EXISTE DISCRICIONARIEDADE NA EXECUÇÃO DE MEDIDAS
PARA SALVAGUARDAR O MEIO AMBIENTE?
IS THERE ARBITRARYNESS IN THE ACTS OF EXECUTING
MEASURES TO PROTECT THE ENVIRONMENT?
João Gabriel Lemos Ferreira ∗
José Luiz Ragazzi ∗ ∗
RESUMO
A constante inação da Administração Pública no que diz respeito à
proteção do meio ambiente não tem mais espaço na execução da gestão
administrativa. Os valores referentes à biodiversidade, os interesses dos
cidadãos na Amazônia e tudo aquilo que diga respeito ao meio ambiente
não podem mais ficar à mercê do administrador público e da sua
discricionariedade.
Não cabe mais espaço de mérito nas ações que demandem a iniciativa da
Administração Pública diante dos problemas que surgem envolvendo o
meio ambiente.
Desta forma, esse trabalho tem o objetivo de combater o paradigma da
impossibilidade de discussão do mérito do ato administrativo no que diz
respeito ao meio ambiente.
PALAVRAS-CHAVE:
MEIO
AMBIENTE
-
SETOR
PÚBLICO
-
DISCRICIONÁRIO.
∗
Mestr ando em D ir e ito pela ITE – Bauru . Assessor Jurídico da Prefeitura Municipal de Santa
Cruz do Rio Pardo
∗∗
Me s tr e em D ir e ito pe la IT E Bauru. Dou tor e m D ir e ito p e la PU C/SP . Pro fe ssor d a
F a cu ldad e de D ire ito d e Bauru – I TE . Prof es sor do Cu rso de Mes trado e m D ire ito d a
I TE – Bauru
ABSTRACT
The constant Public Administration inactivity related to environment
protection no longer should exist in the execution of administration
conduct. Biodiversity values, citizens´s interests in Amazonia and
anything that matters to environment cannot be submitted to the public
administrator and his arbitrariness.
There is no discretional space in the actions that demand Public
Administration iniciative before arising problems regarding environment.
Hence it follows that this paper aims to fight the paradigm of
impossibility
of
authority
and
convenience
discussion
hereupon
administrative act with regard to environment.
KEYWORDS:
ENVIRONMENT
-
PUBLIC
SECTOR
-
DISCRETIONARY.
1. INTRODUÇÃO
A preservação e proteção de equilíbrio ao meio ambiente são
imposições constitucionais impostas a todos os administradores públicos,
independentemente da esfera de poder ao qual pertençam. O Estado é o
primeiro obrigado a garantir esse direito aos cidadãos.
Ainda que se reconheça a relevância da igualdade entre os três
poderes, não se pode ignorar que o Poder Judiciário é o último bastião do
cidadão na defesa dos seus interesses. A negativa desse poder na
efetivação dos direitos fundamentais, principalmente por outros motivos
que não jurídicos, é negar a própria jurisdição em verdadeira violação à
Constituição Federal. Negar o direito pela inexistência do direito é
discutível, compreensível e tolerável. Porém, negar o direito pela
inexistência de instrumentos é afirmar a incompetência do Poder em
fazer aquilo para o qual foi instituído.
Não cabe mais aceitar a prevalência da separação dos poderes
prevista em nosso ordenamento constitucional quando se tratar de
efetivação de direito fundamental envolvendo o meio ambiente, nem se
admitir que esse sistema seja empecilho para a efetivação dos direitos
fundamentais.
A prestação do Estado em oferecer ao cidadão um meio ambiente
ecologicamente equilibrado para a sadia qualidade de vida, inexiste,
sempre por razões que são reconhecidamente menores, se comparadas à
necessidade do pleno exercício dos direitos fundamentais.
Desse modo, esse trabalho tem o objetivo de provocar a
discussão da imposição de caráter relativo à discricionariedade conferida
à Administração Pública para a prática de certos atos.
2. BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A DISCRICIONARIEDADE DO
ATO ADMINISTRATIVO
Os atos administrativos estão dotados de certo grau de liberdade,
o que permite que sejam classificados em discricionários e vinculados.
No entender de GASPARINI, “são vinculados os praticados pela
Administração Pública sem a menor margem de liberdade”. 1 Nesse caso,
não existe espaço de liberdade para o administrador agir, ou seja, cabelhe cumprir aquilo que a lei determina que ele faça, nos moldes
previamente estipulados.
1
GASPARINI, Diógenes. Direito Ad min istrativo , 7ª ed ição, São Pau lo : Editora Saraiva,
2002. p. 75 .
Conforme o mesmo GASPARINI, “são discricionários os atos
praticados pela Administração Pública com certa margem de liberdade.
A Administração edita-os depois de uma avaliação subjetiva”. 2 A lei não
impõe
ao
administrador
um
modo
de
agir,
não
exige
dele
um
comportamento determinado. A ação ou omissão do administrador estará
relacionada a uma avaliação subjetiva calcada no interesse público.
A
discricionariedade
está
relacionada
à
oportunidade
e
conveniência que são atribuídas ao administrador público para a prática
dos atos administrativos. Trata-se da possibilidade que o administrador
público tem em escolher o momento mais adequado para que o ato seja
praticado, ou que não o seja. Mesmo a inação importa na decisão
subjetiva e, portanto, discricionária.
3.
O
DIREITO
AO
MEIO
AMBIENTE
E
ANOTAÇÕES
CONCEITUAIS
Antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, a Lei
nº 6.938/81 trouxe, em seu artigo 3º, in verbis, uma determinação do que
seria o meio ambiente:
Art. 3º - Para os fins previstos
nesta Lei, entende-se por:
I - meio ambiente, o conjunto de
condições,
leis,
influências
e
interações de ordem física, química
e biológica, que permite, abriga e
rege a vida em todas as suas
formas;
II - degradação da qualidade
ambiental, a alteração adversa das
características do meio ambiente;
III - poluição, a degradação da
qualidade ambiental resultante de
2
Ob. cit., p. 75.
atividades
que
indiretamente:
direta
ou
a)
prejudiquem
segurança e o
população;
a
saúde,
bem-estar
a
da
b) criem condições adversas às
atividades sociais e econômicas;
c) afetem
biota;
desfavoravelmente
a
d) afetem as condições estéticas ou
sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em
desacordo
com
os
padrões
ambientais estabelecidos;
IV - poluidor, a pessoa física ou
jurídica, de direito público ou
privado, responsável, direta ou
indiretamente,
por
atividade
causadora
de
degradação
ambiental;
V
recursos
ambientais:
a
atmosfera, as águas interiores,
superficiais e subterrâneas, os
estuários, o mar territorial, o solo,
o
subsolo,
os
elementos
da
biosfera, a fauna e a flora.
(Redação dada pela Lei nº 7.804,
de 18.07.89)
O artigo 225, da Constituição Federal, in verbis, assim dispõe:
“Art. 225 - Todos têm direito ao
meio
ambiente
ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade
de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as
resentes e futuras gerações”.
Parágrafo
primeiro
Para
assegurar a efetividade desse
direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os
processos ecológicos essenciais e
prover o manejo ecológico das
espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a
integridade do patrimônio genético
do País e fiscalizar as entidades
dedicadas
à
pesquisa
e
manipulação de material genético;
(...)
VII - proteger a fauna e a flora,
vedadas na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam
os animais a crueldade”.
Não se tentará, aqui, estabelecer uma conceituação de meio
ambiente,
porquanto
esteja
clara
aquela
disposta
na
legislação
infraconstitucional, suficiente para o desenvolvimento do trabalho.
Esclarecidos esses conceitos, essenciais ao deslinde do trabalho,
seguimos na questão principal, de mitigação da discricionariedade
concedida à Administração Pública.
4. A DISCRICIONARIEDADE E A PROTEÇÃO AO MEIO
AMBIENTE
É inequívoco, pois, que a preservação e proteção do equilíbrio do
meio ambiente são obrigações de ordem imperativa. É primordial que o
meio ambiente seja alçado à condição excelsa que merece ter, pois a sua
proteção é a do próprio ser humano.
À Administração Pública cabe agir, ou deixar de agir, tendo
como referência a obrigatoriedade em atender ao comando constitucional
que garante um meio ambiente saudável para todos.
A vontade administrativa que contém comandos de oportunidade
e conveniência não ultrapassa os valores constitucionais alhures, de
modo que a subjetividade do administrador deverá estar adstrita à
escolha de como deve cumprir ao preceituado na Constituição Federal.
Não lhe cabe planejar se deve fazê-lo, mas, sim, como deve fazê-lo.
Em outras palavras, o administrador público somente pode fazer
uso da discricionariedade na escolha dos instrumentos para fazer valer os
direitos fundamentais relacionados ao meio ambiente, e não se poderá
agir ou deixar de agir conforme a conveniência e oportunidade que julgar
mais adequada à coletividade.
Não é diferente o entendimento de CUNHA acerca das matérias
constitucionais: “Todas as normas constitucionais, sem exceção, mesmo
as permissivas, são dotadas de imperatividade, por determinarem uma
conduta positiva ou uma omissão, de cuja realização são obrigadas
todas as pessoas e órgãos às quais elas se dirigem”. 3 Contudo, diante
dos vários argumentos levados à colação nas defesas dos interesses da
Administração Pública, verificamos um verdadeiro travamento do Poder
Judiciário nas lides que demandam uma intervenção mais afeita aos
moldes constitucionais.
O Poder Judiciário, único dentre os quais capaz de solucionar os
conflitos que exijam a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, evita
interferir na esfera do Poder Executivo, no (in)justo receio de que irá
partir o elo da separação dos poderes ao adentrar na discricionariedade
afeita aos administradores públicos.
3
CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Controle Judicial das Omissões do Poder Público, Editora Saraiva: 2004,
São Paulo, p. 47.
Todavia, essa forma de interpretar o sistema não tem mais espaço
na hermenêutica do direito. Há de se concordar com NERY no sentido de
que “a hermenêutica do direito não pode conduzir à injustiça, não pode
ser causa de desorientação, de perda de valores fundamentais para a
sobrevivência do homem, de perda do estado de igualdade”. 4
Não cabe mais admitir que o controle judicial sobre os limites da
discricionariedade do ato administrativo se dê tão somente no âmbito da
legalidade deste. O respeito à discricionariedade não merece prevalecer
se o que estiver em discussão for qualquer dos direitos fundamentais
previstos em nossa Constituição.
Igualmente não cabe mais aceitação da prevalência da separação
dos poderes prevista em nosso ordenamento constitucional quando se
tratar de efetivação de direito fundamental envolvendo o meio ambiente.
Bem resolveu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) ao
decidir que “no microssistema da tutela ambiental impõe-se, em virtude
dos princípios da precaução e preservação, uma atuação preventiva do
Poder Judiciário, de forma a evitar o dano ao meio-ambiente, pois este,
depois de ocorrido, é de difícil ou impossível reparação”. 5 E, ainda, “o
meio ambiente, como um bem extraordinariamente relevante ao ser
humano, é tutelado pela Constituição Federal. Assim, é dever inafastável
do Estado empreender todos os esforços para a sua tutela e preservação,
sob pena de violação ao artigo 225 da CF. O Poder Judiciário, no
exercício de sua alta e importante missão constitucional, deve e pode
impor ao Poder Executivo Municipal o cumprimento da disposição
constitucional que garante a preservação do meio ambiente, sob pena de
não o fazê-lo, compactuar com a degradação ambiental e com piora da
4
NERY , Rosa Mar ia de Andr ade, Pro cesso e Con stitu ição, Estudos em Ho me n agem ao
Professo r José Car lo s Ba rbosa Mor eir a, Ed itor a Rev ista dos Tr ibunais: 2006, p. 427 .
5
BRA SIL. Tr ibun al d e Justiça de Min as Gerais. Agr avo de In stru me n to nº
1.0388 .04.004.682-2 /001. Agr avante: Mun icípio d e Luz. Ag rav ado : o Min istér io
Púb lico do Estado de Minas Gerais. Re lator a: D es . Mar ia E l za . Be lo Hor i zon te, 21
d e ou tubro d e 2004.
qualidade de vida de toda sociedade. A judicialização de política
pública, aqui compreendida como implementação de política pública
pelo Poder Judiciário, harmoniza-se com a Constituição de 1988. A
concretização do texto constitucional não é dever apenas do Poder
Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário. É certo que, em
regra a implementação de política pública, é da alçada do Executivo e
do
Legislativo,
todavia,
na
hipótese
de
injustificada
omissão,
o
Judiciário deve e pode agir para forçar os outros poderes a cumprirem o
dever constitucional que lhes é imposto. A mera alegação de falta de
recursos financeiros, destituída de qualquer comprovação objetiva, não
é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao Município de Luz de
preservar o meio ambiente. Assim, a este caso não se aplica à cláusula
da Reserva do Possível, seja porque não foi comprovada a incapacidade
econômico-financeira do Município de Luz, seja porque a pretensão
social de um meio ambiente equilibrado, preservado e protegido se
afigura razoável, estando, pois, em plena harmonia com o devido
processo legal substancial”.
Não se negue que o princípio da legalidade norteava as decisões
judiciais e permitia que o administrador público agisse conforme as
prioridades que ele julgasse apropriadas. O mesmo se diga em relação à
separação dos poderes, que é um verdadeiro obstáculo e paradigma
ultrapassado que impedia o Poder Judiciário de adentrar no campo de
atuação do Poder Executivo, em razão da ampliação inoportuna do
referido princípio.
A teoria da separação dos poderes foi objeto de uma construção
valiosa para a época e para a sedimentação dos regimes democráticos e
para a derrubada do absolutismo. Porém, querer aplicar nos dias de hoje
a mesma teoria criada nos séculos passados, nos mesmos termos, é travar
a evolução do Direito e das relações sociais. Ressalte-se que não se
pretende fazer esquecer o princípio, mas tão somente adequá-lo.
John Locke, que abordou o assunto em 1690, na obra “Segundo
Tratado Sobre o Governo”, juntamente com Montesquieu, escritor de “O
Espírito das Leis”, em 1748, tiveram participação importante no
desmonte dos governos despóticos de outrora. Não podem, contudo,
servirem de escudo para o progresso social que é exigido nos tempos
atuais. Um novo equilíbrio de forças entre os Poderes constituídos
mostra-se necessário.
Em rápida abordagem, tem-se, hoje, um Poder Executivo que não
executa o devido, que exerce influência considerável sobre o Poder
Legislativo, com total anuência do Poder Judiciário, temeroso em
penetrar
por
delimitações
imaginárias
que
não
têm
guarida
na
Constituição Federal.
O sistema de freios e contrapesos serve justamente para tornar
equilibrada a atuação entre os Poderes, mas só funciona se cada qual
exercer o seu papel de acordo com a Constituição Federal. Não se pode
admitir que esse sistema seja empecilho para a efetivação dos direitos
fundamentais.
Aliás, LOCKE considerava que “quem tem a tarefa de definir o
modo com que se deverá utilizar a força da comunidade para a
preservação dela própria e dos seus membros é o legislativo”, 6 o que
significa que, para ele, um poder deveria se sobressair sobre os demais.
MONTESQUIEU já considerou de forma diferente, ao explicar que
“quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o
poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir
liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo
senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.
Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver
separado do poder legislativo e do executivo. Se o poder executivo
estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade
6 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. p. 106.
dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver
ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a mesma força de um
opressor.
Tudo então estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo
corpo dos principais, ou o dos nobres, ou o do povo, exercesse estes três
poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de
julgar os crimes e as querelas dos particulares”. 7 Ora, em tempos atuais,
é fácil constatar que tudo aquilo que Montesquieu temia de fato
aconteceu: o Poder Executivo executa os comandos legais, ou não,
conforme a oportunidade e conveniência, bem como elabora leis
conforme as prerrogativas conferidas ao seu respectivo Chefe; o Poder
Legislativo faz as leis, ou ao menos deveria fazê-las, mas também julga
os detentores de mandatos eletivos, conforme se verifica em profusão
pelo Brasil; e, finalmente, o Poder Judiciário julga, mas também manda
executar ou deixar de executar medidas que entender necessárias dentro
da Administração Pública. Apesar de haver de tudo um pouco, o pouco
do Poder Executivo acaba sendo muito se em comparação com os demais
poderes do Estado.
Sobre o mesmo tema, KRELL escreve que “o clássico autor
francês, na verdade, via na divisão dos poderes muito mais um preceito
de arte política do que um preceito jurídico, menos um princípio para a
organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas
um meio de se evitar o despotismo real”. 8
Cada qual com o seu grau de interferência, todos os Poderes
agem de acordo com as suas tarefas precípuas, mas invadem as esferas
alheias, porque previsto no próprio ordenamento jurídico.
7 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. p. 166
8
KRELL, Andréas J., Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, os (Des)caminhos de
um Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 89.
Todavia,
a
barreira
denominada
“separação
dos
poderes”
transformou-se, ainda que inconscientemente, em um recurso utilizado
pelo Poder Judiciário na omissão de mandar executar os comandos legais
previstos na Constituição.
Não se trata, porém, de uma vontade consciente, esta de evitar a
análise do mérito dos atos administrativos, ou exigir do Estado
prestações relacionadas à efetivação dos direitos fundamentais. O Poder
Judiciário acreditou no discurso de que não poderia se imiscuir nas ações
de responsabilidade do Poder Executivo.
Ocorre que, no entender de FOUCAULT, “o direito no Ocidente
é um direito de encomenda régia. Todos conhecem, claro, o papel
famoso, célebre, repetido, repisado, dos juristas na organização do
poder régio. Não convém esquecer que a reativação do direito romano,
em meados da Idade Média, que foi o grande fenômeno ao redor e a
partir do qual se reconstituiu o edifício jurídico dissociado depois da
queda
do
constitutivos
Império
do
Romano,
poder
foi
um
monárquico,
dos
instrumentos
autoritário,
técnicos
administrativo
e,
finalmente, absoluto. Formação,pois, do edifício jurídico ao redor da
personagem régia, a pedido mesmo e em proveito do poder régio.
Quando esse edifício jurídico, nos séculos seguintes, escapar ao
controle régio, quando se tiver voltado contra o poder régio, o que será
discutido serão sempre os limites desse poder, a questão referente às
suas prerrogativas. Em outras palavras, creio que a personagem central,
em todo o edifício jurídico ocidental, é o rei. É do rei que se trata, é do
rei, de seus direitos, de seu poder, dos eventuais limites de seu poder,
dos
eventuais
limites
de
seu
poder,
é
disso
que
se
trata
fundamentalmente no sistema geral, na organização geral, em todo caso,
do sistema jurídico ocidenta”. 9
A limitação do Poder Judiciário é, pois, um embuste para fazer
crer que existe um real sistema de freios e contrapesos que garanta o
9
FOUCAULT, Michael. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 30.
equilíbrio entre as funções do Estado. Não há dúvidas que o absolutismo
de outrora não mais vige, mas também não se diga que prevalece uma
real separação entre os poderes.
O fortalecimento do Judiciário é medida que se faz necessária
para a recomposição de forças no tabuleiro de Poderes, no qual o
Executivo
sempre
deteve
os
meios
para
alcançar
os
fins,
mas
constantemente esforça-se para deixar de fazê-lo. No mesmo sentido,
SANTOS
defende
que
“é
necessário
aceitar
os
riscos
de
uma
magistratura culturalmente esclarecida. Por um lado, ela reivindicará o
aumento de poderes decisórios, mas isso como se viu vai no sentido de
muitas propostas e não apresenta perigos de maior se houver um
adequado sistema de recursos. Por outro lado, ela tenderá a subordinar
a coesão corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis
na sociedade. Daqui resultará uma certa fractura ideológica que pode
ter repercussões organizativas. Tal não deve ser visto como patológico
mas sim como fisiológico. Essas fracturas e os conflitos a que elas
derem lugar serão a verdadeira alavanca do processo de democratização
da justiça”. 10
5. CONCLUSÃO
Os administradores públicos, imersos na tendência histórica de
independência funcional e no manejo da coisa pública, são useiros e
vezeiros no uso e abuso das argumentações que fazem valer a teoria da
separação dos poderes em detrimento das práticas que envolvem o meio
ambiente.
Faz-se necessário fortalecer o Poder Judiciário, para que este
tenha a devida liberdade e dever de avaliar as questões de mérito dentro
10
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice O Social e o Político na Pós Modernidade. São
Paulo: Cortez Editora. 4ª edição, 1997. p. 181/182.
do ato administrativo, abandonando o escudo que se formou em volta
deste conteúdo.
Esse poder do rei, desproporcional àqueles atribuídos aos demais
Poderes, é nocivo ao equilíbrio social, pois impede a execução de
medidas essenciais à efetivação dos direitos humanos.
O poder discricionário se torna um amparo (i)legítimo para que
os Chefes do Poder Executivo demarquem um campo de ação que sequer
o Poder Judiciário se atreve a penetrar, ainda que sabido ser este o poder
incumbido de efetivar qualquer inobservância e/ou descumprimento da
lei e da Constituição Federal.
Diante
da
reconhecida
proteção
que
se
confere
ao
poder
discricionário do administrador público, sucumbem quaisquer iniciativas
no sentido de obrigá-lo a efetivar os direitos fundamentais de amparo e
proteção ao meio ambiente.
Vive-se
verdadeira
síndrome
da
inefetividade
dos
direitos
fundamentais, pois ninguém consegue quebrantar o a argumentação da
separação entre os poderes, como se fosse essa a máxima constitucional
havida no ordenamento jurídico brasileiro.
Ao Poder Judiciário se faz necessário um maior atrevimento na
apreciação de demandas que visem efetivar os direitos fundamentais nas
situações em que há um conflito com os poderes discricionários do
administrador público.
Ora, ainda que se reconheça a relevância do equilíbrio entre os
três poderes, ou funções, não se pode esquecer que a construção teórica
desse princípio data da Idade Média, época em que todos os poderes
eram concentrados em uma pessoa.
Falta apenas romper com o eterno conceito da separação dos
poderes do jeito que o conhecemos. O Direito deve viver com
paradigmas, e não de paradigmas.
BIBLIOGRAFIA
CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder
Público, Editora Saraiva: 2004, São Paulo.
FOUCAULT, Michael. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 2002.
GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 7ª edição, São Paulo:
Editora Saraiva, 2002.
KRELL, Andréas J., Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na
Alemanha, os (Des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Editora
Martin Claret, 2002.
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2004.
NERY, Rosa Maria de Andrade, Processo e Constituição, Estudos em
Homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, Editora Revista
dos Tribunais: 2006.
SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice O Social e o Político
na Pós Modernidade, 4ª edição. São Paulo: Cortez Editora. 4ª edição,
1997.
Download

João Gabriel Lemos Ferreira e José Luiz Ragazzi