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FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA REGULAÇÃO DO LIVRE ACESSO AOS
DUTOS DE TRANSPORTE DE GÁS NATURAL
Anderson Souza da Silva1 (UFRN), Yanko Marcius de Alencar Xavier2 (UFRN)
1
R. Industrial João Motta, 1756, Bl I apto 203, [email protected]
2
R. Industrial João Motta, 1756, Bl I apto 203, [email protected]
No movimento de mudanças sociais capitaneados pelo capitalismo global e pelo discurso neoliberal, têm sido
promovidas no mundo reformas nos chamados setores de infra-estrutura - antes geralmente geridos de forma
direta pelo Estado sob a forma de monopólios - no sentido de se introduzir uma regulação que promova a
concorrência. Desses setores a industria do gás natural vem sofrendo reformas institucionais relevantes que
procuram retirar-lhe características monopolísticas e permitir, dessa maneira, o aumento dos agentes nesse
mercado. Em alguns paises essas transformações na industria do gás natural encontram já seus resultados (EUA
e União Européia). O Brasil tem promovido reformas no setor de gás desde a Emenda Constitucional n° 09 e a
Lei 9.478/97, abrindo as portas do mercado brasileiro de petróleo e gás para os investimentos privados, criando
um cenário onde a Petrobrás não está mais sozinha na execução de atividades da cadeia do petróleo e gás natural.
Acabou-se, assim, com o monopólio da execução das atividades da industria do petróleo e gás (foi mantido o
monopólio da titularidade), passando-se a introduzir nesses setores a intervenção pela regulação, a regulação
econômica. Dentre as pautas de regulação importante da indústria do gás natural encontra-se o chamado livre
acesso (open access) aos gasodutos de transporte, fazendo-se pensar a regulação do livre acesso à luz da ordem
econômica da nossa Constituição e projetar as relações entre Estado e Economia, buscando desenhar o conjunto
de regras e princípios que orientam a ação reguladora e fundamentam a possibilidade constitucional do controle
de estruturas pelo livre acesso no segmento de transporte de gás natural, dando-se ênfase a relação entre
concorrência e desenvolvimento no contexto da realidade da indústria gasífera brasileira.
Indústria do gás natural-1, livre acesso no transporte-2, fundamentos constitucionais-3
1. REGULAÇÃO DO LIVRE ACESSO AOS GASODUTOS DE TRANSPORTE NO BRASIL E SEUS
FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS
O Poder Público brasileiro, por meio da legislação e da regulação da ANP, tem praticado a regulação do livre
acesso. Entretanto, os pressupostos de mercado dos casos dos Estados Unidos e da União Européia, onde há uma
tradição mais adiantada da aplicação deste instrumento regulatório, são bem diferentes do Brasil.
Nos EUA e na Europa a malha de transporte é bastante desenvolvida, enquanto no Brasil há necessidade de
construção e expansão deste tipo de infra-estrutura.
No mercado brasileiro, há apenas uma empresa responsável por praticamente todos os investimentos na área
de gás, a Petrobrás, representando um monopólio de fato. No entanto, é sob este modelo que a indústria gasífera
está desenvolvendo-se para a construção de novas infra-estruturas para levar o gás ao consumidor.
Assim, no plano do mercado brasileiro, a implementação do livre acesso na indústria gasífera envolve um
balanço entre a necessidade de aumentar o número de agentes econômicos (concorrência) com a atração de
investimentos (desenvolvimento) e, neste ciclo, a qualidade do desenvolvimento que se quer para a indústria
gasífera brasileira, ou seja, a alocação do gás para usos finais promovendo a melhor eficiência energética ou para
a simples viabilização do ingresso do gás na matriz e a monetização das reservas existentes.
Para se poder lidar com estas questões, o presente trabalho investiga quais são os fundamentos constitucionais
para a implementação do livre acesso aos gasodutos de transporte no Brasil.
2. NORMAS COMPONENTES DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA REGULAÇÃO DO
LIVRE ACESSO
Procurar as normas aplicáveis à regulação do livre acesso no transporte de gás natural é pesquisar no texto da
constituição as fontes que permitem ao intérprete na atividade de construção e organização do sistema extrair
mandamentos que atuam no sentido de prescrever uma realidade que deve ser observada finalisticamente na
aplicação deste instrumento regulatório (princípios), bem como mandamentos que delineiam os comportamentos,
as posições que devem ser assumidas pelos emissários e destinatários envolvidos nesta espécie de regulação
(regras).
2.1 O LIVRE ACESSO E A FUNÇÃO NORMATIZADORA E REGULADORA DO ESTADO
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O primeiro passo a ser tomado é indagar, do ponto de vista da posição estatal, quais as direções
constitucionais fundamentais que estruturam o poder para que o Estado, diretamente ou por meio de uma agência
reguladora, atue de modo que os participantes da cadeia do gás natural possam ter acesso às instalações de
transporte em bases competitivas, limitando a liberdade do proprietário dos ativos de transporte em fornecer seus
serviços a quem aprouver.
As balizas constitucionais dos poderes estatais no concernente à regulação do livre acesso aos gasodutos estão
na disciplina da função normatizadora e reguladora do Estado (art. 174) e no princípio da legalidade (art. 5, II).
O art. 174 da Constituição Federal traça uma cláusula geral que fundamenta a ação do Estado sobre a
economia. De certo, uma vez que a ordem econômica está fundada em princípios gerais inscritos no art. 170 e
seus incisos, a saber, dignidade da pessoa humana, valorização do trabalho humano, justiça social, soberania
nacional, propriedade privada, função social da propriedade, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente,
redução das desigualdades regionais e sociais e busca do pleno emprego, o Estado deve intervir, na medida do
realizável, em qualquer domínio econômico para preservar estes princípios, ainda que haja choque entres
princípios.
Munido de instrumentos de intervenção, procura o Estado aproximar a ordem econômica material dos valores
preconizados pela ordem econômica, acarretando o que se encontra em opinião doutrinária como função de
“normalização” da ordem econômica, em que o Estado age na construção de meios para a realização da realidade
principiológica encartadas nos pilares da ordem econômica constitucional, corrigindo as distorções da ordem
econômica material sob o prisma valorativo constitucional.
Os meios cogitados pelo art. 174 CF, contudo, são os mais amplos possíveis, não se tratando da participação
direta do Estado em algum domínio econômico, mas da utilização de um arcabouço normativo para organizar a
atividade econômica de uma forma ampla e de modo a direcionar, de forma indutiva ou determinativa, a
realização de resultados econômicos que concretizem os princípios da ordem econômica constitucional. A
regulação do livre acesso aos gasodutos de transporte encaixa-se neste perfil, pois é instrumento de organização
econômica do Estado para atingir a concreção de princípios da ordem econômica em atividade em que o ente
estatal não participa diretamente, agindo, portanto, sobre terceiros.
Discute a doutrina o que seria o papel normativo e regulador do Estado, querendo restringir as três formas
organizacionais gerais da economia (fiscalização, incentivo e planejamento) ou ao papel normativo ou ao papel
regulador. Para fins da pesquisa, o papel normativo diz respeito à qualidade de emissor, querendo dizer que o
agente que pode introduzir normas de organização geral da atividade econômica é o Estado. Do ponto de vista do
papel regulador, traça-se um mandamento em que, além de ser o agente que pode emitir normas gerais sobre a
organização da atividade econômica, o Estado tem o poder de conformar materialmente arcabouços jurídicos,
regulações setoriais de modo a atender os objetivos da ordem econômica constitucional.
Além deste poder normativo, discute-se também a extensão dos poderes de implementação do livre acesso, os
limites. A conformação de cada um dos poderes regulatórios em sede de livre acesso aos gasodutos, tanto por
imperativo do caput do art. 174 quanto do art. 177, §2, III, da Constituição Federal, depende de lei.
A legalidade funciona de uma forma dupla: tanto dela pode ser extraída regra, uma vez que disciplina a
qualidade de emissor de normas pelo Estado, dizendo que a normatização do comportamento dos membros da
sociedade deve ser por meio de lei (art. 5, II, da Constituição Federal), bem como princípio, já que almeja um
estado de coisas como segurança, certeza e limitação do arbítrio na regulação da sociedade pelo Estado.
Ao contrário dos aspectos materiais da regulação, a intersecção entre regulação e legalidade possui uma vasta
bibliografia no Brasil. Como o trabalho foca-se nos fundamentos constitucionais da regulação do livre acesso,
não serão expendidas grandes considerações sobre regulação e legalidade, mas seu ponto essencial. Contudo, o
pressuposto é que a implementação é por lei ordinária.
O ponto essencial na construção do marco regulatório do livre acesso são três visões sobre o relacionamento
entre a lei geral do setor e os atos normativos. Num primeiro aspecto, a legalidade deve atuar de modo a
estabelecer os padrões gerais e mínimos para que a agência reguladora possa implementar a regulação, estando
amarrada a diretrizes que garantam os direitos dos cidadãos afetos pelo quadro regulatório. Numa segunda visão,
a legalidade apenas possui um papel analítico-estrutural de competências. A lei apenas define a competência da
agência reguladora em implementar o livre acesso, mas não estabelece nela diretrizes a serem seguidas. Numa
terceira visão, embora a lei possa ser detalhista em definir uma política pública para o livre acesso ou meramente
conferir competência à agência reguladora, a edição dos atos normativos da agência deve vir acompanha de
ampla publicidade e participação dos setores da sociedade afetados, bem como cada ato normativo deve ser
justificado pela entidade reguladora.
Independentemente de cada visão, a implementação do livre acesso deve ser veiculada pela lei. Se a lei não
prevê explicitamente o instrumento de regulação do livre acesso ou competência profunda e ampla suficiente
para instituí-lo, não pode a agência, apenas com base na Constituição, reivindicar a implementação do livre
acesso. Essa postura seria inconstitucional nestas três leituras.
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2.2 O LIVRE ACESSO E O PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA
A livre iniciativa é um dos princípios basilares da construção do Direito e do Estado moderno. Com a
ascensão da burguesia ao poder com as revoluções liberais, reivindicou-se a liberdade como modo fundamental
da regulação social, contrapondo-se ao regime absolutista e à velha ordem social, onde o poder totalitário do
monarca e a sociedade rígida em estamentos sociais tolhiam a mobilidade social e marcavam nele uma posição
profissional fixa de acordo com seu status.
Deste modo, a livre iniciativa é, num primeiro momento, o fundamento para a construção de uma visão
privatista, cuja leitura é feita sob a ótica do direito subjetivo. A livre iniciativa vai se concretizar na seara
privatista, especialmente sob o dogma da autonomia da vontade, desdobrando-se em reflexões jurídicas sob os
fundamentos do direito de contratar, as formas válidas de consentimento nos negócios jurídicos, os defeitos dos
negócios jurídicos e as formas de interação entre a ordem pública e privada.
Passada a fase do Estado Liberal para o Estado Intervencionista, a leitura sobre a livre iniciativa nos
ordenamentos jurídicos mudou de uma visão individualista e absoluta para uma visão social. Com isto o Estado
passou a criar mecanismos de maior intervenção na ordem contratual. Na Constituição Federal de 1988, a livre
iniciativa mostra-se como fundamento do Estado (art. 1, IV), como expressão individual da liberdade contra o
arbítrio (art. 5, II) e da liberdade de ofício (art. 5, XIII) e da liberdade econômica (art. 170, caput). Há, portanto,
espaço para uma interpretação tanto individual quanto social da livre iniciativa.
Na reestruturação do modelo de Estado para um Estado Regulador, procura-se uma solução que equilibre a
visão individualista com a visão social da livre iniciativa.
O livre acesso afeta necessariamente a gestão absoluta contratual que o transportador pode fazer em prol dos
seus interesses de recuperar os investimentos e obter lucro. O livre acesso é instrumento de intervenção no
regime contratual da atividade de transporte, limitando a livre iniciativa do transportador. Esta limitação é
baseada na função social da propriedade para a criação de uma utilidade, a concorrência. O livre acesso incide
sobre o problema da organização contratual (livre acesso e livre iniciativa), da destinação social dos ativos
materiais e imateriais que compõe a propriedade dos gasodutos (livre acesso e função social da propriedade) e da
utilidade criada pela limitação da organização contratual da atividade (livre acesso e livre concorrência). Cuidase aqui do primeiro lado desta relação.
Quando se investiga a interação entre o livre acesso e a livre iniciativa na questão da organização contratual
da atividade de transporte, dois interesses é que são sopesados: o dos transportadores e dos carregadores.
Do ponto de vista dos carregadores (donos do gás e interessados no acesso à rede de gasodutos dos
transportadores), a livre iniciativa está principiologicamente orientada para criar mecanismos de acessibilidade.
É a liberdade econômica de acesso aos mercados, que está muito vinculada à concorrência, que será vista
posteriormente. Como instrumento para acessibilidade, o livre acesso funciona como instrumento para prover
mecanismos que potencie esta acessibilidade em balanço com a liberdade contratual do transportador. Os
princípios que podem ser extraídos e aplicáveis na regulação do livre acesso são estados de coisas que
estabelecem deveres gerais, cláusulas gerais que permitam esta acessibilidade, redundando, portanto, numa visão
social do contrato. Desta maneira, do ponto de vista dos carregadores, a atividade do transportador deve se
orientar por uma visão social do contrato, o que no direito americano corresponderia dotar o transportador com o
status de common carrier em contraposição ao de private carrier.
As ferramentas regulatórias do livre acesso incidentes sobre o contrato para a potencialização da livre
iniciativa do ponto de vista estritamente da relação contratual são os seguintes: deveres de concessão de acesso
obrigatório ou mediante estímulo, publicidade, transparência, isonomia, uniformização dos contratos, controle
dos contratos, regulação tarifária, mas, principalmente, separação do contrato de transporte propriamente dito do
contrato de compra e venda de gás. Sem a separação do contrato monobloco (transporte + venda) em um
contrato bipartido não se pode ao menos cogitar em livre acesso.
Do ponto de vista dos transportadores, a livre iniciativa em sua interação como livre acesso implica dois
aspectos. O primeiro é a limitação de sua realização absoluta segundo restrições para ceder ao aspecto de
acessibilidade acima comentado. O segundo é a garantia aos transportadores de exercício de sua liberdade
contratual, apesar das restrições acima, de modo a realizar a sua liberdade econômica segundo seus fins de lucro.
Em outras palavras, o quadro regulatório do livre acesso, se por um lado coloca restrições, não deve inibir,
desestimular o exercício da atividade de transporte, tirando chances de concretizar a liberdade econômica na
geração da riqueza. Não se quer dizer com isso que o Estado regulador deve necessariamente garantir a
lucratividade da atividade, mas deve criar um estado de coisas, cuja orientação finalista é estimular que a geração
de riqueza seja alcançada, não tolhida de antemão.
2.2.3 O LIVRE ACESSO, DIREITO DE PROPRIEDADE E FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
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Outro lado da regulação do livre acesso não é a disponibilidade contratual da atividade pelo transportador,
mas a disponibilidade da propriedade (material e imaterial) dos ativos de transporte pelo transportador.
Dada as características da atividade, o transportador desfruta grande poder econômico na forma do exercício
da titularidade dos ativos de transporte. Se o exercício desta propriedade atende apenas ao interesse do
transportador, impede-se o desenvolvimento da garantia de pluralidade de agentes agindo na indústria
(concorrência), uma vez que tanto no upstream quanto no downstream somente poderão operar aqueles que
terem acesso a estes bens mediante relações contratuais verticais ou por meio da integração vertical de acordo
com a discricionariedade do transportador. Elimina-se a concorrência por meio do exercício absoluto da
propriedade pelo transportador.
A jurisprudência americana desenvolveu a doutrina das essential facilities para os casos de restrição de acesso
a concorrentes. Em muitas áreas da economia (além da indústria do gás natural) há situações econômicas em que
a produção de produtos e serviços depende de bens que não podem ser duplicados pelos concorrentes sem
incorrer em custos proibitivos, pela presença de sunk costs, de economias de escala e da subaditividade. A
doutrina da essential facilities cria uma obrigação de acesso se os concorrentes provam que há um bem essencial
que não pode ser duplicado sem incorrer em custos econômicos proibitivos, A recusa deve ser dada em bases
justas, justificada de forma técnica e econômica dentro das condições da atividade envolvida pelo uso do bem
essencial.
A obrigação de prover acesso aos ativos de transporte aos concorrentes relaciona-se com a função de
intermediação, de fase intermediária que o transporte representa entre a produção do gás natural e a sua chegada
aos consumidores finais. Em atenção a esta função que a propriedade dos ativos de transporte exerce na cadeia
como um todo em detrimento ao interesse exclusivo do proprietário destes ativos, estabelece-se o transporte de
gás natural como essential facility de modo a promover uma racionalidade econômica para a exploração da
indústria gasífera.
O conceito de essential facility do direito americano pode ser transposto no sistema jurídico na figura da
função social da propriedade.
Com o Estado Intervencionista, traz-se a noção de função social na estrutura do regime de propriedade. Não
se quer dizer que se tirou o poder de disposição da propriedade pelo seu proprietário, mas este poder deve estar
compatibilizado com a função que este bem exerce no cenário social. Cria-se a funcionalização da propriedade
como aspecto institucional e objetivo, servindo como parâmetros e limites do exercício individual do direito de
propriedade.
Se a função social da propriedade é entendida no sentido do papel que a propriedade dos ativos de transporte
possuem de estabelecerem as relações contratuais entre os agentes do setor numa cadeia econômica, a função
social desloca-se para interesses jurídicos a serem protegidos que contribuam para a realização e
desenvolvimento da indústria gasífera, a livre iniciativa no sentido de acessibilidade aos mercados e a
concorrência. A funcionalização passa a condicionar a propriedade para a realização destes interesses jurídicos e
não meramente a realização plena da função de intermediação entre a produção e consumo realizada pela
atividade de transporte.
No tocante à gestão da propriedade sob a figura da função social, podem ser adotadas várias medidas na
regulação do livre acesso, embora algumas delas também podem ser vistas pelo ângulo da concorrência, dada a
estreita relação entre concorrência e regime de propriedade no caso em análise.
Dentre estas medidas estão: a) separação de titularidade da propriedade dos ativos de transporte e do gás
natural (a commodity). Esta separação também implica a da propriedade sobre os contratos, pois muitas
regulações permitem a cessão do contrato, fazendo a distinção entre a posse (na indústria, chamada de operação)
e a propriedade, acontecendo situação semelhante ao contrato de alocação e arrendamento; b) separação jurídica,
em que o proprietário dos ativos de transporte é distinto do de gás. Isto significa que a pessoa física ou jurídica
de transporte deve ter a constituição de uma empresa apenas para o fim de transporte; c) separação societária.
Dado que muitas empresas são constituídas na forma de sociedade anônima, uma empresa transportadora pode
participar da propriedade ou ter influência dominante sobre uma empresa carregadora de gás ou vice-versa. A
separação societária procura separar completamente a propriedade dos ativos de transporte dos do gás,
impedindo a verticalização societária e a prática de participações cruzadas. Destas três medidas principais podem
ser vislumbradas outras, como incentivo para a cessão de contrato (transporte e gás), cessão obrigatória de
contrato e transferência de propriedade.
2.2.4 O LIVRE ACESSO, LIVRE CONCORRÊNCIA E DESENVOLVIMENTO NACIONAL
Ao se comentar sobre a relação da regulação do livre acesso com a função social da propriedade, lançaram-se
considerações iniciais sobre o papel da livre concorrência na organização da atividade de transporte de gás
natural. A concorrência fecha o ciclo como justificativa, como princípio a ser realizado pelo livre acesso na
compreensão tradicional do instrumento do livre acesso. Condiciona-se a livre iniciativa e a propriedade para a
realização de um fim: a concorrência.
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O Direito da Concorrência se estabelece a partir do momento que se sente os efeitos do desenvolvimento do
capitalismo tradicional com vários agentes do Estado Liberal a se transmutar para um capitalismo, onde se dá de
forma patente a expressão do poder econômico na forma de concentrações, oligopólios e monopólios.
Com o desenvolvimento do capitalismo internacional e a necessidade das empresas se fortalecerem para
competir com empresas de outros países, a análise concorrencial passa a mudar de figura. Antes acordos,
posições monopolistas e certos oligopólios, proibidos per se (independentemente dos danos econômicos
concreto), passam a ser aprovado se provado que eles geram eficiência econômica (regra da razão).
O intuito não é fazer uma retrospectiva histórica da evolução do antitruste nem do seu desenvolvimento em
outros países, mas assinalar o contraponto de duas perspectivas de análise do antitruste: a concorrência-fim (a
concorrência é uma meta que deve ser a finalidade das políticas públicas do Estado e da aplicação do sistema
jurídico) e a concorrência-instrumento (a concorrência é apenas um meio para o desenvolvimento econômico). A
concorrência tem como contraponto o desenvolvimento, da mesma forma que a propriedade tem como
contraponto a função social.
Quando se aborda o livre acesso como concretização da livre concorrência, não há de se pensar em apenas um
sentido unívoco para esta atuação. Em qualquer destes sentidos, porém, o livre acesso na prática regulatória da
indústria gasífera em geral tem como idéia a criação de um segmento competitivo, a comercialização, dentro do
segmento com características de monopólio natural, o transporte. Criando-se a comercialização, aumenta-se a
possibilidade de inserir mais agentes econômicos no setor e a concorrência maior entre os serviços oferecidos,
afetando assim os preços, o que promoveria melhor alocação do gás a preços competitivos. É a utilização da
concorrência para criar um ambiente em que os preços são determinados por mecanismos de mercado,
diferentemente da situação de monopólio natural, que é feita por estruturas de governança.
A concorrência assume três sentidos. O primeiro é o já comentado acima. A concorrência é vista como
utilidade criada pelo arcabouço regulatório, criando, de forma artificial pelos meios já comentados nos dois
tópicos anteriores (regulação de aspectos contratuais e de propriedade), um ambiente de mercado, a
comercialização.
O segundo sentido é instrumental e relacionado com a posição do transportador como detentor dos ativos de
transporte. Sendo uma atividade com traços monopolisticos e sendo ineficiente a transformação deste monopólio
em uma atividade com vários agentes (linhas de gasodutos paralelas partindo de um mesmo poço produtor ao
mesmo mercado consumidor), atesta-se que o transportador possui o que no direito de concorrência é chamado
de posição dominante na legislação infra-constitucional e na Constituição de poder econômico. No que toca ao
livre acesso, a repressão da posição dominante está nas condições que a regulação coloca para que seja provido o
acesso, o que mexe com mecanismos contratuais já citados no tópico sobre a livre iniciativa, podendo atuar de
modo apenas a evitar excessos por parte do transportador, deixando uma maior margem de liberdade contratual,
ou regular aspectos substanciais do contrato, diminuindo a liberdade de negociação.
O terceiro aspecto é as relações verticais que ocorrem entre os elos acima e abaixo da fase de transporte na
cadeia do gás natural. De nada adianta haver a separação contratual e jurídica entre transportador e carregador se,
do ponto de vista da propriedade societária, o transportador tem influencia dominante sobre o carregador ou
subsidia a sua atividade pela atividade de carregador ou vice-versa. Para evitar isto, são acionados os
instrumentos relativos ao direito de propriedade já citado. O ponto delicado está na medida da relação entre a
livre concorrência e o desenvolvimento. Sendo ambos objetivos a serem alcançados pelas políticas públicas
estatais na área econômica, pode haver inconsistências na sua aplicação, especialmente quando a concorrência é
considerada como fim em si mesmo (concorrência-fim).
Na indústria gasífera é patente problemas desta ordem prática: em certos estágios de desenvolvimento, a
situação de monopólio natural, sem a diferenciação entre transporte e comercialização favorece a expansão da
rede de gasodutos e a chegada do gás ao consumidor final. Numa situação mais madura da indústria, a
concorrência funciona como um promotor de desenvolvimento pelo aumento do número de negócios, novas
formas contratuais e fornecimento flexível possibilitando atender demandas diferenciadas. Vale salientar que a
inconsistência também está em que concepção de desenvolvimento e concorrência se está falando para a
indústria gasífera.
3. CONCLUSÕES
O estudo dos fundamentos constitucionais da regulação do livre acesso mostra que se pode fundamentar,
numa dimensão objetiva, várias compreensões da regulação do livre acesso (como no caso da função social da
propriedade), bem como fundamentar em direções opostas, na dimensão subjetiva, entre direitos subjetivos dos
transportadores e dos carregadores. Daí ser tomada com a devida cautela a análise da fundamentação
constitucional do quadro regulatório, destacando com cautela a fundamentação objetiva enquanto embasadora da
ação normativa e reguladora do Estado da análise dos direitos subjetivos envolvidos.
4. AGRADECIMENTOS
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Agradece-se à Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, pela bolsa concedida
para financiar a pesquisa a partir da qual foi realizado este trabalho e ao Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
5. REFERÊNCIAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. – São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 562-564.
BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 133.
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento – uma leitura a partir da Constituição
de 1988. – São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 145
BRUNA, Sérgio Varella. O poder econômico e a conceituação do abuso em seu exercício. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, .p. 115; 134-135.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Limite da função reguladora das agências diante do princípio da
legalidade. p. 41-47 In DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (org.). Direito regulatório – temas polêmicos. –
Belo Horizonte: Fórum, 2004.
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Concorrência e regulação. P. 221-222 In CAMPILONGO, Celso
Fernandes et alii. Concorrência e regulação no sistema financeiro. – São Paulo: Max Limonad, 2002.
FONSECA, Rodrigo Garcia da. O poder econômico no mercado e o seu controle na legislação antitruste. Brasília, Revista de Informação Legislativa, ano. 41 n. 164 out./dez.2004, p. 106-107.
GÓIS, Luciana Figueiras de. A gênese do princípio do "open access" a gasodutos no Brasil. Jus Navigandi,
Teresina, ano 9, n. 765, 8 ago. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7123>.
Acesso em: 18 mar. 2007.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor – o novo regime das relações
contratuais. 2002, p. 47; 175;207;207-210.
MOGEL, William A; GREGG, John P. Appropriateness of imposing common carrier status on interstate
natural gas pipelines. - Washington, Energy Law Journal. :.Vol.25, Iss. 1; 2004, p. 21, 36. Disponível em:
http://proquest.umi.com/pqdlink?did=659184261&sid=3&Fmt=4&clientId=45918&RQT=309&VName=PQ
D (acesso restrito). O artigo foi originalmente publicado em 1983.
NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria contratual e o código de defesa do consumidor. – São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2001, p. 40-41.
SALGADO, Lúcia Helena. A economia política da ação antitruste. – São Paulo: Singular, 1997. p. 11-12.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito concorrencial – as estruturas. – São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p.
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SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica – princípios e fundamentos jurídicos. – São
Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 60-61.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação e Concorrência - estudos e pareceres. – São Paulo: Malheiros
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SCOTT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econômico: Estado e normalização da economia. –
Porto Alegre: SAFE, 2000, p. 101-102; 106; 121.
CONSTITUTIONAL FUNDAMENTS OF OPEN ACCESS REGULATION TO NATURAL
GAS PIPELINES
In the middle of modern social changes produced by globalization and capitalism, several markets have changed.
States have left the direct coordination of these markets (chiefly public utility sector in the form of monopolies),
introducing regulation in order to promote competition. These changes have affected natural gas industry by
promoting competition as a key factor to the development and the increase of firms in this market. The
regulatory reform of natural gas industry ocurred in EUA and Europe Union and it has produced its first results.
In Brazilian context, Constitutional Amendment nbr. 09 and Federal Law nbr. 9.478/97 (“Petroleum Law”)
opened the natural gas market to a broad range of private economic agents and they finished the monopoly over
the industry before managed by Petrobras. The new regulatory framework of Brazilian natural gas industry has
designed competition as a central element to the new form of managment of business and contractual
relationships of this industry. Among the regulatory instruments, open access regulation in natural gas pipelines
is directed to promote competition. The questions arised about its implementation in Brazilian context are
studied in the present paper, in which it is discussed the constitutional rules and principles are to be applied to
the open access regulation within the theme of statal regulation of economy present in constitutional economic
order, chiefly the relation between competition and development in the context of Brazilian natural gas industry.
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Natural gas industry-1, open access regulation to natural gas pipelines-2, constitutional fundaments-3
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fundamentos constitucionais da regulação do livre acesso aos dutos