UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ
LUIZ PAULO GONZAGA RODRIGUES
OS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E
O ACESSO À JUSTIÇA NO PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA
Rio de Janeiro
2009
LUIZ PAULO GONZAGA RODRIGUES
OS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E
O ACESSO À JUSTIÇA NO PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Direito,
pela Universidade Estácio de Sá.
Orientador: Prof. Dr.
Bernardina de Pinho.
Rio de Janeiro
2009
Humberto
Dalla
PROGRAMA DE POS GRADUAÇÃO EM DIREITO
VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
A dissertação:
OS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E
O ACESSO À JUSTIÇA NO PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA
elaborada por:
LUIZ PAULO GONZAGA RODRIGUES
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de
Mestrado em Direito como requisito parcial à obtenção do título de
MESTRE EM DIREITO
Rio de Janeiro, 19 de agosto 2009
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Presidente
Universidade Estácio de Sá
____________________________________________
Profº Drª Renata Braga Klevenhusen
Universidade Estácio de Sá
____________________________________________
Prof°. Dr. Flavio Mirza Maduro
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
À Judi e Melina, que com muito amor
estiveram sempre presentes e são presentes da
minha vida.
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Dr. Humberto Dalla, pela dedicação e paciência.
Ao João Paulo e Fábio Prior, sempre dispostos a atender.
RESUMO
A presente dissertação, dentro da Área de Concentração Direito Público e Evolução Social,
na linha de pesquisa Acesso à justiça e efetividade do processo é orientada pelo Professor
Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho, docente do Mestrado em Direito da Universidade
Estácio de Sá. Analisa o contexto histórico bem como a evolução conceitual e a aplicação
dos mecanismos alternativos de solução de conflitos, tendo como corte paradigmático o
pós-positivismo. Seguindo essa linha, procura situar os institutos da arbitragem, da
mediação e a conciliação, como mecanismos de resolução de conflito numa perspectiva de
acesso à justiça que vai além daquela proposta pelo exercício da jurisdição estatal. Diante
de tal orientação teórica busca-se um novo método de interpretação constitucional em que
se valoriza a dimensão axiológica dos direitos fundamentais, mais precisamente os
princípios expressos e não expressos orientadores do acesso à justiça. De posse de
orientações e fontes normativas, incluindo regras e princípios, tanto no plano constitucional
e infraconstitucional, assim como jurisprudenciais e doutrinárias, procura demonstrar que
por meio dos institutos da arbitragem, da mediação e da conciliação é possível concretizar
o acesso à justiça na sua mais plena acepção e não somente no sentido técnico tradicional
contido na acepção do Poder Judiciário. O pós-positivismo indica um rumo distinto daquele
que caracterizava o juspositivismo, no qual o formalismo legal é a base para a aplicação
jurídica, onde as relações na sociedade deveriam se subsumir à ordem legal anteriormente
posta. A experiência de aplicação dos métodos alternativos de solução de conflito, de
acordo com as orientações doutrinárias, são formas de concretização de uma forma de
justiça redimensionada para uma concepção filosófica, numa sociedade amplamente
diversificada que por sua vez intensifica as relações. Os resultados são, por sua vez, uma
maneira de pacificação social menos dolorosa, onde os personagens do litígio não são
meros figurantes mas sujeitos do processo de recomposição das relações anteriormente
estabelecidas.
Palavras-chave: Mecanismos alternativos de solução de conflitos, acesso à justiça e Póspositivismo.
ABSTRACT
To present dissertation, inside of the Area of Concentration Public Right and Social
Evolution, in the line of research Access to the justice and effectiveness of the process is
guided by the Professor Humberto Dalla Bernardina de Pinho, Professor of the Master's
degree in Law of the Universidade Estácio de Sá. It analyzes the historical context as well
as the conceptual evolution and the application of the Alternative Dispute Resolution, tends
as model the post-positivism. Following that line, it tries to place the institutes of the
arbitration, mediation and conciliation, as Alternative Dispute Resolution Mechanisms in
an access perspective to the Justice that is going besides that proposal for the exercise of
the state jurisdiction. Due to such a theoretical orientation a new method of constitutional
interpretation is looked for in that the dimension of value of the fundamental rights is
valued, more precisely the beginnings expressed and no guiding expresses of the access to
the Justice. Of ownership of orientations and normative sources, including rules and
beginnings, so much in the constitutional plan and infraconstitucional, as well as decisions
and doctrinaire, it tries to demonstrate that through the institutes of the arbitration, of the
mediation and of the conciliation it is possible to render the access to the Justice in her
fuller meaning and not only in the traditional technical sense contained in the meaning of
the Judiciary Power. The post-positivism indicates a direction different from that
characterized the Positivism Rights, in which the legal formalism is the base for the
juridical application, where the relationships in the society would be under a prior legal
order piece. The experience of application of the alternative Dispute Resolution, in
agreement with the doctrinaire orientations, they are forms of materialization in a way of
justice for a philosophical conception, in a society thoroughly diversified that for her time
intensifies the relationships. The results are, for her time, a way of less painful social
pacification, where the characters of the litigation are not mere actors but subject of the
process of composition of the relationships previously established.
Key Words: Alternative Dispute Resolution, Access to the Justice and Post-positivism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................12
CAPÍTULO I – NEOCONSTITUCIONALISMO, PÓS-POSTIVISMO E ACESSO
À JUSTIÇA...............................................................................................................................18
1.1 NEOCOSNTITUCIONALISMO: UM NOVO MODELO DE INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL..........................................................................................................18
1.1.1 Introdução.......................................................................................................................18
1.1.2 Neoconstitucionalismo e interpretação constitucional....................................................23
1.2 A CRISE DA TRADICIONAL DICOTOMIA PÚBLICO X PRIVADO PERANTE A
INTERPRETAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO...................................27
1.2.1 Evolução histórica e social do público e do privado..........................................................27
1.2.2 A visão de kelsen...............................................................................................................32
1.2.3 A nova dimensão das relações jurídicas............................................................................35
1.3 O PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA E A DIMENSÃO FILOSÓFICA DE ACESSO À
JUSTIÇA.............................................................................................................................39
1.3.1 O positivismo jurídico.......................................................................................................39
1.3.2 O paradigma pós-positivista..............................................................................................41
1.3.3 A dimensão filosófica de acesso à justiça no pós-positivismo..........................................44
CAP II MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E O ACESSO
À JUSTIÇA..............................................................................................................50
2.1 GÊNESE E EVOLUÇÃO HISTÓRICA..............................................................................50
2.2 MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS, FORA DA
JURISDIÇÃO COMO FORMA DE PACIFICAÇÃO SOCIAL...............................................55
2.2.1 Conciliação........................................................................................................................63
2.2.2 Mediação............................................................................................................................66
2.2.3 Arbitragem.........................................................................................................................72
2.3 MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO DIREITO
COMPARADO...........................................................................................................................82
CAPÍTULO III A CONSECUÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA POR
INTERMÉDIO
DOS
MECANISMOS
ALTERNATIVOS
DE
SOLUÇÃO
DE
CONFLITOS.............................................................................................................................88
3.1. CONCEITO DE PRINCÍPIOS............................................................................................88
3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: BREVE INTRÓITO E SUAS FUNÇÕES...............91
3.3 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA...........................................................................95
3.4 OS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITO COMO FORMA DE
ACESSO À JUSTIÇA..........................................................................................................99
3.5 OBSTÁCULOS E EMPECILHOS: CONTRA O ACORDO............................................105
CONCLUSÃO.........................................................................................................................113
REFERÊNCIAS......................................................................................................................118
INTRODUÇÃO
Recorrer à Justiça sempre remete à idéia de que um órgão estatal, mais
precisamente, um componente do Poder Judiciário, será requisitado. Significa dizer que a
Justiça é uma instituição concreta que guarda em si o poder de solucionar questões não
solvidas que, via de regra, envolvem conflitos de interesses. Nessa linha de raciocínio, não
há efetivamente justiça se esse órgão do Estado não comparecer de maneira quase que
onipresente.
Hodiernamente a ingerência do Estado nas relações sociais tem novo
desdobramento. Não que essa instituição tenha deixado de cumprir importante papel na
vida das pessoas que o integram. Apenas deixa essa participação de ser direta e exclusiva.
Assim, novos institutos e instituições aparecem para ajudar na composição de funções que
outrora apenas o Estado, através de seus inúmeros órgãos, era responsável para executar.
Os Estados nacionais caminham ou evoluem no sentido de cada vez menos
intervir nas relações constituídas pelos seus comandados. Ao mesmo tempo, surgem novas
relações sociais, sejam elas políticas, econômicas ou culturais que, por conseguinte geram
novas relações jurídicas. Nessas, os significados implicam em novos significantes que
exigem nova postura de atuação do Estado, tanto no âmbito disciplinador normatizante
quanto no que se refere á solução dos conflitos. Vislumbra-se um novo agir do poder
estatal de julgar e decidir: o Poder Judicante não é mais o único a dar o veredicto final nos
litígios, mas atua também no sentido de reconhecer e dar caráter jurídico às soluções
deliberadas pelos particulares.
Surgem então mecanismos que se portam como auxiliares e alternativos à
função estatal de solucionar conflitos. No presente trabalho, estes são estudados numa
perspectiva de acesso à justiça carreada de uma dimensão valorativa que coaduna com uma
interpretação constitucional que tem por base os princípios dela extraídos. Essa forma de
interpretação onde se valoriza os princípios e as regras oriundas da Constituição Federal
está inserida numa perspectiva mais ampla, denominada de Pós-Positivismo.
Em uma sociedade pluralizada e permeada cada vez mais de novas relações
de aproximação e separação, a letra fria da norma não tem conseguido mantê-la organizada.
Dessa forma, faz-se necessário buscar meios diferentes dos que já existem para atender a
essa diversidade de interesses e conflitos. O significante justiça carece de uma interpretação
extensiva. Mas, a problematização dessa interpretação deve ir além, não apenas no sentido
de alargar o seu significado, mas ao pensar dessa forma, fazer o questionamento de por que
está se pensando assim. Ora, muito se fala em nova dimensão de acesso à justiça visando
basicamente aumentar o rol de formas de solução de conflitos e desafogamento do Poder
Judiciário. Para isto, novas leis são criadas como a lei da arbitragem, o projeto de lei da
mediação e de incentivo à conciliação como a lei dos juizados de pequenas causas. Mas, ao
querer implementar novas formas de solução de conflitos e essas vindo em forma de leis é
tomar um caminho novo mas que vai dar no formalismo legal, indicando o Poder Judiciário
como o detentor da palavra final. A interpretação que buscará se dar é que a Constituição,
por meio de seus princípios, fala que a justiça deve ser feita, dando margem para uma
interpretação que não necessitará obrigatoriamente de uma lei para a sua consecução via
Judiciário.
Porém, antes de efetivamente problematizar a questão, é importante alertar,
contudo, que não se pregará o formalismo infraconstitucional em prol de uma interpretação
principiológica da Constituição como o caminho para, de uma vez por todas, solucionar o
problema da aplicação do direito. Nesse sentido, faz-se menção ao alerta proferido por
Cifuentes1 para a qual “una excesiva constitucionalizacion del derecho podria ocasionar
um anquilosamiento del derecho, acabando así com el campo de accion requerido y
reclamado por el legislador dentro del corsete constitucional.”
A constituição possui, além do sentido formal e sentido substancial, um
sentido prospectivo, que tem a função de constituir e reconstituir o significado dos
significantes que compõe o discurso jurídico2. Sem renegar os dois primeiros aspectos, a
discussão de adoção de meios alternativos de solução de conflitos está ligada a um novo
sentido da realidade social, fruto de uma alteração de tempo e espaço. Discutir o
fundamento e a aplicação desses mecanismos frente a essa nova dimensão que se tem da
Constituição, em virtude da maneira como irá interpretar os princípios que dela emana,
constitui a questão norteadora que se busca neste trabalho. A postura que deverão tomar os
atores protagonistas dessa nova realidade constituirá o desafio a ser enfrentado e o que
deverá ser descoberto.
1
CIFUENTES. Marcela de Castro. Constituicion e derecho privado. Revista de derecho privado nº 18.
volumen X. Iniversidade de Los Andes. Junio de 1996. p. 2.
2
FACHIN, Luis Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil brasileiro. 2 ed. Rio de
Janeiro. Editora Renovar: 2003.
O Neoconstitucionalismo pretende dar ao direito uma dimensão filosófica,
ressaltando os valores que dela se extrai, diferentemente do juspositivismo que o
antecedeu. Por mais amplo que seja o termo, nota-se de pronto a valorização de
fundamentos como justiça, dignidade, direitos humanos etc. Esses direitos passam, então, a
constituir a base dos Estados contemporâneos, principalmente no pós-guerra, fazendo com
que sejam verdadeiros Estados Constitucionais. É o reconhecimento do poder normativo da
constituição.
Da questão da constitucionalização do direito, parte o fio condutor do
presente trabalho. Contudo, falar em Neoconstitucionalismo pressupõe uma digressão
acerca
da
interpretação
constitucional.
As
regras
constitucionais
para
o
Neoconstitucionalismo têm interpretação diferente daquela adotada no Positivismo, ou seja,
a subsunção. O método de interpretação constitucional vê na Constituição Federal um
conjunto de normas harmonizadas entre si, cada qual desempenhando uma função sem
hierarquização.
Mas, o Neoconstitucionalismo com o seu método de interpretação
constitucional está contido dentro de um movimento maior denominado de pósPositivismo. O pós-Positivismo encerra uma expressão de alcance por vezes de difícil
delimitação tendo em vista a possibilidade de sua abrangência interpretativa. Nesse sentido,
é feito um delineamento envolvendo dois importantes aspectos, quais sejam, a crise da
dicotomia público/privado tendo como parâmetro a interpretação principiológica da
constituição e a dimensão filosófica de acesso à justiça.
O pensamento no pós-Positivismo envolve uma reestruturação daquilo que é
considerado, de um lado, como Direito Público e, do outro, Direito Privado. Se a sua
finalidade é garantir valores jurídicos, esses se aplicam indistintamente a todos os ramos do
direito. Sem pretender abdicar da tradicional dicotomia, pretende-se demonstrar que a
interpretação constitucional pós-positivista está mais preocupada em, sob a égide de seu
princípio valorativo, proteger o ser humano na sua totalidade. Sob essa perspectiva, todas
as relações sociais encontram amparo constitucional desde que o que quer se garanta sejam
o desenvolvimento e a dignidade da pessoa humana.
Daí que o conceito de justiça ganha uma conotação filosófica para que não
fique adstrita ao caráter técnico, formal, conforme disposto nas regras infraconstitucionais.
Como o pano de fundo da pesquisa é pretender demonstrar que se pode fazer justiça
paralelamente ao Poder Judiciário, sem, contudo, esvaziar-lhe de sua função, o significado
de justiça ganha uma dimensão axiológica ou filosófica.
Sendo a função precípua do Poder Judiciário a resolução de conflitos, este
tem que assumir uma postura mais ativa, sem ficar restrito a praticar aplicar a lei aos casos
concretos. O poder Judiciário no Pós-Positivismo vive um momento em que não consegue
acompanhar a demanda de procura por sua intervenção tendo em vista o aumento de
processos, fruto dessa diversidade de relações jurídicas.
Por outro lado, a concepção de estado mínimo que é pleiteada pela doutrina
moderna, cunhada de neoliberalismo, depara com uma sociedade que está sofrendo um
crescente aumento de demandas judiciais. Se por um lado a abertura de capital propicia aos
cidadãos facilidade de acesso ao crédito, aos planos de telefonia ou a internet, traz junto
consigo uma gama de relações contratuais que uma vez descumpridos carecem da
intervenção de um terceiro para julgar e determinar o seu cumprimento. A expansão da
capacidade de absorção de informações pelas pessoas faz com elas estejam sempre atentas
a exigirem cumprimento do que fora contratado.
Na questão do pós-Positivismo procura-se delinear esse momento em que
sob a égide de uma nova interpretação constitucional, o interesse dos cidadãos tem que ser
resguardados mesmo tendo cada indivíduo a liberdade plena de contratação.
Atender aos indivíduos em suas solicitações acerca dessas questões que são
comuns a esse momento impregnado de novas relações, o Estado deverá promover o acesso
justiça. Esse é um mandamento constitucional fundamental característico do pósPositivismo. Nesse sentido, o presente estudo apresenta os mecanismos alternativos de
solução de conflitos, não pleiteando, porém, que sejam a solução para o problema, mas sim
outro meio a contribuir. Esses meios (arbitragem, mediação e conciliação) operam fora do
poder judiciário, mas pretendem contribuir para o acesso à justiça. E neste momento
pautará a pesquisa em demonstrar as vantagens trazidas por esses mecanismos.
A aplicação desses mecanismos é realçada na origem do movimento
denominado de Acesso à Justiça, que possui como marco temporal a década de 70 por meio
dos estudos de Mauro Cappelletti e Bryant Garth. É difundido como instrumentos a mais
para a promoção do acesso à justiça, epíteto que será tratado no presente estudo como um
direito fundamental erigido à condição de princípio constitucional.
A mediação, a conciliação e arbitragem, se aplicadas, podem evitar que o
exercício da jurisdição não se concentre nas questões típicas que somente o judiciário pode
solucionar. Aplicados, incentivam os litigantes a solucionar suas demandas. Assim, o
presente estudo se presta a demonstrar que a pacificação social é uma das funções do
exercício da jurisdição e que por meio da aplicação dos mecanismos alternativos de solução
de conflitos o judiciário terá um forte aliado nessa tarefa.
A conciliação, que em larga escala já é aplicada no Brasil, tanto fora ou na
jurisdição, incentiva as partes a chegarem a um acordo A mediação, por meio do estudo do
seu projeto de lei será analisada, visto que pode ser artifício que pode desencorajar os
litigantes a formarem uma demanda que poderá culminar no Poder Judiciário. Por
derradeiro, o estudo da arbitragem, tratada por alguns como uma forma de privatização do
poder de julgar, visto que um terceiro estranho ao Poder Judicante proferirá a decisão. A
presente pesquisa tenta, ainda, fazer um breve cotejo entre alguns sistemas jurídicos acerca
da aplicação destes instrumentos, levantando as virtudes que eles trouxeram na missão a
que se prestam: a pacificação de conflitos sociais.
Na medida em que os mecanismos alternativos de solução de conflitos vão
auxiliar na pacificação das relações sociais, eles se propõem à consecução de um
importante direito fundamental contido na Constituição que é o acesso à justiça. Esse,
tendo em vista a sua importância ganha status de princípio constitucional, já que além das
regras expressas que se presta a garanti-los, têm as exortações axiológicas garantidoras
desse importante meio de concretização de uma sociedade mais justa. A pesquisa, neste
momento, pretende demonstrar a importância dos princípios, e, mais especificamente, os
princípios constitucionais, para a consecução de valores como ética, moral, justiça,
dignidade, todos carreados de imprescindíveis atributos norteadores dos modernos
ordenamentos jurídicos.
O fio condutor e norteador do presente estudo é dimensão que se deve dar a
essas formas paralelas de consecução do valor justiça, dentro de uma nova perspectiva
diferentemente daquela que se via no juspositivismo e que aqui será tratada de pósPositivismo.
Nesse espectro se presta a defender os mecanismos alternativos de solução
de conflitos como autênticas formas de acesso à justiça, valor esse perseguido na atualidade
por todas as nações que têm por meta a consecução do verdadeiro Estado Democrático de
Direito.
Em suma, o trabalho apresenta três momentos que podem, assim, ser
resumidos: num primeiro momento terá o Neoconstitucionalismo como o marco a ser
seguido dentro de uma preceptiva maior que é o pós-Positivismo. Nesse, será analisada a
dimensão filosófica de acesso à justiça condizente com a forma de pensar nesse contexto,
que é diferente da herdada do Positivismo jurídico.
No segundo, a condução do trabalho será guiada pela análise dos
mecanismos alternativos de solução de conflitos fora da jurisdição, ou seja, a conciliação, a
mediação e a arbitragem, bem como um breve estudo destes no Direito Comparado. Neste
momento, se pretende demonstrar o quanto eles são importantes para a pacificação social.
E por fim, num terceiro momento, a consecução do princípio do acesso à
justiça, por meio dos institutos jurídicos ora em estudo, fazendo as ponderações
doutrinárias acerca dos limites e riscos que estes podem acarretar.
Para seguir o fio delineador proposto, a pesquisa será orientada pelo método
crítico-dialético, fazendo uso de uma pesquisa exploratória de documentos como textos
legais, jurisprudências e doutrinas, visando delinear uma linha da evolução histórica da
sociedade e do direto.
CAPÍTULO I
NEOCONSTITUCIONALISMO, PÓS-POSITIVISMO E ACESSO À
JUSTIÇA
1.1
NEOCONSTITUCIONALISMO,
UM
NOVO
MODELO
DE
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
1.1.1 Introdução
Tendo como tema central do trabalho os mecanismos alternativos de solução
de conflito e sua contribuição para o acesso à justiça, no que está sendo chamado de PósPositivismo, torna-se primordial traçar algumas linhas acerca desta nova maneira de
interpretação constitucional denominada de Neoconstitucionalismo. A justificativa é que
não é possível tratar de um termo dissociando-os um do outro, ou seja, tratar do que vem a
ser
pós-Positivismo,
implica
necessariamente
falar
do
que
vem
a
ser
Neoconstitucionalismo.
O tema, atualmente, tem sido objeto de discussão constante no meio
acadêmico. Por se tratar de uma nova maneira de interpretação da Constituição, extraindo
dela princípios carreados de dimensão axiológica, implica, por sua vez também, numa nova
maneira de aplicação constitucional. Tem como conseqüência uma extra valorização das
regras constitucionais.
O que se fará aqui é uma tentativa de desenvolver o trabalho no sentido de
demonstrar como surgiu essa corrente jusfilosófica, qual a sua proposta e as vantagens por
ela trazidas. Cumpre salientar que o Neoconstitucionalismo, corrente que vai de encontro
aos métodos interpretativos propostos pelo Positivismo Jurídico, nasce no momento em que
o direito volta a se reaproximar da Filosofia. Daí falar em corrente jusfilosófica. Dessa
forma, deixa de ser a aplicação e interpretação dedutiva como muito se fez e ainda se faz.
Observar-se, então, que o Neoconstitucionalismo está intimamente ligado à
forma como deve ser tratada e interpretada a Constituição, qual seja, aplicação de
princípios indutivos de uma ideologia racional mais aberto às especificidades dos fatos e
acontecimentos tutelados pelo Direito.
Extrair um conceito puro e acabado de Neoconstitucionalismo é tarefa
hercúlea, já que se trata mais de ampliação do domínio constitucional já existente do que a
proposição de um novo constitucionalismo, como induz o termo. Porém, há efetiva
alteração ou mudança paradigmática de aplicação das normas constitucionais que torna
necessário elencar algumas diretrizes conceituais de autores que têm tratado o referido
tema.
Barroso3 alerta para a questão de quanto é amplo o termo, podendo ser
enfocado sob as perspectiva histórica, teórica e filosófica. Na primeira, leva-se em conta o
constitucionalismo que se empreendeu na Europa no pós-guerra, e consequentemente
influenciada por esta. Ou seja, os efeitos devastadores da grande guerra impuseram
automaticamente às nações resguardar direitos considerados fundamentais e garanti-los na
Constituição. Dessa dimensão, tem-se que tais direitos, de tão importantes, são
transformados em princípios.
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1998 nasce logo em seguida ao
regime militar, que, guardando as devidas proporções, causa, também, efeitos devastadores
na sociedade, mobilizando-a no sentido de forçar o constituinte a fundamentá-la com
direitos de dimensão humana.
Sob o ponto de vista teórico, Barroso4 salienta que são três as
transformações em relação ao conhecimento constitucional: o reconhecimento da força
normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o surgimento de uma
nova forma de interpretação constitucional5.
O marco filosófico do novo Constitucional é apontado por Barroso6 como
sendo o pós-Positivismo. Esse será dimensionado em tópico próprio a seguir.
Assim, sob essa ótica, é que se desenvolverá o presente trabalho em que o
enfoque é aplicação do princípio do acesso à justiça enquanto princípio constitucional
fundamental, tendo como pano de fundo o pós-Positivismo.
Porém, no momento, o que se almeja é conceituar em linhas gerais o
constitucionalismo. Mas, além dessa dificuldade conceitual, conforme já exposto, tem que
ser levado em consideração a diversidade de acepções da expressão Neoconstitucionalismo.
3
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo. Disponível em: <http//.www.jus2.uol.com.br/doutrina>.
Data de acesso: 10/06/2007.
4
BARROSO, Op. cit.
5
Ibid,oOp. cit.
6
Ibid, op. cit.
Pois, qualquer forma de constitucionalismo diferente do já existente implicaria obviamente
um novo constitucionalismo. Uma Constituição democrática que é substituída por uma
outra de cunho autoritário, ensejaria o uso da expressão neoconstitucionalismo. Dessa
forma, a expressão aqui está limitada ao movimento de interpretação e aplicação
constitucional tendo como parâmetro basicamente as nações ocidentais, no plano territorial
e a segunda metade do século passado, no plano temporal. Para o momento, porém, segue a
linha de interpretação do tema ora em estudo no sentido de referir-se ao Estado
Constitucional de Direito que teve a sua gênese num movimento pós-segunda guerra
mundial. Esse tipo de Estado vem exatamente em movimento contrário, ou seja, apresentarse como oposição ao modelo estatal liberal burguês. Este modelo estatal, mesmo com
acentuada preocupação social, já não mais atende às novas demandas.
Então, a passagem do Estado de direito para o Estado de direito
constitucional marca a gênese do que se chama de Neoconstitucionalismo. A clássica
divisão entre direito e moral em que cada um tem seu campo de atuação, ou seja, a moral
não deve intervir no direito, é revisada. Normas com grande apelo ético e moral passam a
ser as bases das constituições instituídas em formas de princípios e elevadas à ordem de
direitos fundamentais.
Assim, têm-se algumas concepções de Neoconstitucionalismo ou algumas
tentativas conceituais.
Segundo Cleve7,
O Neoconstitucionalismo impõe uma renovada visão dos
direitos fundamentais. O papel da jurisdição constitucional é ampliado e,
paradoxalmente, o controle de constitucionalidade sofre uma verticalização.
Essas novas considerações exigem uma compreensão adequada da súmula
vinculante e também da coisa julgada, esta que, nesse contexto, passa a ser
compreendida não apenas como um fenômeno processual, mas já como um
direito fundamental que importa, em certos casos, na sua relativização.
Continua o autor:
“Portanto, o Neoconstitucionalismo implica uma renovada
visão de um direito constitucional que deve ser adequado a uma sociedade
contemporânea, pós-industrial, aberta às transformações que ocorrem de
maneira veloz, quebrando a possibilidade de consensos definitivos. As
distintas concepções a propósito do que é a vida digna, por exemplo,
manifestam-se em questões nada fáceis de se resolver que, ao serem levadas
7
CLÈVE, Clèmerson Merlin. Estado Constitucional, Neoconstitucionalismo e Tributação. Disponível em:
<http//.www.jus2.uol.com.br/doutrina> . Acessado em 10/06/07. p. 03
aos tribunais, não poderão ser desconsideradas como se fazia no contexto do
velho Positivismo”. 8
Como se deve notar, não há um conceito teleológico da expressão
Neoconstitucionalismo, mas sim, como bem pondera o autor supra, importa em mudar ou
renovar a maneira de interpretar e aplicar os comandos constitucionais. O contexto de
aplicação do Direito Constitucional numa sociedade pós-moderna, onde as mudanças vêm
em ritmo acelerado, exige uma releitura constitucional adequada a esta época.
Além do ritmo acelerado dos acontecimentos, há uma ampliação do domínio
constitucional. E mais: há que se caminhar no sentido de ampliar esse domínio. O
constitucionalismo deve estar sempre sendo reinventado acompanhando a evolução social.
Dessa forma, mais do que conceituar Neoconstitucionalismo é mostrar como
ele atua ou age, já que se trata de um movimento que surge apresentando uma releitura
constitucional, contrapondo principalmente com o então Positivismo vigente. Não se tem
uma “teoria” ou uma “doutrina” neoconstitucional. O que se vislumbra é uma tendência
que oferece um leque muito mais abrangente de aplicação dos princípios constitucionais,
bem como a ampliação desse domínio.
O delineamento então do que vem a ser o Neoconstitucionalismo, passa pela
forma ou maneira nova de interpretação e aplicação das normas constitucionais. Para
clarear a assertiva, recorre-se à Barroso9:
A locução constitucionalização do Direito é de uso
relativamente recente na terminologia jurídica e, além disso, comporta
múltiplos sentidos. Por ela se poderia pretender caracterizar, por exemplo,
qualquer ordenamento jurídico no qual vigorasse uma Constituição dotada de
supremacia. Como este é um traço comum de grande número de sistemas
jurídicos contemporâneos, faltaria especificidade à expressão. Não é,
portanto, nesse sentido que está aqui empregada. Poderia ela servir para
identificar, ademais, o fato de a Constituição formal incorporar em seu texto
inúmeros temas afetos aos ramos infraconstitucionais do Direito. Trata-se de
fenômeno iniciado, de certa forma, com a Constituição portuguesa de 1976,
continuado pela Constituição espanhola de 1978 e levado ao extremo pela
Constituição brasileira de 1988. Embora esta seja uma situação dotada de
características próprias, não é dela, tampouco, que se estará cuidando.
8
9
Ibid. Op.cit. p. 03.
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: conceitos fundamentais e a
construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 351.
O marco histórico do Neoconstitucionalismo remonta à Europa pós-segunda
grande guerra, principalmente na Alemanha e Itália. Nesse sentido, continua Barroso10:
A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a
2a. Grande Guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o
lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as
instituições
contemporâneas.
A
aproximação
das
idéias
de
constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de
organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de
direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático.
Seria mau investimento de tempo e energia especular sobre sutilezas
semânticas na matéria.
A principal referência no desenvolvimento do novo
direito constitucional é a Lei Fundamental de Bonn (Constituição alemã), de
1949, e, especialmente, a criação do Tribunal Constitucional Federal,
instalado em 1951. A partir daí teve início uma fecunda produção teórica e
jurisprudencial, responsável pela ascensão científica do direito constitucional
no âmbito dos países de tradição romano-germânica. A segunda referência de
destaque é a da Constituição da Itália, de 1947, e a subseqüente instalação da
Corte Constitucional, em 1956. Ao longo da década de 70, a
redemocratização e a reconstitucionalização de Portugal (1976) e da Espanha
(1978) agregaram valor e volume ao debate sobre o novo direito
constitucional.
No campo doméstico o marco histórico é a constituição Federal de 1988,
momento esse que coincide exatamente com o ambiente de redemocratização do país.
Simultaneamente, tem-se a reconstitucionalização nacional. A Constituição da República
assume um papel central, normativo, onde princípios e regras estão num mesmo nível.
Sobre o movimento neoconstitucional Barroso11 afirma:
No caso brasileiro, o renascimento do direito constitucional
se deu, igualmente, no ambiente de reconstitucionalização do país, por
ocasião da discussão prévia, convocação, elaboração e promulgação da
Constituição de 1988. Sem embargo de vicissitudes de maior ou menor
gravidade no seu texto, e da compulsão com que tem sido emendada ao
longo dos anos, a Constituição foi capaz de promover, de maneira bem
sucedida, a travessia do Estado brasileiro de um regime autoritário,
intolerante e, por vezes, violento para um Estado democrático de direito.
O movimento neoconstitucional pátrio coincide com um período sem
precedente de constitucionalismo em termos de importância. O país viveu, e ainda vive,
sob intensa valorização e respeito aos dizeres constitucionais. O que aqui está sendo tratado
como Neoconstitucionalismo é nada mais do que uma evolução e valorização dos preceitos
10
Ibid, Op. cit. p. 353.
11
BARROSO, Op. cit. 360
constitucionais, seguindo a onda européia. Essa tendência abarca os mais diversos ramos
do direito de maneira que ramos do Direito considerados como privado na tradicional
divisão, ganham dimensão constitucional, tornando, por sua vez, um direito de natureza
privado, mas com características de direito público tendo em vista a aplicação dos
princípios oriundos da Constituição12. Da mesma maneira, regras dos ramos do direito
infraconstitucional recebem forte influência dos princípios contidos na constituição,
passando-se a guiar por estes.
1.1.2 Neoconstitucionalismo e interpretação constitucional
Ao Neoconstitucionalismo sucede o Positivismo jurídico já que tem como
um de seus fundamentos o movimento de oposição a esta corrente de pensamento jurídico.
O Positivismo jurídico, enquanto corrente jurídica, nasce como uma forma de oposição ao
Direito Natural, corrente jusfilosófica defendida pelos jusnaturalistas. Tem como
fundamento a tentativa de dar ao Direito o caráter científico, sendo uma espécie jurídica do
gênero Positivismo, projetando o Positivismo filosófico no setor do Direito.
Fiel aos princípios do Positivismo filosófico, o Positivismo jurídico rejeita
todos os elementos de abstração na área do Direito, principalmente a idéia do Direito
Natural, por entender ser ela metafísica e anti-científica. Assim, a única ordem jurídica que
se deve aceitar é aquela comandada pelo Estado e esta deve ser a soberana. Por tentar
impor à ciência do direito as características das demais ciências, principalmente as ciências
físicas e naturais, o Positivismo jurídico abstrai das normas em geral o seu caráter
valorativo, afastando delas todo tipo de lucubração. Ao declarar que as normas jurídicas
são o que são, ou seja, nada além do que diz o texto, as considerações filosóficas, históricas
e sociológicas figuram apenas como caracteres auxiliares, não merecendo qualquer tipo de
consideração ao que implica interpretar e aplicar o direito.
Noutro sentido, o argumento central do Neoconstitucionalismo é exatamente
a maneira de interpretar o direito, mais especificamente as normas constitucionais.
Considerações históricas, sociológicas e filosóficas, e nesta última, as considerações
axiológicas e éticas são fundamentais na aplicação e interpretação do direito.
12
Em item a parte e a seguir, abordará a crise da tradicional dicotomia público/privado.
Para o Neoconstitucionalismo, o aplicador do direito não pode estar ou se
posicionar de maneira indiferente ao que está acontecendo ao seu redor no momento de
interpretar e aplicar a Constituição. De tal forma que o Direito, e principalmente a norma
constitucional além de seu caráter axiológico, deve funcionar como um princípio norteador
e irradiador de justiça, sempre atento às mudanças e alterações sociais.
É o Neoconstitucionalismo uma nova maneira de pensar o Direito
Constitucional que tem reflexo também na técnica de aplicação e interpretação desse
importante ramo do Direito. Passa a existir uma força normativa dos princípios e das regras
constitucionais.
Dessa forma, por questão de nomenclatura, um dos termos que passa a ser
empregado por aqueles que defendem essa nova forma de aplicação do Direito
Constitucional é o Neoconstitucionalismo. O Positivismo, aquele que dá o caráter científico
na aplicação do Direito, conforme defendia Kelsen13, já não é mais a melhor maneira de
aplicar e operar o Direito; e, principalmente, o Direito Constitucional, que já não é mais
apenas um ramo do Direito cuja função é organizar e estruturar o Estado. O Direito
Constitucional é também um Direito Social, atento às mudanças sociais e que penetra a
sociedade, estando ao alcance de todos os indivíduos. Daí ser o Neoconstitucionalismo a
corrente nova que vem suceder o Positivismo jurídico.
Há aqueles que empregam ainda o termo “neo-republicanismo”14, como
usado na literatura jurídica portuguesa e anglo-saxônica. No presente estudo não se ocupa
em aprofundar o sentido exato da expressão, mas a menção é apenas no sentido de informar
que a interpretação da expressão se assemelha à de Neoconstitucionalismo. Para o neorepublicanismo o sentido de liberdade é ampliado, ganhando uma conotação positiva e
outra negativa, não consistindo liberdade qualquer tipo de dominação15.
Vem a ser então o Neoconstitucionalismo a justificativa jusfilosófica de um
novo
Positivismo
jurídico,
podendo
dizer
que
é
a
face
pós-positivista
do
constitucionalismo, como sendo o Direito expresso por meio de princípios e de regras
valorizando a força normativa dos princípios, constituindo uma nova teoria das normas
constitucionais, contrapondo a idéia do Positivismo jurídico.
13
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
14
PINTO,
Ricardo
Leite.
Sobre
Neo-Republicanismo.
Disponível
em:
http:
social.ics.ul.pt/documentos/1218726793R5fMU7mi5Rz78WY7.pdf. Acessado em 18/07/2009
15
Ibid. Op. cit
analise
As regras constitucionais no Neoconstitucionalismo têm estrutura diferente
das demais regras. Se tem estrutura diferente, então deve ter forma de aplicação e
interpretação diferente. A doutrina caminha no sentido de informar princípios
interpretativos da constituição, dentro da concepção neoconstitucionalista. Esses princípios,
por sua vez, exigem uma metodologia interpretativa nova. A abordagem das regras
constitucionais ou da interpretação constitucional principiológica é uma nova idéia,
condizente com o que se denomina de Neoconstitucionalismo.
Esse novo método interpretativo, baseado em princípios, é o oposto do
método baseado na subsunção, muito criticado por alguns autores como Streck.16
O Positivismo abre espaço para a discricionariedade judicial, que tanto pode
dar-se na análise da lei como da Constituição. Desse modo, o que deve ser
considerado como superado no Positivismo – nas suas mais variadas formas
– é a análise que deve ser feita não apenas sobre a vigência da lei, mas sobre
a sua validade substancial. E isto faz a diferença, exatamente porque é na
diferença – que é ontológica – entre texto e norma e entre vigência e
validade, que se encontra o ponto de superação da lei plenipotenciária,
"blindada" pelas posturas positivistas contra os valores substanciais da
Constituição e da intervenção da jurisdição constitucional. Dito de outro
modo, a superação do Positivismo (exegético e dedutivo) pelo
Neoconstitucionalismo implica um salto sobre as concepções hermenêuticas
que entendem o processo interpretativo como parte de um processo em que o
intérprete "extrai o exato sentido da norma" (sic), como se fosse possível,
isolar a norma de sua concretização, sem considerar, ademais, que esse tipo
de entendimento – característico do paradigma de direito formal burguês –
ignora a parametricidade constitucional!" Ora, não há pura interpretação; não
há hermenêutica "pura". Hermenêutica é faticidade; é vida; é existência, é
realidade. É condição de ser no mundo. A interpretação não se autonomiza
da aplicação.
A interpretação constitucional consoante com o Neoconstitucionalismo
procurar afastar a idéia Positivista que, na sua maneira de ser e de pensar, cria uma série de
obstáculos na interpretação das leis, conseqüentemente na aplicação dos princípios
constitucionais. Dessa forma, uma determinada maneira intepretativista em que se faz uso
do método dedutivo está ultrapassada, como quer dizer o autor. Observa-se ainda, a dura
crítica feita nas entrelinhas da citação ao efeito da aplicação das Súmulas Vinculantes pelo
Supremo Tribunal Federal. A aplicação delas constitui um paradoxo, já que o julgador pode
decidir contrário à lei, mas ser obrigado a decidir de acordo com o posicionamento do
Tribunal, guardião da Constituição17.
16
STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica filosófica de superação do positivismo pelo
(neo)constitucionalismo. in ROCHA, Leonel Severo e STRECK, Lenio Luiz (Org.). Constituição, Sistemas
Sociais e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 157/158.
Mas o que se pretende aqui é mostrar como essa interpretação constitucional
moderna apresenta-se como a base do Neoconstitucionalismo. E de acordo com essa
interpretação, as normas jurídicas, principalmente as constitucionais, não possuem sentido
único, de modo que abarca todas as possíveis situações e fatos sociais. Se assim fosse, para
cada novo fato social surgido bastava a aplicação fria e exata da norma, não deixando ao
interprete espaço para desempenhar um papel mais criativo na sua consecução.
Se a maneira de interpretar é baseada em princípios, esses princípios exigem
uma metodologia interpretativa nova. Um novo método que suponha uma organização
jurisdicional compatível e um modelo de constituição concebida como norma e ponto
axiológico central ao qual todo o direito deve convergir.
O método de interpretação principiológico requer do aplicador do Direito,
percepção no momento de sua aplicação. Assim, a ideologia contida na norma, ou o seu
conteúdo, é dependente da realidade à qual será aplicada.
Na aplicação dos princípios de interpretação constitucional, a constituição é
observada como um todo, de maneira que as normas se encontram harmonizadas entre si. A
prioridade entre elas é realçada, mas não implicando necessariamente em hierarquia: cada
qual tem a sua função dentro do ordenamento jurídico, exigindo aplicação e interpretação
sistemáticas.
O resultado prático é observado de maneira ponderada. Isto implica em
evitar que as normas ou os princípios entrem em contradição uns com os outros. É a
exigência de acomodação de direitos fundamentais guiados pela busca de otimização e de
maior eficácia possível, aumentando o alcance das normas constitucionais que, por
conseguinte, aumentará o leque de situações a serem tuteladas por elas.
Do exposto até o momento é possível perceber a importância dos princípios
constitucionais como nova metodologia interpretativa. E como já mencionado alhures, o
surgimento de um novo método de organização jurisdicional compatível.
A ampliação do domínio constitucional é muito mais do que uma nova
corrente doutrinária, já que agindo assim, além de um constitucionalismo visto por outra
forma ou outro ângulo, é um constitucionalismo reinventado. Mas “reinventado” para
trazer muito mais efetividade no momento de aplicação dos dizeres constitucionais. E esse
é o novo papel da constituição: centralizadora, normativa, onde, mais do que regras, ela
deixa fluir princípios que estão no mesmo nível daquelas. A Constituição deixa de ser
17
Ibid. Op. cit. p. 158
apenas a normatização máxima, ou a “Carta Magna”, como chamada pelos juristas e
doutrinadores. Através dos seus princípios interpretativos e aplicativos ela penetra no seio
da sociedade irradiando e tutelando os valores almejados por ela.
1.2 A CRISE DA TRADICIONAL DICOTOMIA PÚBLICO x PRIVADO PERANTE A
INTERPRETAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA DA CONSTITUIÇÃO.
1.2.1 Evolução histórica e social do público e do privado
O surgimento do Estado Liberal acentua o limite de atuação do Estado,
delineando o seu agir e o agir do indivíduo que tem como marco fundamental a
consolidação do ideal de liberdade. Principalmente, uma liberdade frente a esse Estado,
onde ele deve intervir o mínimo possível nas relações sociais, aparecendo apenas como
“juiz”, quando provocado pelos particulares. O desenvolvimento desse paradigma
consolida ainda mais a dicotomia público/privado, tradicional divisão do direito revestida
de dogma pela Ciência do Direito.
Porém, em função da diversidade das relações sociais e do surgimento de
novos sujeitos de direitos, uma maior participação do Estado começa ser reivindicada e
essa se dá com o surgimento das constituições que, além de institucionalmente normativas,
refletem também princípios fundantes.
Neste tópico pretende-se analisar como a tradicional dicotomia sofre uma
crise nesse novo panorama jurídico que para efeito deste trabalho será denominado de pósPositivismo. Neste contexto, torna-se relevante delimitar o que se quer ao usar o termo
“crise”, que adquire aqui um sentindo salutar, ou seja, é a dissociação existente ente o
disposto pela teoria e o que efetivamente ocorre na prática. Dentre os vários sentidos
dispostos no Dicionário Aurélio, pode-se destacar os seguintes: “estado de dúvida e
incertezas; situação em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões
tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na
sociedade”18.
18
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Básico da Língua Portuguesa.
Folha/Aurélio. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1994/1995.
Assim, num primeiro momento, é elaborada uma evolução social e histórica
da tradicional dicotomia entre público e privado. Para tanto, tem-se como pano de fundo a
obra de Saldanha19.
Em um segundo momento, recorrer-se a Kelsen20, que há quase um século
defendia a inconsistência da cisão do Direito em Público e Privado, segundo o qual todo
direito é público oriundo da fonte estatal. E os fundamentos sustentados por este autor em
muito se assemelham ao defendido neste trabalho, ou seja, os ideais do pensamento póspositivista também valorizam a norma constitucional como sendo a sustentadora e
irradiadora de preceitos que irão dar validade às demais. Neste contexto, está inserida a
nova sistemática ou a nova posição que conquistou os sujeitos das relações jurídicas
modernas, que neste novo patamar estão sobre os auspícios dos ditames principiológicos
insculpidos na nova ordem constitucional.
Desde a antiguidade o ser humano, por meio da demarcação de seu espaço
na sociedade, criava ou formulava o status almejado perante seus pares. Assim, possuidor
de determinados direitos, e talvez isento de certas obrigações, conseguia se destacar
sobressaindo-se socialmente. Esse locus abstrato refletia em um lugar físico ou material.
Assim, era mais possuidor de direito e ocupava posição mais elevada na sociedade o sujeito
que detinha o direito de oratória na praça. Essa analogia, é desenvolvida de maneira
interessantepor Saldanha21, que é a base para o desenvolvimento ao que se propõe neste
tópico.
O autor faz analogia do público e do privado tendo como figuras
emblemáticas ou metafóricas o jardim e a praça, traçando a evolução da sociedade e suas
relações sociais desde a antiguidade clássica. A evolução das mais diversas relações sociais
culmina com o surgimento dos estatutos jurídicos, tanto os de Direito Público quanto os de
Direito Privado que perduram até a contemporaneidade. Ao mensurar a importância desses
dois espaços na evolução da dicotomia público e privado, Saldanha22 afirma:
No âmbito Grego, a referência principal ou mais ilustre para a imagem do
jardim corresponde ao nome de Epicuro. O jardim, como refúgio do
pensador, não só em relação à vida pública em geral mais em face da
adversidade política ou da inutilidade do esforço político; o epicurismo como
19
SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado público da vida social
e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1986.
20
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
21
SALDANHA. Op. cit.
22
Ibid. Op. cit p. 16
cultivo da vida privada (e de seus prazeres) em face da inoperância dos
velhos ideais da polis, que eram ideais da agora.
Em correlação com semelhantes referências podemos aludir à praça como
algo “oposto” ao jardim. A praça constitui, ao contrário do jardim, uma coisa
distante da natureza: um espaço aberto na natureza, senão mesmo contra a
natureza, e transformando às vezes em espaço sagrado como um modo de
compensar a violentação que o origina. Seriam então dois modos de ser do
cultural: o jardim, que concentra a privacidade, retendo uma porca da
natureza para dar espaço à vida pública.
Das palavras acima nota-se que, desde a antiguidade clássica, o direito já era
tratado ora do ponto de vista público, ora do ponto de vista privado. Assim, tenta esclarecer
o autor, que a idéia dicotômica já vem da antiguidade clássica, sendo que nessa época já se
podia identificar ou correlacionar o público e o privada através dos dois espaços. No trecho
a seguir, o autor faz outra analogia desses espaços23.
Em princípio o jardim se diz fechado, a praça aberta. No caso seria lírico, a
praça épica – no jardim a biografia, na praça a história. Por outro lado, o
jardim seria convexo; a praça côncava. Corresponderia a praça, como “ar
aberto”, ao advento da ordem institucional (e portanto não mais pessoal) das
coisas. Seria talvez introvertido o jardim, extrovertida a praça: dois
momentos do humano e de sua projeção espacial sobre as coisas. E mais:
talvez o principal na praça seja o próprio espaço, em função do qual se
dispõem árvores e/ou monumentos; no jardim a vegetação como o principal,
pondo-se o espaço em função dela.
Como se observa são disposições que demonstram lugares opostos como
estão situados. Para o primeiro momento, o público e o privado, ainda que o jardim e a
praça enquanto locais antagônicos guardam em si certa complementaridade. Mas falar em
complementaridade entre o direito público e privado, neste momento, é antecipar
inoportunamente o raciocínio que aqui se busca. Assim, o mais importante para o momento
é observar que a diferenciação entre as duas figuras já se dava em tempos remotos, no caso
na era grega clássica. E de forma interessante, no caso grego, como tradicionalmente foi e
continua sendo, há preponderância do público sobre o privado, ou seja, havia na Grécia
uma supervalorização da vida em público, como atesta o autor24.
No caso romano não seria muito diferente, tendo em vista que nessa
sociedade a divisão entre a ordem pública e ordem privada já se manifestava. Ou como
23
SALDANHA. Op. cit. p. 17
24
Ibid. Op. cit. p.19
expressa o autor supracitado, “com os romanos completou-se a idéia da coisa pública com a
da ordem pública, e a ambas as idéias acompanhou o direito”25.
Na idade Média, a dicotomia público/privado não foi tão realçada, tendo em
vista a predominância das estruturas privadas. Saldanha26 observa que, de acordo com os
estudos de Garcia-Pelayo 27, na Idade Média somente a igreja possuía um caráter público.
Houve uma pulverização do espaço público, com a dispersão do poder que
antes era delimitado na democracia Grega e na Republica romana. Findo o império romano,
o senhor feudal é quem passa a dominar, já que era o dono da propriedade e quem
determinava, pois dele também vinha a autoridade. Não se observa um poder estatal, onde
se pode afirmar a existência de relações de direito público. O único poder diferente a se
destacar é o da igreja.
Com o fim do feudalismo, a idéia de soberania é retomada e juntamente com
o ela o surgimento do Estado, sendo inclusive a base do Estado moderno28. Mas o Estado,
apesar de soberano é absolutista, com grande concentração de poder nas mãos dos reis,
voltando a sobressair o público, sendo a pulverização agora do privado.
Consolidado o pensamento liberal no século XIX, que de certa forma
implicou, para o mundo ocidental, a afirmação da classe burguesa no sentido de acesso ao
poder político. Nesse contexto surgem as grandes aglomerações populacionais, ou seja, as
cidades. No contexto de surgimento do pensamento liberal, mais precisamente no caso da
Revolução Francesa, é sacramentado o direito de liberdade. Com a consagração deste
importante direito, o indivíduo é blindado de direitos de proteção contra o Estado, ou seja,
já não se tem mais um Estado dominador. Pode-se dizer então que há um realce da
dicotomia publico/privado que não estava tão evidenciada.
Do ponto de vista de espaço, afirma Saldanha29:
Acabou-se com a extinção das casas, o que havia de estável nos lugares.
Outrora nas cidades, cada coisa tinha seu lugar: a igreja, a casa de Fulano, a
escola, a casa de Beltrano. A privacidade luta hoje por sobreviver, mas a
morada coletiva não a propicia, nem nos play-grounds dos apartamentos do
granfinos nem nos cortiços e favelas. Entram em agonia os velhos esquemas,
bem como as imagens tradicionais. A burguesia promoveu no século XVIII e
25
Ibid. Op. cit p. 19
26
SALDANHA, Op. cit. p. 19
27
PELAYO-GARCIA. In. SALDANHA, Nelson. O jardim e a praça: ensaio sobre o lado privado e o lado
público da vida social e histórica. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1986.
28
BARROSO, Op. cit. p. 65.
29
SALDANHA, Op. cit. p. 19
XIX a idéia de que todo homem é homem público, ao implantar o conceito
de Staatsbürger (cidadão), considerando que há uma identificação entre as
vontades de cada um e vontade governamental. Mas este tipo de idéia foi
destruído pelos problemas sociais do século XIX e XX, e com ele as formas
de vida social que o haviam acompanhado.
Apesar do cunho sociológico da obra de Saldanha30 ela é importante por
mostrar que a questão do público e do privado está ligada ao espaço de atuação do Estado,
representando primeiro o público e a atuação do poder negocial do individuo por meio do
contrato, representando o privado. O autor, porém, faz ressalva ao deixar claro que para ele
a idéia de identificação do contrato com privatismo é muito vaga. Mas, tradicionalmente e
em termos dogmáticos, o contrato representa o lado privado, ainda que o Estado
regulamente esse contrato. Quanto ao fato de que o Estado também contrata, e mais
contemporaneamente contrata com o particular, esta é uma questão a ser abordada mais em
sede de considerações conclusivas, visto que essas situações servirão de base exemplar para
a idéia central que aqui se pretende.
Mas a idéia de público e privado, apesar de aparecer em todas as épocas,
ganha contornos diferentes em cada uma delas. A própria idéia de casa, que é o símbolo do
privado na época atual, praticamente não existe. O autor31 bem retrata isto ao confirmar o
que se sabe que a “casa” deu lugar aos aglomerados de pessoas (construções), sem a
identificação específica de uma pessoa ou uma família. Por outro lado, aumentou o número
de interferência estatal na vida das pessoas, o que o autor32 cita como se fosse a “relevância
do setor público”, de tal sorte que vai ficando cada vez mais difícil a distinção entre as duas
categorias.
Com a predominância do Estado Liberal houve também uma tentativa
velada de se buscar equilibrar aquilo que é de ordem pública e de ordem privada. E como
pondera o autor33, a imagem burguesa desse equilíbrio do viver entre público e privado
preservou as melhores configurações de cada um desses lados no momento contemporâneo.
A dicotomia é retomada com o surgimento dos ideais iluministas,
culminando com a consumação do Estado Liberal. Frisa-se de um lado o Estado
constitucional e do outros os seus seguidores, delineando o público e o privado.
30
SALDANHA. Op. cit.
31
Ibid. Op. cit.
32
Ibid, Op. cit.
33
Ibid. Op. cit.
Porém, no século XX, surge do Estado Social. É a égide de um Estado
intervencionista que procura propiciar aquilo que, mesmo tendo liberdade para almejar, os
indivíduos não conseguem. Denominado de welfare state, esse modelo do início do século,
dá lugar ao estado neoliberal, nem tanto intervencionista e nem tanto liberal, tentando
sopesar as duas frentes. Para Barroso34, o marco desse processo se dá com a posse da líder
conservadora Margareth Tatcher, que toma posse como primeira ministra na Inglaterra, em
1979, e com Ronald Reagan, que assume a presidência dos Estados Unidos em 1980. A
expressão neoliberalismo no contexto ora empregado demarca mais uma dimensão
temporal do que ideológica. Do ponto de vista ideológico, o neoliberalismo trata-se
também de um paradigma político e econômico que acarretou várias implicações no final
do século que findou, de acordo com o pensamento de Chomsky35. O público e o privado
aqui ganham nova dimensão.
1.2.2 A visão de kelsen
O jurista austríaco36, autor de vários estudos sobre questões fundamentais do
direito, deixou um grande trabalho sobre a dicotomia público/privado. Pode-se de pronto
afirmar a posição do autor sobre a dualidade ora em estudo. Para ele não há diferença
substantiva entre o Direito Público e o Direito Privado.
A base de sistematização do direito foi construída sobre essa distinção e
apesar de ser considerada, como diz o próprio autor, a “espinha dorsal da sistemática da
teoria do direito”37, distinção essa que carece de fundamentação unitária, já que o direito
privado foi totalmente assimilado pelo direito público. É importante frisar que essa idéia
vai ao mesmo sentido da interpretação pós-positivista de que, em linhas gerais, os ramos do
direito privado são guiados por princípios constitucionais.
Sobre essa fundamentação, é importante observar os dizeres de Sgarb38,
estudioso da obra de Kelsen:
34
BARROSO, Op. cit. p. 66
35
CHOMSKY, Noan. O lucro ou as pessoas: neoliberalimso e ordem global. Tradução de Pedro Jorgensen
Jr. 2ª ed. – Rio de Janeiro; Bertrand Brasil, 2002.
36
37
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000
SGARBI, Adrian. Hans Kelsen: ensaios introdutórios (2001-2005). Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris,
2007.
Em um interessante ensaio chamado “Direito Público e Privado”, de 1924,
publicado inicialmente em italiano, Kelsen aproveitando-se de algumas
considerações específicas a respeito do assunto, procura explicitar as
fragilidades das teorias comumente apresentadas, até reduzir e eliminar
qualquer pretensão apolítica ou pré-política do direito privado, promovendo a
sua total assimilação pelo direito púbico. Isso porque entende que o direito
privado nada mais é que um elemento intrínseco à unidade do Estado. Essa
afirmação na verdade não é nova em seus estudos.
Como se observa, para Kelsen não há qualquer fundamentação para insistir
com a tradicional divisão do direito, principalmente porque as bases dessa cisão do direito
em público e privado são inconsistentes. Elas não passam de “uma tendência universal do
pensamento, de se transformar aquilo que não passa de mero instrumento do conhecimento
em outro objeto do conhecimento”39. Assim, para o autor, trata-se apenas de tautologia
oculta.
Outra passagem de Kelsen40 demonstra esse pensamento:
Como o dualismo de direito objetivo e direito subjetivo, também o de direito
público (“öffentliches”) e direito privado provoca fraturas no sistema unitário
do direito que forma este livro. Todo esse contraste, eu domina toda a nossa
sistemática cientifica deriva da teoria romana do direito e é, como aquele
entre direito objetivo e direito subjetivo, a máscara dentro da qual, na
exposição do direito positivo, se insinuam certos elementos políticos, isto é,
jusnaturalistas.
A idéia unitária do direito é defendida há muito por Kelsen41. Para ele, o
direito deveria ser tratado como uma ciência positiva, livre de “paixões” morais, éticas,
sociológicas ou políticas42. Ao dar esse caráter de pureza ao direito, Kelsen o tratava de
forma análoga a uma ciência exata como a Matemática. Para ele, uma norma fundante seria
a origem de todos os demais ramos do Direito. Essa norma seria a norma constitucional que
teria a sua origem na primeira constituição de determinado país. Para esse trabalho não é
necessário o aprofundamento desse pensamento no sentido de se buscar a origem dessa
primeira constituição, momento em que Kelsen vai se valer da “lógica transcendental” de
Kant.
O importante, para elucidar e fundamentar o que se pretende aqui, é
observar como a base de todos os ramos do direito, inclusive os ditos ramos do direito
38
39
Ibid. Op.cit. p. 32
SGARB, Op. cit. p. 32.
40
Ibid. Op. cit. p. 32.
41
KELSEN. Op. cit.
42
Ibid. Op.cit.
privado, é a norma ou o Direito Constitucional que, como ramo do Direito Público,
contaminaria ou faria com que os demais fossem oriundos de uma única norma, não
fazendo qualquer sentido falar em uma dualidade do Direito.
Kelsen43, ao estudar de forma sistemática o Direito, defendia que o mesmo
tivesse um tratamento unitário, ou seja, uma doutrina geral formulada por conceitos
jurídicos fundamentais unitários, dando origem a uma ciência una e pura. Daí que o autor
formula a idéia de que o ordenamento jurídico é disposto de forma piramidal, concentrada
no topo desta pirâmide a norma fundamental, que é a norma constitucional.
Mas poderia ponderar sobre um negócio jurídico particular, como bem
evidencia um contrato que é celebrado entre dois sujeitos sem a participação do Estado. Em
um primeiro momento, a manifestação de vontade de ambos é totalmente particular ou
privado. Mas, ao possuir a possibilidade ou o direito de fazer valer o disposto no contrato,
se por ventura uma das partes não veio a respeitar alguma disposição, há participação do
Estado, ao que evidencia o caráter público deste negócio. Sobre essa situação ilustra
Sgarb44:
Conforme observa Kelsen, tanto uma eventual ordem administrativa como
um contrato, matem assento, em último plano de consideração, na
constituição jurídico-positiva. Sendo assim, quando o direito prescreve que
se “deve obedecer a ordem de um determinado grupo de agentes”, ou “que os
contratos devem ser observados”, e estabelece para o caso de uma eventual
desobediência ao prescrito que uma sanção deve ser aplicada, o que está
ocorrendo é que o castigo que seve ser aplicado ao desobediente da ordem, e
o castigo que deve ser aplicado ao descumpridor do contrato, exigem, como
condição para ambas as obrigações, uma vontade que apenas continua o
processo de criação do direito, ou seja, o processo de individualização de
normas gerais. Portanto, a pretensa ordem superior e o contrato não passam
de duas manifestações de normas individuais; tanto uma ordem advinda do
Estado, como a Lex contractus decorrente do negócio jurídico privado são
manifestações que, apenas, prosseguem preceitos normativos hierarquizados
constitucionalmente estabelecidos.
O próprio Kelsen45 elenca outro exemplo que merece transcrição:
O dever de pagar um empréstimo origina-se do contrato entre devedor e
credor. A ordem jurídica delega aos indivíduos a regulamentação de suas
relações econômicas por meio de contratos. Ou seja, a ordem jurídica
estipula: “se dois indivíduos fazem um contrato, se um deles rompe, e se
outro move uma ação contra o primeiro, então o tribunal deve executar uma
43
KELSEN, Op. cit.
44
SGARB, Op. cit. p. 38
45
KELSEN apud SGARB, p. 38
sanção contra o primeiro”. Com base nesta norma geral, a obrigação do
indivíduo é determinada pela norma individual que o contrato cria. Essa
norma individual é de natureza secundária e pressupõe a norma geral acima
mencionada.
Na situação acima disposta, a possibilidade de fazer valer o contratado, com
a possibilidade da sanção não é de vontade dos particulares, mas sim do Estado. Daí que é
ilusória a idéia de tratar-se de um direito privado ou particular, já que a verdadeira
manifestação de vontade é do Estado e não dos particulares.
No mesmo diapasão, não há superioridade entre as normas de direito
privado e as de direito público. No entendimento Kelsiano46 prevalece uma única vontade,
a vontade soberana do Estado insculpida na norma constitucional. Kelsen denomina essa de
“Razão de Estado”47. E nesse ponto, volta-se à idéia defendida precipuamente na obra
“Teoria Pura do Direito”, ou seja, os imperativos morais, pessoais e éticos devem ser
deixados de lado, prevalecendo uma única vontade, a vontade do Estado.
No que concerne à questão da não superioridade de uma norma em relação à
outra, idéia defendida pelo autor, faz-se necessário mencionar, ainda que em rápidas linhas,
as tradicionais teorias da divisão do direito em público e privado. As mais diversas obras
ou manuais jurídicos encampam a idéia de que o Direito é público por basicamente
apresentar as seguintes características, entre outras: a prevalecer o interesse geral em
detrimento ao particular; a presença do Estado de forma direta ou indiretamente através de
um de seus órgãos caracterizando como um ramo do Direito Público; e o fato de ser as
normas dos ramos deste direito superior às demais, ou seja, àquelas consideradas de Direito
Privado. Principalmente nesse último critério, está concentrada a idéia de que ao prevalecer
a Razão do Estado, não há que falar em dicotomia no Direito.
1.2.3 A nova dimensão das relações jurídicas
Até o momento foi traçado uma evolução da tradicional dicotomia público e
privado, passando pelo desenvolvimento histórico e social, bem como o olhar de Kelsen48.
Essa cisão, no momento atual atravessa uma crise tendo em vista a diversidade de relações
46
KELSEN apud SGARB. Op.cit.
47
Ibid. Op. cit.
48
KELSEN, Op. cit
sociais que por conseqüência faz surgir novas relações jurídicas. Kelsen49 há quase um
século atrás já não concebia que o direito se dividisse em Público e Privado por entender
que ambos têm apenas um núcleo que lhe dá validade uníssona, qual seja, a norma
fundamental constitucional. Esse pensamento veio encontrar sustentação no que se
denomina pós modernidade ou contemporaneidade. Essa pós modernidade, do ponto de
vista jurídico trabalha com uma dimensão ou sentido prospectivo. Esse sentimento
contemporâneo, que passa essencialmente por uma nova interpretação constitucional não
pretende diluir os dogmas da Teoria do Direito, mas repensá-los nessa nova perspectiva.
Nessa linha de pensamento, pretende-se neste tópico, através destas linhas
repensar a dicotomia público e privado, já que da constituição emerge princípios que
afetam os diversos ramos do direito, inclusive aqueles considerados, tradicionalmente
ramos do direito privado. A constituição não é mais apenas um texto estruturador que dá
vida jurídica ao Estado e suas instituições. Ao contrário, a Constituição assume um papel
regulamentador dessas novas relações jurídicas, incidindo comandos sobre elas. Isso se dá
através dos princípios que têm caráter axiológico. Nesse sentido discorre Fachin50:
A Constituição Federal de 1988 erigiu como fundamento da República a
dignidade da pessoa humana. Tal opção colocou a pessoa como centro das
preocupações do ordenamento jurídico, de modo que todo o sistema, que tem
na Constituição a sua orientação e seu fundamento, se direciona para a sua
proteção. As normas constitucionais (compostas de princípios e regras),
centradas nessa perspectiva, confere unidade sistemática a todo ordenamento
jurídico.
Opera-se, pois, em relação ao Direito Dogmático tradicional, uma inversão
do alvo de preocupações do ordenamento jurídico, fazendo com que o direito
tenha como fim último a proteção da pessoa humana, como instrumento para
seu pleno desenvolvimento.
Esse novo pensar se dá também, no que se refere ao lugar ou aos novos
ramos do Direito que surgiram em função da demasiada quantidade de novas relações
jurídicas. Aquele pensamento muito descrito por Saldanha51 e desenvolvido alhures, ganha
contornos novíssimos. O próprio autor já previa essa nova situação ao colocar, da
necessidade de se encontrar uma nova medida para aquilo que é publico e para aquilo que é
49
Ibid. Op. cit.
50
FACHIN, Luiz Edson. Sobre o projeto do código civil brasileiro: crítica à racionalidade
patrimonialista e conceitualista. In: Boletim da Faculdade de Direito. VOL. LXXVI (Separata).
Universidade de Coimbra: Coimbra, 2000. p. 130.
51
SALDANHA, Op.cit.
considerado privado. Não é redundante e nem inoportuno recorrer novamente à um trecho
da obra do autor para fundamentar o exposto52.
Um dos ideais por assim dizer implícitos do liberalismo consistiu
precisamente – sob certo aspecto – na procura de um equilíbrio entre a ordem
privada e a pública. Este equilíbrio terá sido mais uma das conciliações
visadas ou propiciadas pelo relativismo liberal, porquanto o anarquismo
repudiava a esfera pública, ao recusar todo governo e todo comando exterior
ao indivíduo e o socialismo (com seus diversos gêneros) se inclinava a
preocupar-se muito mais com o social e com sua reordenação do que com os
indivíduos. Foi, porém a imagem burguesa do equilíbrio entre o lada público
e o lado privado do viver, que preservou melhores configurações de cada um
destes lados na experiência histórica contemporânea.
Houve, como pode ser observado, uma inversão do lugar do qual a
dogmática tradicional reservava para o público e para o privado. Com a supremacia da
Constituição nos modernos ordenamentos jurídicos, o Direito civil, até então o ícone do
Direito Privado, perde em parte essa condição. E de que forma isso se dá? Ora, a
prevalência da autonomia de vontade no momento da contratação encontra limite na
proteção da dignidade da pessoa humana, princípio de ordem axiológica extraído do texto
constitucional.
Uma outra situação que muito demonstra tal situação pode ser observada na
transcrição a seguir, conforme Fachin53.
A Constituição Federal de 1988 impôs ao Direito Civil o abandono da
postura patrimonialista herdada do século XIX, em especial do Código
Napoleônico, migrando para uma concepção em que se privilegia o
desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa concretamente
considerada, em suas relações interpessoais, visando a sua emancipação.
Nesse com texto, à luz do sistema constitucional, o aspecto patrimonial, que
era o elemento de maior destaque é deixado em segundo plano. Não tem
mais guardiã constitucional uma codificação patrimonial imobiliária, traço
que marcou a edição do Código Civil em 1916.
O que se tem para o momento é a nova dimensão que as relações jurídicas
alcançaram nessa nova era jurídica que pode ser denominada pós-positivista. O direito
ganha uma nova forma de pensar em que o sujeito assume um protagonismo na relação
jurídica, forçando esta a adquiri ruma nova feição, uma feição mais humanista que tem
como pano de fundo os princípios constitucionais.
52
53
Ibid. Op. cit. p. 26
FACHIN, Op. cit. 130.
Essa nova dimensão se dá, principalmente com a consolidação do Estado
dito liberal. Nesse sentido observa-se o magistério de Barroso54:
Esse Estado da busca do bem-estar social, o Welfare satate, chegou ao final
do século amplamente questionado na sua eficiência, tanto para gerar e
distribuir riquezas como para prestar serviços públicos. A partir do início da
década de 80, em diversos paises ocidentais, o discurso passou a ser o da
volta ao modelo liberal, o Estado mínimo, o neoliberalismo. Dentre seus
dogmas, que com maior ou menor intensidade correram mundo, estão
descentralização e desregulamentação da economia, a redução das proteções
sociais ao trabalho, a abertura de mercado e a inserção internacional dos
paises, sobretudo através do comércio. O neoliberalismo pretende ser a
ideologia da pós-modernidade, um contra-ataque do privatismo em busca do
espaço perdido pela expansão do papel do Estado.
Nesse movimento descrito pelo autor notam-se as diversidades das relações
jurídicas que deixam de ser puramente públicas ou privadas. Com a internacionalização dos
países, formando-se grandes blocos econômicos e culturais, as legislações nacionais foram
sendo revisadas, dando lugar inclusive ao o surgimento de mecanismos alternativos de
solução de conflitos para solucionar questões em contratos internacionais.
Da mesma maneira, o Estado promove as privatizações, e libera o capital de
empresas que administravam setores essências da economia como petróleo, energias, etc. o
mesmo se dá com as parcerias público-privadas, momento no pode se dizer que Estado
chama o particular para com ele contratar.
O Estado contemporâneo tem perfil diferente, tendo em vista o
afrouxamento das fronteiras, fruto da globalização e da perda da rigidez soberana. Ele se vê
forçado a dividir com setores da iniciativa privada determinadas prestações. Esse
movimento gera um novo paradigma dando novas dimensões às relações jurídicas. Sem
contudo perder o seu espaço, o publicismo inicia um momento de repartir demandas com o
privatismo, ocorrendo o revalorização deste, que para efeito desta pesquisa denominará
pós-Positivismo.
Feitas tais considerações cumpre sequenciar caracterizando o paradigma
pós-positivista.
54
BARROSO. Op. cit. p. 66.
1.3 O PARADIGMA PÓS-POSITIVISTA E A DIMENSÃO FILOSÓFICA
DE ACESSO À JUSTIÇA.
1.3.1 O Positivismo jurídico
O Positivismo jurídico surge como corrente a suceder aqueles que
defendiam que o mundo jurídico deveria ser regulado por leis naturais, qual seja, um
Direito Natural. Mas, antes de se delinear a gênese e evolução do Positivismo jurídico, fazse necessário traçar breves linhas acerca do Positivismo, já que este forneceu as bases
metodológicas e científicas para Juspositivismo.
Assim como as demais ciências, que tem métodos de investigação e
princípios próprios, a ciência da sociedade também o tem. O mundo social, ou seja, a
sociedade também poderia ser estudada como as demais ciências. Os métodos de
investigação das demais ciências da natureza poderiam ser aplicados para poderem
identificar na vida social as mesmas relações e princípios através dos quais os estudiosos
explicavam a vida natural.
O contexto de surgimento do Positivismo é o da ascensão da burguesia ao
poder, substituindo o velho regime feudal, consolidando o capitalismo. No mesmo
momento, os paises europeus, responsáveis por essa grande ascensão cultural e econômica,
passam a disseminar esse domínio através da colonização de outros territórios.
Com
o
francês
Augusto
Comte,
o
estudo
da
sociedade
fora
metodologicamente esquematizado. Para ele, as sociedades nasciam, cresciam e evoluíam,
de forma que sempre haverá um estágio superior sucedendo um inferior. Assim, como na
natureza em que as espécies vão evoluindo e sucedendo umas às outras, as sociedades
também evoluem e sucedem umas às outras.
Johnson55, assim assevera acerca do Positivismo:
Comte acreditava que a vida social era governada por leis e princípios
básicos que podiam ser descobertos através do uso dos métodos mais
comumente associados às ciências físicas. Da forma como evoluiu desde os
dias de Comte, o Positivismo afirma também que a sociologia devia
interessar-se apenas pelo que pode ser observado com os sentidos e que as
teorias de vida social deveriam ser formuladas de forma rígida, linear e
metódica, sob uma base de fatos verificáveis.
55
JOHNSON, Allan G. Dicionário de sociologia: guia prático da linguagem sociológica. Tradução de Ruy
Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997. p. 179.
Ao tentar aplicar esses, métodos ao Direito, nasce o Positivismo Jurídico.
Da mesma maneira que a sociedade podia e deveria ser estudada metodicamente, o Direito
deveria ser aplicado com base naquilo que a lei, posta de forma técnica, determinava. Para
o Positivismo jurídico, o Direto é somente o que dispõe a lei, emanada do Estado. O
Positivismo jurídico sucede o jusnaturalismo, corrente para a qual o Direito é composto por
leis naturais, divinas. Seguindo e aplicando estas, aplica-se o direito.
Fatores exteriores, como a moral, a ética devem estar desassociados da lei.
O Direito é exclusivamente o que o Estado positivou através da lei. Do ponto de vista de
Kelsen56, todo direito, e somente o é, as normas oriundas da fonte estatal.
O surgimento do Positivismo jurídico coincide com o auge da formação dos
estados modernos, que tem como base as idéias advindas do Iluminismo. Por ser um
momento de grande evolução científica, esses ideais são levados para o universo jurídico,
fazendo com que o direito também seja pensado de forma tecnicista. Partindo do
pressuposto iluminista de que deveria existir um direito científico, o direito começa a ser
codificado, missão que cabe à Ciência do Direito.
Se para Reale57 o direito é fato, valor e norma, para o Positivismo jurídico
os valores devem ser abstraídos do direito. A norma contém uma disposição que,
dependendo do fato ocorrido, aplica-se subsumidamente o fato à norma.
Para Bobbio 58, o Positivismo jurídico foi um movimento pela codificação do
direito, levando em conta regras pré-estabelecidas. Esse movimento por muito tempo
dominou a cultura jurídica ocidental, chegando a influenciar diversas constituições. O
jusPositivismo defendia a aplicação do direito livre de qualquer característica axiológica.
No estudo do direito deve ser abstraída qualquer fundamentação baseada em juízos de
valores 59.
É o direito apenas um conjunto de comandos advindos da fonte estatal, que
devem ser observados, indiferente ao que está nas entrelinhas do disposto na norma, sendo
que o seu descumprimento implicará a uma sanção60.
56
KELSEN, Op. cit.
57
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. – 27 ed. ajustada ao novo código civil. São Paulo:
Saraiva, 2002.
58
BOBBIO, Noberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia do direto: São Paulo, Ícone. 1999.
59
Ibid. Op.cit.
60
Ibid. Op.cit.
Por esse critério, o Estado não poderia ser discricionário, pois só usaria a
força diante do texto normativo. Sendo assim, de antemão já estaria definida como e em
que quantidade a força seria aplicada, garantindo aos cidadãos a tranqüilidade quanto ao
uso da coerção pelo Estado61.
Diante do exposto se observa que o Juspositivismo se opõe claramente ao
jusnaturalismo que para o qual o direito é oriundo de leis divinas. Ao contrário, para o
Juspositivismo, o direito é oriundo da vontade do legislador, autêntico e único
representante do Estado.
1.3.2 – O paradigma pós positivista
Traçadas, de maneira simples, as origens e as bases evolutivas do
Juspositivismo, bem como delineando essa corrente diante do Positivismo sociológico,
dedicar-se-á, para o momento, o estudo do pós-Positivismo. Por implicar vastidão e
amplitude, cumpre delimitar, resumidamente o que quer dizer o termo pós-positivsmo para
efeito deste trabalho.
A evolução jusfilosófica do direito sempre esteve calcada nos paradigmas
que constituíam e ratificavam os sistemas vigentes de períodos em períodos. Antes, porém,
se delimitará o paradigma no qual se quer inserir a dimensão de acesso à justiça que
coaduna com este modelo, que aqui será considerado como o vigente ou que apela para
assim proceder. Para isso é necessário o delineamento do termo paradigma para clarear a
exposição.
O referido conceito, identificador de padrões sociais sempre foi usado pelas
mais variadas ciências, principalmente as filosóficas e sociais. A expressão é amplamente
citada, mas carece em determinadas situações de sua delimitação epistemológica,
principalmente o seu papel no desenvolvimento do saber na era científica moderna. Alguns
autores se dedicaram à função do delineamento do termo.
Para Kuhn62, todas as ciências se desenvolvem no interior de paradigmas,
que constituem suas premissas e demarcam o campo de debate da comunidade científica.
61
Ibid. Op.cit.
62
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções cientificas. São Paulo, Editora Perspectiva. 2000.
De acordo com esse pensamento, os paradigmas são tradições cientificas que exemplificam
teses aceitas pelos cientistas sem criticarem os seus pressupostos. Os paradigmas seriam,
reciprocamente, incomensuráveis, vale dizer não há um ponto externo pelo qual se possa
valorar qual paradigma é melhor que o outro. Paradigmas diferentes, sob esse prisma, são
incompatíveis, e não deverá haver possibilidade de comunicação interparadigmática63.
Habermas64 diz que os paradigmas “abrem perspectivas de interpretações
nas quais é possível referir os princípios do estado de direito ao contexto da sociedade
como um todo”. Essa acepção em muito interessa a este trabalho tendo em vista que a
proposta aqui é de exatamente referir-se á dimensão de justiça dentro do epíteto “acesso à
justiça” no contexto paradigmático do Estado Pós positivista.
A expressão, numa conotação original é citada na obra de Morin como de
suma importância para a amplitude e importância numa pesquisa. Para tanto, o autor
resgata o sentido empregado pelos filósofos Platão e Aristóteles: para o primeiro, a origem
do significado da palavra se divide em “exemplificação de modelo ou regra”. Para
Aristóteles é “argumento que, baseado em um exemplo, destina-se a ser generalizado”.
A noção de paradigma vem evoluindo de acordo com a aplicação da
expressão nas diversas formas de saber e de acordo com o emprego da mesma no contexto
de cada ciência. Assim, pode ser o princípio, o modelo, a regra geral ou até mesmo casos
exemplificativos.
Feitas as considerações sobre o uso da expressão paradigma cumpre
sequenciar caracterizando o paradigma pós-positivista.
Do ponto de vista cronológico o Juspositivismo sucede o jusnaturalismo, já
que as idéias daquele já não coadunam com pensamento deste. Da mesma forma, no
paradigma ora em estudo as idéias limitadoras da aplicação do direito, oriundas do
Positivismo jurídico, já não encontram respaldo. No pós-Positivismo, a anterior restrição
imposta à aplicação jurídica deve ser abandonada, dando lugar à uma interpretação
carreada de valores como ética, justiça, dignidade, razoabilidade.
63
64
Ibid. Op. cit.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno
Siebeneichler. vol. II, Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 1997, p. 181.
O Positivismo jurídico, como já mencionado alhures, enquanto corrente
jurídica, nasce como uma forma de oposição ao Direito Natural, corrente jusfilosófica
defendida pelos Jusnaturalistas. Tem como fundamento a tentativa de dar ao direito o
caráter científico, sendo uma espécie jurídica do gênero Positivismo, projetando o
Positivismo filosófico no setor do Direito.
Fiel aos princípios do Positivismo filosófico, o Positivismo jurídico rejeita
todos os elementos de abstração na área do direito, principalmente a idéia do Direito
Natural, por entender ser ela metafísica e anticientífica. Assim, a única ordem jurídica que
se deve aceitar é aquela comandada pelo Estado e esta deve ser a soberana. Há uma
valorização exacerbada do Poder legislativo em detrimento aos demais poderes de estado.
Já no Pós-Positivismo, o Estado deixa de ser totalmente liberal e passa a ser
um Estado “amigo” dos direitos contidos na lei, principalmente dos Direitos Sociais. Se no
Pós-Positivismo o poder dominante era o legislativo, no Pós-Positivismo há espaço para o
Poder Executivo e o Judiciário. Aquele com as políticas públicas, exigindo uma atuação
garantidora de direitos de maneira positiva, onde não se tem mais aquele Estado absenteísta
O Poder Judiciário passa a ter força com o controle jurisdicional, garantindo que os
princípios emanados da Constituição possam ser aplicados. Esses princípios não
necessariamente precisam estar escritos ou codificados, bastando que sejam abstraídos das
Constituições. E mais, a aplicação da lei fica submissa à aplicação dos princípios.
No mesmo sentido há a positivação dos direitos sociais. Isso implica na ação
do Estado para proteger os mais fracos, a garantia dos ideais éticos de liberdade. Dá-se a
dimensão de proteção por parte do Estado aos grupos de pessoas, os chamados direitos
difusos e coletivos, em detrimento da idéia que até então estava vigente, de que cada um
tinha o direito de se proteger, pois a lei e a justiça, na sua acepção jurídica, estavam à
disposição de todos.
O Estado que anteriormente pregava apenas a igualdade de todos perante a
lei, no momento pós-positivista tem que garantir ou promover efetivamente essa igualdade,
atuando, como já mencionado anteriormente de maneira positiva. Ou seja, não há satisfação
plena de direito apenas com o mero reconhecimento destes, mas há sim uma necessidade
imperiosa de ações práticas para garantir condições materiais para uma igualdade plena.
Sobre a dualidade Estado Liberal X Estado Social, pondera Sarmento65:
O Estado social, na sua vertente democrática, não é outra coisa senão uma
tentativa de composição e conciliação entre as liberdades individuais e
políticas e os direitos sociais, possibilidade descartada tanto pelos teóricos do
liberalismo ortodoxo como pelos marxistas. Apesar de lamentáveis desvios
em que incorreu o Estado Social, com sua degenerescência para experiências
totalitárias, sobretudo na primeira metade do século XX, o fato é que em boa
parte do mundo desenvolvido, e durante um razoável período de tempo no
século XX, esta solução compromissória entre o capitalismo e o socialismo
foi possível e teve razoável sucesso”.
É evidente, atualmente a força normativa, ou “normatividade”, encontrada
nos princípios. Juntamente com os direitos fundamentais, e alguns princípios são direitos
fundamentais, tem-se uma outra característica de norma jurídica, simplificando muito mais
do que simples valores ou direitos. Além dos direitos fundamentais e princípios, todos
expressos, tem-se uma outra categoria que são os princípios que se deduz da Constituição,
ainda que não expressos. No mesmo sentido, direitos fundamentais não expressos. Mas
nem por isso, ou seja, não é pelo fato de não estarem expressos que não evidenciam valores
jurídicos.
Neste sentido há que se falar em uma nova concepção de justiça ou, mais
propriamente de acesso à justiça. Os operadores do Direito, mais especificamente juristas e
julgadores, estão vinculados em colocar a lei nessa perspectiva, qual seja, harmonizar
sistematicamente o ordenamento jurídico à luz dessa nova interpretação.
1.3.3 A dimensão filosófica de acesso à justiça no pós-Positivismo
A ideia de ressaltar alguns direitos básicos do ser humano, e elencá-los
como fundamentais, nasce em um momento em que as nações ocidentais começam a
questionar o ideal liberalista da Revolução Francesa. No liberalismo, via de regra, o Estado
se posicionava de maneira omissa, sem intervir nas relações sociais. Neste sistema estatal
os indivíduos por si só deveriam fazer valer seus direitos, calcados efetivamente na lei, que
tinha como premissa básica a idéia de liberdade. O Poder legislativo, evidentemente o
competente para elaborar a lei, representava a vontade das pessoas que queriam liberdade
65
SARMENTO. Op. cit. p. 387
contra, principalmente, o Estado, que no regime anterior, absolutista, era quem detinha, de
forma concentrada, o poder e a fonte de validade de todo o direito, centrado na figura do
monarca.
Esse ideal justificou algumas barbáries, principalmente no início do século
XX. Nesse momento ocorrem as duas grandes guerras mundiais e a implementação de
regimes comunistas totalitários onde, calcados em suas constituições, programam uma
concepção tecno-judiciária da justiça.
No Estado Liberal positivista qualquer ação era justificada, desde que não
proibida pela lei. Era a vigência efetiva do princípio da legalidade, garantidora do Estado
Liberal de Direito, forçando a submissão do Estado à vontade geral insculpida na lei.
Através deste princípio a lei é erigida ao ápice do Direito com a finalidade precípua de
solapar todos os resquícios da ideologia que anteriormente vigia na verve do Ancien
Regime. Não havia um equilíbrio de força entre os poderes do Estado, de tal maneira que o
Executivo e o Judiciário ficavam limitados ao que dizia o Legislativo na lei, sobrando-lhe
muito pouco poder para pleitear qualquer direito ou razão. Marinoni66 assim descreveu essa
situação:
O princípio da legalidade, porém, constituiu apenas a forma, encontrada pela
burguesia, de substituir o absolutismo do regime deposto. Nesse sentido se
pode dizer que na Europa continental o absolutismo do rei foi substituído
pelo absolutismo da Assembléia Parlamentar. Daí a impossibilidade de
confundir o rule of law inglês com o princípio da legalidade. O parlamento
inglês eliminou o absolutismo, ao passo que a Assembléia Parlamentar do
direito francês, embora substituindo o rei, manteve o absolutismo através do
princípio da legalidade. Diante disso, e grosso modo, no direito inglês a lei
pôde ser conjugada com outros valores, dando origem a um sistema jurídico
complexo – o common law -, enquanto que nos países marcados pelo
princípio da legalidade o direito foi reduzido à lei. Tal princípio, assim,
constituiu um critério de identificação do direito; o direito estaria apenas na
norma jurídica, cuja validade não dependeria de sua correspondência com a
justiça, mas somente de ter sido produzida por uma autoridade dotada de
competência normativa.
E continua o autor67:
66
MARINONI, Luis Guilherme. A jurisdição no estado constitucional.
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6550>. Data de acesso: 19/03/2006. p. 3.
67
Ibid. Op. cit. p.3
Disponível
em:
Na verdade, ainda que não houvesse a consciência de pluralismo, somente
com uma ausência muito grande de percepção crítica se poderia chegar à
conclusão de que a lei não precisa ser controlada, por ser uma espécie de
fruto dos bons, que se colocam acima do bem e do mal, ou melhor, do
executivo e do judiciário. Ora, a própria história se encarregou de mostrar as
arbitrariedades, brutalidades e discriminações procedidas por leis
formalmente perfeitas. Portanto, ainda que se ignorasse a idéia de pluralismo
e se aceitasse que a lei expressa a vontade de um "poder político", jamais se
poderia concluir que o seu texto é perfeito, e assim deve ser simplesmente
proclamado pelo juiz, apenas por ser o resultado de um procedimento
legislativo regular.
Em função desses acontecimentos e da implementação das novas
concepções de Direitos Fundamentais garantidos nas constituições, um novo ideal de
justiça começa a emergir. Apesar do modelo pós-positivista negar o jusnaturalismo,
resgata, porém, uma dimensão de justiça, semelhante à idéia fundante na crença do ideal
principiológico de justiça que reativa valores universais.
Assim, há um clamor por uma nova interpretação da lei com a conseqüente
desvalorização do método da subsunção, característico do Positivismo Jurídico. Segundo o
critério da subsunção, um método lógico, todas as situações que carecessem de decisão do
julgador, bastava que este apoderasse a lei que no caso concreto deveria ser aplicada. O
papel do julgador se reverte em um mero aplicador normativo, submisso ao exato texto da
lei.
Diante de tal situação é imprescindível o resgate da essência da lei, tirandolhe o véu para apoderar-se de seu verdadeiro fundamento. Mais do que isso, o Estado tem
que dispor de instrumentos garantidores desse fundamento, ou seja, os princípios de justiça.
Colocados no ápice da cadeia normativa, esse novo ideal de justiça é injetado na
constituição, tornando-se princípio fundamental.
Atualmente, é evidente a eficácia normativa dos princípios constitucionais.
Ou, como diz Sarlet68, “esses princípios e os direitos fundamentais têm qualidade de
normas jurídicas e, assim, estão muito longe de significar simples valores”.
A Constituição Federal do Brasil coloca como princípio fundamental o
acesso à justiça. É consenso que acesso à justiça não se resume ao direito de peticionar ao
68
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev. Atual e ampl. Porto
Alegre:Livraria do Advogado Ed., 2006, p.390.
Poder Judiciário. Por muito tempo houve um entendimento secular nesse sentido. Como
princípio constitucional e fundamental que é, o termo carece de entendimento amplificado,
subentendendo que esse direito pode ser garantido tanto com ou sem a participação do
Poder Judiciário, bem como uma ordem valorativa e fundamental a todo ser humano.
Assim, acesso à justiça pressupõe também um aparato institucional em uma
determinada sociedade, abarcando outros mecanismos organizados, tendo como
fundamento o ditame principiológico constitucional, já que se trata de direito inerente à
natureza humana. Rawls69 assim fala do papel das instituições na consecução da justiça.
Para ele:
A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, como a verdade o é dos
sistemas de pensamento. Embora elegante e econômica, uma teoria deve ser
rejeitada ou revisada se não é verdadeira; da mesma forma leis e instituições,
por mais eficientes e organizadas que sejam, devem ser reformadas ou
abolidas se são injustas. Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na
justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade como um todo pode
ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns, se
justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os
sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das
vantagens desfrutadas por muitos. Portanto, numa sociedade justa as
liberdades das cidadanias igual são consideradas invioláveis.
Diante desses dizeres, nota-se uma dimensão mais profunda, mais
fundamental na determinação constitucional de justiça. Obviamente que a expressão
“acesso à Justiça”, como princípio constitucional, não pode resumir um mero acesso a
Justiça estatal. Apesar de ser uma justiça política na denominação de Rawls70, isto é, a
justiça da constituição tem de abarcar valores supra-institucionais que passam por outros
Direitos Fundamentais como, por exemplo, a liberdade. Novamente se recorre a Rawls71
para ratificar tal estrutura de pensamento. Para este,
A justiça política tem dois aspectos que se origina do fato de que uma
constituição justa é um caso de justiça procedimental imperfeita. Em
primeiro lugar a constituição deve ser um procedimento justo que satisfaz as
exigências da liberdade igual; em segundo lugar, deve ser estruturada de
modo que dentre todas as ordenações viáveis, ela seja a que tem maior
probabilidades de resultar num sistema de legislação justo e eficaz. A justiça
69
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça: tradução Almiro Pisetta e Lenita Maria Rímolli Esteves, - 2ª ed. –
São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 5.
70
RAWLS, Op. cit.
71
Ibid. Op. cit. p. 241.
da constituição deve ser avaliada sob os dois aspectos, à luz do que as
circunstâncias permitem, e as avaliações são feitas a partir do ponto de vista
da convenção constituinte.
Efetivar esse Direito Fundamental constitucional é então o desafio do
Estado pós-positivista. É de se reconhecer a dificuldade de delimitar o alcance da expressão
“acesso à justiça”, porém não se deve jamais perder o foco dessa dimensão filosófica de
justiça como bem supremo que já vem sendo o desafio do Estado desde a Antigüidade
Clássica.
A consecução do acesso pleno à justiça passa, conforme Cappelletti72, “na
determinação das duas finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as
pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do
Estado.”
Do ponto de vista técnico de garantia constitucional como Direito
Fundamental, o acesso à justiça deve ser estendidos a todos os indivíduos de uma
sociedade. Da mesma forma, alcançando resultados socialmente justos, desvencilhando do
paradigma liberal onde cada indivíduo poderia se assim optasse e tivesse condições
materiais e informativas para tanto, recorrer à justiça. No paradigma pós-positivista essa
concepção de que o Estado garantiria a justiça através de sua omissão não tem mais
fundamento. No pós-positivsmo a justiça, na sua acepção mais plena deve ser direito
perseguido pelo Estado em todos os seus níveis que não deverá se omitir, mas implementar,
de ofício, os mais diversos mecanismos visando assegurar o gozo de todos os direitos
sociais básicos.
Como se observa, a evolução social se dá de maneira que determinado
número de caracteres se sedimentam formando modelos, os estudiosos denominados
paradigmas. Esses têm a finalidade, dentre outras, de estratificar épocas que vão delineando
a leitura histórica da evolução do Direito nas mais diversas formas de concepção de Estado.
E na concepção de Estado pós-positivista, tema central do estudo ora apresentado, necessita
de adequar à prática o ditame constitucional de que todos na sociedade têm direito ao
acesso à justiça. Direito esse chancelado pela Constituição Federal como Direito
Fundamental. Direito fundamental que, por se tratar de direito inerente à pessoa humana,
72
CAPPELLETTI, Mauro, GARTH Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleeth. Porto
Alegre. 1988. p. 8
exige uma atuação paralela sintonizada com os mais diversos mecanismos organizadores e
estruturadores da sociedade com ou sem a presença do Poder Judiciário.
Nesse diapasão o Estado deve reconhecer e garantir o Estado Democrático
de Direito, que só será consecutivo se, mais do que eleger o acesso à justiça como direito
fundamental, garantir para que esse seja pleno e efetivo.
O acesso à justiça atualmente tem relevância e caráter global, sendo
positivado por quase todas as constituições ocidentais, cabendo ao Estado primar pela
garantia das vias desse acesso.
CAPÍTULO 2
MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
2.1 GÊNESE E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
Quando da assertiva mecanismos alternativos de solução de conflitos há a
presunção de que existe um comando ou um poder oficial para dirimir conflitos e que os
demais são apenas alternativos ou subsidiários aqueles. Obviamente que qualquer
instrumento que por meio do qual se resolve um conflito, observados os padrões morais e
os princípios do sistema jurídico, a conseqüência é a mesma: a paz social. Assim, em que
perspectiva se pode afirmar que existem mecanismos considerados paralelos ou
substitutivos de outros que são os “oficiais” na difícil tarefa de composição litígios?
Várias são as maneiras existentes em que se compõe uma lide na sociedade.
Desde a existência da primeira célula social, já havia, inserido nesta, alguma
maneira de resolver e solucionar conflitos. Os indivíduos se valiam da força física para se
impor e o conflito se dava por resolvido de forma unilateral. Era a auto-tutela ou auto
defesa.
A evolução social impôs o aperfeiçoamento das técnicas destinadas a
resolver os conflitos interindividuais. No mesmo sentido, os conflitos evoluíram e
passaram, também, a ser coletivos. Concomitantemente, as partes entendem que a busca
para a solução conflituosa carece da intervenção de um terceiro neutro. Este se
institucionaliza, concentra essa função e se torna o detentor exclusivo para dirimir o
conflito, aditando, ainda, a função coercitiva. A auto-tutela é substituída pela autocomposição, onde um terceiro arbitra quem tem o direito ou a razão. Essa função é
entregue ao Estado.
Mesmo tendo o poder para solucionar o conflito, o Estado o faz de maneira
que o interesse, não da maioria, mas apenas de poucos é atendido. O Estado se torna uma
instituição de poder exclusivo, não tendo obrigação de atender ao interesse geral e não
recaindo sobre ele o efeito coercitivo que ele impõe ao outro. É a gênese da soberania,
porém de forma absoluta onde apenas um indivíduo, o rei, detinha a verdade incontestável.
Este tipo de Estado é então substituído por um outro onde o poder se
descentraliza e através de um pacto contratual é entregue ao povo73. O Estado é
Democrático e também de Direito, pois as imposições coercitivas por ele empregadas
também lhes são atribuídas.
Do ponto de vista jurídico, ou seja, sob a perspectiva do Direito, os litígios
passam a pressupor a participação do Estado, através do Poder Judiciário. No momento em
que, em função de variados fatores, mas principalmente pela multiplicidade e variedade das
demandas sociais, o Estado já não se mostra capaz de ser o detentor oficial da tarefa
judicante e nesse ínterim surgem outros meios paralelos de composição de conflitos.
O detentor da titularidade judicante é o Estado-juiz, representante da Justiça
na acepção formal, enquanto Poder Estatal. O Juiz de Direito tem a exclusividade desse
poder emanado da norma legal que funciona como freio contra qualquer discricionariedade
ou arbitrariedade por parte deste no momento de atuar. É a regra que consolida o Estado de
Direito, a forma de atuação dessa instituição considerada a mais adequada e equilibrada.
A titularidade do Estado para a consecução da finalidade pacificadora,
através do poder de julgar, é o que se denomina de jurisdição. Com assinala Grinover74 ao
exercer a jurisdição, o Estado está exercendo a capacidade que tem de decidir
imperativamente e impor decisões. E a diferença da jurisdição das demais funções do
Estado é exercer a função de pacificar, ou seja, de por fim aos conflitos gerados no seio da
sociedade. A autora complementa o raciocínio afirmando que na realidade, são de três
ordens os escopos visados pelo Estado, no exercício da jurisdição: sociais, políticos e
jurídico75.
Para composição da lide o julgador estatal se vale das normas
procedimentais estatais que ditarão o rito a seguido. Essas normas procedimentais, que têm
caráter meramente ritualístico, se dão através do Processo, que na esfera civil é o Processo
Civil e na esfera criminal é o Processo Penal. Neste trabalho, onde o que se pretende é
analisar mecanismos paraestatais e solução de conflito, o foco será nos procedimentos
relacionados à esfera de atuação cível, já que na esfera penal o Estado intervém também de
maneira coercitiva, função a qual não pode ser delegada.
73
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Contrato social: princípios de direito político. Tradução Antônio de Pádua
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
74
GRINOVER, Ada Pellegrini, CINTRA, Antônio Carlos de Araújo, DINAMARCO, Cândido R.. Teoria
Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1996.
75
Ibid.Op. cit..
Via de regra, desde a origem do Estado, este sempre monopolizou, das mais
variadas formas, a função de dirimir conflitos. Porém, com a evolução das sociedades e a
diversificação dos conflitos, o Estado já não se mostra plenamente eficiente para esta
tarefa, gerando uma crise do Poder Judiciário. Estudiosos do Direito então começam a
propor soluções que não passem pelo Poder Judiciário, mas que efetivamente solucionam
os conflitos. Esse movimento tem marco temporal na segunda metade do Século XX.
Outro fator que merece destaque é a contextualização jusfilosófica desse
momento, tendo como paradigma o modelo de Estado vigente, um Estado que busca
consolidar os direitos fundamentais.
Os países, principalmente após Segunda Guerra, voltam suas Constituições
para a consecução dos direitos fundamentais. As constituições voltam seus olhos para
tentar dar ao indivíduo um ideal de justiça em sua plenitude. A fundamentação do Estado
democrático está calcada numa participação comunicativa daqueles que são os sujeitos do
conflito. Há uma destituição do Estado-juiz como o único capaz de solucionar o conflito. A
participação individual, como salienta Pinho76, da relação processual, bem como as suas
prerrogativas, seus direitos e seus deveres, são conseqüência de uma relação interna do tipo
de Estado no qual estão inseridas. Ou seja, a atuação jurisdicional do Estado e a presença
dos equivalentes jurisdicionais, objeto deste estudo, é o reflexo do modelo de Estado no
qual estão sendo aplicados77.
Novos direitos são postos em evidência, assim como em relação aos já
expostos são empregados esforços no sentido de implementá-los. A dignidade da pessoa
humana é ressaltada com a supervalorização do indivíduo enquanto sujeito daquilo que é e
do que manifesta. Neste sentido afirma Amado78:
Para Habermas a ordem social é possível graças à comunicação lingüística e
graças à linguagem. Somos seres sociais e vivemos em sociedade porque
falamos, porque podemos nos entender. Logo, a chave do social está na
linguagem, e a partir daí habermas irá construir os fundamentos de toda a sua
filosofia, incluindo o fundamento do direito válido e do direito justo, o
fundamento da democracia e dos direitos humanos, o ancorará. Ou seja, irá
apoiar Habermas na existência da linguagem, da comunicação lingüística. Os
pressupostos que cada falante assume, aceita, dá por aceitado e dá por
tacitamente aceito ao dirigir-se a outro comunicativamente ao argumentar,
repetirá Habermas, é a alternativa à violência. Se eu quero algo de você, que
76
PINHO, Humberto Dala Bernardina de. Mediação e solução de conflitos no Estado democrático de
direito. Disponível em www.humbertodalla.pro.br/. Acessado em 29/01/2009
77
78
Ibid, op. cit, p. 2
AMADO, J.A. Garcia. Racionalidade sistêmica contra a racionalidade dialógica no Direito. Palestra
degravada realizada no PPG em Direito da UNISINOS. [s.d].
esvazie os bolsos, ou que me convide a ir ao cinema, temos duas alternativas:
uma suar a força; outra convencer-lhe, dar-lhe razões, argumentar. No
momento e que eu, para convencê-lo a fazer algo, no lugar de atacá-lo ou
forçá-lo, decido falar, esta é uma ação, segundo Habermas, que
racionalmente me prende, ata. Ata-me porque assumo, dou por pressuposto
ao fazer esta escolha.
O Estado democrático e agora social, que tem as suas bases na
supervalorização das liberdades individuais, posiciona o Poder Judiciário no sentido de
respeitar e valorizar os sentimentos individuais de tal maneira que o julgador não estará
engessado por uma norma fundamental a qual terá que recorrer, sendo aquele que apenas
vai “manusear” a norma. O juiz vai induzir a participação dos indivíduos no processo de
resolução da lide, para que estes sejam também sujeitos dela. O que as partes têm a dizer,
assim como seus sentimentos, angústias e desejos passam a fazer parte do direito como um
todo. O direito não é mais somente a norma, na sua acepção formal. Regras e princípios,
principalmente, passam a compor o rol daquilo que é fundamental na solução da lide para
que se tenha uma nova dimensão de acesso à justiça.
Sobre esse novo modelo estatal de participação na solução de conflitos,
assim esclarece Pinho79:
A base jurídica deste Estado, portanto, não pode ser a rígida e cega base do
Positivismo clássico. A realização de fins sociais exige um direito mais
flexível, adaptável às diferentes realidades fáticas, atento as particularidades
do caso concreto.
O agigantamento estatal, a atuação sobre a economia e a adoção de uma
Constituição que é um verdadeiro projeto social, exigem um sistema jurídico
dinâmico, um sistema aberto de regras, princípios e valores. Neste modelo,
ao contrário de um monismo normativo e político, têm-se um pluralismo de
fontes diretas do direito e um pluralismo de poderes competentes para
emaná-lo.
Esse modelo tem por parâmetro o sistema jurisprudencial norte-americano80.
A jurisprudência passa a ser valorizada e começa a integrar e compor a fundamentação das
decisões. Da mesma maneira, as sentenças ganham bases sociológicas e filosóficas, não
sendo apenas subsunção da norma.
Dessa forma, o monopólio do Estado como o único responsável para dirimir
os conflitos sociais; o corporativismo das entidades, estatais ou não, que se beneficiavam
de algumas benesses; o aumento e/ou diversificação das relações sociais que,
79
PINHO, op. cit, p. 7.
80
Ibid, Op.cit. p. 8.
conseqüentemente, faz surgir novos tipos de conflitos, entre outros, estão entre as
principais causas da crise do poder judicante.
Meirelles81, assim comenta essa situação:
É corrente a idéia da crise do Judiciário a partir da segunda metade do século
XX, determinada, entre outros motivos, pela crescente judicialização da
política e das relações sociais. Tal questão, especialmente sensível na
realidade dos países periféricos e a busca pela constitucionalização e
efetivação de direitos fundamentais, alia-se ao problema da constante
complexidade da interpretação jurídica de novos conflitos e conseqüentes
questionamentos à legitimidade judicial estatal para dirimi-los.
Mas esta crise da legitimidade não se restringe às deficiências interpretativas
nesta reconfiguração dos conflitos sociais. Merece também destaque a luta de
diversos movimentos sociais para a derrubada de barreiras à tutela
jurisdicional plena, pressionando os Estados a pensarem em políticas
públicas inclusivas, conhecidas como movimentos de Acesso à Justiça,
analisadas por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, no revolucionário projeto
de Florença.
Em virtude dessa crise, começam então a surgir estudos onde são
apresentadas propostas, debates e possíveis soluções. Inicialmente se fala na racionalização
da administração do Poder Judiciário, já que é evidente que este não é mais capaz ou não
está pronto para sozinho solucionar todos os tipos de conflitos. Para que possa ocorrer tal
racionalização, propostas surgem no sentido de limitar ou condicionar o despacho judicial a
uma forma de tentativa de solução do conflito extrajudicialmente.
A sentença judicial possui limitações já que não captam as questões
subjacentes ao litígio, questões estas, principalmente de ordem psicológica.
O acordo começa a ser mais valorizado e proposto, já que este vislumbra a
possibilidade de diminuir a famosa “cultura do litígio”. O culto ao litígio está ligado à
questão cultural já que o indivíduo nutre a sensação de que somente o julgador,
representante do Poder Judiciário, é que vai realmente e efetivamente solucionar o conflito.
Soma se a isto o mito de que acordo, para ter validade, só aquele celebrado perante o juiz.
Subsidiariamente a essa cultura tem a resistência do advogado ao acordo, em função
também do corporativismo institucional oriundo da representação da entidade de classe. A
falta de informação, também somado à necessidade da lide, contribui para que prevaleça o
litígio em detrimento a solução prévia do mesmo.
O movimento, que tem sua gênese na década de 70, se propagando
mundialmente com o nome de Access-to-justice Movement, ratifica e consolida o Florence
81
MEIRELLES, Delton R.S. Meios alternativos de resolução de conflitos: justiça coexistencial ou
eficiência administrativa? Disponível em www.revistaprocessual.com em 15/02/2009.
Project, que tinha como coordenadores Mauro Cappelletti e Bryant Garth82. O projeto pode
ser considerado como o marco temporal para a efetivação desses novos mecanismos
considerados alternativos à solução das lides.
Dessa forma, pode-se afirmar que o surgimento desses novos instrumentos
processuais tem como pano de fundo a questão do acesso à justiça.
Os novos instrumentos de solução de conflitos fazem parte da terceira onda
renovatória, movimento defendido por Cappelletti. Formam as denominadas “ondas
renovatórias”, a assistência judiciária, os direitos coletivos e os instrumentos alternativos de
solução de conflitos. Esses, tanto dentro do processo jurisdicional, como flexibilização dos
procedimentos ou enxugamento das vias recursais; ou fora da jurisdição como os
mecanismos alternativos de solução de conflitos.
Nos anos 80 começa o interesse de pesquisadores brasileiros por este tema,
concomitantemente à realidade pós-ditadura militar em que se começa a pleitear direitos de
minorias e grupos até então marginalizados e discriminados. É bem verdade que no
contexto brasileiro o acesso à justiça pugnava mais pela expansão para a toda a população
de direitos considerados evidentes e básicos, que por aqui, em função do contexto político,
não existiam.
Em virtude desse contexto, surgem então algumas possibilidades de resolver
os conflitos de maneira alternativa, ou seja, deixa o Estado de ser o único capaz de
solucionar os litígios.
2.2 – MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
FORA DA JURISDIÇÃO COMO MEIO DE PACIFICAÇÃO SOCIAL
Taxada a origem e evolução histórica dos mecanismos alternativos de
solução de conflitos, passa-se neste momento a delineá-los, especificando aqueles que
interessam para efeito desse estudo, quais sejam, os praticados fora da jurisdição.
82
CAPPELLETTI, Mauro, GARTH Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleeth. Porto
Alegre. 1988.
Os mecanismos alternativos de solução de conflito nascem visando antecipar
a tendência de crise que se instala no Poder Judiciário em virtude de vários fatores, mas
principalmente em virtude da “judicialização” dos conflitos inerente a uma sociedade que
se organiza e se torna mais complexa. A diversificação das relações sociais, onde as
pessoas passam a contratar mais em virtude da globalização da evolução tecnológica
aumenta a demanda de litígios que invariavelmente sobrecarrega o Poder Judiciário,
forçando-o a lançar mão de mecanismos que não os costumeiramente adotados. Novas
relações sociais, consequentemente novos direitos nascem, juntamente com as pretensões
dos indivíduos.
Bobbio 83 ao traçar a evolução dos direitos na sociedade relata que esses
evoluem e multiplicam tanto no plano teórico quanto prático. Aduz o autor84:
Essa multiplicação (ia dizendo “proliferação”) ocorreu de três modos: a)
porque aumentou a quantidade de bens merecedores de tutela; b) porque foi
estendida a titulares de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem;
c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou
homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de
suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc.
Em substância: mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo. É
supérfluo notar que, entre esses três processos, existem relações de
interdependência: o reconhecimento de novos direitos de (onde “de” indica o
sujeito) implica quase sempre o aumento de direitos a (onde “a” indica
objeto). Ainda mais supérfluo é observar, o que importa para nossos fins, que
todas as três causas dessa multiplicação cada vez mais acelerada dos direitos
do homem revelam, de modo cada vez mais evidente e explícito, a
necessidade de fazer referência a um contexto social determinado.
A isto se somam a tendência contemporânea de constitucionalização e
efetivação dos direitos fundamentais e, nesse sentido, da Constituição Federal emerge o
princípio fundamental do acesso à justiça. A partir do momento em que, em função da
proeminente crise do Judiciário, bem como da tendência de colocar em primeiro plano o
efetivo acesso à justiça, novas normas processuais são criadas e ritos processuais alterados
fazendo com que nascesse um Processo Civil contemporâneo tentando diminuir as barreiras
que impedem os indivíduos de verem seus pleitos satisfeitos.
Inicialmente esses instrumentos alternativos aos já consagrados nas normas
processuais são implantados dentro da jurisdição, ou seja, nas demandas devidamente
instauradas no seio do Poder Judicante. Assim, os mecanismos de solução de conflito
83
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus,
1992. p. 68.
84
Ibid. Op.cit. p. 68
podem ser implementados dentro do judiciário ou fora deste. Mesmo sendo o presente
trabalho acerca dos praticados fora da jurisdição, cabe fazer menção àqueles para efeito
taxonômico.
A composição do conflito pode se dar por meio da autocomposição, da autotutela e pelo Poder Judiciário.
Na autocomposição, conforme Barbosa85, a solução se dá de forma altruísta.
Ambas as partes cedem, ou seja, tanto aquele que ocasionou o conflito quanto o que deve
ter o dano reparado. Há o uso do bom senso. De maneira unilateral, uma das partes tem que
abrir mão daquilo que entende ser o seu direito, para que do outro lado exista o mesmo
comportamento, tornando-se as concessões recíprocas.
A autocomposição pode ser através da renúncia ao direito por uma das
partes, ou seja, o possuidor de algum direito dele se desinteressa. Pode ser a
autocomposição através da aceitação ou do reconhecimento do direito alheio. A transação,
em um sentido estrito, também é uma forma de autocomposição, sendo nessa as partes
cedem de maneira recíproca.
No caso da autotutela ou autodefesa, aquela que detinha o monopólio da
força impunha a sua vontade sobre o mais fraco86. Essa força se dá tanto do ponto de vista
material, como maior possessão de bens ou valores ou quanto do ponto de vista da força
corporal ou militar. Esse tipo de solução de conflito, atualmente quase não é mais praticado
tendo em vista a consolidação dos Estados de Direito, onde todos os que querem ver os
seus direitos tutelados devem fazê-lo através da norma previamente positivada. O Estado
assume o monopólio de aplicar as diferentes formas e modalidades de coerção. Nesse
diapasão expõe Cintra87:
O extraordinário fortalecimento do Estado, ao qual se aliou a consciência da
sua essencial função pacificadora, conduziu, a partir da já mencionada
evolução do direito romano a ao longo dos séculos, à afirmação da quase
absoluta exclusividade estatal no exercício dela. A autotutela é definida como
crise, seja quando praticada pelo particular (exercício arbitrário das próprias
razões, art. 345 do CP”), seja pelo próprio Estado (exercício arbitrário ou
abuso de poder, art. 350). A própria autocomposição, que nada tem de antisocial, não vinha sendo particularmente estimulada pelo Estado.
85
BARBOSA, Hugo Leonardo Penna. O Judiciário como opção e não como regra. Texto não publicado.
Material cedido pelo professor orientador. p. 3,4
86
87
BARBOSA. Op. cit. p. 4.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo,; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido R.. Teoria
Geral do Processo. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 1996.
Em raras exceções pode se valer da autotutela no Estado Democrático de
Direito. Para efeito de exemplificação cita-se a legítima defesa, disposta no Art. 160 do
Código Civil Brasileiro de 1916. Outro exemplo de autotutela na solução de conflitos se dá
no âmbito coletivo, no Direito do Trabalho que é o exercício da greve. Nesse caso, porém,
a greve raramente completa o seu ciclo autotutelar, funcionando mais como uma forma de
pressão, na tentativa de conseguir resultados mais favoráveis88.
Finalmente, a jurisdição que é a atuação do Poder Judiciário enquanto
responsável pela solução dos litígios. A jurisdição é uma forma de heterocomposição de
conflitos já que há a intervenção de um terceiro. Na heterocomposição há sempre a
submissão do conflito a um terceiro para que este busque a solução. No decorrer deste
trabalho a jurisdição será automaticamente definida bem como traçando questões acerca de
suas vantagens e desvantagens.
Os mecanismos de solução de conflitos, diferentes daqueles tradicionais
regidos pelas regras processuais, podem propiciar que a prestação jurisdicional pelo Estado
se dê de maneira mais eficiente e efetiva. No momento em que as partes de um litígio se
conciliam ou negociam, o Poder Judiciário poderá direcionar seus esforços para solucionar
com sucesso as causas que realmente demandem a necessidade de sua intervenção.
Cappelletti89 ao propor uma nova concepção de acesso à justiça dividiu em
três os obstáculos a serem transpostos para consecução dessa empreitada. Aqui cabe
ressaltar o que autor aduz ao introduzir o tema90:
Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como
um direito socialmente básico nas modernas sociedades, o conceito de
“efetividade” é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no contexto de
um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa
“igualdade de armas” – a garantia de que a conclusão final depende apenas
dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com
diferenças que sejam estranhas ao direito e que, no entanto, afetam a
afirmação e reivindicação dos direitos. As diferenças entre as partes não
podem jamais ser completamente erradicadas a questão é saber até onde
avançar no objetivo utópico e a que custo em outras palavras, quantos dos
obstáculos ao acesso à justiça podem e devem ser atacados.
Para identificar e atacar tais obstáculos enumerados acima pelo autor, o
mesmo propõe que três tarefas sejam realizadas. O autor as denomina de “ondas
88
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2004. p. 1443.
89
CAPPELLETTI, op. cit.
90
Ibid.Op. cit. p. 15.
renovatórias”91. A primeira passaria pela questão da assistência judiciária, ou seja, a
gratuidade da justiça para aqueles que não têm como arcar com as custas de um processo92.
O segundo obstáculo seria a representação dos direitos difusos e coletivos
que necessitaria de intervenção governamental.
E, finalmente, a terceira onda, que aborda um novo enfoque de acesso à
justiça, imaginando no que seriam os métodos alternativos para decidir causas judiciais93.
Como alhures mencionado, a solução do conflito pode se dar dentro ou fora
da jurisdição. E na jurisdição, com o processo devidamente iniciado começa-se a implantar
novos mecanismos no sentido de induzir o fim da demanda ou fazer com a sentença
proferida pelo magistrado fosse mais célere. Nesse sentido fala-se em novos instrumentos
de resolução de conflitos dentro da jurisdição, ou mecanismos alternativos de solução de
conflitos híbridos.
No rol dos primeiros estão o Art. 331 do Código de Processo civil94; a Lei
9.099/90 (Lei dos juizados especiais cíveis e criminais), os Termos de Ajustamento de
Condutas, entre outros.
Os métodos de resolução de conflitos fora da jurisdição ou os mecanismos
alternativos de solução de conflitos puros têm como característica principal o fato de que a
demanda é resolvida antes de se chegar ao Poder Judiciário95. A conciliação, a mediação e
a arbitragem constituem esses três mecanismos, que ao tentar solucionar as disputas o faz
sem o envolvimento do poder judiciário. Tem como maior virtude o fato de serem
privados, de tal sorte que se implantados e realizados com sucesso implicam em uma
demanda a menos no Poder Judiciário.
Esses mecanismos, em fase de implementação em alguns países e já
amplamente aplicada em outros, têm demonstrado inúmeras vantagens. Em que pese os
91
Ibid. Op. cit p. 31.
92
Os obstáculos referidos pelo autor são nesse momento citados apenas no intuito de situar o contexto dos
mecanismos alternativos de solução de conflitos, visto que serão amplamente abordados quando for ser
tratada a questão do acesso à justiça.
93
CAPPELLETTI, op. cit. p. 81.
94
Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre direitos que
admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta) dias, para a
qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou preposto, com
poderes para transigir. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7-5-2002)
95
Fica a ressalva para o caso principalmente da arbitragem, já que mesmo com a demanda transigida, a parte
pode recorrer ao Poder Judiciário para fazer o acordo. Tal polêmica será tratada quando abordada a natureza
jurídica da Arbitragem.
posicionamentos contrários, há de ser ressaltado que em muitas situações tem evitado que o
número de demandas aumente desproporcionalmente nos tribunais.
Evitar o aumento do número de demandas no Poder Judiciário é uma das
finalidades desses mecanismos. Mas, além dessa vantagem é possível vislumbrar outras
que podem ser acarretadas caso se aplique a conciliação, a mediação e a arbitragem.
Principalmente no tocante à demora de determinadas demandas, que poderiam e podem ser
resolvidas se valendo do acordo, de uma maneira geral. A demora no transcurso de uma
ação no poder judiciário é uma das causas da não consecução da justiça no seu sentido mais
amplo, como será comentado oportunamente. Em artigo recente, Nascimento96 traz à
colação dados impressionantes onde em pesquisa realizada pelo Banco Mundial colocam o
Brasil como a 30º justiça mais lenta do mundo, fator, que no entendimento desse organismo
impede o crescimento do país97.
No ranking de duração do processo para a cobrança de uma dívida, o tempo
exigido por nossos tribunais é de 380 dias; na Holanda, o prazo é de 39 dias;
na Nova Zelândia e Cingapura, 50; no Japão, 60; na Coreia do Sul, 75, e no
Haiti, 76 dias. As razões dessa demora processual devem-se ao excessivo
número de processos, à insuficiência de magistrados, serventuários e
estrutura física da Justiça, ao excesso de formalismo da legislação processual
e aos vários recursos às instâncias de julgamentos superiores. Dessa forma,
são necessárias soluções para minimizar o acúmulo de processos nos
tribunais; reduzir os custos da demora do trâmite do processo; incrementar a
participação da comunidade na resolução de conflitos; facilitar o acesso à
Justiça, e fornecer à sociedade uma forma mais efetiva de resolução de
disputas.
Mais do que esses dados que através de pesquisa foram comprovados
cientificamente, tem o descrédito das pessoas com o judiciário. O Judiciário brasileiro,
ainda que muitas vezes eficiente, em virtude da dedicação de seus operadores, não
consegue transmitir essa idéia aos jurisdicionados. Mas, na mesma proporção que o
indivíduo descrê do Poder Judiciário, este tem em mente que ainda assim é o único que
seria capaz de resolver o conflito. Por diversos outros fatores, mas principalmente por não
acreditar na capacidade que têm para solucionar a lide empenhando em superar os
obstáculos pessoais, o indivíduo tem arraigado em si a tradicional idéia de que somente o
Estado é capaz de lhe prover a solução para o embate. A isto acrescenta a falta de
percepção para que seja observado o quanto é inviável do ponto de vista financeiro a
96
NASCIMENTO, Sônia Mascaro. Brasil e os meios alternativos de solução de conflitos. Jornal Agora.
Disponível em http://pagina-um.blogspot.com/2009/02/brasil. Acesso em 08/03/2009.
97
Ibid. p. 01.
demanda judicial perante os mecanismos alternativos, como a mediação ou arbitragem.
Sobre esse aspecto é importante que seja observados interessantes dados cotejando os
custos empenhados em um processo no judiciário com os custos empregados nos meios
alternativos de solução de conflito como a arbitragem e a mediação, levantados pelo
Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC98.
O IBGC é o que, segundo os dados levantados na Justiça Comum, tem os
seguintes investimentos: valor da causa, oficial de justiça, advogados, periciais, recursos de
apelação e pagamento de custas recursais99. Na arbitragem os investimentos são: custos da
câmara, taxas e registros da administração, honorários dos árbitros e advogados e perícias,
se necessário 100. E na Mediação, têm-se os custos da câmara, se institucional, honorários do
mediador e honorários dos advogados101.
Outro dado interessante publicado pelo referido instituto é um diagnóstico
do Poder Judiciário levando em conta tempo e dinheiro gasto para se executar uma dívida
ou um contrato. Tem-se assim que 546 dias é o tempo que se leva para recuperar um bem
que não foi pago102. Ainda, 6l% dos juizes brasileiros consideram mais importante atender
às necessidades sociais, do que respeitar as regras de um contrato103. E finalmente informa
o levantamento que R$37.500,00 é o custo médio para recuperar o crédito não pago de
R$50.000,00, ou seja, gasta 75% do bem para recuperá-lo104.
Através deste interessante levantamento nota-se a diferença de custos que os
mecanismos alternativos de solução de conflitos podem propiciar, no caso, a arbitragem e a
mediação105.
98
www.ibgc.org.br/Download.aspx?Ref=Eventos&CodArquivo=135. Dados extraídos do site do Instituto
Brasileiro de Governança Corporativa, publicados em slides por “Fachada Bonilha Acessória Jurídica e
Mediação Empresarial”. Acessado em 19/03/2009.
99
Ibid. Op. cit. p. 10.
100
Ibid. Op. cit. p. 10.
101
Ibid. Op. cit. p. 10.
102
www.ibgc.org.br/Download.aspx?Ref=Eventos&CodArquivo=135. Dados extraídos do site do Instituto
Brasileiro de Governança Corporativa, publicados em slides por “Fachada Bonilha Acessória Jurídica e
Mediação Empresarial” que cita como fonte deste levantamento estudo feitos por Mckinsey Consultoria.
Acessado em 19/03/2009.
103
Ibid. Op. cit. p. 5.
104
Ibid. Op. cit. p. 5.
105
É importante observar que os dados levam em conta, no caso da mediação, projeção tendo como base
locais ou paises onde tem instalada a mediação, já que no Brasil ainda não houve a aprovação do projeto de
lei que a institui.
Além de poder ajudar a resolver problemas como os mencionados acima,
tem o fator primordial que é a efetiva participação dos envolvidos na questão. Essa,
inclusive é uma das mais importantes virtudes dos referidos mecanismos. Na resolução dos
litígios via a forma tradicional, qual seja, a decisão proferida pelo juiz com a participação
dos advogados as partes muita vezes se sentem inibidas, retraídas e quase nunca explanam
o que efetivamente querem. Os seus sentimentos, desejos sempre esbarram nas questões
técnicas de conhecimento apenas dos procuradores que em certas situações não se
interessam pelo acordo em função, principalmente do que podem vir a auferir em forma de
honorários.
Ademais, os mecanismos de solução de conflitos não querem concorrer com
o Poder Judiciário no sentido de esvaziar ou enfraquecer a sua relevante função enquanto
poder estatal. Ao contrário, esses mecanismos subsidiários podem e serão importantes
aliados na pacificação dos conflitos individuais e coletivos.
O Poder Judiciário estará sempre à disposição dos indivíduos em qualquer
situação. A Constituição Federal de 1988 garantiu esse direito e o colocou em nível de
direito fundamental, funcionando como base para a consecução do Estado Democrático de
Direito. O que se pretende com as opções de solução de controvérsia aqui em debate, é que
o Judiciário tenha um aliado no sentido de filtrar determinadas demandas que não
necessitaria movimentar a custosa máquina estatal.
Em profícuo ensaio, Barbosa106 defende a tese de que o judiciário deve
funcionar como opção e não como regra. Para tanto, dispõe o autor107:
Devemos buscar a solução dos conflitos na sua origem, na sua formação.
Mais dois questionamentos podem complementar o rol anterior: o que tem
sido feito para que os problemas sejam evitados? Podemos resolvê-los sem a
intervenção do Estado?
Determinados conflitos jamais serão pacificados pelo Judiciário, ainda que a
decisão seja proferida pelo mais qualificado juiz de um Tribunal.
Dependendo da natureza, o conflito permanecerá internamente com os
envolvidos, sendo irrelevante a solução apresentada pelo magistrado,
representante do Estado. Pense em um conflito de vizinhança ou um conflito
de família. A decisão encontrada pelo juiz, ainda que seja cumprida pelo
derrotado, nem sempre conseguirá pacificar as partes.
É necessário buscar uma via alternativa, utilizando técnicas mais altruístas
que estão presentes entre nós desde os períodos primitivos. As partes
envolvidas no conflito devem ser aproximadas e o conflito deve ser analisado
por profissionais comprometidos com a pacificação. O credor precisa saber o
motivo que impediu o devedor de pagar o montante devido na data aprazada,
a vítima do furto, precisa conhecer a realidade do punguista.
106
BARBOSA. Op. cit.p. 8,9
107
Ibid. Op.cit p. 15.
Assim, nota-se que os mecanismos ora em estudo têm como benesses, no
que se refere à pacificação social, o fato de levar em conta que os mesmos vão sempre à
gênese do litígio. Muitos sentimentos ligados à condição humana que passariam
despercebidos no judiciário podem ser considerados nos mecanismos alternativos para
solução de litígios. Isso talvez seja uma das causas que faz com que o judiciário não
consiga resolver determinados litígios. Preso ao tecnicismo e à norma, o julgador se sente
incapaz para levantar questões que envolva os sentimentos das partes.
2.2.1 – Conciliação
Em breve explanação, passa-se à exposição das características e da ideologia
dos mecanismos de solução de conflitos fora da jurisdição. Como o enfoque principal do
presente trabalho é o sentido que tais institutos podem e devem auxiliar no acesso à justiça,
tendo como corte paradigmático o pós-Positivismo, cuidar-se-á aqui de fazer ligeira
menção.
Em primeiro plano tratar-se-á da conciliação que, dos mecanismos aludidos,
há mais tempo tem sua aplicação no direito brasileiro. A conciliação, enquanto mecanismo
de solução de conflito autocompositivo busca o acordo, onde o conciliador interfere
esclarecendo às partes as suas vantagens, bem como as induzindo a pôr fim à demanda. A
principal característica da conciliação é o fato de que nela há o induzimento por parte do
conciliador na celebração do acordo. Este, além de mostrar as vantagens da composição,
vai trabalhar no sentido de por fim à demanda, oferecendo-se diretamente para isso.
Serpa108 conceitua a conciliação como sendo um mecanismo onde o
conciliador apaziguará as questões sem se preocupar com as qualidades das soluções. Pode
interferir, sugerir, levando em conta os conhecimentos acerca dos fatos e do mérito da
questão, bem como participar com aconselhamentos técnicos-jurídicos109.
A única forma de êxito na conciliação é a consecução da celebração do
acordo. Não ocorrendo este, não se considera o sucesso da empreitada daquele que tenta
108
SERPA, Maria de Nazareth. APUD, NOGUEIRA, Leandro Gadelha Dourado. Conciliação e Mediação
no cardápio: as escolhas do legislador. Dissertação de mestrado não publicada. p. 02.
109
Ibid. Op. cit. p. 02
dar um fim à demanda. Na conciliação, a celebração do acordo é a única forma de se
considerar êxito. Já que o conciliador tem como finalidade a obtenção do acordo, este vai
trabalhar apenas no sentido de convencimento das partes sobre como fazer concessões
mútuas.
Delgado110 expõe acerca da conciliação:
A conciliação, por sua vez, é o método de solução de conflitos em que as
partes agem na composição, mas dirigidas por um terceiro, destituído do
poder decisório final, que se mantém com os próprios sujeitos originários da
relação jurídica conflituosa. Contudo, a força condutora da dinâmica
conciliatória por esse terceiro é real, muitas vezes conseguindo implementar
resultado não imaginado ou querido, primitivamente, pelas partes.
A conciliação pode ser dentro ou fora da jurisdição, denominada a primeira
de judicial e a segunda de extrajudicial. Aquela, normalmente é feita por um órgão
constituído especificamente para isso, como no caso das Comissões de Conciliações
Prévias no Direito do Trabalho 111. Essas comissões têm por finalidade evitar que
110
111
DELGADO. Op. cit. p. 1447.
A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, em 2000 instituiu as chamadas Comissões de Conciliações
Prévias, conforme disposto no Art. 625, que se segue:
Art. 625-A. As empresas e os sindicatos podem instituir Comissões de Conciliação Prévia, de composição
paritária, com representantes dos empregados e dos empregadores, com a atribuição de tentar conciliar os
conflitos individuais do trabalho.
Parágrafo único. As Comissões referidas no caput deste artigo poderão ser constituídas por grupos de
empresas ou ter caráter intersindical.
Art. 625-B. A Comissão instituída no âmbito da empresa será composta de, no mínimo, dois e, no máximo,
dez membros, e observará as seguintes normas:
I - a metade de seus membros será indicada pelo empregador e a outra metade eleita pelos empregados, em
escrutínio secreto, fiscalizado pelo sindicato da categoria profissional;
II - haverá na Comissão tantos suplentes quantos forem os representantes titulares;
III - o mandato dos seus membros, titulares e suplentes, é de um ano, permitida uma recondução.
§ 1o É vedada a dispensa dos representantes dos empregados membros da Comissão de Conciliação Prévia,
titulares e suplentes, até um ano após o final do mandato, salvo se cometerem falta grave, nos termos da lei.
§ 2o O representante dos empregados desenvolverá seu trabalho normal na empresa, afastando-se de suas
atividades apenas quando convocado para atuar como conciliador, sendo computado como tempo de trabalho
efetivo o despendido nessa atividade.
Art. 625-C. A Comissão instituída no âmbito do sindicato terá sua constituição e normas de funcionamento
definidas em convenção ou acordo coletivo.
Art. 625-D.. Qualquer demanda de natureza trabalhista será submetida à Comissão de Conciliação Prévia se,
na localidade da prestação de serviços, houver sido instituída a Comissão no âmbito da empresa ou do
sindicato da categoria.
§ 1o A demanda será formulada por escrito ou reduzida a termo por qualquer dos membros da Comissão,
sendo entregue cópia datada e assinada pelo membro aos interessados.
§ 2o Não prosperando a conciliação, será fornecida ao empregado e ao empregador declaração da tentativa
conciliatória frustrada com a descrição de seu objeto, firmada pelos membros da Comissão, que deverá ser
juntada à eventual reclamação trabalhista.
§ 3o Em caso de motivo relevante que impossibilite a observância do procedimento previsto no caput deste
artigo, será a circunstância declarada na petição inicial da ação intentada perante a Justiça do Trabalho.
§ 4o Caso exista, na mesma localidade e para a mesma categoria, Comissão de empresa e Comissão sindical,
o interessado optará por uma delas para submeter a sua demanda, sendo competente aquela que primeiro
conhecer do pedido.
determinados conflitos cheguem aos fóruns trabalhistas. Uma vez instituídas as comissões
dentro das categorias de trabalho, as partes não podem recorrer à Justiça do Trabalho sem
antes tentar a conciliação nessas instituições. Nesse sentido, as comissões tem o escopo das
principais formas alternativas de solução de conflito, que é primeiro esgotar as vias
resolutivas sem a presença do órgão julgador estatal.
A conciliação é uma das mais antigas formas de solução de conflito sem que
o um terceiro tenha que dizer quem tem o direito. No caso do Brasil, faz parte do
ordenamento jurídico desde a Constituição Imperial, conforme ensinamentos de Cintra112:
Da conciliação já se falava a Constituição Imperial brasileira, exigindo que
fosse tentada antes de todo processo, como requisito para a sua realização e
julgamento de causa. O procedimento das reclamações trabalhistas inclui
duas tentativas de conciliação (CLT, art. 847 e 850). O código de Processo
civil atribui ao juiz o dever de a “qualquer tempo tentar conciliar as partes”
(art. 125, inciso I) e em seu procedimento ordinário inclui-se uma audiência
preliminar (ou audiência de conciliação), na qual o juiz, tratando-se de causas
versando direitos disponíveis, tentará a solução conciliatória antes de definir
os pontos controvertidos a serem provados. Tentará a conciliação, ainda, ao
início da audiência de instrução e julgamento.
Outra forma de aplicação da conciliação de grande importância nos sistema
brasileiro se dá nos Juizados Especiais Cíveis e Criminais em virtude da Lei 9.099/95. A
Lei inova em grande dimensão já que a ideologia de todos os atos praticados no rito por ela
estipulado induz, de maneira geral, a conciliação. Por esse procedimento foi instituído um
sistema conciliatório com a preparação de conciliadores leigos. Por exigir a obrigatoriedade
da conciliação, evidencia o caráter de simplificação do procedimento em detrimento ao
formalismo dos ritos processuais considerados óbice ao acesso à justiça. A conciliação, no
Art. 625-E. Aceita a conciliação, será lavrado termo assinado pelo empregado, pelo empregador ou seu
preposto e pelos membros da Comissão, fornecendo-se cópia às partes.
Parágrafo único. O termo de conciliação é título executivo extrajudicial e terá eficácia liberatória geral,
exceto quanto às parcelas expressamente ressalvadas.
Art. 625-F. As Comissões de Conciliação Prévia têm prazo de dez dias para a realização da sessão de
tentativa de conciliação a partir da provocação do interessado.
Parágrafo único. Esgotado o prazo sem a realização da sessão, será fornecida, no último dia do prazo, a
declaração a que se refere o § 2o do art. 625-D.
Art. 625-G. O prazo prescricional será suspenso a partir da provocação da Comissão de Conciliação Prévia,
recomeçando a fluir, pelo que lhe resta, a partir da tentativa frustrada de conciliação ou do esgotamento do
prazo previsto no art. 625-F.
Art. 625-H. Aplicam-se aos Núcleos Intersindicais de Conciliação Trabalhista em funcionamento ou que
vierem a ser criados, no que couber, as disposições previstas neste Título, desde que observados os princípios
da paridade e da negociação coletiva na sua constituição."
112
CINTRA, Op. cit. p. 27,28.
rito da Lei 9.099/95 vem de forma expressa no Art. 2º113 que, visando as deformalizações
do processo deverá buscar sempre a conciliação114.
2.2.2 – Mediação
A mediação surge na Terceira Onda proposta por Mauro Cappelletti115, onde
ao autor pretende, através de estudos atacar as barreiras de acesso à justiça de maneira mais
eficaz. O intuito da mediação é fazer com que o acesso à justiça seja facilitado numa
perspectiva que vai além do simples direito de que todos têm de pleitear resoluções de
conflitos no Poder Judiciário. Nessa nova perspectiva Cappelletti propõe a medição como
meio para que todos, em igualdade de situação, possam ter seus conflitos de
relacionamentos sociais solucionados, com produção de resultados que sejam individual e
socialmente justo116.
Inicialmente cumpre apontar alguns conceitos de mediação. Do ponto de
vista técnico, a legislação ainda não tem aplicação no sistema jurídico brasileiro. Tramita
no Congresso o Projeto de Lei nº 4.827/2002117 de autoria da Deputada Zulaiê Cobra, que
institui a medição. Como se observa na conceituação contida na lei, na aplicação da
mediação o mediador vai induzir as partes, mostrando-lhes os benefícios do não
prosseguimento da demanda, de maneira tal que as mesmas devem chegar a essa conclusão.
Essa talvez seja a característica básica da mediação, que a difere das demais formas de
solução de conflito aplicadas no sistema brasileiro, já que nas demais técnicas há sempre a
sugestão para que o acordo seja celebrado.
113
Art. 2º. O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia
processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.
114
A Expressão “deformalização” foi empregada por Ada Pellegrini Grinover, na obra “Deformalização do
processo e deformalização das controvérsias” RePro, v. 46, indicando uma necessidade de romper com o
formalismo típico dos procedimentos do Judiciário brasileiro.
115
116
117
CAPPELLETTI, op.cit.
Ibid. Op.cit. p. 8.
Segundo o Art. 2º do Projeto de Lei 4.827/02, mediação é atividade técnica exercida por terceiro imparcial
que, escolhida ou aceito pelas partes interessadas, as escuta, orienta e estimula, sem apresentar soluções, com
o propósito de lhes permitir a prevenção ou solução de conflitos de modo consensual.
Para Barcellar118 a mediação constitui uma técnica que se destina a
aproximar pessoas interessadas na resolução de um conflito a induzi-las a encontrar, por
meio de uma conversa, soluções criativas com ganho para ambas as partes, mantendo entre
elas o relacionamento. Frisa-se na extração do conceito acima que o intuito na mediação é
incentivar as próprias partes a chegarem a um consenso para que as mesmas possam
perceber as vantagens disso. Como um terceiro alheio ao mérito da questão propiciará
meios para as partes solucionem o conflito, mister se faz que elas mesmas enxerguem os
pontos controvertidos, reinicie um diálogo ou uma comunicação para se beneficiarem dos
benefícios da composição para que seja restabelecida a paz. Mesmo que a situação
pontualmente não seja resolvida, porém as partes irão vislumbrar um futuro mais
promissor. Isso porque as próprias irão perceber e compreender, de maneira geral, as
causas do conflito, fazendo que as mesmas então possam administrá-lo.
Ainda em caráter de conceituação, Pinho119 traz a colação importante
informação:
Nessa linha de raciocínio, entendemos a mediação, numa definição bastante
singela, como o instrumento de solução de um conflito, por meio do qual os
litigantes buscam o auxílio de um terceiro imparcial, e que seja detentor de
sua confiança.
Esse terceiro, como visto, não tem a missão de decidir (e nem a ele foi dada
autorização para tanto); e é justamente isso que faz com que as partes
procurem o mediador e exponham de forma mais sincera os seus problemas.
Cabe ao mediador auxiliá-las na obtenção da solução consensual, fazendo
com que elas enxerguem os obstáculos ao acordo e possam removê-los de
forma consciente, como verdadeira manifestação de sua vontade e de sua
intenção de compor o litígio como alternativa ao embate.
Normalmente, ao fim de um procedimento exitoso de mediação, as partes
compreendem que a manutenção do vínculo que as une é mais importante do
que um problema circunstancial e, por vezes, temporário.
Por outro lado, é bom que se observe que a mediação é uma técnica voltada
para solução de determinados tipos de conflitos. Como mencionado alhures, a diversidade
das relações sociais consequentemente diversificou os conflitos socais. Isso faz com que
nasçam diferentes conflitos com as mais variadas características. Dessa forma, a medição é
uma forma de solucionar situações pendentes que envolvam principalmente relação entre
pessoas. Não é indicada para solução de conflitos que envolvam questões técnicas que não
118
BACELLAR, Roberto Portugal. Juizados especiais – a nova mediação paraprocessual. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. p.174
119
PINHO, Op. cit. p. 14.
os relacionamentos pessoais. Além disso, é mais indicada para relações cujo
relacionamento é duradouro120.
Assim, torna-se importante para o sucesso da mediação o interesse das
partes em dialogar no sentido de entrarem em um acordo. Dessa maneira, excetuando os
sujeitos dispostos no Art. 34121 do projeto de lei, qualquer outra pessoa poderá tentar, via
diálogo, compor uma demanda, observando para isso, alguns princípios.
A mediação é um processo que envolve basicamente o interesse da parte em
chegar a um acordo. Sem esse interesse ou uma voluntariedade, dificilmente a composição
do conflito se efetivará, já que a parte deverá ser sujeito do processo.
Nogueira122, ao traçar a evolução da condição humana nas evoluções do
conflito fala da importância de se valorizar a ação do indivíduo em função das diferenças
inerentes a ele. Assim é que o conflito é conseqüência das diferenças, de tal forma que
sempre existirá. Porém, o interesse em agir do próprio indivíduo é o elemento básico para o
sucesso da solução do conflito de forma que atenda o que as partes desejam, não apenas do
ponto vista material, mas no sentido de restabelecer e manter a convivência. Nesse sentido,
comenta o autor123:
A ação só é possível em razão das diferenças entre os homens, no âmbito de
um mundo comum formado por uma diversidade de pontos de vista sobre os
mesmos objetos. Nesse sentido, demanda a liberdade de agir, a possibilidade
de estar entre pares sem que haja comandantes e comandados.
A ação não permite o controle pleno dos resultados dos negócios humanos,
em vista da imprevisibilidade de suas conseqüências, mas permite a
autodeterminação do agente, a sua autonomia. Disso já decorre uma
satisfação. Nas palavras de Dante, citadas por Hannah Arendt, “assim é que
todo agente, na medida em que age, sente prazer em agir; como tudo o que
existe deseja sua própria existência e como, na ação, a existência do agente é,
de certo modo, intensificada, resulta necessariamente o prazer”.
120
Ibid. p. 15
121
Art. 34. A mediação incidental será obrigatória no processo de conhecimento, salvo nos seguintes casos: I
– Ação de interdição; II – quando for autora ou ré pessoa de direito público e a controvérsia versar sobre
direitos indisponíveis; III – na falência, na recuperação judicial e na insolvência civil; IV no inventário e no
arrolamento; V – Nas ações de imissão de posse, reivindicatória e de usucapião de bem imóvel; VI – na ação
de retificação de registro público; VII – quando o autor optar pelo procedimento do juizado especial ou pela
arbitragem; VIII – na ação cautelar; IX – quando na mediação prévia, realizada na forma da seção anterior,
tiver ocorrido sem acordo nos cento e oitenta dias anteriores ao ajuizamento da ação.
122
NOGUEIRA, Op.cit., p. 6.
123
Ibid. p. 7.
Diante do exposto fica clara a importância da participação dos coparticipantes da demanda. Mas, além de participarem, deve ser uma participação com ação,
com uma integração para que o conflito seja resolvido não apenas momentaneamente, mas
visando a convivência harmônica e futura. A mediação vai propiciar isso a partir do
momento que prepara o terreno para um discurso, o diálogo, consequentemente buscando a
ação124. Daí a importância do preparo do mediador para alcançar esse objetivo, pois se trata
de técnica de solução de conflito um pouco diferente das comumente aplicadas já que
envolve as partes a trabalharem com os mais diversos sentimentos como insegurança,
incerteza, descrédito, vingança, etc.125.
O projeto de lei da mediação126, pensando na importância da formação do
mediador, valorizando o preparo do mesmo para lidar com questões de relacionamento
pessoal, fala da importância de buscar auxílio de profissional de outra área de
conhecimento subjacente ao litígio, denominados de co-mediadores. Nesse sentido, talvez
fosse interessante que os mediadores fossem pedagogos, psicólogos ou assistentes sociais.
Nesse diapasão, o interesse e a voluntariedade das partes envolvidas no
conflito tornam-se imprescindíveis na solução do conflito. O mediador deve estar atento no
intuito de observar se as partes estão predispostas a negociarem, para, ao contrário
incentivá-las a isso. Por outro lado, não havendo interesse real das partes a resolverem a
demanda, ou se as mesmas voluntariamente não se dispuserem, não faz sentido a imposição
da mediação. É a mediação um instrumento onde o incentivo à tentativa de solução deve
estar associado à autonomia e à independência das partes, mostrando-lhes que o controle do
processo é de exclusividade delas.
124
125
Ibid. p. 8.
Neste sentido, serve de exemplo as técnicas ou formas de tentativa de conciliação aplicadas pelos
julgadores nas demandas no Judiciário brasileiro. Ressalta as tentativas de conciliação muito comumente
usadas pelos juizes nas causas trabalhistas. Os julgadores insistem no acordo até aonde podem, muitas vezes
sem considerar o que ocorreu durante o a relação com vista no futuro. Fica em jogo apenas o valor
pecuniário a ser recebido pelo demandante contrapondo com o valor pago pelo demandado. Assim, não é
feito algo no sentido de, através dos acordos celebrados no presente, tendo por objetivo a melhoria das
relações trabalhistas futuras.
126
Art. 16 É lícita a co-mediação quando, pela natureza ou pela complexidade do conflito, for recomendável a
atuação conjunta do mediador com outro profissional especializado na área do conhecimento subjacente ao
litígio.
§ 1º A co-mediação será obrigatória nas controvérsias submetidas à mediação que versem sobre o estado da
pessoa e Direito de Família, devendo dela necessariamente participar psiquiatra, psicólogo ou assistente
social.
§ 2º A co-mediação, quando não for obrigatória, poderá ser requerida por qualquer dos interessados ou pelo
mediador.
A mediação tem recebido da doutrina a classificação em mediação ativa e
mediação passiva. Na primeira, o mediador intervém incentivando as partes a conciliarem.
Assim, funciona o mediador como uma espécie de conciliador, apresentando sugestões e
propostas, tanto do ponto de vista do mérito quanto do ponto de vista técnico jurídico127.
Na mediação ativa o mediador atua como se fosse um conciliador, fazendo com que esse
tipo de mediação em muito se assemelhe à conciliação. No ordenamento jurídico pátrio a
mediação ativa já vem sendo praticada, inclusive já positivada. Trata-se dos artigos 331,
447 e 265 do Código de Processo Civil128.
A mediação, por sua vez, apresenta várias vantagens para a solução de litígio
em detrimento ao prosseguimento do litígio ou mesmo em relação a outras formas de
solução da lide. Uma das vantagens está relacionada com o fato das partes participarem
efetivamente do processo, ou seja, as partes não ficam inertes, mas agem buscando, elas
mesmas, os caminhos para vislumbrarem o acordo.
A ação por parte dos litigantes é a grande vantagem da aplicação da
mediação. No processo jurisdicional esse elemento praticamente não existe, não possuindo
as partes a liberalidade de demonstrarem o que querem expressando seus sentimentos.
Através da ação, as partes reatam um diálogo onde elas criam as próprias normas e regras
de acordo com os seus interesses, diferentemente do que ocorreria numa decisão deferida
no judiciário129. Na mediação, as partes têm autonomia para se portarem perante o
mediador que não está hierarquicamente acima delas, de forma que a reestruturação da
situação se dá em virtude apenas de seus esforços130.
127
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Mediação: A Redescoberta de um Velho Aliado na solução
de Conflitos. In: Acesso a Justiça e Efetividade do Processo. Lumen Juris Editora. Rio de Janeiro. 2005. p.
112.
128
Art. 331. Se não ocorrer qualquer das hipóteses previstas nas seções precedentes, e versar a causa sobre
direitos que admitam transação, o juiz designará audiência preliminar, a realizar-se no prazo de 30 (trinta)
dias, para a qual serão as partes intimadas a comparecer, podendo fazer-se representar por procurador ou
preposto, com poderes para transigir..Art. 448. Antes de iniciar a instrução, o juiz tentará conciliar as partes.
Chegando a acordo, o juiz mandará tomá-lo por termo.
Art. 449. O termo de conciliação, assinado pelas partes e homologado pelo juiz, terá valor de sentença.
Art. 265. Suspende-se o processo:
II – pela convenção das partes.
129
NOGUEIRA, op.cit. p., 11.
130
Ibid, op.cit., p. 12.
No que se refere ao comportamento das partes no processo da mediação,
Nogueira131 resume:
Assim, a mediação (passiva) tem a vantagem e o mérito de criar um foro de
debate e ação entre as partes. Além disso, a mediação pode ser uma técnica
eficiente de resolução de conflitos, ainda que esse não seja seu objetivo
primário, uma vez que busca transformar as partes em negociadores
confiantes de si e sensíveis às situações alheias. Com o tempo, espera-se que
elas ganhem autonomia e passem a depender menos da providência estatal.
No mais, as partes têm a opção de optarem pela privacidade, já que incide
sobre a mediação a obrigação constitucional da publicidade dos atos já que os mesmos não
estão a acontecer no Poder Judiciário. Porém, nada impede que as mesmas abram mão de
tal prerrogativa. Da mesma forma, o procedimento da mediação é todo baseado na
informalidade dos atos, até mesmo para que as partes possam chegar a um consenso dentro
dos limites culturais de cada uma. Garantida essa informalidade, garantida estará a
flexibilidade do procedimento da mediação.
Finalmente há que ressaltar a diferença entre a mediação e a conciliação, já
que as técnicas, apesar de possuir características que se assemelham, podem propiciar
diferentes resultados. Pinho132, em três aspectos, aponta as diferenças entre a mediação e a
conciliação: quanto à finalidade, quanto ao método e quanto aos vínculos. Quanto à
finalidade, a mediação procura resolver os conflitos de forma abrangente, ou seja, em sua
totalidade. Já a conciliação solucionará o litígio apenas sobre aquilo que foi levantado pelas
partes.
Quanto ao método, o conciliador, intervindo mais, conduz o processo
induzindo as partes a celebrarem um acordo, ao contrário do mediador que toma postura
mais de observação daquilo que as partes estão colocando, intervindo apenas no sentido de
facilitar a comunicação entre elas133.
Finalmente, quanto aos vínculos tem-se que a conciliação é técnica que faz
parte do Poder Judiciário, movimentando para tanto juizes togados e leigos, com formação
especificamente para esse fim; ao passo que a mediação é atividade privada, não compondo
a estrutura do Poder Judiciário134.
131
Ibid, op.cit., p. 13.
132
PINHO, op. cit., p. 21
133
Ibid. op. cit., p. 21
134
Ibid. op. cit., p. 21.
2.2.3 Arbitragem
Alguns pontos serão abordados sobre este instituto que nos últimos anos tem
sido assunto corrente no meio doutrinário e jurisprudencial, tendo em vista a sua dimensão
moderna na tentativa de solucionar conflitos. Assim, em um primeiro momento será
comentado o universo jurídico do qual faz parte o instituto, qual seja, os mecanismos
alternativos de solução de conflitos. Neste momento também será feito um cotejo da
arbitragem com os demais mecanismos alternativos de solução de conflitos como a
conciliação e a mediação. Frisa-se, entretanto, que não se trata de estudo aprofundado da
Lei 9.307/96, muito menos comentário a esta, tendo em vista que o que se pretende é
analisar de forma crítica alguns aspectos da arbitragem como suas vantagens, natureza
jurídica e a questão de sua efetividade, como forma de fundamentação da presente
dissertação. Mas, faz-se necessário levantar, na Lei da Arbitragem, os pontos ou os
mecanismos dos quais se lança mão para que seja colocada em prática essa forma de
solucionar conflitos.
Da mesma forma, é importante fazer menção ao que seja a Convenção de
Arbitragem que contém a Cláusula Compromissória ou o compromisso Arbitral. O
conhecimento destes dois requisitos é fundamental para compreender como se dá
efetivamente a aplicação, nos contratos, da arbitragem.
A entrada em vigor da Lei 9.307 em 1996 imprime uma nova sistemática ao
instituto da arbitragem no universo jurídico brasileiro, antes regulado apenas pelo Código
de Processo Civil. O seu advento dissipa alguns vícios que contribuíam para o descrédito a
quem recorria ao referido instituto. Dentre outros, tem o fator histórico como muito bem
demonstra Júnior135:
A justificativa histórica para fenômeno da ausência de efetiva utilização e
conseqüente falta de tradição do instituto no Brasil pode ser apontada,
principalmente como sendo os entraves criados pelas respectivas legislações,
sempre hábeis a desencorajar o pretenso interessado em solucionar seus
conflitos através da arbitragem, a ponto de fazê-lo terminar por escolher a
burocrática, dispendiosa e lenta justiça estatizante.
Outros motivos concorriam e ainda concorrem para certo descrédito por
parte da população brasileira ao uso deste instituto jurídico que acompanha uma tendência
de modernização e privatização da resolução de conflitos intersociais. Porém, não se deve
135
JÚNIOR, Joel Dias Figueira. Arbitragem, Jurisdição e Execução. 2ed. Ed. Revista dos Tribunais. São
Paulo. 1999. p. 96.
omitir alusão à característica marcante no Brasil da dependência de recorrer ao Estado e
assim tê-lo como a única opção confiável para solucionar conflitos sociais. Este motivo
decorre basicamente, senão unicamente, por ser o Direito brasileiro um direito codificado,
ou seja, é o Estado quem dita, de maneira antecipada uma conduta a ser seguida por todos
na sociedade, sendo esse mesmo ser dotado de jurisdição que deverá dizer quem está
seguindo ou não esta conduta.
Desde a antiguidade clássica já existia a aplicação da arbitragem.
Obviamente se tratava de uma forma de arbitragem muito rudimentar. Alvim136 diz que:
Quem se disponha a fazer uma busca sobre a origem da arbitragem, na sua
forma mais primitiva, por certo não vai encontra-la, pois ela se perde nas
dobra do tempo, mas, na sua forma mais civilizada, vai, sem dúvida,
encontra-la em Roma, primeiro de forma exclusiva e, depois, convivendo
com justiça estatal.
No regime monárquico os reis eram tidos ou se portavam como árbitros. Na
Idade Média já se desenvolvia a arbitragem, através dos clérigos que tinham como
inspiração o direito divino. A arbitragem era por equidade e desenvolvida pelo Chanceler
do Reino. Com o advento do Estado moderno, mais precisamente o Estado de Direito, essa
função é assumida pelo Juiz de Direito, mandatário do Poder Judicante do Estado.
Na atualidade a arbitragem já é muito aplicada em alguns países, caso dos
Estados Unidos em que recorrer ao árbitro para solução de litígios é prática constante,
culminando no surgimento de grandes instituições, ou grandes tribunais que disponibilizam
árbitros. Na Alemanha, já amplamente praticada nos dissídios coletivos. Da mesma
maneira, no Direito Internacional, visto que nos negócios entre nações ou entre empresas
transnacionais, a dificuldade de aplicação de legislação, tendo em vista o envolvimento de
diversos ordenamentos jurídicos, invoca a necessidade de uma figura neutra, daí recorrer-se
ao árbitro.
Os tribunais137 de justiça arbitral começaram a serem criados em virtude da
entrada em vigor da Lei 9.307 de 1996. Não vieram com intuito de concorrer com os
Tribunais Estatais, mas sim a estes somar na árdua missão de reverter o quadro de
morosidade, que por via de conseqüência contribui para o descrédito por que passa o
136
137
ALVIM, J. E. Carreira. Comentários à lei da arbitragem. 2ª edição. Curitiba: Juruá, 2007. p. 17.
Há posicionamentos doutrinários no sentido de que não poderia usar a expressão “Tribunal” para
designação destas instituições onde se disponibiliza árbitros para a solução de litígios. Em sentido contrário
Carlos Alberto Carmona.
Direito brasileiro. E em muito têm contribuído para o acesso à justiça, pois efetiva de
maneira célere e menos burocrática o direto do postulante, minimizando os efeitos
decorrentes da obrigação do postulado. Martins138, ao fazer uma análise do aniversário de
10 anos de surgimento da lei, discorre:
O sucesso da arbitragem no Brasil se deve também em grande parte à posição
dos juízes. O supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da
lei. Por sua vez, o Tribunal superior de Justiça, facilitou a homologação das
decisões arbitrais estrangeiras, aplicando, de imediato, a nova lei, admitindo
a convenção de arbitragem tácita, definindo mais adequadamente a ordem
pública e consagrando a arbitrabilidade dos conflitos nos quais uma das
partes é sociedade de economia mista. Finalmente, os juizes de primeiras
instâncias e os tribunais estaduais passaram a apreciar as decisões arbitrais
com menor formalismo, só decretando a sua nulidade em raros casos de
violação do direito de defesa ou de suspeição dos árbitros.
O século XXI se caracteriza pela velocidade. Em virtude das novas
tecnologias e da globalização, a solução de litígios não pode eternizar-se. É
preciso, todavia, que as decisões dos conflitos não sejam tão somente
rápidas, sendo imprescindível que também sejam eficientes e justas. Num
mundo conturbado, com tribunais sobrecarregados, a arbitragem é a melhor
alternativa para determinados casos, em que se pode obter soluções
eficientes, justas e éticas. Eis o mérito da Lei 9.307/96.
Assim, verifica-se que os principais e possíveis entraves que poderiam
impedir a efetivação deste moderno instituto jurídico já foram superados. A
constitucionalidade da lei 9.307/96, que doutrinariamente ainda há posicionamento
contrário, já foi devidamente reconhecida por quem de direito compete, o STF139. Dessa
forma, o instituto da arbitragem, através dos seus tribunais, pode proporcionar grande
contribuição para a resolução de conflitos de natureza disponível, reduzindo e eliminando
prolongadas demandas judiciais que são verdadeiras barreiras para a consecução da
efetividade processual, importante princípio constitucional.
A arbitragem vem no mesmo sentido da conciliação e da mediação, atender
à grande demanda de conflitos gerados em função da diversificação das relações sociais.
Os estudos acerca do instituto da arbitragem estão concentrados,
principalmente, no plano doutrinário. Mesmo porque, para os padrões brasileiros, a sua
criação se deu num passado recente. No plano de sua aplicação podemos distinguir dois
138
MARTINS, Ives Gandra da Silva, Dez anos da Lei de Arbitragem. Disponível em: <
www.jus2.uol.com.br/doutrina> Data de acesso: 18/12/2006.
139
A constitucionalidade da Lei 9.307/96, mesmo após o seu reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal,
ainda é motivo de vasta discussão doutrinária. Porém, para este estudo é irrelevante tal polêmica, já que o
quer se quer aqui é verificar, in loco, a contribuição efetiva e prática, da eficiência dos tribunais de justiça
arbitrários.
diferentes âmbitos. No primeiro, que podemos chamar de âmbito geral, é a aplicação da
arbitragem nos contratos internacionais, para o qual existe a Corte Internacional de
Arbitragem, entidade vinculada à Câmara de Comércio Internacional. Este, já mais
difundido e aplicado, tendo em vista a participação de outros países cuja tradição reconhece
há mais tempo a intervenção do árbitro na solução de conflitos.
No âmbito doméstico, implica em analisar a aplicação do referido instituto
na sociedade brasileira via os denominados Tribunais de Justiça Arbitral. Por ser uma das
formas de democratização do acesso à justiça, visto que desobriga as partes a estarem sob
égide do Estado, faz com que ele seja um dos mais importantes métodos alternativos de
solução de conflitos, culminando no mais efetivo Acesso à justiça e dando mais efetividade
ao processo.
O instituto da Arbitragem no Direito brasileiro, fundamentado pela Lei nº
9.307 de 23 de setembro de 1996, integra o rol das chamadas “formas alternativas de
Resolução de Conflitos” ou “meios alternativos de resolução de conflitos.”140
Conhecida como Lei Marco Maciel, por ser esse parlamentar o autor do
anteprojeto, pode ser considerada, guardando as devidas proporções, como uma forma de
“privatização” de funções que até então só cabiam ao Poder Judiciário.
Caracteriza a referida lei por proporcionar julgamentos com grande
flexibilidade processual e não serem públicos, características dos mecanismos alternativos
de solução de conflitos.
Pode ser definida como um procedimento consensual, no qual uma terceira
parte neutra, o árbitro, ouve os argumentos das outras duas sobre o litígio, considera as
evidências e emite uma decisão final. Essa decisão, por sua vez, tem valor de coisa julgada.
Segundo Silva141:
Derivado do Latim arbiter (juiz, louvado, jurado), embora por vezes tenha a
mesma significação de arbitramento, é, na linguagem jurídica, especialmente
empregado para significar o processo que se utiliza, a fim de se dar solução a
litígio ou divergência, havida entre duas ou mais pessoas. quando a
arbitragem ocorre entre pessoas de Direito Internacional, para a solução de
litígios ou conflitos internacionais, a matéria é regulada pelas convenções
anteriormente instituídas, ou pelas regras que forem admitidas no momento
140
Deve-se ressaltar que as expressões são usadas por diversos doutrinadores. Dessa forma, no presente
trabalho não se fará menção a este ou aquele no sentido de justificar a gênese da expressão.
141
SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaib Filho e Gláucia Carvalho. Rio
de Janeiro. Ed. Forense. 2006. p. 129.
de sua admissão. A arbitragem tanto pode ser obrigatória como facultativa. A
maior inovação da Lei 9.307 é a equiparação entre a cláusula
compromissória e o compromisso arbitral, como forma de composição
extrajudicial de litígios, cuja adoção exclui a causa do âmbito do processo
jurisdicional.
Extrai-se do conceito acima que a parte será obrigada a constituir
procedimento arbitral em virtude da cláusula compromissória. Uma vez os signatários do
contrato instituírem a cláusula compromissória, só se instalará procedimento judicial
obrigando a parte omissa recorrer ao juízo arbitral.
A busca pelo aperfeiçoamento e efetivação do acesso a justiça é luta que
pode ser verificado no mundo todo. No Brasil, então, tornou-se questão de honra tendo em
vista a burocratização que aqui reina em todos os níveis estatais, mormente no judiciário.
A Arbitragem é assim descrita por Pinho142:
Na arbitragem, as partes maiores e capazes, divergindo sobre direito de
cunho patrimonial, submetem o litígio ao terceiro (árbitro) que deverá, após
regular procedimento, decidir o conflito, sendo tal a decisão impositiva. Há
aqui a figura da substitutividade, eis que há a transferência do poder de
decidir para o árbitro, que por sua vez é um juiz de fato e de direito.
Feita a conceituação da arbitragem, passa-se então a uma breve análise do
instituto, no sentido de demonstrar quais são suas vantagens, desvantagens e sua
contribuição para o acesso à justiça cotejando-a com as regras processuais civis
tradicionais. Nesse sentido, não custa frisar novamente que o referido instituto já vem
sendo analisado de forma crítica e dogmática, de maneira que, tirando algumas questões a
estas subjacentes, como inconstitucionalidade para alguns ou tentativa de privatização da
jurisdição estatal para outros, a arbitragem já tem sólida base doutrinária.
No plano doutrinário há posicionamento uníssono no sentido de considerar o
instituto da Arbitragem como grande evolução processual e modernização das formas de
acesso à justiça. Mas a aceitação social e sua aplicação tornam-se a grande questão desta
forma ou de qualquer outra, que vem como tentativa de modernizar as técnicas processuais
ou de maneira mais abrangente, facilitar o acesso à justiça, mormente frente ao disparate de
instrumentos protelatórios e impeditivos da eficácia processual. Neste sentido, vários
142
PINHO. Op. cit., p. 109
outros institutos jurídicos forma criados, mais ou menos na mesma época de criação do
instituto ora em estudo, que não teve grande aceitação social ou não trouxeram
efetivamente os resultados esperados no momento que antecedeu as suas criações. Foi
assim com as Comissões de Conciliações Prévias trabalhistas, instituídas pela Lei de nº
9.958 de 2000143.
A Arbitragem se assemelha à conciliação e à mediação no que tange à
ideologia, que é contribuir de maneira autônoma, já que não é necessária ou obrigatória a
busca pela jurisdição estatal para a consecução e resolução do litígio, funcionando como
uma forma paralela ou, como frisado alhures, uma privatização do processo.
Mas a dificuldade da aceitação pela sociedade brasileira das modernas
formas de resolução de conflitos encontra sustentação na tendência que aqui predomina de
confiar ou enxergar no Estado o único capaz de resolver os conflitos sociais. Essa tendência
é decorrente, dentre vários outros fatores, evidentemente, no sedimentado direito
codificado escrito, ou seja, legislado, que o Brasil herdou da tradição romana. Neste
diapasão, institutos jurídicos como a arbitragem e outros similares têm elevado índice de
aceitação nos países de tradição do direito costumeiro ou aqueles que já estão seguindo
essa tendência.
A arbitragem inova em vários aspectos, trazendo inúmeros benefícios no
sentido de resolver o litigo. Estes contrastam com o sistema judiciário brasileiro que,
infelizmente continua inoperante e arcaico, beneficiando pequena parcela social sem
conseguir atingir sua finalidade mor, a justiça. Com propriedade, Carvalho144 faz
comentário dessa situação nas palavras que se seguem:
Esse é o drama maior da Justiça: ter que ser justa, convencer os outros de que
está sendo justa, mas fazê-lo de modo rápido, pois o bem justiça é essencial,
é um tesouro, e temos de colocar esse tesouro dentro do tempo, pois de nada
adiantam os tesouros que não podem ser usufruídos.
Nesse sentido a arbitragem consegue alcançar inúmeros benefícios, em
contraste com o sistema do Poder Judicante que ainda luta para se livrar de inúmeros
vícios, principalmente na seara processual. Sendo o excessivo número de formalidade um
143
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho: História e Teoria Geral do Direito do
Trabalho. 21 ed. Ed. Saraiva . São Paulo. 2006.
144
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinette Castanho de. Constituição, Medidas Cautelares e Ordem
Pública. In: Acesso à Justiça e Efetividade do Processo. Lumen Iuris Editora. Rio de Janeiro. 2005. p. 222.
dos entraves da função jurisdicional estatal, a arbitragem traz como um de seus benefícios
exatamente o fato de conter menos formalismos.
Wald145 comentando sobre a busca de eficácia da arbitragem expõe:
A relativa rigidez das leis e a necessidade de maior flexibilidade no direito
dos negócios encorajaram as partes a recorrerem à arbitragem, que pode
aplicar o direito flexível, ao qual faz alusão o decano Jean Carbonier e da
qual a empresa comercial do século XX necessita. E a arbitragem deve ser
eficaz, ou seja, a decisão dos árbitros deve poder ser executada, sem
dificuldade nem oposição, no mesmo oportuno, de tal forma que em caso de
infração contratual as partes possam retornar imediatamente à situação
anterior, ao status quo ante. Infelizmente, nem os juízes, nem os árbitros têm
a capacidade de julgar em tempo real, ou seja, no exato momento em que as
partes o solicitam. Assim, um arsenal de recursos em medidas provisórias é
utilizada pelos juízes e árbitros, sob as mais diversas formas.
Santos146 enumera como vantagens da arbitragem os seguintes benefícios:
Experiência particular de quem soluciona a lide; Especialização dos árbitros.
Ora, as partes ao recorrerem ao árbitro têm a possibilidade de direcionar a
escolha para alguém especialista naquilo que é objeto da lide. Assim,
diferentemente do Juiz de Direito que deve analisar e julgar todos as causas a
ele apresentadas, a escolha do árbitro poderá ser voltada para alguém que é
conhecedor profundamente apenas daquela matéria.
Não exposição do problema. É a possibilidade da confidencialidade. Já que
as partes escolhem livremente aquele que elas querem que solucione o litígio,
elas têm a prerrogativa de exigência da confidencialidade, ao contrário do
Judiciário que, salvo em alguns casos, há obrigatoriedade constitucional da
publicidade.
Das decisões não cabem recursos. Outra marcante vantagem da arbitragem
frente à jurisdição tradicional. Daí porque a questão da arbitragem está
intimamente ligada ao acesso à justiça. O número excessivo de possibilidade
de recursos autorizados pela legislação processual converte em flagrante
barreira de almejar a justiça no seu sentido mais amplo. Ao diminuir
drasticamente a possibilidade de recursos, está-se invariavelmente elevando a
possibilidade de conseguir com mais efetividade o acesso à justiça.
Constitucionalidade reconhecida. Essa questão advém do princípio
constitucional do acesso ao Poder Judiciário. Em determinado momento a
inconstitucionalidade da arbitragem foi aventada sob o argumento de que
feriria o referido princípio. Neste trabalho não é pertinente esmiuçar essa
questão, já que desvirtuaria o seu intuito. Porém, cabe ressaltar que o STF já
entendeu ser constitucional a arbitragem, conforme já comentado
anteriormente.
145
WALD, Arnold. A evolução do direito e a arbitragem. In LEMES, Selma Ferreira, CARMONA, Carlos
Alberto, MARTINS, Pedro Batista (Coord.). São Paulo: Atlas, 2007. p. 456.
146
A presente fonte tem como autor o Professor Theóphilo de Azeredo Santos, em aula ministrada no
Programa de Mestrado da Faculdade Estácio de Sá no Rio de Janeiro em maio de 2008.
Informalidade que gera rapidez e economia. As partes no procedimento
arbitral deverão arcar com os honorários dos árbitros. Mas, frente às custas
processuais e honorários advocatícios presentes em ação judicial, a despesa
com os árbitros é mínima. Subsidiariamente tem a economia com
informalidade dos atos e a rapidez na decisão.
Reconhecimento internacional. Esse reconhecimento dá à arbitragem
dimensões universais, aspecto não presente na aplicação das legislações
nacionais que se caracterizam por nuances próprias advindas de seus
sistemas e ordenamento jurídicos.
Desta feita, notadamente tem-se um instituto jurídico que inserido no
ordenamento jurídico pátrio muito tem a contribuir para que efetivamente possa destravar o
emaranhado processual que impede a consecução do princípio constitucional do direito de
acesso à justiça, sob o prisma de que justiça é bem mais importante e mais amplo do que
possibilidade de recorrer-se ao Poder Judicante do Estado.
Polêmica maior é suscitada quando o assunto é a natureza jurídica do
instituto jurídico da arbitragem. Tem a arbitragem natureza jurídica contratual ou
jurisdicional? Os pontos de vistas divergem e aqui se tentará buscar as mais relevantes
posições a fim de enriquecer o debate. Antes de enveredar-se para os posicionamentos
acerca da natureza jurídica do instituto objeto do estudo, cabe frisar a crise por que passa as
dicotômicas classificações como Público/Privado, disponível/indisponível ou, como no
caso, contratual/jurisdicional. Essa crise tem conotação benéfica, pois lança mão de
questionamentos acerca daquilo que “é” sob o ponto de vista teórico, em detrimento ao que
está ocorrendo na prática. Assim, novos institutos jurídicos advindos de novas relações
sociais conclamam por alterar as tradicionais formas de classificação. Para ratificar esse
posicionamento é ilustrativo o pensamento de Gomes147:
O propósito de dar ao equilíbrio social sentido mais humano e moralizador
conduziu a política legislativa para vigorosa limitação da autonomia privada.
Dimanam as restrições, mais enérgica e ostensivamente, da direção estatal da
economia, que se tornou corrente até nos países mais apegados ao
liberalismo. Em conseqüência da política intervencionista, deixou de ser livre
em vários contratos, a determinação do seu conteúdo ou de um de seus
elementos típicos; em outros, perdeu uma das partes a liberdade de escolher a
outra; certas pessoas são obrigadas a contratar; a formação de alguns
contratos necessita da autorização ou da aprovação da autoridade
administrativa, e assim por diante. Surgiram, em conseqüência, novas figuras
jurídicas que excedem o modelo clássico do contrato, lhe alteram a
configuração e impõem a necessidade de rever seu próprio conceito.
147
GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. – 2ª ed. aum. – São Paulo: Ed.
Revista dos Tribunais, 1980. p. 6.
O instituto da arbitragem, carreado de uma nova dimensão no sentido de
atender a uma das mais antigas reivindicações sociais, a de decidir o conflito, encontra
dificuldade de subsumir-se nas tradicionais classificações. Isto porque no ordenamento
jurídico brasileiro sempre vigorou a idéia de que apenas o Estado detinha o poder ou a
função de julgar quem tem o direito. A partir do momento em que tal ofício é entregue a
um particular, o tradicional conceito de jurisdição se depara com um novo instituto que
nele não se encaixa perfeitamente.
Natureza jurídica implica em assinalar a essência ou atributos essências, do
ponto de vista do direito, daquilo que se quer nomear. Nos dizeres de Silva148:
Assim, a natureza se revela pelos requisitos ou atributos essenciais e que
devem vir com a própria coisa. Eles se mostram, por isso, a razão de ser, seja
do ato, do contrato ou do negócio. A natureza da coisa, pois, põe em
evidência sua própria essência ou substância, que dela não se separa, sem que
a modificação ou a mostre diferente ou sem os atributos, que são de seu
caráter. É, portanto, a matéria de que se compões a própria coisa, ou que lhe
é inerente ou congênita.
Dessa forma, a natureza jurídica ao ser revelada pelo que apresenta de
atributos essenciais ou requisitos, como mencionado pelo autor, passa a identificar
determinado instituto jurídico. Os atributos ou os requisitos da arbitragem dão a ela a
natureza jurídica contratual ou jurisdicional?
Diversos autores abordam a questão da natureza jurisdicional da arbitragem
para demonstrar de como é diverso e pluríssono seus entendimentos149:
Alexandre Câmara nega ao arbitramento caráter jurisdicional, entendendo
que o árbitro, embora exerça função pública, não exerce atividade
jurisdicional; a arbitragem é um processo, “não, porém um processo
jurisdicional, pois a jurisdição é monopólio do Estado, não podendo ser
exercida pelo árbitro, o qual é um ente privado.”
José Cretella Neto, reportando-se a José Carlos de Magalhães, sustenta, como
esse autor, que a arbitragem tem natureza mista, sui generis, contratual em
seu fundamento, e jurisdicional na forma da solução dos litígios e nas
conseqüências que provoca no mundo do Direito”.
Cândido Rogério Dinamarco considera a arbitragem como um “meio
alternativo” para a solução de conflitos, processando-se “fora do âmbito do
exercício do poder estatal pelo juiz”.
148
149
SILVA, De Plácido e. Op. cit. p. 944.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Arbitragem. Cláusula compromissória. Cognição e Imperium. Medidas
Cautelares e Antecipatórias. Civil Law e Common Law. Incompetência da Justiça Estatal. Revista dos
Tribunais – Setembro de 2005 – 94º ano. p. 131.
Teori Zavascki nega peremptoriamente à arbitragem o caráter jurisdicional:
“nem se poderia, mediante lei ordinária, igualar ato privado com ato de
jurisdição, já que isso importaria rompimento do monopólio da função
jurisdicional, que pertence ao Estado por força da constituição Federal (art.
5º, XXXV)” e, destarte, considera inapropriada a inclusão da sentença
arbitral entre os títulos executivos judiciais”.
Como se observa, só na citação anterior três posicionamentos diferentes são
aventados sobre a classificação da natureza jurídica da arbitragem. Em sentido contrário
aos posicionamentos daqueles que a consideram como de natureza contratual ou
jurisdicional, ainda têm aqueles que dão a ela caráter misto.
Alvim150, ao comentar a Lei da Arbitragem, expõe o pensamento da doutrina
estrangeira quanto á tentativa de classificação da atuação dos árbitros quanto a sua natureza
jurídica.
Não é pacífica nem na doutrina estrangeira a natureza jurídica da arbitragem
e da função arbitral, ou se exercem ou não os árbitros função
verdadeiramente jurisdicional. Na Itália, o clássico Mortara via na arbitragem
a natureza jurisdicional, ao sustentar que os árbitros são investidos de
jurisdição, pelo que a lei lhes concede o cumprimento de ato de soberania;
Carnelutti vacilou ao tratar da natureza jurídica da arbitragem. Depois de
situá-la em seu sistema, no terreno processual, estimando que ela não devia
ser incluída entre os equivalentes processuais, veio a considerá-la, em suas
Instituições, como um equivalente do processo ou um sub-rogado processual.
Calamandrei tece encômios à doutrina que, em vez de considerar os árbitros
como encarregados de funções jurisdicionais, considera-os como
substitutivos da jurisdição ou equivalentes do processo, ou meios de defesa
extrajudicial, mas prefere, ele próprio, considera-los como verdadeiros
auxiliares da justiça, que desenvolvem a sua atividade sobre controvérsias
pertencentes à jurisdição do Estado e sobre os quais os órgãos jurisdicionais
continuam sendo competentes no momento essencial da jurisdição, que é o
mandato.
Através destes posicionamentos pode-se enriquecer o debate acerca da
questão da natureza jurídica da arbitragem. Como são diversos os posicionamentos, através
de variadas manifestações, nota-se a questão polêmica anteriormente relevada. Porém, não
o fato de ser diversos os entendimentos que tira o mérito deste novo instituto jurídico
enquanto um meio de solucionar os conflitos oriundos principalmente de contratos ou
negócios disponíveis. Mesmo por que, além da polêmica da natureza jurídica, outras ainda
existem ou estão por vir, como a questão da disponibilidade/indisponibilidade, não
150
ALVIM, Op.cit., p. 42,43.
considerada neste trabalho. O fato é que as classificações dogmáticas positivistas carecem
de um realinhamento para se adequarem à realidade atual, qual seja, novos fatos sociais
demandando novos institutos jurídicos.
Diante do exposto e defendido nestas breves linhas em que se pretendeu
traçar a evolução e aplicação da arbitragem como mecanismo alternativo de solução de
conflito, nota-se que o referido instituto tem, e ainda terá, um longo caminho a ser
percorrido até ser consolidado no ordenamento jurídico pátrio. Outros pontos ou questões
ainda carecem de discussão aprofundada para ser aparadas as arestas que ainda embaraçam
a aplicabilidade da arbitragem no direito brasileiro e quiçá no direito alienígena.
Mas em que pese à característica marcante que impera no Direito brasileiro,
ou seja, o descrédito com novos institutos jurídicos como os conciliatórios, a arbitragem
tem sido objeto de muitos estudos e mais do que isso, tem tido aceitação pela população
como meio de solução de conflitos. Desta forma, nota-se o surgimento de considerável
número de Tribunais de Justiça de Arbitragem, disponibilizando à sociedade solução
alternativa de resolução de conflitos. É evidente que muitos destes têm sua ideologia
desvirtuada, ou seja, ao que deveriam funcionar como mecanismos de solução de conflitos
na sociedade, têm servido a um sem número de aproveitadores. Essa, porém, não é a
questão, mesmo porque nas instituições oficiais e já consagradas também encontramos os
mesmos tipos, sem que deixem de prestar essenciais serviços à sociedade.
Destarte, o que se vislumbra é a efetivação de um mecanismo que poderá e
deverá, em muito, contribuir para auxiliar na solução daquele que é o maior desafio do
direito na atualidade: acesso efetivo à justiça.
2.3 MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
NO DIREITO COMPARADO
Os mecanismos alternativos de solução de conflitos, apesar de recentes, se
comparados à forma tradicional, a jurisdição, já são amplamente difundidos e aplicados em
alguns países. Porém, para uma melhor fundamentação da aplicação desses processos em
alguns Estados Nacionais, é importante cotejar os sistemas jurídicos basilares no mundo
ocidental.
A globalização trouxe consigo a universalização das relações sociais
fazendo surgir, por conseguinte, novas relações jurídicas. As transações comerciais e
contratuais extrapolam as fronteiras das nações se tornando verdadeiras relações
supranacionais. Muito embora a globalização seja diversificada, atingindo as mais diversas
conjunções pessoais ou comerciais, o mesmo não ocorre no âmbito do direito. Ou seja, não
nasce um sistema jurídico universal que atenda a essas novas demandas. Continua a
prevalecer os sistemas normativos de cada Estado Nacional.
Os conflitos de interesses oriundos dessa diversificação fazem com que as
partes envolvidas vão ficando desamparadas do ponto de vista normativo, em função da
divergência legislativa. A aplicação das regras processuais e materiais, bem como os
princípios advindos dos diferentes sistemas jurídicos não atendem aos interesses de todas
as partes envolvidas.
Diante desse quadro, formas alternativas de solucionar conflitos começam a
ser aplicadas tendo em vista que estas se adaptam aos mais diversificados sistemas
jurídicos. Como a maioria das relações entre nações são transações do ponto de vista
comercial, ou seja, direitos disponíveis, a aplicação dos mecanismos alternativos de
solução de conflitos funciona como forma viável para dirimir possíveis demandas.
Os sistemas de direitos dominantes no universo do direito ocidental são os
denominados de Common Law e o Civil Law. Aquele, cuja gênese está nos países de
origem anglo-saxônica, tem como fundamento a jurisprudência. As decisões pretéritas são
basilares paras solucionarem litígios futuros, prevalecendo o posicionamento dos tribunais
sobre a lei.
Já nos sistemas do Civil Law há a predominância da lei sobre as decisões dos
tribunais. Os tribunais, ao decidirem, pautarão pela lei como fundamento para
sentenciarem. Esse é o sistema adotado pela maioria dos países, principalmente os de
origem latina. É o caso do Brasil, que tem um número excessivo de leis.
Porém, em virtude da já citada globalização, as nações têm perdido o
tradicional conceito de soberania, já que assumem obrigações através de acordos, tratados
ou convenções, aumentando o grau de interdependência. E com a concretização do Estado
Democrático de Direito, os valores contidos nas Constituições passam a indicar a aplicação
do direito, de tal sorte que passa a sobressair principalmente o respeito mútuo, valorizando
a interação jurídica, econômica e cultural.
Mas, inerente que é aos seres humanos e às instituições, os conflitos não
deixam de existir. E assim, as formas de solucioná-los vão moldando essa nova realidade,
fazendo com que as nações passem a aplicar mecanismos que não os tradicionais para
poder dirimir os conflitos.
De maneira geral, os mecanismos alternativos de solução de conflitos são
aplicados em vários países nas formas em estudo. Nesse sentido, discorre Reis151:
No Canadá as Alternative dispute Resolution (ADR) crescem de forma
impressionante das seguintes formas: a) Rules of Civil Procedure (ocorre nos
países da Common Law) visa incentiv ar as partes a ngociarem o resultado
do processo. “se o autor ou réu faz proposta, recusada pela outra parte, esta é
punida (com aumento das custas) caso o resultado do processo não se iguale
ou supere à proposta, e como conseqüência o acordo se tornou comum. b)
mediação judicial na audiência preliminar (que estão se tronando regra no
Common Law)com tentativa de intermediar um acordo sendo feita por juiz
deiverso do julgador. C) mediação familiar – que podem ser voluntárias ou
obrigatórias com mediadores judiciais ou particulares. D) remessa obrigatória
a mediação. E) “Tribunal Privado” (arbitragem) com advogados experientes
e juizes aposentados. Em Ontário tem lei arbitral que reforça o efeito das
cláusulas arbitrais e limita o reexame judicial. F) aumento judicial de 1000
para 6000 do limite de competência por valor dos juizados de pequenas
causas, especialmente em Ontário. Nos Estados Unidos o acesso à justiça não
é um “direito social”, mas um “problema social” e solução foi retirar dos
tribunais boa quantidade de litígios, e então as Alternative Dispute
Resolutions passaram a ser tão importantes que se tornaram objeto de cursos
em faculdades de Direito e a possibilidade de arbitragem existem em quase
todo tribunal. O tribunal remete ao árbitro, devendo as partes ser submissa
compulsoriamente ao árbitro, no entanto a decisão arbitral pode ser
impugnada, mas há sanção de condenação de custas caso o reexame em juízo
seja infrutífero. Destaca-se ainda, que a American Bar Association possui
sessões e comissões especiais para a promoção das ADRs.
Na França existe os “Conciliateurs”, que são pessoas leigas, indicadas pelo
presidente do tribunal com a função de descobrir a possibilidade de acordo. Além dos
“Conciliateurs”, há os “Mediateurs”, que, como auxiliar do juiz, têm a função de incentivar
as partes a desistirem da demanda, mostrando-lhes as vantagens de chegarem a uma
solução de maneira amigável152.
A adoção dos mecanismos alternativos de solução de conflitos tem aplicação
diferenciada nos diversos países. Isso se dá, principalmente, em função da ideologia dos
sistemas jurídicos adotados. Nos Estados Unidos, por ser um sistema jurídico típico do
Common Law, ou seja, sobressai a atuação do julgador face a criação da lei, tem-se muito a
151
REIS, Suelen Agum. Meios alternativos de solução de
bdjur.stj.gov.br/jspui/bitstream/2011/18287/2. Acessado em 24/03/2009. p.
152
REIS, Op. cit. p. 18.
conflitos.
Disponível
em
aplicação da arbitragem. Conforme Júnior153, nos Estados Unidos há aplicação da
arbitragem em todos os estados e a lei estadual não pode limitar o cumprimento de cláusula
arbitral. Nesse sistema, não há diferença entre a cláusula arbitral ou o compromisso
arbitral, sendo que os contratantes convencionam por escrito o desejo de recorre-se ao
árbitro em caso de desacordo no cumprimento contratual154.
Pode ser observado também, que o poder conferido ao árbitro é mais
ampliado do que ocorre com a legislação pátria. Os árbitros podem adotar medidas que
visem melhor esclarecimento acerca do proferimento da decisão. No mesmo sentido, a
sentença arbitral tem força de coisa julgada155.
Na Argentina, a arbitragem é aplicada em função de disposição no código de
Processo Civil. De acordo com essa disposição, as causas passíveis de transação podem ser
aplicadas à arbitragem156.
Cappelletti157, de forma resumida, aponta o uso do juízo arbitral em alguns
países:
Na França, por exemplo, desde 1971 as partes tem a opção de encaminhar
causas a um juiz para que proceda como “árbitro amigável”. Da mesma
forma, em 1971, um programa experimental de juízo arbitral voluntário, na
Califórnia, propunha-se a reduzir custos através da utilização de advogados
voluntários, não remunerados como árbitros. Esse sistema foi tão bem
sucedido em reduzir custos tanto para as partes como para o Estado, que foi
substituído em meados de 1976 por um sistema formal de arbitramento
compulsório, disponível por requisição do demandante. Dadas as delongas e
despesas frequentemente características dos litígios, essas alternativas podem
reduzir barreiras de custas para as partes e, pela utilização de julgadores mais
ativos e informais, beneficiar, substancialmente as partes mais fracas.
Vantagens semelhantes têm sido obtidas com a remessa automática ao juízo
arbitral, como é praticada na cidade da Filadélfia, Estado da Pensilvânia.
A mediação é uma forma de resolução de conflito muito aplicada em
diversos paises, principalmente nas ações que versam sobre o Direito de Família, conforme
Vilela158.
153
154
JÚNIOR, Op. cit.
Ibid. Op. cit.
155
Ibid. Op. cit.
156
Ibid. Op. cit.
157
CAPPELLETTI. Op. cit. 82,83.
158
VILELA, Sandra Regina. Meios alternativos de solução de conflito – arbitragem, mediação e
conciliação. Disponível em: www.pailegal.net/mediation.asp?rvTextoId. Acessado em: 19/07/2009. p. 10.
Na Austrália, existe um órgão especializado em aplicar formas alternativas
de solução de conflitos, denominado NADRAC (Conselho Consultivo Nacional de Solução
Alternativa de Disputa). Tem a função de estudar e divulgar a implementação dos meios
alternativos de solução de conflito, principalmente aqueles voltados em litígios de família.
O mesmo se deu na França, que em 2001 editou legislação sobre a mediação familiar,
tornando-se bastante difundida nesse país159.
Em Buenos Aires, a aplicação da mediação se dá por imposição da Ley
Nacional 24.573, de 04 de outubro de 1995. A lei impõe o uso da mediação em diversas
matérias, inclusive penal, conforme o art. 2º160:
ARTICULO 2° — El procedimiento de la mediación obligatoria no será de
aplicación en los siguientes supuestos:
1. — Causas penales.
2. — Acciones de separación personal y divorcio, nulidad de matrimonio,
filiación y patria potestad, con excepción de las cuestiones patrimoniales
derivadas de éstas. El juez deberá dividir los procesos, derivando la parte
patrimonial al mediador.
3. — Procesos de declaración de incapacidad y de rehabilitación.
4. — Causas en que el Estado Nacional o sus entidades descentralizadas sean
parte.
5. — Amparo, hábeas corpus e interdictos.
6. — Medidas cautelares hasta que se decidan las mismas, agotándose
respecto de ellas las instancias recursivas ordinarias, continuando luego el
trámite de la mediación.
7. — Diligencias preliminares y prueba anticipada.
8. — Juicios sucesorios y voluntarios.
9. — Concursos preventivos y quiebras.
10. — Causas que tramiten ante la Justicia Nacional del Trabajo.
Como se observa, o artigo 2º da Lei 24.573 elenca um rol extenso de
situações que devem ser aplicadas tanto à mediação quanto à conciliação. Conforme
informação de Nogueira161, observou-se que nos quatro primeiros anos da vigência da lei,
apenas 4% dos casos foram submetidos à mediação, quando esta foi facultativa.
Segundo Cappelletti162, outro sistema jurídico que tem interessante forma de
aplicação e é usualmente aplicada à conciliação é o japonês. O sistema é composto por uma
159
Ibid. Op. cit. p. 10
160
Lei Nacional da Argentina nº 24.573. Mediacion y Conciliacion Disponível
www.puntoprofesional.com/P/MEDIACION/LEY_24573. Acessado em 20 de julho de 2009.
161
NOGUEIRA. Op. cit. p. 20
162
CAPPELLETTI, Op. cit. p. 84.
em:
corte de conciliação, integrada por dois membros leigos e por um juiz. As próprias partes
podem requerer a conciliação ou ela pode ser remetida por um juiz de direito.
Ainda sobre a aplicação da mediação no Direito Comparado, relata
Cappelletti163:
Muitos paises ocidentais, em particular a França e os Estados Unidos, estão
comprovando a veracidade da instituição dos relatores japoneses. A
experiência dos Estados unidos, em 1978, com os centros de justiça de
vizinhanças em conexão com os tribunais populares constitui um exemplo
importante da renovada atenção dada A conciliação, e a nova instituição
francesa do conciliador local já passou do nível experimental. A experiência
começou em fevereiro de 1977, em quatro departamentos franceses e, em
fins de março de 1978, foi estendida a todos os 95 departamentos franceses.
Na França, observa-se então a dimensão dada aos conciliadores, tendo
inclusive escritórios nas prefeituras e possuindo mandato amplo, gozando de muito
prestígio. Os conciliadores têm, inclusive, a função de aconselhar e informar aos cidadãos
acerca dos seus direitos e obrigações, existindo muita procura por estes serviços164.
Extrai-se das breves linhas que a aplicação dos mecanismos alternativos de
solução de conflitos já se encontra bem difundido nos mais importantes e tradicionais
sistemas jurídicos. E alguns países já somam séculos de existência, comprovando ser
instrumentos passíveis de apresentar eficácia. Sistema jurídico como o brasileiro que, por
possuir dimensão temporal recente, tem a oportunidade de espelhar-se naqueles que em
longa data faz uso destas importantes formas de apaziguar a sociedade, servindo de alicerce
para concretização do verdadeiro ideal de justiça, fundamento da democracia.
163
Ibid. Op. Cit. p. 85.
164
Ibid. Op. cit. p. 85.
CAPÍTULO 3
A CONSECUÇÃO DO PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA POR
INTERMÉDIO DOS MECANISMOS ALTERNATIVOS DE SOLUÇÃO DE
CONFLITO
3.1 CONCEITO DE PRINCÍPIOS
Visando uma melhor introdução ao tema em estudo neste item, mister é
delinear uma definição do que sejam os princípios, notadamente no que se refere ao estudo
jurídico. Apesar de muito ampla e abstrata a conceituação de pronto, pode-se frisar,
principalmente para efeito do presente estudo, o caráter geral que tem os princípios, bem
como a função de prescrever direitos num plano acima do objetivo.
Os princípios são característicos de todas as ciências, servindo como
alicerce orientador e basilar destas. Das ciências, os princípios são as normas elementares,
os requisitos primordiais, funcionando como a base ou alicerce para a existência de uma
determinada ciência165. Filosoficamente, significa proposições diretora e dogmática da
ciência, de tal maneira que toda essa ciência tem de estar fundamentada naquilo contido no
princípio. Ao funcionarem como dogmas, não carecem de comprovação.
Do ponto de vista jurídico, não difere muito do que já anteriormente fora
conceituado. Porém, para efeito de enriquecimento do tema, a seguir algumas definições.
Silva166 assim discorre sobre os princípios no direito:
E, assim, os princípios revelam o conjunto de regras e preceitos, que se fixam
para servir de norma a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a
conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem
sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se
a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-as em
perfeitos axiomas.
E nesta acepção, não se compreendem somente os fundamentos jurídicos,
legalmente instituídos, mas todo axioma jurídico derivado da cultura jurídica
universal. Compreendem, pois, os fundamentos das ciências jurídicas, onde
165
Silva, Op. cit. p. 1052.
166
Ibid, Op. cit. p. 1052.
se firmaram as normas originárias ou as leis científicas do direito, que traçam
as noções em que se estrutura o próprio direito.
Ainda sobre os Princípios jurídicos, comenta Gomes167:
Os princípios gerais do direito poderiam ser cogitados como uma de suas
fontes formais, se definidos como a cristalização, em que termos abstratos,
do conjunto de preceitos normativos do ordenamento legal. Noutra
significação, sua exposição não interessa na sede desta matéria, mas, sim, na
temática da interpretação da lei, por isso que servem para preencher lacunas e
ajudam a determinação do alcance e do verdadeiro sentido da lei. Não se
deduza de sua função na analogia júris que se convertam em fonte formal do
direito. no equívoco de confundirem as causas originárias do direito objetivo
com a aplicação subsidiária de outras manifestações de caráter normativo,
como o costume, ou de técnicas de complementação, como a analogia,
incidem jusnaturalistas ansiosos para emprestar vaidade e eficácia ao direito
natural.
Finalmente, é importante observar os ensinamentos de Cavalieri168:
O Direito brasileiro atual, principalmente a partir da constituição de 1988,
voltou a dar ênfase aos valores, o que tem conseguido alcançar por meio da
consagração de princípios. Princípios são valores éticos, morais e sociais
aprendidos pelo legislador e que, consagrados em um preceito, passam a ser
instrumentos de interpretação de outros preceitos, enquanto normas são
regras de comportamento que estabelece como deve ou não deve ser a
conduta e as conseqüências que daí de correm. Regras oferecem soluções,
enquanto que os princípios oferecem paradigmas, critérios para se encontrar
a solução para o caso concreto.
Como se observa das definições acima, os princípios têm função basilar em
qualquer sistema jurídico. Uma regra, uma vez erigida ao status de princípio, dominará
todas as ações dela decorrente. Notadamente, os princípios têm tido atualmente uma nova
dimensão no direito. Mais do que exortar, informar e dogmatizar, os sistemas jurídicos têm
status de regras, no sentido de que direcionam a aplicação do direito, funcionando muitas
vezes como lei no seu sentido amplo.
Ainda em sede de conceituação, é importante a hierarquização dos
princípios em cotejo com normas. Tradicionalmente leis em sentido amplo, ou seja, as
167
GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro. Estácio Ensino Superior/Companhia
Editora Forense, 2008. p. 331.
168
CAVALIERE, Sergio Filho. Programa de Sociologia Jurídica. Rio de Janeiro: forense, 2004. p. 60,61.
normas jurídicas constituem gênero do qual fazem parte as regras e os princípios. Neste
sentido, aduz Barroso169:
Tal distinção tem especial relevância no tocante às normas constitucionais. O
reconhecimento da distinção qualitativa entre essas duas categorias e a
atribuição de normatividade aos princípios são elementos essências do
pensamento jurídico contemporâneo. Os princípios – notadamente os
princípios constitucionais – são a porta pela qual os valores passam do plano
ético para o mundo jurídico. Em sua trajetória ascendente, os princípios
deixaram de ser fontes secundárias e subsidiárias do direito para serem
alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o
ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas
em geral e permitindo a leitura moral do direito.
Os princípios, enquanto espécie do gênero norma, é uma das grandes
contribuições dessa moderna maneira de interpretação constitucional. Essa interpretação
busca a consolidação do Estado Democrático de Direito, alicerce das constituições cuja
gênese se dá no século XX, principalmente após a segunda grande guerra. A nova forma de
interpretação e aplicação constitucional ganha epíteto de Neoconstitucionalismo.
Os princípios sempre deram ensejo à discussão, do ponto de vista de serem
ou não fontes do direito. Nos tradicionais manuais de Teoria do Direito sempre foram
tratados como meros instrumentos de integração do direito, ou seja, serviam para suprirem
as lacunas da lei. Na legislação civil pátria, expressamente assumem essa função na lei de
introdução ao Código Civil Brasileiro.170 Nesse sentido, restringem os princípios à sua
dimensão lógica, funcionando como “verdades fundantes” de um sistema ou de uma
ciência, já que foram devidamente comprovados171.
Hodiernamente, os princípios ganharam status de enunciações normativas,
de valor muito além dos tradicionalmente já mencionados. Isso fez que, em alguns deles,
principalmente os constitucionais, o legislador lhes conferisse força de lei. E enquanto
princípios em força cogente, constituindo um direito prévio e exterior à lei172.
169
BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos
fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 203.
170
Art. 4º da Lei de Introdução ao Código civil postula que “quando a norma jurídica for omissa, o juiz
decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito”.
171
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 303.
172
Ibid, Op. cit. p. 305.
3.2 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: BREVE INTRÓITO E SUAS
FUNÇÕES
Uma vez conceituado de modo geral os princípios, cumpre, em breve linhas,
abordá-los sob a ótica do Direito Constitucional, delineando as suas funções. A Teoria
constitucional contemporânea tem dado uma nova dimensão aos princípios oriundos das
Constituições. A compreensão da ideologia das modernas constituições está intimamente
ligada ao estudo dos princípios que delas emergem. Tanto do ponto de vista histórico,
político e ideológico. Os princípios, de um modo geral, fornecem ao estudioso o
fundamento e a essência do ordenamento jurídico.
Mas, na aplicação dos modernos ordenamentos jurídicos, cumpre aos
princípios o importante papel que é a sua normatividade. Mais do que nunca, os mais
diversos ramos do direito têm abusado da força normativa dos princípios.
Emerge da Constituição do Brasil de 1988, principalmente no título “Dos
Direitos e Garantias Fundamentais”, vários princípios que cada vez mais tem orientado a
aplicação do direito. A atual supervalorização da interpretação constitucional,
principalmente se tratando da constituição pátria, potencializou a aplicação dos princípios,
dando aos mesmos o caráter de norma. Nesse diapasão, os princípios fundamentais
contidos na Constituição se revestem, além das tradicionais funções informadora e
supletiva da ausência legal, as funções positivadora e vinculativa do direito.
Se os princípios gerais do direito têm caráter normativo, o mesmo se dá com
os princípios constitucionais. O fato de possuírem essa característica, porém, não lhes
privam de outras.
Os princípios constitucionais ganham a atual dimensão e notoriedade, com o
advento do pós-Positivismo 173. Começam a ser valorizados, passando a ter essa grande
importância jurídica fruto de uma nova onda de valorização de direitos abstratos ligados a
uma ampla valorização do ser humano na sua totalidade e plenitude. Valores como
dignidade, respeito à integridade física, abuso de poder e discriminação, que não eram
respeitados por alguns estados nacionais, induzem o aparecimento desses princípios como
173
No capítulo seguinte deste trabalho será desenvolvida a questão do surgimento e evolução do póspositivismo, delineando a evolução histórica e sua fundamentação.
forma de garantir que esses direitos sejam observados na sua totalidade, visando à sua
garantia futura.
Em breves linhas, Barroso174 assim comenta:
As normas constitucionais conquistaram o status pleno de normas jurídicas,
dotadas de imperatividade, aptas a tutelar direta e indiretamente todas as
situações que contemplam. Mais do que isso, a constituição passa a ser a
lente através da qual se lêem e se interpretam todas as normas
infraconstitucionais. A Lei Fundamental e seus princípios deram novo
sentido e alcance ao direito civil, ao direito processual, ao direito penal enfim, a todos os demais ramos jurídicos. A efetividade da Constituição é a
base sobre a qual se desenvolveu, no Brasil, a nova interpretação
constitucional.
Os princípios, enquanto orientadores de direitos fundamentais petrificados
nas constituições são carregados de valores, onde a ética e a moral passam a ser
norteadores das condutas que os mais variados ramos do direito têm que estar atentos. O
mesmo incide sobre as ações praticadas por instituições públicas, principalmente os órgãos
administrativos, bem como os da administração privada. Assim, o alcance dos princípios
constitucionais, notadamente aqueles que têm características fundamentais, ensejam não
apenas um sentido, exato ou formal, como é característico das regras.
O sentido de aplicação objetivo das regras é característico do Positivismo
jurídico, cujo grande precursor foi Kelsen175. As regras, que têm também um importante
papel a cumprir, carecem de sentido valorativo ético, sendo de interpretação uníssona. A
aplicação se dá via subsunção já que por trazer consigo sentido único e objetivo, aplicam-se
a todas as situações reais de incidência conforme o disposto nas regras. A função do
intérprete resume-se num trabalho mecânico de uma atividade de simples revelação do
conteúdo preexistente contido na norma, sem usar a criatividade176. O sentido de aplicação
dos princípios constitucionais fundamentais é, senão outro, como atesta Barroso177:
A nova interpretação constitucional assenta-se no exato oposto de ta
proposição: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto,
principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se
prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes
pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura
174
BARROSO, Luis Roberto, BARCELLOS, Ana Paula de. O Começo da História: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. Artigo publicado na revista Interesse Público.
19/51-80. 2003. p. 273.
175
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
176
BARROSO, Op. cit. p. 275. 2003
177
BARROSO, Op. cit. p. 275.
dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista
dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos
fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com
vistas a produção de solução constitucionalmente adequada para o problema
a ser resolvido.
Por serem constitucionais, sendo, portanto o fundamento de validade do
ordenamento jurídico, as situações advindas da realidade serão orientadas e norteadas pela
ideologia contida no princípio. A regulamentação dessas novas situações, fruto da
acelerada miríade de relações sociais, estará sempre orientada pelos valores contidos nos
princípios. Assim, além de orientar positivamente a regulamentação da nova relação, o
princípio, por outro lado funciona como freio, especificando o que não deve ser feito, tendo
em vista não poder contrariar o seu norte. Esse limite pode ser aplicado no momento de
atuação de julgador, assim como impedir o legislador de criar norma que o contrarie.
Do exposto, observa-se importante função dos princípios constitucionais,
que são a fundamentação dos sistemas jurídicos, como observa Bonavides178. Como não
estão isoladas, os princípios atuam como vínculos para todas as relações jurídicas, sendo o
“berço” para as instituições jurídicas.179 A realidade social, assim como o conteúdo das
normas jurídicas, passam a ter validade diante da ideologia contida nos princípios
constitucionais.
Neto180, ao discorrer sobre as funções dos princípios alerta:
Entendemos que “princípio” tanto pode se converter em norma jurídica como
em valor normativo. Melhor explicando: os princípios de interpretação da
constituição podem ser incorporados ao sistema de direito positivo pelo
legislador constituinte originário ou pelo corpo legislativo ordinário, quando,
no particular passam a assumir feição de norma jurídica”
178
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004.
Em apêndice texto da Constituição Federal de 1988, com as Emendas Constitucionais até a de n. 44, de
30.6.2004 e das Leis 9.868, de 10.11.1999 e 9.882, de 3.12.1999.
179
180
Ibid. Op. cit.
NETO, SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2006.
Edição atualizada até a EC 52/2006. p. 105.
O autor cita como exemplo a Lei nº 9.868/99, um exemplo de interpretação
constitucional consubstanciado em norma jurídica181. E finaliza com os seguintes
dizeres182:
Princípio, repita-se, tanto é susceptível de adotar uma compostura de norma
jurídica – nomeadamente ao figurar como objeto positivado no ordenamento
-, como, ao receber um influxo axiológico da Ciência do Direito, se
transforma em valor normativo, cuja aceitação e autoridade estão na razão
direta de sua conexidade lógica com o sistema do direito positivo, não se
podendo presumir “inteligência dos textos positivos contrária aos princípios
científicos. Os princípios de interpretação constitucional despontam na
condição de revelantíssimos vetores interpretativos toda vez que surgir uma
situação de dúvida acerca do sentido da norma; e, portanto, o correto manejo
por parte do intérprete será eficaz instrumento de solução da controvérsia.
Hodiernamente observa-se, sobremaneira, a preocupação em evitar que as
normas infraconstitucionais venham a ferir os princípios que fluem da constituição. Os
juristas e operadores do direito em geral têm dedicado imensuráveis esforços no sentido de
observar possíveis desvios nas leis, jurisprudências e atos da administração que possam vir
a contrariar indicações fundamentais oriundas dos princípios que a constituição irradia.
Essa preocupação faz sentido, já que fundamentos da constituição, transformados em
princípios, são por vezes implícitos, necessitando de profundo delineamento por serem
munidos de alta carga valorativa.
Decisões tomadas por operadores do Estado, que num primeiro momento
eram apenas políticas, passam a ser monitoradas pelos tribunais atentos aos valores que
emergem da constituição enquanto fundamento principiológico. A função fundamentadora
do Estado, que exerce os princípios constitucionais atualmente, levou o Supremo Tribunal
Federal, através de voto prolatado em julgamento pelo Ministro Celso de Melo, a colocálos como valores imprescindíveis para o equilíbrio do sistema republicano183.
Com essas breves linhas, faz-se um apanhado, de forma bem geral, sobre os
princípios constitucionais e, principalmente, as suas funções. O que se pode observar dos
pontos de vista anotados é que essa nova forma de interpretação constitucional, que
181
182
183
Ibid, Op.cit. p. 106.
NETO, Op. cit. p. 109,110.
MELLO, Celso. Em julgamento proferido na Pet 1458/CE na data de 26/02/1998, o Ministro Celso de
Melo afirmou: “o respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável
do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores - que desempenham, enquanto categorias fundamentais
que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos - introduz um
perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações,
sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder".
efetivamente é moda entre os especialistas no assunto, chegou para ficar. E, como também
se observa é imprescindível para a interpretação e aplicação do Direito Constitucional,
sobretudo por valorizar as cláusulas fundamentadoras do estado, fazendo que este seja
efetivamente Democrático de Direito. Além das cláusulas fundamentais expressas, a nova
interpretação principiológica da constituição abstrai na sua “ante-sala”, valores basilares
para consolidação de uma sociedade justa e igualitária.
Contudo, faz-se uma ressalva, com base nos escritos de Virgílio Afonso da
Silva
184
, de que essa nova interpretação da constituição não poderá ser confundida com a
interpretação jurídica em geral. Da mesma forma, deve continuar a ter espaço,
principalmente sob a ótica da constituição brasileira, uma discussão de base, indo além da
discussão metodológica, no sentido de valorizar também o conteúdo. O autor, ressalva
ainda, que não faz alusão ou manifestação pela volta aos métodos clássicos de interpretação
constitucional. Mas que, a busca desenfreada pelo abandono da forma clássica de
interpretação pode trazer mais prejuízo do que benefícios185.
Diante desse breve estudo acerca dessa nova forma de interpretação
constitucional, frisando a função dos princípios constitucionais, passa-se ao comento
especificamente do princípio do Acesso à Justiça.
3.3 O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA
A evidente valorização das normas constitucionais, principalmente aquelas
em forma de princípios, é o eixo central do Neoconstitucionalismo, ressaltando a força
normativa da Constituição. Tendo por base essa orientação norteadora, neste tópico
discorrerá sobre o princípio do acesso à justiça.
Não se pode então, olvidar que na constituição estão normas que são direitos
fundamentais, podendo vir insculpidas em forma de princípios, devendo prevalecer sobre
184
SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação Constitucional. Virgílio Afonso da silva (organizador). São
Paulo: Malheiros Editora. p. 141
185
SILVA.Op. Cit. p. 141.
as infraconstitucionais, e que necessitam que todo o aparato jurídico esteja a postos no
sentido de sua efetivação.
A expressão Acesso à Justiça ganha dimensão de princípio no momento em
que se começa a questionar a ação do Poder Judiciário na consecução daquela que é a sua
função precípua, qual seja, oferecer prestação jurisdicional ampla e efetiva num
determinado espaço de tempo razoável. Diante dessa séria dificuldade, estudiosos e
aplicadores do direito começam a questionar a atuação do Poder Judicante, tendo como
fundamento para tanto o não cumprimento do disposto no Art. 5º, inciso XXXV da
Constituição Federal que assim assevera: “A lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça de direito”186.
Aliado à manifestações de cunho universal no sentido de democratização do
judiciário, juntamente como o movimento de acesso à justiça proposto pó Cappelletti187, o
acesso à justiça ganha dimensão de Direito Fundamental, revertendo-se em importante
princípio constitucional. Com esse novo dimensionamento, a sua interpretação deixa de ser
apenas direito de poder recorrer ao Judiciário para ganhar conotação mais ampla e profunda
que é acesso à justiça em todos os níveis.
Assim, pode se afirmar que o epíteto “acesso à justiça” vai além de acesso
ao judiciário, conforme objetivamente disposto no art. 5º, inciso XXXV da Constituição. E
neste sentido, talvez seja melhor dizer que o princípio do acesso à justiça seja mais amplo
do que o princípio do acesso ao judiciário. Isto porque aquele pressupõe a possibilidade de
efetivação de um direito fundamental que para a sua consecução necessita que vários outros
princípios constitucionais expressos sejam realizados. O acesso á justiça amplo, conforme
direito fundamental amplo, efetiva direitos humanizo como civis, políticos, cidadania e
sociais. Nesse sentido, Pinho188 aduz:
A acessibilidade significa a existência de sujeitos de direito, capazes de estar
em juízo, sem obstáculos de qualquer natureza, utilizando adequadamente o
instrumental jurídico e possibilitando a efetivação de direitos individuais e
coletivos.
Isso de dá através do direito à informação, da garantia de uma legitimidade
adequada e da gratuidade da justiça para os necessitados.
186
BRASIL Op. cit. p. 153
187
CAPPELLETTI, Op. cit.
188
PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo. 2ª edição
ampliada, revista e atualizada até a Lei nº 11.694, de junho de 2008. Rio de Janeiro: Lúmen Juris Editora.
2009. p. 14.
Da análise formal e objetiva do Art. 5º, XXXV da Constituição,
possivelmente não incluirá como passiveis de tutela os direitos coletivos. Esses, na
concepção ampla de acesso à justiça são direitos fundamentais que não devem ser
olvidados.
Para a efetiva consecução do princípio do acesso à justiça na sua mais ampla
acepção devem ser observadas outras garantias constitucionais. Dessa forma, a Emenda
Constitucional nº 45 inseriu no Art. 5º o inciso LXXVIII que “a todos, no âmbito
jurisdicional e administrativo são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação”189. Com essa garantia, considerada um
princípio expresso da Constituição, o constituinte procurou estabelecer condições para que
mais uma vez fosse efetivado o princípio amplo de acesso à justiça, assegurando
especificamente o princípio constitucional de ação. Com esse mandamento constitucional,
o judiciário além de receber e decidir a demanda deverá propiciar uma decisão justa na
mais ampla dimensão de justiça.
Da mesma maneira, dispõe a Constituição Federal em seu Art. 5º inciso
LXXIV190: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”. Com esse mandamento, o constituinte procurou propiciar a
todos que não tiverem condições materiais, sem qualquer distinção, a possibilidade de
poder ter acesso ao judiciário sem gastos. Para tanto, no plano concreto foram criadas as
defensorias públicas que atendem aqueles que comprovarem insuficiência de recursos.
Nesse princípio é importante frisar a expressão jurídica e não judiciária. Isso implica que
mesmo sendo uma necessidade de apoio administrativo que vise necessidade jurídica,
deverá o Estado deverá prestar. No mesmo sentido, ressalta o inciso, que esta prestação
deverá ser integral, abrangendo as custas bem como honorários, certidões, alvarás, etc. Esse
princípio se dá, conforme Pinho191, “através da informação, da garantia de uma
legitimidade adequada e da gratuidade da justiça para os necessitados”.
Todas essas garantias expressam verdadeiros suportes para que a
consecução do princípio do acesso à justiça. Não é por menos que vieram em forma de
princípios expressos na Carta Magna. Porém, faz parte de um rol que juntamente com
dimensões axiológicas vão compor o princípio do acesso à justiça na sua plenitude, pois
189
BRASIL, Op. cit. p. 155.
190
BRASIL, Op.cit. p. 155.
191
PINHO, Op. cit. p. 14.
falar em justiça pressupõe equidade, moralidade, legitimidade e tantos outros valores
éticos. Assim, se porventura um líder de uma determinada comunidade, tendo por base a
cultura ou conhecimentos técnicos jurídicos ou ainda capacidade psicológica para solver
um litígio, por não ter havido a participação do judiciário não quer dizer, necessariamente
que a justiça não tenha sido feita. Da mesma maneira, o exercício de um cargo público por
um determinado político em que não foram observados valores como honestidade ou
dignidade, o acesso à justiça está sendo comprometido.
Para corroborar com essa dimensão que se dá ao princípio do acesso à
justiça, aduz Watanabe192:
A problemática do Acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados
limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de
possibilitar o acesso à justiça, enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar
o acesso à ordem jurídica justa. Uma empreitada assim ambiciosa requer,
antes de mais nada, uma nova postura mental. Deve-se pensar na ordem
jurídica e nas respectivas instituições, pela perspectiva do consumidor, ou
seja, do destinatário das normas jurídicas, que é o povo, de sorte que o
problema do acesso à justiça traz a tona não apenas um programa de reforma
como também um método de pensamento, como com acerto acentua Mauro
Cappelletti.
Nesse tópico, a concepção que se quis dar ao princípio do acesso à justiça,
sintetiza todas as garantias constitucionais, expressas ou não para a consecução, numa
acepção que extrapola a conotação jurídica, tendo por vezes uma dimensão filosófica, mais
precisamente axiológica e equânime. Abarca além das garantias do processo, tanto em
nível constitucional e infraconstitucional, as bases doutrinárias, jurisprudenciais e
administrativas. Pois é sendo um pilares da democracia que o acesso à justiça foi erigido ao
patamar de direito fundamental, imprescindível para o momento em muito se fala em
defesa de direitos humanos. Os sistemas jurídicos modernos só efetivarão o princípio se
pensarem em estender o leque de busca de solução para organizar ao máximo uma
sociedade cada vez mais plúrima e por conseqüência, mais passível de relações litigiosas.
Nesse diapasão, os mecanismos alternativos de solução de conflitos tornam-se alternativa
viável nessa empreitada, como se pretende demonstrar no tópico que se segue.
192
WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais.
1988. p. 128.
3.4
OS
MECANISMOS
ALTERNATIVOS
DE
SOLUÇÃO
DE
CONFLITOS COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA
Tentado demonstrar, como se pretendia, a dimensão ampla que pode e deve
ser estendida ao princípio do acesso á justiça, passa-se a digressão de breves linhas acerca
dos mecanismos alternativos de solução de conflitos, posto que no presente trabalho
defende-se a tese de que os mesmos muito tem a contribuir para a consecução daquele
princípio.
A conciliação, a mediação e a arbitragem são os mecanismos alternativos de
solução de conflitos fora da jurisdição que por meio de sua aplicação poderá dar uma nova
dimensão à forma tradicional de solucionar contenciosos. A implementação desses
mecanismos poderá auxiliar o Poder Judiciário na realização de justiça, obviamente
alargando o sentido de justiça, como defendido alhures.
A iniciativa de buscar soluções alternativas de auxílio ao judiciário tem
origem no pensamento de Mauro Cappelletti193 por meio das ondas renovatórias por ele
propostas. O formalismo inerente às ações do Poder Judiciário, fruto principalmente do
Positivismo jurídico em que se exige que se recorra impreterivelmente aos ditames
normativos, faz com que na maioria das vezes os verdadeiros sujeitos da demanda fiquem
num segundo plano. Assim, vivendo às turras com uma vasta gama de novos paradigmas e
problemas, gerando por sua vez as mais diversas relações, tanto de aproximação quanto de
afastamento, o Judiciário se depara com uma nova realidade social, tornando-se inoperante.
Dessa forma, incapaz de atender às esses novos tipos de conflitos, por estar preso às
amarras do formalismo legal, há a dissociação da teoria contida nas regras com a prática,
advinda das relações sociais, gerando por conseqüência, uma crise.
Os mecanismos alternativos de solução de conflito surgem então como uma
alternativa à essa realidade, à medida que ao expandir o significado de acesso à justiça
propiciam soluções idênticas àquelas almejadas pelo Poder Judicante. Esse, busca
incessantemente atender à sociedade que cada vez mais o provoca esperando ser atendida
no que entende por justiça.
193
CAPPELLETTI. Op.cit.
Falcão194, sobre a crise do judiciário e o sentimento de justiça perseguido
pela sociedade diz:
A atual crise do Poder Judiciário, entendida como um desequilibro entre a
demanda da sociedade por justiça e a capacidade do judiciário de produzir
decisões que coloque um fim, reconhecido como justo, aos conflitos que lhe
são encaminhados.O que se pretende dizer é simples: todo indivíduo tem um
“sentimento de justiça” e um “sentimento constitucional”. Esse sentimento é
também uma demanda que precisa ser atendida. A sociedade necessita que o
valor justiça estruture a convivência social. Por isto, em vez de ser apenas
demanda pragmática é demanda simbólica também. Faces da mesma moeda.
Cabe ao judiciário não só alocar e realocar bens na sociedade capitalista, mas
concretizar, tornar visível o valor justiça, sem o qual dificilmente as
sociedade sobrevivem a longo prazo. É a instituição especializada em
transformar o ideal de justiça em experiência social.
Essa crise é crise da justiça é, pois, a incapacidade do Judiciário em pôr fim
aos conflitos, bem como de concretizar valores. É crise ética e gerencial ao
mesmo tempo.
A sociedade, em função do que traz consigo desde a sua gênese, como
padrões morais, éticos e religiosos, adota um parâmetro de justiça e espera que o Judiciário
se provocado possa suprir tal carência. Se o Poder Judiciário, atrelado ao formalismo legal,
não busca aproximar-se desse sentimento de justiça, invariavelmente cairá em descrédito. E
isso é que tem acontecido na maioria das vezes.
A finalidade da atuação dos órgãos do Poder Judiciário é a pacificação
social, ou seja, promover a justiça na medida em que procura solucionar conflitos entre as
pessoas, tornando a sociedade mais livre e justa. A partir do momento que os mecanismo
alternativos de solução de conflitos conseguem atuar nesse mesmo sentido, eles empenham
a mesma função do Poder Judiciário, de maneira que a finalidade de sua adoção e atuação
estaria justificada. O que se busca com a implementação da conciliação, a mediação e a
arbitragem é a paz social, a liberdade, a igualdade, a segurança e, de modo geral, a justiça.
São valores de cunho axiológicos que a jurisdição estatal sempre perseguiu através do
exercício formal da aplicação do cumprimento das leis e da sanção. Os mecanismos
alternativos têm como propiciar esses mesmos valores na medida em que estão mais
próximos da realidade social.
Não se esquece, por outro lado que a atuação do Poder Judiciário vai além
do que faz os mecanismos alternativos de solução de conflitos. A aplicação de sanções é
exclusividade do órgão jurisdicional estatal, não restando essa competência à conciliação, à
194
FALCÃO, Joaquim. O desequilíbrio entre a demanda da sociedade civil e oferta do poder judiciário.
Disponível em: ww.bibliotecacidade.sp.gov.br/produtos/spp/v08n02_05pdf. Acessado em 26/03/2009. p. 01.
mediação ou à arbitragem. E, como já mencionado no momento em que se estudou cada
um desses mecanismos, a atuação deles fica restrita às situações dispostas em lei.
Mas mesmo com atuação restrita, não deixa de possuir mérito a atuação dos
equivalentes jurisdicionais. Isso porque uma mediação ou uma conciliação eficaz pode
evitar uma ação em que implicaria a atuação do Poder Judiciário na aplicação da sanção.
Isto incorreria no desafogamento do Judiciário, um dos grandes males que o assola.
As causas da inoperância do Judiciário brasileiro são as mais variadas
possíveis. O abarrotamento de processos que induz a morosidade é apenas uma delas e que
muito contribui para a lentidão da justiça, conforme já mencionado alhures nos dados
trazidos por Mascaro195. Não se quer, contudo, defender a tese de que os mecanismos
alternativos de solução de conflitos é o remédio para tal mal, ou seja, a implementação
desses mecanismos resolverá o problema da morosidade da justiça, pois diminuirá ou
acabará com a demanda processual. O Poder Judiciário tem como função precípua julgar e
determinados julgamentos é de sua exclusividade. Dessa forma, os mecanismos
alternativos de solução de conflitos não vem para tomar do Judiciário essa função. São,
esses instrumentos um método alternativo de contribuição para a consecução do ideal de
justiça que toda sociedade almeja. Pois da mesma maneira que determinadas demandas
requer exclusividade de julgamento pelo Poder Judiciário, outras, em virtude de sua
natureza, não necessitam de intervenção do Poder Estatal.
O acesso à justiça tem como pretensão, enquanto princípio constitucional,
dar uma nova dimensão de justiça, alargando o seu conceito que tradicionalmente esteve
preso às amarras legais e formais. Os mecanismos alternativos de solução de conflitos
podem atender à essa dimensão no momento em que, por meio de um processo
democrático as partes são autoras e participam substancialmente do desenrolar da demanda.
Esse é o sentido democrático que se pretende no princípio do acesso à justiça e que, em
determinadas situações o Poder Judiciário não tem atendido.
O exercício da jurisdição estatal procura atender a consecução do princípio
do acesso à justiça que tem como objetivo mediato consolidar direitos fundamentais como
liberdade, segurança, bem estar, etc. Por meio dos mecanismos alternativos de solução de
conflitos pode se chegar à concretização e consolidação desses direitos fundamentais,
funcionando como meios propiciadores e efetivadores do acesso à justiça. E por estarem
195
MASCARO, Sônia. Op. cit.
fora da jurisdição, esses mecanismos estão mais próximo ao que a sociedade vem tomando
como padrão de justiça. E mais, eles não são implementados de maneira geral, atendendo à
um dispositivo legal que possui essa característica. Eles estão no seio da sociedade, de
maneira que sua implementação poderá ser de acordo com cada caso, de maneira mais
informal. Vide o caso de uma conciliação ou uma mediação, por exemplo. Se versar sobre
demarcação de terra numa região em que ocorrem muitos conflitos deste tipo, observar-se-á
os costumes, a linguagem, de maneira que o mediador ou o conciliador deverá ser alguém
que é líder e que tem a confiança de todos na região.
O acesso à justiça pode vir através do aconselhamento jurídico, conforme
disposto no Art. 5º, inciso XXXV, onde o constituinte assegurou esse direito fundamental
ao mencionar a “Assistência Jurídica”.
Greco,196 sobre esse direito fundamental discorre:
Parece-me que o direito não estará concretamente assegurado se o Estado não
oferecer a todo cidadão a possibilidade de receber aconselhamento jurídico a
respeito dos seus direitos. A Constituição de 88, no seu Art. 5º, inciso
LXXIV, assegurou a todos “assistência jurídica” a englobar assistência
judiciária e assessoramento jurídico extrajudicial. É preciso que este direito
esteja assegurado na prática. A vida moderna e o direito tornaram-se
excessivamente complexos. A consciência jurídica do homem comum, que
deve ser adquirida na família e na escola não é mais suficiente para a tomada
de decisões na vida diária das pessoas.
Num mundo em que a informação e conhecimento são imprescindíveis para
a realização das mais variadas relações, a consciência jurídica é vital197. Por meio dos
mecanismos alternativos de solução de conflitos é possível contribuir para a implementação
desse direito. De posse de conhecimentos técnicos jurídicos elementares, o indivíduo na
sociedade estará minimamente preparado para os atos passiveis de surgimento de litígios. A
justiça, dessa forma será efetivada no momento em que, por meio da consciência jurídica
impede-se o surgimento do conflito que poderia terminar no Judiciário, afogando-o ainda
mais. Nesse sentido, deverá se estender a noção de medição ou conciliação. Uma
associação ou um centro de medição ou de conciliação e, porque não um tribunal arbitral
deveria prestigiar a orientação jurídica daqueles que venha os procurar.
196
GRECO, Leonardo. Acesso ao Direito e á justiça. Disponível em: www.mundojurídico.adv.br/sis.
Acessado em 17/03/2009. p. 7.
197
GRECO, Op. cit.
Cappelletti198 indicou várias possibilidades de solução para alargar o
enfoque do acesso à justiça, dentre elas os métodos alternativos para solucionar litígios.
Segundo o autor, além das reforma dos tribunais regulares, deve-se incentivar a criação de
procedimentos mais simples e julgadores mais informais.
Para o autor199 os mecanismos alternativos de solução de conflitos,
juntamente com a assistência judiciária para os pobres e a representação dos interesses
difusos, são as soluções práticas para os problemas do acesso à justiça. Não cabe
aprofundar o assunto sobre essas duas últimas soluções já que o tema do presente trabalho é
a defesa dos meios alternativos de solução de conflitos como forma de acesso á justiça. E
nesse sentido já se defendeu que os mecanismos alternativos é apenas uma entre outras
maneiras de promover o acesso à justiça. E cada vez mais está sendo utilizada pelos
reformadores, podendo ser obrigatórias ou não200. Ou seja, dependendo do tipo particular
de causa aplica-se ou não os mecanismos alternativos de solução de conflitos. Isso faz com
que não se tenha objeção aos mecanismos, pois não sendo obrigatórios e não sendo
aplicados em todas as demandas, apresentam-se como apenas mais uma possibilidade de
tentativa de concretização do verdadeiro acesso à justiça.
Sobre o juízo arbitral Cappelletti201 aduz:
O juízo arbitral é uma instituição antiga, caracterizada por procedimentos
relativamente informais, julgadores com formação técnica ou jurídica, e
decisões vinculatórias sujeitas a limitadíssima possibilidade de recurso. Seus
benefícios são utilizados há muito tempo, por convenção entre as partes.
Embora o juízo arbitral possa ser um processo relativamente rápido e pouco
dispendioso, tende-se a tornar muito caro para as partes, porque elas devem
suportar o ônus dos honorários dos árbitros.
A arbitragem é uma das possibilidades sugeridas pelo autor como forma
alternativa de promover justiça. Sua aplicação no Brasil ainda é tímida, tendo em vista a
força da tradição de se recorrer aos tribunais estatais202.
Segundo Cappelletti, as formas alternativas de solução de litígios vão além
das discutidas neste trabalho. Para o autor, ainda pode colaborar com o acesso à justiça, na
198
CAPPELLETTI, Op. cit.
199
Ibid, Op. cit.
200
CAPPELLETTI, Op. cit. p. 81
201
Ibid, Op. cit. p. 82.
202
A situação de aplicação da arbitragem no Brasil será tratada em item a parte.
forma de meios alternativos, além da conciliação a mediação e arbitragem, incentivos
econômicos no sentido de encorajar os acordos203. Pois, sabendo que ao dar
prosseguimento à ação a parte pode perder com inflação, a demora para obter o desejado ou
o risco de perder a demanda. Assim, ela estará com disposição influenciada no sentido de
conciliar204.
Por outro lado, é inerente ao Estado Democrático de Direito a eficácia
concreta dos direitos constitucionais fundamentais. Esses, petrificados na Constituição, tem
a tutela jurisdicional como meio de efetivação. Para Greco205:
Foram a constitucionalização e a internacionalização dos direitos
fundamentais, particularmente desenvolvidas na jurisprudência dos tribunais
constitucionais e das instâncias supra-nacionais de Direitos Humanos, como
a Corte Européia de Direitos Humanos, que revelaram o conteúdo da tutela
jurisdicional efetiva como direito fundamental, minudenciado em uma série
de regras mínimas a que se convencionou chamar de garantias fundamentais
do processo, universalmente acolhidas em todos os países que instituem a
dignidade da pessoa humana como um dos pilares do Estado Democrático de
Direito
As garantias fundamentais do processo são instrumentos garantidores da
efetivação dos princípios da inafastabilidade da tutela jurisdicional, do devido processo
legal e do contraditório e da ampla defesa, todos expressos no Art. 5º da Constituição
Federal206. Essas garantias valem do ponto vista do direito objetivo para todos os ramos de
um sistema jurídico. Por se tratar de Direitos Humanos Fundamentais, além de dispostas na
Constituição Federal, são garantidas também em forma de convenções e tratados supranacionais. Comoglio 207 as dividem em garantias individuais e garantias estruturais. No rol
das primeiras estão: acesso amplo à justiça por todos os cidadãos; imparcialidade do juiz;
ampla defesa; direito do pobre; juiz natural; inércia, contraditório; oralidade; coisa julgada
e renúncia à tutela jurisdicional. Já as garantias estruturais estão: impessoalidade e
permanência da jurisdição; independência do juiz e motivação das decisões; igualdade
concreta; inexistência de obstáculos ilegítimos; efetividade qualitativa; procedimento legal,
203
CAPPELLETTI, Op. cit. p. 87.
204
Ibid. Op. cit. p. 8.
205
GRECO, Op. cit. p. 01.
206
BRASIL, Constituição Federal. Op. cit.
207
COMOGLIO, Apud, GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais do Processo: O Processo Justo.
Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 02/02/2009.
flexível e previsível; publicidade; legalidade estrita no exercício do poder de coerção; prazo
razoável e respeito à dignidade humana.208.
Procede-se à enumeração exaustiva das garantias, pois observadas essas
garantias, efetivando-se está a tutela jurisdicional efetiva que pro via de conseqüência a
promoção do acesso à justiça. Algumas dessas só podem ser promovidas por meio de ações
exclusivas do Poder Judiciário, já que existem limitação para sua promoção via órgão
privado. No entanto, por meio dos mecanismos alternativos de solução de conflito, direta e
indiretamente pode-se proceder a promoção de várias dessas garantias, concretizando o
acesso à justiça.
3.5 OBSTÁCULOS E EMPECILHOS: CONTRA O ACORDO
O que se discute neste tópico tem como pressuposto teórico o interessante
posicionamento de Fiss209, que dá uma nova dimensão à função da adjudicação210 no
sentido de que está deve cumprir uma função social. O judiciário, no entendimento do
autor, deve se preocupar em garantir justiça e equidade social, se valendo, portanto dos
princípios processuais constitucionais e não se atendo a mecanismos que garanta apenas
pretensões individuais211. Assim, devem ser valorizadas as formas jurisdicionais revestidas
de características fundamentais de solução dos litígios, visando atingir a finalidade para
qual a adjudicação foi instituída.
A função dos tribunais nas sociedades modernas certamente teve que ser
ampliada, não apenas em função do aumento do número de demandas, mas por ter a
208
Ibid. Op. cit.
209
FISS, Owen. Um novo Processo Civil: Estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e
sociedade. Coordenação da tradução Carlos Alberto de Salles; tradução Daniel Porto Godinho da Silva,
Melina de Medeiros Rós. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
210
A expressão “Adjudicação” na literatura jurídica norte-americana tem sentido equivalente, no Direito
brasileiro de exercício da atividade jurisdicional.
211
FISS, Op. cit. p. 11
sociedade se diversificada de tal maneira que surgiram novos direitos a serem tutelados.
Numa sociedade pluralizada e diversificada, a preocupação do Estado em garantir e fazer
valer os direitos se volta também para o coletivo, mas tendo como fundamento o respeito e
a dignidade do individuo. Daí que os direitos começam a se tornarem fundamentais e as
suas garantias vêm em forma de princípios imbricados nas Constituições. O poder
judiciário tem que garantir a paz na sociedade como um todo, sociedade essa, revestida de
uma modernidade que está abarrotada das mais diferentes pretensões e interesses. Os
direitos a serem tutelados já são difusos ou coletivos, assim como direitos que até bem
pouco atrás não eram motivos de intervenção dos tribunais agora já o são como no caso de
meio ambiente, consumidores, homossexuais, etc. Nesse sentido, o Estado, atua através do
Poder Judicante para que todos tenham seus direitos e ideais de justiça satisfeitos inseridos
em uma perspectiva coletiva.
Nesse universo, Fiss se contrapõe aos acordos ou aos seus defensores, já que
esses visam atender aos interesses particulares ou controvérsias entre vizinhos. Nesse caso,
o acordo está mais para uma trégua do que para a solução do litígio social, como comenta o
autor:212
Entretanto, em meu entendimento, essa visão da adjudicação e o movimento
favorável ao acordo, baseiam-se em premissas questionáveis. Não acredito
que o acordo como prática genérica, seja preferível ao julgamento ou deva
ser institucionalizado em uma base extensa e ilimitada. Deveria ser tratado,
ao contrário, como uma técnica altamente problemática para a simplificação
dos dockets.213O acordo, no processo civil, é análogo à transação penal:
geralmente, o consentimento é obtido via coação: a transação pode ser
realizada por alguém que não possui autoridade; a ausência de instrução
processual e de julgamento cria um subseqüente e problemático
envolvimento do juiz; e embora os dockets sejam abreviados, a justiça não
pode ter sido feita. Assim como a transação penal, o acordo é uma rendição
às condições da sociedade de massa e não deveria ser encorajado e
valorizado.
A descrença do autor se baseia principalmente na premissa de que qualquer
meio que não o da jurisdição de solução de conflito, carece da legitimidade da função
primordial da jurisdição, que regida por princípios tem o intuito da pacificação social.
212
213
FISS. Op. cit. p. 122.
Dockets, de acordo com os próprios tradutores da obra do autor em questão, são os registros dos vários
atos processuais ocorridos durante o desenvolvimento do processo.
Outro argumento é de que o acordo não observa o equilíbrio entre as
partes214. Na jurisdição, o julgador, por meio das regras e princípios restabelecerá ou
manterá a igualdade entre os litigantes. De três formas o acordo pode ser influenciado pela
disparidade de recurso entre as partes, conforme Fiss215: a parte mais pobre terá dificuldade
em se equiparar à mais rica nas possibilidade de reunir e analisar as informações
concernentes ao litígio; em segundo, a necessidade da pretensão do pobre é infinitamente
superior à da parte mais abastarda; finalmente, a parte mais pobre pode se sentir forçada ao
acordo tendo em vista a possibilidade de ter que arcar com as despesas oriundas da
demanda. Esses são os entraves ao acordo, tendo como fundamento o desequilibro entre as
partes como conseqüência de suas capacidades materiais e culturais.
Mas o que talvez seja o apelo mais interessante do autor contra o acordo é o
fato de que o este visa apenas a paz, mas não alcança a justiça. Para Fiss, é imprescindível
que as cortes que representam o poder estatal de julgar manifestem acerca de determinadas
questões. O acordo as priva disto.216 O que por sua vez não quer dizer que o judiciário
tenha que ser provocado e consequentemente se manifestar acerca de todas os litígios que
ocorrem na sociedade. Mas, a participação do Poder Judiciário na solução do conflito pode
não apenas remediar a situação por um instante ou para um indivíduo singularmente, mas
buscar um sentimento de que foi feito justiça para toda a sociedade e para um longo
período. Os julgamentos não comportam apenas decisões judiciais isoladas, mas propiciam
um processo contínuo de salvaguarda dos valores públicos e sociais, alcançando por vezes
a reestruturação política e burocrática da sociedade, como no caso Brown vs Board of
Education.217 Para a pacificação e organização social é necessário que as cortes se
manifestem acerca dos litígios.
A propósito, a paz nem sempre é a consecução e efetivação do direito. Para
Ihering
218
, o direito sempre pressupôs luta efetiva das partes, na medida em que por meio
214
O autor se vale da expressão acordo abarcando aos meios alternativos de solução de conflitos de maneira
geral.
215
216
FISS, Op. cit. p. 125.
Ibid. Op. cit. p. 140.
217
A partir do caso Brown vsBoard of Education começa no Estados Unidos o movimento que põe fim a
segregação racial nas escolas. Até 1954, ano de proferimento da sentença havia escolas em que só estudavam
brancos enquanto outras que só estudavam os negros. Essa decisão foi o marco inicial para o fim deste
processo discriminatório. Para Fiss, se nesse caso tivesse acontecido um acordo, o Estado através do Poder
Judiciário não teria se manifestado que, por conseguinte esse processo talvez não tivesse sido desencadeado.
218
IHERING, Rudolf Von. A Luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
do processo, as pessoas irão provocar o Estado para que através da decisão tenham o seu
direito satisfeito. Para o autor, “o direito no seu movimento histórico apresenta-nos, pois
um quadro de lucubrações, de combates, de lutas, numa palavra de penosos esforços”219.
Nesse sentido, para ter o direito efetivamente satisfeito, o acordo apresenta como um óbice.
O acordo, no ponto de vista do autor é oposição ao verdadeiro sentimento de justiça que se
pleiteia através do direito.
A parte, em determinados momento se curva ao acordo tendo em vista a sua
posição de fragilidade em relação à demanda. Essa fragilidade pode ser do ponto de vista
econômico – essa é que mais incide e a que é mais influencia -, cultural ou social. Muito
comum se torna, em determinadas situações, o demandante ou demandado sopesar no
sentido de continuar ou não com o litígio, mesmo sabendo que poderia vir a vencer a
demanda. A questão do equilíbrio entre as partes é tida como garantia fundamental do
processo por Leonardo Greco220 e será tratada no item a seguir.
Ihering221, em brilhante explanação cita o exemplo do compônio que aciona
o Judiciário para ver a sua pretensão satisfeita, ainda que se trate de valor irrisório. O
julgador propõe pagar-lhe o objeto da demanda para que esta se dê por finalizada. Porém, o
compônio quer a sentença, já que está lhe devolverá a sua honra que é mais importante do
que o valor material da pretensão, recusando a proposta do julgador.
O autor assim discorre, complementando o raciocínio:222
Num semelhante caso, querer dissuadir uma parte de um processo fazendolhe ver as despesas e as outras conseqüências, como seja a incerteza do
resultado, constitui um erro psicológico; porque não se trata para esse
contendor de uma questão de interesse, mas da lesão do seu sentimento
jurídico. O único ponto sobre o qual alguém poderá se apoiar com êxito é a
suposição de sua intenção contra o adversário por meio do qual a parte se
deixa conduzir; se ela se limita a refutar esta suposição, o verdadeiro nervo
da resistência está cortado e poder-se-á convidar o litigante a examinar a
questão sob o ponto de vista de seu interesse e, por conseguinte a transigir.
Assim é que a tese de Ihering223 já antevia o posicionamento de Fiss224. Para
aquele autor, o direito cumpria importante papel social, pois por meio dele é que a
219
Ibid, Op. cit. p. 8.
220
GRECO, Op. cit.
221
IHERING, Op.cit.
222
Ibid, Op. cit. p. 22,23.
223
IHERING, Op.cit.
sociedade se organizará e buscará o verdadeiro ideal de justiça. Esse sentimento era tão
forte e importante para o autor que este, em conclui da seguinte forma:225
O direito e a justiça só prosperam num país, quando o juiz está todos os dias
preparado num tribunal e quando a polícia vela por meio de seus agentes,
mas cada um deve contribuir pela sua parte para essa obra. Toda gente tem a
missão e a obrigação de esmagar, em toda a parte, onde ela se erga, a cabeça
da hidra que se chama o arbítrio e a ilegalidade. Todos aqueles que fruem os
benefícios do direito devem também contribuir pela sua parte para sustentar o
poder e autoridade da lei; em resumo, cada qual é um lutador nato, pelo
direito, no interesse da sociedade.
Por outro lado, os tribunais ou cortes dos Estados contemporâneos têm cada
vez mais abocanhando um espaço que até bem pouco tempo atrás não possuíam. Seja do
ponto de vista político, freando os desmandos dos Poderes Executivo e Legislativo, ou seja,
do ponto de vista sociológico interferindo em questões que a sociedade resolvia através da
petrificação de seus costumes. Sobre a primeira Santos226 a denomina de judicialização dos
conflitos políticos e assim discorre:
No entanto, o novo protagonismo judiciário partilha com o anterior uma
característica fundamental: traduz-se num confronto com a classe política e
com outros órgãos de poder soberano, nomeadamente com o Poder
Executivo. E é, por isso que, tal como anteriormente, se fala agora da
judicialização dos conflitos políticos. Sendo certo que na matriz do Estado
moderno o Judiciário é um poder político, titular de soberania, a verdade é
que ele só se assume publicamente como poder político na medida em que
interfere com outros poderes políticos. Ou seja, a política judiciária, que é
uma característica matricial do Estado moderno, só se afirma como política
do Judiciário quando se confronta, no seu terreno, com outras fontes de poder
político. Daí que a judicialização dos conflitos políticos não possa deixar de
se traduzir na politização dos conflitos judiciários.
Nos Estados modernos é praticamente impossível a não existência e
participação dos tribunais nos mais diversos ou em todos os setores da sociedade. Por meio
das mais diferentes decisões proferidas tem-se a interferência do judiciário nos rumos de
uma nação, tanto do ponto de vista político e econômico. O posicionamento dos tribunais
influencia diretamente os rumos da economia. As grandes empresas estão sempre atentas
ao que tem sido decidido por eles. Basta que se observe, a título de exemplo, o sentido que
as decisões dos tribunais na questão das taxas de juros aplicadas pelos bancos em
224
FISS, Op.cit.
225
IHERING, Op.cit.p. 50.
226
SANTOS, Boaventura de Souza, MARQUES, Maria Manuel Leitão, PEDROSO, João. Os tribunais nas
sociedades contemporâneas. Disponível em www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbcs30_07.htm.
Acessado em 10/03/2008. p. 2.
detrimento ao entendimento dos tribunais que era pela aplicação pelo juro legal de 12% ao
ano227.
O aumento do número de demanda reflete, por outro lado, a valorização que
a sociedade tem dado ao judiciário. Em um primeiro momento pode parecer um contrasenso, tendo em vista o descrédito dos brasileiros face ao judiciário. Esse aumento faz com
que o próprio Judiciário comece a aceitar e incentivar a implementação dos mecanismos
alternativos de solução de conflitos. Fiss, nesse sentido, mas uma vez se posiciona contra o
acordo. Para o autor, o judiciário está mais preocupado com a diminuição da demanda de
processos para serem solucionados e que contribuem para a morosidade dos julgamentos.
Nesse sentido, a critica de Fiss228:
O juiz Burger não é movido pelo amor ou pelo desejo de encontrar novos
caminhos para restaurar ou preservar as relações amistosas, mas sim por
preocupações relativas à eficiência e à ordem política. Ele busca alternativas
para a litigância com o propósito de diminuir o volume de casos no Judiciário
ou, de forma mais plausível, de isolar o status quo da possibilidade de
reforma pelo Judiciário.
A posição de daqueles que se contrapõe ao acordo reflete um ideal de justiça
no qual há uma valorização do Estado, mas precisamente do Poder Judiciário, como sendo
o principal responsável na aplicação do direito. Para tanto, deve se considerar o momento e
a ideologia das sociedades das quais advém o referido pensamento. Ou seja, a realidade
atual implica a atuação do Estado no sentido de revisar as técnicas de consecução de
justiça, bem como trabalhar visando à implementação de novos meios que atendam a essa
nova demanda e ideal do que vem ser justo.
Cappelletti,229 um dos precursores do acesso á justiça, também faz algumas
advertências, sobre limitações e riscos do referido movimento. Possuindo os mais diversos
méritos, trata-se de uma reforma sofisticada e inter-relacionada230, como aduz o autor
movimentos dessa natureza e dessa grandeza, que envolve uma séria de modificações para
227
Os tribunais de 1ª e 2ª instancia entendiam pela aplicação do percentual de 12% de juros por ano,
conforme dispunha o Art. 192 da Constituição Federal, mesmo não sendo regulamentado.
228
FISS, Op. cit. p. 123.
229
CAPPELLETTI, Op. cit.
230
Ibid. Op. cit.
a sua tradução em realidade, não é fácil vencer a oposição tradicional. Nesse sentido, diz o
autor231:
Ao saudar o surgimento de novas e ousadas reformas, não podemos ignorar
seus riscos e limitações. Podemos ser céticos, por exemplo, a respeito do
potencial das reformas tendentes ao acesso à justiça em sistemas sociais
fundamentalmente injustos. É preciso que se reconheça, que as reformas
judiciais e processuais não são substitutos suficientes para as reformas
políticas e sociais.
Ora, a implementação das formas alternativas de solução de conflitos
certamente deverá observar as questões políticas e sociais inerentes a cada sociedade. Por
isso, não são passíveis de aplicação a qualquer custo. Obviamente que no caso brasileiro
entende-se que o país já vive um indício de amadurecimento democrático propício a se
iniciar a implementação de algumas das técnicas de resolução de litígios paralelas às do
Poder Judiciário.
Outro risco apontado por Cappelletti232 se refere à limitação das fronteiras
de atuação das novas instituições que forem criadas para a operarem os mecanismos
alternativos de solução de conflitos. Os riscos de um conflito de competência são muito
grandes, podendo, ao invés de acelerar um julgamento ou o desfecho de uma demanda,
retarda-la. No caso brasileiro, pode-se notar o problema do surgimento do grande número
de tribunais de arbitragem, levantando inclusive, questão acerca do uso da palavra
Tribunal233. Assim, as reformas implantadas com intuito de eliminar barreiras, podem ao
contrário induzir ao surgimento de outras234.
O acordo, em sentido genérico, ou seja, no sentido que está nas entrelinhas
dos mecanismos alternativos de solução de conflito esbarrão em obstáculos que implicarão
na impossibilidade de sua aplicação. Porém, a não aplicação dos mesmos em virtude de tais
empecilhos não solverá e muito menos será um passo na contramão dos problemas que
afligem o Poder Judiciário, que inegavelmente assola principalmente o Direito pátrio. A
verdade é que uma crise se instalou no judiciário brasileiro afetando a principal forma de
solução de conflito, qual seja o processo.
231
Ibid. Op. Cit. p. 161.
232
CAPPELLETTI. Op. cit. p. 163,163
233
Questão que será tratada ao comentar a realidade brasileira.
234
Ibid. Op. cit. p. 163.
Se faz sentido os questionamentos aqui levantados acerca da aplicação dos
mecanismos alternativos de solução, também o faz a busca por novas fórmulas e meios de
pacificação da sociedade, ainda mais no caso doméstico em que quem o processo não tem
cumprido são função precípua. A busca pelo aperfeiçoamento das técnicas de resolução de
litígios na sociedade sempre foi e será luta constante dos mais variados sistemas jurídicos.
A implementação e aplicação estes é apenas mais uma batalha nessa árdua guerra.
CONCLUSÃO
Em sede de conclusão, observa-se que a sociedade na atualidade está repleta
de conflitos os mais diversificados possíveis. Essas relações sociais implicam em novas
relações jurídicas, impondo uma mudança de padrão e de comportamento dos órgãos ou
instituições que tem por finalidade a organização social. Mesmo sendo uma idéia primária,
persiste a noção de que o Direito é um conjunto de normas de conduta social cuja
finalidade é a segurança e o bem comum. Posto que os mecanismos de solução de conflito
tenham a mesma finalidade, a sua não aplicação consiste em num erro mediato.
O momento em que se denomina de Neoconstitucionalismo está voltado
para uma concepção de Direito renovada do ponto de vista de interpretação e aplicação da
Constituição. Há um alargamento da função da jurisdição constitucional já que o seu papel
é indicar o norte interpretativo dessa nova ordem jurídica. Ordem jurídica que impõe
obrigações, tanto no momento da criação da lei quanto da sua aplicação no plano
infraconstitucional. Nesse diapasão, as exortações advindas da constituição em forma de
mandamentos fundamentais devem ser observadas.
Esse tipo de ação não é apenas uma nova técnica jurídica que está sendo
aplicada como se desenvolvida num laboratório pelos operadores do Direito. É um novo
agir em função do que está sendo posto pela realidade social. Esse é o motivo e o
fundamento dessa nova forma de interpretação constitucional. Tem como pano de fundo
uma realidade social plural e fragmentada que se transforma numa rapidez virtuais onde o
que é pleiteado pelos indivíduos é direitos que já não podem mais deixar de ser atendidos.
Regras, somente, já não são mais o que é posto pela Constituição. Dela
agora emana valores e princípios, numa dimensão axiológica que não era pensada no
Positivismo jurídico. Daí que se fala em pós-Positivismo. É redimensionar o campo de
aplicação jurídica, estendendo ou saindo do campo normativo constitucional para uma
realidade efetivamente constitucional. O valor dignidade da pessoa humano sempre foi tido
como o exemplo de mandamento constitucional exemplificativo de como se aplica o
Direito no Neoconstitucionalismo. O mesmo se dá com acesso à justiça. Se para efetivar
aquele é dar ao indivíduo um lar, ainda que esse direito não conste de uma norma
positivada, pode-se concretizar direito do acesso à justiça mediando um litígio em que as
sujeitos deste se sintam satisfeitos.
Assim, o pós-Positivismo é a supressão das técnicas de aplicação jurídicas
que não mais coadunam com esse novo viver em sociedade. É mais do que abandonar o
método da subsunção. É não fazer dele a única forma de aplicação do direito, abrir mão de
aplicá-lo para que em função de ditames constitucionais com grande carga valorativa se
possa atingir os mais variados anseios sociais. A interpretação principiológica atua numa
seara e a subsunção noutra, já que o todo ordenamento jurídico é composto de princípios e
regras.
A multiplicidade de argumentos teóricos está ai pra a prática do que foi
delineado como Neoconstitucionalismo. A constituição permite que se faça uso do tempo
para cumprir as previsões feitas por ela, que para isso deixou margem. Por isso, a sua
dimensão prospectiva não deve ser esquecida.
O pós-Positivismo é um momento em que o pensamento filosófico deve
fazer parte do pensamento jurídico. As normas constitucionais fundantes são eivadas de
dimensão axiológica, dando margem para questionamentos e expansão dos seus sentidos.
Conceitos como verdade, justiça, dignidade, ética, por exemplo, não podem ter limites para
lhes sugar os seus significados. A cada dia, as tão faladas novas relações sociais trazem
consigo elementos que obrigatoriamente força a todos, principalmente os aplicadores do
direito, a rever esses conceitos.
A justiça é um bem que pode ter a sua consecução proporcionada pelas mais
diversas instituições, implicando uma ampliação da interpretação do disposto na
Constituição Federal. Essa, por meio de suas regras e de seus princípios exige a atuação de
todos em uma sociedade. A constituição não é mais apenas um documento direcionado à
um grupo pequeno de burocratas operadores do Direito.
A tarefa de construir uma
sociedade calcada num ideal de justiça democrático é um processo constante e perpétuo em
que todos, indivíduos e instituições são atores. Fazer justiça deixou de ser exclusividade do
Poder Judiciário.
Nesse contexto, os mecanismos de solução de conflitos processados fora da
jurisdição são uma alternativa para a consecução do princípio do acesso à justiça. Porém, o
sentido de acesso à justiça deve ser interpretado como reclamado no início do texto
conclusivo. Não se deve, no momento, pensar que acesso à justiça é apenas exercer o poder
de demandar, tendo como resultado uma sentença proferida por um tribunal. O acesso aos
valores que se extrai da Constituição, notadamente em forma de princípios ou direitos
fundamentais, indiretamente se promove acesso à justiça.
Obviamente, os tribunais são os protagonistas desse processo. E quanto a
estender o sentido do acesso à justiça, eles exercem função primordial, já que podem e vão
ser os responsáveis para dizer ao final se deve ou não e em que situações os mecanismos de
solução de conflitos fora da jurisdição poderão ser aplicados. Pois, certo é que os tribunais
não estão conseguindo exercer a contento a sua função precípua, pois nem sempre estão
devolvendo para a sociedade as respostas acerca de suas demandas litigadas. Nesse sentido,
para ficar claro, vide as demoras para que sejam proferidas as sentenças no caso do
Judiciário brasileiro. E não se pretende aqui, por meio dos mecanismos de solução de
conflitos fora da jurisdição, atacar um mal que se desconhece totalmente as causas. Porém,
não custa lembrar que em determinadas situações quanto menos o judiciário intervier será
melhor, como no caso da economia. Para tanto, deve se buscar, por meio de um processo
ainda que longo, um diagnóstico conciso da situação.
E quando se fala de um dos principais problemas na tentativa da consecução
da justiça, qual seja, a morosidade com que são proferidas as sentenças sem que caibam
recursos, o Poder Judiciário acaba aparecendo como sendo o único responsável. Esse
pensamento, porém, não reflete de maneira fiel a realidade. A morosidade observada no
Poder Judiciário tem na sua raiz diversos elementos que envolvem os demais poderes de
Estado, tanto no momento de elaboração do processo legislativo bem como a excessiva
regulamentação advinda do Poder Executivo por meio do excessivo número de atos
regulatórios oriundos dos órgãos da Administração direita e indireta.
Mas, sabendo que a morosidade no Judiciário é influente fator para impedir
o acesso pleno à justiça, os mecanismos alternativos de solução de conflitos não são
propostos com a missão única de tentar solver tal problema. Esses instrumentos são, na sua
essência, novas formas de resolução de novos tipos de conflitos. Ou seja, além do já
amplamente discutido problema da lentidão do Judiciário, tem-se um momento social novo,
com uma série de novas demandas litigiosas que implica em pensar em novos meios para
solucioná-las. Pois, essa nova realidade social com inúmeras novas relações implica no
surgimento de novas relações jurídicas que para o Poder Judiciário apresentam-se como
estranhas.
Destarte, as soluções apresentadas nesse estudo visam ser apenas mais um
meio para efetivar o ideal de justiça que nesse momento a sociedade globalizada e
impregnada de novas demandas reclama. E aqueles que vão fazer parte desse processo
podem ser outros, além dos integrantes do Poder Judiciário. Os procuradores de uma forma
geral, lançando mão dos conhecimentos técnicos que trazem em virtude de sua formação e
da bagagem profissional, podem desempenhar importante papel, na medida em que puder
apresentar aos litigantes possibilidades de conciliarem ou acordarem.
Porém, não se esquece aqui que os mecanismos objetos da presente pesquisa
apresentam limitações que não devem ser olvidadas, principalmente no seu processo de
concretização e implementação. A diversificada realidade dos sistemas jurídicos globais,
com suas ideologias políticas, impõe que em algumas situações um ou outro mecanismo
encontrará resistência de efetivação ou quiçá, impedimento. Se os meios aqui aludidos são
formas que tem o intuito de tentar propiciar um vasto acesso à justiça, devem ser
respeitadas a tradição e a ideologia dos sistemas e ordenamento jurídicos postos. Da mesma
forma, algumas decisões advindas do Poder Judiciário são imprescindíveis e insubstituíveis
para alcançar a paz e a estabilidade social. A sociedade, em determinadas questões se
sentirá segura a partir do momento em o vier do Poder estatal o parecer que indicará um
norte ou um sentido, servindo de alicerce na sedimentação das posturas a serem seguidas.
Finalmente há que se ressaltar que o processo, de uma maneira geral tem suas garantias
fundamentais que se não seguidas, estariam na contramão do que aqui se propõe, ou seja, a
importância de um direito enquanto garantia constitucional fundamental.
A mediação, a conciliação e a arbitragem, enquanto meios de solução de
conflitos fora da jurisdição não é solução para todos os males e conflitos da sociedade. Os
conflitos individuais, à medida que se intensificam e se diversificam, vão minando a
sociedade a ponto de desestabilizá-la. A partir do momento que um ou outro conflito
individual é solvido, fazendo uso dos mecanismos em debate, ainda que insignificante à
primeira vista, na sociedade está sendo plantada a semente da pacificação. Dessa forma,
posicionar-se de pronto contra o uso e aplicação desses meios de solução de litígio,
constitui uma afronta ao espírito cientifico por meio do qual se tem base da evolução, ou
seja, a experimentação. Nesse diapasão, não faz sentido se posicionar contrário à
implantação da mediação, cuja gênese ainda está num projeto de lei, pois, ela é apenas uma
tentativa de solução do conflito ou uma forma de evitar que ele se agrave.
Muito já se falou e escreveu sobre os mecanismos alternativos de solução de
conflitos, tanto na jurisdição ou fora dela, como forma de acesso à justiça. Porém, aqui eles
são tratados na perspectiva de um novo pensar. Pensar este que tem como parâmetro as
bases metodológicas do Neoconstitucionalismo, dentro de um movimento mais amplo
denominado de Pós-Positivismo. E nesse novo paradigma, a aplicação da justiça vai além
do conhecimento técnico, pois o significante justiça é também vivência e sentimento, de tal
sorte que numa sociedade em que se almeja a pacificação, todos tem que fazer parte desse
processo.
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