EDUCAÇÃO MORAL NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: UMA ANÁLISE DOS
LIVROS DIDÁTICOS
Lucas Henrique Diniz Feltrin (Graduado em História-UNESP)
[email protected]
Alonso Bezerra de Carvalho (Professor UNESP – Assis)
[email protected]
RESUMO
O objeto da pesquisa foi a escola contemporânea e seu papel na formação moral do
cidadão. Para obter uma visão mais ampla sobre a instituição, o trabalho analisou os livros
didáticos de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil (1969-1985),
no intuito identificar os valores que pretendiam inculcar e as heranças desse empenho. A
análise foi realizada a partir de métodos específicos de uma pesquisa de caráter teórico e de
análise bibliográfico-documental. Os materiais utilizados no seu desenvolvimento foram os
livros didáticos de EMC e OSPB, bem como a produção acadêmica em relação ao assunto;
obras teóricas a respeito do mundo contemporâneo e da dimensão ética e política do
ambiente escolar. Os resultados demonstraram que o objetivo das disciplinas era eliminar
qualquer pensamento crítico sobre o período ditatorial e criar uma identidade fundada nos
valores cristãos e de uma unidade nacional inexistente. Sobre a herança da experiência,
concluímos que ela oscila entre a aversão e a nostalgia, tornando ainda mais complexa a
reflexão sobre a proposta de educação moral no contexto contemporâneo que seja atenta à
diversidade brasileira e à pluralidade característica da sociedade individualizada, que
considere o caráter social da moral e a intimidade do sujeito, buscando medir o valor de uma
verdade em razão do seu alcance social.
Palavras-chave: Educação moral, contemporaneidade, ditadura civil-militar.
Introdução
A questão dos valores na escola do século XXI está marcada pelas mudanças
sociais, as inquietações e as polêmicas que surgiram desde a metade do século
passado,
entre
elas
o
desenvolvimento
tecnológico,
a
violência,
a
"destradicionalização", o consumismo e etc. Este contexto tem fomentado o debate
sobre a educação moral e o papel que a escola desenvolve nesta dimensão. É
atento a esta discussão que o trabalho busca vislumbrar, através da análise dessa
recente experiência da educação brasileira, quais são as influências do passado e
as exigências do presente que formam o cenário atual.
Métodos
O trabalho foi desenvolvido a partir de métodos específicos de uma pesquisa
de caráter teórico e de análise bibliográfico-documental. Os materiais utilizados no
338
seu desenvolvimento foram os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e de
Organização Social e Política do Brasil, bem como a produção acadêmica em
relação ao assunto; obras teóricas a respeito do mundo contemporâneo e a
dimensão ética e política do ambiente escolar.
Resultados
Para orientar nossa reflexão acerca da contemporaneidade e as principais
características que a distingue dos períodos anteriores, utilizamos as interpretações
de Zygmunt Bauman1. Na concepção do sociólogo, a liquidez é um aspecto
essencial da pós-modernidade, quando tudo se torna frágil, duvidoso, frouxo, livre e
inseguro. Para esclarecer o conceito, ele expõe exemplos de modificações da
modernidade sólida para a modernidade líquida nos quais ressalta que a
consciência pós-moderna é um despertar de um sonho colorido para uma espécie
de pesadelo; é a modificação de noção de quem estava construindo um mundo
simétrico, de poder sobre causa e efeito para um mundo líquido, sem forma - a
consciência pós-moderna é a consciência de um fracasso, do fracasso da
modernidade e de suas utopias. Diferente do homem moderno que tinha no seu
horizonte de expectativa uma visão mais clara e objetiva, o indivíduo contemporâneo
não possui uma referência clara de solução para as mazelas de seu tempo. Bauman
em A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna (2012) destaca no contexto
atual a existência de um relativismo moral, ressaltando que o homem moderno
acreditava na razão, acreditava que o mundo estava seguindo um percurso
"conhecido”, enquanto o pós-moderno não acredita em nada e tem como horizonte o
vazio, pois qualquer lado dá em algum lugar e nenhum lugar é necessariamente
melhor que o outro.
A modernidade é também caracterizada pela crença no Estado como uma
“instância produtora de justiça” que garantiria qualidade de vida e controlaria o
capitalismo. Na contemporaneidade, o Estado perde esses aspectos de poder e
segurança e diminui seu controle em função da iniciativa privada mergulhada no
1
BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004
;BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro.: Jorge Zahar Editor, 2001; BAUMAN, Zygmunt.
A vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 12.
339
"mercado livre" que, em certa medida, é a responsável por essa liquidez que toma
todas as relações. A noção de mercadoria afeta todas as esferas da vida humana,
inclusive a amorosa. As relações estão fundadas no lucro e por isso pensamos em
qualidade de relacionamento - que passou a ser um investimento, tornando a
satisfação e a dor proporcionais a ele.
“Um dilema, de fato: você reluta em cortar seus gastos, mas abomina
a perspectiva de perder ainda mais dinheiro na tentativa de recuperálos. Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um
investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro,
esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou,
esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que
aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma,
sendo-lhe devolvido – com lucro.” (BAUMAN, 2004, p. 28).
Refletindo sobre os valores democráticos, o eminente sociólogo destaca que
a democracia, tal qual concebeu Aristóteles, em muito se difere da nossa atual
concepção. Observa-se que o modelo atual de democracia, que se configura no
Estado-nação, começou a ser questionado em virtude de sua ineficiência e
inoperância, pois, esse Estado, erigido como uma “instituição produtora de justiça"
na modernidade deu lugar à iniciativa privada e perdeu esse aspecto. Além desse
fenômeno temos mais dois elementos que apontam para a falência do estadonação: a falta de sentimento de pertencimento que dá lugar a individualidade e a
configuração do mundo atual de interdependência que começa a exigir a criação de
um equivalente ao estado-nação em dimensão global - dada a proporção desta
dependência. O autor diz que as sociedades foram individualizadas e que o
sentimento de pertencimento a uma comunidade ou nação foi suprimido, ainda que
não completamente, pela individualidade. Destacando que, nesse novo período –
que não sabemos se é uma transição para outro com novos valores ou se é um
modo de vida que irá permanecer - somos coagidos a criar nossa própria identidade.
Não mais a herdamos de nossa comunidade ou nação, mas devemos criá-la, e não
só, devemos redefini-la pela constante mudança nos estilos de vida. A nossa ideia
atual de identidade consiste na noção de estilo: você é o que veste, é o local que
frequenta, é os amigos que têm, o objeto que carrega.
Jorge Renato Johann (2009) reflete sobre essa concepção na qual o ser
humano passa a ser identificado pela capacidade de consumir e destaca:
De tal maneira os ares do neoliberalismo varreram o mundo que
acabaram impregnando mentes e corações por todo o planeta. O
340
senso comum assimilou esta onda como sinônimo de riqueza, de
inteligência, de charme e de modernidade. Todo aquele que
questionasse esta nova realidade seria considerando alguém na
contramão da história. Os supremos valores deste mundo
globalizado serão o lucro, o luxo, o individualismo e o bem-estar a
qualquer preço. (JOHANN, 2009, p. 23)
Outro fenômeno que acomete a contemporaneidade e tem tomado a atenção
dos filósofos, é a relação inversamente proporcional entre a importância que se dá
ao termo ética no discurso e sua efetiva importância na prática, é "lugar comum". A
veiculação do termo sem nenhuma crítica e sua banalização pelo uso indiscriminado
se mostram como empecilhos á verdadeira e profunda reflexão de uma das linhas
de pensamento mais complexas da filosofia - a ciência que nos prescreve uma
conduta sábia e os meios de a ela conformar os nossos atos. A inflação do termo em
conjunto com a negação da moral como fundamento da sociedade e da vida política
são fenômenos resultantes da mesma experiência humana preconizada por
Nietzsche: o niilismo dos valores.
Roberto Romano (2001) aborda em seu artigo essa inflação dizendo que o
uso indiscriminado colabora para o fenômeno do niilismo dos valores que acomete a
contemporaneidade e que, no Brasil, os principais responsáveis por essa veiculação
desvinculada de críticas são a imprensa e o setor público. Ou seja, o niilismo que
permite essa veiculação indiscriminada também é alimentado por ela. O autor ainda
destaca: “O uso e o abuso dos termos ética e moral leva à corrosão dos valores e à
perda da credibilidade da palavra coletiva” e “... quem banaliza as doutrinas sobre o
bem, gera o mal"(ROMANO, 2001, p. 98)
Atento a essa contradição, Pedro Goergen (2007) analisa a relação entre a
visibilidade do debate moral e a gravidade das práticas imorais, argumentando que
os problemas não estão circunscritos entre este, aquele sujeito ou grupo, mas sim
na tradição, relacionados aos costumes e valores que constituem o nosso ethos
histórico-cultural. “As raízes da imoralidade são muito mais profundas e alcançam o
terreno comum da tradição e da cultura” (GOERGEN, 2007, p. 740). Goergen
salienta que é necessário aprofundarmos a reflexão repensando os arquétipos de
nossa cultura no que se refere aos conceitos de cidadania, democracia, justiça
social e espaço público. Para que assim compreendamos melhor "a dimensão
inversamente proporcional entre a importância que se a moral no discurso e a
341
relevância dele nas práticas" (GOERGEM, 2007, p. 742). O autor diz que embora
seja uma aventura arriscada percorrer o campo da ética e da moral, este debate se
faz mais necessário que nunca, pois a ética tornou-se uma preocupação presente
em todos os âmbitos da vida humana em razão do próprio desenvolvimento da
racionalidade moderna. O autor também salienta sobre a curiosa ambiguidade entre
o discurso ético que se dissemina e ocupa todos os espaços e sua efetiva
importância no campo prático, destacando que no centro dessa contradição se
encontra a seguinte questão: “Como a escola deve posicionar-se diante desse
contexto democrático e plural, no qual não há um consenso sobre os valores que se
pretende inserir na sociedade?”. (GOERGEN, 2005, p. 989)
Segundo Goergen (2005) há uma relação intrínseca entre ética e pedagogia há uma influência mútua entre moral (ética) e educação (pedagogia) e por isso o ser
humano precisa ser Educado para a Moralidade, considerando que, se a ética não
pode definir o sentido da vida por estar condicionada ao contexto histórico, a
pedagogia pode ser tomada como uma teoria universalmente válida e assumir as
normas
éticas
incondicionais
que
possuam
validade
independente
das
circunstâncias históricas.
A Moral Laica
Emile Durkheim (1984) no intuito de formular uma Educação laica, define a
moral como um “conjunto particular de regras que possuem valor maior do que todas
as outras coisas humanas” (DURKHEIM; 1984 p.23) e busca esboçar as diretrizes
dessa educação. Ele salienta que as regras morais precisam ter um prestígio muito
particular, uma autoridade excepcional que nos faça prostrar diante da sua vontade
e que nos imponha obediência. Portanto, a moral só se impõe através de um
elemento legítimo que a fundamente, pois não é apenas um conjunto de regras que
devemos obedecer porque foram impostas, mas sim regras interiorizadas por um
elemento superior e legítimo. “Para que pensemos em cumprir o dever, não basta
que {este} nos fale imperativamente; é necessário que os atos que nos ordena
possam comover-nos, emocionar-nos”. (DURKHEIM; 1984, p.34). Diferente de como
a costumamos conceber, o autor apresenta a moral como algo bom, como algo que
pode ser desejado e amado, dizendo que quando agimos moralmente voltamos
nosso olhar para algo que nos transcende e nos domina. Eis o motivo pelo qual em
342
todas as épocas as ideias morais foram tratadas e expressas sob formas religiosas.
É por esse lugar que a moral ocupa em nós que Durkheim vê dificuldade em
construir uma moral laica. Por ser algo que transcende a imposição de regras,
ocupando lugar também em nossos sentimentos, é que se torna complexa a
formulação de uma moral fora dos parâmetros metafísicos. Renunciando em nos
apoiar em uma potência divina, precisamos encontrar outra força que desempenhe
esse papel. Esta força é a sociedade. A sociedade, tal como a divindade, ultrapassa
infinitamente o indivíduo tanto no espaço quanto no tempo. O fato das sociedades
serem mortais não impossibilita a formulação da educação moral a partir dela, pois,
de qualquer maneira, sua existência é extremamente maior que a do indivíduo.
Educação Moral e o papel da escola
No Brasil, observamos a preocupação por parte de alguns representantes
políticos em formular e aplicar um projeto que atenda os clamores atuais. Entre os
anos de 1997 e 2006 foram apresentadas 13 proposições por congressistas no
intuito de reintroduzir no ensino uma disciplina que contemple a Ética - uma
disciplina obrigatória via currículo. A partir dessa informação, podemos concluir que
há um amplo debate sobre Ética e sua inserção no ensino, porém, o que se
apresenta ainda mais latente, é a falta de consenso sobre que cidadão exatamente
se pretende formar. Para expor este dilema temos um exemplo: O Projeto de Lei n.
4.559, de autoria do deputado Paulo Lima do PMDB de São Paulo, que foi
apresentado em 25 de abril de 2000. Segundo o autor do projeto, a inclusão da
Educação Moral e Cívica no currículo do ensino fundamental ancorada numa na
conscientização espontânea, tem como objetivo resgatar os valores imutáveis da
nação como a família, a cidadania e o amor à Pátria. Ao ressaltar que “os conflitos e
as tensões crescem a cada dia no seio das famílias e preceitos como honrarás pai e
mãe estão se tornando obsoletos”2, o autor da proposta pretende inserir novamente
na sociedade valores que são incoerentes com a realidade, pois, se pensarmos
antes de tudo em uma disciplina democrática, esses valores que o autor classifica
2
AMARAL, Daniela Patti do -Ética, moral e civismo: um difícil consenso - Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 131, p.
351-369, maio/ago. 2007
343
como permanentes e imutáveis não garantirão a liberdade e a harmonia que
vislumbramos através de uma educação moral laica.
A partir dos PCN´s, a escola foi erigida "agência privilegiada para a formação
da cidadania". Segundo as diretrizes, o tema deve ser pautado na autonomia moral
como condição á reflexão ética e sustentado por quatro eixos: respeito mútuo,
diálogo, justiça e solidariedade. Entretando, a valorização e aprofundamento do
tema na escola não correspondem, na prática, a expressão citada acima " como
agência privilegiada para a formação da cidadania". Obviamente, a escola
desenvolve esse papel social de formar moralmente, porém, por não haver um
consenso que permita uma definição clara de qual cidadão pretende-se formar, o
tema não é explorado em toda sua potencialidade. Portanto, a instituição, da
maneira como funciona atualmente, desenvolve o papel de manutenção da ordem,
pois, mesmo que não abordem explicitamente o tema ética, esse ensino que visa o
profissional em detrimento do cidadão autônomo, está também formando
moralmente seus alunos; não no sentido de criar uma sociedade mais justa ou de
formar sujeitos éticos, mas de cumprir seu papel de perpetuar a ordem vigente.
O artigo de Renato José de Oliveira3 aborda o papel da escola na formação
ética do cidadão fazendo uma comparação entre o conteúdo transmitido pela
instituição no período ditatorial e no presente. Retomando o conhecimento veiculado
no período ditatorial, ressalta que sua finalidade era eliminar os conceitos
comunistas, garantindo a ordem através dos valores nacionais e cristãos. Como o
nosso contexto sócio-político mudou e hoje não se busca mais inserir nos alunos um
pensamento oficial para denegrir a imagem do comunismo, mas de formar um
cidadão consciente dos seus direitos e deveres, o autor indaga:
que sujeito
propriamente se quer formar?
Os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do
Brasil e suas heranças
Os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e de Organização Social e
Política do Brasil do período da ditadura possuem uma proposta de formação moral
3
OLIVEIRA. RENATO J. Ética na escola: (Re) acendendo uma polêmica. Educação & Sociedade, ano XXII, no 76,
Outubro/2001 pp. 212-231
344
muito diferente da que almejamos através do ensino laico. Eles usam de algumas
teorias semelhantes e coerentes com a formação laica e libertária, porém, a moral
está fundada em dois eixos que não garantem a liberdade em toda sua amplitude.
Esses eixos são: Pátria e Cristianismo. Apesar das incoerências no conceito de
liberdade e de se fundamentar no cristianismo, a Educação Moral presente nesses
livros apoiam-se também em teorias que nos são muito caras, como a de Jean
Piaget, na análise da formação cognitiva do indivíduo e a formação da personalidade
a partir de fatores hereditários e educacionais.
Os livros defendem que essa Educação Moral não pretende incutir no
educando modelos consagrados pelo passado, impondo-lhe a tarefa de perpetuá-lo,
afirmando serem contrários a essas diretrizes castradoras. “No universo que nos é
conhecido, ele [o homem] é a única criatura portadora, dentro de si mesma, de uma
fonte original, de um “começo radical”, donde nascem decisões e atitudes: a
liberdade” (COTRIM; 1982, p.14) Todavia, não é exatamente isso que observamos
quando examinamos a proposta completa. Os livros ressaltam que o homem, ao
mesmo tempo em que é um ser livre, é essencialmente dependente; dependente
para com Deus, com a Pátria, para com os outros homens, para com os valores
morais que o solicitam e lhe impõe como um imperativo. Desta forma, sua liberdade,
é a frequente aceitação consciente dessa dependência e a submissão voluntária a
ela. A questão é que a liberdade não é garantida fora dos parâmetros nacionais e
cristãos, ou seja, ela não é garantida entre indivíduos que não compartilham dessas
ideologias. O Brasil é caracterizado por sua pluralidade cultural e não há
possibilidade de encontrarmos uma identificação exata entre as diferentes etnias
presentes em seu vasto território. Por isso, quando essa Educação Moral limita a
liberdade à estes parâmetros, ela está excluindo uma parte da população, e mais,
está procurando a homogeneização que observamos em várias teorias e didáticas
do ambiente escolar. Portanto, os livros possuem uma proposta oposta à que a
pesquisa buscou refletir, ou seja, de uma Educação Laica que abranja as
divergências, dando-lhes sentidos que fogem da uniformização e caracterizam-se
pela observação a apreensão das múltiplas realidades presentes na sala de aula.
O conteúdo da Educação Moral presentes nesses livros apresenta-se por
vezes contraditório - pensando no nosso sentido exposto acima de liberdade. Pois,
ao mesmo tempo em que diz ser o objetivo dessa Educação, equacionar esse
345
ímpeto de liberdade, imprescindível à autonomia do indivíduo e o respeito aos
semelhantes, buscando conciliar a liberdade pessoal com a responsabilidade social,
fundamenta-se nos valores cristãos e ressalta a importância deles na formação do
indivíduo. Eles exprimem que, em última instância, o objetivo é assegurar a paz
interior do indivíduo, preservando a dignidade humana e a harmonia da vida coletiva.
No entanto, não vemos possibilidade de haver harmonia com a exclusão das
diferenças. Ou seja, em suma, o objetivo dessa Educação Moral é buscar a
uniformização das ideias invés de criar uma Moral a partir delas. Os objetivos
educacionais contidos nos livros didáticos de Educação Mora e Cívica expõem mais
claramente os intuitos das disciplina analisada. Estes são: a defesa do princípio
democrático, através da preservação do espírito religioso, da dignidade da pessoa
humana e do amor á responsabilidade, sob a inspiração de Deus; a preservação, o
fortalecimento e a projeção dos valores espirituais e éticos da nacionalidade; o
fortalecimento da unidade nacional; o culto a pátria, aos seus símbolos, tradições,
instituições e aos grandes vultos de sua história (essa história oficial que recria um
passado que enaltece os opressores e diminui os oprimidos); aprimoramento do
caráter como apoio na moral; o culto da obediência à lei, da fidelidade ao trabalho e
da integração a comunidade. Todos os itens apontam a necessidade de moldar os
indivíduos em uma conduta regrada pela progressão nacional – fidelidade ao
trabalho, fortalecer valores éticos e cívicos da nacionalidade – e pela moral cristã.
O livro didático “Educação Moral e Cívica – Para uma geração consciente
(1982)” de Gilberto Cotrim, traz em um de seus capítulos o título “A necessidade da
religião”, que demonstra mais claramente a função do cristianismo na formação do
ser moral. O capítulo destaca a necessidade de promover o reencontro do homem
com Deus, dizendo que a felicidade total e perfeita só será atingida com esse
reencontro, ressaltando que as questões existenciais devem ser respondidas a partir
da teoria cristã, fomentando a ligação entre o homem e Deus. Conclui-se, assim,
que todos esses valores que compõem a Educação Moral nos livros didáticos
partem da religião predominante no sentido de garantir e fortalecer essa
preponderância.
Em suma, as disciplinas EMC e OSPB buscaram organizar o que
consideravam problemas básicos da humanidade e orientar a compreensão da:
Existência e conteúdo do Universo, Existência e essência de Deus, relações entre o
346
universo e Deus, situação do homem no universo, situação do Homem ante Deus e
relações recíprocas entre os homens. Conseguimos observar neles uma expressão
clara de quais valores buscava-se inserir ou reforçar na sociedade brasileira, como
também um grande empenho em fazê-lo. A finalidade da pesquisa é também tentar
visualizar possíveis caminhos para uma educação moral que atenda aos critérios e
valores do mundo contemporâneo. A clara definição dos valores que se pretendeu
incutir, sem dúvida, facilitou a implantação das disciplinas - também, obviamente,
por não existir nesse momento oposições. Entretanto, de tudo que observamos
nesse projeto de sociedade, o empenho em fazê-lo é o único bom exemplo que
deveríamos seguir. Uma tarefa demasiadamente difícil quando se quer fazê-la de
forma democrática, mas que se mostra urgente.
Refletindo sobre a influência do regime ditatorial em todas as esferas da vida
humana - que ainda pode ser sentida, tornando ainda mais complexa a elaboração
de uma educação moral laica na escola - Wilson Francisco Correa (2007) diz que
nesse período vigorou uma metodologia de controle fundada na repressão pela
violência e na ideologia do convencimento das consciências nacionais favorável ao
regime autoritário. Se a ditadura atingiu todas as esferas da vida humana, logo, a
prática docente, o currículo e o processo de ensino/aprendizagem também foram
incisivamente afetados. Pois, com um governo fundamento na Doutrina de
Segurança Nacional que remete ao modelo Estadunidense, a cultura foi
preocupação-chave, e, mas estritamente, a educação moral, um instrumento. Neste
projeto de sociedade fundamentado nos pressupostos da Escola Superior de Guerra
de eliminar o avanço comunista, a ação do governo civil-militar foi ainda mais
incisiva no campo educacional por ser considerado o local onde a ideologia circulava
com mais intensidade.
Segundo Correa, as disciplinas analisadas tiveram o explícito propósito de
eliminar qualquer “...problematização da realidade e para a compreensão crítica
sobre o momento histórico que a sociedade brasileira estava vivendo” (CORREIA,
2007, p. 491). A concepção do regime militar sobre educação e moral reforçou a
prática pedagógica centrada no controle dos indivíduos, inibindo o desenvolvimento
do pensamento crítico e da real situação de submissão ao governo autoritário.
"A educação moral e cívica que passaram a ensinar tinha o objetivo
claro de contribuir para a formação daquela concepção ideológica, na
347
qual se buscava legitimar o uso da força bruta como instrumento de
governo, ao largo da vontade geral do povo brasileiro e de seus
processos democráticos de exercício do poder.” (CORREIA, 2007, p.
495)
O autor conclui que a Educação Moral e Cívica foi o controle da filosofia para
inserir a filosofia do controle e teve papel preponderante na inserção de ideias
patrióticas e cívicas, colaborando para o domínio e permanência do regime.
Maria Ângela Martins (2011) salienta que nesse empenho do governo militar
ao criar a EMC não há a utilização do método hipotético dedutivo ou o dedutivo, mas
o indutivo que visa levar o aluno a "verdades" que podem ser interpretadas como
doutrinação; que o projeto não busca alcançar o ensinamento do valor a partir da
lógica do raciocínio, mas promover suas ideias e institucionalizar a ideologia da Lei
de Segurança Nacional. "Outro aspecto que o governo totalitário adotou no país, no
tocante a formação da criança, foi à ênfase ao trabalho, à simplicidade da vida, à
religiosidade e ao conformismo..."(MARTINS, 2011, p. 84). Vale destacar também a
colaboração da mídia em propagar a ideologia da classe dominante, veiculando
ideias distorcidas em função da manutenção do poder. Temos por exemplo as
novelas da Rede Globo de televisão que sempre dotaram o personagem pobre com
qualidades como: resignação, fé, e honestidade. Nessa encenação da realidade, o
pobre é honesto e feliz, enquanto o rico é desonesto ou sofre com alguma atitude do
gênero, transmitindo a imagem de uma vida conturbada, infeliz e circunscrita a
pessoas de má fé.
Refletindo sobre o papel de específico de cada disciplina, podemos dizer que
a OSPB não foi uma disciplina equivalente à sociologia ou ao Direito Público e sim
uma disciplina que tratava da relação entre estado e sociedade. Agindo em conjunto
com a EMC, a OSPB tinha uma característica muito mais prescritiva que os demais
conteúdos escolares, uma vez que seus princípios eram especialmente os de
promover o entendimento da ordem social e do organograma estatal. E, embora seja
por vezes confundida com a EMC, a OSPB caracteriza-se como uma disciplina mais
racional e técnica, utilizando o tecnicismo como matriz curricular pedagógica. Essas
disciplinas eram compreendidas como elementos orientadores do processo
educativo. Fundamentadas nos princípios de racionalidade, gestão, eficácia e
prescrição curricular, foram um dos alicerces que sustentaram o imaginário ordeiro e
disciplinador do período (MARTINS, 2014).
348
Formar para a adequação, cultivar a cooperação, disciplinar o
espírito e espelhar-se nas condutas foram os elementos da linha de
frente desse período autoritário. Estas questões, juntamente com as
revelações sobre a repressão, podem indicar algum percurso para
rememorar a ditadura, permitindo ao leitor procurar nelas
permanências discursivas que possam esclarecer o tempo presente,
em especial o ideal prescritivo que se amplifica durante o período,
com a produção volumosa de documentos orientadores de
currículos. (MARTINS, 2014, p. 46)
Conclusões
Martins (2014) destaca que a importância de rememorar esse passado
autoritário e violento está em “... evitar qualquer petrificação do presente; escrever
como um modo de lutar contra as forças do esquecimento, evitando enfatizar
grandes sistemas interpretativos" (MARTINS, 2014, p.44). Pois conhecendo cada
vez mais os modos de operação da ditadura, evitamos que as "formas duvidosas de
esquecer" ou o esquecimento gradual. Ressaltando que a importância não está
somente em elucidar os registros das ações repressoras, mas também em
reconhecer que no presente existem muitas pessoas que ainda sofrem as heranças
do período. Outra importante consideração é a de que as análises sobre o período
são geralmente polarizadas entre bem e mal, quando na verdade tais critérios são
insuficientes e não atendem ao imaginário político social do momento histórico.
A herança do empenho da ditadura civil-militar evidencia-se em várias
práticas e discursos do ambiente escolar4. Para compreendermos melhor esse
ambiente é necessário identificarmos que não apenas em razão da tradição essa
herança persiste- reforçando a religião como controladora de conflitos dentro da
escola - mas também em virtude do recrudescimento do fundamentalismo religioso
que assistimos por parte de grupos que ignoram o pressuposto iluminista de manter
a fé no âmbito privado. Podemos destacar também outras duas razões para a
presença da religião cristã como mediadora de conflitos na escola: a confusão entre
o público e o privado e também a parca formação do professor no que se refere á
moralidade.
Essa herança somada à trivialidade do termo ética e a discrepância entre o
discurso e a prática, à ênfase de que vivemos em mundo “destradicionalizado” e aos
4
VAIDERGORN, José. Ensino religioso, uma herança do autoritarismo. Cad. Cedes, Campinas, vol. 28, n. 76, p.
407-411, set./dez. 2008
349
constantes
questionamentos
objetivos
sobre
comportamentos,
fomentam
a
discussão sobre o papel da escola na formação moral e também a falta de consenso
sobre como a instituição pode e deve agir.
Concluímos através das análises ao longo da pesquisa que as reflexões a
educação moral na escola devem estar atentas à diversidade brasileira e à
pluralidade característica da sociedade individualizada; deve considerar o caráter
social da moral e a intimidade do sujeito, buscando medir o valor de uma verdade
em razão do seu alcance social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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