XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
IMPACTOS DA “EDUCAÇÃO DE RESULTADOS” NO OFÍCIO DOCENTE
Maria Angélica Pedra Minhoto
Universidade Federal de São Paulo
[email protected]
Resumo
O presente artigo discute alguns dos impactos da política nacional de monitoramento e
controle da qualidade da educação brasileira sobre o trabalho dos profissionais da
educação, em especial do professor. O principal objeto da política examinado neste
estudo é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Foram analisados
alguns dos efeitos do Ideb sobre: 1) a organização curricular das escolas e redes de
ensino; 2) o trabalho do professor e das equipes gestoras de diferentes escolas e 3) a
definição de políticas e a organização administrativa de algumas redes de ensino. Entre
outros pontos, verificou-se que a instituição do índice tem promovido: o enrijecimento e
a redução de programas de ensino; a dissimulação de informações sobre o fluxo escolar,
por ser uma das variáveis que compõe o cálculo do indicador; práticas de treinamento e
premiação de alunos; a exclusão da participação de estudantes de baixa proficiência nos
testes; políticas locais com potencial de penalizar projetos educacionais de longo prazo;
um alto grau de detalhamento das prescrições oficiais e de controle sobre o trabalho dos
profissionais da educação; e a responsabilização de escolas e de professores, com a
divulgação de baixos resultados, deixando intocada a responsabilidade das
administrações locais e central. A análise revelou que a racionalidade subjacente a
vários mecanismos dessa política tem induzido mudanças que conflitam em inúmeros
pontos com os próprios objetivos do sistema educacional. O referencial que orientou o
trabalho baseia-se em estudos desenvolvidos por pensadores da Teoria Crítica da
Sociedade, especialmente os que tratam da ideologia da racionalidade tecnológica e da
educação.
Palavras-chave: Ideb; Avaliação de sistemas de ensino; Tecnologia; Racionalidade
tecnológica.
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002854
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
IMPACTOS DA “EDUCAÇÃO DE RESULTADOS” NO OFÍCIO DOCENTE
Introdução
O presente artigo fundamenta-se em resultados de diversos estudos e tem como
objetivo analisar alguns dos efeitos da recente política nacional para fomentar mais
qualidade em educação: a produção e divulgação do Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb). A função declarada do Ideb é permitir que governos e
sociedade civil monitorem ações e metas contidas no Plano de Desenvolvimento da
Educação (PDE), estimulando maior transparência na administração pública e
auxiliando estados e municípios a definirem rumos para as suas políticas educacionais.
Com isso, a União visa instituir uma cultura de prestação de contas e de responsabilização; a participação da sociedade na gestão das políticas educacionais; a cobrança
de medidas mais incisivas e eficazes dos responsáveis na promoção da qualidade da
educação pública e sanções por resultados negativos.
A estrutura dessa política remete ao juízo de que não apenas os alunos são
responsáveis por seus desempenhos, mas que todo o sistema deve prestar contas à
sociedade acerca dos resultados por eles obtidos. Tendo por base algumas experiências
norte-americanas em iniciativas de responsabilização no âmbito educacional (school
accountability), Andrade (2008) descreve suas principais características: fixação de
padrões mínimos para cada ano escolar; realização de testes de proficiência para os
alunos; divulgação de resultados dos testes por escola e elevação do desempenho dos
estudantes nos testes como meta explicita da política. Além disso, o autor revela que
alguns estados norte-americanos avançaram na política de responsabilização, ao
implantarem sistemas de bonificação e penalização de professores e diretores em função
das notas dos alunos. Considerando tais características e comparando-as à situação
brasileira, Andrade afirma que há ainda muito espaço para o governo brasileiro adotar
uma política mais agressiva, com mecanismos mais incisivos de responsabilização.
É esse o sentido de várias ações instituídas recentemente nas diferentes esferas
administrativas. No último mês de junho (2011), foram apresentados à Câmara Federal
três projetos de lei que visam tornar obrigatória a divulgação do Ideb de todas as escolas
públicas de Ensino Fundamental (EF) do país, expondo seus resultados em placas a
serem penduradas nas entradas das instituições. Essa ideia foi sugerida inicialmente por
Gustavo Ioschpe, um economista que tem tido espaço significativo na mídia e influência
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002855
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
2
no desenho de programas e políticas educacionais de várias administrações públicas.
Em artigo publicado na revista Veja, Ioschpe expõe seus argumentos: “todo cidadão tem
o direito de saber a qualidade da escola que seu filho frequenta [...] essa divulgação
pode colaborar para quebrar a inércia da sociedade brasileira em relação às nossas
escolas” (IOSCHPE, 2011a).
Uma das mudanças almejadas pelo economista é a de que os estudantes e seus
responsáveis possam fazer escolhas “objetivas e informadas”, ou seja, possam optar por
escolas que apresentem altos Idebs, o que, como efeito, deve servir também para
pressionar todas as instituições de ensino a ajustarem os seus “serviços”, respondendo
aos anseios de seus “clientes”. O mecanismo de regulação sugerido por Ioschpe, típico
das relações de mercado, fundamenta-se no princípio de que o poder de escolha dos
consumidores garante o controle da qualidade dos produtos e serviços ofertados.
Vários limites da incorporação de mecanismos de mercado à esfera pública já
foram apontados. Abrucio (1999, p. 189) argumenta que “nem todos os consumidores
têm a possibilidade de escolher de fato o equipamento social que lhes agrada, em
virtude da existência de obstáculos geográficos e financeiros, os quais dificultam o
acesso a todas as unidades de serviço público”. Entretanto, muito mais importante que
tais obstáculos é a constatação de que o raciocínio de Ioschpe fere a essência do
princípio constitucional de direito à escolarização básica de qualidade para todo o
cidadão brasileiro, ao considerar justa, racional e mesmo natural uma situação em que
apenas alguns tenham acesso, permaneçam e concluam seus estudos em escolas ditas de
qualidade, seja por sorte, persistência ou privilégio. Em outros termos, a soberania do
consumidor, proposta pelo economista, pressupõe uma diferenciação na oferta dos
“serviços educacionais”, princípio irreconciliável com o direito universal à educação
pública de qualidade para todos.
Em revisão de estudos recentes, tem sido possível notar que a política de
responsabilização vem produzindo uma série de efeitos: “almejados” e “indesejados”. A
racionalidade econômica e instrumental subjacente a vários mecanismos da política
induz a mudanças que conflitam em inúmeros pontos com os próprios objetivos do
sistema educacional, como se pretende mostrar na sequência.
Estreitamento dos Currículos
Em relação aos impactos no currículo, pode-se notar em vários casos que a
aplicação de testes padronizados acaba controlando e enrijecendo os programas de
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002856
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
3
ensino. Dittrich (2010) mostra o “poder transformador” dos indicadores sobre os
currículos analisando a política educacional de Curitiba. Segundo o autor, a Secretaria
de Educação vem sistematicamente aproximando dos professores o conteúdo cobrado
na Prova Brasil (PB). Ao comparar os cadernos que são oferecidos aos docentes às
matrizes de referência da PB verifica a conversão dessas matrizes em “conhecimento a
ser trabalhado pelos professores, agregando a elas encaminhamentos metodológicos e
dicas para que possam efetivar a aprendizagem do que ali está listado” (p. 222).
Jacobsen (2010) chega à conclusão semelhante, ao comparar os conteúdos de
Língua Portuguesa, contemplados na PB, com os previstos nos planos de trabalho
docente das escolas paranaenses. A autora conclui que o fator de maior relevância para
definir o bom desempenho de escolas é o trabalho pedagógico intencional e
sistematizado, voltado aos descritores contemplados na PB.
A seleção de tópicos curriculares pelo que compõem as avaliações em larga
escala mostra o constrangimento sofrido pelos professores, o que acaba definindo a
aprendizagem dos alunos. Considerando que nem tudo o que é ensinado nas escolas é
passível de mensuração ou está presente nas avaliações externas, muitos tópicos
fundamentais que deveriam definir a qualidade do ensino ficam alijados. Com o
impacto dos indicadores sobre os currículos, a qualidade do trabalho escolar fica
subsumida a um modelo ideal externo, não se referindo nem às condições objetivas das
comunidades atendidas e nem aos critérios de qualidade de seus agentes.
De acordo com Boyer (apud DARLING-HAMMOND e ASCHER, 2006, p. 33),
a pressão em sala de aula, nos Estados Unidos, também recai sobre o desenvolvimento
de habilidades “que podem ser contabilizadas e relatadas. Como um professor disse:
‘Estamos tão compenetrados em informar ganhos mensuráveis para a comunidade
através dos testes padronizados nacionais, que ignoramos o ensino daquelas áreas em
que isso não pode ser feito’”.
Tendo em vista que a PB é censitária para as redes públicas urbanas que
oferecem EF, é alta a probabilidade de que produza constrangimentos sobre as práticas
pedagógicas de muitas dessas instituições, fragilizando sua autonomia quanto à decisão
do que é prioritário, do como ou do porque ensinar determinados conteúdos. De Blasis
(2011) mostra a diminuição da carga horária de várias disciplinas, nos currículos de
escolas de diferentes municípios, por não estarem contempladas nas avaliações externas.
Em entrevista com uma coordenadora, obtém o seguinte depoimento: “História ou é no
final de semana ou é nas últimas aulas, porque não é uma coisa considerada importante”
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002857
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
4
(p. 77). Em outra entrevista, obtém o seguinte relato: “do 1º ao 3º ano [do EF] nem tem
na grade História e Geografia, só Português e Matemática... Nem conhecimentos gerais,
nem mais nada” (p. 78).
Essa situação se reflete negativamente nos processos de escolarização dos
estudantes, na medida em que enfraquece a sensibilidade dos professores e gestores para
a realização de “objetivos além daqueles que os testes medem, que a busca desses
objetivos reclama estratégias de ensino alternativas, que os aspectos fundamentais do
currículo transcendem as exigências de cada grau” (GOODLAD, 1984, apud
DARLING-HAMMOND e ASCHER, 2006, p. 34).
É imprescindível lembrar que, para além de produzir altos desempenhos
acadêmicos, a escola assumiu historicamente uma função decisiva na consolidação de
sociedades justas e democráticas, ainda que esse objetivo venha tendo um alcance
limitado. As inúmeras histórias de violência física e moral no interior das instituições de
ensino, no Brasil e no mundo, refletem vivamente esse limite. A formação humana
como antídoto da violência é função essencial da escola e “meta incomensurável”,
reclama “estratégias de ensino alternativas”, diversas daquelas voltadas ao bom
rendimento dos sistemas educacionais, nos moldes como tem sido aferido. A escola de
qualidade deve atentar e procurar evitar a todo o custo o perigo citado anteriormente de
ignorar o tratamento de questões como o preconceito, a opressão e a violência, em seu
cotidiano, ao ficar compenetrada em informar apenas ganhos mensuráveis para a
comunidade através de testes nacionais padronizados.
Confiabilidade e validade dos indicadores
No que toca aos efeitos sobre o fornecimento de informações para o cálculo dos
indicadores, pode-se observar, por vezes, a dissimulação dos dados. Ao serem
pressionados por mostrar mais qualidade, e como forma de minimizar o impacto dos
maus resultados, “os prefeitos implantam a progressão continuada e liberam o fluxo no
sistema” (FREITAS, 2007, p. 974). Darling-Hammond e Ascher também apontam que
quando há sanções atreladas à variação dos indicadores “as informações que os
alimentam são passíveis de corrupção” (2006, p. 28).
No caso da validade dos indicadores, algumas pesquisas mostram que é colocada
em xeque quando professores passam a ajudar estudantes na realização dos exames
(CASASSUS, 2009), ou quando adotam práticas de treinamento e premiação em suas
aulas. No Brasil, comportamentos desse tipo foram verificados por Santos (2001),
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002858
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
5
quando analisou o antigo “provão”, afirmando que o exame “realmente provocou
agitação nos meios acadêmicos, mas, se observada as respostas dos professores, vemos
que as ações ensejadas o foram, não no sentido da melhoria do curso, mas no sentido de
‘preparar o graduando para o provão’” (p. 141).
A validade da medida dos indicadores educacionais também pode ser colocada
em dúvida quando professores impedem a participação de alunos com baixa
proficiência nos testes, entre eles estudantes com deficiências e necessidades
educacionais especiais, como mostram, Casassus (2009), Freitas (2007) e Soares e
Marotta (2009). Além disso, ao comentarem algumas das conseqüências do mau uso de
medidas educacionais para provocar mudanças nas escolas, Darling-Hammond e Ascher
(2006) afirmam que, quando são estabelecidas recompensas ou sanções a partir da
variação dos indicadores educacionais, há uma grande chance de se produzir efeitos
colaterais danosos, “uma vez que estudantes com baixo desempenho podem ser
expulsos e profissionais talentosos podem rejeitar cargos em escolas que atendem
crianças com necessidades educacionais mais desafiadoras” (p. 31).
Sobre esse aspecto, Sousa e Prieto (2002) mostraram que, em função da lógica
da verificação do rendimento dos alunos e dos sistemas de ensino, subjacente às
avaliações
externas,
o
direito
de
inclusão
de
pessoas
com
deficiências,
preferencialmente na rede regular de ensino e em todas as atividades desenvolvidas nas
escolas, tem sido colocado em risco. Ao definirem critérios e performances rígidos, as
avaliações externas contribuem para a escola se transformar em uma máquina de
exclusão, evidenciando, mais uma vez, o conflito entre a racionalidade da política de
responsabilização e os objetivos educacionais: ao invés promover escolas e sistemas
mais responsáveis, a política induz as instituições a se distanciarem de um atendimento
inclusivo, global e de boa qualidade a todos os alunos ali presentes.
Divulgação dos indicadores: o momento de caça às bruxas
Quanto aos efeitos de culpabilização das escolas e professores e de
desresponsabilização das esferas administrativas sobre a parca qualidade do ensino
público, vale voltar a uma iniciativa do economista, anteriormente mencionado, que, em
um dos programas de maior audiência da TV brasileira, expos a situação de distintas
escolas e seus resultados de Ideb-2009. Ao longo das reportagens, os comentários de
Ioschpe difundiram a compreensão de que os únicos responsáveis pelos resultados eram
professores e escolas. Em entrevista ao sítio do Jornal Nacional, o economista afirma
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002859
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
6
que um dos itens a sobressair em suas reportagens foi “a questão do
comprometimento. A gente vê que, infelizmente, certas escolas, até por estarem
inseridas em zonas de dificuldade, acabam desistindo do aluno com uma rapidez muito
grande” [grifos nossos] (IOSCHPE, 2011b).
Teceu também considerações a respeito da remuneração dos professores: “o
salário do professor não é uma variável estatisticamente significativa ou relevante na
determinação do aprendizado dos alunos. A partir de certo patamar de salário atingido
mudanças salariais não tem se transformado em melhorias da qualidade da educação”.
(IOSCHPE, 2011b). Em momento algum o economista-repórter preocupou-se em
promover a reflexão sobre inúmeros aspectos que influenciam o desempenho escolar,
tais como: o contexto socioeconômico do município e das crianças atendidas nas
diferentes escolas; os hábitos culturais e percurso escolar dos estudantes; o tempo de
experiência dos docentes, o número de escolas em que lecionam, suas jornadas e
condições de trabalho, para além da remuneração; o atendimento a crianças com
necessidades educacionais “mais desafiadoras”; o número de alunos por sala de aula; a
qualidade do clima acadêmico e da gestão escolar; a estabilidade da equipe e a
cooperação entre seus membros; o nível de vulnerabilidade do território onde a escola
está situada; o contexto econômico, social e político local, como distribuição de renda,
saúde e educação da população atendida; acesso à cultura e lazer; combate a qualquer
tipo de preconceito e violência; tipos e montantes de investimento feitos em educação,
entre tantos fatores que conjuntamente poderiam oferecer um quadro explicativo mais
acurado para os resultados constatados e proporcionar uma reflexão a respeito da
distribuição social do rendimento escolar, como há tempos tem sido evidenciado em
inúmeras pesquisas sobre fatores associados à qualidade educacional.
Em relação à distribuição social do rendimento escolar, teria sido importante que
o economista lembrasse também do viés introduzido pelos “efeitos da seleção” nas
medidas de desempenho escolar. A pesquisadora norte-americana Valery Lee (2004)
esclarece que “crianças dotadas de diferentes capacidades, habilidades e experiências
são matriculadas em escolas diferentes e até em classes diferentes dentro de uma mesma
escola. Se não se toma em consideração diferenças introduzidas pela seleção, o
resultado refletirá a tendenciosidade das estimativas” (p. 18). Tendo em vista essa
ponderação, a autora sugere um critério interessante para descrever as escolas de
qualidade: além de proporcionarem muito aprendizado às crianças, as instituições
deveriam distribuir essa aprendizagem equitativamente entre seus alunos, ou seja, “a
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002860
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
7
aprendizagem deveria ser apenas modestamente diferenciada conforme a situação
econômica da família, a escolaridade dos pais, a raça ou a etnia” (p. 19).
Ioschpe, entretanto, não esteve atento a essas questões, apesar de propugnar uma
imagem de que é especialista e produz análises assentadas em resultados de pesquisas,
com explicações técnicas, racionais e objetivas, em suas palavras: “minha área de
pesquisa é a economia da educação, que não se baseia em teorias ou opiniões e sim em
resultados de estudos reais, com bancos de dados de milhares de casos e estabelecendo
relações através de metodologias sofisticadas de estatística e econometria” (IOSCHPE,
2011b).
Obcecado pela medida e pela quantificação dos fenômenos sociais, em
detrimento de uma análise guiada pela teoria, Ioschpe promove contraditoriamente aos
seus intentos a cisão entre os diagnósticos que obtém e a realidade que pretende
explicar. A adesão do economista à racionalidade instrumental é clara: só compreende
ao medir e coloca a medida imediatamente no lugar da realidade. Ao invés de produzir
conhecimento, produz ideologia, traduzindo de forma parcial as condições concretas das
atividades humanas e passando instantaneamente ao julgamento dos “custos e
benefícios” implicados na gestão dos “recursos humanos”.
Não é novo o diagnóstico de que, a depender do método e dos procedimentos
estatísticos utilizados, as conclusões resultantes dos estudos sobre a qualidade e os
efeitos das escolas são substancialmente diferentes (TEDDLIE e REYNOLDS, 2000).
Ao objetivar o complexo fenômeno educacional por meio de modelos matemáticos, o
pensamento formal organiza um conjunto específico de variáveis passíveis de
mensuração e, com essa operação de método, inúmeros fatores não mensuráveis, ou de
difícil
mensuração,
são
expurgados
dos
modelos,
podendo
neutralizar,
confortavelmente, aquilo que perturba ou é contraditório nas relações educacionais
concretas. O procedimento formal do pensamento, quando se coloca no lugar do objeto
a ser conhecido, introduz uma objetividade aparente onde há contradição e instaura uma
coerência extrínseca aos objetos diante de paradoxos observados. Ao invés de medir
para melhor compreender os fenômenos, esse modus operandi tende a compreender
apenas aquilo mede (e, portanto, apenas o que é passível de mensuração), em outras
palavras, a racionalização coloca-se no lugar do conhecimento e elimina o trabalho da
reflexão crítica.
Diante desse estado de coisas, é fundamental considerar também que a
verificação prática de uma hipótese não equivale necessária e imediatamente a sua
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002861
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
8
verdade (HORKHEIMER, 1989). Se os modelos matemáticos disponíveis não aferem
correlação entre desempenho de estudantes e fatores tais como o valor dos salários
docentes, a gestão democrática da escola, a formação inicial dos professores em nível
superior, entre tantos outros, isso não deveria equivaler à desqualificação de princípios
históricos, políticos e teóricos nos quais a defesa desses “fatores” está assentada. A
sujeição do pensamento formal a essa lógica tem autorizado cientistas a recusarem as
contradições do objeto e a validarem a ordem existente, sem compreensão de seus
fundamentos.
Da análise do economista-repórter sobre (a ausência de) correlação entre salários
docentes e desempenho dos estudantes, deriva-se o entendimento de que a remuneração
do magistério não precisa melhorar. Com isso, pode ser considerada como “custo” para
os cofres públicos em vez de investimento em educação, sem grandes consequências
para a qualidade dos sistemas de ensino, permitindo aos governos tratá-la como variável
passível de ajustamentos quando da necessidade de reduzir gastos e corrigir orçamentos.
Indicadores para a gestão democrática da educação?
A despeito dos esforços empreendidos pela União para elaborar novas
tecnologias que visam a elevação da qualidade da gestão dos sistemas públicos de
ensino e do rendimento de suas escolas, é possível notar mais um “efeito colateral” no
uso de indicadores: a produção de respostas pontuais em favor de mudanças rápidas,
com potencial de penalizar projetos educacionais de longo prazo, considerados morosos
e de custos elevados. Se por um lado, as pressões pela melhoria da qualidade
educacional possuem potencial para fomentar reflexão sobre os problemas e
possibilidades contidos na forma de organização e nos processos escolares, por outro,
seus efeitos vêm impondo como finalidade última a própria elevação dos indicadores.
Ao longo de seu trabalho, Dittrich (2010) deixa entrever como alguns mecanismos de
gestão valorizam certo tipo de profissional, aquele que sabe ler e decifrar indicadores,
disposto a formular estratégias para elevá-los. Relata que diretoras são confrontadas por
seus pares tendo que se justificar “frente aos chefes de núcleo, às outras escolas e à
própria secretária de educação, o que justificou o desempenho da escola nas avaliações
[Prova Brasil], tanto nos aspectos positivos como nos negativos”. (p. 237)
Esses mecanismos também induzem os altos escalões das administrações
públicas locais a um grau significativo de inquietação e desconforto, quando percebem
que seus quadros desconhecem ou não respondem “racionalmente” aos resultados
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002862
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
9
divulgados. Tal estado de espírito, aliado ao potencial persuasivo das políticas que
prometem mais recursos técnicos e financeiros aos municípios, propicia maior adesão
aos constrangimentos do aparato administrativo central.
Além disso, novas oportunidades de negócios se abrem aos “experts” da
iniciativa privada, que oferecem assessorias para incrementar habilidades de leitura,
interpretação e formulação de estratégias no sentido de elevar indicadores e de organizar
a gestão para o “sucesso escolar”. Em entrevistas com Secretários de Educação sobre o
entendimento de seus quadros a respeito das provas externas, De Blasis (2011) constata
que esse esclarecimento tem sido propiciado por cursos de formação, geralmente
oferecidos por fundações ou organizações não governamentais.
A pressão por bons resultados no curto prazo e as várias iniciativas daí derivadas
colocam em dúvida os objetivos de longo prazo e o trabalho das equipes locais para
alcançá-los, ocupando um tempo que deveria ser destinado à reflexão dos resultados em
vista das metas específicas de cada sistema. Essa situação tende a desvalorizar inclusive
profissionais mais preocupados com problemas inerentes a cada escola e rede de ensino.
Outro fenômeno recente evidencia paradoxo semelhante: a compra de sistemas
apostilados de ensino por vários municípios brasileiros. Tais sistemas são
comercializados por empresas privadas e além de oferecer aos alunos e professores
materiais baseados em currículo e programa pré-estabelecidos - e nem passam por
avaliação do MEC, como os livros didáticos -, proporcionam também cursos de
capacitação e apoio pedagógico aos docentes e portais educativos.
Pesquisa recente, financiada pela Fundação Lemann e amplamente divulgada na
mídia paulista, mostrou que o uso desses materiais tem tido impacto positivo sobre o
desempenho de alunos, aumentando de forma expressiva as notas da Prova Brasil. Em
um dos sítios da Fundação, uma das autoras do estudo apresenta as seguintes
ponderações sobre os resultados obtidos: “se nossas salas de aula não fossem tão
caóticas e nossos professores tão despreparados, essas simples mudanças [a adoção dos
apostilados] não seriam capturadas na avaliação de impacto” (disponível em:
http://www.lideresemgestaoescolar.org.br/ideiasemeducacao/blog/uso-de-apostilas-efalso-dilema, acesso em 30/07/2011). Afirma ainda que vários professores reconhecem
na “falta de um planejamento estruturado, claro e objetivo da escola e na falta de
acompanhamento do que eles fazem em sala de aula” os motivos que os levam a “pular
a matéria que não dominam e a focar mais nas áreas do conhecimento que se sentem
confortáveis”.
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002863
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
10
Para além da generalização de situações bem diversas, as ponderações produzem
uma imagem invertida da realidade: identificam na organização racional e na gestão
eficiente do trabalho do professor as soluções “mágicas” para as mazelas e
desigualdades presentes nas escolas. Ficam intocadas as raízes do problema da
qualidade educacional e a atividade educativa de excelência fica reduzida a apenas um
dos traços que deveria caracterizá-la. Além disso, acompanhadas da constatação de que
sistemas apostilados de ensino impactam positivamente os resultados das avaliações
externas, controlando o trabalho docente, tais ponderações expõem claramente que o
caminho eficaz para alcançar a elevação da rentabilidade dos sistemas de ensino é a
submissão do professor a uma atitude tecnológica. Segundo Marcuse (1999), na
sociedade industrial avançada, a tecnologia se configura como modo de produção e é
“uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as relações sociais, uma
manifestação do pensamento e dos padrões de comportamento dominantes, um
instrumento de controle e dominação” (p. 73).
O diagnóstico da pesquisadora da Fundação Lemann pode ainda promover,
como “bônus” às administrações públicas, as bases científicas que permitem justificar a
diminuição de tempo, recursos e investimentos em formação de docentes, afinal, a
adoção de tecnologias educacionais, como os sistemas apostilados, coloca-se como
alternativa eficaz e econômica aos cofres públicos. Ao invés de assentado na reflexão
crítica e vinculado aos fins da educação, o trabalho docente passa a categoria
tecnológica para a produção de uma “educação de resultado”.
Os limites da cultura de responsabilização
Mapeadas algumas tensões entre a racionalidade subjacente à política
educacional e os objetivos dos sistemas de ensino, é possível destacar alguns limites da
cultura de responsabilização que tem sido fomentada. Atualmente no Brasil nota-se o
crescimento dos estudos que evidenciam a associação entre diversos fatores internos e
externos às escolas e o desempenho dos alunos. São estudos financiados pelo poder
público, muitos deles produzidos por técnicos tanto da União, quanto de Estados e
municípios. Muito se tem avançado na compreensão das diferenças e dos determinantes
do desempenho escolar. Estudos internacionais sobre o tema são cada vez mais
acessíveis e o governo brasileiro vem financiando e produzindo pesquisas nesse sentido.
Essa realidade coloca em xeque a racionalidade das recentes intervenções públicas para
incrementar a qualidade e responsabilizar todos os agentes públicos da educação, ao
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002864
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
11
utilizar tecnologias que apontam um “quantum” abstrato e simplista de qualidade,
mostrando apenas parte da realidade e tomando-a pelo todo.
Dado que em matéria de avanço técnico, o Brasil já dispõe de conhecimentos
para a realização de análises estatísticas complexas, de quadros e de viabilidade
financeira para operá-las, além de um conjunto de informações acumuladas a respeito
das condições de funcionamento dos sistemas de ensino, a divulgação de indicadores
restritos como o Ideb escancara a opção política e ideológica feita. Para além de
relacionar os resultados de provas externas ao fluxo escolar, os governos já produziram
estudos que confrontam esses resultados com a realidade socioeconômica dos alunos,
diferenças regionais, infraestrutura das escolas, práticas pedagógicas e muito mais, mas
parece não haver interesse algum na ampla e intensa divulgação dessas pesquisas.
Ao invés de serem usados como ferramentas de esclarecimento, os indicadores
vêm se estabelecendo como mecanismos de defesa, que sob a aparência de um
raciocínio lógico e simples, acabam neutralizando e ocultando o que é verdadeiramente
exasperador na educação do país: a perpetuação da extrema desigualdade na
distribuição social da aprendizagem e do conhecimento. Sem dúvida, a avaliação
rigorosa da qualidade das escolas e dos sistemas de ensino deve ser elemento
imprescindível para a construção de uma sociedade justa e democrática e é justamente
por esse motivo que deve estar sempre submetida ao crivo da crítica.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, E. C. “School Accountability” no Brasil: experiências e dificuldades.
Revista de Economia Política, vol. 28, nº 3 (111), pp. 443-453, 2008.
CASASSUS, J. O preço da avaliação padronizada: perda de qualidade e segmentação
social. RBPAE, n. 9, mai/ago, p. 7-18, 2009.
DARLING-HAMMOND, L. e ASCHER, C. Construindo sistemas de controle em
escolas urbanas. Estudos em Avaliação Educacional, v. 17, n. 35, p. 07-48, 2006.
DE BLASIS, E. A avaliação educacional em larga escala e as políticas municipais de
Educação em duas cidades do Estado de São Paulo. PUCSP, 2010.
DITTRICH, D. Impactos da Política Educacional do Município de Curitiba-PR sobre a
melhoria do Ideb dos anos iniciais do Ensino Fundamental. UFPR, 2011.
FREITAS, L. C. de. Eliminação adiada: o caso das classes populares no interior da
escola e a ocultação da (má) qualidade do ensino. Educação & Sociedade, Campinas, v.
28, n. 100, p. 965-987, 2007.
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002865
XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
12
HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: HORKHEIMER, M. e
ADORNO, T. W. Textos escolhidos. SP: Nova Cultural. 1989.
IOSCHPE, G. Precisamos de educação diferente de acordo com a classe social. Revista
Veja. 10/07/2011, 2011a. Disponível em:
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/precisamos-de-educacao-diferente-de-acordocom-a-classe-social
IOSCHPE, G. Entrevista no site do Jornal Nacional, 2011b. Disponível em:
http://g1.globo.com/platb/jnespecial/
JACOBSEN, C. A Prova Brasil e o conteúdo escolar da Língua Portuguesa: um estudo
com as escolas paranaenses. UEM, 2010.
LEE. V. Medidas educacionais: avaliando a eficácia das escolas em termos de
excelência e de equidade. In: BONAMINO, A.; BESSA, N.; FRANCO, C. (Orgs.)
Avaliação da Educação Básica – pesquisa e gestão. RJ: PUC-Rio; SP: Loyola, 2004.
MARCUSE, H. Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: Ed. Unesp. 1999.
SANTOS, W. dos. O Provão: para além do discurso oficial. Representação do
professor e anatomia do modelo. PUCSP. 2001.
SOARES, J. F.; MAROTTA, L. Desigualdades no sistema de ensino fundamental
brasileiro. In: VELOSO, F. et. al. (Orgs.). Educação básica no Brasil: construindo o
país do futuro. RJ: Elsevier, 2009, p. 73-91.
SOUSA, S. Z. L e PRIETO, R. G. A educação especial. IN: OLIVEIRA, R. M.;
ADRIÃO, T. (orgs). Organização do ensino no Brasil: níveis e modalidades na
Constituição Federal e na LDB. SP: Xamã, 2002, p. 123-135.
TEDDLIE, C., REYNOLDS, D. The International Handbook of School Effectiveness
Research. Falmer Press: London, 2000.
Junqueira&Marin Editores
Livro 2 - p.002866
Download

IMPACTOS DA “EDUCAÇÃO DE RESULTADOS” NO