O MANDADO DE SEGURANÇA NA DISCIPLINA DA
LEI 12.016, DE 07 DE AGOSTO DE 2009
Luiz Rodrigues Wambier
Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos
Sumário: 1 - Introdução; 2 - Mandado de segurança: natureza, função e objeto
da ação; 3 - O mandado de segurança na disciplina da Lei 12.016/2009; 4 - A
regulamentação do mandado de segurança coletivo; 5 - Conclusão; 6 Bibliografia.
1 - INTRODUÇÃO
Os Poderes estatais, independentes e harmônicos, têm como primeira
finalidade, na realização de seus ideais, o alcance de padrões de vida na sociedade
que concretamente garantam a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III)1.
Nesse contexto, devem dar rendimento aos direitos individuais e coletivos
constitucionalmente assegurados.
O ser humano deve estar acima de quaisquer outros interesses do Estado,
inclusive dos interesses de Governo. Forçoso reconhecer, assim, que havendo falha
ou lacuna no cumprimento de uma das funções estatais, outra função deverá ser
1
A Constituição Federal prevê ser a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos do Estado
brasileiro. Veja-se o que dispõe seu art. 1º: “A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da pessoa humana; (...)”. A respeito da
extensão do princípio da dignidade da pessoa humana, é de se registrar que se trata “de base
axiológica (e lógica) de toda a construção normativa do Estado brasileiro. Não há Estado sem esse
fundamento, consistente na consideração, pela lei, por seus intérpretes e aplicadores, de que o ser
humano é dotado de especial atributo a ser garantido pelo Estado (isto é, pelos poderes do Estado),
que é a sua dignidade” (Wambier, Luiz Rodrigues; Wambier, Teresa Arruda Alvim. O fundamento
constitucional da dignidade humana e a conduta da jurisprudência na escolha de critérios para a
fixação do valor das indenizações, em algumas hipóteses especiais de dano contra a saúde. In:
Martins, Ives Gandra; Rezek, Francisco (Coords.). Constituição Federal – avanços, contribuições e
modificações no processo democrático brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de
Extensão Universitária, 2008, p.223).
1
desempenhada (normalmente a jurisdicional), pronta a restaurar o direito violado e a
assegurar à sociedade a efetiva realização dos direitos fundamentais. Sob essa
óptica, a divisão de funções do Poder pode ser entendida, também, como verdadeiro
limite ao exercício do Poder estatal, impedindo que eventuais abusos possam
resultar num regime autoritário.
Teresa Arruda Alvim Wambier2 afirma ser o mandado de segurança um dos
“instrumentos” de que dispõe o particular para “conter” o Poder estatal, cuja função é
“reconduzir aos limites da legalidade os atos das autoridades públicas num Estado
de Direito”. Enfatiza a autora citada que “a existência de figuras como o mandado de
segurança, no sistema positivo, é praticamente condição de funcionamento do
Estado de Direito”.
É nesse contexto que pretendemos analisar alguns aspectos do mandado de
segurança, descrevendo os principais regramentos da Lei 12.016, de 07 de agosto
de 2009 (que regula o processo do mandado de segurança) - contrastando-os,
quando oportuno, com a disciplina da Lei 1.533/1951, por aquela revogada -, sem
nos afastar das disposições constitucionais que o conceberam.
2 - Mandado de Segurança: Natureza, Função e Objeto da Ação
A Constituição Federal estabelece, no art. 5º, LXIX: “conceder-se-á mandado
de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus
ou habeas data, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for
autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do
Poder Público”. Na definição de Hely Lopes Meirelles, o mandado de segurança “é o
meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com
capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de
direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou
2
Ainda sobre a recorribilidade da liminar em mandado de segurança. In: Bueno, Cássio Scarpinella;
Alvim, Eduardo Arruda; Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Aspectos polêmicos e atuais do
mandado de segurança – 51 anos depois. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.787-788.
2
habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que
categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”3.
O instrumento de que ora se trata é, portanto, uma ação de natureza
constitucional. Precisamente por isso, Sérgio Ferraz enfatiza que “hão de ser
mínimos os impedimentos e empecilhos à sua utilização”4. É oportuno observar,
também, que o mandado de segurança confere ao titular do direito a prestação in
natura, não comportando a substituição da prestação devida. Precisamente nesse
sentido é a lição de José de Castro Nunes, que enfatiza: “O direito é assegurado, no
seu exercício, e não pela forma indireta da equivalência econômica, princípio pelo
qual se define o ressarcimento da inexecução da obrigação, scilicet violação da lei.
O ato violador é removido como obstáculo para que se restabeleça a situação
jurídica preexistente, e não apenas anulado com os efeitos reparatórios
conhecidos”5.
Quanto à natureza jurídica do remédio constitucional, não há unanimidade na
doutrina. Segundo Othon Sidou6, o mandado de segurança é uma ação interdital, e
sua decisão tem natureza constitutiva. Explica o autor que, sendo a ordem mera
decorrência do direito constituído, a decisão do mandado de segurança não se
caracterizaria como mandamental. Já para André Ramos Tavares7 - com quem
concordamos -, a natureza jurídica da ação é mandamental, assim como a da
decisão nela proferida. O autor fundamenta esse entendimento no fato de se tratar a
decisão que concede a segurança de “uma ordem corretiva (mandado de segurança
repressivo) ou impeditiva (mandado de segurança preventivo) dirigida à autoridade
coatora que esteja praticando a ilegalidade ou o abuso de poder”.
3
Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, habeas data. 17.ed.
São Paulo: Malheiros, 1996, p.17-18.
4
Mandado de segurança (individual e coletivo): aspectos polêmicos. 2.ed. São Paulo: Malheiros,
1993, p.10.
5
Do mandado de segurança e de outros meios de defesa contra atos do Poder Público. 8.ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1980, p.38.
6
Habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, ação popular: as
garantias ativas dos direitos coletivos. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.235.
7
Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p.621 e 641
3
A propósito, o mandado de segurança é denominado “repressivo” quando tem
em vista ilegalidade8 ou abuso de poder que já tenham sido cometidos, e
“preventivo” quando tem por objeto alguma ameaça a direito (CF, art. 5º, inciso LXIX
combinado com o XXXV)9. Poderá, ainda, ser coletivo, já que a Constituição Federal,
ao se referir a direito líquido e certo, não prevê que deva ser necessariamente
individual e, além disso, dispõe expressamente sobre o mandado de segurança
coletivo no inciso LXX do art. 5º10.
O prazo para a impetração do mandado de segurança continua sendo de 120
(cento e vinte) dias, “contados da ciência, pelo interessado, do ato impugnado”.
Manteve-se, assim, na Lei 12.016/2009 (art. 23), a previsão da Lei 1.533/1951 (art.
18). A esse respeito, ainda ao tempo da antiga disciplina e enfatizando a amplitude
constitucional do instituto, Othon Sidou esclarece que, não sendo possível fixar o
dies a quo, “será injurídico aplicar a regra extintiva”11.
No tocante ao objeto da ação, podem ser atos do Estado, genericamente
considerado, embora mais frequentemente sejam atos da administração. Podem ser
impugnados tanto atos comissivos quanto omissivos, desde que de autoria de
autoridade pública ou de pessoa no exercício de função pública12.
8
Evidentemente, o termo “ilegalidade” deve ser entendido em sentido amplo, para abranger também
a inconstitucionalidade.
9
Cite-se, por oportuno, decisão do Superior Tribunal de Justiça, em que se considerou inaplicável o
prazo decadencial de 120 dias em mandado de segurança preventivo: “O mandado de segurança que
objetiva impedir eventual imposição de multa decorrente da aplicação da Lei Municipal nº 159/98, que
proibiu a utilização dos herbicidas 2.4-D, a toda evidência, revela feição eminentemente preventiva,
posto que não se volta contra lesão de direito já concretizada, razão pela qual não se aplica o prazo
decadencial de 120 dias previsto no artigo 18 da Lei 1.533/51” (AgRg no REsp 767.957/PR, 1ª Turma,
Rel. Min. Luiz Fux, j. 14.03.2006, DJ 04.05.2006).
10
CF, art. 5º, LXX: “o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com
representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação
legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de
seus membros ou associados”.
11
Obra citada, p.151.
12
Citem-se, exemplificativamente, decisões do Superior Tribunal de Justiça em que se evidencia a
competência da Justiça Federal para processar e julgar mandados de segurança contra atos de
particular, no exercício de função pública: “No que se refere a mandado de segurança, compete à
Justiça Federal processá-lo e julgá-lo quando a autoridade apontada como coatora for autoridade
federal, considerando-se como tal também o agente de entidade particular investido de delegação
pela União” [na hipótese, concessionária de serviço público de telefonia] (AgRg no Conflito de
Competência 52351/PB, 1ª Seção, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, j. 09.11.2005, DJ 28.11.2005); “A
competência da Justiça Federal para processar e julgar mandado de segurança impetrado contra ato
de dirigente de instituição particular de ensino consistente no indeferimento de renovação de
matrícula de aluno inadimplente é absoluta” (REsp 883.497/GO, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j.
04.11.2008, DJ 01.12.2008); “Esta é a jurisprudência firmada no Superior Tribunal de Justiça. Com
4
Qualquer que seja o ato impugnado através de mandado de segurança, deve
ser tal ato lesivo a direito líquido e certo. Esta é, segundo Sérgio Ferraz, especial
condição da ação13. Para o autor citado, direito líquido é aquele que “se apresenta
com alto grau, em tese, de probabilidade”; e direito certo é o que se configura de
plano, sempre documentalmente, “sem recurso a dilações probatórias”14. Segundo
Celso Barbi, esses conceitos são tipicamente processuais, e só serão atribuíveis
liquidez e certeza ao direito “se os fatos em que se fundar puderem ser provados de
forma incontestável, certa, no processo”15. André Ramos Tavares, por sua vez,
sustenta que a expressão “direito líquido e certo” não se refere ao direito, tampouco
ao enquadramento deste ao fato. É o fato que, para ele, deve “apresentar-se líquido
e certo”16.
Como se vê, alguns doutrinadores defendem que o direito será sempre líquido
e certo, e que incertos poderão ser os fatos. Nasceria, assim, o direito de impetrar
mandado de segurança quando houver certeza quanto ao direito e quanto aos
fatos17. Outros entendem que fato e direito são indissociáveis. Essa era a posição de
Alfredo Buzaid, para quem a relação de incidência se dá precisamente entre o fato e
a lei, ou seja, há um entrelaçamento da norma e do fato que a ela diz respeito.
Também para este autor, o que caracteriza o direito líquido e certo é a sua
“incontestabilidade”18.
Ainda que não haja unanimidade na doutrina quanto ao significado dessa
locução, é indiscutível que, para que seja admitida a ação constitucional, o autor
efeito, ‘compete à Justiça Federal processar e julgar mandado de segurança quando a autoridade
apontada como coatora for autoridade federal (CF, art. 109, VIII), considerando-se como tal também o
agente de entidade particular investido de delegação pela União (situação do dirigente de entidade de
ensino superior). Nesse último caso, entende-se que é logicamente inconcebível hipótese de
competência estadual, já que, de duas uma: ou o ato é de autoridade (caso em que se tratará de
autoridade federal delegada, sujeita à competência federal), ou o ato é de particular, e não ato de
autoridade (caso em que o mandado de segurança será incabível), e só quem pode decidir a respeito
é o juiz federal (Súmula 60/TFR)’” (AgRg no Conflito de Competência 80270/PA, 1ª Seção, Relª Min.
Denise Arruda, j. 25.03.2009, DJ 04.05.2009).
13
Obra citada, p.12.
14
Obra citada, p.19.
15
Do mandado de segurança. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.85.
16
Obra citada, p.623.
17
Nesse sentido: Meirelles, Hely Lopes. Problemas do mandado de segurança. RDA 73/40, nota 4.
18
Do mandado de segurança individual. São Paulo: Saraiva, 1989, v.1, p.89.
5
deve demonstrar que tem direito “líquido e certo”. A esse respeito, Teresa Arruda
Alvim Wambier faz interessante afirmação. Dizendo não concordar inteiramente com
a posição de Alfredo Buzaid (quanto à incontestabilidade do direito invocado), a
autora afirma que a referida expressão tem sentidos diferentes quando diz respeito
ao juízo de mérito e ao juízo de admissibilidade. No juízo de admissibilidade,
significa “direito (incidência do direito = fato + norma) provável de plano,
documentalmente”; no juízo de mérito, deve-se constatar que “o direito é de fato
incontestável, insuscetível de dúvida”. Com absoluta propriedade, ensina que, se
assim não fosse, haveria “sobreposição intolerável” entre o juízo de admissibilidade
e o juízo de mérito no mandado de segurança19.
3 - O Mandado de Segurança na Disciplina da Lei 12.016/2009
A Lei 1.533/51 já estabelecia algumas restrições quanto ao ato atacável pelo
remédio constitucional. Muitas delas foram mantidas pela nova lei, podendo-se dizer
que não houve propriamente um avanço da nova disciplina, nesse aspecto. No
inciso I do art. 5º, a Lei 12.016/09 - que promoveu alteração meramente gramatical
no dispositivo da lei revogada - dispõe que não caberá mandado de segurança
quanto se tratar “de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo,
independente de caução”. Essa exigência de exaurimento das vias administrativas é,
sem dúvida, inconstitucional, pois viola o princípio da inafastabilidade do controle da
jurisdição. Sob essa óptica, o Supremo Tribunal Federal, ainda ao tempo da lei
revogada, reconheceu ser cabível o mandado de segurança a despeito da existência
de recurso administrativo de efeito suspensivo, e editou a Súmula 429, que enuncia:
“A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do
mandado de segurança contra omissão da autoridade”. Parece-nos, portanto, que o
legislador deixou de incorporar, na nova disciplina do mandado de segurança,
importantes consolidações doutrinárias e jurisprudenciais.
19
Ainda sobre a recorribilidade... Obra citada, p.791-792.
6
No inciso II do art. 5º, a Lei 12.016/09 desautoriza a impetração do mandado
de segurança em face de “decisão judicial da qual caiba recurso com efeito
suspensivo”. Na disciplina da lei revogada, a vedação era em relação a despacho ou
decisão quando houvesse recurso previsto na legislação processual. A alteração, em
verdade, traz à tona discussão que parecia ter sido sedimentada na doutrina e na
jurisprudência, qual seja a desnecessidade de se condicionar a existência de efeito
suspensivo ao recurso para inadmitir-se o mandado de segurança contra a decisão
impugnada. Mencione-se, nesse sentido, o enunciado da Súmula 267 do Supremo
Tribunal Federal: “Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de
recurso ou correição”. De todo modo, pensamos que, a despeito do novo dispositivo
legal, continuará a prevalecer o entendimento de que o mandado de segurança não
é, efetivamente, sucedâneo de recurso, e que deverá ser inadmitida a ação
constitucional contra ato judicial de que caiba recurso ou outro meio de impugnação.
Acertou o legislador ao suprimir a restrição contida no art. 5º, inciso III, da Lei
1.533/51, que era flagrantemente inconstitucional. Tratava-se do não cabimento de
mandado de segurança em caso de “ato disciplinar, salvo quando praticado por
autoridade incompetente ou com inobservância de formalidade essencial”. É
inegável que os atos disciplinares - tais como a suspensão do exercício da função
ou a destituição do cargo - são capazes de gerar graves consequências. Além disso,
a Constituição Federal não exclui os atos disciplinares da incidência do mandado de
segurança, como o faz em relação ao habeas corpus, ao dispor no § 2º do art. 142:
“Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”20. Em
nosso sentir, sobretudo diante da alteração legislativa, deve-se permitir o controle
dos atos disciplinares pelo mandado de segurança, respeitando-se os limites
impostos pelas normas constitucionais e desde que não se interfira no exercício do
poder discricionário, assegurando-se ao agente administrativo a análise da
oportunidade e conveniência para a prática do ato.
20
Afirmando ser inconstitucional a restrição do dispositivo revogado, André Ramos Tavares
pondera: “Não colhe validade o argumento de que o dispositivo visa apenas a preservar a separação
entre os poderes. Ainda no campo chamado de discricionariedade administrativa é conferido ao
Judiciário poder de imiscuir-se para acercar-se de que ocorra sua legítima utilização” (obra citada,
p.627-628).
7
A Lei 12.016/09 trouxe novo inciso III no art. 5º, em que trata das restrições ao
cabimento do writ, prevendo a inadmissibilidade do mandado de segurança em face
de “decisão judicial transitada em julgado”. Em verdade, repetiu o legislador o teor
da Súmula 268 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “não cabe mandado
de segurança contra decisão judicial transitada em julgado”. Efetivamente, assim
como o mandado de segurança não pode ser considerado sucedâneo de recurso,
não poderá sê-lo em relação a qualquer meio de impugnação a decisões judiciais,
como, por exemplo, a ação rescisória. É interessante, a esse respeito, a posição de
Sidney Palharini Júnior, que sustenta o cabimento do mandado de segurança nos
juizados especiais cíveis, “para suprir a deficiência pela inadmissibilidade da ação
rescisória, se a sentença ferir direito líquido e certo, que pudesse albergar-se numa
das hipóteses do art. 485 do CPC”21.
Ainda no tocante às limitações para a utilização do mandado de segurança, é
oportuno observar que seu cabimento é residual, pois tem como objeto direito não
amparado por habeas corpus ou habeas data (Lei 12.016/09, art. 1º). Estão
excluídos de sua incidência, portanto, os atos que violem a liberdade de locomoção
e a tutela de dados pessoais, impugnáveis através de habeas corpus e habeas data,
respectivamente.
Em muitos aspectos a Lei 12.016/09 não se constitui, propriamente, num
avanço. Como dissemos linhas acima, nem todas as consolidações doutrinárias e
jurisprudenciais foram incorporadas no novo diploma legal. Assim é que se
mantiveram, na nova lei, as previsões de suspensão da segurança (art. 15, §§ 1º a
5º), praticamente nos mesmos termos da legislação hoje revogada. Preocupa-nos a
manutenção do instituto, que, inegavelmente, desprestigia as decisões dos juízes de
1º e 2º graus22.
21
Cruz, Luana Pedrosa de Figueiredo; Cerqueira, Luís Otávio Sequeira de; Gomes Junior, Luiz
Manoel; Favreto, Rogério; Palharini Júnior, Sidney. Comentários à nova lei do mandado de
segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.65.
22
Nesse sentido a posição de Luís Otávio Sequeira de Cerqueira, na obra Comentários à nova lei do
mandado de segurança. Obra citada, p.128.
8
Outro aspecto que nos parece negativo, na nova disciplina legal do mandado
de segurança, é o que diz respeito à proibição de concessão de liminares. No art. 7º,
§ 2º, estabelece a nova lei que “não será concedida medida liminar que tenha por
objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens
provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a
concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer
natureza”. Parece-nos que tais restrições à concessão de liminares enfraquece
sobremaneira a possibilidade - constitucionalmente prevista - de controle, pelo
Judiciário, dos atos administrativos23.
Não seria exagero dizer, ante a finalidade da ação constitucional, que não se
pode conceber o mandado de segurança sem a liminar. A imperiosa necessidade de
se reconduzir à legalidade o ato da autoridade pública, violador de direito líquido e
certo, leva a concluir que são inconstitucionais quaisquer restrições à concessão da
medida liminar.
Efetivamente, é da própria estrutura do mandado de segurança a concessão
de liminar. Pode-se dizer, também, que a possibilidade de se conceder liminarmente
a segurança tem estreita ligação com a natureza jurídica da ação, cujo objetivo é
proporcionar a garantia in natura, e não a reparação pecuniária. Sob essa óptica,
Cassio Scarpinella Bueno afirma que o impetrante tem “direito subjetivo público” à
liminar. Segundo o autor citado, a interpretação doutrinária e jurisprudencial ao art.
5º, XXXV, da Constituição Federal torna a “proteção liminar” ínsita ao princípio do
devido processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV). E, especificamente sobre o mandado
de segurança, evidencia: “Sua própria previsão em berço constitucional (art. 5º,
incisos LXIX e LXX), per se, já indica a possibilidade de liminar para proteção in
natura do bem questionado pelo Estado (ou por quem lhe faça as vezes),
23
Como já sustentou um dos autores deste trabalho, a restrição à concessão de liminares viola o
princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional. O autor afirma que se deve
conferir operatividade ao princípio e indaga: “para que serve o princípio constitucional, se buscar a
Jurisdição nem sempre significa obter resultado eficaz?” (Wambier, Luiz Rodrigues. Liminares: alguns
aspectos polêmicos. In: Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Repertório de jurisprudência e
doutrina sobre liminares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.152-185.
9
constitucionalizando-se, destarte, o direito subjetivo público do impetrante à
obtenção da liminar quando comprovados seus pressupostos específicos”24.
O art. 7º da Lei 12.016/09 dispõe que o juiz ordenará, ao despachar a petição
inicial do mandado de segurança, a suspensão do ato que deu motivo ao pedido
quando “houver fundamento relevante e do ato impugnado puder resultar a
ineficácia da medida, caso seja finalmente deferida” (inciso III, 1ª parte). Estão
expressamente previstos, então, na nova Lei do Mandado de Segurança (nos
mesmos moldes da disciplina anterior), os pressupostos para a concessão da
medida liminar. São eles, nas palavras de Teresa Arruda Alvim Wambier25: “Da
relevância dos motivos em que se baseia o pedido; e da possibilidade de ocorrência
de lesão irreparável ao direito do impetrante”. A autora citada explica que o primeiro
desses pressupostos não corresponde ao fumus boni iuris, tal como se exige para a
concessão das medidas de natureza cautelar, porque a aparência do bom direito é
exigível para a própria impetração do mandado de segurança. E para que se possa
lançar mão da ação constitucional, o direito líquido e certo deve ser demonstrável de
plano, através de prova documental. Logo, quando o juiz constata a relevância dos
fundamentos do pedido, ainda que em exame superficial, verifica que há mais do
que mera plausibilidade. O segundo pressuposto, no entanto, é precisamente o
periculum in mora. É o fundado receio de que, se não for imediatamente concedida a
medida pleiteada, danos irreparáveis possam ser causados ao impetrante. Pode-se
dizer que, não raro, a concessão da segurança de quase nada adianta ao impetrante
se não for deferida liminarmente a medida.
Por esses fundamentos é que acreditamos ser inconstitucional o art. 7º, § 2º,
da nova lei, que pura e simplesmente, sem qualquer ressalva, proíbe a concessão
da liminar em mandado de segurança, violando flagrantemente o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional (CF, art. 5º, XXXV) e o próprio devido
processo legal (CF, art. 5º, LIV e LV) inerente à ação constitucional.26
24
Liminar no mandado de segurança. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 76-77.
Ainda sobre a recorribilidade... Obra citada, p. 792-793.
26
Citem-se recentíssimas decisões em que se concederam liminares, considerando-se
inconstitucional o dispositivo legal em questão: decisão proferida pelo Juízo da 8ª Vara Federal de
Brasília, que liberou insumos utilizados para a fabricação de incensos, que haviam sido apreendidos
pela alfândega; decisão proferida pelo Juízo da 2ª Vara Federal de Novo Hamburgo/RS, que permitiu
2525
10
Ainda sobre a concessão de liminares, entendemos questionável a disposição
da nova lei (art. 7º, III, 2ª parte) que faculta ao juiz condicionar a concessão da
liminar à prestação de caução, fiança ou depósito, “com o objetivo de assegurar o
ressarcimento à pessoa jurídica”. Ainda que, em casos excepcionais, tal exigência
possa ser justificável, há o risco de que a previsão legal venha a transformar a
prestação de caução em mais um requisito para a concessão da liminar,
comprometendo-se o acesso à justiça.
Evidentemente, a prestação de caução não deve ser banalizada e caberá ao
juiz fundamentar sua decisão no sentido de exigi-la.
Não se pode deixar de ressaltar que, a despeito de alguns pontos
questionáveis e mesmo criticáveis, a Lei 12.016/09 contém aspectos positivos - entre
eles a possibilidade de se impetrar mandado de segurança por meio eletrônico (art.
4º) - e muitas de suas disposições constituem, verdadeiramente, inovações
importantes em nosso sistema processual. Citem-se, entre os méritos da nova lei, o
fim da polêmica sobre a recorribilidade da liminar em mandado de segurança e a
regulamentação do mandado de segurança coletivo.
Sobre ser ou não recorrível a decisão liminar em mandado de segurança,
pode-se dizer que a controvérsia foi mantida até a edição da Lei 12.016/09, que
finalmente pacificou a questão, ao dispor no § 1º do art. 7º: “Da decisão do juiz de
primeiro grau que conceder ou denegar a liminar caberá agravo de instrumento,
observado o disposto na Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo
Civil”. Na mesma linha, em relação aos mandados de segurança de competência
originária dos tribunais, assim dispôs a nova lei: “Da decisão do relator que conceder
ou denegar a medida liminar caberá agravo ao órgão competente do tribunal que a
integre” (Lei 12.016/09, art. 16, parágrafo único).
Antes da edição da nova lei, como dissemos, talvez em razão da ausência de
previsão legal expressa sobre o conteúdo das decisões interlocutórias, havia quem
a entrada de equipamentos importados pela PUCRS, direcionados à pesquisa (Aguiar, Adriana.
Jornal Valor, p. E2, 2 set. 2009).
11
sustentasse ser irrecorrível o pronunciamento em questão, considerando-o simples
despacho27. É oportuno lembrar que, a partir da inclusão do § 4º ao art. 162 do CPC
pela Lei 8.952/94, tem-se entendido conveniente distinguir, entre os atos antes
designados de despachos (proferidos exclusivamente pelo juiz), aqueles que
realmente são “de mero expediente”, sem qualquer conteúdo decisório, e os que
possuem cunho decisório, sem, contudo, chegar a ser uma decisão interlocutória. O
reflexo dessa distinção, na esfera recursal, se resume no seguinte: nos casos em
que o juiz revê o ato do serventuário, se estará diante de um ato do juiz, que, como
tal, é recorrível. Além disso, os despachos que têm, efetivamente, cunho decisório
(ainda que mínimo) são recorríveis na medida em que podem gerar prejuízo.
Tais conclusões já seriam suficientes para se considerar recorrível o
pronunciamento judicial que concede ou não a liminar em mandado de segurança,
ainda que se entendesse esse pronunciamento como um simples despacho. Afinal,
é indiscutível que pode gerar prejuízo às partes: se a liminar for concedida, será
imposto desde logo um determinado comportamento à autoridade apontada como
coatora; e se for denegada, o impetrante continuará a sofrer, até a decisão final,
ameaça ou lesão ao direito que afirma ter. Mas o que não se pode perder de vista é
que, ao verificar a presença ou não dos pressupostos para a concessão da medida
liminar, o juiz - repita-se - efetivamente decide28. E é essa circunstância que faz do
respectivo pronunciamento uma decisão interlocutória. O que distingue essas
decisões dos demais pronunciamentos judiciais é precisamente a natureza decisória - de seu conteúdo, por mais variado que este possa ser.
Para alguns doutrinadores, a irrecorribilidade do pronunciamento através do
qual o juiz defere ou não o pedido de liminar decorreria da incompatibilidade da lei
geral (Código de Processo Civil de 1973) com a lei especial que lhe é anterior (Lei
1.533/51). É que a lei geral não teria o condão de ab-rogar a especial (que jamais
previu o manejo do agravo contra as decisões interlocutórias) que com ela
27
Nesse sentido: Meirelles, Hely Lopes. Mandado de segurança e ação popular. 9.ed. São Paulo:
Malheiros, 1983, p.48.
28
Nesse sentido a conclusão de José Horácio Cintra Gonçalves Pereira: “Não se pode entender
como sendo de outra natureza – que não a de interlocutória – a decisão que concede ou nega
providência liminarmente requerida em sede de mandado de segurança” (Agravo no direito brasileiro.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p.30).
12
coexiste29. Outro argumento para sustentar a irrecorribilidade da decisão
interlocutória em mandado de segurança é a suposta incompatibilidade entre a
celeridade do rito previsto para o mandado de segurança e o sistema recursal do
Código de Processo Civil. Essas conclusões, no entanto, são hoje insustentáveis.
Não há qualquer incompatibilidade entre o procedimento do mandado de
segurança e a sistemática do agravo de instrumento (CPC, art. 522)50. Pelo
contrário; se a concessão de liminar é da própria natureza do mandado de
segurança, é constitucionalmente assegurado à parte o direito de recorrer da
decisão denegatória da medida. Seria inconcebível imaginar que o impetrante teria
direito à obtenção da liminar somente se concedida pelo juiz de 1º grau. Acerca
dessa questão, Eduardo Arruda Alvim faz interessante observação: “Não admitir que
da decisão denegatória da liminar se possa interpor agravo de instrumento significa
concluir que o tribunal pode menos do que o juiz de 1º grau, porque, quando a
apelação chegar ao tribunal, a situação de dano irreversível ou de difícil reparação já
se terá, provavelmente, consumado”301.
Havia, ainda, para defender a irrecorribilidade da liminar em mandado de
segurança, o seguinte argumento: a concessão de liminar seria ato discricionário,
optando o juiz por deferir ou não a medida pleiteada a partir de critérios subjetivos.
Mas, em verdade, constatada a existência de seus pressupostos específicos, o juiz
deverá concedê-la, não existindo arbítrio ou mesmo discricionariedade propriamente
dita nessa decisão. Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier, na discricionariedade
29
Nesse sentido, sobre a irrecorribilidade das interlocutórias em mandado de segurança, ao tempo da
Lei 1.533/51, sustentou Araken de Assis: “(...) ela se harmoniza ao critério geral de incompatibilidade
entre as disposições da lei nova e geral com o sistema consagrado em lei especial e anterior,
impedindo a ab-rogação desta. Em síntese, subsistem em vigor as restrições à recorribilidade plena
das interlocutórias proferidas em mandado de segurança, que governavam o remédio ao tempo do
Código de 1939” (Recorribilidade das interlocutórias no mandado de segurança. RePro 84/99, p.106108).
30
Cite-se, mais uma vez, a conclusão de José Horácio Cintra Gonçalves Pereira: “O sistema recursal
do Código se aplica, evidentemente, embora de forma supletiva, às leis esparsas que regulam
aspectos processuais dos institutos de que cuidam. Portanto, embora não se refira expressamente na
Lei 1.533/51 a que esta decisão, através da qual o juiz defere ou não o pedido de liminar, seja
agravável, aplica-se indubitavelmente o art. 522 do Código de Processo Civil” (obra citada, p. 29). No
mesmo sentido sustentam Acácio Cambi e Eduardo Cambi: “Se a Lei 1.533/51 não prevê nem faz
remissão a todos os recursos cabíveis, isso não significa que o CPC não possa vir a ser aplicado
subsidiariamente” (Cabimento do agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias em
mandado de segurança. In: Nery Júnior, Nelson; Wambier, Teresa Arruda Alvim (Coords.). Aspectos
polêmicos a atuais dos recursos cíveis. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p.15. (4ª Série)).
13
propriamente dita, verifica-se a intenção deliberada constante da lei de propiciar
dualidade ou pluralidade de soluções, devendo a solução eleita ser motivada, a fim
de demonstrar que não houve ilegalidade no exercício do poder, pela autoridade
pública.
Em
contrapartida,
há
situações
em
que
se
exige
dos
juízes,
especificamente, uma “maior intensidade de valoração” na aplicação das normas, as
quais comportam uma única interpretação, no sentido de abranger ou não num dado
momento e num dado lugar uma determinada hipótese31. Efetivamente, ao
interpretar conceitos como “fundamento relevante” (Lei 12.016/09, art. 7º, III) e
fundado receio de dano, em face do caso singular, o juiz não está exercendo poder
discricionário. Partindo-se dessas premissas, a concessão de liminares, desde que
presentes os seus pressupostos, é - como afirma Betina Rizzato Lara - “um
imperativo para o juiz”32. No mesmo sentido, especificamente sobre a liminar em
mandado de segurança, André Ramos Tavares afirma que, “presentes os requisitos
para concedê-la, será abusiva a decisão do magistrado que não concedê-la, sem
maiores motivos”33.
Como visto, são inconsistentes os argumentos sobre a irrecorribilidade da
liminar em mandado de segurança, não havendo como afastar a possibilidade de se
interpor recurso contra a decisão que concede ou não a medida. Andou bem o
legislador, portanto, ao admitir expressamente, com a nova disciplina, o cabimento
de agravo de instrumento em face da decisão do juiz de 1º grau, e de agravo interno
em face da decisão do relator, nos casos de competência originária dos tribunais. A
propósito, a regra do art. 16, parágrafo único, da Lei 12.016/09 esvaziou o conteúdo
da Súmula 622 do Supremo Tribunal Federal, que manifestava o seguinte
entendimento: “Não cabe agravo regimental contra decisão do relator que concede
ou indefere liminar em mandado de segurança”34.
31
O novo regime do agravo. 2.ed. São Paulo: RT, 1996, p.382. No mesmo sentido: Alvim, Arruda. A
arguição de relevância no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p.16.
32
Liminares no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p.181
33
Obra citada, p.640.
34
A resistência de parte da doutrina e mesmo da jurisprudência gerava dúvida objetiva quanto à
possibilidade de se interpor agravo de instrumento em face da decisão liminar, levando a parte a
impetrar outro mandado de segurança para impugnar o pronunciamento judicial causador de
ilegalidade ou de abuso de poder. Precisamente por isso um dos autores deste texto já defendeu a
incidência, na hipótese, do princípio da fungibilidade para que, determinando-se que se fizessem as
alterações formais necessárias (na hipótese de o órgão julgador entender essencial a “conversão” de
um mecanismo em outro, para a incidência do princípio), fosse recebido eventual mandado de
segurança como agravo de instrumento (e vice-versa, nos Tribunais em que se entende ser incabível
14
Outro mérito da Lei 12.016/09, a que nos referimos linhas acima, é a
regulamentação do mandado de segurança coletivo, criado com a Constituição
Federal de 1988, com a finalidade de permitir a defesa de direitos pertencentes a um
grupo ou coletividade. Essa criação veio atender aos anseios das organizações
sindicais e entidades de classe, que, na defesa dos direitos de seus membros, não
obtinham resposta favorável do Judiciário precisamente porque o mandado de
segurança era tido como garantia exclusivamente individual.
4 - A Regulamentação do Mandado de Segurança Coletivo
O texto constitucional (art. 5º, LXX) dispõe que o mandado de segurança
coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso
Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente
constituída e em funcionamento há pelo menos um ano. Permite-se, assim, que o
ente legitimado busque a tutela jurisdicional para a proteção de direitos líquidos e
certos, comuns aos seus membros ou associados.
Por não haver norma regulamentando esta ação constitucional, ao mandado
de segurança coletivo aplicaram-se as regras da Lei 1.533/51. Evidentemente, as
peculiaridades dos direitos coletivos fizeram com que muitas situações fossem
resolvidas a partir de construções doutrinárias e jurisprudenciais. Hoje, a Lei
12.016/09, numa de suas principais inovações, disciplina expressamente o mandado
de segurança coletivo, deixando claro que os entes legitimados devem agir em
defesa de direitos líquidos e certos, da totalidade ou de parte dos seus membros,
“na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades” (art. 21).
Prevê a lei, portanto, que os direitos tutelados pelo mandado de segurança coletivo
devem guardar relação com os fins institucionais do órgão impetrante.
o agravo), garantindo-se, assim, o direito constitucional da parte à adequada prestação jurisdicional
(Vasconcelos, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da Fungibilidade – hipóteses de incidência no
direito processual civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.269-277).
15
Desde a sua criação, tem-se entendido que os direitos protegidos pelo
mandado de segurança são os denominados coletivos lato sensu. Esses direitos
[que se desdobram em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos
individuais homogêneos], como já discorreu um dos autores deste texto35, situam-se
num campo dos direitos que pertencem a todos, mas que não são públicos, no
sentido
tradicional
desse
vocábulo.
São,
isto
sim,
transindividuais
ou
metaindividuais, derivados da massificação da vida em sociedade e do surgimento
de novas “modalidades” de conflitos, em relação aos quais o sistema processual
centrado na iniciativa exclusiva do titular do direito subjetivo não tem como fornecer
respostas eficazes36.
Os direitos difusos são aqueles em que os seus titulares não são
determinados ou, pelo menos, não são determináveis, pois embora digam respeito a
um grupo de pessoas, não é possível precisar-lhes claramente a respectiva
titularidade58. Esses direitos estão definidos no inciso I do parágrafo único do art. 81
da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), aplicando-se essa definição não
apenas aos direitos difusos em matéria de consumo, mas, por força do que dispõe o
art. 117 do CDC, aos demais direitos difusos, nas matérias de que trata a Lei da
Ação Civil Pública59. Segundo esse dispositivo de lei, entendem-se por direitos
difusos os transindividuais, de natureza indivisível, cuja titularidade pertença a
pessoas não determinadas, ligadas umas às outras por meras e acidentais
circunstâncias fáticas. A doutrina é uníssona no reconhecimento da fluidez desses
direitos, cuja titularidade se espraia pela sociedade toda e por todos os seus
membros.
Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que
os direitos difusos, justamente porque enquanto nestes a titularidade se perde na
indefinição subjetiva, naqueles há condições perfeitas de se identificarem os
35
Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p.293 e ss.
36
Conforme Rodolfo de Camargo Mancuso, na obra: Defesa do consumidor – reflexões acerca da
eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT 676/38.
16
titulares, em razão do necessário vínculo associativo ou corporativo que os prende37.
Há, entre os titulares do direito coletivo, um vínculo jurídico que determina a
convergência dos respectivos interesses. O inciso II do parágrafo único do art. 81 da
Lei 8.078/90 define os direitos coletivos como aqueles direitos transindividuais,
indivisíveis por natureza, cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou classe de
pessoas que tenham vínculo entre si ou com o outro polo da assim chamada relação
jurídica base. Trata-se, em verdade, de direito do grupo social, representado por
associações ou corporações voltadas à defesa de determinados tipos de interesses
da sociedade. É um tipo de direito metaindividual, porque transcende aos interesses
de cada uma das pessoas vinculadas ao grupo associativo, para guardar sintonia
com os próprios fins institucionais do grupo. Os direitos coletivos são, via de regra,
mais facilmente identificáveis do que os direitos difusos, e não há, neles, a mesma
fluidez.
Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, têm as mesmas
características dos direitos coletivos, diferentes apenas pela divisibilidade do dano
ou da responsabilidade que lhes afeta. Constituem um tipo de direito coletivo,
porque também têm origem numa mesma situação jurídica38. A definição legal,
estampada no inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC, toma por
característica desses direitos, de modo extremamente lacônico, a nosso ver, a sua
origem comum. A interpretação desse dispositivo nos leva a concluir que a novidade
está em se dar tratamento coletivo a direitos individuais. Essa terceira modalidade
de direitos coletivos lato sensu se traduz nos mesmos direitos subjetivos individuais
de há muito conhecidos em nossa ordem jurídica, que têm como seus titulares as
pessoas individualmente consideradas. A diferença entre esta classe de direitos e
aqueles já consagrados em nossa ordem jurídica reside justamente no modo como
se pode realizar sua defesa em juízo. Na verdade, eles contam com um mecanismo
a mais - ação coletiva -, através do qual se pode obter sua proteção.
37
Quanto ao tema dos direitos difusos, ver, por todos: Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos
e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1995, p.56-91
38
Conforme Hugo Nigro Mazzilli, na obra: A defesa dos interesses difusos em juízo. 4.ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1992, p.21-22.
17
Estranhamente, a nova Lei do Mandado de Segurança prevê, no parágrafo
único do art. 21, que os direitos tutelados por essa ação constitucional seriam os
coletivos stricto sensu e os individuais homogêneos, adotando-se, no referido
dispositivo, as definições contidas no parágrafo único, II e III, do art. 81 do Código de
Defesa do Consumidor. Ao que parece, o legislador excluiu da abrangência do
mandado de segurança coletivo os direitos difusos. Em nosso sentir, não tem razão
o legislador. É certo que os entes legitimados podem ter, entre seus fins
institucionais, a proteção de direitos que atinjam todos os seus membros ou
associados, de forma indivisível, sem que entre eles - ou em relação à parte
contrária - haja uma relação jurídica base. Cite-se, como exemplo, a atuação de um
partido político que se volta contra uma propaganda eleitoral de cunho racista. Tratase de direito verdadeiramente difuso, pois coibir o racismo interessa à sociedade, ou
seja, a todos os membros da coletividade, indistintamente. A propósito, deve-se
considerar que o próprio regime democrático é direito difuso, e não poderia ser
excluída sua proteção, pelos partidos políticos, através do mandado de segurança
coletivo. Em suma, entendemos que se deve desconsiderar a omissão da lei, em
relação aos direitos difusos, admitindo-se o mandado de segurança coletivo para a
tutela dos direitos coletivos em sentido lato39.
Desde a criação do mandado de segurança coletivo, preocuparam-se os
autores em ressaltar a maior abrangência da liminar nele concedida, recomendando
maior rigor na concessão de medidas que pudessem “engessar” a atuação de
pessoas jurídicas de direito público. Certamente com tal preocupação, o legislador
repetiu a regra do art. 2º da Lei 8.437/92, dispondo, no § 2º do art. 22 da nova Lei do
Mandado de Segurança, que a liminar no mandado de segurança coletivo “só
39
Nesse sentido a posição de Luiz Manoel Gomes Junior, na obra: Comentários à nova lei do
mandado de segurança. Obra citada, p.191-193. No mesmo sentido, antes da edição da nova Lei do
Mandado de Segurança, Antonio Carlos Garcias Martins sustentou: “Somos inclinados a reconhecer
que a ação de mandado de segurança coletivo, efetivamente, não deve restringir-se aos interesses
coletivos estrito senso e individuais homogêneos. Sua atuação é ampla, inclusive no tocante aos
interesses difusos, até porque estes interesses, que nada mais são que fatos valorados e tuteláveis
pelo direito posto, de certo modo são fluídicos até um dado momento, pois podem ser afetados por
circunstâncias que os levam a receber a qualificação de coletivo, por afetar uma coletividade”
(Mandado de segurança coletivo. Porto Alegre: Síntese, 1999, p.70). Um dos autores deste texto já
sustentou opinião no sentido contrário, isto é, de que os direitos difusos estariam excluídos do âmbito
de incidência (Wambier, Luiz Rodrigues. Tutela jurisdicional das liberdades públicas. Curitiba: Juruá,
1991, p.98). Essa opinião, no entanto, não prevalece presentemente.
18
poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica
de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 (setenta e duas) horas”.
Por fim, ainda no tocante ao mandado de segurança coletivo, estabelece o
novo diploma legal, no § 1º do art. 22, que essa ação constitucional “não induz
litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não
beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu
mandado de segurança no prazo de 30 (trinta) dias a contar da ciência comprovada
da impetração da segurança coletiva”. Observe-se que o legislador mencionou
“desistência” e não suspensão da ação individual, como se dá com as ações
coletivas disciplinadas pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 104). Assim,
criou, a nosso ver, injustificável restrição, na medida em que, desistindo do mandado
de segurança individual e deparando-se com sentença de improcedência no
mandado de segurança coletivo, a parte poderá se ver impossibilitada de impetrar
novo mandado de segurança individual, em razão do próprio decurso do prazo
decadencial de 120 dias.
5 - Conclusão
Como dissemos, em muitos aspectos a Lei 12.016/09 não representa
propriamente
um
avanço.
Nem
todas
as
consolidações
doutrinárias
e
jurisprudenciais sobre o mandado de segurança foram incorporadas no novo
diploma legal. Mas também é certo que, a despeito de alguns pontos questionáveis
e mesmo criticáveis, a Lei 12.016/09 contém aspectos positivos e muitas de suas
disposições constituem, verdadeiramente, inovações importantes em nosso sistema
processual, a exemplo da regulamentação do mandado de segurança coletivo.
Deverá haver, por certo, construções doutrinárias e jurisprudenciais no
sentido de corrigir eventuais falhas ou lacunas da Lei 12.016/09, interpretando e
aplicando a nova disciplina legal do mandado de segurança à luz das normas
constitucionais que o conceberam.
19
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