EDUCAÇÃO MORAL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DOS LIVROS DIDÁTICOS Lucas Henrique Diniz Feltrin (Graduado em História-UNESP) [email protected] Alonso Bezerra de Carvalho (Professor UNESP – Assis) [email protected] RESUMO O objeto da pesquisa foi a escola contemporânea e seu papel na formação moral do cidadão. Para obter uma visão mais ampla sobre a instituição, o trabalho analisou os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil (1969-1985), no intuito identificar os valores que pretendiam inculcar e as heranças desse empenho. A análise foi realizada a partir de métodos específicos de uma pesquisa de caráter teórico e de análise bibliográfico-documental. Os materiais utilizados no seu desenvolvimento foram os livros didáticos de EMC e OSPB, bem como a produção acadêmica em relação ao assunto; obras teóricas a respeito do mundo contemporâneo e da dimensão ética e política do ambiente escolar. Os resultados demonstraram que o objetivo das disciplinas era eliminar qualquer pensamento crítico sobre o período ditatorial e criar uma identidade fundada nos valores cristãos e de uma unidade nacional inexistente. Sobre a herança da experiência, concluímos que ela oscila entre a aversão e a nostalgia, tornando ainda mais complexa a reflexão sobre a proposta de educação moral no contexto contemporâneo que seja atenta à diversidade brasileira e à pluralidade característica da sociedade individualizada, que considere o caráter social da moral e a intimidade do sujeito, buscando medir o valor de uma verdade em razão do seu alcance social. Palavras-chave: Educação moral, contemporaneidade, ditadura civil-militar. Introdução A questão dos valores na escola do século XXI está marcada pelas mudanças sociais, as inquietações e as polêmicas que surgiram desde a metade do século passado, entre elas o desenvolvimento tecnológico, a violência, a "destradicionalização", o consumismo e etc. Este contexto tem fomentado o debate sobre a educação moral e o papel que a escola desenvolve nesta dimensão. É atento a esta discussão que o trabalho busca vislumbrar, através da análise dessa recente experiência da educação brasileira, quais são as influências do passado e as exigências do presente que formam o cenário atual. Métodos O trabalho foi desenvolvido a partir de métodos específicos de uma pesquisa de caráter teórico e de análise bibliográfico-documental. Os materiais utilizados no 338 seu desenvolvimento foram os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política do Brasil, bem como a produção acadêmica em relação ao assunto; obras teóricas a respeito do mundo contemporâneo e a dimensão ética e política do ambiente escolar. Resultados Para orientar nossa reflexão acerca da contemporaneidade e as principais características que a distingue dos períodos anteriores, utilizamos as interpretações de Zygmunt Bauman1. Na concepção do sociólogo, a liquidez é um aspecto essencial da pós-modernidade, quando tudo se torna frágil, duvidoso, frouxo, livre e inseguro. Para esclarecer o conceito, ele expõe exemplos de modificações da modernidade sólida para a modernidade líquida nos quais ressalta que a consciência pós-moderna é um despertar de um sonho colorido para uma espécie de pesadelo; é a modificação de noção de quem estava construindo um mundo simétrico, de poder sobre causa e efeito para um mundo líquido, sem forma - a consciência pós-moderna é a consciência de um fracasso, do fracasso da modernidade e de suas utopias. Diferente do homem moderno que tinha no seu horizonte de expectativa uma visão mais clara e objetiva, o indivíduo contemporâneo não possui uma referência clara de solução para as mazelas de seu tempo. Bauman em A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna (2012) destaca no contexto atual a existência de um relativismo moral, ressaltando que o homem moderno acreditava na razão, acreditava que o mundo estava seguindo um percurso "conhecido”, enquanto o pós-moderno não acredita em nada e tem como horizonte o vazio, pois qualquer lado dá em algum lugar e nenhum lugar é necessariamente melhor que o outro. A modernidade é também caracterizada pela crença no Estado como uma “instância produtora de justiça” que garantiria qualidade de vida e controlaria o capitalismo. Na contemporaneidade, o Estado perde esses aspectos de poder e segurança e diminui seu controle em função da iniciativa privada mergulhada no 1 BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 ;BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro.: Jorge Zahar Editor, 2001; BAUMAN, Zygmunt. A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 12. 339 "mercado livre" que, em certa medida, é a responsável por essa liquidez que toma todas as relações. A noção de mercadoria afeta todas as esferas da vida humana, inclusive a amorosa. As relações estão fundadas no lucro e por isso pensamos em qualidade de relacionamento - que passou a ser um investimento, tornando a satisfação e a dor proporcionais a ele. “Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas abomina a perspectiva de perder ainda mais dinheiro na tentativa de recuperálos. Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido – com lucro.” (BAUMAN, 2004, p. 28). Refletindo sobre os valores democráticos, o eminente sociólogo destaca que a democracia, tal qual concebeu Aristóteles, em muito se difere da nossa atual concepção. Observa-se que o modelo atual de democracia, que se configura no Estado-nação, começou a ser questionado em virtude de sua ineficiência e inoperância, pois, esse Estado, erigido como uma “instituição produtora de justiça" na modernidade deu lugar à iniciativa privada e perdeu esse aspecto. Além desse fenômeno temos mais dois elementos que apontam para a falência do estadonação: a falta de sentimento de pertencimento que dá lugar a individualidade e a configuração do mundo atual de interdependência que começa a exigir a criação de um equivalente ao estado-nação em dimensão global - dada a proporção desta dependência. O autor diz que as sociedades foram individualizadas e que o sentimento de pertencimento a uma comunidade ou nação foi suprimido, ainda que não completamente, pela individualidade. Destacando que, nesse novo período – que não sabemos se é uma transição para outro com novos valores ou se é um modo de vida que irá permanecer - somos coagidos a criar nossa própria identidade. Não mais a herdamos de nossa comunidade ou nação, mas devemos criá-la, e não só, devemos redefini-la pela constante mudança nos estilos de vida. A nossa ideia atual de identidade consiste na noção de estilo: você é o que veste, é o local que frequenta, é os amigos que têm, o objeto que carrega. Jorge Renato Johann (2009) reflete sobre essa concepção na qual o ser humano passa a ser identificado pela capacidade de consumir e destaca: De tal maneira os ares do neoliberalismo varreram o mundo que acabaram impregnando mentes e corações por todo o planeta. O 340 senso comum assimilou esta onda como sinônimo de riqueza, de inteligência, de charme e de modernidade. Todo aquele que questionasse esta nova realidade seria considerando alguém na contramão da história. Os supremos valores deste mundo globalizado serão o lucro, o luxo, o individualismo e o bem-estar a qualquer preço. (JOHANN, 2009, p. 23) Outro fenômeno que acomete a contemporaneidade e tem tomado a atenção dos filósofos, é a relação inversamente proporcional entre a importância que se dá ao termo ética no discurso e sua efetiva importância na prática, é "lugar comum". A veiculação do termo sem nenhuma crítica e sua banalização pelo uso indiscriminado se mostram como empecilhos á verdadeira e profunda reflexão de uma das linhas de pensamento mais complexas da filosofia - a ciência que nos prescreve uma conduta sábia e os meios de a ela conformar os nossos atos. A inflação do termo em conjunto com a negação da moral como fundamento da sociedade e da vida política são fenômenos resultantes da mesma experiência humana preconizada por Nietzsche: o niilismo dos valores. Roberto Romano (2001) aborda em seu artigo essa inflação dizendo que o uso indiscriminado colabora para o fenômeno do niilismo dos valores que acomete a contemporaneidade e que, no Brasil, os principais responsáveis por essa veiculação desvinculada de críticas são a imprensa e o setor público. Ou seja, o niilismo que permite essa veiculação indiscriminada também é alimentado por ela. O autor ainda destaca: “O uso e o abuso dos termos ética e moral leva à corrosão dos valores e à perda da credibilidade da palavra coletiva” e “... quem banaliza as doutrinas sobre o bem, gera o mal"(ROMANO, 2001, p. 98) Atento a essa contradição, Pedro Goergen (2007) analisa a relação entre a visibilidade do debate moral e a gravidade das práticas imorais, argumentando que os problemas não estão circunscritos entre este, aquele sujeito ou grupo, mas sim na tradição, relacionados aos costumes e valores que constituem o nosso ethos histórico-cultural. “As raízes da imoralidade são muito mais profundas e alcançam o terreno comum da tradição e da cultura” (GOERGEN, 2007, p. 740). Goergen salienta que é necessário aprofundarmos a reflexão repensando os arquétipos de nossa cultura no que se refere aos conceitos de cidadania, democracia, justiça social e espaço público. Para que assim compreendamos melhor "a dimensão inversamente proporcional entre a importância que se a moral no discurso e a 341 relevância dele nas práticas" (GOERGEM, 2007, p. 742). O autor diz que embora seja uma aventura arriscada percorrer o campo da ética e da moral, este debate se faz mais necessário que nunca, pois a ética tornou-se uma preocupação presente em todos os âmbitos da vida humana em razão do próprio desenvolvimento da racionalidade moderna. O autor também salienta sobre a curiosa ambiguidade entre o discurso ético que se dissemina e ocupa todos os espaços e sua efetiva importância no campo prático, destacando que no centro dessa contradição se encontra a seguinte questão: “Como a escola deve posicionar-se diante desse contexto democrático e plural, no qual não há um consenso sobre os valores que se pretende inserir na sociedade?”. (GOERGEN, 2005, p. 989) Segundo Goergen (2005) há uma relação intrínseca entre ética e pedagogia há uma influência mútua entre moral (ética) e educação (pedagogia) e por isso o ser humano precisa ser Educado para a Moralidade, considerando que, se a ética não pode definir o sentido da vida por estar condicionada ao contexto histórico, a pedagogia pode ser tomada como uma teoria universalmente válida e assumir as normas éticas incondicionais que possuam validade independente das circunstâncias históricas. A Moral Laica Emile Durkheim (1984) no intuito de formular uma Educação laica, define a moral como um “conjunto particular de regras que possuem valor maior do que todas as outras coisas humanas” (DURKHEIM; 1984 p.23) e busca esboçar as diretrizes dessa educação. Ele salienta que as regras morais precisam ter um prestígio muito particular, uma autoridade excepcional que nos faça prostrar diante da sua vontade e que nos imponha obediência. Portanto, a moral só se impõe através de um elemento legítimo que a fundamente, pois não é apenas um conjunto de regras que devemos obedecer porque foram impostas, mas sim regras interiorizadas por um elemento superior e legítimo. “Para que pensemos em cumprir o dever, não basta que {este} nos fale imperativamente; é necessário que os atos que nos ordena possam comover-nos, emocionar-nos”. (DURKHEIM; 1984, p.34). Diferente de como a costumamos conceber, o autor apresenta a moral como algo bom, como algo que pode ser desejado e amado, dizendo que quando agimos moralmente voltamos nosso olhar para algo que nos transcende e nos domina. Eis o motivo pelo qual em 342 todas as épocas as ideias morais foram tratadas e expressas sob formas religiosas. É por esse lugar que a moral ocupa em nós que Durkheim vê dificuldade em construir uma moral laica. Por ser algo que transcende a imposição de regras, ocupando lugar também em nossos sentimentos, é que se torna complexa a formulação de uma moral fora dos parâmetros metafísicos. Renunciando em nos apoiar em uma potência divina, precisamos encontrar outra força que desempenhe esse papel. Esta força é a sociedade. A sociedade, tal como a divindade, ultrapassa infinitamente o indivíduo tanto no espaço quanto no tempo. O fato das sociedades serem mortais não impossibilita a formulação da educação moral a partir dela, pois, de qualquer maneira, sua existência é extremamente maior que a do indivíduo. Educação Moral e o papel da escola No Brasil, observamos a preocupação por parte de alguns representantes políticos em formular e aplicar um projeto que atenda os clamores atuais. Entre os anos de 1997 e 2006 foram apresentadas 13 proposições por congressistas no intuito de reintroduzir no ensino uma disciplina que contemple a Ética - uma disciplina obrigatória via currículo. A partir dessa informação, podemos concluir que há um amplo debate sobre Ética e sua inserção no ensino, porém, o que se apresenta ainda mais latente, é a falta de consenso sobre que cidadão exatamente se pretende formar. Para expor este dilema temos um exemplo: O Projeto de Lei n. 4.559, de autoria do deputado Paulo Lima do PMDB de São Paulo, que foi apresentado em 25 de abril de 2000. Segundo o autor do projeto, a inclusão da Educação Moral e Cívica no currículo do ensino fundamental ancorada numa na conscientização espontânea, tem como objetivo resgatar os valores imutáveis da nação como a família, a cidadania e o amor à Pátria. Ao ressaltar que “os conflitos e as tensões crescem a cada dia no seio das famílias e preceitos como honrarás pai e mãe estão se tornando obsoletos”2, o autor da proposta pretende inserir novamente na sociedade valores que são incoerentes com a realidade, pois, se pensarmos antes de tudo em uma disciplina democrática, esses valores que o autor classifica 2 AMARAL, Daniela Patti do -Ética, moral e civismo: um difícil consenso - Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 131, p. 351-369, maio/ago. 2007 343 como permanentes e imutáveis não garantirão a liberdade e a harmonia que vislumbramos através de uma educação moral laica. A partir dos PCN´s, a escola foi erigida "agência privilegiada para a formação da cidadania". Segundo as diretrizes, o tema deve ser pautado na autonomia moral como condição á reflexão ética e sustentado por quatro eixos: respeito mútuo, diálogo, justiça e solidariedade. Entretando, a valorização e aprofundamento do tema na escola não correspondem, na prática, a expressão citada acima " como agência privilegiada para a formação da cidadania". Obviamente, a escola desenvolve esse papel social de formar moralmente, porém, por não haver um consenso que permita uma definição clara de qual cidadão pretende-se formar, o tema não é explorado em toda sua potencialidade. Portanto, a instituição, da maneira como funciona atualmente, desenvolve o papel de manutenção da ordem, pois, mesmo que não abordem explicitamente o tema ética, esse ensino que visa o profissional em detrimento do cidadão autônomo, está também formando moralmente seus alunos; não no sentido de criar uma sociedade mais justa ou de formar sujeitos éticos, mas de cumprir seu papel de perpetuar a ordem vigente. O artigo de Renato José de Oliveira3 aborda o papel da escola na formação ética do cidadão fazendo uma comparação entre o conteúdo transmitido pela instituição no período ditatorial e no presente. Retomando o conhecimento veiculado no período ditatorial, ressalta que sua finalidade era eliminar os conceitos comunistas, garantindo a ordem através dos valores nacionais e cristãos. Como o nosso contexto sócio-político mudou e hoje não se busca mais inserir nos alunos um pensamento oficial para denegrir a imagem do comunismo, mas de formar um cidadão consciente dos seus direitos e deveres, o autor indaga: que sujeito propriamente se quer formar? Os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil e suas heranças Os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e Política do Brasil do período da ditadura possuem uma proposta de formação moral 3 OLIVEIRA. RENATO J. Ética na escola: (Re) acendendo uma polêmica. Educação & Sociedade, ano XXII, no 76, Outubro/2001 pp. 212-231 344 muito diferente da que almejamos através do ensino laico. Eles usam de algumas teorias semelhantes e coerentes com a formação laica e libertária, porém, a moral está fundada em dois eixos que não garantem a liberdade em toda sua amplitude. Esses eixos são: Pátria e Cristianismo. Apesar das incoerências no conceito de liberdade e de se fundamentar no cristianismo, a Educação Moral presente nesses livros apoiam-se também em teorias que nos são muito caras, como a de Jean Piaget, na análise da formação cognitiva do indivíduo e a formação da personalidade a partir de fatores hereditários e educacionais. Os livros defendem que essa Educação Moral não pretende incutir no educando modelos consagrados pelo passado, impondo-lhe a tarefa de perpetuá-lo, afirmando serem contrários a essas diretrizes castradoras. “No universo que nos é conhecido, ele [o homem] é a única criatura portadora, dentro de si mesma, de uma fonte original, de um “começo radical”, donde nascem decisões e atitudes: a liberdade” (COTRIM; 1982, p.14) Todavia, não é exatamente isso que observamos quando examinamos a proposta completa. Os livros ressaltam que o homem, ao mesmo tempo em que é um ser livre, é essencialmente dependente; dependente para com Deus, com a Pátria, para com os outros homens, para com os valores morais que o solicitam e lhe impõe como um imperativo. Desta forma, sua liberdade, é a frequente aceitação consciente dessa dependência e a submissão voluntária a ela. A questão é que a liberdade não é garantida fora dos parâmetros nacionais e cristãos, ou seja, ela não é garantida entre indivíduos que não compartilham dessas ideologias. O Brasil é caracterizado por sua pluralidade cultural e não há possibilidade de encontrarmos uma identificação exata entre as diferentes etnias presentes em seu vasto território. Por isso, quando essa Educação Moral limita a liberdade à estes parâmetros, ela está excluindo uma parte da população, e mais, está procurando a homogeneização que observamos em várias teorias e didáticas do ambiente escolar. Portanto, os livros possuem uma proposta oposta à que a pesquisa buscou refletir, ou seja, de uma Educação Laica que abranja as divergências, dando-lhes sentidos que fogem da uniformização e caracterizam-se pela observação a apreensão das múltiplas realidades presentes na sala de aula. O conteúdo da Educação Moral presentes nesses livros apresenta-se por vezes contraditório - pensando no nosso sentido exposto acima de liberdade. Pois, ao mesmo tempo em que diz ser o objetivo dessa Educação, equacionar esse 345 ímpeto de liberdade, imprescindível à autonomia do indivíduo e o respeito aos semelhantes, buscando conciliar a liberdade pessoal com a responsabilidade social, fundamenta-se nos valores cristãos e ressalta a importância deles na formação do indivíduo. Eles exprimem que, em última instância, o objetivo é assegurar a paz interior do indivíduo, preservando a dignidade humana e a harmonia da vida coletiva. No entanto, não vemos possibilidade de haver harmonia com a exclusão das diferenças. Ou seja, em suma, o objetivo dessa Educação Moral é buscar a uniformização das ideias invés de criar uma Moral a partir delas. Os objetivos educacionais contidos nos livros didáticos de Educação Mora e Cívica expõem mais claramente os intuitos das disciplina analisada. Estes são: a defesa do princípio democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa humana e do amor á responsabilidade, sob a inspiração de Deus; a preservação, o fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; o fortalecimento da unidade nacional; o culto a pátria, aos seus símbolos, tradições, instituições e aos grandes vultos de sua história (essa história oficial que recria um passado que enaltece os opressores e diminui os oprimidos); aprimoramento do caráter como apoio na moral; o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e da integração a comunidade. Todos os itens apontam a necessidade de moldar os indivíduos em uma conduta regrada pela progressão nacional – fidelidade ao trabalho, fortalecer valores éticos e cívicos da nacionalidade – e pela moral cristã. O livro didático “Educação Moral e Cívica – Para uma geração consciente (1982)” de Gilberto Cotrim, traz em um de seus capítulos o título “A necessidade da religião”, que demonstra mais claramente a função do cristianismo na formação do ser moral. O capítulo destaca a necessidade de promover o reencontro do homem com Deus, dizendo que a felicidade total e perfeita só será atingida com esse reencontro, ressaltando que as questões existenciais devem ser respondidas a partir da teoria cristã, fomentando a ligação entre o homem e Deus. Conclui-se, assim, que todos esses valores que compõem a Educação Moral nos livros didáticos partem da religião predominante no sentido de garantir e fortalecer essa preponderância. Em suma, as disciplinas EMC e OSPB buscaram organizar o que consideravam problemas básicos da humanidade e orientar a compreensão da: Existência e conteúdo do Universo, Existência e essência de Deus, relações entre o 346 universo e Deus, situação do homem no universo, situação do Homem ante Deus e relações recíprocas entre os homens. Conseguimos observar neles uma expressão clara de quais valores buscava-se inserir ou reforçar na sociedade brasileira, como também um grande empenho em fazê-lo. A finalidade da pesquisa é também tentar visualizar possíveis caminhos para uma educação moral que atenda aos critérios e valores do mundo contemporâneo. A clara definição dos valores que se pretendeu incutir, sem dúvida, facilitou a implantação das disciplinas - também, obviamente, por não existir nesse momento oposições. Entretanto, de tudo que observamos nesse projeto de sociedade, o empenho em fazê-lo é o único bom exemplo que deveríamos seguir. Uma tarefa demasiadamente difícil quando se quer fazê-la de forma democrática, mas que se mostra urgente. Refletindo sobre a influência do regime ditatorial em todas as esferas da vida humana - que ainda pode ser sentida, tornando ainda mais complexa a elaboração de uma educação moral laica na escola - Wilson Francisco Correa (2007) diz que nesse período vigorou uma metodologia de controle fundada na repressão pela violência e na ideologia do convencimento das consciências nacionais favorável ao regime autoritário. Se a ditadura atingiu todas as esferas da vida humana, logo, a prática docente, o currículo e o processo de ensino/aprendizagem também foram incisivamente afetados. Pois, com um governo fundamento na Doutrina de Segurança Nacional que remete ao modelo Estadunidense, a cultura foi preocupação-chave, e, mas estritamente, a educação moral, um instrumento. Neste projeto de sociedade fundamentado nos pressupostos da Escola Superior de Guerra de eliminar o avanço comunista, a ação do governo civil-militar foi ainda mais incisiva no campo educacional por ser considerado o local onde a ideologia circulava com mais intensidade. Segundo Correa, as disciplinas analisadas tiveram o explícito propósito de eliminar qualquer “...problematização da realidade e para a compreensão crítica sobre o momento histórico que a sociedade brasileira estava vivendo” (CORREIA, 2007, p. 491). A concepção do regime militar sobre educação e moral reforçou a prática pedagógica centrada no controle dos indivíduos, inibindo o desenvolvimento do pensamento crítico e da real situação de submissão ao governo autoritário. "A educação moral e cívica que passaram a ensinar tinha o objetivo claro de contribuir para a formação daquela concepção ideológica, na 347 qual se buscava legitimar o uso da força bruta como instrumento de governo, ao largo da vontade geral do povo brasileiro e de seus processos democráticos de exercício do poder.” (CORREIA, 2007, p. 495) O autor conclui que a Educação Moral e Cívica foi o controle da filosofia para inserir a filosofia do controle e teve papel preponderante na inserção de ideias patrióticas e cívicas, colaborando para o domínio e permanência do regime. Maria Ângela Martins (2011) salienta que nesse empenho do governo militar ao criar a EMC não há a utilização do método hipotético dedutivo ou o dedutivo, mas o indutivo que visa levar o aluno a "verdades" que podem ser interpretadas como doutrinação; que o projeto não busca alcançar o ensinamento do valor a partir da lógica do raciocínio, mas promover suas ideias e institucionalizar a ideologia da Lei de Segurança Nacional. "Outro aspecto que o governo totalitário adotou no país, no tocante a formação da criança, foi à ênfase ao trabalho, à simplicidade da vida, à religiosidade e ao conformismo..."(MARTINS, 2011, p. 84). Vale destacar também a colaboração da mídia em propagar a ideologia da classe dominante, veiculando ideias distorcidas em função da manutenção do poder. Temos por exemplo as novelas da Rede Globo de televisão que sempre dotaram o personagem pobre com qualidades como: resignação, fé, e honestidade. Nessa encenação da realidade, o pobre é honesto e feliz, enquanto o rico é desonesto ou sofre com alguma atitude do gênero, transmitindo a imagem de uma vida conturbada, infeliz e circunscrita a pessoas de má fé. Refletindo sobre o papel de específico de cada disciplina, podemos dizer que a OSPB não foi uma disciplina equivalente à sociologia ou ao Direito Público e sim uma disciplina que tratava da relação entre estado e sociedade. Agindo em conjunto com a EMC, a OSPB tinha uma característica muito mais prescritiva que os demais conteúdos escolares, uma vez que seus princípios eram especialmente os de promover o entendimento da ordem social e do organograma estatal. E, embora seja por vezes confundida com a EMC, a OSPB caracteriza-se como uma disciplina mais racional e técnica, utilizando o tecnicismo como matriz curricular pedagógica. Essas disciplinas eram compreendidas como elementos orientadores do processo educativo. Fundamentadas nos princípios de racionalidade, gestão, eficácia e prescrição curricular, foram um dos alicerces que sustentaram o imaginário ordeiro e disciplinador do período (MARTINS, 2014). 348 Formar para a adequação, cultivar a cooperação, disciplinar o espírito e espelhar-se nas condutas foram os elementos da linha de frente desse período autoritário. Estas questões, juntamente com as revelações sobre a repressão, podem indicar algum percurso para rememorar a ditadura, permitindo ao leitor procurar nelas permanências discursivas que possam esclarecer o tempo presente, em especial o ideal prescritivo que se amplifica durante o período, com a produção volumosa de documentos orientadores de currículos. (MARTINS, 2014, p. 46) Conclusões Martins (2014) destaca que a importância de rememorar esse passado autoritário e violento está em “... evitar qualquer petrificação do presente; escrever como um modo de lutar contra as forças do esquecimento, evitando enfatizar grandes sistemas interpretativos" (MARTINS, 2014, p.44). Pois conhecendo cada vez mais os modos de operação da ditadura, evitamos que as "formas duvidosas de esquecer" ou o esquecimento gradual. Ressaltando que a importância não está somente em elucidar os registros das ações repressoras, mas também em reconhecer que no presente existem muitas pessoas que ainda sofrem as heranças do período. Outra importante consideração é a de que as análises sobre o período são geralmente polarizadas entre bem e mal, quando na verdade tais critérios são insuficientes e não atendem ao imaginário político social do momento histórico. A herança do empenho da ditadura civil-militar evidencia-se em várias práticas e discursos do ambiente escolar4. Para compreendermos melhor esse ambiente é necessário identificarmos que não apenas em razão da tradição essa herança persiste- reforçando a religião como controladora de conflitos dentro da escola - mas também em virtude do recrudescimento do fundamentalismo religioso que assistimos por parte de grupos que ignoram o pressuposto iluminista de manter a fé no âmbito privado. Podemos destacar também outras duas razões para a presença da religião cristã como mediadora de conflitos na escola: a confusão entre o público e o privado e também a parca formação do professor no que se refere á moralidade. Essa herança somada à trivialidade do termo ética e a discrepância entre o discurso e a prática, à ênfase de que vivemos em mundo “destradicionalizado” e aos 4 VAIDERGORN, José. Ensino religioso, uma herança do autoritarismo. Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 76, p. 407-411, set./dez. 2008 349 constantes questionamentos objetivos sobre comportamentos, fomentam a discussão sobre o papel da escola na formação moral e também a falta de consenso sobre como a instituição pode e deve agir. Concluímos através das análises ao longo da pesquisa que as reflexões a educação moral na escola devem estar atentas à diversidade brasileira e à pluralidade característica da sociedade individualizada; deve considerar o caráter social da moral e a intimidade do sujeito, buscando medir o valor de uma verdade em razão do seu alcance social. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Ética a Nicomâco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.(Os Pensadores). AMARAL, Daniela Patti do. Ética, moral e civismo: um difícil consenso - Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 131, p. 351-369, maio/ago. 2007 BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004 ______Modernidade líquida. 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