“As Fronteiras da Dor”
Maria Manuela Assunção Moreno
Resumo:
A partir de um caso clínico atendido no CRAVI (Centro de Referência e Apoio a Vítimas de Crimes
Fatais do Estado de São Paulo), o presente trabalho constitui uma tentativa de compreensão
psicanalítica do conceito de dor em sua relação com o de trauma e de compulsão a repetição. O
texto toma como referência o “Projeto para uma Psicologia Científica” de Freud para pensar o
fenômeno da dor, ao lado da experiência de satisfação, como experiência fundante do psiquismo,
podendo ser considerado como primeira metáfora de instauração do inconsciente, fazendo surgir e
funcionar o eu através do pensamento.
AS FRONTEIRAS DA DOR
Maria Manuela Assunção Moreno
“Todo mundo é capaz de suportar uma dor,
com exceção de quem a sente.”
William Shakespeare
Este trabalho apresentado no ano passado constitui uma primeira aproximação do conceito de dor
para a teoria psicanalítica. Trata-se antes de mais nada de um estudo e assim se apresenta em sua
forma. O interesse pelo tema surgiu a partir do estudo realizado neste seminário do texto de Freud
“Projeto para uma Psicologia Científica” de 1895 e das questões provenientes do meu trabalho com
sujeitos que vivenciaram a perda de um familiar de forma violenta ou foram expostos diretamente à
violência urbana, realizado no CRAVI (Centro de Referência e Apoio às Vítimas- Programa da
Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania de São Paulo).
É possível dizer que o fenômeno da dor, embora não tenha sido muito explorado sob a luz da
psicanálise, uma vez que não aparece nos dicionários específicos, constitui ao lado da experiência
de satisfação, uma experiência fundante do psiquismo humano.
Apesar de muitos autores pós-freudianos considerarem o texto “Projeto para uma Psicologia
Científica” como pré-psicanalítico e o próprio autor tê-lo desprezado, só vindo a ser publicado
contra a sua vontade em 1950, após sua morte, nele se pode encontrar as bases para
conceitualizações psicanalíticas posteriores. Freud forja, neste texto, um modelo de aparelho
psíquico baseado na memória e nos processos quantitativos, buscando conferir ao psiquismo uma
concretude em torno de partículas materiais (os neurônios) que lhe asseguraria, na época, sua
cientificidade.
O interesse na descrição quantitativa dos fenômenos psíquicos surge em Freud a partir de suas
observações clínicas de pacientes histéricos e obsessivos. Segundo Garcia-Roza (2001), Freud
levanta a hipótese de uma proporcionalidade entre a intensidade dos traumas e a intensidade dos
sintomas por eles produzidos. Freud percebeu, então, uma tendência do psiquismo humano a se
desfazer de idéias excessivamente intensas através de processos como a conversão, descarga,
substituição entre outros. Esta tendência será chamada de princípio da inércia nervosa, que se
constitui como a primeira lei fundamental do aparelho psíquico. O primeiro modelo adotado por
Freud é o do arco reflexo em que os neurônios são divididos em motores e sensoriais e buscam se
livrar dos estímulos. Porém, este modelo de fuga do estímulo não dá conta da estimulação vinda do
interior do organismo que necessita de uma alteração do mundo externo através da assim chamada
ação específica. Para realizá-la deve existir um acúmulo de energia, que se dá através de neurônios
investidos, ou ligados, que ofereça uma resistência à tendência primária de descarga e possa
postergá-la, possibilitando assim a ação específica. Partindo do princípio da inércia nervosa, própria
do funcionamento primário, Freud formula o princípio de constância nervosa, em que certa
quantidade de energia deve ser retida, ou melhor, ligada para possibilitar o processo chamado de
secundário.
Segundo Freud: “..., a memória de uma experiência (isto é, a força persistente atuante) depende de
um fator que se pode qualificar como a magnitude da impressão e, também, da freqüência com que
a mesma se repete.”
À medida que a excitação consegue romper a barreira de contato, mantida através de uma
quantidade constante nos neurônios y , cria-se uma facilitação, ou uma marca que deixa uma
espécie de trilhamento mais permeável à passagem de novas excitações. A memória constitui-se
pela existência de diferenças nas facilitações entre neurônios, uma vez que a energia tende a
percorrer as vias preferenciais já percorridas. O conceito de Bahnung , como cadeia com percursos
facilitados diferenciados, constitui a primeira metáfora da violação que nos remete à
conceitualização da experiência de dor. Segundo Derrida, “não há Bahnung sem um começo de
dor.”
Para Freud, “a dor consiste na irrupção de grandes Qs em y .”, afirmação que vai ser sustentada em
textos posteriores, já considerados psicanalíticos em si, como Além do Princípio do Prazer e em
Inibição, Sintoma e Angústia. Os mecanismos de proteção psíquicos não conseguem fazer
resistência à invasão de uma ordem tão elevada de Q, que é sentida como desprazer pela
consciência. Para o autor, além do aumento da quantidade, outro fator pode ser responsável pela
experiência de dor, a interrupção da continuidade constituinte do ritmo psíquico, quando a
quantidade externa é mínima. A dor, ao romper por completo as resistências oferecidas pelas
barreiras de contato, cria facilitações permanentes desdiferenciadas. Além disso a dor produz uma
facilitação entre uma propensão à descarga e uma imagem mnêmica do objeto que a acentua. A
imagem mnêmica do objeto hostil, ao ser re-investida produz um estado de desprazer, chamado de
afeto.
Diferentemente do que ocorre na experiência de satisfação, a vivência de dor é desestruturante,
desorganiza o aparelho psíquico ao desdiferenciar as Bahnungen estabelecidas, ou seja as
associações. Na experiência de satisfação uma facilitação é estabelecida entre duas imagenslembrança, a do objeto de satisfação e a da descarga através da ação específica. Frente a um estado
de necessidade libera-se uma descarga motora que produz uma alteração interna no sujeito, levando
o bebê ao choro ou a uma agitação motora, que, no entanto, não alivia a tensão. Deve ocorrer a
eliminação do estado de estimulação externa que só pode se dar através de uma ação específica no
mundo exterior, que não é alcançada pelo organismo despreparado do bebê. Então este choro
funciona como uma demanda para que um organismo mais preparado realize a ação pelo bebê, o
que o introduz no registro da comunicação, ou melhor, na ordem simbólica. A eliminação da tensão
através da ação específica realizada por um outro promove a vivência de satisfação. Estabelece-se,
então uma associação entre a ação específica e a diminuição da tensão.
Os resíduos das experiências de dor e de satisfação são os afetos e os estados de desejo,
respectivamente. Ambos acarretam um aumento da tensão em y , que se dá no caso do desejo por
somação, produzindo uma atração positiva pelo objeto desejado e no caso do afeto por liberação
súbita, que leva a uma repulsa à imagem mnêmica hostil, que pode ser considerada como modelo de
defesa psíquica. Segundo Freud, ambos os estados deixam atrás de si motivações do tipo
compulsivo em favor da passagem de quantidade em y . Esta afirmação nos leva a pensar na
tendência à repetição do psiquismo humano, tão bem elaborada por Freud em seu texto Recordar,
Repetir e Re-elaborar, tanto em busca do prazer, do re-encontro do objeto de satisfação, como das
situações traumáticas, ou seja das experiências de dor que produzem desprazer.
No estado de desejo, quando o impulso reaparece, as duas imagens-lembrança são re-investidas.
Caso o objeto não esteja presente, ocorre uma alucinação que leva necessariamente à decepção. O
“eu” como organizador psíquico irá inibir, através de catexias colaterais a passagem de Qn e, desta
forma, irá postergar o investimento da imagem-lembrança até receber sinais de realidade, da
percepção do objeto, provindos da descarga na consciência. Desta forma, a inibição do “eu” fornece
um critério de distinção entre percepção e representação re-investida. No caso do re-investimento
do objeto hostil, que causa uma desprazer semelhante àquele vivenciado durante a experiência de
dor, o psiquismo lança mão da defesa primária, ou recalque, que visa a manter a representação
afastada. O psiquismo tende a reproduzir o estado em y que assinalou o fim da dor, ou seja, a
representação imediatamente posterior, realizando uma defesa reflexiva. O “eu” também pode
realizar uma ação inibitória, diminuindo a descarga pelo neurônio-chave associado à representação
hostil.
Poderíamos afirmar que a repulsa causada por uma experiência dolorosa está na base do recalque,
mecanismo de defesa psíquica que retira o ser humano do registro do mecanismo reflexo. A
experiência da dor constitui-se, desta forma, como a primeira metáfora de instauração o
inconsciente e faz surgir e funcionar o “eu”, através do pensamento. O sujeito ao buscar satisfação
de uma necessidade, após uma primeira experiência de satisfação, re-investe a imagem-lembrança e
alucina o objeto. Frente à dor causada pela frustração da alucinação que não é capaz de descarregar
a tensão, o “eu” é obrigado a desinvestir a alucinação do desejo. Daniel Delouya, retomando o
Projeto , nos diz: “A dor obriga então a recorrer às fontes das experiências de satisfação, buscando
nos registros de sua descarga reflexa as imagens próprias de movimento, para encontrar- por meio
da percepção e dos investimentos laterais- alternativas atuais à ação específica de outrora: é este o
pensamento ou a ação do pensar que amplia e expande a experiência, dando estofo ao eu nascente
de cujos contornos notifica a dor.” É possível entender, desta forma, a afirmação de Manoel T.
Berlinck: “o ser humano habita na dor. Não sentir dor coloca o ser humano num radical
desamparo.” A dor representa um limite, uma resposta a uma fratura nos limites orgânicos e
psíquicos que nos remete ao nosso desamparo inicial. Constitui-se assim como a angústia, um sinal,
o primeiro sinal para o psiquismo organizar uma defesa contra a ameaça produzida pela irrupção de
quantidades nocivas à trama psíquica. Nocivas pela possibilidade de criação de facilitações
permanentes que, muitas vezes, desestruturam os traços e associações já estabelecidos, por não
conseguirem se deter nestas e por gerar um contra-investimento paralisante.
A dor apresenta uma íntima relação com o conceito de trauma. Para Freud, o trauma, num primeiro
momento, ocorre em função de um aumento de estímulo, tanto interno quanto externo, que supere a
capacidade de absorção do aparelho. Esta irrupção energética restará desligada de representações.
Primeiro Freud acredita na realidade do trauma, a partir dos relatos de abuso de suas pacientes e só
a partir de 1900, reconhecerá a realidade psíquica e sustentará que o traumático constitui a fantasia
inconsciente. Em sua segunda teoria do trauma, Freud o concebe como resultado de uma segunda
cena, ou representação, que vem conferir à primeira cena, impossibilitada de ser significada quando
vivida (devido ao desamparo humano) uma significação traumática. Freud, em Além do Princípio
do Prazer, afirma a impossibilidade da angústia produzir uma neurose traumática (neurose de
natureza narcísica produzida em situações de guerra, acidentes ou de violência). A neurose
traumática advém do fator de surpresa que captura o sujeito na situação do terror produzido. Este
terror produtor da neurose pode ser amenizado por um dano físico ou uma ferida, que atrai para si
um investimento de energia narcisista, possibilitando talvez a ligação do quantum de excitação
liberado. Neste momento, Freud sem colocar em palavras, fala da possibilidade da dor ativar os
mecanismos de defesa de uma forma diferente da angústia, que realiza uma preparação psíquica
através de um sobreinvestimento.
Além da proteção oferecida pelo dano físico, o aparelho psíquico re-investe repetidamente o
trilhamento permanente deixado pela experiência de dor frente a qualquer aumento de excitação
libidinal, produzindo “pesadelos” e alucinações que o reconduzem à situação traumática, liberando
desprazer semelhante à dor sentida da primeira vez. Resta uma pergunta, por que? Segundo Freud, o
sujeito está fixado psiquicamente ao trauma. No entanto, como explicar esta repetição penosa em
face do princípio do prazer que rege o aparelho psíquico? Freud responde que nesta repetição, tratase de um desejo de prazer de outra índole, ligada à possibilidade de processar psiquicamente algo
desprazeroso. Freud localiza nos sonhos de neuróticos traumáticos, nos sonhos em análise e nos
jogos infantis de separação, não um meio de atingir prazer, ou o cumprimento de desejo, mas uma
compulsão à repetição, um meio de desenvolvimento de angústia e possibilidade de ligação psíquica
da excitação.
Em contraponto à situações traumáticas externas, Freud afirma o caráter traumático das pulsões à
medida que produzem perturbações econômicas comparáveis às das neuroses traumáticas. As
moções pulsionais se encontram sob o registro do processo psíquico primário, ou seja, apresentam
investimento livre. O processo secundário é responsável pela ligação da excitação das pulsões em
inscrições que podem ser significadas. Para Freud, em Além do Princípio do Prazer, o que não pôde
ser inscrito, ou seja, que não pôde ser recalcado como marca mnêmica de uma excitação, sob a
égide do princípio do prazer, tende a retornar compulsivamente através de atuações. As próprias
repetições não contradizem o princípio do prazer, mas se situam para além do princípio do prazer.
De que pulsão falamos? O que seria uma pulsão? Pulsão é um conceito limite entre corpo e psique
para a psicanálise. Consiste em uma força que tem sua fonte em uma excitação corporal. Seu
objetivo é eliminar este estado de tensão, retornando a uma vivência primária de satisfação.
Portanto, Freud nos diz que toda pulsão tem um caráter conservador, visando em última instância
um retorno ao inanimado. Em um primeiro momento da teoria freudiana, as pulsões estavam
divididas em pulsões de auto-conservação, ou pulsões do eu e pulsões sexuais e esta dualidade tinha
papel determinante no conflito psíquico. As pulsões do “eu”, uma vez que só poderiam se satisfazer
através de um objeto externo se tornaram agentes do princípio da realidade e se localizaram em
oposição às sexuais, que poderiam se satisfazer através da fantasia e, portanto, estavam regidas pelo
princípio do prazer. Não é intenção do presente estudo se aprofundar no estudo da evolução do
pensamento pulsional na teoria freudiana, no entanto, esta breve incursão busca as relações entre os
fenômenos clínicos associados à experiência de dor e a teoria pulsional. Neste primeiro momento,
portanto, o sadismo e o ódio se encontravam relacionados com as pulsões do “eu”, no sentido de
serem derivados de sua luta pela conservação e afirmação. Com a introdução do conceito de
narcisismo em 1915, Freud afirma que a libido pode investir tanto um objeto sexual externo como o
próprio “eu”. Mas é a partir da conceitualização do masoquismo primário, não mais como originário
de uma introversão do sadismo, que uma nova dualidade começa a surgir. Esta dualidade é
finalmente conceituada em seu texto Mais Além do Princípio do Prazer , a partir de fenômenos
clínicos como os pesadelos e as neuroses traumáticas que apontavam uma compulsão à repetição e
que clinicamente se apresentavam como uma grande resistência. Freud caracteriza a pulsão de
morte, como a pulsão por excelência, devido ao seu caráter regressivo e repetitivo. As pulsões de
morte se contrapõe às de vida (sexuais + egóicas) uma vez que tendem à redução completa das
tensões, a um retorno ao inanimado. As pulsões de vida tem como meta a construção de ligações, a
conservação da vida e são regidas pelo princípio do prazer. A questão a que princípios econômicos
as diferentes pulsões respondem é controversa.
Por que os sujeitos repetem, então, a experiência dolorosa? Em O Problema Econômico do
Masoquismo , Freud nos remete novamente àquelas questões clínicas, particularmente o
masoquismo, que questionam a função de guardião psíquico do princípio do prazer. Neste
fenômeno, dor e desprazer deixam de ser sinais para constituírem-se como metas psíquicas. Esta
questão problematiza a relação entre o princípio do prazer e as duas pulsões. Neste texto, Freud
defenderá a tese da vinculação entre pulsão de morte e o princípio de Nirvana como tendência do
psiquismo a conduzir a inquietude da vida à estabilidade do inorgânico. No entanto, um aumento de
tensão não necessariamente responde por um sentimento de desprazer. Freud utiliza o exemplo da
excitação sexual para sustentar que o prazer e o desprazer não dependem de um fator quantitativo,
mas sim qualitativo. A partir da pulsão de vida, da libido, o princípio de Nirvana sofre uma
modificação, no ser vivo, em princípio do prazer. Estes princípios se conciliam ainda com uma
outra modificação exigida pela necessária relação com o mundo externo, o princípio de realidade.
Além da coexistência destes três princípios que regem o psiquismo humano, neste texto, Freud ao
se aprofundar no estudo do masoquismo, afirma a existência de um masoquismo originário e chega
à conclusão da impossibilidade de uma assepsia em relação às pulsões. Freud descreve o
masoquismo erógeno, ou prazer em receber dor, como a tentativa da libido em tornar inócua,
dominar a pulsão de morte ao ligar-se através da coexcitação sexual a esta tendência autodestrutiva. Neste caso qual seria a função da dor? Seguindo a tendência da pulsão de vida de
dominar a pulsão de morte, através do processo secundário, a necessidade de dor pode ser entendida
como uma repetição em direção da simbolização daquilo que da pulsão não pode ser significado.
Após esta incursão no pensamento psicanalítico freudiano gostaria de ilustrar a relação da
experiência de dor com a compulsão à repetição através de um exemplo clínico de uma mãe, vítima
indireta de homicídio, atendida no CRAVI (centro de referência e apoio à vítima).
A.e F. perderam sua filha M., de 32 anos, assassinada. M. não voltou do trabalho em uma sextafeira, conforme o hábito. M. não costumava sair nem tinha muitos amigos. A. diz que elas eram
muito amigas e realmente durante o período do atendimento é possível perceber que isto diz de um
vínculo entre mãe e filha bastante especular, em que não existe espaço para a constituição de um
desejo diferente do de A. Desde o desaparecimento, começa sua busca em todos os hospitais, IMLs,
delegacias de polícia e outros órgãos. Somente após um mês, é que a polícia consegue ligar a foto
de M. à de uma mulher que tinha sido encontrada morta, na época do desaparecimento, à beira do
R. Tietê, e que já tinha sido enterrada em vala comum. Indignada com o erro cometido pelo IML,
transtornada pela dor do desaparecimento de uma filha e depois pela notícia de sua morte, A.
procura com seu marido, F., o CRAVI.
Logo no primeiro encontro A. diz: “Deus, a gente não foi feito para perder um filho, é demais,
ninguém está preparado!” As primeiras sessões transcorreram em torno da dúvida de A. em relação
à existência de segredos na vida da filha, será que haveria algo que ela desconhecia a respeito de
sua filha? Falou-se, também, bastante sobre a necessidade de A. de colocar “tudo isso” para fora,
coisa que em casa não era possível, referindo-se ao constante choro e às falas repetitivas durante as
sessões.
O erro cometido pelo IML, pois quando A. e F. foram procurar M., seu corpo já estava lá, porém
não fora reconhecido, também é abordado em sua intrínseca relação com um suposto engano. Será
que não é M. que está enterrada lá? Para a família não houve reconhecimento da morte, apesar de
terem reconhecido o corpo por fotos. A escuta percebe a necessidade de deixar que todas as
hipóteses sejam investidas, desde a desconfiança em relação a um emprego de M. com adictos,
desconhecido para a família até sua morte, a possibilidade de relacionamentos sigilosos, bem como
as diversas lembranças boas que remetem a uma confiança na palavra de M, como parte do
processo de construção de uma imagem diferente de M., que possibilite a separação e a conseqüente
realização do luto. Este luto que esteve desde o início impedido e que coincide com a
impossibilidade de terem visto M. morta.
Concomitantemente a equipe jurídica tentava, através de seus recursos, possibilitar um novo
reconhecimento, que foi negado pelo juiz. No entanto, após dois anos, o juiz autoriza o translado do
corpo para o cemitério da família, o que supostamente ajudaria na concretização simbólica da morte
através de seu ritual, o enterro assistido pela família.
Freud já havia dito que aquilo que pode se tornar conflito retorna na região de apoio da pulsão
parcial em questão, a visão. A. no transcorrer destes anos, muitas vezes, afirmou ver de relance sua
filha pela casa, ou chegando do trabalho pela rua. Pudemos acompanhar na teoria freudiana que o
excesso que não pôde ser representado, faz pressão e retorna, ou na formas de sonhos (pesadelos)
ou em sintomas. Sonho e alucinação se aproximam enquanto fenômenos clínicos já que ambos
resultam de uma afastamento da realidade e da presentificação da realização de um desejo, que tem
sua fonte em pulsões recalcadas ou nunca simbolizadas, em imagens. Formações delirantes podem
surgir em situações de perda, como já afirmou Freud em Luto e Melancolia e se repetem, atuando
tanto como resistência à realidade como possibilidade de reconhecimento e significação desta, uma
vez que, neste caso, são trazidas em análise, para um outro poder ajudar a construir um sentido para
esta experiência tão dolorosa.
Além dos delírios, A. desenvolve uma enxaqueca que muitas vezes a impossibilita de vir às sessões.
Em uma sessão em que aborda o tema, A. diz: “É tanta coisa para a cabeça!” Realmente, a perda de
uma filha, nestas circunstâncias, é um excesso que não consegue ser circunscrito por representação
alguma. Qualquer tentativa de limitar a dor através de palavras é vivida, muitas vezes, como uma
violência que deve ser evitada. No entanto, a dor pulsa e A. retorna ao atendimento
Concluindo com uma citação de Levinás: “A explicação da dor do outro é o início de toda
imoralidade”
Os conceitos psicanalíticos de dor e pulsão ultrapassam a oposição entre psíquico e orgânico. Não
existe uma dor que não envolva simultaneamente estes dois registros. Dor e pulsão dizem respeito a
limites e rupturas. Limites que marcam nosso corpo e nosso desejo, conferindo um lugar para o
humano. Rupturas que nos desorganizam e nos permitem ir além, na busca de uma inscrição, de
uma simbolização. Este resto doloroso, enquanto não encontra um nome para poder ser esquecido,
retorna em estado bruto em pesadelos e delírios, ou em atuações. Faz-se presente a cada associação
insignificante e invade, com suas imagens de dor a cena psíquica. Paraliza-nos e não podemos fugir.
A dor mortal dessubjetiva. No entanto, como o ser humano vive para a morte, sobrevive através da
mescla de pulsões. Sexualizando a dor, transforma-a em motor para a sua busca e nesta busca é
imprescindível o encontro de um outro, que o insira em um código da coletividade, oferecendo
assim um trilho, um andaime para esta construção.
Retomando a citação de Shakespeare, a dor diz respeito a uma subjetividade. Mas sabemos que o
ser humano nasce desamparado, impossibilitado de descarga das tensões corporais que o invadem e
que precisa do outro para se constituir, assujeitando-se ao desejo do outro e obtendo satisfação sob
uma lógica masoquista. É frente ao desamparo inicial, à experiência de perda primordial de uma
completude nunca alcançada, que a dor constitui-se como limite, possibilidade de defesa que remete
o bebê em direção ao objeto através do grito. É na ligação que a resposta do outro faz ao grito que
se constitui a prefiguração deste outro e a aliança deste com as imagens corporais das moções
pulsionais e as representações motoras da fala. O efeito da dor, portanto, aparece como esforço de
ligação. Segundo Delouya, “É com a dor que se concebe o outro!” , e por que não o si mesmo!
É nesta abertura ao objeto exigida pela dor que se insere e se legitima a prática da psicanálise e sua
ética. Um grito ao analista em busca de uma marca, de uma construção que remeta o sujeito àquilo
que nele pulsa. Não uma explicação, mas uma simbolização de uma vivência que se assemelha ao
delírio, porém, ao se constituir como intervenção da linguagem, promove o acesso ao princípio da
realidade.
Freud, S. Projeto para uma Psicologia Científica, in. ESB, vol. 1, pág. 401.
Garcia-Roza, L. A. Introdução à Metapsicologia Freudiana, pág. 141. Jorge Zahar Editor, 2001.
(Derrida, J., “Freud e a cena da escritura”, in: A Escritura e a Diferença, S.P., Jorge Zahar, 1988)
Delouya, D. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto. In: Dor. Ed. Escuta, 1999,
pág. 25.
Berlinck, M. T. A Dor. In: Dor. Ed. Escuta, 1999, pág. 9.
Existem exemplos clínicos de crianças autistas que buscam fixar através da dor a zona corporal de
excitação sexual, batendo-se nas paredes. A dor constitui-se, desta forma, como um meio de
devolver o corpo à psique.
Delouya, D. A dor entre o corpo, seu anseio e a concepção de seu objeto. In: Dor. Ed. Escuta, 1999,
pág. 31.
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“As Fronteiras da Dor” Maria Manuela Assunção Moreno Resumo: A