A MULHER E A LEI MARIA DA PENHA Tereza Rodrigues Vieira "Apesar de todo o progresso verificado no cenário legislativo, as mulheres continuam a ser objeto de violência doméstica e discriminação." A violência doméstica é um fenômeno cruel que ocorre diariamente em todo o mundo. Manifesta-se de diversas formas e graus de incidência, não encontrando o agressor limites de idade, condição social, etnia ou religião. Na verdade, esse fato de natureza gravíssima afeta física e psiquicamente a vítima e seus dependentes, comprometendo o exercício da cidadania e dos direitos essenciais da pessoa humana. Comumente, a violência contra a mulher ocorre no âmbito da intimidade, o que contribui para o entendimento prevalente na sociedade de que não se trata de delito. Todavia, o alastramento dessa problemática social impôs a necessidade de se encontrar mecanismos eficazes, céleres, coordenados e multidisciplinares para contê-la, o que sucedeu com a edição da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Referida lei cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Mudanças Legislativas 1 A Carta Federal de 1988 representou a primeira vitória das mulheres, na dura jornada pela emancipação feminina, ao estabelecer a igualdade entre os sexos (art. 5º, I) e os cônjuges (art. 226, § 5º), além de vedar qualquer ato discriminatório por motivo de sexo (arts. 3º, IV e 7º, XXX). Admite, no entanto, que o Estado trate de forma desigual os indivíduos desiguais, desde que justificadamente. Vale citar como exemplos a licença-maternidade, cujo prazo é maior do que aquele assegurado à licença-paternidade, e a aposentadoria da mulher, que exige tempo de contribuição e idade menores do que ao homem. Por sua vez, o Código Civil em vigor preconiza, em seu art. 1º, que "toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil", abrangendo ambos os sexos. Já o art. 1.511 dispõe que "o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges". Assim, deve haver consenso entre marido e mulher na tomada de decisões referentes à sociedade conjugal, superando-se a primazia masculina. No tocante ao sobrenome, o caput do art. 1.565 do Código Civil de 2002 dispõe que, pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família, sendo facultado a qualquer dos cônjuges adicionar ao seu o apelido do outro (§ 1º). O art. 1.567, por seu turno, estabelece que a direção da sociedade conjugal será exercida tanto pelo marido como pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos. Caso os consortes não entrem em acordo, poderão requerer intervenção judicial. Veja-se que a mulher adquiriu direitos e também obrigações, como a subsistência da família, que passou a ser um dever de ambos os cônjuges, nos moldes do art. 1.568, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho. Convém ressaltar que a mulher passou de subalterna a sócia do marido. 2 O novo Código Civil também evoluiu ao aplicar o princípio da isonomia entre os cônjuges à proteção da pessoa dos filhos. Não obstante a substituição do pátrio poder pelo poder familiar, outorgado conjuntamente ao pai e à mãe, "decretada a separação judicial ou o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a quem revelar melhores condições para exercê-la". No ponto, cabe assinalar que a condição financeira não se configura fator preponderante na escolha daquele que exercerá a guarda, e sim aspectos de ordem moral, emocional, psicológica, afetiva, estrutural, entre outros, sempre no interesse do menor. Apesar de todo o progresso verificado no cenário legislativo, as mulheres continuam a ser objeto de discriminação, principalmente no que se refere à contraprestação por serviços prestados, às oportunidades no mercado de trabalho e à representação política. Estatísticas sobre Violência Doméstica Dados do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (http://www.patriciagalvao.org.br/ ) demonstram que: A cada cinco faltas da mulher ao trabalho, uma é resultante de violência doméstica. A cada cinco anos, a mulher perde um ano de vida saudável devido à violência doméstica. Na América Latina e no Caribe, a violência doméstica atinge entre 25% e 50% das mulheres. 3 Nos EUA, estimou-se o custo da violência contra as mulheres entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões ao ano. Nos países em desenvolvimento, estima-se que 5% a 16% de anos de vida saudável são perdidos pelas mulheres em idade reprodutiva, como resultado da violência doméstica. O custo total da violência doméstica oscila entre 1,6% e 2% do PIB de um país. Levantamento feito nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM) concluiu que, no ano de 2005, houve cerca de 55 mil registros de ocorrências somente nas capitais do País. Considerando-se as demais cidades brasileiras, esse número sobe para 160.824. Os dados obtidos pela pesquisa correspondem a 27% das delegacias existentes, sendo que um número significativo de mulheres não denuncia as agressões por medo, vergonha ou falta de crença na eficácia da denúncia. (FREIRE, 2007.) Cerca de "70% dos incidentes acontecem dentro de casa, sendo o agressor o próprio marido ou companheiro; mais de 40% das violências resultam em lesões corporais graves, decorrentes de socos, tapas, chutes, amarramentos, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos." (DINIZ et al., 2003, p. 82.) Segundo CHESNAIS (1981, p. 79) "um em cada seis casais entram em confronto físico pelo menos uma vez por ano, usando objetos como faca ou armas de fogo. O risco de ser morto por alguém do grupo familiar é maior do que por estranhos, exceção feita pela polícia". De acordo com pesquisa nacional realizada pelo Instituto Patrícia Galvão, em maio de 2006, antes, portanto, do advento da Lei 4 Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 07.08.06), no período compreendido entre 2004 e 2006 o número de casos tipificados como violência doméstica, na periferia das grandes cidades, passou de 43% para 56%. Aproximadamente 33% das pessoas entrevistadas apontaram a violência dentro e fora de casa como a maior preocupação da atualidade. 51% declararam conhecer ao menos uma mulher que é, ou foi, agredida pelo companheiro. À indagação sobre o que acontece quando a mulher denuncia a agressão, 33% responderam que ela apanha mais; 27% que nada acontece com o agressor; 21% que o agressor vai preso; e 12% que o agressor recebe uma multa ou é obrigado a doar cesta básica. A gravidade do assunto transcende o suposto pela sociedade, tanto que "a violência doméstica e o estupro seriam a sexta causa de anos de vida perdidos por morte ou incapacidade física em mulheres de 15 a 44 anos – mais do que todos os tipos de câncer, acidentes de trânsito e guerras." (DESLANDES et al., 1997, p. 130.) Quem é "Maria da Penha" A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, foi batizada como Lei Maria da Penha em decorrência de triste episódio ocorrido a 29 de maio de 1983, na cidade de Fortaleza, Estado do Ceará, onde a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes vivia na companhia de seu marido, o economista colombiano Marco Antônio Heredita Viveiros, naturalizado brasileiro. Naquele dia, enquanto Maria dormia, Marco Antônio simulou um assalto, desferindo-lhe um tiro de espingarda, que a deixou paraplégica, haja vista que o atingiu sua coluna, lesionando a terceira e a quarta vértebras. Amedrontada, Maria da Penha não buscou a separação por temer a reação do marido cuja violência estendia-se às filhas do casal. Por outro 5 lado, cria-se merecedora das agressões desferidas por quem julgava superior, mas que, em verdade, possuía um passado criminoso no país de origem – Colômbia. Marco Antônio premeditou o crime. Dias antes do fato criminoso, persuadiu a esposa a realizar um seguro de vida do qual seria beneficiário. Não fosse o bastante, obrigou Maria da Penha a assinar, em branco, recibo de venda de um veículo que lhe pertencia. Decorrido pouco mais de uma semana, tentou eletrocutá-la durante o banho, por meio de uma descarga elétrica. Outro ato premeditado, já que há dias vinha utilizando o banheiro das filhas. Em setembro de 1984, o Ministério Público Estadual denunciou Marco Antônio perante a Primeira Vara Criminal de Fortaleza, fundamentando-se em provas robustas acerca da sua participação no fato delituoso: empregados do casal confirmaram a personalidade violenta do autor e a espingarda utilizada para a prática do crime foi encontrada, contrariando as alegações de que não tinha em seu poder qualquer espécie de arma de fogo. O réu foi submetido a Júri em 1991 e, naquela oportunidade, condenado a oito anos de prisão. A defesa apelou e, em conseqüência do acolhimento do recurso, novo julgamento realizou-se em 1996. Desta feita, a condenação passou para dez anos e seis meses de prisão. Em face de recurso apresentado contra essa decisão do Tribunal do Júri, somente em 2002 o réu acabou indo para a prisão. (DIAS, 2007.) Violência Doméstica segundo a Lei Maria da Penha O art. 5o da Lei nº 11.340/06 conceitua violência doméstica como "qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, ou psicológico e dano moral ou patrimonial". Em seguida, fixa seu campo de abrangência. Assim, a violência doméstica 6 pode ser praticada: I – no âmbito da unidade doméstica; II – no âmbito da família; III – em qualquer relação íntima de afeto, independentemente da orientação sexual. Para a configuração da violência doméstica, é necessário que a ação ou omissão aconteça na unidade doméstica ou familiar, ou, nos casos em que a agressão ocorre devido a um vínculo afetivo qualquer, que o autor conviva ou tenha convivido com a vítima. Note-se que ofendida e agressor não precisam morar juntos, bastando relação íntima de afeto para caracterizar-se a violência doméstica. Também não é obrigatório que as partes sejam ou tenham sido casadas, pois a lei abrange a união estável, ainda que o relacionamento já se tenha findado. (DIAS, 2007.) O sujeito ativo pode ser tanto um homem quanto uma mulher, desde que reste comprovada a convivência doméstica ou familiar, ou a existência de laços afetivos. Já o sujeito passivo deve ser mulher. Assim, a empregada doméstica que trabalha e mora na residência da família à qual presta serviços pode ser vítima de violência doméstica. Também as lésbicas, os transexuais e os travestis cujo documento de identificação informe tratar-se de pessoa do sexo feminino. De igual modo, a mãe, a sogra e a avó do agressor, bem como sua esposa, companheira, amante, filhas e netas podem ser sujeitos passivos do delito de violência doméstica. (DIAS, 2007.) A expressão unidade doméstica significa que a ação deve ser praticada em ambiente do qual a ofendida faz parte. Inclui-se aí a convivência originada da tutela ou curatela. A definição de FAMÍLIA está prevista no inciso II do art. 5º da Lei Maria da Penha, verbis: "Comunidade formada por indivíduos que são ou 7 se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa". A Lei inovou ao referir-se a indivíduos e não a um homem e uma mulher, não se restringindo ao casamento como forma de constituir-se família. De acordo com FERREIRA (2007, p.13 apud DIAS, 2007, p. 45), "a família modernamente concebida tem origem plural e se revela como o núcleo de afeto no qual o cidadão se realiza e vive em busca da própria felicidade. [...] firmou-se no direito das sociedades ocidentais um modelo de atuação participativa, igualitária e solidária dos membros [...]". Relacionamentos que ainda não podem ser caracterizados como uma família, muitas vezes são marcados pela violência. Portanto, embora se trate de namorados ou noivos, verificando-se violência doméstica, independentemente de coabitação, a mulher tem assegurada a proteção da Lei Maria da Penha. Preconiza o art. 2º da Lei nº 11.340/06 que "Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual (...) goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana". Nesse passo, encontram-se sob o abrigo da lei tanto as lésbicas quanto os travestis, os transexuais e os transgêneros do sexo feminino que possuem vínculo afetivo em meio familiar ou de convivência. Já o art. 7º traz um rol não exaustivo das diversas formas de violência doméstica e familiar, a saber: “VIOLÊNCIA FÍSICA entende-se qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher. Além da lesão dolosa, a culposa também se configura violência física, uma vez que a lei não faz diferenciação quanto ao intento do agressor (inciso I). 8 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA compreende qualquer conduta que cause à mulher dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou, ainda, que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação. O agressor geralmente ameaça, despreza, rebaixa ou discrimina a vítima, revelando prazer ao fazê-la sentir-se deprimida, amedrontada e inferiorizada (inciso II). Para a caracterização da violência psicológica não há obrigatoriedade de elaboração de laudo técnico ou perícia. Confirmada sua ocorrência pelo juiz, este poderá impor medida protetiva de urgência. O delito praticado mediante violência psicológica terá a pena agravada, conforme dispõe a alínea f do inciso II do art. 61 do Código Penal.” (DIAS, 2007.) “VIOLÊNCIA SEXUAL configura-se qualquer conduta que constranja a mulher a presenciar, manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, sua sexualidade; que a impeça de usar qualquer método contraceptivo, constrangendo-a ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição por meio de chantagem, suborno ou manipulação; que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos (inciso III).” A norma inserta no § 3º do art. 9º da Lei, por seu turno, assegura à mulher em situação de violência doméstica e familiar serviços de contracepção de emergência e profilaxia de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e AIDS. O crime de assédio sexual, vinculado às relações de trabalho, também pode caracterizar violência doméstica se a ofendida trabalha para 9 o agressor e com este tem relações íntimas de afeto. (CUNHA; PINTO, 2007.) A violência sexual gera na vítima sentimentos de culpa, vergonha e inferioridade, o que não raras vezes faz com que ela não denuncie o agressor. De acordo com CHESNAIS (1981, p. 145) "a violência sexual é o único crime cujo autor se sente inocente e a vítima envergonhada". “VIOLÊNCIA PATRIMONIAL consubstancia-se qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total dos objetos da mulher, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. Esse concomitantemente às tipo de demais, violência, pode que resultar geralmente em danos ocorre físicos e psicológicos à vítima (inciso IV).” Com a nova conceituação de violência doméstica, abrangendo também a violência patrimonial, não são mais aplicáveis as imunidades previstas nos arts. 181 e 182 do Código Penal, sempre que a ofendida for mulher e tiver com o agressor vínculo familiar ou relacionamento afetivo. “VIOLÊNCIA MORAL é tida como qualquer conduta que configure calúnia (imputar falsamente à vítima fato definido como crime), difamação (imputar à vítima a prática de determinado fato ofensivo à sua reputação) ou injúria (atribuir à ofendida qualidades negativas).” (CUNHA; PINTO, 2007.) Medidas de Prevenção e a Assistência à Mulher O art. 8º da Lei Maria da Penha estabelece as diretrizes para o combate à violência doméstica, dentre as quais se destaca a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação (inciso I). 10 Não olvidou, porém, o legislador de estabelecer uma consciência preventiva voltada à mídia, procurando, assim, impedir que jornais, revistas, rádio, televisão etc. mostrem mulheres sendo ridicularizadas e tratadas com escárnio. Daí invocar a realização de campanhas e programas educativos, a implementação de atendimento policial especializado e correspondente capacitação do corpo técnico, bem como a inserção nos currículos escolares de noções sobre igualdade e dignidade da pessoa humana. No art. 9º determina que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada entre os diversos órgãos públicos, cabendo até mesmo a inclusão da vítima em programas assistenciais dos governos federal, estadual ou municipal. Outro aspecto relevante é que a Lei assegura prioridade à remoção de servidora pública, quer da Administração direta, quer da indireta, vítima de violência doméstica e familiar (art. 9º, § 2º, inciso I). Na iniciativa privada, garante à mulher estabilidade no emprego por até seis meses, quando necessário seu afastamento do local de trabalho, visando preservar-lhe a integridade física e psíquica (inciso II). Atendimento pela Autoridade Policial e as Medidas Protetivas de Urgência Nos termos do art. 11 da Lei nº 11.340/06, deve a autoridade policial garantir proteção à mulher em situação de violência doméstica ou familiar, encaminhando-a a hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal, se for o caso; fornecer-lhe transporte e aos seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida; e acompanhá-la para a retirada de seus pertences, cientificando-a de seus direitos. Na delegacia, efetuado o registro da ocorrência, deve a autoridade policial adotar, de imediato, as seguintes providências: 11 “lavrar o respectivo boletim e tomar a representação a termo, se apresentada; colher as provas indispensáveis ao esclarecimento do fato e de suas circunstâncias; e remeter, no prazo de 48 horas, expediente apartado ao juiz, com o pedido da ofendida para concessão de medidas protetivas de urgência. Na seqüência, determinar que se proceda ao exame do corpo de delito; ouvir as testemunhas e o agressor, identificando-o e, por fim, encaminhar os autos do inquérito policial ao juiz e Ministério Público (art. 12).” A Lei Maria da Penha inovou ao introduzir no ordenamento jurídico medidas protetivas de urgência, visando garantir a integridade física, psicológica e patrimonial da vítima e seus dependentes. Estão legitimados a requerê-las o Ministério Público e a ofendida, cabendo ao juiz decidir sobre o seu cabimento ou não, no prazo de 48 horas. O art. 22 da Lei apresenta um rol (não taxativo) de medidas protetivas de urgência aplicáveis ao agressor, em conjunto ou separadamente: a) suspensão da posse ou restrição do porte de armas; b) afastamento do lar, domicílio ou local de convivência; c) distanciamento do agressor; d) impedimento de comunicação com a ofendida, seus familiares e testemunhas; e) impedimento de freqüentar determinados lugares; f) restrição ou suspensão de visitas; g) prestação de alimentos provisionais ou provisórios em favor da vítima e de seus dependentes. Cabe, no entanto, ressaltar a fixação de um limite mínimo de aproximação, numa tentativa de impedir o contato da vítima com o agressor. Oportuno dizer que no ponto não há constrangimento ilegal nem afronta à liberdade de locomoção, pois em primeiro plano está o direito da mulher à preservação da integridade física. Em relação à ofendida, poderá o juiz determinar as seguintes medidas protetivas de urgência: a) recondução da ofendida e seus dependentes ao respectivo domicílio, após a saída do agressor; b) afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, 12 guarda dos filhos e alimentos; c) separação de corpos; d) restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; e) proibição temporária de celebração de contratos de compra e venda de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; f) suspensão de procurações dadas ao agressor; g) prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. (Arts. 23 e 24 da Lei nº 11.340/06.) Impende assinalar que a prisão preventiva do agressor é cabível, nos termos dos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal, sempre que este descumprir medida protetiva e vier a praticar um crime, podendo sua decretação dar-se de ofício, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial. Procedimento e Organização Judiciária Ao processo, julgamento e execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicam-se subsidiariamente o Código de Processo Penal, o Código de Processo Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso e outras normas específicas que não conflitarem com as disposições da Lei nº 11.340/06 (art. 13). Tem-se, portanto, que, na hipótese em comento, a intimação poderá realizar-se via correio (CPC); será possível valer-se do sigilo previsto na Lei nº 8.069/90 (ECA), bem como do direito de preferência no julgamento da causa, assegurado pela Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso). Nesse sentido, CUNHA; PINTO, 2007. Não obstante essas faculdades, a importância da Lei Maria da Penha reside na criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, e na autorização 13 para realizarem-se atos processuais em horário noturno, segundo norma de organização judiciária local. Também digno de nota é o disposto no art. 15 da Lei, que confere à ofendida o direito de eleger o foro para os processos cíveis, tratando-se, assim, de hipótese de competência concorrente e relativa. De acordo com GRECO FILHO (1956, p. 208, apud CUNHA, 2007, p. 71), a competência será concorrente e relativa nos casos "em que é possível a sua prorrogação ou derrogação por meio de cláusula contratual firmada pelas partes; de inércia da parte, no caso do réu que deixa de opor a exceção, chamada declinatória de foro; ou por fatos processuais como a conexão e a continência". Assim, o foro competente poderá ser o local do domicílio da ofendida, de sua residência, do lugar do fato do crime ou do domicílio do agressor. Uma situação que acontecia com freqüência nos casos de violência doméstica era a vítima noticiar à autoridade policial o seu desejo de ver processado o agressor e depois, por medo ou ameaça, acabar se retratando. Com o advento da Lei Maria da Penha, poderá ela desistir de realizar os atos do processo desde que o faça perante o juiz, em audiência especialmente designada para esse fim e antes do oferecimento da denúncia pelo Ministério Público. Dos Delitos e das Penas A Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, promoveu modificações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Execução Penal, sem, contudo, criar novos tipos penais. Limitou-se o legislador a inserir mais uma causa de agravamento da pena (CP, art. 61, inciso II, alínea f), o que ocorre quando o delito é 14 praticado com violência contra a mulher, e a majorar a pena nos casos de lesão corporal, "prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade", a qual passou a ser de 3 meses a 3 anos (CP, art. 129, § 9º). Assim, "está vedada a possibilidade de transação, composição de danos e suspensão condicional do processo." (DIAS, 2007, p. 100.) Ao Código de Processo Penal foi acrescida mais uma hipótese de prisão preventiva, sempre que o crime doloso "envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos da lei específica, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência" (art. 313, inciso IV). Já à Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) acrescentou-se parágrafo único ao seu art. 152, para obrigar o agressor a comparecer a programas de recuperação e reeducação. Por fim, assinale-se que o art. 17 da Lei Maria da Penha veda a imposição de penas de doação de cesta básica e outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. Considerações Finais A Lei Maria da Penha foi criada para reverter a triste realidade de mulheres vítimas de violência doméstica, que até o advento deste diploma legal eram tratadas com absoluto descaso pela sociedade e pelo Estado. A violência contra a mulher é um dos crimes mais praticados no País e, sem dúvida, o menos punido devido a sua pouca visibilidade numa sociedade ainda machista e patriarcal, como a brasileira. 15 Apesar das críticas e dos desafios que se apresentam à sua efetivação, a Lei Maria da Penha é uma proposta inovadora de coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. Não obstante o caráter repressivo desse precioso estatuto, a finalidade visada pelo legislador não é colocar o agressor na cadeia, mas sim a prevenção e a assistência nos casos de violência doméstica, somente ocorrendo a condenação do agente na hipótese de descumprimento de determinação judicial. Dentre as inovações introduzidas pela Lei nº 11.340, de 2006, cabe destacar as medidas protetivas de urgência e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, além da proibição de aplicar-se penas de multa e de prestação pecuniária. Por outro lado, o conceito de violência doméstica estendeu-se para abranger, além da violência física, também a violência sexual, psicológica, patrimonial e moral, praticada no âmbito da família ou de qualquer relação íntima de afeto. Não há dúvida que a intenção da Lei é boa. É preciso, no entanto, buscar interpretações jurídicas cada vez mais justas e adequadas ao atendimento de interesses também de crianças, adolescentes e idosos, todos integrantes da família. Enfim, é imprescindível a integração de esforços do Poder Público com a sociedade para pôr fim à violência doméstica. A efetividade da Lei Maria da Penha depende, e muito, da pressão social. 16 BIBLIOGRAFIA CHESNAIS, J. C. Histoire de la Violence. Paris: Editions Robert Lafont, 1981. CUNHA, R. S.; PINTO, R. B. Violência Doméstica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. DESLANDES, S. Prevenir a Violência: um desafio para os profissionais de saúde. Rio de Janeiro: CLAVES Jorge Carelli, 1997. DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. DINIZ, N. M. F.; LOPES, R.L.M.; GESTEIRA, S. M. A.; ALVES, S. L. B.; GOMES, N. P. Reflexões sobre o Cuidar de Mulheres que Sofrem Violência Conjugal em uma Perspectiva Heideggeriana do Mundo da Técnica. São Paulo: Revista Esc. Enfermagem USP, 2001. FERREIRA FILHO, M.G.. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2000. FREIRE, N. Violência contra a Mulher: uma lei necessária. Disponível em: http://www.patriciagalvao.org.br/ IBGE – Síntese de Acesso em: 27 jul. 2007. Indicadores Sociais 2002. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/12062003indic2002.shtm. Acesso em: 14.06.05. IBOPE/INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO, 2006. Disponível http://www.patriciagalvao.org.br/ Acesso em: 27.07.07. 17 em: