O MANDADO DE SEGURANÇA NA DISCIPLINA DA LEI 12.016, DE 07 DE AGOSTO DE 2009 Luiz Rodrigues Wambier Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos Sumário: 1 - Introdução; 2 - Mandado de segurança: natureza, função e objeto da ação; 3 - O mandado de segurança na disciplina da Lei 12.016/2009; 4 - A regulamentação do mandado de segurança coletivo; 5 - Conclusão; 6 Bibliografia. 1 - INTRODUÇÃO Os Poderes estatais, independentes e harmônicos, têm como primeira finalidade, na realização de seus ideais, o alcance de padrões de vida na sociedade que concretamente garantam a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)1. Nesse contexto, devem dar rendimento aos direitos individuais e coletivos constitucionalmente assegurados. O ser humano deve estar acima de quaisquer outros interesses do Estado, inclusive dos interesses de Governo. Forçoso reconhecer, assim, que havendo falha ou lacuna no cumprimento de uma das funções estatais, outra função deverá ser 1 A Constituição Federal prevê ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado brasileiro. Veja-se o que dispõe seu art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; (...)”. A respeito da extensão do princípio da dignidade da pessoa humana, é de se registrar que se trata “de base axiológica (e lógica) de toda a construção normativa do Estado brasileiro. Não há Estado sem esse fundamento, consistente na consideração, pela lei, por seus intérpretes e aplicadores, de que o ser humano é dotado de especial atributo a ser garantido pelo Estado (isto é, pelos poderes do Estado), que é a sua dignidade” (Wambier, Luiz Rodrigues; Wambier, Teresa Arruda Alvim. O fundamento constitucional da dignidade humana e a conduta da jurisprudência na escolha de critérios para a fixação do valor das indenizações, em algumas hipóteses especiais de dano contra a saúde. In: Martins, Ives Gandra; Rezek, Francisco (Coords.). Constituição Federal – avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 2008, p.223). 1 desempenhada (normalmente a jurisdicional), pronta a restaurar o direito violado e a assegurar à sociedade a efetiva realização dos direitos fundamentais. Sob essa óptica, a divisão de funções do Poder pode ser entendida, também, como verdadeiro limite ao exercício do Poder estatal, impedindo que eventuais abusos possam resultar num regime autoritário. Teresa Arruda Alvim Wambier2 afirma ser o mandado de segurança um dos “instrumentos” de que dispõe o particular para “conter” o Poder estatal, cuja função é “reconduzir aos limites da legalidade os atos das autoridades públicas num Estado de Direito”. Enfatiza a autora citada que “a existência de figuras como o mandado de segurança, no sistema positivo, é praticamente condição de funcionamento do Estado de Direito”. É nesse contexto que pretendemos analisar alguns aspectos do mandado de segurança, descrevendo os principais regramentos da Lei 12.016, de 07 de agosto de 2009 (que regula o processo do mandado de segurança) - contrastando-os, quando oportuno, com a disciplina da Lei 1.533/1951, por aquela revogada -, sem nos afastar das disposições constitucionais que o conceberam. 2 - Mandado de Segurança: Natureza, Função e Objeto da Ação A Constituição Federal estabelece, no art. 5º, LXIX: “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”. Na definição de Hely Lopes Meirelles, o mandado de segurança “é o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou 2 Ainda sobre a recorribilidade da liminar em mandado de segurança. In: Bueno, Cássio Scarpinella; Alvim, Eduardo Arruda; Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais do mandado de segurança – 51 anos depois. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.787-788. 2 habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”3. O instrumento de que ora se trata é, portanto, uma ação de natureza constitucional. Precisamente por isso, Sérgio Ferraz enfatiza que “hão de ser mínimos os impedimentos e empecilhos à sua utilização”4. É oportuno observar, também, que o mandado de segurança confere ao titular do direito a prestação in natura, não comportando a substituição da prestação devida. Precisamente nesse sentido é a lição de José de Castro Nunes, que enfatiza: “O direito é assegurado, no seu exercício, e não pela forma indireta da equivalência econômica, princípio pelo qual se define o ressarcimento da inexecução da obrigação, scilicet violação da lei. O ato violador é removido como obstáculo para que se restabeleça a situação jurídica preexistente, e não apenas anulado com os efeitos reparatórios conhecidos”5. Quanto à natureza jurídica do remédio constitucional, não há unanimidade na doutrina. Segundo Othon Sidou6, o mandado de segurança é uma ação interdital, e sua decisão tem natureza constitutiva. Explica o autor que, sendo a ordem mera decorrência do direito constituído, a decisão do mandado de segurança não se caracterizaria como mandamental. Já para André Ramos Tavares7 - com quem concordamos -, a natureza jurídica da ação é mandamental, assim como a da decisão nela proferida. O autor fundamenta esse entendimento no fato de se tratar a decisão que concede a segurança de “uma ordem corretiva (mandado de segurança repressivo) ou impeditiva (mandado de segurança preventivo) dirigida à autoridade coatora que esteja praticando a ilegalidade ou o abuso de poder”. 3 Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, habeas data. 17.ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p.17-18. 4 Mandado de segurança (individual e coletivo): aspectos polêmicos. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p.10. 5 Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do Poder Público. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.38. 6 Habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, ação popular: as garantias ativas dos direitos coletivos. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.235. 7 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p.621 e 641 3 A propósito, o mandado de segurança é denominado “repressivo” quando tem em vista ilegalidade8 ou abuso de poder que já tenham sido cometidos, e “preventivo” quando tem por objeto alguma ameaça a direito (CF, art. 5º, inciso LXIX combinado com o XXXV)9. Poderá, ainda, ser coletivo, já que a Constituição Federal, ao se referir a direito líquido e certo, não prevê que deva ser necessariamente individual e, além disso, dispõe expressamente sobre o mandado de segurança coletivo no inciso LXX do art. 5º10. O prazo para a impetração do mandado de segurança continua sendo de 120 (cento e vinte) dias, “contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado”. Manteve-se, assim, na Lei 12.016/2009 (art. 23), a previsão da Lei 1.533/1951 (art. 18). A esse respeito, ainda ao tempo da antiga disciplina e enfatizando a amplitude constitucional do instituto, Othon Sidou esclarece que, não sendo possível fixar o dies a quo, “será injurídico aplicar a regra extintiva”11. No tocante ao objeto da ação, podem ser atos do Estado, genericamente considerado, embora mais frequentemente sejam atos da administração. Podem ser impugnados tanto atos comissivos quanto omissivos, desde que de autoria de autoridade pública ou de pessoa no exercício de função pública12. 8 Evidentemente, o termo “ilegalidade” deve ser entendido em sentido amplo, para abranger também a inconstitucionalidade. 9 Cite-se, por oportuno, decisão do Superior Tribunal de Justiça, em que se considerou inaplicável o prazo decadencial de 120 dias em mandado de segurança preventivo: “O mandado de segurança que objetiva impedir eventual imposição de multa decorrente da aplicação da Lei Municipal nº 159/98, que proibiu a utilização dos herbicidas 2.4-D, a toda evidência, revela feição eminentemente preventiva, posto que não se volta contra lesão de direito já concretizada, razão pela qual não se aplica o prazo decadencial de 120 dias previsto no artigo 18 da Lei 1.533/51” (AgRg no REsp 767.957/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 14.03.2006, DJ 04.05.2006). 10 CF, art. 5º, LXX: “o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados”. 11 Obra citada, p.151. 12 Citem-se, exemplificativamente, decisões do Superior Tribunal de Justiça em que se evidencia a competência da Justiça Federal para processar e julgar mandados de segurança contra atos de particular, no exercício de função pública: “No que se refere a mandado de segurança, compete à Justiça Federal processá-lo e julgá-lo quando a autoridade apontada como coatora for autoridade federal, considerando-se como tal também o agente de entidade particular investido de delegação pela União” [na hipótese, concessionária de serviço público de telefonia] (AgRg no Conflito de Competência 52351/PB, 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 09.11.2005, DJ 28.11.2005); “A competência da Justiça Federal para processar e julgar mandado de segurança impetrado contra ato de dirigente de instituição particular de ensino consistente no indeferimento de renovação de matrícula de aluno inadimplente é absoluta” (REsp 883.497/GO, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 04.11.2008, DJ 01.12.2008); “Esta é a jurisprudência firmada no Superior Tribunal de Justiça. Com 4 Qualquer que seja o ato impugnado através de mandado de segurança, deve ser tal ato lesivo a direito líquido e certo. Esta é, segundo Sérgio Ferraz, especial condição da ação13. Para o autor citado, direito líquido é aquele que “se apresenta com alto grau, em tese, de probabilidade”; e direito certo é o que se configura de plano, sempre documentalmente, “sem recurso a dilações probatórias”14. Segundo Celso Barbi, esses conceitos são tipicamente processuais, e só serão atribuíveis liquidez e certeza ao direito “se os fatos em que se fundar puderem ser provados de forma incontestável, certa, no processo”15. André Ramos Tavares, por sua vez, sustenta que a expressão “direito líquido e certo” não se refere ao direito, tampouco ao enquadramento deste ao fato. É o fato que, para ele, deve “apresentar-se líquido e certo”16. Como se vê, alguns doutrinadores defendem que o direito será sempre líquido e certo, e que incertos poderão ser os fatos. Nasceria, assim, o direito de impetrar mandado de segurança quando houver certeza quanto ao direito e quanto aos fatos17. Outros entendem que fato e direito são indissociáveis. Essa era a posição de Alfredo Buzaid, para quem a relação de incidência se dá precisamente entre o fato e a lei, ou seja, há um entrelaçamento da norma e do fato que a ela diz respeito. Também para este autor, o que caracteriza o direito líquido e certo é a sua “incontestabilidade”18. Ainda que não haja unanimidade na doutrina quanto ao significado dessa locução, é indiscutível que, para que seja admitida a ação constitucional, o autor efeito, ‘compete à Justiça Federal processar e julgar mandado de segurança quando a autoridade apontada como coatora for autoridade federal (CF, art. 109, VIII), considerando-se como tal também o agente de entidade particular investido de delegação pela União (situação do dirigente de entidade de ensino superior). Nesse último caso, entende-se que é logicamente inconcebível hipótese de competência estadual, já que, de duas uma: ou o ato é de autoridade (caso em que se tratará de autoridade federal delegada, sujeita à competência federal), ou o ato é de particular, e não ato de autoridade (caso em que o mandado de segurança será incabível), e só quem pode decidir a respeito é o juiz federal (Súmula 60/TFR)’” (AgRg no Conflito de Competência 80270/PA, 1ª Seção, Relª Min. Denise Arruda, j. 25.03.2009, DJ 04.05.2009). 13 Obra citada, p.12. 14 Obra citada, p.19. 15 Do mandado de segurança. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.85. 16 Obra citada, p.623. 17 Nesse sentido: Meirelles, Hely Lopes. Problemas do mandado de segurança. RDA 73/40, nota 4. 18 Do mandado de segurança individual. São Paulo: Saraiva, 1989, v.1, p.89. 5 deve demonstrar que tem direito “líquido e certo”. A esse respeito, Teresa Arruda Alvim Wambier faz interessante afirmação. Dizendo não concordar inteiramente com a posição de Alfredo Buzaid (quanto à incontestabilidade do direito invocado), a autora afirma que a referida expressão tem sentidos diferentes quando diz respeito ao juízo de mérito e ao juízo de admissibilidade. No juízo de admissibilidade, significa “direito (incidência do direito = fato + norma) provável de plano, documentalmente”; no juízo de mérito, deve-se constatar que “o direito é de fato incontestável, insuscetível de dúvida”. Com absoluta propriedade, ensina que, se assim não fosse, haveria “sobreposição intolerável” entre o juízo de admissibilidade e o juízo de mérito no mandado de segurança19. 3 - O Mandado de Segurança na Disciplina da Lei 12.016/2009 A Lei 1.533/51 já estabelecia algumas restrições quanto ao ato atacável pelo remédio constitucional. Muitas delas foram mantidas pela nova lei, podendo-se dizer que não houve propriamente um avanço da nova disciplina, nesse aspecto. No inciso I do art. 5º, a Lei 12.016/09 - que promoveu alteração meramente gramatical no dispositivo da lei revogada - dispõe que não caberá mandado de segurança quanto se tratar “de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução”. Essa exigência de exaurimento das vias administrativas é, sem dúvida, inconstitucional, pois viola o princípio da inafastabilidade do controle da jurisdição. Sob essa óptica, o Supremo Tribunal Federal, ainda ao tempo da lei revogada, reconheceu ser cabível o mandado de segurança a despeito da existência de recurso administrativo de efeito suspensivo, e editou a Súmula 429, que enuncia: “A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do mandado de segurança contra omissão da autoridade”. Parece-nos, portanto, que o legislador deixou de incorporar, na nova disciplina do mandado de segurança, importantes consolidações doutrinárias e jurisprudenciais. 19 Ainda sobre a recorribilidade... Obra citada, p.791-792. 6 No inciso II do art. 5º, a Lei 12.016/09 desautoriza a impetração do mandado de segurança em face de “decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo”. Na disciplina da lei revogada, a vedação era em relação a despacho ou decisão quando houvesse recurso previsto na legislação processual. A alteração, em verdade, traz à tona discussão que parecia ter sido sedimentada na doutrina e na jurisprudência, qual seja a desnecessidade de se condicionar a existência de efeito suspensivo ao recurso para inadmitir-se o mandado de segurança contra a decisão impugnada. Mencione-se, nesse sentido, o enunciado da Súmula 267 do Supremo Tribunal Federal: “Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição”. De todo modo, pensamos que, a despeito do novo dispositivo legal, continuará a prevalecer o entendimento de que o mandado de segurança não é, efetivamente, sucedâneo de recurso, e que deverá ser inadmitida a ação constitucional contra ato judicial de que caiba recurso ou outro meio de impugnação. Acertou o legislador ao suprimir a restrição contida no art. 5º, inciso III, da Lei 1.533/51, que era flagrantemente inconstitucional. Tratava-se do não cabimento de mandado de segurança em caso de “ato disciplinar, salvo quando praticado por autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial”. É inegável que os atos disciplinares - tais como a suspensão do exercício da função ou a destituição do cargo - são capazes de gerar graves consequências. Além disso, a Constituição Federal não exclui os atos disciplinares da incidência do mandado de segurança, como o faz em relação ao habeas corpus, ao dispor no § 2º do art. 142: “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”20. Em nosso sentir, sobretudo diante da alteração legislativa, deve-se permitir o controle dos atos disciplinares pelo mandado de segurança, respeitando-se os limites impostos pelas normas constitucionais e desde que não se interfira no exercício do poder discricionário, assegurando-se ao agente administrativo a análise da oportunidade e conveniência para a prática do ato. 20 Afirmando ser inconstitucional a restrição do dispositivo revogado, André Ramos Tavares pondera: “Não colhe validade o argumento de que o dispositivo visa apenas a preservar a separação entre os poderes. Ainda no campo chamado de discricionariedade administrativa é conferido ao Judiciário poder de imiscuir-se para acercar-se de que ocorra sua legítima utilização” (obra citada, p.627-628). 7 A Lei 12.016/09 trouxe novo inciso III no art. 5º, em que trata das restrições ao cabimento do writ, prevendo a inadmissibilidade do mandado de segurança em face de “decisão judicial transitada em julgado”. Em verdade, repetiu o legislador o teor da Súmula 268 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “não cabe mandado de segurança contra decisão judicial transitada em julgado”. Efetivamente, assim como o mandado de segurança não pode ser considerado sucedâneo de recurso, não poderá sê-lo em relação a qualquer meio de impugnação a decisões judiciais, como, por exemplo, a ação rescisória. É interessante, a esse respeito, a posição de Sidney Palharini Júnior, que sustenta o cabimento do mandado de segurança nos juizados especiais cíveis, “para suprir a deficiência pela inadmissibilidade da ação rescisória, se a sentença ferir direito líquido e certo, que pudesse albergar-se numa das hipóteses do art. 485 do CPC”21. Ainda no tocante às limitações para a utilização do mandado de segurança, é oportuno observar que seu cabimento é residual, pois tem como objeto direito não amparado por habeas corpus ou habeas data (Lei 12.016/09, art. 1º). Estão excluídos de sua incidência, portanto, os atos que violem a liberdade de locomoção e a tutela de dados pessoais, impugnáveis através de habeas corpus e habeas data, respectivamente. Em muitos aspectos a Lei 12.016/09 não se constitui, propriamente, num avanço. Como dissemos linhas acima, nem todas as consolidações doutrinárias e jurisprudenciais foram incorporadas no novo diploma legal. Assim é que se mantiveram, na nova lei, as previsões de suspensão da segurança (art. 15, §§ 1º a 5º), praticamente nos mesmos termos da legislação hoje revogada. Preocupa-nos a manutenção do instituto, que, inegavelmente, desprestigia as decisões dos juízes de 1º e 2º graus22. 21 Cruz, Luana Pedrosa de Figueiredo; Cerqueira, Luís Otávio Sequeira de; Gomes Junior, Luiz Manoel; Favreto, Rogério; Palharini Júnior, Sidney. Comentários à nova lei do mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.65. 22 Nesse sentido a posição de Luís Otávio Sequeira de Cerqueira, na obra Comentários à nova lei do mandado de segurança. Obra citada, p.128. 8 Outro aspecto que nos parece negativo, na nova disciplina legal do mandado de segurança, é o que diz respeito à proibição de concessão de liminares. No art. 7º, § 2º, estabelece a nova lei que “não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza”. Parece-nos que tais restrições à concessão de liminares enfraquece sobremaneira a possibilidade - constitucionalmente prevista - de controle, pelo Judiciário, dos atos administrativos23. Não seria exagero dizer, ante a finalidade da ação constitucional, que não se pode conceber o mandado de segurança sem a liminar. A imperiosa necessidade de se reconduzir à legalidade o ato da autoridade pública, violador de direito líquido e certo, leva a concluir que são inconstitucionais quaisquer restrições à concessão da medida liminar. Efetivamente, é da própria estrutura do mandado de segurança a concessão de liminar. Pode-se dizer, também, que a possibilidade de se conceder liminarmente a segurança tem estreita ligação com a natureza jurídica da ação, cujo objetivo é proporcionar a garantia in natura, e não a reparação pecuniária. Sob essa óptica, Cassio Scarpinella Bueno afirma que o impetrante tem “direito subjetivo público” à liminar. Segundo o autor citado, a interpretação doutrinária e jurisprudencial ao art. 5º, XXXV, da Constituição Federal torna a “proteção liminar” ínsita ao princípio do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). E, especificamente sobre o mandado de segurança, evidencia: “Sua própria previsão em berço constitucional (art. 5º, incisos LXIX e LXX), per se, já indica a possibilidade de liminar para proteção in natura do bem questionado pelo Estado (ou por quem lhe faça as vezes), 23 Como já sustentou um dos autores deste trabalho, a restrição à concessão de liminares viola o princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional. O autor afirma que se deve conferir operatividade ao princípio e indaga: “para que serve o princípio constitucional, se buscar a Jurisdição nem sempre significa obter resultado eficaz?” (Wambier, Luiz Rodrigues. Liminares: alguns aspectos polêmicos. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Repertório de jurisprudência e doutrina sobre liminares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.152-185. 9 constitucionalizando-se, destarte, o direito subjetivo público do impetrante à obtenção da liminar quando comprovados seus pressupostos específicos”24. O art. 7º da Lei 12.016/09 dispõe que o juiz ordenará, ao despachar a petição inicial do mandado de segurança, a suspensão do ato que deu motivo ao pedido quando “houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida” (inciso III, 1ª parte). Estão expressamente previstos, então, na nova Lei do Mandado de Segurança (nos mesmos moldes da disciplina anterior), os pressupostos para a concessão da medida liminar. São eles, nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier25: “Da relevância dos motivos em que se baseia o pedido; e da possibilidade de ocorrência de lesão irreparável ao direito do impetrante”. A autora citada explica que o primeiro desses pressupostos não corresponde ao fumus boni iuris, tal como se exige para a concessão das medidas de natureza cautelar, porque a aparência do bom direito é exigível para a própria impetração do mandado de segurança. E para que se possa lançar mão da ação constitucional, o direito líquido e certo deve ser demonstrável de plano, através de prova documental. Logo, quando o juiz constata a relevância dos fundamentos do pedido, ainda que em exame superficial, verifica que há mais do que mera plausibilidade. O segundo pressuposto, no entanto, é precisamente o periculum in mora. É o fundado receio de que, se não for imediatamente concedida a medida pleiteada, danos irreparáveis possam ser causados ao impetrante. Pode-se dizer que, não raro, a concessão da segurança de quase nada adianta ao impetrante se não for deferida liminarmente a medida. Por esses fundamentos é que acreditamos ser inconstitucional o art. 7º, § 2º, da nova lei, que pura e simplesmente, sem qualquer ressalva, proíbe a concessão da liminar em mandado de segurança, violando flagrantemente o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV) e o próprio devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV) inerente à ação constitucional.26 24 Liminar no mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 76-77. Ainda sobre a recorribilidade... Obra citada, p. 792-793. 26 Citem-se recentíssimas decisões em que se concederam liminares, considerando-se inconstitucional o dispositivo legal em questão: decisão proferida pelo Juízo da 8ª Vara Federal de Brasília, que liberou insumos utilizados para a fabricação de incensos, que haviam sido apreendidos pela alfândega; decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal de Novo Hamburgo/RS, que permitiu 2525 10 Ainda sobre a concessão de liminares, entendemos questionável a disposição da nova lei (art. 7º, III, 2ª parte) que faculta ao juiz condicionar a concessão da liminar à prestação de caução, fiança ou depósito, “com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica”. Ainda que, em casos excepcionais, tal exigência possa ser justificável, há o risco de que a previsão legal venha a transformar a prestação de caução em mais um requisito para a concessão da liminar, comprometendo-se o acesso à justiça. Evidentemente, a prestação de caução não deve ser banalizada e caberá ao juiz fundamentar sua decisão no sentido de exigi-la. Não se pode deixar de ressaltar que, a despeito de alguns pontos questionáveis e mesmo criticáveis, a Lei 12.016/09 contém aspectos positivos - entre eles a possibilidade de se impetrar mandado de segurança por meio eletrônico (art. 4º) - e muitas de suas disposições constituem, verdadeiramente, inovações importantes em nosso sistema processual. Citem-se, entre os méritos da nova lei, o fim da polêmica sobre a recorribilidade da liminar em mandado de segurança e a regulamentação do mandado de segurança coletivo. Sobre ser ou não recorrível a decisão liminar em mandado de segurança, pode-se dizer que a controvérsia foi mantida até a edição da Lei 12.016/09, que finalmente pacificou a questão, ao dispor no § 1º do art. 7º: “Da decisão do juiz de primeiro grau que conceder ou denegar a liminar caberá agravo de instrumento, observado o disposto na Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil”. Na mesma linha, em relação aos mandados de segurança de competência originária dos tribunais, assim dispôs a nova lei: “Da decisão do relator que conceder ou denegar a medida liminar caberá agravo ao órgão competente do tribunal que a integre” (Lei 12.016/09, art. 16, parágrafo único). Antes da edição da nova lei, como dissemos, talvez em razão da ausência de previsão legal expressa sobre o conteúdo das decisões interlocutórias, havia quem a entrada de equipamentos importados pela PUCRS, direcionados à pesquisa (Aguiar, Adriana. Jornal Valor, p. E2, 2 set. 2009). 11 sustentasse ser irrecorrível o pronunciamento em questão, considerando-o simples despacho27. É oportuno lembrar que, a partir da inclusão do § 4º ao art. 162 do CPC pela Lei 8.952/94, tem-se entendido conveniente distinguir, entre os atos antes designados de despachos (proferidos exclusivamente pelo juiz), aqueles que realmente são “de mero expediente”, sem qualquer conteúdo decisório, e os que possuem cunho decisório, sem, contudo, chegar a ser uma decisão interlocutória. O reflexo dessa distinção, na esfera recursal, se resume no seguinte: nos casos em que o juiz revê o ato do serventuário, se estará diante de um ato do juiz, que, como tal, é recorrível. Além disso, os despachos que têm, efetivamente, cunho decisório (ainda que mínimo) são recorríveis na medida em que podem gerar prejuízo. Tais conclusões já seriam suficientes para se considerar recorrível o pronunciamento judicial que concede ou não a liminar em mandado de segurança, ainda que se entendesse esse pronunciamento como um simples despacho. Afinal, é indiscutível que pode gerar prejuízo às partes: se a liminar for concedida, será imposto desde logo um determinado comportamento à autoridade apontada como coatora; e se for denegada, o impetrante continuará a sofrer, até a decisão final, ameaça ou lesão ao direito que afirma ter. Mas o que não se pode perder de vista é que, ao verificar a presença ou não dos pressupostos para a concessão da medida liminar, o juiz - repita-se - efetivamente decide28. E é essa circunstância que faz do respectivo pronunciamento uma decisão interlocutória. O que distingue essas decisões dos demais pronunciamentos judiciais é precisamente a natureza decisória - de seu conteúdo, por mais variado que este possa ser. Para alguns doutrinadores, a irrecorribilidade do pronunciamento através do qual o juiz defere ou não o pedido de liminar decorreria da incompatibilidade da lei geral (Código de Processo Civil de 1973) com a lei especial que lhe é anterior (Lei 1.533/51). É que a lei geral não teria o condão de ab-rogar a especial (que jamais previu o manejo do agravo contra as decisões interlocutórias) que com ela 27 Nesse sentido: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança e ação popular. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 1983, p.48. 28 Nesse sentido a conclusão de José Horácio Cintra Gonçalves Pereira: “Não se pode entender como sendo de outra natureza – que não a de interlocutória – a decisão que concede ou nega providência liminarmente requerida em sede de mandado de segurança” (Agravo no direito brasileiro. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p.30). 12 coexiste29. Outro argumento para sustentar a irrecorribilidade da decisão interlocutória em mandado de segurança é a suposta incompatibilidade entre a celeridade do rito previsto para o mandado de segurança e o sistema recursal do Código de Processo Civil. Essas conclusões, no entanto, são hoje insustentáveis. Não há qualquer incompatibilidade entre o procedimento do mandado de segurança e a sistemática do agravo de instrumento (CPC, art. 522)50. Pelo contrário; se a concessão de liminar é da própria natureza do mandado de segurança, é constitucionalmente assegurado à parte o direito de recorrer da decisão denegatória da medida. Seria inconcebível imaginar que o impetrante teria direito à obtenção da liminar somente se concedida pelo juiz de 1º grau. Acerca dessa questão, Eduardo Arruda Alvim faz interessante observação: “Não admitir que da decisão denegatória da liminar se possa interpor agravo de instrumento significa concluir que o tribunal pode menos do que o juiz de 1º grau, porque, quando a apelação chegar ao tribunal, a situação de dano irreversível ou de difícil reparação já se terá, provavelmente, consumado”301. Havia, ainda, para defender a irrecorribilidade da liminar em mandado de segurança, o seguinte argumento: a concessão de liminar seria ato discricionário, optando o juiz por deferir ou não a medida pleiteada a partir de critérios subjetivos. Mas, em verdade, constatada a existência de seus pressupostos específicos, o juiz deverá concedê-la, não existindo arbítrio ou mesmo discricionariedade propriamente dita nessa decisão. Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier, na discricionariedade 29 Nesse sentido, sobre a irrecorribilidade das interlocutórias em mandado de segurança, ao tempo da Lei 1.533/51, sustentou Araken de Assis: “(...) ela se harmoniza ao critério geral de incompatibilidade entre as disposições da lei nova e geral com o sistema consagrado em lei especial e anterior, impedindo a ab-rogação desta. Em síntese, subsistem em vigor as restrições à recorribilidade plena das interlocutórias proferidas em mandado de segurança, que governavam o remédio ao tempo do Código de 1939” (Recorribilidade das interlocutórias no mandado de segurança. RePro 84/99, p.106108). 30 Cite-se, mais uma vez, a conclusão de José Horácio Cintra Gonçalves Pereira: “O sistema recursal do Código se aplica, evidentemente, embora de forma supletiva, às leis esparsas que regulam aspectos processuais dos institutos de que cuidam. Portanto, embora não se refira expressamente na Lei 1.533/51 a que esta decisão, através da qual o juiz defere ou não o pedido de liminar, seja agravável, aplica-se indubitavelmente o art. 522 do Código de Processo Civil” (obra citada, p. 29). No mesmo sentido sustentam Acácio Cambi e Eduardo Cambi: “Se a Lei 1.533/51 não prevê nem faz remissão a todos os recursos cabíveis, isso não significa que o CPC não possa vir a ser aplicado subsidiariamente” (Cabimento do agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias em mandado de segurança. In: Nery Júnior, Nelson; Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos a atuais dos recursos cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.15. (4ª Série)). 13 propriamente dita, verifica-se a intenção deliberada constante da lei de propiciar dualidade ou pluralidade de soluções, devendo a solução eleita ser motivada, a fim de demonstrar que não houve ilegalidade no exercício do poder, pela autoridade pública. Em contrapartida, há situações em que se exige dos juízes, especificamente, uma “maior intensidade de valoração” na aplicação das normas, as quais comportam uma única interpretação, no sentido de abranger ou não num dado momento e num dado lugar uma determinada hipótese31. Efetivamente, ao interpretar conceitos como “fundamento relevante” (Lei 12.016/09, art. 7º, III) e fundado receio de dano, em face do caso singular, o juiz não está exercendo poder discricionário. Partindo-se dessas premissas, a concessão de liminares, desde que presentes os seus pressupostos, é - como afirma Betina Rizzato Lara - “um imperativo para o juiz”32. No mesmo sentido, especificamente sobre a liminar em mandado de segurança, André Ramos Tavares afirma que, “presentes os requisitos para concedê-la, será abusiva a decisão do magistrado que não concedê-la, sem maiores motivos”33. Como visto, são inconsistentes os argumentos sobre a irrecorribilidade da liminar em mandado de segurança, não havendo como afastar a possibilidade de se interpor recurso contra a decisão que concede ou não a medida. Andou bem o legislador, portanto, ao admitir expressamente, com a nova disciplina, o cabimento de agravo de instrumento em face da decisão do juiz de 1º grau, e de agravo interno em face da decisão do relator, nos casos de competência originária dos tribunais. A propósito, a regra do art. 16, parágrafo único, da Lei 12.016/09 esvaziou o conteúdo da Súmula 622 do Supremo Tribunal Federal, que manifestava o seguinte entendimento: “Não cabe agravo regimental contra decisão do relator que concede ou indefere liminar em mandado de segurança”34. 31 O novo regime do agravo. 2.ed. São Paulo: RT, 1996, p.382. No mesmo sentido: Alvim, Arruda. A arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p.16. 32 Liminares no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.181 33 Obra citada, p.640. 34 A resistência de parte da doutrina e mesmo da jurisprudência gerava dúvida objetiva quanto à possibilidade de se interpor agravo de instrumento em face da decisão liminar, levando a parte a impetrar outro mandado de segurança para impugnar o pronunciamento judicial causador de ilegalidade ou de abuso de poder. Precisamente por isso um dos autores deste texto já defendeu a incidência, na hipótese, do princípio da fungibilidade para que, determinando-se que se fizessem as alterações formais necessárias (na hipótese de o órgão julgador entender essencial a “conversão” de um mecanismo em outro, para a incidência do princípio), fosse recebido eventual mandado de segurança como agravo de instrumento (e vice-versa, nos Tribunais em que se entende ser incabível 14 Outro mérito da Lei 12.016/09, a que nos referimos linhas acima, é a regulamentação do mandado de segurança coletivo, criado com a Constituição Federal de 1988, com a finalidade de permitir a defesa de direitos pertencentes a um grupo ou coletividade. Essa criação veio atender aos anseios das organizações sindicais e entidades de classe, que, na defesa dos direitos de seus membros, não obtinham resposta favorável do Judiciário precisamente porque o mandado de segurança era tido como garantia exclusivamente individual. 4 - A Regulamentação do Mandado de Segurança Coletivo O texto constitucional (art. 5º, LXX) dispõe que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano. Permite-se, assim, que o ente legitimado busque a tutela jurisdicional para a proteção de direitos líquidos e certos, comuns aos seus membros ou associados. Por não haver norma regulamentando esta ação constitucional, ao mandado de segurança coletivo aplicaram-se as regras da Lei 1.533/51. Evidentemente, as peculiaridades dos direitos coletivos fizeram com que muitas situações fossem resolvidas a partir de construções doutrinárias e jurisprudenciais. Hoje, a Lei 12.016/09, numa de suas principais inovações, disciplina expressamente o mandado de segurança coletivo, deixando claro que os entes legitimados devem agir em defesa de direitos líquidos e certos, da totalidade ou de parte dos seus membros, “na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades” (art. 21). Prevê a lei, portanto, que os direitos tutelados pelo mandado de segurança coletivo devem guardar relação com os fins institucionais do órgão impetrante. o agravo), garantindo-se, assim, o direito constitucional da parte à adequada prestação jurisdicional (Vasconcelos, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da Fungibilidade – hipóteses de incidência no direito processual civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.269-277). 15 Desde a sua criação, tem-se entendido que os direitos protegidos pelo mandado de segurança são os denominados coletivos lato sensu. Esses direitos [que se desdobram em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos], como já discorreu um dos autores deste texto35, situam-se num campo dos direitos que pertencem a todos, mas que não são públicos, no sentido tradicional desse vocábulo. São, isto sim, transindividuais ou metaindividuais, derivados da massificação da vida em sociedade e do surgimento de novas “modalidades” de conflitos, em relação aos quais o sistema processual centrado na iniciativa exclusiva do titular do direito subjetivo não tem como fornecer respostas eficazes36. Os direitos difusos são aqueles em que os seus titulares não são determinados ou, pelo menos, não são determináveis, pois embora digam respeito a um grupo de pessoas, não é possível precisar-lhes claramente a respectiva titularidade58. Esses direitos estão definidos no inciso I do parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), aplicando-se essa definição não apenas aos direitos difusos em matéria de consumo, mas, por força do que dispõe o art. 117 do CDC, aos demais direitos difusos, nas matérias de que trata a Lei da Ação Civil Pública59. Segundo esse dispositivo de lei, entendem-se por direitos difusos os transindividuais, de natureza indivisível, cuja titularidade pertença a pessoas não determinadas, ligadas umas às outras por meras e acidentais circunstâncias fáticas. A doutrina é uníssona no reconhecimento da fluidez desses direitos, cuja titularidade se espraia pela sociedade toda e por todos os seus membros. Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que os direitos difusos, justamente porque enquanto nestes a titularidade se perde na indefinição subjetiva, naqueles há condições perfeitas de se identificarem os 35 Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.293 e ss. 36 Conforme Rodolfo de Camargo Mancuso, na obra: Defesa do consumidor – reflexões acerca da eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT 676/38. 16 titulares, em razão do necessário vínculo associativo ou corporativo que os prende37. Há, entre os titulares do direito coletivo, um vínculo jurídico que determina a convergência dos respectivos interesses. O inciso II do parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 define os direitos coletivos como aqueles direitos transindividuais, indivisíveis por natureza, cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou classe de pessoas que tenham vínculo entre si ou com o outro polo da assim chamada relação jurídica base. Trata-se, em verdade, de direito do grupo social, representado por associações ou corporações voltadas à defesa de determinados tipos de interesses da sociedade. É um tipo de direito metaindividual, porque transcende aos interesses de cada uma das pessoas vinculadas ao grupo associativo, para guardar sintonia com os próprios fins institucionais do grupo. Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que os direitos difusos, e não há, neles, a mesma fluidez. Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, têm as mesmas características dos direitos coletivos, diferentes apenas pela divisibilidade do dano ou da responsabilidade que lhes afeta. Constituem um tipo de direito coletivo, porque também têm origem numa mesma situação jurídica38. A definição legal, estampada no inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC, toma por característica desses direitos, de modo extremamente lacônico, a nosso ver, a sua origem comum. A interpretação desse dispositivo nos leva a concluir que a novidade está em se dar tratamento coletivo a direitos individuais. Essa terceira modalidade de direitos coletivos lato sensu se traduz nos mesmos direitos subjetivos individuais de há muito conhecidos em nossa ordem jurídica, que têm como seus titulares as pessoas individualmente consideradas. A diferença entre esta classe de direitos e aqueles já consagrados em nossa ordem jurídica reside justamente no modo como se pode realizar sua defesa em juízo. Na verdade, eles contam com um mecanismo a mais - ação coletiva -, através do qual se pode obter sua proteção. 37 Quanto ao tema dos direitos difusos, ver, por todos: Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.56-91 38 Conforme Hugo Nigro Mazzilli, na obra: A defesa dos interesses difusos em juízo. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p.21-22. 17 Estranhamente, a nova Lei do Mandado de Segurança prevê, no parágrafo único do art. 21, que os direitos tutelados por essa ação constitucional seriam os coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos, adotando-se, no referido dispositivo, as definições contidas no parágrafo único, II e III, do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor. Ao que parece, o legislador excluiu da abrangência do mandado de segurança coletivo os direitos difusos. Em nosso sentir, não tem razão o legislador. É certo que os entes legitimados podem ter, entre seus fins institucionais, a proteção de direitos que atinjam todos os seus membros ou associados, de forma indivisível, sem que entre eles - ou em relação à parte contrária - haja uma relação jurídica base. Cite-se, como exemplo, a atuação de um partido político que se volta contra uma propaganda eleitoral de cunho racista. Tratase de direito verdadeiramente difuso, pois coibir o racismo interessa à sociedade, ou seja, a todos os membros da coletividade, indistintamente. A propósito, deve-se considerar que o próprio regime democrático é direito difuso, e não poderia ser excluída sua proteção, pelos partidos políticos, através do mandado de segurança coletivo. Em suma, entendemos que se deve desconsiderar a omissão da lei, em relação aos direitos difusos, admitindo-se o mandado de segurança coletivo para a tutela dos direitos coletivos em sentido lato39. Desde a criação do mandado de segurança coletivo, preocuparam-se os autores em ressaltar a maior abrangência da liminar nele concedida, recomendando maior rigor na concessão de medidas que pudessem “engessar” a atuação de pessoas jurídicas de direito público. Certamente com tal preocupação, o legislador repetiu a regra do art. 2º da Lei 8.437/92, dispondo, no § 2º do art. 22 da nova Lei do Mandado de Segurança, que a liminar no mandado de segurança coletivo “só 39 Nesse sentido a posição de Luiz Manoel Gomes Junior, na obra: Comentários à nova lei do mandado de segurança. Obra citada, p.191-193. No mesmo sentido, antes da edição da nova Lei do Mandado de Segurança, Antonio Carlos Garcias Martins sustentou: “Somos inclinados a reconhecer que a ação de mandado de segurança coletivo, efetivamente, não deve restringir-se aos interesses coletivos estrito senso e individuais homogêneos. Sua atuação é ampla, inclusive no tocante aos interesses difusos, até porque estes interesses, que nada mais são que fatos valorados e tuteláveis pelo direito posto, de certo modo são fluídicos até um dado momento, pois podem ser afetados por circunstâncias que os levam a receber a qualificação de coletivo, por afetar uma coletividade” (Mandado de segurança coletivo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.70). Um dos autores deste texto já sustentou opinião no sentido contrário, isto é, de que os direitos difusos estariam excluídos do âmbito de incidência (Wambier, Luiz Rodrigues. Tutela jurisdicional das liberdades públicas. Curitiba: Juruá, 1991, p.98). Essa opinião, no entanto, não prevalece presentemente. 18 poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas”. Por fim, ainda no tocante ao mandado de segurança coletivo, estabelece o novo diploma legal, no § 1º do art. 22, que essa ação constitucional “não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva”. Observe-se que o legislador mencionou “desistência” e não suspensão da ação individual, como se dá com as ações coletivas disciplinadas pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 104). Assim, criou, a nosso ver, injustificável restrição, na medida em que, desistindo do mandado de segurança individual e deparando-se com sentença de improcedência no mandado de segurança coletivo, a parte poderá se ver impossibilitada de impetrar novo mandado de segurança individual, em razão do próprio decurso do prazo decadencial de 120 dias. 5 - Conclusão Como dissemos, em muitos aspectos a Lei 12.016/09 não representa propriamente um avanço. Nem todas as consolidações doutrinárias e jurisprudenciais sobre o mandado de segurança foram incorporadas no novo diploma legal. Mas também é certo que, a despeito de alguns pontos questionáveis e mesmo criticáveis, a Lei 12.016/09 contém aspectos positivos e muitas de suas disposições constituem, verdadeiramente, inovações importantes em nosso sistema processual, a exemplo da regulamentação do mandado de segurança coletivo. Deverá haver, por certo, construções doutrinárias e jurisprudenciais no sentido de corrigir eventuais falhas ou lacunas da Lei 12.016/09, interpretando e aplicando a nova disciplina legal do mandado de segurança à luz das normas constitucionais que o conceberam. 19 6 - Bibliografia Alvim, Arruda. A arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. Alvim, Eduardo Arruda. Agravo de instrumento contra decisões proferidas em mandado de segurança - execução provisória. RePro 95/235. Assis, Araken de. Recorribilidade das interlocutórias no mandado de segurança. RePro 84/99. Barbi, Celso. Do mandado de segurança. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. ______. Mandado de segurança coletivo. In: Gonçalves, Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. Bueno, Cassio Scarpinella. Liminar no mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. Buzaid, Alfredo. Do mandado de segurança individual. 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