A CULPA É DE QUEM? Shirley Sena Martins1 “Não sei perder minha vida. Não sei qual a minha culpa, mas peço perdão. A luz do farol revelou-os tão rapidamente que não puderam ver. Peço perdão por não ser uma “estrela” ou o “mar” ou por não ser alegre, mas coisa que se dá. Peço perdão por não saber me dar nem a mim mesmo. Para me dar desse modo, daria a minha vida se fosse preciso, mas peço de novo perdão, não sei perder minha vida”. Clarice Lispector Este trabalho busca correlacionar o conceito de culpa com o atendimento psicoterápico de uma cliente na Clínica de Psicologia Newton Paiva. A cliente Isabela, nome fictício adotado para preservar a identidade da paciente, chega à clínica dizendo que, desde que sua mãe adoeceu e perdeu todos os movimentos, ela cuida da mesma, e isso aconteceu assim que concluiu o curso de Ciências Contábeis. Ela tem 30 anos, não exerce nenhuma profissão remunerada, namora há sete anos e tem dois irmãos, que trabalham e não se envolvem, como Isabela, com a doença da mãe. Seu pai é aposentado, mas realiza trabalhos extras como corretor. Isabela conta que sua mãe era professora do Estado e que, em sua casa, sempre houve discussões entre os filhos com a mãe (era impaciente e reclamava de seu trabalho), numa dessas discussões, em que a paciente altera o tom de voz com sua mãe, ouve dela, em prantos, que “meu Deus tira minha voz, já que não posso nem falar.” Neste mesmo período, ela descobriu uma doença degenerativa que iria paralisá-la como um todo, inclusive deixar sem voz. Assim, Isabela volta-se para os cuidados com sua mãe, mas sempre escutando de seus irmãos que “você está pagando por tudo que fez com a mamãe”. Ou “você fica aí à toa e nós trabalhando para lhe manter”. Diante desses discursos, a paciente inicia um conflito interno, questionando-se sobre a culpa que os irmãos sempre afirmam que ela tem, e, por não conseguir se separar dessa relação dual, que se estabeleceu com sua mãe. Junto com a doença, Isabela começou a se dedicar a concursos públicos, por acreditar que isso lhe daria um bom retorno financeiro e uma segurança quanto ao desemprego, mas isso se arrasta há sete anos e ela nem se quer imagina ter que mudar de cidade caso passe num concurso. Numa das sessões, ela reflete sobre esse tempo que dedica ao concurso e percebe que, na verdade, ela não que abandonar sua mãe. Além disso, o namorado a pede em noivado e, com muito medo e culpa por achar que sua família irá ser contra, resolve aceitar, mas, para sua surpresa, seus familiares e, inclusive sua mãe, ficam contentes pela sábia decisão. Após esse noivado, seu comportamento muda nas sessões, chegando até a esquecer de ir, o que nunca havia ocorrido, pois agora a possibilidade de deixar a mãe e ter que escolher a deixa atordoada. Na perspectiva fenomenológica existencial, o ser humano deve ser compreendido diferentemente dos outros seres, assim Heidegger2 criou um termo para designar o caráter específico e distinto da existência humana, o Dasein, que é o homem compreendido como o ser-existindo-aí, sempre com uma possibilidade. Mas o Dasein só é constituído na relação de ser-com-os-outros (humanos). (SODELLI, 2006) Dasein está predestinado a morrer, é o único que convive com o seu-ser-para-a-morte e é livre para escolher viver ou morrer. Por ser uma condição ontológica, surgem dois sentimentos inerentes ao Dasein: a angústia e a culpa. A culpa não está relacionada às proibições ou tabus culturais, mas, fundamentalmente, à consciência de que o ser do Dasein está sempre em jogo. Consciência deve ser entendida aqui como o “saber junto - com”, quer dizer, o Dasein é convocado por ele mesmo a dar conta do seu ser (existir). Conhecer esta tarefa é ter consciência do apelo do ser, do estar-aí-no-mundo (SODELLI, 2006, p.2). Boss (1988) considera a culpa a principal motivação humana. Culpa em alemão é schuld, que deriva de sculd, que significa aquilo que carece e falta, “é realmente algo sempre e perpetuamente falta na vida do ser humano” (BOSS, 1988, p.31) e sua essência só será compreendida na realização da existência humana. Para May (1958b, p.76), “a culpa é a condição da pessoa que renega essas potencialidades e renuncia a realidade. Quer dizer que a culpa é uma característica ontológica da existência humana” Descreve algumas das características da culpa ontológica: na medida em que todos nós nunca desenvolvemos plenaRevista de Psicologia - Edição 1 l 119 mente nossas potencialidades e, conseqüentemente, deformamos em certo grau a realidade, é uma condição que, de um modo ou de outro, afeta qualquer pessoa origina-se na própria consciência ou, dito de outra maneira, do fato de vermo-nos como pessoas capazes de escolher ou nos omitirmos. Neste sentido, não provém de proibições ambientais ou da introjeção de normas e hábitos culturais; portanto, a culpa ontológica difere da culpa neurótica ou mórbida, mas, se não for aceita ou se for recalcada, pode degenerar em culpa neurótica. (MAY, 1958b, p. 76) De acordo com o dicionário wikipedia, culpa é a responsabilidade dada para uma pessoa por um ato que provocou. Já o sentimento de culpa se refere à reavaliação de um comportamento passado, causando alguma dor. Na abordagem fenomenológica existencial, o ser está lançado no mundo, o que implica em um sofrimento, assim, a culpa pertence ao ser, ou seja, é ontológica, e se mostra no momento em que questiona suas possibilidades diante de suas escolhas, podendo se tornar patológica quando não é assumida. Durante as sessões, Isabela relata, “quando meus irmãos me dizem que sou culpada pela doença de mamãe, me sinto mal, pois penso que realmente sou.” O ser humano se manifesta de acordo com o que o mundo precisa, sendo que este deixar-se-necessitar é aquilo que há de ser, o que faz com que o sentimento de culpa se fundamente neste ficar-a-dever, sendo essencialmente culpado. (BOSS, 1988). Isabela, a todo o momento, justifica suas ações perante o outro, numa dívida eterna com a doença de sua mãe. Boss (1988) acredita que em um tratamento psicoterápico, a pessoa pode transcender, despertando, assim, para novas possibilidades ou se fechar diante das reivindicações que vêm a seu encontro. Mas se ele assume livremente seu estar - culpado diante das possibilidades vitais dadas a ele, se ele se decide, neste sentido, a um ter-consciência e um deixar-se-usar adequado, então ele não mais experimenta o estar-culpado essencial da existência humana como uma carga e uma opressão de culpa. (BOSS, 1988, p.40). Esse sentimento de culpa, que Isabela traz nas sessões, mostra o quanto é angustiante existir, saber que somos livres para realizarmos nossas escolhas, e que o fato de não escolhermos nada já se torna uma escolha, o que, a principio, é a atitude que ela tem diante das suas possibilidades como um ser- no- mundo. 120 l Revista de Psicologia - Edição 1 REFERÊNCIAS BOSS, Medard. Angústia, culpa e libertação: ensaios de psicanálise existencial. 4. ed. São Paulo: Duas cidades, 1988. 77 p. Dicionário virtual. Disponível em:< pt.wikipedia.org/wiki/Culpa (sentimento)>. Acesso em: 19 out. 2008. May, R., Angel, E. & Ellenberger, H.F(eds). Contribuiciones de la psicoterapia existencial. In: Existencia: Nueva dimensión en psiquiatria y psicología. Madri: Gredos, 1958b. P. 58-122. Disponível em: <http://www.psicoexistencial.com.br/web/detalhes.asp?cod_menu=108&cod_tbl_texto=1975> Acesso em: SODELLI, M. A abordagem proibicionista em desconstrução: compreensão fenomenológica existencial do uso de drogas. Disponível em: <http://www. abrasco.org.br/cienciaesaudecoletiva/artigos/artigo_int.php?id_artigo=1193.> Acesso em: 19 out. 2008. NOTAS DE RODAPÉ 1 Aluna do curso de Psicologia do Centro Universitário Newton Paiva do estágio supervisionado pela professora Raquel Neto. 2 HEIDEGGER, M. Ser e o Tempo. 4ª edição. Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1993.