33º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS GT.34 Religião e Sociedade “Secularização” – um conceito ainda útil para a aproximação da realidade religiosa brasileira? Maria José F. Rosado-Nunes 1 “Secularização” – um conceito ainda útil para a aproximação da realidade religiosa brasileira?1 Preâmbulo elucidativo As infindáveis discussões em torno da “secularização” dirigiram-se tanto ao conceito mesmo, quanto à interrogação sobre sua aplicabilidade em situações específicas. Gace Davie (2001; 2004; 2005), socióloga inglesa, por exemplo, defende a hipótese de que, na verdade, trata-se de um fenômeno restrito à Europa, e, mesmo aí, não acontece da mesma forma e com idêntico grau de intensidade em todos os países. Por isso, foi um equívoco sociológico estender o conceito para compreender o que se passa na Modernidade religiosa de forma ampla. Para outr@s cientistas sociais que tem a religião como seu objeto de pesquisa, a secularização é posta em questão pela efervescência religiosa atual e pela força política das instituições de caráter religioso que parece ter sido ampliada, ao invés de diminuída.2 Fala-se mesmo em um momento post-secular.3 Vaggione (...), seguindo Casanova [1994], 1 Este texto é um produto parcial de pesquisa em curso apoiada pelo CNPq. Pierucci, em artigo de 1997 apresenta um balanço das duas posições predominantes no âmbito das Ciências Sociais, em relação a essa questão: PIERUCCI, Antônio Flávio. “Reencantamento e dessecularização: a propósito do auto-engano em Sociologia da Religião”, in: Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 49, p.99 – 117, nov., 1997. Cf também: “Secularização em Max Weber: Da contemporânea serventia de voltarmos a acessar aquele velho sentido”, in: Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 13, n.37, p.44-73, junho, 1998. A bibliografia no entanto é ampla; nov@s autor@s tem entrado nesse debate, inclusive feministas, acadêmicas e militantes, como se verá adiante. 3 Émile Poulat (2003, p.323), critica a utilização do termo: “Há uma tendência forte, atualmente, a usar e abusar do prefixo post: Nós nos sentimos saídos de um passado que nos prende ainda, sem poder desenhar a figura do futuro que preparamos. Um processo escapa a esta linguagem: esta longa marcha conhecida sob o nome de secularização. Ninguém falou ainda de “pos-secularização”, mesmo se as análises desta evolução reconhecem unanimemente haver fortemente negligenciado a importância dos fenômenos religiosos. (...) O pos-cristão e o posmoderno não trazem consigo o pos-laico, nem aliás, o pos-democrático.” (Tradução da autora deste texto). 2 2 argumenta que o processo racionalizador moderno não significou privatização do religioso, nem retraimento das religiões da esfera política. La porosidad de la religión en la cultura, en la legislación y en los marcos interpretativos desde donde nos pensamos como indivíduos y como sociedad nos fuerza a reconsiderar de maneras más complejas la presencia de lo religioso en la escena pública y en la sociedad en su conjunto. 4 Já para outr@s cientistas sociais, particularmente @s de extração francesa, o processo secularizador aprofunda-se e, se coloca uma nova situação, é justamente a que resulta do aprofundamento da laicização e da secularização. Émile Poulat, sociólogo e historiador, em obra recente, Notre Laïcité Publique5, escreve: Não se trata do fim do Cristianismo, nem das Igrejas cristãs, menos ainda do religioso e do espiritual. Trata-se, antes, do fim de uma civilização que, durante séculos, submeteu seu pensamento às evidências do dogmatismo cristão e sua vida social às regras da moral cristã (p.319). O diagnóstico feito pelo autor, algumas páginas antes, é contundente: A passagem da catolicidade à laicidade não é pois, uma simples mudança de regime: do “monopólio” da verdade reinante ao pluralismo de sistemas de convicção e de referência, o que Max Weber nomeava “o politeísmo dos valores”. Tal passagem vira uma página na história da humanidade e inspira uma experiência social inédita cujas lições não são imediatas nem evidentes. Pela primeira vez, uma sociedade renuncia a buscar em Deus seus vínculos, sua certeza, seu fundamento, para apoiar-se em um contrato entre seus membros cujo acordo, por maioria, decide do estatuto dado à religião. (p.115) 4 VAGGIONE, Juan; ESQUIVEL, Juan Perez. Proyecto (versão preliminar), p. 4. POULAT, Émile. Notre Laïcité Publique. La France est une Republique Laïque, Paris, Berg International, 2003. A tradução das citações é da autora deste texto. Cf também, a obra clássica sobre o tema, do mesmo autor: Liberte, Laïcité, La Guerre des Deux France et le Principe de la Modernité, Paris: Éditions du Cerf / Éditions Cujas, 1987. As discussões sobre o caráter laico da França reanimaram-se nos últimos anos pelos debates suscitados pelo uso do véu por mulheres, símbolo religioso islâmico, em lugares públicos, como as escolas. Uma série de livros foram publicados em trono da questão, entre os quais: Completar 5 3 Claro, estamos na França republicana, herdeira dos ideais da revolução de 1789 e de uma longa história de defesa das liberdades laicas. Não é o caso do Brasil, com sua incipiente experiência democrática e vínculos políticos, sociais e culturais devedores de mais de 3 séculos de hegemonia católica. Mas, faz pensar. O que significa, por exemplo, o fato inédito do crescimento daquel@s que se declaram “sem religião”, no Censo e reivindicam uma categoria censitária que @s coloque como atéias/ateus, explicitando que não se trata, para muitas dessas pessoas, apenas de “não ter religião”, mas de não crer em Deus? A paisagem religiosa moderna é pois complexa e traz dificuldades maiores para sua análise. Uma expressão da perplexidade sociológica diante desse quadro religioso foi o que aconteceu na 30ª Conferência da International Society of Sociology of Religion (ISSR/SISR), realizada em Santiago de Compostela sobre o tema: The Challenges of Religious Pluralism (27 – 31/07/09). A diversidade de compreensão do momento religioso contemporâneo foi debatida em conferências e grupos de trabalho. Aí se colocou de forma incisiva a necessidade teórica e política de se interrogar e analisar a questão das novas formas de inserção sócio-política das instituições religiosas e da constante reconstrução das maneiras de crer nas sociedades contemporâneas. Tratando-se de uma conferência internacional, com participantes de inúmeros ocidentais e orientais, foi impressionante a países coincidência das interrogações relativas ao lugar e à interferência das religiões na vida pública, em contextos democráticos, modernos, mais ou menos liberais.6 Claro que sem deixar de considerar as enormes diferenças locais, regionais e entre as diversas expressões religiosas. Dada a representatividade dessa Associação para o campo da Sociologia da 6 Giumbelli, Emerson já mostrou em seu O Fim da Religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França, São Paulo: Attar Editorial, 2002, o quanto a laicidade é diversamente realizada, mesmo em países modernos e altamente secularizados. 4 Religião, pode-se tomar suas conferências como uma espécie de termômetro daquilo que são as temáticas e as questões mais instigantes para a área no momento.7 No Brasil, as análises da realidade religiosa, ou do campo religioso, para usar os termos de Bourdieu, também se dividem entre o entusiasmo com a “volta do sagrado”, a crítica às teorias da secularização e a reafirmação de um processo secularizador em curso. No caso da crítica, por vezes, o próprio conceito é considerado de pouca utilidade para o Brasil e, por outras, é a especificidade do país invocada para afirmar sua incapacidade de dar conta do que se passa no campo religioso brasileiro. Já a afirmação da pertinência do conceito ancora-se, ao contrário, numa discussão da compreensão mesma do sentido dado ao que se nomeia como “secularização” e sua aplicabilidade na compreensão e análise do nosso país.8 Neste texto, seguindo Pierucci e a linha francesa de análise indicada acima, defendo a hipótese de que vivemos no Brasil um momento de aprofundamento do processo secularizador, do qual a laicidade do Estado, a pluralização do campo religioso e a autonomia da decisão reprodutiva são as concretizações mais explícitas, ou, ao menos, mais facilmente mensuráveis. É o que este texto discute, abordando a crítica feminista aos usos do conceito de secularização e aos efeitos da atuação e dos discursos públicos das religiões em contextos modernos mais ou menos secularizados como o nosso, para propor, em conclusão, a questão do processo secularizador em nosso país. legitimidade dessa 7 Assim como o é a ASCRM (Associação dos Cientistas da Religião do MERCOSUL) em relação, especificamente, ao que se passa no campo religioso latino-americano. 8 De novo, remeto aos dois artigos de Pierucci referidos na nota 1, acrescentando às obras citadas por ele, os textos de Paula Montero: Max Weber e os dilemas da secularização: o lugar da religião no mundo contemporâneo. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 65, p.34 – 44,março, 2003; Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p.47 – 65, março, 2006. 5 intervenção e as interrogações sobre as relações entre poder político e poder religioso Secularização e Crítica feminista A crítica feminista à secularização é também diversificada. Linda Woodhead, socióloga inglesa, aponta para a falha dessas teorias por não levarem em conta “o fator gênero”.9 A “grande narrativa” weberiana da secularização, assim como a Sociologia da Religião em geral, foi cega quanto ao gênero (gender-blind). Ainda que formulada em termos de uma “humanidade universal”, na verdade, tem como foco o homem. “Se, ao contrário, a narrativa fosse recontada tendo as mulheres como objeto, será que ela manteria sua plausibilidade e seu poder explicativo”? (p.76) A autora entende a secularização, seja principalmente, como diminuição dos índices de frequência à Igreja, seja, em sua versão forte, como “fim da religião” e, em sua versão fraca, como algo de significação meramente privada. Seu argumento: Se as mulheres foram, no Ocidente, geralmente, excluídas da esfera pública e permaneceram na esfera doméstica, ficaram, então, fora do alcance das regulações impessoais da racionalidade e dos interesses econômicos próprios da Modernidade. Logo, as conclusões dessas teorias10 são inaplicáveis para as mulheres. Tanto o “fim da religião” quanto sua privatização são minados pelo fato das mulheres ficarem de fora da “gaiola de ferro”. E conclui: “Onde muitas mulheres são consideradas, então pode-se esperar que a religião continuaria a ter um forte significado nos tempos modernos, como nos pré-modernos.” (p.77) Em lugar de se entender que a religião torna-se 9 Woodhead, Linda, “Feminism and the Sociology of Religion: From Gender-blindness to Gendered Difference”, in: FENN, Richard K. (ed), The Blackwell Companion to Sociology of Religion, Oxford, UK; Massachusetts, USA, 2001, p.67-84. 10 Linda Woodhead considera, não apenas as teorias da secularização, mas também as narrativas da “anomia” (Durkheim) e da “gaiola de ferro (Weber). 6 mais “privatizada”, poder-se-ia propor que ela “feminiza-se” e torna-se mais relacional.11 Uma religião centrada no “relacional” não é uma religião “privatizada”. Já Anne Philips e Agniezka Graff12 retomam o conceito de secularização, principalmente em relação à separação Igreja-Estado, o que as leva a considerar um elemento ausente da análise de Woodhead: o componente institucional. Retomo aqui, particularmente, as críticas feministas dirigidas às proposições de Casanova, em relação às possibilidade de intervenção pública das religiões. Para esse autor, as religiões situam-se, em contextos modernos e sociedades em regime de separação, na sociedade civil, e, nesta ocupam um lugar importante como atoras políticas. As religiões rejeitam seu confinamento na esfera privada e sua restrição a um papel marginal na sociedade. Casanova não apenas reconhece empiricamente essa presença pública das religiões, mas assume uma clara posição normativa, propondo a legitimidade dessa ação política, segundo ele, válida e necessária. Sua afirmação de um processo de des-privatização das religiões é pois resultado de análise e, ao mesmo tempo, uma afirmação de sua própria posição. As religiões devem atuar no campo da política, funcionando como uma espécie de “consciência crítica” da Modernidade. Contrapondo-se a uma separação estanque e absoluta entre as diferentes esferas sociais, Casanova entende haver “brechas” para a atuação das religiões mesmo 11 Segundo a autora, as mulheres desenvolvem um tipo de religião” da vida” e da humanidade, uma religião relacional. Faltam, porém, pesquisas empíricas que tomem as mulheres como seu objeto. 12 PHILIPS, Anne. Religion: Ally, threat, or just religion? (Draft version). UNRISD (United Nations Research Institute for Social Developemnt), 2009; GRAFF, Agniezka. Religion as women’s right: a question of power, not belief. (Draft version) UNRISD, 2009. Ambos os textos disponíveis em: http://www.gwiboell.de/de/downloads/Religion_Revisited_Discussion_keynote_Graff_June2009.pdf. Acesso em 21 set. 2009. Agradeço a Magaly Pazello a indicação desses textos, preciosos para as discussões propostas neste artigo. 7 junto ao Estado. Retoma críticas feministas à dicotomia público / privado, como parte de sua argumentação teórica. Em suas próprias palavras: “(...)yo sostengo que al menos algunas formas de ‘religión pública’ pueden entederse como críticas normativas contraobjetivas a las tendencias históricas dominantes, similares en muchos aspectos a las críticas clásica, republicana y feminista. El impacto público de esas críticas religiosas no debería medirse únicamente por la capacidad de cualquier religión para imponer su programa a la sociedad o sus exigencias normativas globales sobre las esferas autónomas. En las sociedades modernas diferenciadas es a la vez improbable e indeseable que la religión vuelva a desempeñar una función de integración normativa sistemática. Pero traspasando límites, suscitando preguntas públicamente acerca de las pretensiones autónomas de las esferas diferenciadas de funcionar sin considerar las normas morales o las consideraciones humanas, las religiones públicas pueden ayudar a movilizar a las personas contra tales pretensiones, pueden contribuir al nuevo trazado de las fronteras o, como mínimo, pueden forzar o contribuir a un debate público sobre tales cuestiones. Independientemente del resultado o del impacto histórico de tal debate, las religiones habrán desempeñado un papel público importante. Como las críticas feministas o como las críticas de la virtud republicana a los desarrollos modernos, habrán actuado como críticas normativas contraobjetivas. Además, no hace falta aceptar las premisas normativas de tales críticas religiosas par reconecer que pueden ayudar a revelar el carácter histórico particular y contingente de los procesos modernos y a cuestionar la normatividad de la realidad moderna.” (p. 68-69) Ao referir-se ao campo empírico, sua avaliação das relações entre a Igreja Católica, particularmente, o Estado e a política, é positiva. Abandonando o “organicismo reativo”, uma vez que já não se sente ameaçada por uma hostilidade do Estado secular ou de movimentos sociais, dá-se “uma dinâmica de reconhecimento e aproximação mútuas entre a religião e a Modernidade”. (p.92-93) Na análise do Brasil, o autor retoma os processos dos anos 80, quando da vigência da Teologia da Libertação e da resistência ao regime militar pela Igreja Católica. No 8