A dor na transferência
Ursula Patrícia Neves Leite1
Para muitos dos sujeitos que demandam análise em nossos dias, é assim: no
início o nada que se apresenta, somente uma marca, a queixa de uma dor.
Fred chega se arrastando, e se mostra através do corpo, que inteiro dói. Carrega
uma lesão paralisante, não é mais possível trabalhar; se submete a uma série de
tratamentos, “só falta a cabeça”. Depois me apresenta mais uma marca, revela que uma
chaga aberta no peito que nunca cicatriza.
Mia gruda-se à poltrona e diz não saber o que dizer. Sussurra que só pode falar
aquilo que lhe diz seu corpo. Sente dores no braço, pensa que pode estar cardíaca. Um
de um acidente que lhe destroça a cabeça que, a partir de então, pesa e dói.
Anita é artista, toca piano, mas há quase um ano parou, proibida de tocar em
função de uma tendinite. Sente dores e medo, diz que precisa “desviar, não pensar”.
Léa já foi a todos os médicos, nenhum lhe explica o mal estar que sente e a
encaminham para terapia. Ela diz sentir saudades de quem era, mas não sabe como era.
Sem utilidade e razão, teme a loucura.
É partindo da escuta de cenas como estas, narrativas marcadas pela dor física e
psíquica que deixam rastros no corpo, que tomo contato com o desamparo de sujeitos
que pedem socorro sem saber nomear ou categorizar sua agonia. É acolhendo um
número crescente de indivíduos que “não sabem o que falar, sabem dizer apenas o que
lhe dói no corpo”, que me ficou a sensação que eles carregavam algo em comum, além,
claro, da queixa de um corpo que doía.
Pareceu-me que nessas histórias havia uma marca que mesmo estando no corpo
estava fora do perímetro do eu, impossível de se elaborada. Na construção da relação
terapêutica, logo de início fica evidente que é preciso acolher esses corpos dolorosos
como um todo, como se fossem corpos falantes. Isto, porque se salienta a não existência
de palavras que traduzem esse marca, o que se manifesta são as palavras repetitivas que
apenas descrevem essa dor.
1
Psicóloga (CRP 13-2655), Especialista em Psicologia Clínica-Psicanálise e Saúde Pública, Membro do EPSI Espaço
Psicanalítico e do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI, Membro da Sociedade Psicanalítica da
Paraíba –SPP.
Em um primeiro tempo de escuta aparece a obrigatoriedade, para todos esses
sujeitos, de inventar meios para sobreviver. Todos eles vivendo como estrangeiros,
buscando identidade, contenção e reconhecimento, hoje “não sabendo viver sem a
dor”. A dor, que, claramente, aparece como sinal e modo de subjetivação.
Mia conta que ninguém a entende, que não é possível ser ela mesma na casa dos
parentes. Sempre foi assim. Quando criança era chamada de esquisita e doente. Fred não
lembra o último dia que passou sem dor. Léa sente dores “desde sempre... ela esta lá, e
por vezes volta não sei por que”. Anita se desespera: o que será dela se não puder tocar
seu instrumento, e como tocar se a “dor não lhe abandona”.
Assim, me é apresentada a dor como um enigma. Seus portadores, me parece,
esperam que a psicanálise lhes acesse o dizer ao que lhes é indizível. E dessa forma
começam a circular no espaço de meu consultório esses corpos dolorosos.
Lembremos que o bebê, em seu total estado de desamparo, carece de um outro
que lhe atenda as necessidades, apresente e traduza o mundo e os sentimentos. Freud já
advertia que o papel da mãe, ou substituto, é de assegurar a conservação da vida e
introduzir a sexualidade. Assim, a mensagem do outro toma o corpo, se incorpora; e
nessa medida, nos diz Assoun, o corpo é esse lugar de passagem de onde nasce o
sujeito.2 (2003, p.91)
O corpo psicanalítico se constitui nesse entre, o externo e o interno; e é habitado
pela pulsão, que também é conceito entre o psíquico e o somático. Este corpo precisa
ser cuidado, atendido em suas necessidades, libidinizado. E é nesse momento entre o
cuidado e a libidinização que se implantam na carne do sujeito, na periferia do eu, as
mensagens enigmáticas, das quais a dor é o único rudimento de tradução possível.
Freud, em Inibição, Sintoma e Angústia, 3 propõe que é a ausência desse outro
cuidador que provoca a dor. Ressalta que, no início, é a necessidade que se apresenta
para o bebê, e como a ausência da mãe não é diferenciada como temporária ou
permanente, é sentida e registrada, como dor, como situação traumática, não como
angústia. Esta última, a angústia, que é a reação ao perigo que a perda provoca, difere da
dor que não é um sinal de alerta, é sim um efeito, uma resposta afetiva a uma perda.
Dito de outo modo, o outro é esse lugar originário, inscrito na origem da dor. Onde está
2
Apud FERNANDES, Maria Helena Corpo. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003.
3
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926) – ESB, vol. XX.
a dor, podemos dizer, há, como pano de fundo, um objeto ausente, e uma marca
traumática que foi incapaz de ser representada.
Se nesse primeiro tempo certas marcas, embora traumáticas, podem ser
desveladas e depois recalcadas, pensamos que no caso desses dolorosos, a dor fica como
marca traumática não traduzida, conservando o traumatismo. Conservando igualmente,
nas palavras de Scarfone, um vazio de representação diante de um muito cheio de
excitações. O referido autor recorre a Pontalis ao apresentar a dor como posição
mediana: entre a angústia e o sofrimento do luto... entre o investimento narcísico e o
investimento de objeto (p. 05) 4. Se a mãe falta para atender as necessidades e sua
ausência pode ficar registrada como trauma, como dor, pode-se pensar que esse objeto
não representado e tampouco ignorado, tem uma primeira representação como ausência.
Fica super- investido e é preciso se afastar desse objeto para poder investir em outros
objetos.
Ao tomar contato com a dor desses sujeitos pude ver que a dor que cada um
carregava era algo de muito primitivo, íntimo e estrangeiro. Algo dos inícios, que não
ascendeu do lugar de marca traumática, não foi transformado em angústia, não está
recalcado, para puder ser traduzido e transformado.
A dor dessas pessoas me avisa que nela algo se esconde, e de pronto percebi que
o processo de análise e a transferência, podiam sim viabilizar o acontecimento de algo
novo. Recorro às palavras de Zeferino Rocha (2008, p. 170)
5
que advertem que o
discurso do analisando não é solitário, pois é pronunciado na presença do analista que se
empresta para ser, naquele momento, um “outro” importante. Assim falar “do que dói
no corpo” pode ajudar a acessar esse objeto ausente e traumatizante.
Meus pacientes falaram muito, gemeram demais, alguns deles por anos a fio. E
eu, do meu lugar, fui me emprestando, por vezes libidinizando seus corpos doloridos,
por vezes (re)apresentando o mundo, por vezes acolhendo gritos, por vezes segurando a
mão, por vezes suportando faltas e exigências, como as de Fred que após três meses de
ausências consecutivas chega nos últimos dez minutos daquela sessão “só para saber se
você me esperava mesmo”, por vezes garantindo e acreditando que vai passar.
4
SCARFONE, Dominique A impressão Dolorosa
5
ROCHA, Zeferino Freud: Novas Aproximações. Recife, Editora Universitária UFPE, 2008.
Outro elemento apresenta a trama que tece a dor entre o corpo e a alma, aquilo
que Freud conceituou de narcisismo. Primeiro, tratando do investimento libidinal
dirigido a si mesmo, um tempo precoce em que os próprios corpos são tratados como
objeto de amor, um rascunho de ego. Se a princípio a criança toma a si própria como
objeto de amor e somente depois escolhe outros objetos, temos que lembrar que a dor
aparece no primeiro momento, onde os objetos não são diferenciados como internos ou
externos, onde não há um eu narcísico. O eu narcísico que surge é uma defesa a essa
marca dolorosa, uma constituição frágil produto de poucas possibilidades de
identificação e introjeção de objetos bons.
Entendemos que somente no momento em que os investimentos passarem da
ordem narcísica auto-erótica para a objetal, é que será possível transitar com a dor, do
corpo para a alma. Mia adverte que a dor que sente “é só sua”. Mas, recentemente, ela
diz que eu conheço sua dor. Estaria Mia na relação transferencial ascendendo ao
momento do trânsito, passando na ponte do sujeito primitivo ao amor do outro(?).
A análise, creio, possibilita a reabertura do jogo, uma partida extra é convocada,
uma espécie de revanche uma vez que através da transferência a dor que é nada, não
simbolizada, pode ser acessada e a partir daí uma nova proposta de experiência se
inaugura.
Pois bem, se a transferência, nas palavras de Freud, entra a serviço das
resistências, mas, também pode ser o mais poderoso dos instrumentos terapêuticos, e
acreditando que o analista pode acolher e escutar com o seu corpo inteiro, proponho que
o setting e o manejo, através do mecanismo da transferência, podem possibilitar a
descoberta dessas palavras libertadoras que traduzem, ou tentam traduzir, o que era só
marca, só dor, só nada.
Referências:
BERLINCK, Manoel Tosta (org.) Dor São Paulo, Escuta, 1999.
FERNANDES, Maria Helena Corpo. São Paulo, Casa do psicólogo, 2003.
FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade (1926) – ESB, vol. XX.
NASIO, Juan-David A dor física: uma teoria psicanalítica da dor corporal. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2008.
ROCHA, Zeferino Freud: Novas Aproximações. Recife, Editora Universitária UFPE,
2008.
SCARFONE, Dominique A impressão Dolorosa.in Trans-rever de Psychanalyse
http://transvirtuel.com/T2/2-argumente.pdf.(Tradução não autorizada, para uso em sala
de aula, por Ronaldo Monte de Almeida e Jean Tessier.)
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