O ano era 1988. Uma comissão foi formada para elaborar
o anteprojeto de lei que daria origem à Lei no 8.078, de 11 de
setembro de 1990, mais conhecida como Código de Defesa do
Consumidor (CDC). Duas décadas se passaram, e daqui a dois
meses o CDC apagará 20 velinhas.
Entre os integrantes da Comissão que elaborou o CDC estava o
primeiro procurador de justiça do consumidor, José Geraldo Brito
Filomeno, com quem conversamos em seu escritório, em São Paulo.
Ele voltou no tempo para nos contar com entusiasmo sua participação
no movimento consumerista brasileiro e sua atuação no
Procon/SP na década de 80, antes da promulgação
do Código, quando entrou com ações civis
públicas importantes como a que proibiu a
distribuição de leite em pó contaminado
importado pelo Brasil depois do acidente
nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986.
Como coautor do CDC, pôde fazer, com
propriedade, um balanço de todos esses
anos em que tem sido aplicado e defendeu
que ele não precisa ser modificado.
José Geraldo Brito Filomeno, autor
dos livros Manual de direitos do
consumidor (Editora Atlas), Curso
fundamental de direito do consumidor
(Editora Atlas), entre outros, e de mais
de 100 artigos, está aposentado, mas
continua advogando na área
consultiva da defesa do consumidor
CDC –
20 anos depois
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Revista do Idec | Julho 2010
FOTOS IZILDA FRANÇA
ENTREVISTA
Idec: O senhor trabalhou no Procon antes da elaboração do CDC. Como era feita a defesa do consumidor naquela época?
José Geraldo Brito Filomeno: Em 2003 fui designado pelo Conselho Nacional de Procuradores Gerais
para trabalhar dentro do Procon como promotor de
justiça do consumidor. Diante da falta de uma lei específica, eu atendia as reclamações que o Procon não
tinha conseguido resolver e requisitava a instalação de
inquéritos policiais por crimes de estelionato, contra a
saúde pública, fraude no comércio etc. A grande angústia, tanto minha quanto dos outros promotores, era
a falta de um instrumento adequado para promover a
defesa do consumidor, sobretudo no âmbito coletivo. As queixas individuais, tudo bem, chamávamos o
reclamante e o reclamado e propúnhamos uma solução amigável.
Em 1985 aconteceu uma verdadeira revolução, a Lei
de Ação Civil Pública, que deu não só ao promotor do
Ministério Público, mas também a entidades como o
Procon, o Idec e outras, legitimidade para propor ações
coletivas do consumidor. Só que ainda havia um problema. A Constituição de 1985 só previa os chamados
direitos difusos, aqueles que dizem respeito a um
número indeterminado de pessoas e que não pode ser
quantificado em um primeiro momento.
Mas ainda faltava o interesse coletivo – que é cincunscrito a um grupo determinado de pessoas –, por
exemplo, os alunos da escola tal, que fazia cobrança
abusiva de mensalidade. A Constituição de 1988 veio
defender esses interesses por meio do artigo 129, que
define as funções do Ministério Público. A partir de
então, o Idec, o Ministério Público e outras entidades
puderam entrar com ações para proteger um grupo de
pessoas. Mas a decisão só serve para elas. Veja que tivemos uma evolução importante.
Idec: O senhor é um dos autores do CDC. Como
foi sua participação e quais são os pontos altos
do Código?
JGBF: O Código foi uma necessidade, e quando
existe uma necessidade é preciso inventar alguma coisa
para satisfazê-la. A ideia de ter um Código surgiu
enquanto a Constituição estava sendo elaborada. A
Constituinte foi instalada em 1987, e nesse ano houve,
estrategicamente, um encontro muito importante das
entidades de defesa do consumidor em Brasília, e um
Congresso do Ministério Público em Belo Horizonte. E
eu apresentei, junto com o dr. Antônio Herman Benjamin [hoje ministro do Superior Tribunal de Justiça] e
mais dois promotores de São Paulo, as teses de que o
consumidor deveria ser protegido pela Constituição e
que o Ministério Público tinha a função de protegê-lo.
Levamos essas ideias para o senador Afonso Arinos,
que disse que de alguma maneira elas
iam aparecer na Constituição. Hoje a
Constituição diz no artigo 5o, que
trata dos direitos e garantias fundamentais, que a defesa do consumidor
é função do Estado na forma da lei.
Que lei? O Código de Defesa do Consumidor. Mas antes mesmo de a
Constituição ser promulgada em outubro de 1988, foi constituída, em junho, no âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor
[CNDC], uma comissão especialmente criada para fazer o anteprojeto
do Código. Essa comissão foi presidida pela dra. Ada Pellegrini Grinover, e
eu era o vice-presidente. Dela participaram vários profissionais ligados
direta ou indiretamente à área do
consumidor. E de uma conferência
em Montevidéu, no Uruguai, em
1987, saiu um Projeto de Lei do
Consumidor básico que tinha só quatro artigos: o primeiro definia o que
era consumidor; o segundo, o que era
fornecedor; o terceiro, o que era serviço; e o quarto, quais eram os direitos
básicos do consumidor. Era uma espécie de chassi de veículo, só com
rodas, câmbio e motor, e tínhamos de
fazer a carroceria de acordo com a
peculiaridade de nosso país. Então,
pegamos esse chassi, essa lei modelo
da IOCU (International Organization
of Consumers Union), que hoje é chamada de Consumers International,
analisamos as leis do consumidor e
os projetos de lei de 14 países e aproveitamos o que tinham de melhor.
Começamos a trabalhar em junho de
1988. Em novembro o anteprojeto
estava pronto e o apresentamos ao
ministro da Justiça, que o encaminhou ao Congresso. Em 1989 nosso
trabalho foi publicado no Diário
Oficial da União como projeto do
governo e foram incluídas outras sugestões, até boas. Entramos em contato com o deputado federal [Geraldo] Alckmin, que pegou nosso
projeto e o juntou com outros, mas
prevaleceu o nosso trabalho. Algumas coisas que estão lá não fomos
nós que colocamos, outras acabaram
Revista do Idec | Julho 2010
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sendo vetadas, mas não desfiguraram
o Código.
E acho que o ponto alto do CDC,
que deixa todo mundo encantado, é a
tutela coletiva do consumidor.
Idec: Em setembro o CDC completa 20 anos. Se o senhor fizesse um balanço desse período, o
que destacaria?
JGBF: Pesquisa feita pelo DataSenado [Instituto de Pesquisa do Senado Federal] e publicada na Folha de S.
Paulo meses atrás revelou que 46%
dos brasileiros já se valeram do Código de Defesa do Consumidor para
resolver problemas pessoais. Claro
que as pesquisas são relativas, porque
dependem do universo de pesquisados, mas se 46% das pessoas entrevistadas disseram que já tiveram problemas de consumo e se valeram do
CDC para resolvê-lo, é sinal de que
ele é um sucesso. Talvez seja mais
conhecido no mundo jurídico do que
no mundo, digamos, popular, mas
está em bom caminho.
O CDC, ao lado da Lei Áurea, de 13
de maio de 1888, é a única lei que faz
aniversário. Quando a Constituição
Federal fez 20 anos quase não se falou
disso, houve um ou outro seminário.
Sobre os 20 anos do CDC eu já dei
cinco ou seis palestras (e tenho outras
agendadas até o fim do ano), além de
várias entrevistas. Então, posso dizer
que é uma lei que pegou. Ela podia ser
mais conhecida? Podia. Mas isso depende de informação e educação.
Quem é responsável pela informação?
As entidades de defesa do consumidor
e a imprensa. E pela educação? Os
órgãos do Estado e as escolas privadas.
Idec: Tramitam na câmara mais
de 270 projetos de lei que pretendem alterar alguns artigos do CDC.
O senhor concorda com eles?
JGBF: O Código não demanda nenhum tipo de modificação. Apesar de
ter 20 anos não deve ser mexido, porque pode vir a ser desfigurado.
Mas agora grande parte dos negócios é feita pela internet. E daí? Que
façam uma lei para disciplinar a inter-
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Revista do Idec | Julho 2010
‘‘
Outra grande
pataquada que se
fala é que o CDC é
incompleto. Não, não.
O CDC é principiológico.
Vale muito mais pelos
princípios do que pelos
postulados que coloca
’’
net. O CDC já fala sobre comercialização feita fora do estabelecimento
comercial, que inclui a internet.
Outra grande pataquada que se fala
é que o CDC é incompleto. Não, não.
O CDC é principiológico. Vale muito
mais pelos princípios do que pelos
postulados que coloca. Ele não vai resolver todos os problemas que afetam
o consumidor, e nem era essa a intenção. Até porque quando foi promulgado e sancionado já havia outras
inúmeras leis que de uma forma ou de
outra disciplinavam as atividades humanas e negociais. O CDC não veio
para disciplinar tudo, mas para estabelecer princípios fundamentais básicos, como a harmonia entre consumidor e fornecedor, a boa-fé e o equilíbrio nas relações negociais, a responsabilidade civil objetiva, a interpretação mais favorável dos contratos. Ao
fazer o anteprojeto do CDC sempre
tivemos em mente uma lição ensinada
pelo professor [José Maria] Othon Sidou, autor do primeiro livro sobre direito do consumidor no Brasil, Proteção ao consumidor (Editora Forense),
de 1977. Ele dizia o seguinte: é bom
que o Brasil tenha uma lei de defesa
do consumidor como outros países já
têm, só que é preciso ter cautela para
não se fazer uma lei que preveja tudo.
Se alguém quiser prever tudo, vai
parecer com os alquimistas da Ida-
de Média em busca da Pedra Filosofal.
O CDC não precisa de mais que 119
artigos. Acho que está de bom tamanho.
Idec: Este mês o Idec está fazendo 23 anos. Como o senhor vê a
atuação das entidades não governamentais?
JGBF: Elas não estão trabalhando
muito bem, não, com algumas exceções. Talvez o que falta seja intercomunicação, porque muitas vezes fica
todo mundo atirando contra o mesmo
fornecedor. É prejuízo para os fornecedores, que têm de correr para cima
e para baixo em audiências, e para as
entidades, que poderiam estar tratando de outros assuntos. Acho que falta
fixar prioridades. Vou dar um exemplo recente, o da bebida Alpino, que
dizem que não contém alpino. O
Procon/SP, o Procon/RJ, o DPDC, o
Ministério Público do Rio de Janeiro
instauraram procedimento para impor multa. Aí vem a Anvisa e diz:
“gente, isso é problema meu, quem
cuida da rotulagem de bebida sou eu.
Vocês não têm nada a ver com isso. Ô
Nestlé, muda o rótulo”. Ela vai e muda, porque o fornecedor nem sempre
é o bandido da história, às vezes, ele
aceita mudar.
O que está faltando a essas entidades é uma comunicação mais efetiva
entre elas mesmas. Sei que existe o
Sindec [Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor,
banco de dados que disponibiliza
informações sobre problemas de consumo registrados nos Procons e que é
administrado pelo Departamento de
Proteção e Defesa do Consumidor –
DPDC] , mas ele é limitado. Tem de se
entrosar mais com o Ministério Público e as entidades não governamentais.
Outra questão: o [Ricardo] Morishita [diretor do DPDC] falou, e eu
concordo com ele, que os Procons,
especificamente, não podem se transformar em SACs [Serviço de Atendimento ao Consumidor]. Porque o que
acontece é o seguinte: o camarada
procura o SAC da empresa, é mal
atendido, aí vai ao Procon, que vira
balcão de atendimento do fornecedor.
O problema deveria ser solucionado
pelo próprio fornecedor. Como? Informando melhor o consumidor, fazendo manuais de instrução mais
claros e com informações mais simples, ofertas e publicidades mais honestas, contratos mais claros e tendo
um SAC mais eficiente.
Idec: Em julho temos outro aniversário – o da Lei de Ação Civil
Pública (ACP) de 24 de julho de
1985. O Idec já propôs muitas
ACPs. Qual a sua opinião sobre essa ferramenta jurídica?
JGBF: Como ex-coordenador das
procuradorias do consumidor, sempre recomendei aos promotores que
seria preferível fazer termos de compromisso de ajustamento de conduta
para acabar com o problema rapidamente e satisfazer o interesse do consumidor, que entrar com ação civil
pública, que é complicada, demorada, complexa e dá muito trabalho. Só
quem já promoveu uma ação civil
pública conhece a dificuldade. Mas
não quero dizer que se deve abrir mão
do direito do consumidor, sobretudo
quando diz respeito à saúde e à segurança, para fazer um acordo. Se tiver
de entrar com uma ação, entre. Só que
se puder resolver amigavelmente, melhor. É claro que as ações civis públicas são importantes e úteis. Elas são
um remédio fundamental para a tutela
dos interesses difusos e coletivos, mas
não devem ser usadas a torto e direito.
Idec: Em 2009, os setores campeões de reclamações no Idec foram o de planos de saúde, de tele-
‘‘
O ponto alto do CDC,
que deixa todo mundo
encantado, é a tutela
coletiva do consumidor
’’
comunicações e o financeiro. Os
três setores são regulados, o que
mostra a ineficiência da ANS, da
Anatel e do Banco Central, respectivamente. Como o trabalho das
agências pode ser melhorado em
prol dos consumidores?
JGBF: Falta vontade política a essas
agências, e pelo que tenho observado, o governo federal não dá lá muita
importância para elas. A atuação das
agências pode ser melhorada à medida que criarem organismos de fiscalização efetiva de suas atividades.
Elas têm dado muito mais importância aos contratos e ao equilíbrio
econômico-financeiro das privatizações do que à vertente constitucional.
Esse equilíbrio está na Constituição,
mas o equilíbrio dos usuários também está.
Idec: Este ano temos eleições.
Quais deveriam ser as preocupações dos candidatos em relação aos
direitos dos consumidores?
JGBF: Primeiro, preocupar-se com
a restituição do Conselho Nacional
de Defesa do Consumidor, que seria
um dos caminhos, não digo o único,
para a coordenação das entidades de
defesa do consumidor. Desse Conselho participariam a indústria, o comércio, o Conar [Conselho Nacional
de Autorregulamentação Publicitária], o Idec e outras entidades de
defesa do consumidor, o Ministério
Público, a OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e todos os que precisam se comprometer. Segundo, eles
precisam se preocupar com a grande
temática do século 21, que é o consumo sustentável. De uma vez por
todas precisam votar, de uma maneira ou de outra, o maledeto Código
Florestal e a lei de resíduos sólidos,
porque já está nascendo capim. A
única candidata que tem essa preocupação é a Marina [Silva], parece, mas
de maneira insipiente.
Saiba mais:
Leia a entrevista completa em nosso site
<www.idec.org.br>
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