XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 IMPACTOS DA “EDUCAÇÃO DE RESULTADOS” NO OFÍCIO DOCENTE Maria Angélica Pedra Minhoto Universidade Federal de São Paulo [email protected] Resumo O presente artigo discute alguns dos impactos da política nacional de monitoramento e controle da qualidade da educação brasileira sobre o trabalho dos profissionais da educação, em especial do professor. O principal objeto da política examinado neste estudo é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Foram analisados alguns dos efeitos do Ideb sobre: 1) a organização curricular das escolas e redes de ensino; 2) o trabalho do professor e das equipes gestoras de diferentes escolas e 3) a definição de políticas e a organização administrativa de algumas redes de ensino. Entre outros pontos, verificou-se que a instituição do índice tem promovido: o enrijecimento e a redução de programas de ensino; a dissimulação de informações sobre o fluxo escolar, por ser uma das variáveis que compõe o cálculo do indicador; práticas de treinamento e premiação de alunos; a exclusão da participação de estudantes de baixa proficiência nos testes; políticas locais com potencial de penalizar projetos educacionais de longo prazo; um alto grau de detalhamento das prescrições oficiais e de controle sobre o trabalho dos profissionais da educação; e a responsabilização de escolas e de professores, com a divulgação de baixos resultados, deixando intocada a responsabilidade das administrações locais e central. A análise revelou que a racionalidade subjacente a vários mecanismos dessa política tem induzido mudanças que conflitam em inúmeros pontos com os próprios objetivos do sistema educacional. O referencial que orientou o trabalho baseia-se em estudos desenvolvidos por pensadores da Teoria Crítica da Sociedade, especialmente os que tratam da ideologia da racionalidade tecnológica e da educação. Palavras-chave: Ideb; Avaliação de sistemas de ensino; Tecnologia; Racionalidade tecnológica. Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002854 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 IMPACTOS DA “EDUCAÇÃO DE RESULTADOS” NO OFÍCIO DOCENTE Introdução O presente artigo fundamenta-se em resultados de diversos estudos e tem como objetivo analisar alguns dos efeitos da recente política nacional para fomentar mais qualidade em educação: a produção e divulgação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). A função declarada do Ideb é permitir que governos e sociedade civil monitorem ações e metas contidas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), estimulando maior transparência na administração pública e auxiliando estados e municípios a definirem rumos para as suas políticas educacionais. Com isso, a União visa instituir uma cultura de prestação de contas e de responsabilização; a participação da sociedade na gestão das políticas educacionais; a cobrança de medidas mais incisivas e eficazes dos responsáveis na promoção da qualidade da educação pública e sanções por resultados negativos. A estrutura dessa política remete ao juízo de que não apenas os alunos são responsáveis por seus desempenhos, mas que todo o sistema deve prestar contas à sociedade acerca dos resultados por eles obtidos. Tendo por base algumas experiências norte-americanas em iniciativas de responsabilização no âmbito educacional (school accountability), Andrade (2008) descreve suas principais características: fixação de padrões mínimos para cada ano escolar; realização de testes de proficiência para os alunos; divulgação de resultados dos testes por escola e elevação do desempenho dos estudantes nos testes como meta explicita da política. Além disso, o autor revela que alguns estados norte-americanos avançaram na política de responsabilização, ao implantarem sistemas de bonificação e penalização de professores e diretores em função das notas dos alunos. Considerando tais características e comparando-as à situação brasileira, Andrade afirma que há ainda muito espaço para o governo brasileiro adotar uma política mais agressiva, com mecanismos mais incisivos de responsabilização. É esse o sentido de várias ações instituídas recentemente nas diferentes esferas administrativas. No último mês de junho (2011), foram apresentados à Câmara Federal três projetos de lei que visam tornar obrigatória a divulgação do Ideb de todas as escolas públicas de Ensino Fundamental (EF) do país, expondo seus resultados em placas a serem penduradas nas entradas das instituições. Essa ideia foi sugerida inicialmente por Gustavo Ioschpe, um economista que tem tido espaço significativo na mídia e influência Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002855 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 no desenho de programas e políticas educacionais de várias administrações públicas. Em artigo publicado na revista Veja, Ioschpe expõe seus argumentos: “todo cidadão tem o direito de saber a qualidade da escola que seu filho frequenta [...] essa divulgação pode colaborar para quebrar a inércia da sociedade brasileira em relação às nossas escolas” (IOSCHPE, 2011a). Uma das mudanças almejadas pelo economista é a de que os estudantes e seus responsáveis possam fazer escolhas “objetivas e informadas”, ou seja, possam optar por escolas que apresentem altos Idebs, o que, como efeito, deve servir também para pressionar todas as instituições de ensino a ajustarem os seus “serviços”, respondendo aos anseios de seus “clientes”. O mecanismo de regulação sugerido por Ioschpe, típico das relações de mercado, fundamenta-se no princípio de que o poder de escolha dos consumidores garante o controle da qualidade dos produtos e serviços ofertados. Vários limites da incorporação de mecanismos de mercado à esfera pública já foram apontados. Abrucio (1999, p. 189) argumenta que “nem todos os consumidores têm a possibilidade de escolher de fato o equipamento social que lhes agrada, em virtude da existência de obstáculos geográficos e financeiros, os quais dificultam o acesso a todas as unidades de serviço público”. Entretanto, muito mais importante que tais obstáculos é a constatação de que o raciocínio de Ioschpe fere a essência do princípio constitucional de direito à escolarização básica de qualidade para todo o cidadão brasileiro, ao considerar justa, racional e mesmo natural uma situação em que apenas alguns tenham acesso, permaneçam e concluam seus estudos em escolas ditas de qualidade, seja por sorte, persistência ou privilégio. Em outros termos, a soberania do consumidor, proposta pelo economista, pressupõe uma diferenciação na oferta dos “serviços educacionais”, princípio irreconciliável com o direito universal à educação pública de qualidade para todos. Em revisão de estudos recentes, tem sido possível notar que a política de responsabilização vem produzindo uma série de efeitos: “almejados” e “indesejados”. A racionalidade econômica e instrumental subjacente a vários mecanismos da política induz a mudanças que conflitam em inúmeros pontos com os próprios objetivos do sistema educacional, como se pretende mostrar na sequência. Estreitamento dos Currículos Em relação aos impactos no currículo, pode-se notar em vários casos que a aplicação de testes padronizados acaba controlando e enrijecendo os programas de Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002856 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 ensino. Dittrich (2010) mostra o “poder transformador” dos indicadores sobre os currículos analisando a política educacional de Curitiba. Segundo o autor, a Secretaria de Educação vem sistematicamente aproximando dos professores o conteúdo cobrado na Prova Brasil (PB). Ao comparar os cadernos que são oferecidos aos docentes às matrizes de referência da PB verifica a conversão dessas matrizes em “conhecimento a ser trabalhado pelos professores, agregando a elas encaminhamentos metodológicos e dicas para que possam efetivar a aprendizagem do que ali está listado” (p. 222). Jacobsen (2010) chega à conclusão semelhante, ao comparar os conteúdos de Língua Portuguesa, contemplados na PB, com os previstos nos planos de trabalho docente das escolas paranaenses. A autora conclui que o fator de maior relevância para definir o bom desempenho de escolas é o trabalho pedagógico intencional e sistematizado, voltado aos descritores contemplados na PB. A seleção de tópicos curriculares pelo que compõem as avaliações em larga escala mostra o constrangimento sofrido pelos professores, o que acaba definindo a aprendizagem dos alunos. Considerando que nem tudo o que é ensinado nas escolas é passível de mensuração ou está presente nas avaliações externas, muitos tópicos fundamentais que deveriam definir a qualidade do ensino ficam alijados. Com o impacto dos indicadores sobre os currículos, a qualidade do trabalho escolar fica subsumida a um modelo ideal externo, não se referindo nem às condições objetivas das comunidades atendidas e nem aos critérios de qualidade de seus agentes. De acordo com Boyer (apud DARLING-HAMMOND e ASCHER, 2006, p. 33), a pressão em sala de aula, nos Estados Unidos, também recai sobre o desenvolvimento de habilidades “que podem ser contabilizadas e relatadas. Como um professor disse: ‘Estamos tão compenetrados em informar ganhos mensuráveis para a comunidade através dos testes padronizados nacionais, que ignoramos o ensino daquelas áreas em que isso não pode ser feito’”. Tendo em vista que a PB é censitária para as redes públicas urbanas que oferecem EF, é alta a probabilidade de que produza constrangimentos sobre as práticas pedagógicas de muitas dessas instituições, fragilizando sua autonomia quanto à decisão do que é prioritário, do como ou do porque ensinar determinados conteúdos. De Blasis (2011) mostra a diminuição da carga horária de várias disciplinas, nos currículos de escolas de diferentes municípios, por não estarem contempladas nas avaliações externas. Em entrevista com uma coordenadora, obtém o seguinte depoimento: “História ou é no final de semana ou é nas últimas aulas, porque não é uma coisa considerada importante” Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002857 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 (p. 77). Em outra entrevista, obtém o seguinte relato: “do 1º ao 3º ano [do EF] nem tem na grade História e Geografia, só Português e Matemática... Nem conhecimentos gerais, nem mais nada” (p. 78). Essa situação se reflete negativamente nos processos de escolarização dos estudantes, na medida em que enfraquece a sensibilidade dos professores e gestores para a realização de “objetivos além daqueles que os testes medem, que a busca desses objetivos reclama estratégias de ensino alternativas, que os aspectos fundamentais do currículo transcendem as exigências de cada grau” (GOODLAD, 1984, apud DARLING-HAMMOND e ASCHER, 2006, p. 34). É imprescindível lembrar que, para além de produzir altos desempenhos acadêmicos, a escola assumiu historicamente uma função decisiva na consolidação de sociedades justas e democráticas, ainda que esse objetivo venha tendo um alcance limitado. As inúmeras histórias de violência física e moral no interior das instituições de ensino, no Brasil e no mundo, refletem vivamente esse limite. A formação humana como antídoto da violência é função essencial da escola e “meta incomensurável”, reclama “estratégias de ensino alternativas”, diversas daquelas voltadas ao bom rendimento dos sistemas educacionais, nos moldes como tem sido aferido. A escola de qualidade deve atentar e procurar evitar a todo o custo o perigo citado anteriormente de ignorar o tratamento de questões como o preconceito, a opressão e a violência, em seu cotidiano, ao ficar compenetrada em informar apenas ganhos mensuráveis para a comunidade através de testes nacionais padronizados. Confiabilidade e validade dos indicadores No que toca aos efeitos sobre o fornecimento de informações para o cálculo dos indicadores, pode-se observar, por vezes, a dissimulação dos dados. Ao serem pressionados por mostrar mais qualidade, e como forma de minimizar o impacto dos maus resultados, “os prefeitos implantam a progressão continuada e liberam o fluxo no sistema” (FREITAS, 2007, p. 974). Darling-Hammond e Ascher também apontam que quando há sanções atreladas à variação dos indicadores “as informações que os alimentam são passíveis de corrupção” (2006, p. 28). No caso da validade dos indicadores, algumas pesquisas mostram que é colocada em xeque quando professores passam a ajudar estudantes na realização dos exames (CASASSUS, 2009), ou quando adotam práticas de treinamento e premiação em suas aulas. No Brasil, comportamentos desse tipo foram verificados por Santos (2001), Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002858 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 quando analisou o antigo “provão”, afirmando que o exame “realmente provocou agitação nos meios acadêmicos, mas, se observada as respostas dos professores, vemos que as ações ensejadas o foram, não no sentido da melhoria do curso, mas no sentido de ‘preparar o graduando para o provão’” (p. 141). A validade da medida dos indicadores educacionais também pode ser colocada em dúvida quando professores impedem a participação de alunos com baixa proficiência nos testes, entre eles estudantes com deficiências e necessidades educacionais especiais, como mostram, Casassus (2009), Freitas (2007) e Soares e Marotta (2009). Além disso, ao comentarem algumas das conseqüências do mau uso de medidas educacionais para provocar mudanças nas escolas, Darling-Hammond e Ascher (2006) afirmam que, quando são estabelecidas recompensas ou sanções a partir da variação dos indicadores educacionais, há uma grande chance de se produzir efeitos colaterais danosos, “uma vez que estudantes com baixo desempenho podem ser expulsos e profissionais talentosos podem rejeitar cargos em escolas que atendem crianças com necessidades educacionais mais desafiadoras” (p. 31). Sobre esse aspecto, Sousa e Prieto (2002) mostraram que, em função da lógica da verificação do rendimento dos alunos e dos sistemas de ensino, subjacente às avaliações externas, o direito de inclusão de pessoas com deficiências, preferencialmente na rede regular de ensino e em todas as atividades desenvolvidas nas escolas, tem sido colocado em risco. Ao definirem critérios e performances rígidos, as avaliações externas contribuem para a escola se transformar em uma máquina de exclusão, evidenciando, mais uma vez, o conflito entre a racionalidade da política de responsabilização e os objetivos educacionais: ao invés promover escolas e sistemas mais responsáveis, a política induz as instituições a se distanciarem de um atendimento inclusivo, global e de boa qualidade a todos os alunos ali presentes. Divulgação dos indicadores: o momento de caça às bruxas Quanto aos efeitos de culpabilização das escolas e professores e de desresponsabilização das esferas administrativas sobre a parca qualidade do ensino público, vale voltar a uma iniciativa do economista, anteriormente mencionado, que, em um dos programas de maior audiência da TV brasileira, expos a situação de distintas escolas e seus resultados de Ideb-2009. Ao longo das reportagens, os comentários de Ioschpe difundiram a compreensão de que os únicos responsáveis pelos resultados eram professores e escolas. Em entrevista ao sítio do Jornal Nacional, o economista afirma Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002859 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 que um dos itens a sobressair em suas reportagens foi “a questão do comprometimento. A gente vê que, infelizmente, certas escolas, até por estarem inseridas em zonas de dificuldade, acabam desistindo do aluno com uma rapidez muito grande” [grifos nossos] (IOSCHPE, 2011b). Teceu também considerações a respeito da remuneração dos professores: “o salário do professor não é uma variável estatisticamente significativa ou relevante na determinação do aprendizado dos alunos. A partir de certo patamar de salário atingido mudanças salariais não tem se transformado em melhorias da qualidade da educação”. (IOSCHPE, 2011b). Em momento algum o economista-repórter preocupou-se em promover a reflexão sobre inúmeros aspectos que influenciam o desempenho escolar, tais como: o contexto socioeconômico do município e das crianças atendidas nas diferentes escolas; os hábitos culturais e percurso escolar dos estudantes; o tempo de experiência dos docentes, o número de escolas em que lecionam, suas jornadas e condições de trabalho, para além da remuneração; o atendimento a crianças com necessidades educacionais “mais desafiadoras”; o número de alunos por sala de aula; a qualidade do clima acadêmico e da gestão escolar; a estabilidade da equipe e a cooperação entre seus membros; o nível de vulnerabilidade do território onde a escola está situada; o contexto econômico, social e político local, como distribuição de renda, saúde e educação da população atendida; acesso à cultura e lazer; combate a qualquer tipo de preconceito e violência; tipos e montantes de investimento feitos em educação, entre tantos fatores que conjuntamente poderiam oferecer um quadro explicativo mais acurado para os resultados constatados e proporcionar uma reflexão a respeito da distribuição social do rendimento escolar, como há tempos tem sido evidenciado em inúmeras pesquisas sobre fatores associados à qualidade educacional. Em relação à distribuição social do rendimento escolar, teria sido importante que o economista lembrasse também do viés introduzido pelos “efeitos da seleção” nas medidas de desempenho escolar. A pesquisadora norte-americana Valery Lee (2004) esclarece que “crianças dotadas de diferentes capacidades, habilidades e experiências são matriculadas em escolas diferentes e até em classes diferentes dentro de uma mesma escola. Se não se toma em consideração diferenças introduzidas pela seleção, o resultado refletirá a tendenciosidade das estimativas” (p. 18). Tendo em vista essa ponderação, a autora sugere um critério interessante para descrever as escolas de qualidade: além de proporcionarem muito aprendizado às crianças, as instituições deveriam distribuir essa aprendizagem equitativamente entre seus alunos, ou seja, “a Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002860 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 aprendizagem deveria ser apenas modestamente diferenciada conforme a situação econômica da família, a escolaridade dos pais, a raça ou a etnia” (p. 19). Ioschpe, entretanto, não esteve atento a essas questões, apesar de propugnar uma imagem de que é especialista e produz análises assentadas em resultados de pesquisas, com explicações técnicas, racionais e objetivas, em suas palavras: “minha área de pesquisa é a economia da educação, que não se baseia em teorias ou opiniões e sim em resultados de estudos reais, com bancos de dados de milhares de casos e estabelecendo relações através de metodologias sofisticadas de estatística e econometria” (IOSCHPE, 2011b). Obcecado pela medida e pela quantificação dos fenômenos sociais, em detrimento de uma análise guiada pela teoria, Ioschpe promove contraditoriamente aos seus intentos a cisão entre os diagnósticos que obtém e a realidade que pretende explicar. A adesão do economista à racionalidade instrumental é clara: só compreende ao medir e coloca a medida imediatamente no lugar da realidade. Ao invés de produzir conhecimento, produz ideologia, traduzindo de forma parcial as condições concretas das atividades humanas e passando instantaneamente ao julgamento dos “custos e benefícios” implicados na gestão dos “recursos humanos”. Não é novo o diagnóstico de que, a depender do método e dos procedimentos estatísticos utilizados, as conclusões resultantes dos estudos sobre a qualidade e os efeitos das escolas são substancialmente diferentes (TEDDLIE e REYNOLDS, 2000). Ao objetivar o complexo fenômeno educacional por meio de modelos matemáticos, o pensamento formal organiza um conjunto específico de variáveis passíveis de mensuração e, com essa operação de método, inúmeros fatores não mensuráveis, ou de difícil mensuração, são expurgados dos modelos, podendo neutralizar, confortavelmente, aquilo que perturba ou é contraditório nas relações educacionais concretas. O procedimento formal do pensamento, quando se coloca no lugar do objeto a ser conhecido, introduz uma objetividade aparente onde há contradição e instaura uma coerência extrínseca aos objetos diante de paradoxos observados. Ao invés de medir para melhor compreender os fenômenos, esse modus operandi tende a compreender apenas aquilo mede (e, portanto, apenas o que é passível de mensuração), em outras palavras, a racionalização coloca-se no lugar do conhecimento e elimina o trabalho da reflexão crítica. Diante desse estado de coisas, é fundamental considerar também que a verificação prática de uma hipótese não equivale necessária e imediatamente a sua Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002861 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 verdade (HORKHEIMER, 1989). Se os modelos matemáticos disponíveis não aferem correlação entre desempenho de estudantes e fatores tais como o valor dos salários docentes, a gestão democrática da escola, a formação inicial dos professores em nível superior, entre tantos outros, isso não deveria equivaler à desqualificação de princípios históricos, políticos e teóricos nos quais a defesa desses “fatores” está assentada. A sujeição do pensamento formal a essa lógica tem autorizado cientistas a recusarem as contradições do objeto e a validarem a ordem existente, sem compreensão de seus fundamentos. Da análise do economista-repórter sobre (a ausência de) correlação entre salários docentes e desempenho dos estudantes, deriva-se o entendimento de que a remuneração do magistério não precisa melhorar. Com isso, pode ser considerada como “custo” para os cofres públicos em vez de investimento em educação, sem grandes consequências para a qualidade dos sistemas de ensino, permitindo aos governos tratá-la como variável passível de ajustamentos quando da necessidade de reduzir gastos e corrigir orçamentos. Indicadores para a gestão democrática da educação? A despeito dos esforços empreendidos pela União para elaborar novas tecnologias que visam a elevação da qualidade da gestão dos sistemas públicos de ensino e do rendimento de suas escolas, é possível notar mais um “efeito colateral” no uso de indicadores: a produção de respostas pontuais em favor de mudanças rápidas, com potencial de penalizar projetos educacionais de longo prazo, considerados morosos e de custos elevados. Se por um lado, as pressões pela melhoria da qualidade educacional possuem potencial para fomentar reflexão sobre os problemas e possibilidades contidos na forma de organização e nos processos escolares, por outro, seus efeitos vêm impondo como finalidade última a própria elevação dos indicadores. Ao longo de seu trabalho, Dittrich (2010) deixa entrever como alguns mecanismos de gestão valorizam certo tipo de profissional, aquele que sabe ler e decifrar indicadores, disposto a formular estratégias para elevá-los. Relata que diretoras são confrontadas por seus pares tendo que se justificar “frente aos chefes de núcleo, às outras escolas e à própria secretária de educação, o que justificou o desempenho da escola nas avaliações [Prova Brasil], tanto nos aspectos positivos como nos negativos”. (p. 237) Esses mecanismos também induzem os altos escalões das administrações públicas locais a um grau significativo de inquietação e desconforto, quando percebem que seus quadros desconhecem ou não respondem “racionalmente” aos resultados Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002862 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 divulgados. Tal estado de espírito, aliado ao potencial persuasivo das políticas que prometem mais recursos técnicos e financeiros aos municípios, propicia maior adesão aos constrangimentos do aparato administrativo central. Além disso, novas oportunidades de negócios se abrem aos “experts” da iniciativa privada, que oferecem assessorias para incrementar habilidades de leitura, interpretação e formulação de estratégias no sentido de elevar indicadores e de organizar a gestão para o “sucesso escolar”. Em entrevistas com Secretários de Educação sobre o entendimento de seus quadros a respeito das provas externas, De Blasis (2011) constata que esse esclarecimento tem sido propiciado por cursos de formação, geralmente oferecidos por fundações ou organizações não governamentais. A pressão por bons resultados no curto prazo e as várias iniciativas daí derivadas colocam em dúvida os objetivos de longo prazo e o trabalho das equipes locais para alcançá-los, ocupando um tempo que deveria ser destinado à reflexão dos resultados em vista das metas específicas de cada sistema. Essa situação tende a desvalorizar inclusive profissionais mais preocupados com problemas inerentes a cada escola e rede de ensino. Outro fenômeno recente evidencia paradoxo semelhante: a compra de sistemas apostilados de ensino por vários municípios brasileiros. Tais sistemas são comercializados por empresas privadas e além de oferecer aos alunos e professores materiais baseados em currículo e programa pré-estabelecidos - e nem passam por avaliação do MEC, como os livros didáticos -, proporcionam também cursos de capacitação e apoio pedagógico aos docentes e portais educativos. Pesquisa recente, financiada pela Fundação Lemann e amplamente divulgada na mídia paulista, mostrou que o uso desses materiais tem tido impacto positivo sobre o desempenho de alunos, aumentando de forma expressiva as notas da Prova Brasil. Em um dos sítios da Fundação, uma das autoras do estudo apresenta as seguintes ponderações sobre os resultados obtidos: “se nossas salas de aula não fossem tão caóticas e nossos professores tão despreparados, essas simples mudanças [a adoção dos apostilados] não seriam capturadas na avaliação de impacto” (disponível em: http://www.lideresemgestaoescolar.org.br/ideiasemeducacao/blog/uso-de-apostilas-efalso-dilema, acesso em 30/07/2011). Afirma ainda que vários professores reconhecem na “falta de um planejamento estruturado, claro e objetivo da escola e na falta de acompanhamento do que eles fazem em sala de aula” os motivos que os levam a “pular a matéria que não dominam e a focar mais nas áreas do conhecimento que se sentem confortáveis”. Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002863 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 Para além da generalização de situações bem diversas, as ponderações produzem uma imagem invertida da realidade: identificam na organização racional e na gestão eficiente do trabalho do professor as soluções “mágicas” para as mazelas e desigualdades presentes nas escolas. Ficam intocadas as raízes do problema da qualidade educacional e a atividade educativa de excelência fica reduzida a apenas um dos traços que deveria caracterizá-la. Além disso, acompanhadas da constatação de que sistemas apostilados de ensino impactam positivamente os resultados das avaliações externas, controlando o trabalho docente, tais ponderações expõem claramente que o caminho eficaz para alcançar a elevação da rentabilidade dos sistemas de ensino é a submissão do professor a uma atitude tecnológica. Segundo Marcuse (1999), na sociedade industrial avançada, a tecnologia se configura como modo de produção e é “uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um instrumento de controle e dominação” (p. 73). O diagnóstico da pesquisadora da Fundação Lemann pode ainda promover, como “bônus” às administrações públicas, as bases científicas que permitem justificar a diminuição de tempo, recursos e investimentos em formação de docentes, afinal, a adoção de tecnologias educacionais, como os sistemas apostilados, coloca-se como alternativa eficaz e econômica aos cofres públicos. Ao invés de assentado na reflexão crítica e vinculado aos fins da educação, o trabalho docente passa a categoria tecnológica para a produção de uma “educação de resultado”. Os limites da cultura de responsabilização Mapeadas algumas tensões entre a racionalidade subjacente à política educacional e os objetivos dos sistemas de ensino, é possível destacar alguns limites da cultura de responsabilização que tem sido fomentada. Atualmente no Brasil nota-se o crescimento dos estudos que evidenciam a associação entre diversos fatores internos e externos às escolas e o desempenho dos alunos. São estudos financiados pelo poder público, muitos deles produzidos por técnicos tanto da União, quanto de Estados e municípios. Muito se tem avançado na compreensão das diferenças e dos determinantes do desempenho escolar. Estudos internacionais sobre o tema são cada vez mais acessíveis e o governo brasileiro vem financiando e produzindo pesquisas nesse sentido. Essa realidade coloca em xeque a racionalidade das recentes intervenções públicas para incrementar a qualidade e responsabilizar todos os agentes públicos da educação, ao Junqueira&Marin Editores Livro 2 - p.002864 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 utilizar tecnologias que apontam um “quantum” abstrato e simplista de qualidade, mostrando apenas parte da realidade e tomando-a pelo todo. Dado que em matéria de avanço técnico, o Brasil já dispõe de conhecimentos para a realização de análises estatísticas complexas, de quadros e de viabilidade financeira para operá-las, além de um conjunto de informações acumuladas a respeito das condições de funcionamento dos sistemas de ensino, a divulgação de indicadores restritos como o Ideb escancara a opção política e ideológica feita. Para além de relacionar os resultados de provas externas ao fluxo escolar, os governos já produziram estudos que confrontam esses resultados com a realidade socioeconômica dos alunos, diferenças regionais, infraestrutura das escolas, práticas pedagógicas e muito mais, mas parece não haver interesse algum na ampla e intensa divulgação dessas pesquisas. Ao invés de serem usados como ferramentas de esclarecimento, os indicadores vêm se estabelecendo como mecanismos de defesa, que sob a aparência de um raciocínio lógico e simples, acabam neutralizando e ocultando o que é verdadeiramente exasperador na educação do país: a perpetuação da extrema desigualdade na distribuição social da aprendizagem e do conhecimento. Sem dúvida, a avaliação rigorosa da qualidade das escolas e dos sistemas de ensino deve ser elemento imprescindível para a construção de uma sociedade justa e democrática e é justamente por esse motivo que deve estar sempre submetida ao crivo da crítica. 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