EXISTE DISCRICIONARIEDADE NA EXECUÇÃO DE MEDIDAS PARA SALVAGUARDAR O MEIO AMBIENTE? IS THERE ARBITRARYNESS IN THE ACTS OF EXECUTING MEASURES TO PROTECT THE ENVIRONMENT? João Gabriel Lemos Ferreira ∗ José Luiz Ragazzi ∗ ∗ RESUMO A constante inação da Administração Pública no que diz respeito à proteção do meio ambiente não tem mais espaço na execução da gestão administrativa. Os valores referentes à biodiversidade, os interesses dos cidadãos na Amazônia e tudo aquilo que diga respeito ao meio ambiente não podem mais ficar à mercê do administrador público e da sua discricionariedade. Não cabe mais espaço de mérito nas ações que demandem a iniciativa da Administração Pública diante dos problemas que surgem envolvendo o meio ambiente. Desta forma, esse trabalho tem o objetivo de combater o paradigma da impossibilidade de discussão do mérito do ato administrativo no que diz respeito ao meio ambiente. PALAVRAS-CHAVE: MEIO AMBIENTE - SETOR PÚBLICO - DISCRICIONÁRIO. ∗ Mestr ando em D ir e ito pela ITE – Bauru . Assessor Jurídico da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Rio Pardo ∗∗ Me s tr e em D ir e ito pe la IT E Bauru. Dou tor e m D ir e ito p e la PU C/SP . Pro fe ssor d a F a cu ldad e de D ire ito d e Bauru – I TE . Prof es sor do Cu rso de Mes trado e m D ire ito d a I TE – Bauru ABSTRACT The constant Public Administration inactivity related to environment protection no longer should exist in the execution of administration conduct. Biodiversity values, citizens´s interests in Amazonia and anything that matters to environment cannot be submitted to the public administrator and his arbitrariness. There is no discretional space in the actions that demand Public Administration iniciative before arising problems regarding environment. Hence it follows that this paper aims to fight the paradigm of impossibility of authority and convenience discussion hereupon administrative act with regard to environment. KEYWORDS: ENVIRONMENT - PUBLIC SECTOR - DISCRETIONARY. 1. INTRODUÇÃO A preservação e proteção de equilíbrio ao meio ambiente são imposições constitucionais impostas a todos os administradores públicos, independentemente da esfera de poder ao qual pertençam. O Estado é o primeiro obrigado a garantir esse direito aos cidadãos. Ainda que se reconheça a relevância da igualdade entre os três poderes, não se pode ignorar que o Poder Judiciário é o último bastião do cidadão na defesa dos seus interesses. A negativa desse poder na efetivação dos direitos fundamentais, principalmente por outros motivos que não jurídicos, é negar a própria jurisdição em verdadeira violação à Constituição Federal. Negar o direito pela inexistência do direito é discutível, compreensível e tolerável. Porém, negar o direito pela inexistência de instrumentos é afirmar a incompetência do Poder em fazer aquilo para o qual foi instituído. Não cabe mais aceitar a prevalência da separação dos poderes prevista em nosso ordenamento constitucional quando se tratar de efetivação de direito fundamental envolvendo o meio ambiente, nem se admitir que esse sistema seja empecilho para a efetivação dos direitos fundamentais. A prestação do Estado em oferecer ao cidadão um meio ambiente ecologicamente equilibrado para a sadia qualidade de vida, inexiste, sempre por razões que são reconhecidamente menores, se comparadas à necessidade do pleno exercício dos direitos fundamentais. Desse modo, esse trabalho tem o objetivo de provocar a discussão da imposição de caráter relativo à discricionariedade conferida à Administração Pública para a prática de certos atos. 2. BREVES ANOTAÇÕES SOBRE A DISCRICIONARIEDADE DO ATO ADMINISTRATIVO Os atos administrativos estão dotados de certo grau de liberdade, o que permite que sejam classificados em discricionários e vinculados. No entender de GASPARINI, “são vinculados os praticados pela Administração Pública sem a menor margem de liberdade”. 1 Nesse caso, não existe espaço de liberdade para o administrador agir, ou seja, cabelhe cumprir aquilo que a lei determina que ele faça, nos moldes previamente estipulados. 1 GASPARINI, Diógenes. Direito Ad min istrativo , 7ª ed ição, São Pau lo : Editora Saraiva, 2002. p. 75 . Conforme o mesmo GASPARINI, “são discricionários os atos praticados pela Administração Pública com certa margem de liberdade. A Administração edita-os depois de uma avaliação subjetiva”. 2 A lei não impõe ao administrador um modo de agir, não exige dele um comportamento determinado. A ação ou omissão do administrador estará relacionada a uma avaliação subjetiva calcada no interesse público. A discricionariedade está relacionada à oportunidade e conveniência que são atribuídas ao administrador público para a prática dos atos administrativos. Trata-se da possibilidade que o administrador público tem em escolher o momento mais adequado para que o ato seja praticado, ou que não o seja. Mesmo a inação importa na decisão subjetiva e, portanto, discricionária. 3. O DIREITO AO MEIO AMBIENTE E ANOTAÇÕES CONCEITUAIS Antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, a Lei nº 6.938/81 trouxe, em seu artigo 3º, in verbis, uma determinação do que seria o meio ambiente: Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas; II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente; III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de 2 Ob. cit., p. 75. atividades que indiretamente: direta ou a) prejudiquem segurança e o população; a saúde, bem-estar a da b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem biota; desfavoravelmente a d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos; IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental; V recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 18.07.89) O artigo 225, da Constituição Federal, in verbis, assim dispõe: “Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as resentes e futuras gerações”. Parágrafo primeiro Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (...) VII - proteger a fauna e a flora, vedadas na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”. Não se tentará, aqui, estabelecer uma conceituação de meio ambiente, porquanto esteja clara aquela disposta na legislação infraconstitucional, suficiente para o desenvolvimento do trabalho. Esclarecidos esses conceitos, essenciais ao deslinde do trabalho, seguimos na questão principal, de mitigação da discricionariedade concedida à Administração Pública. 4. A DISCRICIONARIEDADE E A PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE É inequívoco, pois, que a preservação e proteção do equilíbrio do meio ambiente são obrigações de ordem imperativa. É primordial que o meio ambiente seja alçado à condição excelsa que merece ter, pois a sua proteção é a do próprio ser humano. À Administração Pública cabe agir, ou deixar de agir, tendo como referência a obrigatoriedade em atender ao comando constitucional que garante um meio ambiente saudável para todos. A vontade administrativa que contém comandos de oportunidade e conveniência não ultrapassa os valores constitucionais alhures, de modo que a subjetividade do administrador deverá estar adstrita à escolha de como deve cumprir ao preceituado na Constituição Federal. Não lhe cabe planejar se deve fazê-lo, mas, sim, como deve fazê-lo. Em outras palavras, o administrador público somente pode fazer uso da discricionariedade na escolha dos instrumentos para fazer valer os direitos fundamentais relacionados ao meio ambiente, e não se poderá agir ou deixar de agir conforme a conveniência e oportunidade que julgar mais adequada à coletividade. Não é diferente o entendimento de CUNHA acerca das matérias constitucionais: “Todas as normas constitucionais, sem exceção, mesmo as permissivas, são dotadas de imperatividade, por determinarem uma conduta positiva ou uma omissão, de cuja realização são obrigadas todas as pessoas e órgãos às quais elas se dirigem”. 3 Contudo, diante dos vários argumentos levados à colação nas defesas dos interesses da Administração Pública, verificamos um verdadeiro travamento do Poder Judiciário nas lides que demandam uma intervenção mais afeita aos moldes constitucionais. O Poder Judiciário, único dentre os quais capaz de solucionar os conflitos que exijam a efetiva aplicação dos direitos fundamentais, evita interferir na esfera do Poder Executivo, no (in)justo receio de que irá partir o elo da separação dos poderes ao adentrar na discricionariedade afeita aos administradores públicos. 3 CUNHA JÚNIOR, Dirley da, Controle Judicial das Omissões do Poder Público, Editora Saraiva: 2004, São Paulo, p. 47. Todavia, essa forma de interpretar o sistema não tem mais espaço na hermenêutica do direito. Há de se concordar com NERY no sentido de que “a hermenêutica do direito não pode conduzir à injustiça, não pode ser causa de desorientação, de perda de valores fundamentais para a sobrevivência do homem, de perda do estado de igualdade”. 4 Não cabe mais admitir que o controle judicial sobre os limites da discricionariedade do ato administrativo se dê tão somente no âmbito da legalidade deste. O respeito à discricionariedade não merece prevalecer se o que estiver em discussão for qualquer dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição. Igualmente não cabe mais aceitação da prevalência da separação dos poderes prevista em nosso ordenamento constitucional quando se tratar de efetivação de direito fundamental envolvendo o meio ambiente. Bem resolveu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) ao decidir que “no microssistema da tutela ambiental impõe-se, em virtude dos princípios da precaução e preservação, uma atuação preventiva do Poder Judiciário, de forma a evitar o dano ao meio-ambiente, pois este, depois de ocorrido, é de difícil ou impossível reparação”. 5 E, ainda, “o meio ambiente, como um bem extraordinariamente relevante ao ser humano, é tutelado pela Constituição Federal. Assim, é dever inafastável do Estado empreender todos os esforços para a sua tutela e preservação, sob pena de violação ao artigo 225 da CF. O Poder Judiciário, no exercício de sua alta e importante missão constitucional, deve e pode impor ao Poder Executivo Municipal o cumprimento da disposição constitucional que garante a preservação do meio ambiente, sob pena de não o fazê-lo, compactuar com a degradação ambiental e com piora da 4 NERY , Rosa Mar ia de Andr ade, Pro cesso e Con stitu ição, Estudos em Ho me n agem ao Professo r José Car lo s Ba rbosa Mor eir a, Ed itor a Rev ista dos Tr ibunais: 2006, p. 427 . 5 BRA SIL. Tr ibun al d e Justiça de Min as Gerais. Agr avo de In stru me n to nº 1.0388 .04.004.682-2 /001. Agr avante: Mun icípio d e Luz. Ag rav ado : o Min istér io Púb lico do Estado de Minas Gerais. Re lator a: D es . Mar ia E l za . Be lo Hor i zon te, 21 d e ou tubro d e 2004. qualidade de vida de toda sociedade. A judicialização de política pública, aqui compreendida como implementação de política pública pelo Poder Judiciário, harmoniza-se com a Constituição de 1988. A concretização do texto constitucional não é dever apenas do Poder Executivo e Legislativo, mas também do Judiciário. É certo que, em regra a implementação de política pública, é da alçada do Executivo e do Legislativo, todavia, na hipótese de injustificada omissão, o Judiciário deve e pode agir para forçar os outros poderes a cumprirem o dever constitucional que lhes é imposto. A mera alegação de falta de recursos financeiros, destituída de qualquer comprovação objetiva, não é hábil a afastar o dever constitucional imposto ao Município de Luz de preservar o meio ambiente. Assim, a este caso não se aplica à cláusula da Reserva do Possível, seja porque não foi comprovada a incapacidade econômico-financeira do Município de Luz, seja porque a pretensão social de um meio ambiente equilibrado, preservado e protegido se afigura razoável, estando, pois, em plena harmonia com o devido processo legal substancial”. Não se negue que o princípio da legalidade norteava as decisões judiciais e permitia que o administrador público agisse conforme as prioridades que ele julgasse apropriadas. O mesmo se diga em relação à separação dos poderes, que é um verdadeiro obstáculo e paradigma ultrapassado que impedia o Poder Judiciário de adentrar no campo de atuação do Poder Executivo, em razão da ampliação inoportuna do referido princípio. A teoria da separação dos poderes foi objeto de uma construção valiosa para a época e para a sedimentação dos regimes democráticos e para a derrubada do absolutismo. Porém, querer aplicar nos dias de hoje a mesma teoria criada nos séculos passados, nos mesmos termos, é travar a evolução do Direito e das relações sociais. Ressalte-se que não se pretende fazer esquecer o princípio, mas tão somente adequá-lo. John Locke, que abordou o assunto em 1690, na obra “Segundo Tratado Sobre o Governo”, juntamente com Montesquieu, escritor de “O Espírito das Leis”, em 1748, tiveram participação importante no desmonte dos governos despóticos de outrora. Não podem, contudo, servirem de escudo para o progresso social que é exigido nos tempos atuais. Um novo equilíbrio de forças entre os Poderes constituídos mostra-se necessário. Em rápida abordagem, tem-se, hoje, um Poder Executivo que não executa o devido, que exerce influência considerável sobre o Poder Legislativo, com total anuência do Poder Judiciário, temeroso em penetrar por delimitações imaginárias que não têm guarida na Constituição Federal. O sistema de freios e contrapesos serve justamente para tornar equilibrada a atuação entre os Poderes, mas só funciona se cada qual exercer o seu papel de acordo com a Constituição Federal. Não se pode admitir que esse sistema seja empecilho para a efetivação dos direitos fundamentais. Aliás, LOCKE considerava que “quem tem a tarefa de definir o modo com que se deverá utilizar a força da comunidade para a preservação dela própria e dos seus membros é o legislativo”, 6 o que significa que, para ele, um poder deveria se sobressair sobre os demais. MONTESQUIEU já considerou de forma diferente, ao explicar que “quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente. Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se o poder executivo estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade 6 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. p. 106. dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a mesma força de um opressor. Tudo então estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou o dos nobres, ou o do povo, exercesse estes três poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as querelas dos particulares”. 7 Ora, em tempos atuais, é fácil constatar que tudo aquilo que Montesquieu temia de fato aconteceu: o Poder Executivo executa os comandos legais, ou não, conforme a oportunidade e conveniência, bem como elabora leis conforme as prerrogativas conferidas ao seu respectivo Chefe; o Poder Legislativo faz as leis, ou ao menos deveria fazê-las, mas também julga os detentores de mandatos eletivos, conforme se verifica em profusão pelo Brasil; e, finalmente, o Poder Judiciário julga, mas também manda executar ou deixar de executar medidas que entender necessárias dentro da Administração Pública. Apesar de haver de tudo um pouco, o pouco do Poder Executivo acaba sendo muito se em comparação com os demais poderes do Estado. Sobre o mesmo tema, KRELL escreve que “o clássico autor francês, na verdade, via na divisão dos poderes muito mais um preceito de arte política do que um preceito jurídico, menos um princípio para a organização do sistema estatal e de distribuição de competências, mas um meio de se evitar o despotismo real”. 8 Cada qual com o seu grau de interferência, todos os Poderes agem de acordo com as suas tarefas precípuas, mas invadem as esferas alheias, porque previsto no próprio ordenamento jurídico. 7 MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. p. 166 8 KRELL, Andréas J., Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, os (Des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. p. 89. Todavia, a barreira denominada “separação dos poderes” transformou-se, ainda que inconscientemente, em um recurso utilizado pelo Poder Judiciário na omissão de mandar executar os comandos legais previstos na Constituição. Não se trata, porém, de uma vontade consciente, esta de evitar a análise do mérito dos atos administrativos, ou exigir do Estado prestações relacionadas à efetivação dos direitos fundamentais. O Poder Judiciário acreditou no discurso de que não poderia se imiscuir nas ações de responsabilidade do Poder Executivo. Ocorre que, no entender de FOUCAULT, “o direito no Ocidente é um direito de encomenda régia. Todos conhecem, claro, o papel famoso, célebre, repetido, repisado, dos juristas na organização do poder régio. Não convém esquecer que a reativação do direito romano, em meados da Idade Média, que foi o grande fenômeno ao redor e a partir do qual se reconstituiu o edifício jurídico dissociado depois da queda do constitutivos Império do Romano, poder foi um monárquico, dos instrumentos autoritário, técnicos administrativo e, finalmente, absoluto. Formação,pois, do edifício jurídico ao redor da personagem régia, a pedido mesmo e em proveito do poder régio. Quando esse edifício jurídico, nos séculos seguintes, escapar ao controle régio, quando se tiver voltado contra o poder régio, o que será discutido serão sempre os limites desse poder, a questão referente às suas prerrogativas. Em outras palavras, creio que a personagem central, em todo o edifício jurídico ocidental, é o rei. É do rei que se trata, é do rei, de seus direitos, de seu poder, dos eventuais limites de seu poder, dos eventuais limites de seu poder, é disso que se trata fundamentalmente no sistema geral, na organização geral, em todo caso, do sistema jurídico ocidenta”. 9 A limitação do Poder Judiciário é, pois, um embuste para fazer crer que existe um real sistema de freios e contrapesos que garanta o 9 FOUCAULT, Michael. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. p. 30. equilíbrio entre as funções do Estado. Não há dúvidas que o absolutismo de outrora não mais vige, mas também não se diga que prevalece uma real separação entre os poderes. O fortalecimento do Judiciário é medida que se faz necessária para a recomposição de forças no tabuleiro de Poderes, no qual o Executivo sempre deteve os meios para alcançar os fins, mas constantemente esforça-se para deixar de fazê-lo. No mesmo sentido, SANTOS defende que “é necessário aceitar os riscos de uma magistratura culturalmente esclarecida. Por um lado, ela reivindicará o aumento de poderes decisórios, mas isso como se viu vai no sentido de muitas propostas e não apresenta perigos de maior se houver um adequado sistema de recursos. Por outro lado, ela tenderá a subordinar a coesão corporativa à lealdade a ideais sociais e políticos disponíveis na sociedade. Daqui resultará uma certa fractura ideológica que pode ter repercussões organizativas. Tal não deve ser visto como patológico mas sim como fisiológico. Essas fracturas e os conflitos a que elas derem lugar serão a verdadeira alavanca do processo de democratização da justiça”. 10 5. CONCLUSÃO Os administradores públicos, imersos na tendência histórica de independência funcional e no manejo da coisa pública, são useiros e vezeiros no uso e abuso das argumentações que fazem valer a teoria da separação dos poderes em detrimento das práticas que envolvem o meio ambiente. Faz-se necessário fortalecer o Poder Judiciário, para que este tenha a devida liberdade e dever de avaliar as questões de mérito dentro 10 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice O Social e o Político na Pós Modernidade. São Paulo: Cortez Editora. 4ª edição, 1997. p. 181/182. do ato administrativo, abandonando o escudo que se formou em volta deste conteúdo. Esse poder do rei, desproporcional àqueles atribuídos aos demais Poderes, é nocivo ao equilíbrio social, pois impede a execução de medidas essenciais à efetivação dos direitos humanos. O poder discricionário se torna um amparo (i)legítimo para que os Chefes do Poder Executivo demarquem um campo de ação que sequer o Poder Judiciário se atreve a penetrar, ainda que sabido ser este o poder incumbido de efetivar qualquer inobservância e/ou descumprimento da lei e da Constituição Federal. Diante da reconhecida proteção que se confere ao poder discricionário do administrador público, sucumbem quaisquer iniciativas no sentido de obrigá-lo a efetivar os direitos fundamentais de amparo e proteção ao meio ambiente. Vive-se verdadeira síndrome da inefetividade dos direitos fundamentais, pois ninguém consegue quebrantar o a argumentação da separação entre os poderes, como se fosse essa a máxima constitucional havida no ordenamento jurídico brasileiro. Ao Poder Judiciário se faz necessário um maior atrevimento na apreciação de demandas que visem efetivar os direitos fundamentais nas situações em que há um conflito com os poderes discricionários do administrador público. Ora, ainda que se reconheça a relevância do equilíbrio entre os três poderes, ou funções, não se pode esquecer que a construção teórica desse princípio data da Idade Média, época em que todos os poderes eram concentrados em uma pessoa. Falta apenas romper com o eterno conceito da separação dos poderes do jeito que o conhecemos. O Direito deve viver com paradigmas, e não de paradigmas. BIBLIOGRAFIA CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público, Editora Saraiva: 2004, São Paulo. FOUCAULT, Michael. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2002. GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo, 7ª edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2002. KRELL, Andréas J., Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, os (Des)caminhos de um Direito Constitucional Comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002. LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004. NERY, Rosa Maria de Andrade, Processo e Constituição, Estudos em Homenagem ao Professor José Carlos Barbosa Moreira, Editora Revista dos Tribunais: 2006. SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice O Social e o Político na Pós Modernidade, 4ª edição. São Paulo: Cortez Editora. 4ª edição, 1997.