma espécie de rapto, captura do real, por trás do qual se insinua um ato não destituído de certa perversidade. O que se 198 imagina através dos harmoniosos versos, na fotografia, com toda sua credibilidade documental, expõe-se explicitamente. (Guardas civis- 1936) Ya llegarán los soldados leales para acabar con los pájaros negros, ya llegarán en mitad de la Biblia, ya llegarán en mitad de los muertos. “Ya llegarán los soldados leales para acabar con los pájaros negros”, nesta estrofe o autor anuncia uma possível vitória da Frente Popular sobre os mensageiros da morte, assim denominados pelo poeta às tropas franquistas. Vê-se, claramente nesses versos, o quão esperançosos eram os republicanos, que sustentavam a ideia de um novo país, livre de qualquer regime autoritário que pudesse impregnar com sangue o solo espanhol. Mais uma vez Agustí Centelles fotografa os soldados, ainda sorridentes e confiantes em uma possível vitória, marchando em direção à frente de batalha para acabar com seus inimigos. Essa imagem é capaz de estimular na população autoconfiança e trazer a esperança de um possível final da guerra. Entretanto a imagem fotográfica anterior, a mulher chorando o cadáver, vem destruir por completo todo ânimo causado pela fotografia acima, pois metade da população havia morrido, e nem mesmo mulheres e crianças escapavam dos massacres. 199 (Corpo de um guarda de assalto coberto com a bandeira catalã – 19/07/36) Toca la gaita. ¡Que baile la víbora! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque la gaita no quiere que toque. Porque se ha muerto Domingo Ferreiro. A última estrofe faz uma feroz crítica, possivelmente Francisco Franco, ao general chamando-o de víbora, ironizando-o com a expressão “¡Que baile la víbora!”, que pode ser interpretada como o simples ato de dançar ao som da gaita ou como uma provável expulsão, a eliminação desse ditador. Ao final da estrofe é explicitado o principal motivo de não querer tocar a gaita, pois ela também está de luto em sentimento à morte de Domingo Ferreiro, que certamente foi um grande lutador galego da tão sonhada República espanhola. A última fotografia é uma simbólica representação dessa personagem bélica exposta no poema, porém real e integrada por ser uma imagem verídica de um soldado existente na sociedade espanhola, que provavelmente faleceu com bravura lutando em busca de seus ideais. 200 O ÚLTIMO PERCURSO O TRANSEUNTE JUANCITO CAMINADOR 201 5. A PERSONIFICAÇÃO NA POESIA R uega por mí, que tengo pasta de santo y de bandido. Mi corazón es tierno como un niño dormido. Ruega por mí, que tengo alma de evangelista, sangre de aventurero. ¡Ruega, por mí, que nunca tuve un smoking! Por mí que heredé el perro de Carlitos Chaplin “Poema para la Virgencita del Teatro Cervantes” Raúl González Tuñón 202 5 – A personificação na poesia Abordar a personificação na poesia requer a abordagem do tema da autobiografia, que, nascida como mero ramo da biografia, começou um longo percurso até chegar ao dia de hoje em que cada vez mais atrai a atenção da crítica. Nos fins do século XVIII, momento em que a experiência de cada vida começa a organizar-se como uma narração independente e separada dos destinos da comunidade, surge o desejo de perceber no projeto autobiográfico moderno algo maior do que a forma narrativa que ele acabou assumindo. Dessa maneira se ampliam os meios que o indivíduo moderno encontrou para se afirmar. Assim, a narrativa autobiográfica passa a ser o clamor de sua rememoração que, ao resgatar para o momento atual os acontecimentos de seu passado, reconstitui sua prática como sujeito e revela sua imagem e a que deseja imprimir de si mesmo. O objetivo deste estudo não é tratar da questão polêmica do gênero autobiográfico, como foi o de Philippe Lejeune, e sim de investigar a presença de aspectos autobiográficos em uma obra literária. Contudo, para parâmetro de discussão do referido tema, usar-se-áo como norteadores as três definições propostas por Lejeune (1994:129) ao revisar e ampliar seus estudos acerca do termo: O primeiro sentido (que eu elegi) é o que propõe em 1886 Larousse: “Vida de indivíduo escrita por ele mesmo”.(...) Mas,em um sentido mais amplo, “autobiografia” pode designar também qualquer texto onde o autor parece expressar sua vida ou seus sentimentos, qualquer que seja a forma do texto, e o contrato proposto pelo autor. Menos conhecido que Larousse, Vapereau aclarou muito 203 bem este sentido em seu Dictionnaire universel des littératures (1876): AUTOBIOGRAFIA (...), obra literária, romance, poema, tratado filosófico, etc., cujo autor teve a intenção, secreta ou confessada, de contar sua vida, expor suas ideias ou expressar seus sentimentos. [T.A.] Tais definições não se sobrepõem umas às outras, mas se complementam na tentativa de definir esse termo tão conflitante que é a autobiografia. Lejeune (1991:48) parte da recepção do leitor para entender a autobiografia: “ao partir da situação do leitor tenho a oportunidade de captar com mais clareza o funcionamento dos textos, pois foram escritos para nós, leitores, e que, ao lê-los, somos nós quem os fazemos funcionar”. Essa percepção do leitor em se realizar como leitor/espectador integrou as artes do início do século XX. Assim sendo, o anseio pela urgência e importância da autobiografia se vincula à modernidade. Segundo a professora Bella Josef (1997:217): A crescente importância da autobiografia é parte da revolução intelectual caracterizada pelo surgimento de uma forma moderna de consciência histórica. Engloba uma série de escritos ligados à emergência do eu no espaço da modernidade, pois é o lugar onde se problematiza a construção do eu. A emergência desse espaço é o signo maior da constituição moderna da literatura. A preocupação, que nos parece tão natural, de olhar para o passado, de reunir nossa vida para contá-la, não é uma exigência universal. Como visto, ela acontece somente após muitos séculos e é um produto tardio da civilização. Assim, o homem que se satisfaz em desenhar sua própria imagem acredita ser digno de um interesse privilegiado. Cada ser humano tem a tendência de se considerar como o centro de um espaço vital, supondo que sua existência importe ao mundo e que sua morte deixe o mundo incompleto. Por isso, contar 204 a própria vida é uma forma de se manter no universo após a morte. O autor de uma autobiografia atribui a sua imagem uma maior importância com relação ao seu entorno, uma existência independente; contempla-se em seu ser e agradase de ser contemplado, constituindo-se em testemunha de si mesmo e tomando aos demais como testemunhas do que sua presença tem de insubstituível. A biografia, constituída como gênero literário, somente prevê uma apresentação exterior dos grandes personagens e personalidades, revisados e corrigidos pelas necessidades da propaganda e pelo sentido comum da época. Já a aparição da autobiografia supõe uma nova revolução espiritual: o artista e o modelo coincidem, o artista toma a si mesmo como objeto, pois se considera como um grande personagem, digno da memória dos homens, enquanto que, de fato, não passa de um simples mortal mais ou menos representativo. Sendo assim, a autobiografia é o espelho pelo qual a pessoa reflete sua própria imagem e, ao autobiógrafo se impõe como tarefa trazer à luz as partes mais recônditas de seu ser. De acordo com Georges Gusdorf em seu artigo “Condições e limites da autobiografia” (1991:12), diferente da pintura de um retrato, que representa o presente, a autobiografia pretende retraçar uma duração, um desenvolvimento no tempo, não justapondo imagens instantâneas, mas sim compondo uma espécie de filme apoiado em um roteiro preconcebido. O autor de um diário íntimo fixa o quadro de sua realidade cotidiana sem preocupação alguma com a continuidade. A autobiografia, ao contrário, exige que o homem se situe a certa distância de si mesmo, a fim de se reconstituir em sua unidade e identidade através do tempo. 205 A autobiografia não consiste em uma simples recuperação do passado tal como foi, pois a evocação do passado só permite a evocação de um tempo transcorrido. A recapitulação do tempo passado pretende ser a réplica do já ocorrido, entretanto, não revela mais que uma figura imaginada, já distante e incompleta, pois o homem, ao recordar o passado no presente, já deixou de ser o que era no passado. O homem é o foco da autobiografia, por isso a verdade dos feitos se subordina à verdade desse homem. Logo, não é necessário que todos os detalhes que o eu autobiográfico relate tenham sido reais ou tenham realmente existido. Daí, a tendência dos textos autobiográficos engendrarem alguns aspectos fictícios. A autobiografia pode ser o relato de um momento da vida, em que o autor se esforça em extrair o sentido dessa vida, mas ela é somente um dos sentidos dessa vida. Portanto, a autobiografia deve ir mais além do provável ou do improvável. Ela é, sem dúvida alguma, um documento sobre uma vida real ou imaginada. Trata-se também de uma obra de arte e, assim sendo, o leitor, além dos valores reais, éticos e estéticos, percebe a harmonia e a beleza das imagens nela presentes. Ficção ou mentira, o valor artístico é real; muito além dos artifícios empregados pelo autor, ele dá testemunho de uma verdade, a verdade do homem, a representação de si e do mundo. São sonhos que se realizam no imaginário, para fascinação desse homem e de seus leitores. A autobiografia, além de ser uma obra de arte, é também uma obra de edificação pessoal; não nos apresenta ao personagem visto desde o exterior, em seu comportamento visível, mas sim a pessoa em seu interior, não tal como foi, ou tal como é, mas como acredita ser. Sua experiência é a matéria prima 206 de toda criação, a qual elabora os elementos tomados da realidade vivida. Um indivíduo só pode imaginar sua vida partindo de si mesmo, do que ele é, do que tenha experimentado na realidade ou em sua aspiração. A autobiografia faz emergir esse conteúdo privilegiado com o mínimo de alterações; acredita restituí-lo tal como foi, mas, para narrar-se, o homem acrescenta algo a si mesmo. Assim, a criação de um mundo literário se inicia na confissão do autor: a narração que realiza de sua vida já é uma primeira obra de arte, o primeiro revelar de uma afirmação que, em uma avaliação crítica, se refaz e se frutifica em romances, tragédias ou poemas. Portanto, a autobiografia possui duas versões: por uma parte, a confissão propriamente dita e, por outra, toda a obra do artista, que se ocupa da mesma matéria, mas com toda a liberdade que o imaginário lhe proporciona. Outra polêmica que envolve a autobiografia diz respeito à exigência de uma narrativa “em prosa”, deixando a poesia à parte. No entanto, o próprio Lejeune dedica grande parte de seu El pacto autobiográfico (1994:123-145), além de outro livro seu, Lire Leiris: autobiographie et langage, à análise da poesia do francês Michel Leiris, justamente sob a ótica da autobiografia. Ao confirmar a existência de uma relação entre a poesia e a autobiografia na obra de Leiris, Lejeune assinala algumas considerações: a possibilidade que tem o poeta de poder transformar o “eu” da poesia lírica no “eu” da autobiografia, já que ele possui total liberdade para utilizar os recursos da linguagem, como o discurso na primeira pessoa, ademais de poder lançar mão da narrativa retrospectiva e do pacto com o leitor. Lejeune ainda considera que a poesia se torna uma segunda escritura, a escritura que ele havia anteriormente elaborado para “dizer o mundo”, isto é, a primeira que o escritor converteu. Desta forma, o 207 exercício poético não estaria em oposição ao exercício de um relato autobiográfico. Todos os elementos da sua própria teoria são revelados na poesia de Leiris. Como Lejeune teve como objetivo identificar seus elementos autobiográficos na poesia deste poeta, pode-se empregar tais elementos teóricos na análise da poesia de outro poeta, visto que o teórico francês (1994:138) afirma: "[...] assim como existem milhões de autobiografias “em prosa”, se pode contar com os dedos da mão as autobiografias em verso, si se entende por “autobiografia” um relato que conta uma vida”. A autobiografia supõe como critério elementar que exista uma identidade entre autor, narrador e personagem. No caso de uma obra com nome fictício dado a uma personagem que conta sua vida, não há essa relação de identidade explícita, o que poderia levá-la a ser considerada um texto autobiográfico e não uma autobiografia. A partir da omissão ou da adoção de um nome fictício, o autor suscita a dúvida no leitor, visto que este pode ter razões para suspeitar, a partir de coincidências, que se dá uma identidade entre autor e personagem, enquanto que o autor preferiu negar essa identidade ou não explicitá-la a fim de, provavelmente, estreitar o pacto estabelecido com este leitor. Desta forma, como afirma Lejeune, se tentássemos distinguir texto autobiográfico de autobiografia nos valendo no plano das análises internas do texto, não encontraríamos nenhuma diferença. Logo este é mais um dado da teoria do escritor francês que nos permite comprovar grande parte da poética de González Tuñón como autobiográfica. Com o apoio teórico proposto por Philippe Lejune e sua aplicabilidade, realizaremos a análise crítica de algumas poesias de Todos bailan. Los poemas de Juancito Caminador e de Canciones del Tercer Frente. Los 208 caprichos de Juancito Caminador, de Raúl González Tuñón, em que o autor desenvolve sua poesia como se fosse sua autobiografia. Apesar do nome da personagem (Juancito Caminador) não coincidir com o nome do autor, podemos afirmar que a personagem tuñoneana tem a mesma identidade de seu autor, pois ao reformular seus estudos acerca do Pacto autobiográfico, Lejeune (1994:135) afirma que “o nome da personagem tanto pode ser igual ao nome do autor quanto diferente”, sem que esta diferença descaracterize a obra como uma autobiografia. Além disso, encontramos em vários poemas atribuídos a Juancito Caminador o registro das vivências, das experiências que González Tuñón amalgamou ao longo de sua vida, transformando-as em produto dessa lírica. A relação indissociável e irrestrita entre González Tuñón e sua personagem surge a partir do momento em que se autodenomina Juancito Caminador. Desta forma, podemos afirmar que o pacto autobiográfico fundado por Lejeune está instituído na obra do poeta argentino, pois conforme o autor francês (1994:64): “O pacto autobiográfico é a afirmação no texto da identidade do nome (autor-narrador-personagem), e nos envia em última instância ao nome do autor sobre a capa”. Enfim, reconhecemos esta tríade na obra tuñoneana e a analisaremos nas poesias que levam o nome dessa personagem única, que caminha pelos versos líricos revelando as mais vastas áreas do seu íntimo ser. 5.1- O poeta e a personagem 209 Falar de Raúl González Tuñón e Juancito Caminador é ressaltar a existência de um “pacto lírico autobiográfico” entre eles, onde a política e a aventura, o compromisso social e a liberdade, a realidade e o imaginário se conjugam mutuamente formando a essência poética de suas personalidades. Juancito Caminador se incorpora ao mundo poético tuñoneano, na última parte de Miércoles de ceniza (1928), e se estende até o seu último livro, El banco en la plaza (1977), entretanto, sua presença será nitidamente fortalecida nas seguintes obras: Todos bailan, los poemas de Juancito Caminador (1935); Canciones del tercer frente, Poemas de Juancito Caminador - (los caprichos de Juancito Caminador) (1941); Hay alguien que está esperando, el penúltimo viaje de Juancito Caminador (1952); Crónicas del país de nunca jamás. Nuevos caprichos de Juancito Caminador y otros testimonios (1965) e em seu único livro teórico La literatura resplandeciente (del cuaderno de apuntes de Juancito Caminador) (1976). Quem seria “Juancito Caminador”? Como defini-lo? Uma personagem e/ou uma personificação do poeta? Um alterego ou apenas uma representação autobiográfica? Poderia Juancito ser o reflexo da alma “flaneante” do poeta? Muitas indagações surgem quando nos deparamos com a presença de Juancito nos poemas e todas elas nos parecem possíveis assim que vislumbramos suas poesias. Contudo, para este estudo adotaremos Juancito como uma personagem que personifica ao poeta: por um lado, sua representação autobiográfica; por outro lado, sua alma “flaneante”. Conforme Nora Domínguez (1980/1986:130), “esta personagem criada pelo poeta opera como limite entre o eu autobiográfico e o eu ficcional”. Esse limiar de identidades pode configurar uma identidade única, o Caminhador, que se 210 realiza na junção do poeta com mais três figuras: o avô, Johnny Walker (o ilusionista) e a imagem do homem na garrafa de whisky, como podemos verificar no esquema abaixo: Seu avó paterno + No ilusionista Raúl González Tuñón Se inspira em: + Na imagem da garrafa de whisky Johnnie Walker Juancito Caminador A primeira figura, o avô paterno, Estanislao González, que morreu na Espanha, embora o autor argentino não o tenha conhecido, foi a inspiração do poeta, por meio dos relatos contados por seu pai. A vida extraordinária desse “imaginero” (forma como Tuñón se referia a esse avô) era a de um homem boêmio, escultor de imagens religiosas, um artista que andou pelas terras espanholas, enfim, um sonhador, como González Tuñón relatou a Horacio Salas (1975:17): “El imaginero que es Juancito Caminador”. A segunda figura, marca do whisky Johnnie Walker, bebida preferida de Tuñón, onde se vê estampado um homem caminhando com seu bastão pelo mundo, tem duas semelhanças com a personagem da obra tuñoneana: a do nome e a do sobrenome, visto que Johnnie é Juancito e Walker é o Caminhador. Também contribuiu para a criação da personagem, o contato de González Tuñón com o ilusionista de um circo pobre, que se dizia chamar 211 Johnny Walker. O poeta afirma em Raúl González Tuñón, por él mismo, (disco gravado pelo autor, no qual recita suas poesias) que havia alguma coincidência espiritual entre ele e este ilusionista e, por isso, adotara esse nome, como se verifica na transcrição abaixo, que antecede o poema “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador”: En mis andanzas por el sur, en Bahía Blanca, conocí a un prestidigitador de un circo pobre que se hacía llamar Johnny Walker. Simpaticé mucho con este prestidigitador, y como yo igualo que quiere decir Juancito caminando, y yo tenía algunos puntos de contacto, alguna coincidencia espiritual con este prestidigitador, adopté para mí ese nombre, Juancito Caminador. A denominação atribuída à personagem, ressaltada pelo diminutivo que se refere à pequena imagem do homenzinho na garrafa de whisky, alude ao adjetivo “caminhador”, uma das características fundamentais de González Tuñón: seu gosto por viajar e caminhar pelo mundo. Logo, esta é ainda uma das similitudes que dá lugar a uma identificação com seu autor, permitindo dizer, de acordo com Domínguez (1980/1986:133), que “González Tuñón e Juancito Caminador são um só”. A partir desse pacto firmado entre autor e personagem, podemos delimitar e averiguar detalhadamente essa vinculação. Raúl González Tuñón, através de sua obra e por sua habilidade poética, transforma aquele homenzinho de aspecto aristocrático, na garrafa, em poeta andarilho de todos os portos do mundo. Os poemas de Juancito Caminador sintetizam as experiências, a caminhada citadina e as inspirações de González Tuñón. Sua ideologia, suas peripécias, seus amores, sua convicção poética estão expressas pela real ou falsa voz deste poeta aventureiro, com o qual o autor estabeleceu seu pacto lírico autobiográfico. 212 A entrada desta personagem nos poemas tuñoneanos unifica tanto sua tendência surrealista quanto sua tendência social. Apesar de se aproximar do mundo mágico, do mundo dos sonhos, da ficção, esta personagem não se esquece das lutas políticas. Logo, o eu original de suas primeiras poesias se converte, personificando-se em Juancito Caminador. Este poeta andarilho é sua criação e ao mesmo tempo seu desprendimento, que torna evidente o pacto lírico firmado entre autor e personagem, que se revela por meio de características análogas ao eu autobiográfico de González Tuñón. O eu autobiográfico cria essa personificação dual que cumpre suas representações no mundo interno da poesia, ou seja, trazendo a presença do próprio autor nos poemas. Como afirmado anteriormente, a primeira menção ao Caminador surge na parte final de Miércoles de ceniza, (1928). É importante ressaltar que esta é a época em que González Tuñón começa a viajar, a percorrer, inicialmente, as mais vastas regiões da Argentina para depois ganhar a Europa, coincidindo, desta forma, com a criação de Juancito Caminador. Sua primeira representação lírica, “Cosas que le ocurrieron a Juancito Caminador”, no livro antes citado, surge como o ilusionista, o mágico. O mundo da magia acolhe o poeta. Em seu processo criador, o poeta joga com a primeira e a terceira pessoas. “Soy el prestidigitador”, afirma ao princípio da composição poética, nomeando como seus amigos François Villon (o famoso palhaço, ao qual Tuñón admirava) e Raúl González Tuñón. Esta amizade que os une será permanentemente revelada nos outros poemas, de tal modo que se um está presente aparece o outro de uma maneira mais ou menos explícita. 213 Juancito Caminador começa a aparecer com mais freqüência nos poemas de El otro lado de la estrella, de 1934. Sua biografia é semelhante à de González Tuñón: registra a viagem do poeta ao Brasil (1931) e também sua estada em Barcelona, entretanto ele possui seus próprios amigos que serão evocados no próximo livro como: “Los seis hermanos rápidos dedos en el gatillo”, “Los nueve negros de Scottsboro”, entre outros. De Tuñón, de sua intimidade, de seu eu indivisível, é seu poema “Lluvia” que dedicou a sua amada esposa Amparo Mom. De Juancito Caminador: “La canción para vagabundos”, “Los ladrones”, “El poeta murió al amanecer”, entre tantas outras. Esta personificação de González Tuñón, acentuada a partir de 1934, é proporcional a sua preocupação dual pela política e pela literatura: real e imaginário, militância e aventura, nacional e universal, interesses que não se subordinam uns aos outros, mas que complementam a visão do poeta por este mundo que jamais deixou de provocá-lo. Todos bailan é a obra na qual Juancito é veementemente revelado, pois o subtítulo deste livro, “Los poemas de Juancito Caminador”, destaca a presença do sujeito ordenador dos textos e, ainda, imprime certa ambigüidade pelo uso da preposição “de” que pode designar tanto pertencimento quanto tema. Nesta obra a personagem se apresenta pela primeira vez, no poema que leva seu próprio nome, “Juancito Caminador”, o qual analisaremos mais adiante. Também nessa obra a suposta personificação do poeta, o eu ficcional e autobiográfico apresenta sua serie de blues, tais como: “Blues de los archipiélagos”, “Blues de Río Gallegos”, “Blues de las adolescentes”, “Blues de la bohardilla”, “Blues de los baldíos”, “Blues de los pequeños deshollinadores”. 214 Neste último, Juancito por meio de perguntas, que funcionam como ativadoras da memória, passeia por cenários, relembra pessoas e situações que constituíram momentos de sua vida infantil e juvenil, concomitantemente à vida de González Tuñón: “¿Te acuerdas de los turcos vendedores de madapolán?”; Informa sobre os paradeiros de seus antigos amigos que se tornaram marginalizados, como “Maria Celeste”/“Pues hoy Maria Celeste es una prostituta”; “Juan el Broncero”/“Pues Juan el Broncero es hoy un ladrón”, denotando certo fascínio por pessoas que andam na contra-mão dos valores morais ou na contra-mão dos valores sociais. A obra Canciones del tercer frente (1941) é formada por quatro livros. Inicialmente o nome da obra seria Poemas de Juancito Caminador, contudo esse ficou como subtítulo interno do livro e o primeiro livro, dos quatro, como o nome principal. São eles: I. Canciones del tercer frente, II. A nosostros la poesia, III. Las calles y las islas e IV. Caprichos de Juancito Caminador. O que nos chama atenção neste livro é a carta que abre a terceira parte, na qual Juancito Caminador, ao expor sua condição de poeta, de parceiro de aventuras e de amigo, escreve para Raúl González Tuñón. Esta carta funciona como prólogo para o restante do texto que, intitulado como Las calles y las islas, aparece como livro de autoria de Juancito Caminador. A quarta parte, Caprichos de Juancito Caminador, está marcada pelo mundo da magia, das personagens marginalizadas ou funambulescas e pelo grupo de poemas de “señoritas”. A particular ambigüidade presente neste livro está ressaltada no fato de Juancito Caminador atribuir a ele mesmo o título dos poemas ou ser o protagonista: “Poema que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador” ou “El poeta murió al amanecer”, 215 nos quais não se explicita quem é esse poeta, entretanto se reconhecem particularidades comuns a González Tuñón e a Juancito Caminador. Tais características dos dois poemas serão discutidas posteriormente. A atmosfera de Hay alguien que está esperando (1952) sinaliza um possível término do caminhar desse obstinado viajante com seu subtítulo “el penúltimo viaje de Juancito Caminador”. Este livro está dividido em cinco partes. As duas primeiras estão denominadas no subtítulo do livro, a terceira parte contém um título próprio “Zona de Silencio”, aos quais outros poemas e pequenas crônicas estão submetidos, a quarta recebe o nome de “Poemas hallados en una maleta extraviada” e a quinta, “Caprichos de Juancito Caminador”. Na primeira parte do livro, encontram-se cinco poemas que se iniciam com a palavra portuguesa “saudade”, (denotando o conhecimento da língua portuguesa pelo poeta e sua experiência cultural em solo brasileiro): “Saudade de los puertos”, “Saudade de los bosques”, “Saudade de la vieja casa de Flores”, “Saudade de Valparaíso” e “Saudade con nombres y fechas”. Este último é um poema de significativo valor, no qual o sujeito em primeira pessoa é Juancito Caminador: “Soy Juancito Caminador y vuelvo preguntando:”. Trata-se de um poema de verso livre e períodos extensos no qual, a partir dessa primeira pessoa instituída, o sujeito do poema relata a vida de González Tuñón. Neste processo lúdico, Juancito Caminador é de modo fictício sujeito desta vida e tende a se confundir com o autor para o leitor desprevenido. É preciso conhecer pelo menos alguns dados biográficos de González Tuñón, para descobrir o artifício empregado pelo poeta. Outro poema significativo desse livro se encontra na terceira parte “Zona de silencio” e recebe o nome “Encuentro en el camino”. É um pequeno diálogo 216 travado entre o narrador e Juancito Caminador, onde também é preciso que o leitor conheça um pouco da vida de González Tuñón para perceber a dualidade registrada, que se refere ao transcurso vivido tanto por Tuñón quanto por Juancito até aquele momento, contudo o narrador percebe certa nostalgia e falta de ânimo em Juancito, como se ele estivesse perdendo sua vivacidade. Ainda que ele admita sua tristeza também revela sua alegria: Encuentro en el camino _ ¿De dónde vienes, Juancito Caminador? Aunque estás “exangüe y pálido como un aparecido”, acabo de reconocerte. _ Vengo de la lucha, de la alegría, del dolor, de los sueños, de las nubes, del barro, de las cosas en que permanezco. _ La lucha te ha hecho más triste y pensativo. _ También me ha hecho más alegre y más fino. _ ¿Tú hablas ahora de alegría? _ Estoy alegre porque estoy triste, decía aquel guitarrero borracho de Totoral, provincia de Córdoba, casa de Rodolfo Aráoz. Amparo vivía, ay, el tiempo que, de todas maneras, fué tan bellamente vivido y en cuyo recuerdo queremos vivir más bellamente aún, si eso es posible. A tendência a identificar Juancito Caminador com seu criador parte do pacto autobiográfico entre eles. No “Poema para un niño que habla con las cosas”, do livro A la sombra de los barrios amados (1957), dedicado a Adolfo Enrique, filho de González Tuñón nascido em 1955, o poeta ratifica esse pacto: “Un mapa, un numeroso y palpitante mapa,/ un mapa con las rutas/ que siguiera Juancito Caminador, tu viejo”. Crónicas del pais de nunca jamás (1965) é um livro de crônicas como o nome sugere e divide-se em: I. “Los fabricantes de sueños”, II. “Los gremios extravagantes”, III. “Otros caprichos”, IV. “Testimonio de un momento”. Na primeira crônica deste livro, que recebe o mesmo nome da primeira parte, já se 217 define que país seria esse “do nunca jamais” (1965:11): “...el país perdido de la infância”. Também atribui a autoria a Juancito Caminador do “Elogio desmesurado del país de nunca jamás” (1965:14): “...Juancito Caminador escribió el Elogio Desmesurado del País de Nunca Jamás: en el país que está más allá del horizonte, en el País de Nunca Jamás, la soledad es una palabra desconocida y bella...”. Neste livro de crônicas, constata-se a presença de um único poema denominado “El hombre de la Sección Especial”, o que leva a crer que o autor quis destacá-lo. A impressão que o autor transmite é a do eterno chamado da poesia de tema social, visto que há a referência a um homem da “Sessão Especial”, acusado pelo poeta de perseguir estudantes e operários, ao qual o sujeito poético classifica de “alma negra”: “Tenía un corazón frío y duro/ El hombre de la Sección Especial/ Perseguía a obreros y estudiantes/ El hombre de la Sección Especial/ Tenía el alma negra negra negra/ El hombre de la Sección Especial”. A única obra teórica de González Tuñón, La literatura resplandeciente (1976), está dividida em: Crónicas, Del cuaderno de apuntes de Juancito Caminador, Crónicas en varias imágenes, Otras imágenes a través del verso e Los poetas de Buenos Aires. O fundamental do livro, onde o autor teoriza sobre a poesia, definindo e defendendo seu estilo como realismo romântico, refere-se ao “Cuaderno de apuntes de Juancito Caminador”. Desta maneira, inclui-se Juancito Caminador como o possível autor dos pensamentos e indagações de seu ofício, acentuando-se a frequente identidade entre eles, Raúl González Tuñón/ Juancito Caminador, que poderia ser simplificada em: poeta político/poeta viajante. Porém, essa simplificação implicaria em uma visão muito parcial e redutora do produtor de feitos poéticos, do qual González Tuñón 218 fez com seu próprio material biográfico-autobiográfico ao transpô-lo para a escritura. Juancito Caminador é multifacetado, é plural e singular, é a perfeita criação de uma personagem engendrada pelo âmago desse ser “flaneante” que, personificado na poesia, se funde com seu criador em uma representação pactual e intransponível. Enfatizo que adotar uma única definição para essa surpreendente personagem seria minimizar ou restringir a grandeza da experiência artística, da liberdade criativa do seu autor. 5.2- O último caminhar: o Caminhador no espaço poético Essa parte final do estudo se dedica à abordagem das análises de quatro poemas de Raúl González Tuñón que apresentam no título, a referência a Juancito Caminador. Na primeira delas, ele se coloca como o cerne do poema, ele será o tema nesses versos líricos. Nas outras duas, essa personagem se intitula como o autor da poesia, seu construtor. E na última, ele deixa evidente a ambiguidade sobre quem é o poeta, se ele ou seu criador. A partir do pacto lírico autobiográfico, buscar-se-á nessas poesias a presença dos elementos autobiográficos que revelam a personificação do poeta, o âmago de sua alma “flaneante”. Isso nos permitirá vislumbrar a filiação irrestrita Raúl González Tuñón - Juancito Caminador e, testificar essa produção como uma produção avant-garde em que o próprio poeta ao fazer uso de todos os recursos gramaticais disponíveis e da liberdade libertadora que o concerne, 219 escreve parte de sua própria história de vida, fundando assim seu inovador e imprevisível projeto poético autobiográfico. “Juancito Caminador” O poema “Juancito Caminador”, que compõe o livro Todos bailan (1935), é uma particular apresentação dessa personagem, bem como de suas experiências citadinas e íntimas. Nele podemos encontrar vários episódios que se equiparam com acontecimentos da vida de Raúl González Tuñón. O poema em prosa “Juancito Caminador” transmite, em seus versos livres, a ideia de uma narrativa. Para analisá-lo criticamente, dividimos o poema em sete partes. A partir de um jogo de antíteses o eu lírico se apresenta e traça um panorama de suas experiências vividas na cidade argentina de La Rioja: Traigo la palabra y el sueño, la realidad y el juego de lo inconsciente, lo cual quiere decir que yo trabajo con toda la realidad y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha ocurrido ya se puede ir enterando. Na primeira parte do poema a personagem se apresenta através do uso da primeira pessoa do singular. Percebe-se então uma identidade entre o sujeito enunciador e a personagem, caracterizando possivelmente um pacto autobiográfico, pois segundo Lejeune (1991:48. T.A.): “A identidade do narrador e do personagem principal que a autobiografia assume fica indicada, na maior parte dos casos, pelo uso da primeira pessoa”. 220 Ainda nesses versos iniciais, se estabelece um jogo antitético entre o real e o irreal. Essa possível antítese permeia a obra de González Tuñón, e assinala seu perfil: ora surrealista, imerso no sonho, ora social, comprometido com seu tempo. Ao lograr a junção dessas duas possibilidades, que parecem conflitantes, o poeta traz “la realidad y el juego de lo inconsciente”, como ele mesmo afirma no primeiro verso desse poema. A partir dos três últimos versos dessa primeira parte de “Juancito Caminador”, a personagem convida o leitor “mais curioso” a entrar no seu “mundo” e conhecer fatos, situações que o constroem como sujeito de suas ações: “y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha/ ocurrido/ ya se puede ir enterando”. Na segunda parte, o uso da primeira pessoa do plural “vamos”, logo no primeiro verso, concretiza o pacto lírico autobiográfico, quando o leitor passa a percorrer e compartilhar suas memórias com esta personagem. Essa abertura permite ao leitor que ele ingresse no poema e faça parte do mundo de González Tuñón/Juancito Caminador, agregando-se a essa dupla e criando, então, uma relação pactual tríplice, autor/personagem/leitor, como testemunha dos acontecimentos da vida do escritor, como se verifica a seguir: Vamos a girar, por ejemplo, alrededor de La Rioja y de esos rostros y esos paisajes que giraron a mi alrededor hace algunos años y que hoy se prolongan en la muerte de tantas fotografías perdidas. Me había ocurrido el nacer y el vagabundear adolescente -cuando era chico miraba llover y me gustaban los agrios dulces -cuando era adolescente me gustaban la cocaína y Victor Hugo y cuando de pronto me vi corriendo delante de la muerte -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanos- 221 la vida me pareció tremendamente deliciosa y tremendamente, verdaderamente peligrosa. Ao rememorar lugares, pessoas, gostos e fatos, González Tuñón/Juancito Caminador evoca o passado no presente e reatualiza esse passado, conservando seus valores e conformando sua autobiografia. O recorte que este sujeito-lírico realiza de seu passado, ao citar a região de La Rioja, tem profunda vinculação com o percurso de vida de Raúl González Tuñón. De acordo com o próprio autor, La Rioja foi a viagem que o fez despontar como poeta, foi nela que ele escreveu todo seu segundo livro, aquele que ganhou o primeiro lugar no concurso municipal de poesias. Essa região tem um significado muito particular para o escritor, pois foi em Ingeniero White, em La Rioja, que conheceu Johnny Walker, o ilusionista do circo pobre, que lhe possibilitou a construção de Juancito Caminador. Foi lá também que ele dividiu o quarto com o já prestigiado poeta Conrado Nalé Roxlo, a convite do próprio, o mesmo que o incitara a seguir escrevendo, quando outro poeta, menos prestigiado, o desestimulara. Nesses dias, em que conviveu com Nalé Roxlo, González Tuñón leu para Nalé Roxlo vinte poemas que o deslumbraram e que fizeram com que Nalé escrevesse para Tuñón um verso que o comoveu por ser terno: “De versos trajo un baúl,/ Raúl,/ Los trajo para mis males,/ González./ Ya me ha leído un montón,/ Tuñón./ Que se te lleve un ciclón/ Tus versos hoja por hoja/ bien lejos de La Rioja./ Raúl González Tuñón.” Por isso, a presença dessa região é muito frequente nos poemas tuñoneanos, principalmente os que trazem a personagem, pois ela significa o âmago das veracidades vividas e retidas por González Tuñón, mas reveladas em sua 222 poesia. Assim, segundo Gusdorf (1991:16) “A autobiografia traz à tona um sentido novo e mais profundo da verdade como expressão do íntimo ser”. Também, nessa segunda parte, percebe-se a marcação do tempo, por meio do emprego do verso “hace algunos años” e do vocábulo “hoy”, os quais aludem ao regresso ao tempo perdido pelo sujeito do poema. Essas imagens de “rostros, paisajes, fotografías”, possuem um alto valor simbólico e afetivo para o Caminhador, pois elas reavivam o tempo de outrora. Contudo, ao fazer uso da memória visual (fotografias), ele reconstrói o passado e tem uma sensação nostálgica, já que essas imagens, eternizadas pela foto, não mais participam de sua vida atual, não possuem uma significação expressiva em seu corrente momento, são imagens mortas, como ele mesmo afirma: “y que hoy se prolongan en muerte de tantas/ fotografías perdidas”. “Me había ocurrido el nacer y el vagabundear/ adolescente/ -cuando era chico miraba llover y me gustaban los/ agrios dulces/ -cuando era adolescente me gustaban la cocaína y/ Victor Hugo/ y cuando de pronto me vi corriendo/ delante de la/ muerte/ -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanos-/ la vida me pareció tremendamente deliciosa y/ tremendamente,/ verdaderamente peligrosa”. Nesta serie de descrições particulares e íntimas do eu-poético estão incluidos traços autobiográficos de González Tuñón. Sabe-se que ele começou sua carreira ainda adolescente e tinha o desejo de viajar, conforme suas próprias palavras, em entrevista a Horacio Salas (1975:28-29): “que yo no queria estudiar, sino viajar [...], y me fui a Córdoba y después a La Rioja”. Logo, se esse é o iniciar da caminhada de Tuñón, pois Llanos é uma das partes que pertencem à região de La Rioja, também é o início do percurso para o Caminhador, assim como todas as demais experiências que se seguem, 223 vividas ou apreciadas em algum momento pelo autor e assumidas também por Juancito Caminador. Essas experiências são reveladas por González Tuñón tanto no livro de entrevista de Horacio Salas quanto em seu próprio autoretrato, como por exemplo, “Me deslumbró Los Miserables de Víctor Hugo”. (SALAS, 1975:24). Na terceira parte do poema, o eu lírico seguindo seu caminhar pela lírica, realiza agora uma incursão reflexiva sobre a morte e sobre a vida: Me dijeron: “Octavio Portela se murió” y entonces pensé: ¿Es que uno puede morirse? Infiel no fui con el amigo querido. Juro que le rendí el mejor de los homenajes. Cuando él murió yo sentí un gusto inmenso de la vida y dije: -Voy a vivir también por lo que le quedaba de vivir. Nunca conocí el arrepentimiento feroz aunque no quise verlo muerto. Me parecía imposible que alguien se muriera mientras yo, ah, mientras Juancito Caminador amaba las muchachas del verano, los vinos ácidos, los versos de Rimbaud, las bombas, las orejas de las mujeres tuberculosas, los expresos y los ventiladores enloquecidos en los ángulos de las amuebladas. Recuerdo que él estaba asomado a una ventana del Hospital y en el fondo velaban a la chica muerta del día y él decía: “Qué olor tienen los caballos placeros” y el florero estaba vacío sobre la pila de libros vacíos porque ya habíamos releído los libros y estábamos llenos de las ideas de los libros. O uso de nomes próprios que remetem à esfera familiar ou amistosa é recorrente na poesia tuñoneana e, na terceira parte, ao citar um famoso compositor de tangos, “Octavio Portela”, o sujeito lírico principia com o leitor uma relação de identificação, apresentando um efeito de similaridade entre 224 sujeito e personagem e demonstrando o caráter autobiográfico da composição poética, já que este compositor foi amigo particular de Raúl González Tuñón. A suposta descoberta da morte pelo eu lírico proporciona uma reflexão acerca da vida e da amizade para com seu amigo, valorizando ainda mais o viver e a necessidade de desfrutá-lo intensamente. Como uma espécie de homenagem ao amigo morto, ele assume também o que lhe faltava viver. O escritor Jorge Monteleone afirma, em “Vagabundeo, Revolución y entresueño”, do livro Raúl González Tuñón Poesia Reunida (2011:12), que “Tuñón reconhece o grande paradoxo: em todo começo já está inscrita a morte, e então a poesia conjetura aquilo que terá sido”. Desta forma, essa temporalidade abre, na imagem do corpo sem vida, a possibilidade de um futuro, no qual a nostalgia é, por sua vez, ação e sonho: o poeta leva assim a vida e a morte consigo e, ao negar a visão do amigo morto, ele nega de alguma maneira a perda total desse amigo. “Me parecía imposible que alguien se muriera mientras/ yo, ah,/ mientras Juancito Caminador amaba muchachas del verano...” Aqui, está expressa, mais uma vez, a ambigüidade eu-poético/ personagem, chegando ao ponto de não permitir que o leitor os separe. A imagem que surge é mais frágil e vulnerável, revestida de um caráter sagrado que a torna fascinante e terrível. A parti daí, mais uma vez é desencadeada, no poema, uma série de imagens que simbolizam seus gostos, aludindo alguns deles às mesmas preferências de González Tuñón. Também aparecem personagens comuns nas poesias tuñoneanas, que nos remetem a uma das características dessa lírica, o lado funambulesco, representado pelas “mujeres tuberculosas” entre outras. 225 “...y en el fondo veleban a la chica muerta del día”, é uma imagem muito comum na poesia de González Tuñón, sendo inclusive título de um poema “Menina morta”, escrito no Rio de Janeiro (1931) e publicado no livro El otro lado de la estrella (1934). Essa imagem da menina morta (“chica muerta”) é reveladora do mundo funambulesco descoberto pelo autor, o qual imprimiu voz a ela em suas poesias sociais. Por meio da imagem da morte, em um desfile de imagens funambulescas, que surgiam melancolicamente na revolução ou na denúncia social, González Tuñón vislumbrou o futuro. Enquanto explorava esse mundo, ele também escrevia algumas aventuras de Juancito Caminador, como afirma Monteleone (2011:14): “O descobrimento da fala dos mortos está vinculado a esse momento. Tuñón declarou ao poeta Horacio Salas que quando escrevia os poemas testemunhais de La rosa blindada em Madri, também escrevia blues y ali nasceram alguns dos caprichos de Juancito Caminador”. Logo, não se trata de uma relação cronológica, mas sim de ordem poética. Lendo esta poesia como a escritura da vida, estaríamos, conforme Heleno Godoy (2011:96), “na condição daquela outra concepção realizável da autobiografia, tal como Lejeune declara que Michel Leiris evidencia em sua obra: a de uma ordem da vida, quando o poeta deixa de dar valor ao papel desempenhado pela cronologia e prioriza aos aspectos temáticos de sua existência, que faz entrar em sua obra poética”. Raúl González Tuñón teria, então, da mesma forma, escrito a si próprio como uma “história sem narrativa”, para usarmos a expressão de Lejeune. Yo tenía nostalgia de cosas que iban a sucederme y pensaba: ¿Qué estará haciendo ahora la Reina de Rumania? ¡Después la conocí saliendo de un hotel de lujo en el corazón rencoroso de Europa! 226 Y después anduve sobre los aeroplanos y me metí en estaciones absurdas, escondidas, con vagos aromas de aserraderos y destilerías. Na quarta parte do poema, Juancito Caminador volta a reafirmar o paradoxo temporal pelo jogo antitético de passado (“nostalgia”)/ futuro (“iba a sucederme”). O emprego das antíteses e das metáforas, como já afirmado no terceiro capítulo, foi fundamental nas construções poéticas tuñoneanas e, principalmente, nas obras em torno de Juancito Caminador, quando funcionam como mecanismos de ativação da memória, sendo subsequentemente reatualizada e resignificada, um processo indispensável na construção autobiográfica. Assim, a memória tem um papel protagônico na autobiografia, conforme Gusdorf, pois concede perspectiva ao indivíduo e lhe permite considerar as complexidades de uma situação no tempo e no espaço. Nos versos que seguem Juancito evoca uma sucessão de imagens ora visuais, ora olfativas, as quais aludem provavelmente a fatos vividos por González Tuñón durante sua experiência na Europa, mais precisamente em Paris, pois nesses versos encontramos afirmações que remetem à voz do próprio autor em conversa com Horacio Salas ou em seu autorretrato (“me metí en estaciones escondidas”). Ainda há elementos comuns em suas poesias parisienses (“aeroplanos, corazón rencoroso”) que remetem ao Surrealismo. Me gustaba contar: “El día 14 de febrero el señor (aquí un nombre) penetró a la casa señalada con el número 1-7-7-4 y fue ladrado por un perro sin cabeza”. La primera vez que robé un libro, esa otra en que fui preso por dormir en un hotel de vagos y ladrones o simplemente, la vez que enamoré a la hija de un guardabarrera, ¡una hija de la distancia, del camino, del horizonte desconocido! 227 A quinta parte do poema se inicia com o contar de fatos selecionados por Juancito. O primeiro fato sinalizado refere-se a um acontecimento de grande repercussão para a Igreja Católica, o dia em que o Fundador do Opus Dei celebrou uma missa na casa de uma senhora, Marquesa de Onteiro. Afirma-se que nesta missa Deus lhe revelou algo que mudaria os fundamentos da instituição, a inclusão da mulher. Interessante a alusão irônica que se faz ao citar “perro sin cabeza”, ao invés de “mula sem cabeça”. A ironia, uma das características das composições tuñoneanas, é empregada com muita audácia por Juancito Caminador, que se assemelha a um pícaro, e, na medida em que é sagaz, amálgama diversas peripécias e seu humor, por muitas vezes, tornase sarcástico. Ainda nesta parte ele continua com seu bom humor, ao citar que foi preso por dormir em um “hotel de vagos y ladrones”. Este fato remete à publicação do poema de González Tuñón, “Las brigadas de Choque”, quando o poeta foi preso por causa dessa composição poética na qual um juiz reacionário tinha visto incitação à rebelião. Ainda nessa parte, verificamos que os versos finais possuem uma profunda exaltação lírica e remetem à outra paixão declarada do autor, expressa pela voz de Juancito Caminador, paixão essa que ele desenvolveu ainda criança, pois sempre viveu próximo à linha férrea e a imagem dos trens em curso o estimulou a querer desvendar esse caminho desconhecido, “al tren, que está esperando para llevarse nuevamente hacia el sueño y la aventura”. Segundo a estudiosa sobre autobiografia na América Hispânica, Sylvia Molloy (2003:133), “as lembranças da infância aparecem como um elemento significativo da escrita autobiográfica, e certamente funcionam como uma maneira de deslanchar uma história de vida”. 228 Solía frecuentar las obras en construcción, borracho, y recuerdo que una vez Arturo Santillán me dijo: “Por pasar por abajo nos vamos a quedar solteros”. Y yo tenía dos queridas y una cajetilla de marfil llena de opio. Na sexta parte do poema, Juancito segue sua “narração dos fatos” (“Solía frecuentar las...”) e cita o nome de seu companheiro das madrugadas (Arturo Santillán). Por não encontrar referência a essa pessoa na vida de González Tuñón, cremos que faz parte do mundo ficcional de Juancito Caminador. Conforme palavras do escritor Contardo Calligaris (1998:49), “narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo”. Já o escritor Northrop Frye (1989: 302) coloca a autobiografia entre os modos de ficção e acredita existir sempre um elevado grau de ficcionalidade nos textos autobiográficos, pois considera que: A maior parte das autobiografias é inspirada por um impulso criador, e, portanto, ficcional, a selecionar apenas aqueles acontecimentos e experiências da vida do escritor que vão constituir uma forma integrada. Essa forma pode ser um tanto mais ampla do que a figura com a qual ele veio a identificar-se, ou simplesmente a coerência de sua personalidade e atitudes. A referência às drogas, principalmente o ópio, muito comum nos primeiros cinco livros de Tuñón, evidencia e delimita seu espaço poético ao submundo portenho. Conforme Beatriz Sarlo (2010:293), “à alucinação, clássico estado poético, acrescenta-se o cenário da droga, e o poema, mais do que um estado, representa um meio clandestino, sórdido e transgressor”. Ainda usando as palavras de Sarlo, a proximidade ao subúrbio com sua poesia de 229 solidariedade traz também o atrativo da transgressão literária e ideológica, assim suas construções líricas estão longe da Buenos Aires “mansa e cordial”. Acaso não pertençam ao registro realista da cidade moderna, ao menos ao seu registro moral. Como não podemos atribuir o consumo de drogas pelo autor, considera-se este como mais um elemento ficcional da poesia de Juancito Caminador. O fato de o poeta construir uma poesia em prosa, na qual agrega elementos da ficção, como o uso do pretérito imperfeito, o foco na primeira pessoa, “um narrador-personagem”, (no caso da poesia, preferimos o uso de autor-personagem), o tempo psicológico e o espaço (La Rioja, Argentina), revela evidentemente o fascínio de González Tuñón por poesias que fossem recitáveis ou até narráveis, para serem lidas em voz alta, obtendo assim uma circulação mais ampla do que a dos livros. Por isso, grande parte de suas poesias foram musicadas por vários cantores, como Mercedes Sosa, Tata Cedrón, entre outros, além de serem lidas em diversas manifestações, como foi o caso de “La Libertaria”. ¡Todos los relojes enloquecieron de pronto! ¡Todas las marionetas lloraron en los organitos! ¡Todos los almanaques rodaron degollados sobre las mesas de las oficinas! ¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones fallecieron de pulmonía! Y mi corazón continúa alegre y violento como el corazón alborotado de un mundo nuevo. Na última parte do poema, uma série de metáforas cria imagens que aludem ao cenário mundial da primeira metade do século XX, atribuindo veracidade à composição, pois o mundo estava realmente mudando e uma guerra estava prestes a estourar. Como os anos 30 representam o fracasso da Liga das Nações, González Tuñón registrou a “morte” simbólica de seus 230 integrantes (¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones/ fallecieron de pulmonía!”). Enfermidade muito comum, que levava à morte. Juancito mostra a tensão política que se estabelecia no mundo (“¡Todos los relojes enloquecieron de pronto!”/ ¡Todos los almanaques rodaron degollados (...)!”) e, de certa forma também deixa subentendida a mudança da ordem poética, a qual começara a experimentar sua obra, abandonando o mundo dos sonhos (¡Todas las marionetas lloraron en los organitos!) para adentrar no mundo da poesia social: “Y mi corazón continúa alegre e violento/ como el corazón alborotado de un mundo nuevo”. Raúl González Tuñón, juntamente com Juancito Caminador, inicia o último passo da transição de sua obra, calando por um tempo sua poesia mais surrealista e dando voz a sua poesia, socialmente revolucionária, e Juancito Caminador, como afirma Sarlo (2010:299) é a “figura que se desloca, no itinerário poético e biográfico, desde o bas-fond portenho até a fronteira internacional, e daí para a política”. “Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador) A composição poética “Canción para vagabundos (Que compuso Juancito Caminador)”, pertencente à obra Los caprichos de Juancito Caminador, inicialmente denominada Los poemas de Juancito Caminador, e posteriormente adotando o título de Canciones del tercer frente (1941), é uma espécie de trova moderna na qual Juancito, agregado a seu grupo de boêmia, homenageia a seus amigos. Nela o poeta expressa a “ideologia de vida” do vagabundo, (entenda-se aqui vagabundo como sinônimo de andarilho, 231 boêmio), ideologia a qual em muitos pontos se assemelha à ideologia de González Tuñón, que procurou contemplar o mundo com realidade e também otimismo em todas as suas formas. “Canción para vagabundos” é um poema composto por seis estrofes com quartetos de rimas consonantes, graves e interpoladas (ABBA), cuja escansão da maioria de versos é em octasílabos com redondilha maior (o que caracterizaria, senão fosse pela presença do título, uma trova), possuindo ao final de cada estrofe (com exceção da última) uma forma de estribilho. Percebe-se em seus quartetos a similaridade de pontuação entre a primeira e a última estrofe, e entre a segunda e quinta quadra, o que agrega mais ritmo ao poema. Outra característica que confere uma intensa melodia às estrofes é a presença das aliterações, como “todo nos falta” e “todo, menos...” (salvo o último quarteto). Vejamos a primeira estrofe: Salud a la cofradía trotacalle y trotamundo. Todo nos falta en el mundo, todo, menos la alegría. A construção da poesia de Raúl González Tuñón está fundamentada no rigor sonoro, por isso a preocupação em manter o paralelismo sintático, assim como os outros aspectos métricos já citados são de suma importância para que a poesia se intitule como “canção”. O poeta sempre declarou seu amor pela música e pela dança, por este motivo encontramos a vinculação de Juancito Caminador à música, onde ele com sua “voz” propaga, através de diversos blues e inúmeras canções, seu amor incondicional pela melodia poética. 232 Assim como são atribuídas a Juancito Caminador as diversas composições poéticas cujos títulos se iniciam com a palavra blues, também lhe são atribuídos os poemas iniciados com a palavra canção, como: “Canción que Juancito Caminador compuso para uma mujerzuela en una fiesta de bandidos”, “Canción que Juancito Caminador dejó inconclusa”. Os títulos das poesias que remetem ao mundo da música sempre foram constantes durante toda a produção poética tuñoneana, fazendo-nos acreditar, devido a sua própria identificação como cantor do verso, que Raúl González Tuñón viveu e cantou o mundo com sua poesia. Seus versos, além de versificarem a lírica, denunciam e contam as vivências do sujeito enunciador dessa lírica: ora como a voz do eu-poético, ora como a voz de Juancito Caminador, o qual fez da “señorita poesía” sua maior canção. A imagem, na primeira estrofe do poema, alude a um espaço físico, a Confraria com o brinde (“Y viva la santa unión”), levantado por Juancito Caminador como uma espécie de saudação a seus amigos de Confraria, para que após esse brinde ele homenageie os companheiros presentes com sua “recitação poética”. No segundo verso do poema, há a referência à principal característica da personagem, que passa a vida viajando, pois aprecia sempre algo novo (“trotamundo”). Nota-se que Juancito emprega também “trotacalle” para criar uma relação direta com a cidade. Essa filiação cidade-mundo foi a grande temática inspiradora de toda obra poética de González Tuñón. Nos versos terceiro e quarto aparece uma espécie de estribilho que será usado nas quatro próximas estrofes, sempre na mesma posição da quadra, com pequenas alterações nos finais, “Todo nos falta (en el mundo), / todo, menos (la alegria)”. Com essa afirmativa, a personagem deixa evidente uma vida de 233 poucos recursos, porém superada pelo otimismo da alegria. E essa afirmativa estará presente com o mesmo sentido, em todas as quatro estrofes seguintes. Y viva la santa unión de Sin-ropas y Sin-tierras; todo nos falta en la tierra, todo,menos la ilusión. No segundo quarteto, percebe-se a exaltação à união existente entre ele e os amigos da Confraria, evidenciados como pessoas desprestigiadas economicamente “Sin-ropas y Sin-tierras”. Assim como Juancito, Raúl González Tuñón, era pobre, frequentava esse mesmo ambiente e também era fiel a seus amigos da boemia. Além disso, o poeta argentino sempre saía em defesa do proletário e desprestigiado, e suas armas eram a poesia e os textos que publicava nos jornais da época. A inegável proximidade entre personagem e poeta deixa evidente a similaridade de suas vidas. Nora Domínguez apresenta uma definição particular para Juancito, agregando mais valor ao ato autobiográfico construído por González Tuñón. Ela o intitula ventríloquo literário. Para a autora (1980/1986:131), “numa relação ventríloquo-boneco existe uma aliança ou associação de ambos em função de um espetáculo, associação que é imaginária”. O grande artifício é o ventríloquo emprestar sua voz ao boneco, dando a impressão de que o boneco tem fala independente. Semelhante ao ventríloquo-boneco o autor-Juancito Caminador se apresenta, no terreno do imaginário, e, embora este último conserve certa emancipação, mantém sempre uma relação direta com seu criador. Corto sueño y larga andanza en constante despedida; todo nos falta en la vida, todo, menos la esperanza. 234 A terceira estrofe expressa a mobilidade da personagem, seu caminhar e seu desprendimento (“en constante despedida”) de estar sempre em movimento à procura de um novo lugar em que desperte a imaginação, mesmo que por pouco tempo (“corto sueño”), pois há muito a caminhar (“larga andanza”) para se ver o mundo. Amigos de las botellas pero poco del trabajo; todo nos falta aquí abajo, todo, menos las estrellas. Na quarta estrofe a imagem do vagabundo é ironicamente ressaltada (“Amigos de las botellas/ pero poco del trabajo”). De forma burlesca, Juancito joga com a “fama” dos vagabundos, figura como um bom-vivan no sentido daquele que sabe viver a vida e tirar dessa vida o melhor. Já o emprego da metonímia “aquí abajo” caracteriza a região onde está a personagem, América do Sul, Argentina, deixando marcada a conotação de continente subdesenvolvido. Contudo, González Tuñón não concorda com esse depreciativo. Apesar de reconhecer as dificuldades do povo sul-americano, Raúl González Tuñón conclui, a partir de suas experiências de viagens pelo mundo (In: DOMÍNGUEZ, 1980/1986:124): “Así aprendí que no somos subdesarrollados, es una sabrosa mentira, nosotros somos mal aprovechados, mal organizados y mal dirigidos”. Inofensiva locura, sinrazón de vagabundo; todo nos falta en el mundo, todo, menos sepultura. 235 A quinta estrofe apresenta esse vagabundo sem credibilidade alguma para a sociedade. Ele tem uma vida fora dos padrões sociais, a que muitos denominariam de louca, porém, na sua “inofensiva locura”, o vagabundo leva o mundo em sua cabeça através de seu flanar citadino. Ainda de forma burlesca, ele alude ao lugar que todos os cidadãos do mundo têm por certo, “a sepultura”. Agora a repetição do estribilho não mais denota sentimentos nobres, mas aponta para a grande certeza da vida. Prosigamos, si Dios quiere, nuestro camino sin dios, pues siempre se dice adiós y una sola vez se muere. No último quarteto, percebe-se que a vontade de Deus em manter suas vidas (“Prosigamos, si Dios quiere”), permitirá, a esses vagabundos, seguir o rumo de uma caminhada livre dos valores morais e religiosos (sin dios), onde respiram o amor e a liberdade. Juancito os convida a prosseguir nesse caminho, em que as despedidas constituem experiências de vida (“pues siempre se dice adiós”). Essa é a única estrofe que não traz o estribilho. Com isso, nota-se que desde o início a poesia parte em ordem decrescente, onde o otimismo está sempre superando os desafios impostos pelo mundo, até chegar à inescapável morte. Nobre vagabundo, Juancito Caminador, a partir de sua espécie de trova, se incumbe de exaltar a infatigável vida dos que estão à margem da sociedade. Verdadeiro crítico social, burlesco, astuto e perfeito sonhador, Juancito transita pelo mundo dos sonhos com um olhar audacioso de quem observa os mínimos detalhes da sociedade. O olhar interior que se propaga através de seus olhos, 236 é o mesmo que lhe dá voz e o forma em sua essência. É um flâneur antiburguês, misturado à multidão, que sonha os sonhos do seu criador e os exibe para que o mundo os veja. Sua existência depende da alma do poeta e a mesma está contida no reflexo da vida deste poeta; ele é a sua própria prestidigitação. “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador” O uso de textos autobiográficos não convencionais se justifica, neste estudo, pela concepção flexível de autobiografia, que pode ser uma reconstrução artificial e subjetiva ou uma recriação, na qual se expressam as múltiplas ficções do eu. Daí, a possibilidade de conceber o autobiográfico em segunda ou terceira pessoa, como afirma o próprio Philippe Lejeune e Noël M. Valis em seu texto “La autobiografia como insulto”, publicado na Revista Anthopos nº125, de 1991. Por este motivo consideramos o próximo poema, mesmo escrito em terceira pessoa, como autobiográfico. O poema “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador”, é uma alusão à possível morte da personagem. Nele encontramos inúmeras evidências que se coadunam com a vida e a obra de González Tuñón. Estaria o poeta argentino cansado da presença de seu “dulce” vagabundo?. A resposta para essa pergunta se dará ao final da composição poética, onde encontraremos a elucidação que 237 desvenda essa misteriosa canção que foi composta por Juancito, para sua suposta morte. “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador” é um poema composto por oito estrofes com quartetos de rimas consonantes, graves e interpoladas (ABBA), possuindo, no segundo verso das estrofes pares, a alternância das palavras que sintetizam o ser Juancito Caminador e, ao final dessas mesmas estrofes, a repetição de um mesmo refrão. Seus quartetos apresentam uma pontuação semelhante com exceção do primeiro e do sétimo, com isso atribui-se ao poema uma cadência melódica acentuada. Suas estrofes, rimadas alternadamente, cumprem o papel de manter o ritmo similar à estrutura de uma canção, daí a intensa musicalidade. Observemos: Juancito Caminador... Murió en un lejano puerto el prestidigitador. Poca cosa deja el muerto. A reticência usada no primeiro verso da primeira estrofe provoca curiosidade no leitor, permitindo que sua imaginação vagueie livremente e construa suas hipóteses. A partir do segundo verso, inicia-se uma espécie de relato sobre o fim da personagem, afirmando-se sua morte em um porto distante, além de sua precária condição financeira “poca cosa deja el muerto”. A presença do porto, espaço físico sempre constante nas obras tuñoneanas e na vida de González Tuñón, parece exercer um fascínio no autor, ratificado pelo próprio poeta: “Amo los puertos (es el único sitio en donde puede aguardarse algo, un barco, un sueño, una mujer, un pájaro). Amo los puertos arrugados por los acordeones del mundo.” Esse fascínio, como já vimos, vem 238 desde a infância. Trata-se de uma memória portuária, valorizada pelo sonho, que surge das imagens provocadas pelos navios, “vão não sei para onde”. A admiração pelos portos, compartilhada entre Raúl González Tuñón e Juancito Caminador, além de outros pontos comuns, permite afirmar que a personagem é sua personificação e que por meio dela o autor constrói sua autobiografia poética. Desta forma, não estamos reportando o leitor só a fatos da vida do poeta, mas também conduzindo esse leitor ao processo de elaboração da poesia tuñoneana, já que a interseção vida/obra acaba envolvendo o leitor. A autobiografia como intenção de alguém que projeta dar notícia de si, de seu encontro com a realidade, com a alteridade, transcende tanto o real quanto o imaginário. Terminada su función -canción, paloma y barajatodo cabe en una caja. Todo, menos la canción. O primeiro verso da segunda estrofe (“terminada su función”) vincula-se diretamente com o terceiro verso da primeira estrofe (“su presdigitación”), pois no ambiente circense os espetáculos são chamados por seus integrantes de função. Esta função não só está vinculada ao ofício do ilusionista, mas também do poeta, pois ambas são funções do ilusionismo artístico. A vinculação comprova-se pelo segundo verso, enfatizado em todo o poema, “canción, paloma y baraja”, o qual alude a três elementos substanciais tanto para personagem quanto para autor. A canção representa seu amor pela música; pomba, símbolo universal da liberdade e da paz expressa essa alma livre do artista; baralho representa a vida noturna, da boemia. Logo, esse verso, que reflete a preferência de ambos, funciona como síntese do ideal buscado como 239 arte de vida, confirmado por Gusdorf (1991:17): “a autobiografia é vivida, representada, antes de ser escrita; impõe uma espécie de marca retrospectiva ao acontecimento”. Ainda na segunda estrofe a personagem reafirma sua vida de poucos recursos “todo cabe en una caja”, contudo exalta aquilo que de maior valor e importância teve na vida, “la canción”, ou seja, a poesia. Embora “todo cabe en una caja”, há uma ressalva, “Todo, menos la canción”. Pónle luto a la pianola, al conejito, a la estrella, al barquito, a la botella, al botellón, a la bola. Música de barracón -canción, baraja y palomaflor de trapo sin aroma. Todo, menos la canción. Pónle luto a la veleta, al gallo, al reloj de cuco, al fonógrafo, al trabuco, al vaso y a la carpeta. Na terceira estrofe e na quinta estrofe, percebe-se a enumeração de vários elementos que transitam como símbolos poéticos tuñoneanos. Estes elementos funcionam como alegorias que aludem ao mundo dos sonhos, da fantasia, do desconhecido, do subconsciente e das lutas sociais, enfim que resumem seu ofício como homem-poeta. Nestes quartetos, a partir do imperativo “pon” se evidencia a humanização desses símbolos para seu criador, pois eles ficarão de “luto”, tristes com sua morte. “Pianola, botella, botellón, bola, fonógrafo, vaso”, reportam ao mundo boêmio; “conejito, estrella, veleta, gallo, reloj cuco”, se evidenciam como símbolos dos sonhos, do mundo infantil e marcam essa temporalidade nunca abandonada na obra tuñoneana; 240 “barquito”, alude ao porto, às viagens; “trabuco”, às lutas sociais; “carpeta”, aos seus escritos. Exaltados estão todos os elementos que mais comoveram González Tuñón e por sua vez, Juancito Caminador, já que um reflete o eu poético do outro, formando a base tríplice de sua autobiografia lírica: autor/sujeito poético/personagem. Su prestidigitación -canción, paloma y barajael tiempo humilla y ultraja. Todo, menos la canción. No terceiro e no quarto verso da sexta estrofe, o poeta aborda a questão do passado, deixa marcado seu envelhecimento pelos vocábulos “humilla y ultraja”, atribuindo ao tempo certa imagem de carrasco. Contudo esse “senhor tempo”, que atua incessantemente sobre a vida humana, não consegue se sobrepor à eternidade “juvenil” da poesia, sendo ela, uma vez mais, colocada em posição suprema. A poesia é juvenil, não envelhece, é atemporal, por isso o poeta, González Tuñón, ao se fazer presente, personificado em seu Juancito Caminador se imortaliza em sua poética autobiográfica. Conforme palavras de Godoy (2011:101): Portanto o poeta não apenas lembra-se de si mesmo no passado, ele se constrói a si mesmo na medida em que “diz/fala” desse passado “que os anos não trazem mais”, mas que a linguagem pode fazer viver de novo, presentificante e presentificado, na escrita que se torna a si mesma forma e significado. A autobiografia foi o artifício encontrado pelo escritor de tornar a sua vida perpétua, pois ela como “reencarnação” figurativa do rosto e da voz de 241 uma pessoa, ou seja, sua metáfora, reforça precisamente a identificação feita entre poeta e pessoa. Essa identificação ambivalente e, por certo perturbadora é antes uma identificação lingüística em que uma construção cultural (a ideia de poeta) se assimila quase por completo à pessoa concreta do escritor. Enfim, como afirma o crítico Noel Valis (1991:37), “o poeta, em fim, já marca em sua função de estereótipo cultural, a identidade do escritor, definindo-o de antemão e, por conseguinte despersonalizando-o ao mesmo tempo”. Mucha muerte a poca vida. ¡Que lo entierre de una vez la Reina del Ajedrez y un poeta lo despida! A ideia de que cada texto tem vida própria, como uma crônica, um conto, uma poesia e de que, como o escritor Julio Cortazar afirma, em seu texto “Algunos aspectos del cuento”, ao terminarmos de ler o texto o matamos, ou melhor, o encerramos, permite-nos pensar, analogamente em quantas vezes “matamos” a personagem após a leitura de seus poemas. Ao pensar a permanência textual de Juancito Caminador, percebe-se que, como figura ficcional, possui uma vida poética fugaz, pois em cada poema que figura é como se ele “morresse” um pouco. Daí a afirmativa no primeiro verso da sétima estrofe “Mucha muerte a poca vida”. A simbologia da “rainha do xadrez” está estritamente vinculada a da morte, ao xeque mate, palavra usada neste jogo para finalizá-lo, por isso o eu lírico afirma enfaticamente “¡Que lo entierre de una vez/la Reina del Ajedrez(...)!”. Todo esse quarteto está pautado na figura da morte, e nos permite uma indagação a partir da afirmativa feita no poema, “y un poeta lo despida”. Este poeta, provavelmente sendo seu próprio criador Raúl González Tuñón, estaria 242 cansado da companhia de seu fiel escudeiro, por isso estivesse querendo calálo? Não o sabemos ao certo, mas certamente o poeta ao qual se refere é seu próprio mentor. A presença do poeta nessa estrofe, ou melhor, a alusão a Raúl González Tuñón, é mais uma forma evidente da dualidade existente entre eles que ao mesmo tempo que os fragmenta os unifica. O poeta, tendo a missão de “o despedir”, demonstra subjetivamente, que o poder de controlá-lo e de lhe dar a “voz” vem da sua própria existência enquanto ser humano. A excelência da função da personagem vem do seu autor, que está personificado em Juancito Caminador. Truco mágico, ilusión, -canción, baraja y palomaque todo en broma se toma. Todo, menos la canción. A última estrofe ressalta que toda essa morte aludida no poema a Juancito Caminador, não passou de uma burla, de uma brincadeira (“truco mágico, ilusión”) realizada por esse próprio pícaro (“que todo en broma se toma”) instigador do sonho e da fantasia. A construção poética foi pautada em cima dessa morte, com isso se justifica o título do poema em suposta morte de Juancito Caminador. Mesmo deixando em evidência sua maior característica, a prestidigitação, Juancito mostra seriedade com relação a poesia, pois a exclui dessa brincadeira, atribuindo assim valor de veracidade a ela, “Todo, menos la canción”. Para ele, a poesia é real, infinita, imortal e encantadora, com tudo ele joga, ele ludibria, exceto com a canção. Juancito Caminador, para ser mais consistente, mais enraizado no mundo real, usa-se da biografia do autor. Por isso, ele também é um prestidigitador, no sentido em que escamoteia o eu e o simula. E é isso que 243 percebemos nesse poema, no qual ele joga com essa ideia da morte, como se agora o morto fosse ele mesmo, agora ele é testemunha do mundo. Em seu processo consciente de construção de uma obra autobiográfica, vemos como o poeta, em sua poesia, ou através dele, reconhece a diferença que marca sua identidade, tornando-a manifesta e representada em seu Caminhador. E como afirma Loureiro (1991:64): Todo texto autobiográfico habita em sua entranha a fascinação e o canto da alteridade, imagem de si e de um tu dialógico e aberto que se oferece em encontro de reciprocidade. Uma luz e uma estrela que abrem sempre o horizonte da vida e da história. Sempre é começo, autobiografia. [T.A.] Enfim, com González Tuñón, Juancito divide seus gostos e preza por eles. Sua música o blues; seu trabalho a prestidigitação; sua diversão caminhar pelo mundo em observação; seus amigos os marginalizados, um pobre palhaço e um pobre poeta; sua casa, os bares e portos mundo afora, a boemia; seu amor eterno à “senhorita poesia”. “El poeta murió al amanecer” Pode-se dizer que a poesia em questão é a cópia mais fiel de seu eu autobiográfico. Numa espécie de retrato de si, o poeta apresenta sua vida, ressaltando exatamente os elementos que mais o deslumbraram no mundo. Seus gostos, seus amigos, seus lugares, seus amores, seu ofício, estão sintetizados nesse exercício de olhar a si mesmo e resgatar-se de seu passado, atualizando, no presente, seu retrato futuro. É o que se verifica no 244 poema “El poeta murió al amanecer”, que representa a pseudomorte do poeta. A composição poética abriga seis estrofes com números livres de versos, assemelhando-se à poesia em prosa: Sin un céntimo, solo, tal como vino ao mundo, murió al fin, en la plaza, frente a la inquieta feria. Velaron el cadáver del dulce vagabundo dos musas, la esperanza y la miseria. Na primeira estrofe do poema, o eu lírico alude à falta de dinheiro tão característica na vida de González Tuñón e tão marcada em sua obra. Ele e sua família viviam com limitações financeiras em um bairro humilde de Buenos Aires que estava próximo a uma praça muito movimentada por suas intensas manifestações socialistas: Plaza Once. Sua pouca condição econômica não o impediu de exercer seu ofício de poeta e de viajar pelo mundo, e por isso se tornou motivo de orgulho para o autor, sendo ressaltada em várias composições poéticas. Também é interessante observar a construção da imagem do cenário físico onde se dará seu fim: na praça. Este foi um espaço constantemente poetizado por Tuñón. Existem vários poemas que retratam praças da capital Argentina, como também de outros lugares, uma delas é a poesia “A la sombra del parque Lezama”, onde o eu lírico afirma: “Aquí empezó Juancito Caminador su viaje...”. Também foi de onde Tuñón partiu para o mundo, sua casa estava diante de uma praça, então é como se o poeta retornasse às velhas origens, ao início de sua vida para poder, enfim, morrer (“murió al fin”). Os laços criados com os locais e os elementos que fizeram parte de sua infância são constantes em sua poesia; como por exemplo: “Veletas (cata-vento), barquitos en la 245 botella, turco vendedor de madapolán, vendedor de globos, circo”... A partir deles, vincula-se ao mundo dos sonhos. O terceiro verso “Velaron el cadáver del dulce vagabundo” evidencia a filiação irrestrita poeta-vagabundo, ou seja, Raúl González Tuñón-Juancito Caminador. Essa associação poeta-personagem sempre suscitou a ambiguidade. Em diversos poemas, Juancito parece ter vida própria, mas ele não consegue desvincular-se do poeta, pois Juancito representa a faceta liberal de González Tuñón. O quarto verso expõe a antítese “la esperanza y la miseria” como reveladora da essência humana, visto que todos carregam dentro de si essa dualidade. Esse jogo antitético sempre esteve vinculado na obra poética tuñoneana, pois González Tuñón reconhecia o homem em sua totalidade e acreditava que o mesmo poderia transformar a realidade. O autor apresenta em suas poesias a alusão à miséria, não só financeira, mas também às mazelas humanas sempre associado à crença emocional na possibilidade de resultados positivos relacionados com as circunstâncias da vida. Fue un poeta completo de su vida y su obra. Escribió versos casi celestes, casi mágicos, de invención verdadera, y como hombre de su tiempo que era, tambiém ardientes cantos y poemas civiles de esquinas y banderas. A segunda estrofe é emblemática para o estudo poético tuñoneano, pois resume suas vivências. Nela, a marca autobiográfica é inegável. O material autobiográfico tuñoneano inquieta, questiona e incide dialogicamente no leitor, não só porque podemos “viajar” com ele, através dos lugares mais recônditos da grande Buenos Aires, ou das cidades espanholas, ou ainda, da capital 246 parisiense, do Brasil, ou de qualquer outra cidade que o tenha impressionado a ponto de ter-se transformado em corpus poético de sua produção, mas também pela estruturação primorosa de sua poesia, que faz uso de diversas figuras de linguagem, como a metáfora, imprimindo musicalidade à mesma, por privilegiar as rimas consonantes e alternadas, e sendo altamente fervorosa, por revelar o amor do poeta pelo mundo. Toda poesia lírica, ao manifestar os sentimentos internos do poeta, é por si só autobiográfica; mas González Tuñón, não só com “el poeta murió al amanecer”, mas também em outros poemas, transforma sua escritura em um ato plenamente autobiográfico ao revelar em seus poemas imagens cotidianas, reais e existentes das cidades por onde andou e das pessoas e objetos que encontrou pelo caminho. Ao lermos a poesia de González Tuñón, lemos sua autobiografia, pois a cada etapa de seu ofício sua realidade se espelha em sua obra. O amor pelas viagens, pelas cidades e sua gente, pelo social, pelo seu tempo, levou-o a comprometer-se consigo mesmo e com o leitor, estabelecendo um pacto indissociável entre si e esse leitor, já que segundo Ángel Loureiro (1991:64.T.A.), “a autobiografia é a forma literária que estabelece uma maior união entre o escritor, incitado a escrever para refletir sobre si mesmo, e o leitor que recorre frequentemente à leitura das autobiografias para conhecer melhor ao autor e a si mesmo”. Os versos “Algunos, los más viejos, lo negaron de entrada./ Algunos, los más jóvenes, lo negaron después.” fazem referência a duas situações marcantes durante a caminhada poética de González Tuñón, que comoveram intensamente ao poeta. A primeira se refere à austera crítica sofrida pelo autor, quando, ainda jovem (15-16 anos), começava a adentrar no mundo da lírica e 247 apresentou suas poesias a um editor de uma famosa coluna de literatura, sendo acusado por este de plagio. Tuñón afirma que essa crítica não o impediu de continuar escrevendo, mas o fez resignar-se, acovardando-o a ponto de não mostrá-la a mais ninguém. Ele relata, em entrevista ao escritor Horacio Salas (1975:26), seu dissabor com a crítica: Había un diário La montaña, y un poeta; Juan Pedro Calou, de vida tan fugaz como la del diario. [...] Calou hacía la página literaria de ese diario, sección que era más prestigiosa que el suplemento La Nación. [...] Un día le llevé mis poemas y me dijo: “Vuelva la semana próxima, pero usted imita a Rubén Darío”. Él no sabía el daño que me hacía. En ese momento del Valle Inclán, García Lorca, Neruda, todos, imitaban a ese libertador de la lengua y la poética castellana. [...] “Pero además usted imita a Baudelaire, y a Carriego y al Bolmberg de los puertos”. Y era verdad, pero me lo dijo con tanta bronca que seguí escribiendo pero sin mostrarle a nadie. A segunda situação marcante, relatada anteriormente, ocorreu quando González Tuñón foi considerado um poeta anônimo pelos jovens escritores que estavam no Congresso de Escritores Antifascistas. O poeta argentino, que tinha publicado sete livros de poesias, sendo dois deles premiados, tinha escrito quatro peças de teatro: El desconocido donde (“La calle donde yace el corazón”), Reunión a medianoche, (“La casa de remate”), La cueva caliente, Dan tres vueltas y luego se van (em colaboração com Nicolás Olivari), e recebido várias críticas por poetas ilustres em periódicos da época, foi ignorado por aqueles jovens no congresso. Segundo o escritor Ricard Vinyes (2002:7), “a memória é sobrevivência constante da história porque através da memória a história continua vivendo e reelaborando as esperanças, projetos ou desânimos de homens que buscam dar sentido à vida”. Esses fatos, retidos em sua memória, são histórias recordadas que apontam para seus insucessos, mas 248 que não deixam de ser marcantes para o poeta, ainda que as queira esquecer, conforme suas palavras no poema “El país de la lluvia y la distancia”, (1983:100): “Pues también la memoria tiene sus avenidas/ de luces silenciosas y esquinas recoletas/ y su orilla pasando por el hilo del sueño./ El olvido se cansa de llamar a la puerta”. Hoy irán a su intierro cuatro buenos amigos, los parroquianos del café, los artistas del circo ambulante, unos cuantos obreros, un antiguo editor, una hermosa mujer, y mañana, mañana, florecerá la tierra que caiga sobre él. A partir de uma enumeração de pessoas/personagens, o poeta inicia a quarta estrofe. Tanto “los parroquianos del café” quanto “los artistas del circo ambulante” e “obreros”, são personagens aludidos em muitas poesias tuñoneanas. Eles são significativos também na vida de González Tuñón, pois simbolizam seus sonhos e lutas juvenis. Assim também é o “antiguo editor” e a “hermosa mujer”, aquele representa seu primeiro editor, Manuel Gleizer, que foi aludido em muitos poemas do poeta argentino; esta, símbolo de sua amada, Amparo Mom, cantada incessantemente em sua lírica. Nos dois últimos versos da estrofe, funda-se uma imagem futura “mañana”, relativa a seu fim, que está vinculada “al amanecer”, que faz parte do título do poema. Essa imagem sinaliza a vida, pois a terra que cair sobre o sujeito do poema florescerá. Dessa forma, o poeta se revela imortal nesse mundo, ratificado pelo fato de morrer ao nascer do dia. Deja muy pocas cosas, libros, un Heine, un Whitman, un Quevedo, un Darío, un Rimbaud, un Baudelaire, 249 un Schiller, un Bertrand, un Bécquer, un Machado, versos de un ser querido que se fue antes que él, muchas cuentas impagas, un mapa, una veleta y una antigua fragata dentro de una botella. Os três primeiros versos, da quinta estrofe, nos remetem a escritores consagrados pelo poeta. Todos eles, de Heine a Machado, foram lidos e eram preferências declaradas de González Tuñón. Cita o poeta no poema “El cementerio”: (“Aquí yace/ el general Aupick,/ caballero condecorado./ Miembro de la Legión de Honor,/ ex Embajador en Constantinopla/ y en Madrid” y más abajo: “Aquí yace/ Charles Baudelaire,/ su hijastro,/ muerto en París/ el 30 de agosto de 1867”. Nadie recuerda al general Aupick. Pero Baudelaire es eterno.) No quarto verso da estrofe, “versos de un ser querido, que se fue antes que él,”, faz menção a um escritor que o poeta declara ser preferido por ele, mas que já morreu. Esse escritor era seu irmão Enrique González Tuñón, que também era poeta e faleceu muito jovem. O ato autobiográfico ganha mais força pela presença desse familiar, que lhe confere veracidade. Logo, a autobiografia é o tipo, por excelência, de maior conteúdo referencial, em que o escritor deixa mais marcas de suas vivências. Nos dois últimos versos da estrofe, o eu lírico retoma os símbolos que sempre amou, por representarem o seu íntimo ser. A presença deles como objetos deixados serve para reafirmar a paixão do poeta pelas viagens (mapa) que despertam seu mundo dos sonhos, “veleta”, através daquela famosa e intrigante imagem tuñoneana do barquinho dentro da garrafa, “fragata dentro de una botella”. A última estrofe, ao imprimir a ideia de um mundo infantil, encerra com a imagem dos símbolos que sempre fizeram parte da obra de González Tuñón: 250 Los que le vieron dicen que murió como un niño. Para él fue la muerte como el último asombro. Tenía una estrella muerta sobre el pecho vencido, y un pájaro en el hombro. A infância, provocadora do insólito, do sonho, sempre o fascinou, e agora ele atribui ao olhar do outro essa acepção para si, assumindo a criança que constantemente resgatava em seus poemas. Mesmo diante da morte, o poeta não se assusta, mas continua com seu assombro, com sua surpresa perante esta, que causaria seu último espanto. Sobre a morte, González Tuñón afirma para Salas (1975:147): “La veo como algo que tiene que ver con la vida, con el otro lado de la vida. Con un pie en la dialéctica y otro en el panteísmo, creo que “nada se pierde y todo se transforma”.” Os dois últimos versos revelam uma imagem-síntese da vida e, certamente, da obra do poeta. Nela encontramos a estrela, símbolo do sonho em ser reconhecido, condecorado, ao qual o poeta não conseguiu em vida, por isso ela está morta sobre o peito vencido, peito este que alude ao espírito combatente com o qual, durante toda a sua vida, o autor conviveu. Por último, a alusão a seu espírito livre através do pássaro que está em seu ombro. A morte nunca foi amedrontadora para González Tuñón, porém, ao ser interrogado por Salas se ela lhe causava medo, o poeta responde: “No, en principio, pero sí cuando pienso que me va a apartar de los seres queridos, de todo lo que amo en el país y en el mundo,...” Juancito Caminador, o viajante com o qual o leitor percorre o mundo, descobre o encanto dos arquipélagos, dos lugares ermos como os baldios, dos sonhos, do barquinho na garrafa, das senhoritas, dos seis irmãos rápido dedos no gatilho, dos negros de Scottsboro. Juancito está com eles, desde o momento em que Raúl o vislumbra enquanto olha a etiqueta de uma garrafa de whisky Johnnie Walker e vê aquele homenzinho caminhando pelo mundo. 251 A autobiografia poética representa mais um processo de inovação na poesia tuñoneana. Seu estilo deve entender-se aqui não somente como uma regra de escritura, mas também como um peregrinar, amplamente difundido em sua obra. Assim como afirma Gusdorf (1991:17), “a verdade da vida não é distinta, especificamente, da verdade da obra: o grande artista, o grande escritor, vive de alguma maneira, para sua autobiografia”. Assim o vemos refletido em toda a obra poética de Raúl González Tuñón, que, através do seu caminhador ou do seu eu lírico, fez da sua vida, sua poesia e de sua poesia, sua vida. 252 CONCLUSÃO Com a finalidade de abordar a poética de Raúl González Tuñón, pesquisou-se sobre a imagem das cidades em que o poeta viveu, dentre as quais se destaca a capital parisiense, divisor de águas no estilo tuñoneano. Também se investigou sobre a presença copiosa de Juancito Caminador, por acreditar que este personagem encarna a representação autobiográfica do autor, o que outorgaria total inovação à poética argentina, visto que por meio deste trabalho audacioso, González Tuñón passa a ocasionar uma revolução nas artes literárias portenhas do século XX. Ao se analisar o conjunto de poemas de Raúl González Tuñón, encontrou-se, primeiramente, a alternância temática que abarca sua produção literária. O início e o final da obra tuñoneana estão marcados por uma poesia surrealista, enquanto, entre essas duas etapas de sua produção, verifica-se uma poesia de cunho social. Todo o percurso literário de González Tuñón imprime uma visão totalizante do espaço, proporcionada pelo poeta, devido às inúmeras viagens pelo mundo, na companhia indissociável de seu nobre vagabundo Juancito Caminador. 253 No início da caminhada de González Tuñón, revelamos que desde pequeno ele se mostrava sensível aos estímulos do mundo visível, percebido pelas constantes alusões a momentos, objetos, pessoas e lugares que surgem em suas linhas poéticas. O descobrimento juvenil do poeta pela vanguarda argentina o impulsionou a ingressar de forma atuante nessa fase fértil da cultura e da arte na capital portenha. Sua participação e contribuição nos grupos antagônicos Florida e Boedo foi conflitante, porém, intensamente enriquecedora. Dentre os poucos críticos existentes sobre a obra de Raúl González Tuñón, raros foram aqueles que conseguiram situar o poeta em um ou outro grupo. A maioria dos poetas da época possuía vínculos unitários com Florida ou com Boedo, entretanto González Tuñón circulava entre ambos de forma pacífica e influente, como um perfeito caminhador, conseguindo compartilhar sua produção com os dois grupos. Contudo, o próprio poeta afirma que seu estilo literário se filia ao grupo Florida, por mais que compartilhasse com os ideais boedistas. O grupo Boedo foi indispensável para o início de sua vinculação política e social. Ao caminharmos pelas urbes modernas, mostramos primeiramente que a experiência vivida por Raúl González Tuñón na capital argentina foi circundada por elementos imaginários e reais. Com um espírito tipicamente patriota, o autor procurou conhecer quase todas as regiões da Argentina e, assim, cantar a extensão do país em seus versos. Porém, seu temperamento inquieto o impulsionava a descobrir o mundo, seu Juancito Caminador o instigava a viajar e retratar em lírica suas mais belas e cruéis experiências. As viagens proporcionavam um aprimoramento da sua estética, estabeleciam 254 amizades e o levavam a conhecer novas formas métricas, novas concepções poéticas. No seu caminhar citadino por Buenos Aires, González Tuñón nos revela sua paixão pelo porto, presente em quase todos os seus poemas. O porto é para o poeta o símbolo da busca, da esperança e do sonho, através dele partem os navios que levam Juancito a peregrinar e contemplar o mundo. Também nos revela seu fascínio pelas casas de danças do Paseo de Julio, em realidade, bordéis. São lugares exóticos, que surgem da nova cenografia urbana, transformada pela modernidade, e, às vezes, marginalizados pela sociedade. Por isso, o conceito de cidade, para González Tuñón, é um espaço heterogêneo onde se misturam pessoas de outros países, com outras culturas e passados, marginais, burgueses, ambientes requintados e ambientes desprestigiados. Ainda que a leitura inicial do seu primeiro livro nutra-se de simplicidades que encontramos nos limites precisos de um bairro de Buenos Aires, González Tuñón se desprende desse limite para cantar as mais diversas localidades e ruas de sua cidade, de seu país e do mundo em seus posteriores livros. Ainda, em seu transitar portenho, percebemos a construção de outro espaço de suma importância em sua obra poética, o ambiente circense. Com suas características e personagens típicos sempre foi presença quase constante nos poemas tuñoneanos, porém, no início de sua caminhada, o circo foi uma obsessão do jovem poeta, tanto que seu primeiro poema foi publicado em um jornal de bairro, quando o escritor tinha dezessete anos, em homenagem a um palhaço chamado Frank Brown. De acordo com González Tuñón, Frank Brown o deslumbrou, era um palhaço maravilhoso, um inglês 255 totalmente influenciado pelos costumes da América Latina, de grande atração para as crianças. O ambiente circense o contagiava desde os tempos da infância, por isso, González Tuñón, quando tinha aproximadamente dezoito anos, seguiu um circo que saia da cidade e partia em direção ao interior. Aos vinte anos Raúl González Tuñón publica seu primeiro livro. Nele aparece o poema que resume sua visão de adolescente vagabundo e lúcido: “Eche veinte centavos en la ranura”. Este poema anuncia o Surrealismo, antes mesmo de que o Surrealismo aparecesse na França em 1924, época em que o poeta se encontrava com dezenove anos. Logo, não é nenhuma incoerência afirmar que González Tuñón foi precursor do Surrealismo, pois as diversas correntes, como Cubismo, Dadaísmo, Criacionismo, que antecederam esse movimento originário da França, faziam parte do universo do poeta. Ao percorrer os versos de “Eche veinte centavos en la ranura”, “Música de los puertos”, “Adiós a Buenos Aires”, “Poetango de la belle époque” e “Motivo para una cajita de música”, podemos confirmar seu amor pelo descobrimento do insólito, do novo, dos símbolos e personagens mais representativos de sua poética e do vagar nas ruas da cidade de Buenos Aires, que se abria diante de seus olhos. A imagem insólita, sua fruição pelos mais recônditos locais citadinos, a fluidez cinematográfica que confere às imagens, o tom coloquial, quase confidente do poeta, parecendo sussurrar segredos até mesmo no ouvido do leitor; as alterações de estados de ânimo são algumas das características da poética tuñoneana presentes nos referidos poemas. Nessas composições poéticas González Tuñón canta a pobreza do ambiente citadino, seus submundos, sua gente. Sua eterna paixão pelo mundo infantil segue revelada em sua lírica, sendo frequentes os elementos tomados 256 da infância e registrados nos poemas, como: os cata-ventos, os barcos dentro das garrafas e a própria caixinha de música. Essas constantes repetições afirmam o amor do poeta por esses símbolos e, consequentemente, por sua infância. Assim afirma o autor em seu poema “Los sueños de los niños inventando países”: PORQUE el niño conserva todos los libres bríos de la invención, baraja sus monstruos increíbles y sus enloquecidos ángeles. La bárbara inocencia sin prejuicios de la primera pureza y el espléndido caos, el delirio de la razón, la fantasía. El niño es el primer surrealista. Em toda obra de González Tuñón a alternância contemplação/mudança ocorre de uma forma fluida, em uma correspondência dialética entre o mundo observado e o mundo a transformar. Uma palavra se renova ao longo de sua obra, uma palavra-chave, “cordial”. É cordial, amigável, sua primeira aproximação ao bairro e ao subúrbio; cordial e alegre sua aproximação aos circos, às feiras e ao mundo dos marinheiros; cordial e nostálgica sua visão dos seres e dos objetos queridos; cordial e combatente... Sua poesia está marcada pela nomeação, pelas citações e referências, pela auto-referencialidade, pelas intensas e inúmeras metáforas. O mundo dos objetos é, em geral, o que atrai o poeta. Mediante um processo de composição, as nomeações e as metáforas se humanizam, aproximando-se desta forma ao mundo dos homens sem exceder nunca os limites impostos, já que no espaço tuñoneano imperam sempre o homem e suas lutas cotidianas e sociais. No terreno dessa substantivação, percebe-se também o uso de nomes que remetem à esfera familiar ou à esfera da amizade, como por exemplo o 257 poema “Lluvia”, dedicado a sua esposa, o “Poema para un niño que habla con las cosas”, dedicado a seu filho e os inúmeros poemas dedicados a seu irmão Enrique. Tanto essas referências como as nomeações de lugares, países, bairros, cafés, travam com o leitor uma relação de reconhecimento pelo efeito de verossimilhança. A constante repetição de objetos, pessoas e lugares, nos poemas tuñoneanos, não tornam sua obra repetitiva ou sem originalidade, ao contrário, aproximam ao leitor de seu mundo interior, tornando-o uma espécie de cúmplice de sua lírica. O próprio autor afirma, em entrevista a Horacio Salas, que não tinha medo de se repetir em seus poemas, “pienso que citar varias veces el barco en la botella, las cajitas de música, las veletas, no es repetirse sino seguir moviéndose en medio de los símbolos que siempre he amado”. Após seu longo percurso pela Argentina, pelos submundos portenhos, revelados em seus dois livros anteriores, González Tuñón chega finalmente à tão sonhada Paris. Agora ele flaneia pela cidade europeia, reconhecendo poéticamente as margens parisienses que vão do riacho de La Villette ao velho Bul Mich, extasiando-se a cada imagem que se abre diante de seus olhos estrangeiros. A experiência da distância, do estranhamento, do choque cultural e da existência de um conhecimento da partida, aprofundaram ainda mais seu conhecimento sobre a margem, contribuindo para ampliação e solidificação de sua poesia. Em Paris o escritor, afetado pelas transformações vanguardistas, despoja sua escritura das imposições da estética modernista que a marcavam em seu começo. A rima desaparece, o verso livre é amplamente executado e a poesia adquire a categoria de prosa. Além disso, as experências culturais que 258 vivencia despertam-no para as questões políticas, e estas começam a despontar em sua poesia. A cidade é sua gente, o rapaz que entra assoviando ao mictório, o menino que posou para o cartaz do sabonete Cadum, a pintura de Utrillo, o homem que pega sua garrafa de leite, os mendigos e os cegos das catedrais. O culto e o popular estão amplamente versificados em sua poética de forma homogênea e integradora, em condição harmoniosa com a urbe. Daí o poeta falar de Notre-Dame, Saint Chapelle, Chartres, mas também dos cortiços, das usinas, dos bares de operários e ladrões. Essa viagem biográfica e poética amplia seu saber e suas formas de figurações, torna possível essa internacionalização dos mundos referenciais. O percurso entusiasmado e fantástico de González Tuñón, em Paris permite ao poeta argentino falar da cidade luz em sua totalidade, de Père Lachaise, as imagens de todas as janelas da Europa, os bares do boulevard Saint Michel, de Montparnasse, dos matadouros. Enfim, esse desdobramento internacional permite que González Tuñón fale, no presente, do subúrbio portenho junto com as novas imagens apreendidas em Paris. Em sua caminhada por “Las viejas catedrales”, pelo “Poema del Boulevard Saint Michel” e por “La calle del Paso de la Mula”, esse poetaobservador, esse pseudoflâneur retrata em seus versos a Paris de localidades importantes, de ambientes icônicos e a Paris dos desprestigiados. O poeta elege seu canto de exaltação a essa diversidade, encontrada nessa urbe, a qual tanto o fascinava, pois era assim que ele conseguia reconhecer a cidade em sua unidade. Sendo assim, a poesia que González Tuñón aprimora em Paris se extenderá ao longo de toda sua poética. Ela é uma extensa cartografia 259 ou uma sequência de cenas, que nos permite visualizar a amplitude das paisagens citadinas. Seus poemas desenham regiões ou urbes e onde não existem objetos, existem nomes, e em cada nome um lugar que se povoa da observação de novos objetos ou de ações e de histórias. O espaço imaginário do poema exige a nomeação ou a referência dos pontos espaciais, como um guia turístico lírico. O poeta migratório é um cartógrafo nominador, um flâneur da cosmópoles, o vagabundo e o viajante, entre o sonho e a revolução. Esse poeta-viajante aporta agora na Espanha do início dos conflitos sociais. Nesse caminhar, revela-se uma nova linha estética na literatura de González Tuñón: a poética social. Apesar de ter elaborado um número maior de poesias influenciadas pela estética surrealista, González Tuñón foi mais conhecido como poeta social. Suas obras não retratam o sistema político, mas sim o homem submetido ao sistema governamental. Embora seu trabalho poético possa parecer engajado, González Tuñón soube discernir a arte literária da política, seus poemas de rara beleza aludem ao compromisso do homem com o seu semelhante. A Guerra Civil foi o divisor de sua carreira poética. Antes do livro La rosa blindada, ele era um poeta comum, com pouca projeção, após a publicação torna-se modelo para outros renomados poetas. Os poemas da Guerra Civil, analisados ao longo deste estudo, possuem a forma de hino, marcha combatente em ritmo de arte. O poeta emprega a imagem em sua escritura para denunciar os conflitos bélicos. Continua sendo um cantor citadino, mas agora seu objetivo é ser solidário, atuante em um momento caótico. Ao caminharmos por “La Libertaria” e “Cuidado que viene el Tercio” percebemos a posição de González Tuñón, um homem comprometido com seu 260 tempo. Nas suas linhas poéticas formam-se as imagens da luta, da repulsa por atitudes bárbaras, pelo desrespeito a seu semelhante. A bipolarização partidária, que surge com o caos, rompe com a fluidez das relações humanas. Essa fragmentação revela-se de forma rítmica, através das imagens realistas na poesia de González Tuñón, que aludem a esse conflito cruel. O poeta transfere para o papel o que sente, as imagens que foram registradas em sua memória se imortalizam em seus versos, portanto, também se configuram como imagens históricas, à semelhança do quadro Guernica, pintura de Pablo Picasso. O olhar que vê absorve a realidade para transformá-la em arte através da mão que escreve, ou da mão que pinta, ou da mão que modela. São artes que refletem o aprisionamento do real pela sensibilidade de um artista. À semelhança dessas artes, as fotografias, produzidas na época do conflito bélico na Espanha, também produzem esse aprisionamento. Trata-se de um evento marcante para o cenário do fotojornalismo, pois possibilitaram perceber de forma um pouco mais vivaz essa sangrenta guerra. As fotografias dessa época podem ser tomadas como representações de objetos fractais. Nelas, verifica-se a destruição do ambiente pelo próprio cunho de veracidade que carrega. O objeto focalizado pelo olhar do fotógrafo transmite sua concepção dos fatos, assim, a fonte de criação, o objeto criado e seu criador se transfiguram em um objeto único e irrepetível, impregnado de simbologia. Tanto a imagem fotográfica quanto a imagem poética estão impregnadas pelo olhar do outro. Ambas revelam a fragilidade do ambiente espanhol, completamente fragmentado, arruinado. Se o poeta cria imagens de dor, de revolta, de comoção, a fotografia, por retratar a pura realidade, aflora 261 intensamente essas emoções. Se a fotografia congela um instante, para tornálo permanente, a poesia também é o retrato do fugaz, eternizado na imagem da composição poética. Tanto a poesia social quanto a poesia citadina mais surrealistas do autor em questão, reunidas nesta pesquisa, comprovam a harmoniosa síntese do fazer poético do escritor argentino, revelando a habilidade de Raúl González Tuñón na construção do artifício da linguagem literária. Sua melhor biografia foi escrita por ele mesmo em seus poemas, porque canta o que vive. O gosto pelo popular, pelo simples, pela embriaguez da vida noturna da cidade, leva González Tuñón a criar um companheiro para brincar com as cidades, esgotar seus recursos e reinventar-se na próxima página. Juancito Caminador se funde com a vida particular do poeta, com seu subconsciente lúdico, podendo entrar e sair de sua obra sem causar dano, perambular em qualquer espaço e tempo. Ser o herói romântico do real-surreal. O último percurso do caminhador revelou a personagem Juancito Caminador como uma representação autobiográfica de González Tuñón, personificada em sua poesia pela tessitura de sua lírica e retratando as experiências e as vivências mais significativas do autor. A partir do pacto firmado entre autor-personagem-sujeito do poema, o leitor pode vislumbrar, nas versificações tuñoneanas, o gosto, o modo de ser e alguns acontecimentos da vida do autor argentino, além de verificar o estilo próprio de sua poética. Exercendo perfeitamente o ofício de um artista da autobiografia, González Tuñón, com seu Juancito Caminador, buscou compreender a própria interioridade baseado em seu exterior. Desta forma, a 262 obra tuñoneana é reveladora não apenas pelos traços autobiográficos nela presentes, mas principalmente da construção da autobiografia do autor. Com o artifício da autobiografia, González Tuñón cria um “documento cultural” que, além de declará-lo, revela também sua formação cultural. Este “documento cultural” é a manifestação da imagem que ele tem de si e quer perpetuar para os outros. A sociedade moderna irrompe no homem o desejo de individualização e autoafirmação, daí, o anseio em resgatar da memória as imagens que simbolizam sua vida, recuperando-as e atribuindo sentido ao vivido. Juancito Caminador é o andarilho que transita dos submundos portenhos e do circo ao mundo sóciopolítico moderno. Nesse sentido, uma representação próxima ao eu que Raúl González Tuñón foi formando em seus primeiros livros. O escritor argentino não se refere a si mesmo, no começo, em primeira pessoa, mas compõe uma figura claramente identificadora, com as mesmas marcas culturais com que trabalhou até então. Logo, o poeta não separa o “eu” presente no poema do “eu” que se apresenta através dele. Há, portanto, como quer Lejeune, identificação absoluta entre o narrador e o autor dessa autobiografia, verificado nas tessituras dos poemas dedicados e/ou do Caminhador. O fato de González Tuñón lançar mão de Juancito Caminador para contar sua história, sem a preocupação cronológica dos acontecimentos, é o que nos leva à autobiografia e ao pacto de sua contrução, ou ao entendimento da poesia de González Tuñón como a construção de sua autobiografia, como se verifica no poema “Epitafio para la tumba del poeta desconocido”: 263 Fue un poeta de su vida y de la vida. Porque además del diálogo del hombre con su tiempo la poesía es un estado de ánimo, fue siempre el suyo un vago amar y sentir y esperar no se sabe qué cosas: y no pudo escribir ni un solo verso. La muerte, la inquirida “Tía de las muchachas”, se lo llevó una tarde de azul desprevenido. Murió de inanición, como Meg Merrillies, la que en vez de cenar contemplaba fijamente la luna sobre el bosque. Tanta es su soledad que el olvido se toca. Nossa vida está composta, em grande parte por sonhos. Temos de encaminhá-los à ação, resgatá-los do nosso subconsciente para transformá-los em realidade. Ação propagada por González Tuñón através de sua obra. Para o autor, o exercício da poesia possibilita ao homem deixar no mundo a sua marca, nomeando-o. O poeta argentino transformou em ação, fez da poesia a porta voz de sua vida, a vida escrita, sua autobiografia. Fez do seu pacto lírico autobiográfico com Juancito Caminador o destino, o projeto e a produção de planos, sempre originais, inovadores, permanecendo na marcha do tempo. Seu percurso vivido foi transformado em caminhar lírico na companhia inseparável de seu Caminhador interior. Raúl González Tuñón se situa entre aqueles poetas que nos comovem e nos movem. Sua poesia tem algo de invencível e de verdadeiro, tem algo de um boêmio romântico realista, Juancito Caminador, que, peregrinando pelo mundo simbólico, deixou como legado sua autobiografia lírica. 264 BIBLIOGRAFIA Obras do autor Ensaio ------. La literatura resplandeciente. Buenos Aires: Boedo-Silbalba, 1976. ------. Crónicas del país de nunca jamás. 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El dolor mata, amigo, la vida es dura, y ya que usted no tiene hogar ni esposa si quiere ver la vida color de rosa eche veinte centavos en la ranura Lamparillas de la Kermesse, títeres y titiriteros, volver a ser niño otra vez y andar entre los marineros de Liverpool o de Suez. Teatrillos de utilería. Detrás de esos turbios cristales hay una sala sombría: Paraísos artificiales. Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos ¡Aquí hay mujer y manzanilla! Aquí hay olvido, aquí hay refrescos. Pero sobre todo mujeres para los hombres de los puertos que prenden con alfileres sus ojos en los ojos muertos. No debe tener esqueleto el enano de Sarrasani, que bien parece un amuleto de la joyería Escasany. Salta la cuerda, sáltala, ojos de rata, cara de clown y el trala-trala-trálala ritma en tu viejo corazón. Estampas, luces, musiquillas, misterios de los reservados donde entrarán a hurtadillas los marineros alucinados. Y fiesta, fiesta casi idiota 275 y tragicómica y grotesca. Pero otra esperanza remota de vida miliunanochesca... Cien lucecitas. Maravilla de reflejos funambulescos ¡Qué lindo es ir a ver la mujer la mujer más gorda del mundo! Entrar con un miedo profundo pensando en la giganta de Baudelaire... Nos engañaremos, no hay duda, si desnuda nunca muy desnuda, si barbuda nunca muy barbuda será la mujer Pero ese momento de miedo profundo... ¡Qué lindo es ir a ver la mujer, la mujer más gorda del mundo! Y no se inmute, amigo, la vida es dura, con la filosofía poco se goza. Si quiere ver la vida color de rosa. Eche veinte centavos en la ranura. “Música de los puertos” Música de los puertos siempre igual y distinta. Banderas con iguales colores para todos los ojos iguales y distintos. Proa de la esperanza. Jugo de nostalgia. Enamorada de todos los caminos. Mujer. Entregadiza y sabia. Te estiras a lo largo de los muelles o entras en los recovecos de las almas. Inclinas tu cansancio en las tabernas o te cuelgas de las ventanas huérfanas de pedazos de cielo en la desesperanza. Música de los puertos siempre igual y distinta. Políglota. Tus velas se izaron a los vientos más extraños. Patio sonoro, evocador y bueno para los hombres que no saben patios. 276 No tienes ni cabellos ni manos. Eres sonido nada más. Entras despacio, convincente. Avivas el fuego de una pipa y desarrugas una frente. Música de los puertos. Muchas y una. Pirata que te robas los espíritus y los llevas de un muelle hacia otro muelle. Faro invisible y guiador de oídos. Rompes un ademán o apagas un cuchillo, o transformas una blasfemia en padre-nuestro. Ya vengas tormentosa y lúgubre o ya pierdas tu tono siniestro. ‘‘Adiós a Buenos Aires’’ ¡Adiós, Buenos Aires! Por que te quiero tanto me voy por los caminos para envolver recuerdos en la cinta hiladora de la soledad. Supe encontrar tus ríos de silencio pero tropiezo siempre con tus Niágaras de bullicio. Y supe andar sintiéndome, creándome un Buenos Aires dentro de mí mismo. En la boca, cafés de camareras. Frivolidad amena por Florida y en las pistas livianas de tus patios guitarras encendidas. Historias en el mundo más anciano de tus calles- y la emoción de hierro de tus puentes, tus grúas y tus tráficos y en los poemas de tus rascacielos… Allá una fiesta en torno de la lámparaaquí un Hotel “Las Palmas” siniestro revuelo de murciélagos de calma. Y más allá una novia rezando su rosario de soledades en el rincón de un pueblo, pueblo con una luna grande, con una luna grande en los cabellos. Luna Park- puñetazos que se rompen en las cornetas radiotelefónicasy la vulgaridad grasienta y fofa de tus pobres burgueses extranjeros. 277 Y a pesar de tartufos y cretinos, el río allá, - ¡magnífico de olas! Maipú Pigall – pintura en los espíritus y pose hasta en las almas… pero un color, mucho color subido y Alsina y Maldonado y las Barracas en un temblor de tangos compadritos Y allá, el río magnífico. Y el silencio dormido de tus calles más solas. Y esas cuatro mujeres y esas cuatro pensiones (y esos recuerdos locos de mi infancia vestidos de tambores que suenan siempre al borde de mi alma). Y un narguilo en el turbio rincón de un café turco Y un narquile en el turbio rincón de un café turco Las paredes de un año que dejó entrar el frío por los cuatro costados por los cuatro puntos cardinales del vicio: lo bello, lo sublime, lo ridículo y lo sombrío. (Posada de la Desolación: dos hombres que llevaban la mano a las narices, abufandados de desconfianzay un polvo amargo como la desgracia… Luego, una ausencia de maravedises con una ausencia de esperanza. Yo ya recuperé mis entusiasmos en la tienda del sol. ¡Adiós Buenos Aires! Me voy a las montañas de los guías y a los llanos de los rastreadores para volver con guías en el alma y rastreadores en el corazón. “Poetango de la belle époque” La noche de la razzia los herreros cantaban y quedaron después de la tormenta súbita la sombra vigilante del árbol esquinero y el silencio insolente del arrabal herido. … Sin embargo, Raúl, ¿no te acordás? tenía su encanto, eh, la belle époque, mirada desde el ángulo de nuestra adolescencia implacable y ansiosa. Por sobre los exilios y las muertes, los gobiernos volteados y el último tranvía 278 que dobló hacia la vaga estación del ocaso veo ahora en la gris esfumatura de la distancia, que es el tiempo, el íntimo esplendor de la Vuelta de Rocha con su perfil de patio, con su siempre domingo. La tarima del trío musicante en Barracas palpitando en el ritmo grave y cordial de un tango y ese Bar y Billares saliendo a la vereda donde una vez Aieta sacó viruta al fueye junto al cine Buen Orden cuyo antiguo esqueleto cayó luego de haber proyectado en su sábana la última película del hondo cine mudo. Y reflejada en otra pantalla, en la memoria, pasa ahora la insomne y extraña singladura del Paseo de Julio con su ángel y sus monstruos. Los vidrios de colores del bailetín insólito con su pianola henchida de cálidas mazurkas y el pop-art inefable de los muñecos móviles y los juegos lumínicos vibrando en el inverosímil Salón de Novedades -donde nació el surrealismocon su violín de lata y el barco en la botella que amamos para siempre. Y la noche soltando su empecinado grillo por la gran selva de cemento. La buseca del Chanta y el vendedor de globos. Buenos Aires, yo amo tu aire impuro y puro que inspiró largamente mi verso impuro y puro a la luz de la estrella del bosque de ladrillo. Te caminé, te olí, te bebí, te canté: dejada la bohemia, su lado oscuro y áspero, nunca olvidé al bohemio ni al francotirador que vigila en mi sangre. En las cosas que nombro está la poesía y aún crece en mi duende tu aventura y se asoma a mis ojos reflejando al destino de esa magia plural de ciudades que forman el país argentino, imán de las bitácoras, en cuyo azul transfondo transcurre la esperanza. Y ese perfil de niebla de ciudades que anduve -laboriosas, angélicas o canallas y absurdasy el resplandor de las belles époques en los mapas sutiles de soñados países que me están esperando en el futuro. “Motivo para una cajita de música” 279 En otoño, las calles, en el barrio, se tiñen de una especial atmósfera, de silencio con alas. Casi con el aroma de un estío apenas olvidado. Son calles como sueños pero despiertas, lúcidas. Soñar es estar vivo. Siempre amaré estas calles, con su color de pueblo, cuna de la esperanza, camino del recuerdo. Sus tendidos crepúsculos y sus mañanas altas me dieron el fervor. Yo les devuelvo sueños. El poema es sueño. En otoño, las calles… En otoño, las calles melancólicas, sueñan que viven porque saben que saben porque sueñan. “Las viejas catedrales” Amo las viejas catedrales. En las cuchilladas de sus troneras adivino a la Edad Media fusilando al mundo. Amo la música helada de sus vitraux y el olor a sagradas vestiduras bajo las arcadas que en la noche son curiosa asamblea de ángeles y murciélagos. Los recintos azules poblados por el aliento de una época cuando los hombres aún no habían conquistado a Dios. Y el corazón de cera de sus vírgenes y las mutiladas Imágenes y el olor húmedo de las santerías, encrucijada de sombras que antes fueron realidad en la tierra y anunciaron la peste, la muerte, el hambre y la guerra. Amo las viejas catedrales inmóviles, definitivas, sonoras, clavadas en el verde corazón de la Europa. Esos trasatlánticos de Dios, tan viajeros, que son amados de los pájaros y contra cuyos muros discurren al sol los mendigos y los ciegos. A Nôtre Dame de París venían las palomas y los juglares y una ciudad nació bajo su sombra fresca. La Sainte Chapelle presenció duelos de ángeles; he ahí los cristales que nos hablan del color de su 280 sangre. Más allá, en un país de bebedores de sidra hace tiempo que la bella durmiente – del cieloaguarda a que un nuevo fervor la despierte: he dicho Chartres. Amo las viejas catedrales. Son del tiempo de los enanitos, de los trasgos y de los gnomos y de los alquimistas de pesados grimorios. Y del Papa de los Locos. Fueron la otra taberna en la vida de Utrillo. Las inscripciones de sus tumbas hicieron la poesía. Los colores de sus vitraux hicieron la música. Las historias de sus santos prepararon las revoluciones y sus intrigas fueron largo tiempo adorno del mundo. Hoy, yo adoro el olor de sus túneles, los secretos de sus tabernáculos, las figuras de sus hornacinas, sus vidrios de losanges y la atrevida imaginería de sus pórticos y sus sagrarios Oh, viejas catedrales, inmóviles, definitivas, sonoras, Clavadas en el verde corazón de la Europa. ¡Oh, Transatlánticos! “Poema del Boulevard Saint Michel” El viejo Bul Mich, la calle del mundo. ¿Ustedes conocen sus ventanas grises, sus fanfarrias, su alegría de colegial en libertad, sus muchachas, el Hotel Daciá, donde vive mi amigo Daniel Schweitzer, el Luxemburgo y el Cabaret des Noctambules? El viejo Bul Mich de los antiguos puesteros y los boliches de estudiantes y de pintores descamisados. Encrucijada de hondas librerías y tugurios exóticos, de canallas rincones en donde soñaron y bebieron veinte poetas, ya olvidados y fanfarrones lansquenettes. Hoy tras el paredón de Père Lachaise descansa aquella gente miserable y sutil, traviesa y errante. Oscar Wilde, con su corona seca de letras doradas que dicen: “A mi inquilino” se acuerda, se acuerda de cuando atravesaba rumbo a la Closerie del Lilas el viejo Bul Mich, al que tal vez yo no vuelva jamás. Yo, de quien dirán: Otro poeta ya olvidado y que en él me interné alucinado volviendo de los muelles con cuatro libros raros y una espesa borrachera conseguida en el turbio rumor de los mercados. Recodo de los gitanos. Puerto embanderado de canciones de todas las lenguas 281 y de todas las voces. Circo del arte, feria de la cultura humana, camino a Montparnasse. Un buen recuerdo, camaradas, lo vale. Esse viejo Bul Mich de madrugadas altas, de mujeres que nos amaron por amor, mujeres sin mañana y sin ayer, usadas por todos como los espejos y las palabras. Ese viejo Bul Mich de quien dirán: Una calle, ya olvidada. Porque las calles, igual que los hombres, caminan un trecho por el mundo y pasan. “La calle del Paso de la Mula” La mosca cautiva bajo la campana de vidrio y el niño que juega porque el sol es bondadoso. Fíjate cómo igual que hoy, igual que ayer, igual que mañana, nuestro vecino pasa, recoge su botella de leche, arroja al suelo el boleto del subterráneo y sacando el reloj penetra a la casa, a su vida de todos los días, igual que ayer, igual que mañana, igual que siempre. Sólo los puentes, esas piedras cargadas de secretos, seguirán por los siglos sobre el río pensativo del tiempo. Nosotros nos quejamos de morirnos tan pronto. Vivimos ya una muerte piadosa, tanto que hasta esperamos morirnos una tarde. La esquina adonde van a acostarse los ómnibus. Un hombre que pregunta una dirección vaga. Un muchacho que entra silbando al mingitorio. El afiche del jabón Cadum, ¿sabes? - el niño que posó tiene ahora cincuenta y dos años y Toribio, Toribio Sánchez que nos hizo reír allá abajo, se emborracha con él todas las noches. Nuestro vecino se levantará con el alba y nosotros, nosotros estaremos aún desvelados leyendo cuatro cosas, hablando cuatro cosas, solos, solos, en la íntima isla de los abrazos. Somos jóvenes y viviremos en otra calle, en otra ciudad. Fíjate, todos los paisajes nos hacen pequeños. Estarán allí siempre. La esquina adonde van a acostarse los ómnibus. Los puentes. El afiche del jabón Cadum. La mosca cautiva bajo la campana de vidrio y el niño que juega porque el sol es bondadoso. Vino y licores. Comisarías. Ostras Claires y Portuguesas. El colchonero. 282 La Libertaria” Estaba toda manchada de sangre, estaba toda matando a los guardias, estaba toda manchada de barro, estaba toda manchada de cielo, estaba toda manchada de España. Ven catalán jornalero a su entierro, ven campesino andaluz a su entierro, ven a su entierro yuntero extremeño, ven a su entierro pescador gallego, ven leñador vizcaíno a su entierro, ven labrador castellano a su entierro, no dejéis solo al minero asturiano. Ven, porque estaba manchada de España, ven, porque era la novia de Octubre, ven, porque era la rosa de Octubre, ven, porque era la novia de España. No dejéis sola su tumba del campo donde se mezcla el carbón y la sangre, florezca siempre la flor de su sangre sobre su cuerpo vestido de rojo, no dejéis sola su tumba del aire. Cuando desfilan los guardias de asalto, cuando el obispo revista las tropas, cuando el verdugo tortura al minero, ella, agitando su túnica roja, quiere salir de la tumba del viento, quiere salir y llamaros hermanos y renovaros valor y esperanza y recordaros la fecha de Octubre cuando caían las frutas de acero y estaba toda manchada de España y estaba toda la novia de Octubre y estaba toda la rosa de Octubre y estaba toda la novia de España. “Cuidado, que viene el Tercio” La Legión ha entrado a España. Hombre, cuida tu mujer, obrero, guarda tu casa. Mira que vienen los lobos con el desierto en el alma. 283 Pobre colono, defiende tu finca, la hipotecada, que no te van a dejar ni verdura ni majada. La Legión ha entrado a España. Cierra, pequeño burgués tu tienda de renta flaca. Guarda tu novia, muchacho, de la hez condecorada. Prostituta, ten cuidado que no te invadan la casa los rufianes de la arena que pegan, pero no pagan. La Legión ha entrado a España. Cura, cuida tu sobrina y el tesoro de tu arca. Tahur, ándate a los puertos que para fulleros basta. Bodeguero, tus corambres esconde en la cueva vasta que ya vienen los que traen el desierto en la garganta. La Legión ha entrado a España. Que ya vienen galopando sobre la angustia de España, asesinando palomas y fusilando cigarras, que ya vienen galopando sobre la angustia de España los soldados enemigos de la dignidad humana. La Legión ha entrado a España. “Domingo Ferreiro” Toca la gaita Domingo Ferreiro toca la gaita... «¡Non queiro, non queiro!» Porque están llenas de sangre las rías, porque no quiero, no quiero, no quiero. Y se secaron los ramos floridos que ella traía en la falda del viento, 284 que ella traía a su novio soldado o pescador, labrador, marinero. Sobre Galicia ha caído la peste, ay, los oscuros sargentos vinieron. Están colgando en los pinos los hombres, toca la gaita, no quiero, no quiero. Nuestros hermanos que están allá abajo pronto vendrán a vengar a los muertos, pronto vendrán en mitad del verano, pronto vendrán en mitad del invierno. El que no ha muerto andará por el monte y en las aldeas cayeron los buenos. Ay, que no vayan los lobos al monte, toca la gaita, no quiero, no quiero. Ya llegarán las valientes milicias para acabar con la hez del desierto. Ya llegarán en mitad de la Historia, ya llegarán en mitad de los tiempos. Toca la gaita... ¡que baile el obispo! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque no es hora de fiesta en España, porque no quiero, no quiero, no quiero. Ya llegarán los soldados leales para acabar con los pájaros negros, ya llegarán en mitad de la Biblia, ya llegarán en mitad de los muertos. Toca la gaita. ¡Que baile la víbora! Toca la gaita, no quiero, no quiero. Porque la gaita no quiere que toque. Porque se ha muerto Domingo Ferreiro. “Juancito Caminador” Traigo la palabra y el sueño, la realidad y el juego de lo inconsciente, lo cual quiere decir que yo trabajo con toda la realidad y si hay alguna persona que quiere saber lo que me ha ocurrido ya se puede ir enterando. Vamos a girar, por ejemplo, alrededor de La Rioja y de esos rostros y esos paisajes que giraron a mi alrededor hace algunos años y que hoy se prolongan en la muerte de tantas 285 fotografías perdidas. Me había ocurrido el nacer y el vagabundear adolescente -cuando era chico miraba llover y me gustaban los agrios dulces -cuando era adolescente me gustaban la cocaína y Victor Hugo y cuando de pronto me vi corriendo delante de la muerte -estaba trémulo, solo en la soledad de los Llanosla vida me pareció tremendamente deliciosa y tremendamente, verdaderamente perigosa. Me dijeron: “Octavio Portela se murió” y entonces pensé: ¿Es que uno puede morirse? Infiel no fui con el amigo querido. Juro que le rendí el mejor de los homenajes. Cuando él murió yo sentí un gusto inmenso de la vida y dije: -Voy a vivir también por lo que le quedaba de vivir. Nunca conocí el arrepentimiento feroz aunque no quise verlo muerto. Me parecía imposible que alguien se muriera mientras yo, ah, mientras Juancito Caminador amaba las muchachas del verano, los vinos ácidos, los versos de Rimbaud, las bombas, las orejas de las mujeres tuberculosas, los expresos y los ventiladores enloquecidos en los ángulos de las amuebladas. Recuerdo que él estaba asomado a una ventana del Hospital y en el fondo velaban a la chica muerta del día y él decía: “Qué olor tienen los caballos placeros” y el florero estaba vacío sobre la pila de libros vacíos porque ya habíamos releído los libros y estábamos llenos de las ideas de los libros. Yo tenía nostalgia de cosas que iban a sucederme y pensaba: ¿Qué estará haciendo ahora la Reina de Rumania? ¡Después la conocí saliendo de un hotel de lujo en el corazón rencoroso de Europa! Y después anduve sobre los aeroplanos y me metí en estaciones absurdas, escondidas, con vagos aromas de aserraderos y destilerías. Me gustaba contar: “El día 14 de febrero el señor (aquí un nombre) penetró a la casa señalada con el número 1-7-7-4 y fue ladrado por un perro sin cabeza”. La primera vez que robé un libro, esa otra en que fui preso por dormir en un hotel de vagos y ladrones o simplemente, la vez que enamoré a la hija de un guardabarrera, ¡una hija de la distancia, del camino, del horizonte desconocido! Solía frecuentar las obras en construcción, borracho, y recuerdo que una vez 286 Arturo Santillán me dijo: “Por pasar por abajo nos vamos a quedar solteros”. Y yo tenía dos queridas y una cajetilla de marfil llena de opio. ¡Todos los relojes enloquecieron de pronto! ¡Todas las marionetas lloraron en los organitos! ¡Todos los almanaques rodaron degollados sobre las mesas de las oficinas! ¡Todos los miembros de la Liga de las Naciones fallecieron de pulmonía! Y mi corazón continúa alegre y violento como el corazón alborotado de un mundo nuevo. “Canción para vagabundos” (Que compuso Juancito Caminador) Salud a la cofradía trotacalle y trotamundo. Todo nos falta en el mundo, todo, menos la alegría. Y viva la santa unión de Sin-ropas y Sin-tierras; todo nos falta en la tierra, todo,menos la ilusión. Corto sueño y larga andanza en constante despedida; todo nos falta en la vida, todo, menos la esperanza. Amigos de las botellas pero poco del trabajo; todo nos falta aquí abajo, todo, menos las estrellas. Inofensiva locura, sinrazón de vagabundo; todo nos falta en el mundo, todo, menos sepultura. Prosigamos, si Dios quiere, nuestro camino sin dios, pues siempre se dice adiós y una sola vez se muere. “Canción que compuso Juancito Caminador para la supuesta muerte de Juancito Caminador” 287 Juancito Caminador... Murió en un lejano puerto el prestidigitador. Poca cosa deja el muerto. Terminada su función -canción, paloma y barajatodo cabe en una caja. Todo, menos la canción. Pónle luto a la pianola, al conejito, a la estrella, al barquito, a la botella, al botellón, a la bola. Música de barracón -canción, baraja y palomaflor de trapo sin aroma. Todo, menos la canción. Pónle luto a la veleta, al gallo, al reloj de cuco, al fonógrafo, al trabuco, al vaso y a la carpeta. Su prestidigitación -canción, paloma y barajael tiempo humilla y ultraja. Todo, menos la canción. Mucha muerte a poca vida. ¡Que lo entierre de una vez la Reina del Ajedrez y un poeta lo despida! Truco mágico, ilusión, -canción, baraja y palomaque todo en broma se toma. Todo, menos la canción. “El poeta murió al amanecer” Sin un céntimo, solo, tal como vino ao mundo, murió al fin, en la plaza, frente a la inquieta feria. Velaron el cadáver del dulce vagabundo dos musas, la esperanza y la miseria. Fue un poeta completo de su vida y su obra. Escribió versos casi celestes, casi mágicos, 288 de invención verdadera, y como hombre de su tiempo que era, tambiém ardientes cantos y poemas civiles de esquinas y banderas. Algunos, los más viejos, lo negaron de entrada. Algunos, los más jóvenes, lo negaron después. Hoy irán a su intierro cuatro buenos amigos, los parroquianos del café, los artistas del circo ambulante, unos cuantos obreros, un antiguo editor, una hermosa mujer, y mañana, mañana, florecerá la tierra que caiga sobre él. Deja muy pocas cosas, libros, un Heine, un Whitman, un Quevedo, un Darío, un Rimbaud, un Baudelaire, un Schiller, un Bertrand, un Bécquer, un Machado, versos de un ser querido que se fue antes que él, muchas cuentas impagas, un mapa, una veleta y una antigua fragata dentro dentro de una botella. Los que le vieron dicen que murió como un niño. Para él fue la muerte como el último asombro. Tenía una estrella muerta sobre el pecho vencido, y un pájaro en el hombro. 289 CAPAS DAS PRIMEIRAS EDIÇÕES DE SEUS LIVROS EM ORDEM CRONOLÓGICA, EXCETO DO SEU QUINTO LIVRO Todos Bailan. Poemas de Juancito Caminador 1ª antologia 2ª antologia 290 3ª antologia 4ª antologia Dedicatória a seu sobrinho do livro Hay Alguien que está esperando. Como se pode observar, neste livro, González Tuñón assina a dedicatória também como Juancito Caminador 291