UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE
MESTRADO
Pesquisa e Clínica em Psicanálise
MARILÉA SINGULANI
ANGÚSTIA E CARÁTER
Dissertação de Mestrado
RIO DE JANEIRO, 2005.
ANGÚSTIA E CARÁTER
MARILÉA SINGULANI
“Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em
Psicanálise da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como
requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicanálise”.
Orientadora: SONIA ALBERTI
RIO DE JANEIRO, 2005.
AGRADECIMENTOS
Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro.
Sonia Alberti, pela orientação e considerações críticas indispensáveis ao desenvolvimento
do meu trabalho.
Maria da Glória Sadala, Marco Antonio Coutinho Jorge e Vera Pollo, por aceitarem o
convite para composição da banca examinadora e por seus preciosos comentários sobre
esta dissertação.
Maria Anita Carneiro Ribeiro, analista e supervisora que, através da escuta atenta, tanto
tem contribuído para minha relação com a causa analítica.
Mestres e colegas da turma (2002) de Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise e
grupo formado no Seminário de Orientação, com quem tive o prazer de conviver durante
o período discente.
Colegas psicanalistas de FCCL-Rio de Janeiro pelo incentivo constante.
Meus pais, o apóio sempre presente.
Meus analisantes, que muito me têm ensinado.
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de verificar os pontos de articulação da angústia e do
caráter no campo teórico e prático da psicanálise. Partimos do estudo do conceito de
angústia nos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, para pesquisar em seguida as
diferentes modalidades de enquadramento da angústia. Adiante procuramos desdobrar os
avatares do recalque nos três tipos clínicos da neurose: histérica, obsessiva e fóbica. No
penúltimo capítulo retomamos os três tipos de caráter já pertencentes à literatura
psicanalítica e, no último capítulo, analisamos os conceitos de repetição, pulsão, traço e
significante. Lançamos no final a hipótese de que o traço de caráter, tão comum na
neurose obsessiva, é da ordem de um significante primordial que não sofreu a ação do
recalque.
Palavras-chave: angústia; caráter; recalque; traço de caráter; neurose obsessiva.
Résumé
Ce travail a pour but l’éxamen des points de jointure de l’ angoisse et du caractère dans le
champ théorique et pratique de la psychanalyse. On commence par l’étude du concept de
l’angoisse dans les textes de Sigmund Freud et Jacques Lacan, pour faire ensuite une
recherche sur les différentes modalités d’encadrements de l’ angoisse. Après celà on essaie
de déployer les avatars du refoulement dans les trois types cliniques de la névrose:
histérique, obsessionnelle et phobique. On reprend dans l’avant dernier chapitre les trios
types de caractère qui font déjà partie de la littérature psychanalityque et on fait dans le
dernier chapitre l’analyse des concepts de répétition, pulsion, trait et signifiant. À la fin on
avance l’hypothèse que le trait du caractère, si commum dans la névrose obsessionnelle, est
de l’ordre d’un premier signifiant qui n’a pas subi l’action du refoulement.
Mots-clé: angoisse; caractère; refoulement; trait du caractère; névrose obsessionnelle.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 01
CAPÍTULO I
A ANGÚSTIA NA TEORIA FREUDIANA
1.1 As duas teorias da angústia......................................................................................... 08
1.2 A angústia na civilização............................................................................................ 14
1.3 O recalque................................................................................................................... 22
CAPÍTULO II
AS MODALIDADES DE ENQUADRAMENTO DA ANGÚSTIA
2.1 A fobia........................................................................................................................ 30
2.2 O Eu Ideal................................................................................................................... 44
2.3 A fantasia.................................................................................................................... 54
CAPÍTULO III
O CARÁTER
3.1 O caráter na teoria de Wilhelm Reich.......................................................................... 69
3.2 A análise de três tipos de caráter na literatura psicanalítica......................................... 74
CAPÍTULO IV
OS TRAÇOS DE CARÁTER: UM ENQUADRAMENTO POSSÍVEL DA
ANGÚSTIA....................................................................................................................... 79
4.1 A repetição do trágico................................................................................................... 81
4.2 O traço unário................................................................................................................ 86
4.3 Os traços de caráter: armações de defesa contra a angústia.......................................... 91
CONCLUSÃO.................................................................................................................. 98
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................. 106
Epígrafe
“(...) Em suma, a angústia é correlativa do momento em que o
sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais
onde está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa
na qual jamais se poderá reencontrar. É isso aí, a angústia”.
Jacques Lacan [1957]
Resumo
Este trabalho tem o objetivo de verificar os pontos de articulação da angústia e do
caráter no campo teórico e prático da psicanálise. Partimos do estudo do conceito de
angústia nos textos de Sigmund Freud e Jacques Lacan, para pesquisar em seguida as
diferentes modalidades de enquadramento da angústia. Adiante procuramos desdobrar os
avatares do recalque nos três tipos clínicos da neurose: histérica, obsessiva e fóbica. No
penúltimo capítulo retomamos os três tipos de caráter já pertencentes à literatura
psicanalítica e, no último capítulo, analisamos os conceitos de repetição, pulsão, traço e
significante. Lançamos no final a hipótese de que o traço de caráter, tão comum na
neurose obsessiva, é da ordem de um significante primordial que não sofreu a ação do
recalque.
Palavras-chave: angústia; caráter; recalque; traço de caráter; neurose obsessiva.
Résumé
Ce travail a pour but l’éxamen des points de jointure de l’ angoisse et du caractère dans le
champ théorique et pratique de la psychanalyse. On commence par l’étude du concept de
l’angoisse dans les textes de Sigmund Freud et Jacques Lacan, pour faire ensuite une
recherche sur les différentes modalités d’encadrements de l’ angoisse. Après celà on essaie
de déployer les avatars du refoulement dans les trois types cliniques de la névrose:
histérique, obsessionnelle et phobique. On reprend dans l’avant dernier chapitre les trios
types de caractère qui font déjà partie de la littérature psychanalityque et on fait dans le
dernier chapitre l’analyse des concepts de répétition, pulsion, trait et signifiant. À la fin on
avance l’hypothèse que le trait du caractère, si commum dans la névrose obsessionnelle, est
de l’ordre d’un premier signifiant qui n’a pas subi l’action du refoulement.
Mots-clé: angoisse; caractère; refoulement; trait du caractère; névrose obsessionnelle.
INTRODUÇÃO
A questão dos traços de caráter surgiu da articulação da clínica com a leitura do texto
“Além do princípio de prazer”. Freud utiliza a expressão “traços de caráter” em
articulação com o conceito de compulsão à repetição, referindo-se às sucessivas
repetições trágicas que apareciam na vida de alguns sujeitos. Verificou nesses
acontecimentos a existência de traços que se manifestavam sempre do mesmo modo. Para
retratar tal averiguação, trouxe alguns casos, entre os quais, o da viúva que, por três vezes
consecutivas, teve que cuidar e velar dos maridos em seu leito de morte. Paralelo ao
desenvolvimento do conceito de pulsão de morte, salientou que na repetição havia um
“traço de caráter essencial” que permanecia sempre o mesmo, compelido a expressar-se
através das mesmas experiências.
Paralelo à clínica, fizemos uma pesquisa nos textos de Freud e Lacan, a fim de
averiguarmos o que leva o sujeito a insistir em determinados significantes ou situações de
pura angústia. Além disso, o nosso principal objetivo foi descobrir que tipo de relação os
traços de caráter mantêm com o desejo e a angústia, já que os traços podem atuar como
poderosas resistências, inviabilizando o tratamento analítico.
Em 1913, Freud diferenciara o caráter da neurose, observando que, embora ambos
estejam vinculados à pulsão, o fracasso do recalque na neurose e o retorno do recalcado
são peculiares ao mecanismo desta. Quanto à formação do caráter, o recalque não entra
em ação, já que ele próprio pode substituí-lo. Ou seja, no lugar em que se manifestaria o
recalque, forma-se o caráter, substituindo o intolerável por formações reativas. Para
Freud, trata-se de um mecanismo defensivo que opera suavemente no psiquismo,
diferentemente da neurose em que o conflito está presente, uma vez que há sempre a falha
do recalque.
No texto “Resistência e recalque”, Freud descreveu os traços de caráter como resistências
do Eu, já que eles se formam como uma espécie de fachada. Ou diremos, como uma
espécie de emblema no psiquismo, obstruindo qualquer possibilidade de mudança no
sujeito. Porém, Freud alerta que:
“Ademais, não devem os senhores ficar com a impressão de que consideramos o
aparecimento dessas resistências um risco imprevisto para o empreendimento
analítico. Não; estamos conscientes de que essas resistências estão fadadas a vir
à luz; de fato, ficamos insatisfeitos quando não conseguimos fazê-las surgir de
maneira suficientemente clara e quando somos incapazes de demonstrá-las ao
paciente. Na verdade, chegamos a compreender, finalmente, que a superação
dessas resistências constitui a função essencial da análise e é a única parte do
nosso trabalho que nos dá a segurança de havermos conseguido algo com o
paciente” (Freud, S., 1916: 343).
Ainda neste texto, ao separar o caráter do recalque, Freud questionou que espécie de
impulsos está sujeita ao recalque, por que forças ele [recalque] se efetua e por que
motivos. Diante de tais questionamentos, enfatizou que os traços de caráter podem
acionar o recalque, porém deixou em suspenso o que determina este mecanismo
defensivo. “Ao investigar a resistência, constatamos que ela emana de forças do eu, de
traços de caráter conhecidos como latentes. São estes, pois, os responsáveis pelo recalque
ou, pelo menos, têm uma participação nele. Presentemente, não sabemos de mais nada”
(Freud, S., 1916: 350).
Em tal contexto teórico os traços de caráter atuam como resistências e, sobretudo, como
um influente mecanismo defensivo do Eu. Embora sejam duas manobras defensivas,
procuramos investigar qual é o tipo de relação que os traços de caráter tem com a
angústia.
Em 1923, no texto “O eu e o isso”, Freud reforça o aspecto defensivo dos traços de
caráter, enfatizando que o Eu se protege e cultiva um bom relacionamento com o Isso,
quando se veste dos traços dos objetos abandonados. “(...) Quando o eu assume as
características do objeto, ele está-se oferecendo, por assim dizer, ao isso como um objeto
de amor e tentando compensar a perda do isso, dizendo: ‘olhe, você também pode me
amar; sou semelhante ao objeto” (Freud, S., 1923: 44). Trata-se, realmente, de um
poderoso artifício, que nos levou a descrever os traços de caráter como “armações”vii do
Eu.
Ao retomar a teoria de Wilhelm Reich, Lacan definiu os traços de caráter como
“armarias”viii [brasões] do Eu.
“Assim, Reich cometeu apenas um erro em sua análise do caráter: aquilo que
denominou de “armadura” (character armor) e que tratou como tal não passava
de armaria. O sujeito, depois do tratamento, conserva o peso das armas que
extrai da natureza e apenas apaga a marca de uma brasão” (Lacan, J., 1955:
344).
A formação do caráter parece determinada por tudo aquilo que é rejeitado como marca
determinante da constituição psíquica do sujeito. Porém, não se sabe que outros
benefícios o Eu tem com a retenção dos traços. Será que o sujeito repete os traços
abandonados para se proteger da angústia? Ou é a própria angústia que o faz repetir?
Em “Inibição, sintoma e angústia”, Freud afivela o caráter a um tipo específico de
formação reativa, comparando a neurose obsessiva à histeria. Na primeira, a resistência
frente à representação recalcada se manifesta sob a forma de um contra-investimento.
vii
Segundo o Dicionário Aurélio, armação significa: ato de armar / tudo que serve para revestir /
madeiramento de um edifício.
viii
Em francês “armoire” significa “um conjunto dos emblemas simbólicos que distinguem uma família nobre
ou uma coletividade”. Temos outras significações, tais como: armas, brasões, armário ou escrito, que se prega
na parede para dar um aviso ao público.
“Um contra-investimento dessa espécie é claramente observado na neurose
obsessiva. Ele aparece ali sob a forma de uma alteração do eu, como uma
formação reativa no eu, e é efetuado pelo reforço da atitude oposta à orientação
pulsional que deve ser recalcada – como, por exemplo, na piedade, na
consciência e no asseio” (Freud, S., 1926: 181).
Já na histeria as formações reativas não aparecem como traços de caráter, elas se limitam
a relações muito especiais. Freud exemplifica com o caso de uma mulher histérica que
trata com excessiva ternura o filho que no fundo odeia, e acrescenta que isto não faz com
que ela seja, no conjunto, mais amorosa ou mais terna com outras crianças. Ele nos diz
que:
“A formação reativa da histeria apega-se tenazmente a um objeto específico e
jamais se difunde por uma disposição geral ao eu, ao passo que o que é
característico na neurose obsessiva é precisamente uma difusão dessa espécie –
um afrouxamento de relações na escolha de objeto” (Freud, S., 1926: 182).
Entra-se no campo da neurose obsessiva, já que todo o desenvolvimento de Freud a
respeito dos traços de caráter está atrelado a este tipo clínico. Por esse motivo
investigamos os dois tipos clínicos da neurose, no intuito de descobrirmos o que leva o
sujeito obsessivo a utilizar os traços de caráter como formação de defesa.
Ao retomar a questão dos traços de caráter pela via das formações reativas, Freud (1933)
distingue a formação do sintoma da formação reativa. Na primeira, o contra-investimento
se conjuga em oposição com a energia da moção pulsional. Na segunda, a formação é
acolhida no interior do Eu.
Primeiramente e acima de tudo, existe a incorporação, sob a forma de supereu,
da anterior instância parental, que é, indubitavelmente, a sua parte mais
importante e decisiva; e ademais, identificações com ambos os pais do período
subseqüente e com outras figuras de influências, e as identificações semelhantes
formadas como remanescente de relações objetais a que se renunciou. E
podemos agora acrescentar como contribuições à construção do caráter, que
nunca estão ausentes, as formações reativas que o eu adquire – no início,
executando seus recalques e, depois, por um método mais normal, quando rejeita
moções pulsionais indesejáveis” (Freud, S., 1933: 114-115).
É interessante observar que Freud descreve dois tipos de identificações na formação do
caráter. A identificação com a figura parental e a identificação com os resíduos objetais
abandonados. Para a segunda, supomos que o Eu se identifique com os traços, a fim de
enquadrar a angústia. A atitude do Eu na formação do caráter se aproxima do modo de
funcionamento do Eu-ideal, escrito por Lacan como i (a), porque aparentemente ambos
mecanismo velam os antigos investimentos como traços essenciais. Lacan nos diz que:
“Como efeito, ao simplesmente acomodar sua visada no objeto do qual o Eu do
sujeito é a imagem – digamos, nos traços de seu caráter -, ele se colocará, não
menos ingenuamente do que faz o próprio sujeito, sob a influência dos artifícios
de seu próprio Eu. E o efeito, aqui, não é tanto para ser medido nas miragens que
eles produzem, mas na distância que determinam de sua relação com o objeto.
Pois basta que ela seja fixa para que o sujeito saiba encontrá-la” (Lacan, J.,
1953: 349).
Em 1938, Freud traz uma grande contribuição à questão do caráter, dizendo que o que
está em questão na sua formação é o trauma da infância. Para evitar a sua irrupção, o Eu
utiliza dois mecanismos de defesa: as inibições e as fobias. “Essas reações negativas
também efetuam as contribuições mais poderosas para a cunhagem do caráter.
Fundamentalmente, elas são fixações no trauma, tanto quanto seus opostos, exceto por
serem fixações com o intuito contrário” (Freud, S., 1938: 95).
Com a teoria lacaniana pode-se supor que, a partir de alguma ruptura em seus
encadeamentos significantes, os traços podem ser recapturados e velados pelo Eu. Mas é
preciso saber como o Eu faz para preservá-los, já que ele próprio é a sede real da
angústia. Além disso, é preciso também investigar qual é o tipo de atitude que a censura
adota diante dessa retenção de significantes. Não se trata de uma retenção de significantes
aleatórios, ao contrário, são significantes que podem comandar e alterar todo o
funcionamento psíquico.
Diante de tais questionamentos e da hipótese de que os traços de caráter são uma das
modalidades de defesa da angústia, a presente dissertação foi dividida nos seguintes
capítulos: As duas teorias da angústia, As três modalidades de enquadramento da
angústia, A visão de W. Reich sobre o caráter, e Os traços de caráter. Vale ressaltar que
seu título original foi “A angústia e suas armações”, mas, por ser um tema que comporta
inúmeros conceitos, como: a pulsão, a repetição e as três modalidades de molduras da
angústia: a fobia, o Eu Ideal, e a fantasia, ela acabou sendo intitulada “Angústia e
caráter”.
A angústia na teoria freudiana
Este capítulo recebeu dois subtítulos: o recalque e a angústia na civilização, visando
averiguar, no primeiro, o motivo pelo qual os traços não passam pela ação do recalque e,
no segundo, as fontes de sofrimentos que assombram a civilização.
A primeira teoria da angústia
Em sua primeira teoria da angústia, Freud havia enfatizado que a angústia não era
compreensível como um medo antigo, por mais que este último estivesse metabolizado.
Tratava-se de uma perturbação econômica, em que a angústia era concebida como a
transformação direta da excitação somática acumulada por ausência de descarga.
Com efeito, na passagem do Projeto à Interpretação dos sonhos, a angústia não é mais
concebida como produto da transformação direta da energia somática, mas como produto
da transformação da libido. Apesar de estar mais relacionada com o fator sexual do que os
demais afetos, ela foi considerada resultado do recalque.
Em 1915, Freud retoma a questão da angústia e da libido, enfatizando a idéia de que a
angústia não mais se faz unicamente de acordo com a descarga, antes de tudo com relação
ao perigo. Classifica dois tipos de angústia: a real e a neurótica. A primeira diz respeito a
um perigo real externo, quando o sujeito pode prevê-la e esperá-la. Ao associar a angústia
a um determinado evento, o Eu pode acioná-la sempre que perceber os riscos decorrentes
deste acontecimento.
Quanto à segunda forma, a neurótica, Freud a divide em dois grupos: a angústia
expectante e a angústia neurótica. Na primeira, trata-se de uma angústia livremente
flutuante, que está pronta a se ligar a uma idéia que seja de alguma maneira apropriada à
expectativa. Assim, as pessoas atormentadas por este tipo de angústia sempre prevêem as
mais terríveis possibilidades, interpretando todos os acontecimentos casuais como agouro
do mal. Na segunda, a angústia está psiquicamente ligada a determinados objetos e
situações, como, por exemplo, nas fobias.
A segunda teoria
A partir de 1926, Freud apresenta a angústia e o recalque como resultado da ameaça da
castração. Ao retomar longamente o caso do “Pequeno Hans”, usa a fobia como modelo
para reformular a sua teoria da angústia. Com a tese de que o Eu é a única sede da
angústia, de que somente ele pode produzi-la e senti-la, descreve dois tipos de angústia: a
angústia automática e a angústia-sinal. A primeira irrompe quando uma situação de
perigo análoga à do nascimento põe em risco a própria vida do sujeito, enquanto que a
segunda é produzida pelo Eu a partir da ameaça de uma situação de perigo real.
Frente a uma representação intolerável, o Eu reage com um sinal de angústia, com o
objetivo de operacionalizar o recalque. Embora parecem contraditórias, as duas teorias da
angústia estão intimamente ligadas, já que o retorno do recalcado também promove a
irrupção da angústia, ou seja, o recalque aciona a angústia. “Freud então pôde conceber a
angústia como afeto do real, o real como tudo o que é inassimilável à “realidade psíquica”
(Soler, C., 2004: 83).
Ao rever a teoria de Otto Rank sobre o trauma no nascimento, Freud indicara a existência
de vários perigos específicos capazes de precipitar uma situação de angústia própria a
cada momento da vida do sujeito. Tais são os perigos: o nascimento, a perda da mãe
como objeto, o perigo de castração, o perigo de perder o amor do objeto ou do Supereu.
Ao retomar a teoria de Freud, Lacan enfatiza categoricamente que a angústia
irrompe no momento em que o sujeito fica em suspenso na relação com o desejo do
Outro. Ao se interrogar: “O que Outro quer de mim?”, o sujeito tenta significantizar o
desejo do Outro, porém o que ele encontra é justamente o vazio na significação que o
levará à angústia. É o que esclarece Lacan nos seguintes termos: “(...) a angústia surge do
momento em que o sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde
está, em direção a um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá
reencontrar” (Lacan, J., 1956: 231). Nas palavras de Colette Soler, a angústia irrompe no
lugar do vazio na significação.
Verificamos a construção de Wilhelm Reich sobre os traços de caráter, visando
averiguar o que o levou a descrever o caráter como couraça. Entre 1923 e 1933 ele
escreve uma série de artigos, nos quais desenvolve sua concepção do caráter e da análise
das resistências. Coloca em evidência que a fonte principal das resistências, isto é, o
caráter, deve ser compreendido como um modo de “endurecimento” do Eu. Este se coloca
numa posição defensiva contra os estímulos e obtém um controle sobre a libido, o qual se
efetua através das formações reativas. Assim, a angústia neurótica permanece ligada à
couraça e às formações substitutivas. O caráter serve economicamente na vida diária e, na
análise do sujeito, como resistência. Ou seja, como meio de evitar o que é desagradável
(Unlust).
Vale ressaltar que, embora Reich tenha um importante trabalho a respeito do
caráter, percorremos um outro caminho de pesquisa cujo objetivo foi situar os traços de
caráter como armações de defesa contra a angústia, incluindo-os na série lacaniana: a
fobia, o Eu ideal e a fantasia. Motivo pelo qual percorremos inicialmente a trilha da
angústia, para nos debruçar em seguida sobre a questão dos traços de caráter.
CAPÍTULO I
A ANGÚSTIA NA TEORIA FREUDIANA
1.1 As duas teorias da angústia
A primeira teoria da angústia surgiu do tratamento dos histéricos e do interesse de Freud
dedicado à neurose de angústia. A questão da origem da angústia e das suas relações com
a excitação sexual e a libido teve início a partir de 1893, como atesta sua correspondência
com Fliess.
É interessante observar que na “Carta 18” enviada a Fliess em 1894, dotada de um
imenso valor teórico e clínico, apesar de mencionando a existência de centenas de lacunas
em suas idéias a respeito das neuroses, Freud introduz de forma precisa o modelo dos
afetos, articulando-os às diferentes estruturas clínicas: conversão do afeto (histeria de
conversão), deslocamento do afeto (obsessões) e transformação de afeto (neurose de
angústia e melancolia). Em decorrência do acúmulo de energia sexual não elaborada,
habitualmente traduzida por quota de afeto [Affektbetrag], o sujeito utiliza um método de
defesa para eliminar a angústia. Esta ganha um recinto peculiar com relação aos demais
afetos e aparece como circulação destes, dado que todo afeto pode se transformar em
angústia.
Freud faz um recorte da teoria da angústia, traçando os exemplos que lhe serviram
de arcabouço à hipótese de que a libido não satisfeita transforma-se em angústia. Ele diz
que:
“(...) nos casos em que há um considerável desenvolvimento da tensão sexual física, mas
esta não pode ser convertida em afeto pela transformação psíquica – por causa do
desenvolvimento insuficiente da sexualidade psíquica, ou por causa da tentativa de
suprimi-la, ou por causa do declínio da mesma, ou por causa do alheamento habitual
entre a sexualidade física e psíquica-, a tensão sexual se transforma em angústia” (Freud,
S., 1895: 276).
Em 1896, no texto “As neuropsicoses de defesa”, Freud aborda com mais precisão os
mecanismos de defesa da paranóia, da histeria e da neurose obsessiva. Nos três tipos
clínicos, o mecanismo defensivo opera no momento em que uma idéia intolerável irrompe
no Eu. O esforço do Eu em não deixá-la aparecer no psiquismo conduz a várias reações
patológicas, diante das quais se produzem as neuroses ou as psicoses. É um desvio
comum aos três tipos clínicos, porém os destinos do afeto e da representação divergem
para cada estrutura.
Na histeria, a representação intolerável é recalcada e o afeto é convertido em
energia somática, ou seja, o afeto segue a trilha somática. Já na neurose obsessiva,
embora a representação também seja recalcada, o afeto permanece na esfera psíquica,
deslocando-se ininterruptamente para outras representações. Neste caso, trata-se de uma
falsa ligação, uma vez que o afeto, que é a angústia propriamente dita, permanece na
esfera psíquica. Como revelou a paciente de Freud: “Certa vez me aconteceu uma coisa
desagradável, e tentei com muito empenho afastá-la de mim e não pensar mais nisso.
Finalmente consegui, mas ai me apareceu essa outra coisa de que não pude livrar-me
desde então” (Freud, S., 1894:59).
Na confusão alucinatória [na psicose], o Eu rejeita a representação intolerável juntamente
com seu afeto e se comporta como se ela jamais tivesse ocorrido. Isto se torna possível
quando o Eu se desliga radicalmente do mundo externo. Porém, o afeto, por não ser
recalcado, retorna através das alucinações.
Em 1916, Freud descreve duas formas de angústia: a angústia real [Realangst] e a
angústia neurótica [Neurotische Angst]. Na primeira, a angústia está relacionada a uma
situação de perigo externa, a qual o sujeito pode prever ou esperar. Como um mecanismo
de autopreservação, o sujeito é capaz de acioná-la sempre que perceber uma situação de
perigo. Freud, por alusão ao temor do selvagem, assinala que o sujeito pode prever algo
terrível diante de um rastro na floresta.
Quanto à segunda forma, a neurótica, Freud a divide em dois grupos: a angústia
expectante e a angústia neurótica propriamente dita. A primeira, por ser livremente
flutuante, está ligada a uma idéia que é de alguma forma apropriada à expectativa. O
sujeito prevê e interpreta os acontecimentos casuais como agouro do mal. Já a segunda,
está ligada a determinados objetos ou situações, como, por exemplo, nas fobias.
O caminho do recalque possibilitou a construção da primeira teoria da angústia,
por meio da qual convergiram várias questões e conseqüentemente a revisão de Freud
sobre o tema. Esta primeira teoria sustentava a hipótese de que o afeto é substituído pela
angústia após a incidência do recalque, ou seja, a angústia funcionaria como uma espécie
de “moeda corrente universal” pela qual qualquer impulso poderia ser trocado, à medida
que algum representante estiver subordinado ao recalque.
Temos como exemplo dessa substituição os atos obsessivos, uma vez que estes
surgem com o objetivo de tamponar a angústia, ela é substituída pela formação de
sintomas. Disse-me uma paciente: “Eu tenho que lavar todas as panelas duas vezes ao dia,
independente de estarem sujas ou não, pois, se isso não acontecer, fico angustiada”.
Freud se apóia em algumas fobias freqüentes para buscar o fator determinante da
angústia neurótica. Ele esclarece que o temor da criança diante de um rosto estranho está
diretamente ligado ao hábito da mesma estar à vista de uma figura familiar e amada –
basicamente sua mãe. No entanto, é seu desapontamento e seu anseio pela mãe que se
transformam em angústia, devido ao fato da criança não ter como aplicar sua libido em
outros objetivos. A libido suspensa, não utilizada, é descarregada em forma de angústia.
Como muito bem exemplifica Freud: no momento em que uma criança estava no escuro
com medo, ela disse em voz alta: “Mas fala comigo titia. Estou com medo!” A tia
indagou: “Por quê? De que adianta isso? Tu nem estás me vendo”. E a criança respondeu:
“Se alguém fala, fica mais claro”. Com Colette Solerix, podemos antecipar uma
ix
Em palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 09/04/2001.
interpretação, dizendo que é no lugar do vazio da significação que a angústia surge. É o
que veremos adiante.
Em “Inibições, sintomas e angústia”, Freud retoma os pontos fundamentais da
angústia. Tais são: a angústia real, a angústia neurótica, a situação traumática, a situação
de perigo e a angústia-sinal. Enfatiza que o Eu é a sede real da angústia, uma vez que ele
é uma organização que agencia os investimentos, fareja o perigo e dá o sinal de desprazer.
Dessa forma, ele questiona a explicação da angústia através do ponto de vista econômico,
a qual sustentava que a energia não investida na moção pulsional era automaticamente
transformada em angústia. Interroga-se:
“Como é possível, de um ponto de vista econômico, que um processo de retirada de
descarga, como a retirada de um investimento do eu pré-consciente, produza desprazer
ou angústia, visto que, de acordo com nossas suposições, o desprazer e a angústia podem
surgir somente como resultado de um aumento de investimento?” (Freud, S., 1926: 114).
À vista dessa questão, ressalta que a angústia não é criada no recalque, uma vez
que o afeto não é recalcado, mas ela é reproduzida como um estado afetivo a partir de
uma imagem mnêmica já existente. Isto é, o Eu pode acioná-la sempre que perceber uma
ameaça de irrupção de uma experiência traumática.
Pela trilha do recalque, verificamos que, embora a ação do recalque comprove a
força do Eu, por outro lado revela a sua impotência, na medida em que os derivados do
recalque, ao serem trans8u2( )-5.2(r s8u)-5. os res lt9.1(o)-5.9(m)crntê-5.2(r9(m)c)es 5.2(ros )5.(x( )-5.1 Isp
Por ser o agenciador do psiquismo, o Eu tenta impedir que os sintomas permaneçam
isolados, utilizando vários métodos defensivos para agregá-los a si. Um destes métodos
funciona como uma espécie de censor, o qual ficará atento a qualquer espécie de
satisfação que o sujeito possa ter através do sintoma.
Ao retomar o caso do “Pequeno Hans”, Freud se interroga sobre a formação dos
sintomas:
“Hans recusava-se a sair à rua porque tinha medo de cavalos. Isto era a matéria-prima do
caso. Que parte disto constituía o sintoma? Era ele ter medo? Era sua escolha de um
objeto para seu temor? Era ter ele abandonado sua liberdade de movimento? Ou era mais
de um desses fatores combinados? Qual foi a satisfação a que ele renunciou? E por que
teve de renunciar a ela?” (Freud, S., 1926: 123).
Para Freud o inexplicável medo de cavalos, de Hans, era diferente de sua
incapacidade de sair de casa, a qual era uma inibição, ou seja, uma restrição que o Eu se
impusera a si mesmo, com o objetivo de não despertar a angústia. Por outro lado, temos
um segundo ponto que revela que a fobia de Hans foi possivelmente uma tentativa de
solucionar o conflito edipiano: atitude hostil e afetuosa em relação ao pai. Mas Freud
ajusta essa conceitualização, dizendo que:
“Não podemos, portanto, descrever o medo que faz parte dessa fobia como um sintoma.
Se Hans, estando apaixonado pela mãe, mostrara medo do pai, não devemos ter direito
algum em dizer que ele tinha uma neurose ou fobia. Sua relação emocional teria sido
inteiramente compreensível. O que se transformou numa neurose foi apenas uma coisa: a
substituição do pai por um cavalo. É este deslocamento, portanto, que tem o direito de
ser denominado de sintoma, e que, incidentalmente, constitui o mecanismo alternativo
que permite um conflito devido à ambivalência ser solucionado sem o auxílio da
formação reativa” (Freud, S., 1926: 125).
A análise de Hans comprovou que o recalque não só incidiu sobre o impulso hostil
contra o pai, mas eliminou também dois dos principais impulsos do complexo edipiano:
sua agressividade para com o pai e seu excesso de afeição pela mãe. A partir desse dado,
Freud enfatiza que a força motriz do recalque está diretamente relacionada à ameaça de
castração. Ou seja, Hans se distancia do ponto de angústia, isto é, da ameaça de ser
castrado pelo pai, já que o Eu consegue recalcar a idéia original, substituindo-a pelo
temor do cavalo. Se Freud enunciara anteriormente que o recalque gerava a angústia,
agora postula que a angústia o coloca em funcionamento.
“O afeto de angústia da fobia, que constitui a essência desta última, não provém do
processo repressivo [recalcador], dos investimentos libidinais das moções recalcadas,
mas do próprio agente repressor. A angústia pertencente às fobias é a angústia frente a
um perigo que ameaça efetivamente e é considerado real. Aqui a angústia cria o recalque
e não – como eu opinava antes – o recalque produz a angústia” (Freud, S., 1926: 130).
Por ter identificado a angústia como efeito do recalque em sua primeira teoria,
Freud, neste momento, questiona-se:
“Talvez seja verdade, portanto, que no recalque a angústia é produzida a partir
do investimento libidinal das moções pulsionais. Mas como podemos reconciliar
essa conclusão com nossa outra conclusão de que a angústia sentida nas fobias é
uma angústia do eu e que surge neste, e de que não parte do recalque, mas, ao
contrário, põe o recalque em movimento?” (Freud, S., 1926: 132).
Embora as duas vertentes da teoria da angústia pareçam contraditórias, não são
excludentes. Pois na primeira há o germe da segunda, na medida em que o retorno do
recalcado também promove a irrupção da angústia. Veremos mais detalhadamente no
subtítulo do “Recalque”.
Ao se interrogar sobre a origem da angústia, Freud sustenta a hipótese de que ela
surge originalmente como uma reação a um estado de perigo, através do qual será sempre
reproduzida. Mas, cabe-nos indagar: de que perigo se trata? Para esclarecer o que vem a
ser um perigo propriamente dito, Freud retoma a teoria de Otto Rank, cujo mérito foi
compreender que o encontro com o mundo é sempre traumático. Freud se contrapõe à
tese do trauma do nascimento, esclarecendo que, embora o ato do nascimento constitua
um verdadeiro perigo para a vida do indivíduo, no sentido psicológico ele não diz nada,
uma vez que o feto não possui qualquer conteúdo psíquico que o leve a interpretar o
perigo como traumático.
Além disso, deixa claro que, embora a angústia tenha um caráter muito acentuado
de desprazer, nem todo desprazer pode ser nomeado angústia. Para explicar tal conclusão,
traz como exemplo o luto e a dor, que são fontes de sofrimentos esvaziadas de angústia.
Esta é acompanhada de sensações físicas que se ligam aos órgãos específicos do corpo: os
órgãos respiratórios e o coração. Para Freud fica provado que as inervações motoras
facilitam o caminho para a eliminação da angústia. “A angústia, portanto, é um estado
especial de desprazer com atos de descarga ao longo de trilhas específicas” (Freud, S.,
1926: 156).
Freud chega à conclusão de que a angústia está ligada a vários perigos específicos,
que são capazes de precipitar uma situação de angústia própria a cada período de vida do
sujeito. Tais são as situações de perigo: o nascimento, a perda da mãe como objeto, a
ameaça de castração, o perigo de perder o amor do objeto e do Supereu.
1.2 – A angústia na civilização
Vimos que há grandes marcos na teoria freudiana sobre a angústia, porém é
necessário averiguarmos de um outro ângulo sua função na comunidade humana. Assim,
pesquisamos os dois principais textos de Freud: “O futuro de uma ilusão” e seu artigo
sucessor “O mal-estar na civilização” (1930) com o objetivo de averiguar os fatores que
contribuem para a formação e a irrupção da angústia na civilização. É preciso, portanto,
explicitar os impasses do sujeito no mundo da civilização e verificar quais são as fontes
de sofrimentos que assombram a humanidade.
O mal-estar na civilização foi visto por Freud (1930) como uma das respostas que
o sujeito dá ao sofrimento experimentado a partir de três fontes: do corpo condenado à
decadência e à dissolução, do mundo externo que pode voltar-se contra nós através de
forças de destruição esmagadoras, e da relação do homem com seus semelhantes.
Sofrimentos estes que apontam indiscutivelmente para a questão do desamparo do sujeito.
Desamparo este que causa angústia, à qual o sujeito responde com um sintoma: o malestar. Como nos diz Antonio Quinet: “O sintoma é, então um tratamento do real, uma
resposta à angústia. O sintoma trata o pior com o mal – que se declina com todas as vias
possíveis do sinto-mal: mal-estar, mal-entendido, mal-comido, mal-dito” (Quinet, A.,
2000: 193).
Freud descreve alguns fatores que contribuem para a infelicidade da humanidade:
a insatisfação do sujeito com o estado de civilização existente, pelas renúncias pulsionais
que a civilização exige; a baixa estima dada à vida terrena pela doutrina cristã, entre
outras; o progresso extraordinário nas ciências naturais em sua aplicação técnica. Assim,
mesmo diante do progresso científico, o sujeito não obtém a felicidade, já que o saber
científico traz conseqüências nefastas para o destino da humanidade, facilitando os atos
de violência contra os inimigos e abrindo caminho para se justificar a desumanização do
outro.
Além disso, a civilização não garante o fim do desamparo do sujeito, já que
existem vários elementos que parecem escarnecer de qualquer controle humano. Tais são:
a terra que treme, as tempestades, as doenças e o penoso enigma da morte. Em
contrapartida, as catástrofes da natureza podem viabilizar a união entre as pessoas, na
medida em que elas esquecem as diferenças e animosidades internas em prol de sua
preservação, nem que seja momentaneamente.
Se por um lado a civilização tenta preservar a vida, por outro reforça toda a trama
de sofrimento do sujeito, na medida em que ela impõe ao sujeito uma certa quantidade de
privação, seja através de preceitos impostos pelo homem, seja por suas próprias
imperfeições. Todavia, o sujeito reage aos danos que a civilização e outros homens lhe
impõem, por meio de resistências e hostilidades aos regulamentos civilizatórios. Freud
então se questiona: “Mas, como se defende ele [sujeito] contra os poderes superiores da
Natureza, do Destino, que o ameaçam da mesma forma que a tudo mais?” (Freud, S.,
1927: 27). Diante de tal questionamento, esclarece que o sujeito se defende da angústia do
desamparo, interpretando as fatalidades como forças divinas. Ou seja, o sujeito
significantiza o horror da devastação, atribuindo aos deuses a tríplice missão de exorcizar
os terrores da natureza, de reconciliar os homens com a crueldade do destino, a morte, e
de compensá-los pelos sofrimentos e privações.
Ao atribuírem poderes divinos aos deuses, os homens interpretavam os fenômenos
da natureza a partir de suas necessidades internas. Os deuses eram os senhores da
natureza e se manifestavam ocasionalmente por meio de milagres, cujo objetivo era
sinalizar para a humanidade que eles não haviam abandonado a sua esfera original de
poder. Porém, no que pautava a distribuição dos destinos, persistia a desagradável
suspeita de que a morte e o desamparo humano não podiam ser eliminados. Impotentes
diante da morte, os deuses apenas vigiavam e assistiam à violência que os homens
infligiam a outros homens.
A idéias religiosas sobre a morte sustentam o começo de um novo tipo de
existência, já que o espírito desprende-se do corpo e passa a ter a garantia de eternidade.
Assim, a existência de Deus ou dos deuses sintetiza quase todas as questões do sujeito,
uma vez que as idéias religiosas pregam que a vida tem fundamentos mais elevados. De
certa forma, o desamparo do ser passa a ser interpretado pelo sujeito como uma marca
necessária à eternidade. Deste modo, os homens passam a velar os mandamentos
religiosos, preservando-os como um bem supremo.
“As idéias religiosas no sentido mais amplo – são prezadas como o mais precioso bem
da civilização, como a coisa mais preciosa que ela tem a oferecer a seus participantes.
São muito mais altamente prezadas do que todos os artifícios para conquistar tesouros da
terra, prover os homens com sustento, evitar suas doenças, e assim por diante” (Freud,
S., 1297: 31).
Ao examinar a autenticidade das idéias religiosas, Freud observa que tais idéias
são ensinamentos e afirmações não apenas sobre fatos e condições da realidade externa,
mas também sobre a realidade interna do sujeito. Conclui dizendo que são “ilusões,
realizações dos mais antigos desejos da humanidade” (Freud, S., 1927: 43). Ao se
interrogar sobre a veracidade da história da religião, Freud destaca que a morte do pai
primevo evocou uma reação emocional na comunidade, de tal forma que inúmeros
mandamentos foram gerados. Um destes diz: “Não matarás”. Inicialmente este
mandamento estava restrito ao pai, mas, para melhor garanti-lo, foi estendido a toda a
comunidade. Isto mostra que a imagem original de Deus foi sustentada pela imagem do
pai primevo. “O pai primevo constitui a imagem original de Deus, o modelo a partir do
qual as gerações posteriores deram forma à figura de Deus” (Freud, S., 1927: 56).
A formulação sobre o desamparo do ser conduziu Freud a dialogar com seu amigo
Roman Rolland, afirmando contra o escritor a sua descrença na existência do “sentimento
oceânico” no sujeito. Argumenta que a verdadeira origem da atitude religiosa é a
nostalgia da proteção do pai e questiona: “Que direito tem esse [sentimento oceânico] de
ser considerado como a fonte das necessidades religiosas?” (Freud, S., 1930:90). Através
desse questionamento, assinala que um sentimento só poderá ser fonte de energia se ele
próprio for a expressão de uma necessidade intensa, a tradução residual de um sentimento
ancorado na própria origem do Eu. Se para Roman Rolland é possível existir “uma união
mais íntima do eu com seu meio” (ibid., 1930: 86), em contrapartida, ao lançar o sujeito
num mundo sem Deus, Freud pôde enunciar que a felicidade jamais poderia ser alcançada
por uma fórmula universal. Ele já havia enfatizado que ser feliz é uma imposição do
princípio do prazer que jamais será plenamente realizada, mesmo que o sujeito utilize
todos os seus esforços. Assim, cabe-nos perguntar: se a felicidade não existe, então, por
que o sujeito é impulsionado a encontrá-la? Talvez possamos responder a esta questão,
dizendo que a felicidade está diretamente ligada à realização do desejo, por isso torna-se
impossível alcançá-la, ou, que a felicidade provém de manifestações episódicas de
satisfação de impulsos recalcados.
A origem da angústia, como dissemos anteriormente, está atrelada a três fatores:
ao poder superior da natureza, à fragilidade do nosso corpo; por fim, à inadequação das
regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos dos seres humanos, na família, no
Estado e na sociedade. Por considerar o último fator como o mais penoso à humanidade,
Freud nos diz que: “o que chamamos de nossa civilização é em grande parte responsável
por nossa desgraça, seríamos muito mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às
condições primitivas” (ibid., 105). Diremos que é preciso que o sujeito retorne ao
verdadeiro estado de desamparo para que possa reencontrar o que o causa e, com Freud,
citaremos Plauto “O homem é o lobo do homem”. Em contraste com as duas primeiras
fontes de sofrimento, esta é a que mais inquieta o sujeito, porque revela a sua fragilidade
e o abismo que o espreita a todo o momento.
Em torno da agressividade inata do ser humano, Freud reconheceu um mais além
do principio de prazer, ou seja, a autonomia da pulsão de morte. Depois de distinguir
função e tendência, afirmou que o princípio de prazer seria apenas uma tendência que fica
a serviço de uma função: a de fazer com que o aparelho psíquico fique livre de toda a
excitação. “A função, assim definida, participaria das aspirações mais universais de todo
ser vivo a voltar atrás, ao repouso do mundo orgânico” (Freud, S., 1920: 59). Se a função
de Eros é reunir unidades cada vez maiores, deve haver uma outra pulsão contrária
àquela, cuja função é dissolver essas unidades e conduzi-las de volta a seu estado
primitivo e inorgânico. O que levou Freud a dizer que o princípio de prazer está
diretamente a serviço da pulsão de morte, dissolvendo organizações e transgredindo
qualquer lei, para dar lugar às novas e ruidosas manifestações das pulsões sexuais.
“As manifestações de Eros eram visíveis e bastante ruidosas. Poder-se-ia presumir que a
pulsão de morte operava silenciosamente dentro do organismo no sentido de sua
destruição, mas isso, naturalmente, não constituía uma prova. Uma idéia mais fecunda
era a de que uma parte da pulsão é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz
como uma pulsão de agressividade e destrutividade. Dessa maneira, a própria podia ser
compelida para o serviço de Eros, no caso do organismo destruir o seu próprio eu (self)”
(Freud, S., 1930: 141).
Se por um lado a pulsão de morte tem como alvo a destruição da natureza e da
cultura, por outro tem o objetivo de colocar em causa tudo o que existe. Como pontua
Lacan: “Mas ela [pulsão de morte] é igualmente vontade de criação a partir do nada,
vontade de recomeçar” (Lacan, J., 1960: 259). Essa vontade de recomeçar diz respeito à
recusa da permanência do mesmo. Assim sendo, Freud averiguou que, por ser a pulsão a
fonte de condução da vida, a evolução da humanidade consiste justamente na luta da
espécie humana pela vida. Ou seja, a destrutividade é algo que está presente em cada
momento, que rege cada começo.
Deste modo, os homens passam a moderar suas reivindicações de felicidade, tal
como o princípio de prazer que, sob influência do mundo externo, transformou-se no
princípio de realidade. Podemos dizer que o princípio de realidade é o princípio de prazer
purificado, já que o primeiro opera no nível do pré-consciente e da consciência, onde as
regras morais são formuladas.
Vários métodos de defesa são utilizados pela civilização no combate ao mal estar
provocado pelo mundo externo e pelo próprio homem. Para se livrar do contato mortífero
com o ser, o sujeito pode escolher o “isolamento voluntário”, diríamos, o isolamento
forçado, já que ele se distancia da civilização em prol de sua liberdade de escolha. Em
relação ao temível mundo externo, o caminho tomado é o da aproximação do sujeito com
a comunidade humana. Por meio do arsenal de técnicas científicas, os homens podem
atacar a natureza e sujeitá-la à vontade humana. Mas isso tem limites.
Embora sejam caminhos aparentemente eficazes, Freud ressalta que o recurso
mais eficaz para evitar o sofrimento é o caminho que influencia o organismo. Segundo
ele, todo o sofrimento nada mais é do que uma sensação que só existe na medida em que
sentimos, e só o sentimos como conseqüência de certos modos pelos quais nosso
organismo está regulado. Isto é possibilitado inclusive pela influência química, a
intoxicação, a qual conduz o sujeito a um mundo de fantasias, sem as amarras da
realidade. “Ao fazer o curto-circuito do simbólico pelo uso da droga, o sujeito na verdade
não abre mão do Outro, não se responsabiliza, não responde por sua vida” (Ribeiro, M.
1998: 124). Diremos, então que, ao escolher o mundo das drogas, o sujeito abre mão de
seu desejo e fica a serviço do gozo do Outro.
Assim, Freud expõe outros recursos contra o sofrimento. Um destes diz respeito
ao deslocamento da libido, através da sublimação das pulsões o artista cria e dá corpo às
suas fantasias. O sujeito encontra na criação artística um estilo próprio e subjetivo de
satisfação, transformando os restos pulsionais, ajudando a minorar os poderes da
repressão e inibição sob a cultura, modificando-a. Além disso, a fantasia foi considerada
por Freud como um recurso eficaz contra a angústia, uma vez que ela substitui os objetos
da realidade pelos objetos imaginários. Com o mundo de fantasias, o sujeito consegue
emoldurar um outro tipo de realidade em conformidade com o seu desejo.
Um outro recurso é o delírio, por meio do qual o sujeito substitui o mundo externo
por um outro, no qual os aspectos mais insuportáveis são eliminados. Porém, ao rejeitar
radicalmente o mundo externo, o sujeito é constantemente devastado pelo real que o leva
à pura angústia. “Se a realidade é demasiado forte para ele, torna-se um louco: alguém
que, na maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a realizar o seu delírio”
(Freud, S., 1930: 99). Freud afirma que estar nessa posição delirante não é uma condição
exclusiva da psicose, já que qualquer sujeito pode escolher este caminho, visando
remodelar a sua realidade. As religiões tentam remodelar a realidade como um todo, a tal
ponto que o sujeito perde completamente a sua subjetividade. “As religiões da
humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É
desnecessário dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal”
(ibid., 100).
Embora existam vários recursos contra o sofrimento, a felicidade constitui um
problema exclusivo da economia libidinal do sujeito, na medida em que não existe um
sistema que se aplique a todos. Freud enfatiza belamente que “não existe uma regra de
ouro que se aplique a todos: todo homem tem que descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo” (Freud, S., 1930: 103).
Assim, o sujeito escolherá uma modalidade de proteção, seja a partir da satisfação
real que espera obter do mundo externo, seja de até onde pode se tornar independente do
mundo externo ou, finalmente, do quanto de disposição possui para alterar o mundo, a
fim de adaptá-lo a seu desejo. O homem erótico dará preferência aos seus
relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista, que tende a ser autosuficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o
homem de ação nunca abandonará o mundo externo, onde poderá testar a sua força.
Comprova-se como é singular o caminho da felicidade. Já que não existe uma
“regra de ouro”, cada sujeito precisa descobrir e escolher como “pode ser salvo”. Porém,
Freud adverte que, caso seja feita uma única escolha, o sujeito correrá o risco de ser
exposto ao fracasso.
“Qualquer escolha levada a um extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos,
que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se mostre inadequada.
Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo o seu capital num só negócio,
assim também, talvez, a sabedoria popular nos aconselha a não buscar a totalidade de
nossa satisfação numa só aspiração” (Freud, S., 1930: 103).
A direção do amor do um para o amor universal foi uma das técnicas utilizada
pela religião, em que se despreza a distinção entre o Eu e os objetos, ou entre os próprios
objetos. Freud discorda completamente desse preceito, argumentando que um amor que
não discrimina é privado de uma parte do seu próprio valor, por fazer injustiça a seu
objeto. Quanto ao amor universal, acrescenta que nem todos os homens são dignos de
amor, por isso a técnica se torna ineficaz.
Freud se debruça sobre o mandamento cristão “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”,
para articular toda uma discussão a respeito do seu cumprimento. Interroga-se: “Por que
deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como
conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser cumprido?” (Freud, S., 1930: 130).
Esclarece que este mandamento se torna impossível de ser cumprido porque o amor não
pode ser dado a qualquer um e, sobretudo, porque existe no sujeito um além do principio
do prazer que o impulsiona à destruição.
Os preceitos religiosos visam atenuar o mal estar na civilização e enclausurar o
desejo, seja através de significantizações, seja pelas proibições. Ao recusar o desejo, o
sujeito se distancia do ponto de angústia, uma vez que ambos, desejo e angústia, são
pontos muito próximos na estrutura. Porém isso é apenas uma ilusão, pois, ao ceder de
seu desejo, o sujeito abre mão de sua diferença, que é abrir mão de sua existência.
Ao longo de seu trabalho, Freud mostra como são complexas as relações entre a
satisfação, o prazer e outras sensações que os excedem em força e em intensidade.
Conclui dizendo que a pulsão de morte é a principal fonte de impedimento a felicidade.
“Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que,
com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos
outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande
parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e sua angústia” (Freud,
S., 1930: 170).
Eis uma conclusão magistral, já que ela traduz justamente a posição de desamparo
inalterável do ser falante. Revela-nos que o vazio, o não saber do que o outro é capaz e o
abismo que estão permanentemente sob os pés da humanidade, num turbilhão violento,
pode destruir o sujeito a qualquer momento, uma vez que a morte o espreita a toda
instante. Cabe-nos perguntar: como dominar a inexorável pulsão de morte? É o que
veremos nos capítulos subseqüentes, mas Freud nos adianta que: “Agora só nos resta
esperar que o outro dois “Poderes Celestes”, o eterno Eros, descubra suas forças para se
afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que
sucesso e com que resultado?” (Freud, S., 1930: 171).
1.3 – O Recalque
x
Como visto antes, a operação do recalque é acionada a partir de duas vertentes: da
angústia automática, que é a angústia de castração, e da angústia-sinal, uma espécie de
dispositivo sediado no Eu que é posto em ação por ele perante uma situação de perigo,
cuja finalidade é evitar a irrupção da experiência traumática. É como se o Eu usasse
pequenas quantidades de energia para se defender e mobilizar as defesas. Para relembrar
o que trabalhamos anteriormente, queremos destacar que o sinal de angústia é acionado a
x
O esquema acima apresentado corresponde a uma adaptação do esquema de Coutinho Jorge (25/11/03) em
aula do mestrado na UERJ.
partir das seguintes situações: desamparo psíquico, perda de objeto, ameaça de castração,
medo do Supereu e medo da perda de amor. Torna-se portanto imprescindível o estudo da
teoria do recalque para que possamos avançar no esclarecimento das modalidades de
defesa do Eu.
Ao se deparar com o fenômeno clínico da resistência, e ao empreender a
superação da primeira teoria do trauma, Freud foi levado a rever o conceito de
recalcamento (Verdrängung). A primeira teoria admitia que as manifestações neuróticas
seriam decorrentes de um trauma psíquico sofrido na infância, provocado por um
acontecimento em face do qual o sujeito não teria condições de realizar a ab-reação do
afeto. Assim o sujeito, impossibilitado de se defender do acontecimento de uma forma
normal, empreendia uma defesa patológica. Neste sentido, a defesa é constituída a partir
da impossibilidade de uma conciliação entre uma representação intolerável e o afeto.
Em 1915, Freud distingue três fases do recalque: a fixação/inscrição (recalque
originário), o recalque propriamente dito (recalque secundário) e o retorno do recalcado.
O recalque originário corresponde à inscrição da pulsão numa representação e à inscrição
desta representação no inconsciente. Esse primeiro mecanismo do recalque tem como
efeito a formação do núcleo inconsciente, que servirá de pólo de atração para o recalque
propriamente dito. Este núcleo está relacionado a certas experiências cuja significação
inexiste para o sujeito e cuja passagem à consciência é vedada. Mas, na realidade, o
recalque originário é o responsável pela clivagem do psiquismo em instâncias
diferenciadas: o sistema inconsciente e o sistema pré-consciente.
“Temos motivos suficientes para supor que existe um recalque primevo, uma primeira
fase do recalque, que consiste em negar entrada no consciente ao representante psíquico
(ideacional) da pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação, a partir de então, o
representante em questão continua inalterado, e a pulsão permanece ligada a ele” (Freud,
S., 1915: 171).
O caráter traumático da primeira experiência não aparecerá de imediato, já que os
representantes, diremos, os significantes isolados, não possuem nenhuma significação. As
significações a posteriori por parte do sistema simbólico conferem valor traumático ao
que foi experienciado pelo sujeito. Temos aqui a explicitação da segunda teoria da
angústia, em que a cena posteriormente significada faz o recalque operar. Neste momento
surge o recalque propriamente dito, que é a segunda fase do recalque, fazendo com que o
representante psíquico da pulsão seja novamente recalcado. Este representante passa a ter
uma existência independente no psiquismo, produzindo derivados e estabelecendo novas
conexões. Derivados estes que emergem, por exemplo, através das associações do sujeito
em análise e, sobretudo, das formações do inconsciente.
“(...) o representante pulsional se desenvolverá com menos interferência e mais
profusamente, se for retirado da influência consciente pelo recalque. Ele prolifera no
escuro, por assim dizer, e assume formas extremas de expressão, que uma vez traduzidas
e apresentadas ao neurótico irão não só lhe parecer estranhas, mas também assustá-lo,
mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e perigosa força da pulsão” (Freud, S.,
1915: 172).
Quando algum derivado se encontra suficientemente afastado do representante original,
ele consegue escapar à censura e ter acesso à consciência, isto é, à parte consciente do Eu.
Freud é categórico ao descrever o recalcamento como um processo individual e
extremamente móbil. Em virtude de sua mobilidade o recalque exige um dispêndio
persistente de força, de tal forma que qualquer relaxamento poderá ter como
conseqüência o surgimento do recalcado ao nível do Eu.
Freud ressalta que o quantum de afeto pertencente ao representante é um
componente mais valioso do que o próprio destino da idéia. Pois, “se o recalque não
impedir o surgimento de sentimentos de desprazer ou de angústia, podemos dizer que
falhou, ainda que possa ter alcançado seu propósito no tocante à parcela ideacional”
(Freud, S., 1915: 177).
A terceira e última fase do processo de recalque apontada por Freud é o retorno do
recalcado. Pelo fato do recalque não conseguir se manter, mesmo sendo inicialmente
eficaz, o recalcado irrompe no psiquismo. A manobra para evitar o desprazer faz com que
o Eu utilize outros mecanismo defensivos, forçando o material recalcado a ser submetido
à deformação. Por não ser recalcado, mas sofrendo paradoxalmente os efeitos do
recalque, o afeto é transformado em angústia. Então, novas defesas são tomadas pelo Eu
no combate à angústia. É o que verificaremos em cada tipo clínico da neurose.
No “Rascunho K”, de 1896, Freud já mencionara que o recalquexi é o conteúdo
mais valioso para a obtenção de um diagnóstico preciso, já que a diferença dos tipos
clínicos é revelada pelo modo de seu funcionamento.
“As principais diferenças entre as diversas neuroses são demonstradas na forma
como retornam as idéias recalcadas; outras diferenças são evidenciadas na
maneira como os sintomas se formam e no rumo tomado pela doença. Mas p
caráter específico de uma determinada neurose está no modo como se realiza o
recalque” (Freud, S., 1896: 311).
Na histeria, o processo de recalcamento é em geral bem sucedido, na medida em
que ele consegue eliminar o afeto do sistema psíquico. O afeto segue as vias orgânicas
facilitadoras, abrindo caminho para a formação de sintomas conversivos.
“(...) A sensação de desprazer que acompanha o aparecimento dos sintomas varia em
grau impressionante. Nos sintomas crônicos [na histeria] que foram deslocados para a
motilidade, como paralisias e contraturas, ela se acha quase inteiramente ausente, o eu
comporta-se em relação aos sintomas como se nada tivesse a ver com estes” (Freud, S.,
1926: 135).
xi
Em 1896, o recalque é sinônimo de defesa em sentido amplo.
Isento da responsabilidade de ter que administrar o afeto e a idéia intolerável, o Eu
mantém uma distância do conteúdo traumático. Embora existam casos de histeria em que
os sintomas são acompanhados de dor, o Eu consegue mantê-lo distante, uma vez que o
desprazer recebe um outro tipo de significação. Para melhor esclarecer o mecanismo
defensivo, na histeria, inserimos o seguinte esquema:
Vale ressaltar que o retorno do recalcado na histeria quase não é evidenciado, o
que confirma certamente a eficácia do recalque. Mas, no Adendo ao texto “Inibições,
sintomas e angústia”, Freud deixa claro que em alguns casos de histeria o recalque opera
de modo parcial, uma vez que outras defesas são tomadas. Uma destas é o contrainvestimento cujo objetivo é reforçar o sistema defensivo. Ele traz como exemplo a
mulher que trata com excessiva ternura o filho que no fundo odeia. Diferentemente da
neurose obsessiva, em que há um afrouxamento de relação na escolha de objeto, a
formação reativa, na histeria, apega-se tenazmente a um objeto específico.
Aparece muito clara na histeria a atitude tomada pelo Eu contra a representação
intolerável, porém duas questões ofuscam a nossa compreensão. Tais são: por que o
desvio do afeto é feito pela trilha somática? Será que a primeira experiência, por ter sido
acompanhada de desprazer, precipita uma defesa imediata? Talvez possamos sustentar
esta segunda hipótese com o texto de 1894, em que Freud claramente observa que, por ter
sido a primeira experiência acompanhada de desprazer, o Eu é forçado a permitir, de
forma imediata, uma manifestação de descarga do afeto. Em outros termos, por precisar
de uma descarga, a trilha somática é o caminho mais rápido de defesa.
Visando discutir as etapas do recalque na neurose obsessiva, introduzimos o
seguinte esquema:
Na neurose obsessiva, a primeira experiência sexual traumática é acompanhada de
um excesso de prazer. Esta experiência permanece no núcleo inconsciente como pólo de
atração para outras representações. Porém, ao ser relembrada, ou melhor, traduzida em
significantes, ela irrompe como desprazer: o que foi inicialmente prazeroso torna-se
efetivamente traumático. O efeito traumático surge através de dois fatores: da lembrança
da cena traumática e da autocensura. Diante de um excesso de prazer, o Eu se recrimina,
operacionalizando o recalque. A representação é recalcada e o afeto é deslocado para
outras representações. Temos como exemplo, o sujeito que é tomado por idéias
obsessivas de precaução.
É importante ressaltar que o recalque secundário na neurose obsessiva não operaxii
de fato, ou melhor, não triunfa, porque o que caracteriza a eficácia do recalque, como
visto antes, não é o destino dado à representação, mas o destino dado ao afeto. Este
último permanece na esfera psíquica bombardeando o Eu, já que, mesmo desligado de sua
cadeia associativa, da representação intolerável, ele continua operando em outras cadeias,
inclusive com mais potência. Diante do deslocamento metonímico de significantes, a
censura se torna ineficaz. Escapando da censura, o afeto irrompe no Eu como angústia
propriamente dita. Freud nos diz que:
“O afeto da autocensura pode ser transformado, por diferentes processos psíquicos, em
outros afetos, os quais, depois, entram na consciência mais claramente do que o afeto
como tal: por exemplo, pode ser transformado em angústia (medo das conseqüências da
xii
Conforme observou Vera Pollo no exame de qualificação desta dissertação, em 10/11/01 – UERJ: “A
defesa por excelência da neurose obsessiva é o isolamento da idéia, e não o recalque secundário”.
ação a que se refere a autocensura) hipocondria (medo dos efeitos corporais)” (Freud, S.,
1896: 312).
Ao descrever a formação de sintomas na neurose, no texto “Inibições, sintomas e
angústia”, Freud reafirma que a formação de substitutos na neurose obsessiva acaba
denunciando a ligação do representante substituto com o representante censurado. Então o
Eu, diante da infiltração do conteúdo traumático, estabelece dois novos mecanismos de
defesa.
No primeiro, o Eu irá desfazer o que foi feito, ou seja, irá “dissipar com um sopro”
(ibid., 142) a experiência traumática. Erguem-se, portanto, os rituais religiosos e os atos
mágicos, ou seja, os sintomas bifásicos, que têm como objetivo cancelar uma ação por
uma segunda. É uma tentativa do Eu de desviar a atenção do conteúdo traumático, a fim
de escapar da angústia.
A segunda técnica visa o ‘isolamento’ da experiência traumática. O Eu introduz
um intervalo, que é equivalente à amnésia histérica, cujo objetivo é isolar a experiência
traumática. Ao usar a concentração em outras tarefas, como por exemplo a via religiosa
em que o sujeito atribui um significado a sua neurose, o Eu consegue desconectar o
conteúdo traumático do pensamento por um intervalo de tempo.
“Quando algo desagradável aconteceu ao paciente ou quando ele próprio fez algo que
tem um significado para sua neurose, ele interpola um intervalo durante o qual nada
mais deve acontecer – durante o qual não deve perceber nem fazer nada” (Freud, S.,
1926: 143).
Embora aparentemente eficaz, o isolamento do conteúdo traumático gera um
excessivo trabalho para o Eu, sobretudo não elimina a angústia, na medida em que esta
segue a trilha associativa das outras representações. Ao trazer como exemplo o tabu de
tocar, já que o toque é uma das maiores proibições que o Eu tem que gerenciar na neurose
obsessiva, Freud deixa claro que o Eu se mantém atento para evitá-lo. Se, por um lado, o
tocar representa o acesso à via amorosa, por outro representa a destruição, já que o
contato físico é um dos meios de descarga da agressividade. Ou seja, existem duas faces
no ato de tocar: a primeira tenta unificar o Eu com o objeto amado, a segunda tenta
destruir o próprio objeto.
Até aqui verificamos que o Eu fica muito mais atento na neurose obsessiva, uma
vez que a trilha tomada pelo afeto gira em torno da esfera psíquica. Hipoteticamente
podemos pensar que seja esse o motivo pelo qual o Eu não opera mais com o sinal de
angústia, ele próprio é invadido por ela. Como visto antes, outras modalidades de defesa
são operadas. Uma destas modalidades é apresentada pelas formações reativas, pois o
combate deve ser feito diretamente em direção à angústia. Trata-se de contrainvestimento, em que uma representação penosa é substituída por um sintoma primário;
temos os exemplos dos sujeitos que são tomados por um excesso de generosidade, de
piedade, de limpeza etc. Aparentemente trata-se de uma defesa bem sucedida, na medida
em que os dois fatores que atuam no conflito, a lembrança e a auto-recriminação,
encontram-se isolados no Eu em proveito de virtudes morais levadas ao extremo.
Discorreremos agora sobre o mecanismo defensivo da fobia, de forma a introduzir
o capítulo em que abordaremos mais detalhadamente o tema. Em 1926 Freud reafirma
que o mecanismo desse tipo clínico da neurose se dá através do reconhecimento por parte
do Eu da ameaça de castração. Ao reconhecer o perigo, o Eu dá um sinal de angústia e
inibe o processo de investimento do Isso através da instância do prazer-desprazer. O
deslizamento de significantes abre espaço para a eclosão da fobia e o afeto é deslocado.
O significante traumático é deslocado para um outro significante. A idéia original,
o medo de ser castrado, é deslocada para uma outra representação. Embora o conteúdo da
representação seja o mesmo, o medo da castração, o Eu consegue metaforizar, ou seja, dá
sentido à angústia através do encadeamento de significantes. Então, o Eu evita o conflito
com o Isso e mantém uma condição para a angústia: irromper somente na presença do
objeto temido. Freud nos diz que:
“Essa formação substituta apresenta duas vantagens óbvias. Em primeiro lugar, evita um
conflito devido à ambivalência (pois o pai foi um objeto amado, também) e, em
segundo, permite ao Eu deixar de gerar angústia, pois a angústia que pertence a uma
fobia é condicionada; ela só surge quando o objeto dela é percebido – e com razão, visto
que é somente então que a situação de perigo se acha presente. Não é preciso ter medo
de ser castrado por um pai que não se encontra ali. Por outro lado, uma pessoa não pode
livrar-se de um pai; ele pode aparecer sempre que desejar” (Freud, S., 1926: 148-49).
Freud observa que a angústia nas fobias é aplicável à neurose obsessiva. Somos
compelidos à pergunta: será que podemos aproximar a fobia da neurose obsessiva no
aspecto da formação de sintomas? Talvez a equivalência esteja ligada especificamente ao
deslizamento metonímico de significantes, na medida em que ambas, mais claramente do
que a histeria de conversão, utilizam significantes para acoplar a angústia. Era o que
articulava Hans quando atribuía o seu medo ora ao bigode do cavalo, ora às patas do
cavalo etc. Quanto à neurose obsessiva, era o que articulava o Homem dos Ratos quando
contava a história dos ratos. Isto equivale a dizer, com Soler (2001), que ambos tipos
clínicos tentam preencher o vazio na significação, que é o lugar central da angústia, por
meio dos significantes.
Embora na neurose em geral a ameaça de castração seja o ponto determinante da
angústia, Freud ressalta que “(...) todas as três têm como resultado a destruição do
complexo de Édipo; e em todas as três a força motora da oposição do Eu é, acreditamos, o
medo da castração. Contudo, é somente nas fobias que esse medo aflora e é reconhecido”
(Freud, S., 1926: 146).
Cabe-nos indagar: se a trilha associativa da experiência traumática é rompida pelo
isolamento como recurso de defesa, será que os significantes rompidos da cadeia
traumática são utilizados pelo Eu como traços essenciais de caráter? Ou será que estes
significantes, que foram isolados, são utilizados como armações de defesa para a
construção de falsos ‘novos’ sintomas? É o que veremos posteriormente.
CAPÍTULO II
AS MODALIDADES DE ENQUADRAMENTO DA ANGÚSTIA
2.1 - A 0Aa
externa adequada à angústia interna. Deste modo, o Eu transforma o perigo interno em
um perigo externo com o objetivo de se proteger. Freud assinala como exemplo o caso de
agorafobia, em que o sujeito teme invariavelmente o encontro de pessoas. Em sua fobia, o
sujeito realiza um deslocamento e passa a temer a situação externa pensando estar se
protegendo melhor. Dito de uma outra forma, a fobia tem a função de responder à
angústia. É essa função que aparece no caso do “Pequeno Hans”, em que o objeto da
angústia é nomeado pelo sujeito com o objetivo de cercar a angústia, reforçar o recalque,
editar o Édipo e reforçar o Nome-do-Pai que é sempre falho.
Lacan (1962), bem freudianamente, define a angústia como um afeto que não pode ser
recalcado. Apenas os significantes que o amarram passam pela ação do recalque. “O afeto
está desamarrado, ele segue a deriva. Encontramos o afeto deslocado, louco, invertido,
metabolizado, mas não recalcado. O que está recalcado são os significantes que o
amarram” (Lacan, J., 1962: 22. Inédito).
Em 1938, no texto sobre “A divisão do Eu no processo de defesa”, Freud retoma
de forma precisa o circuito do mecanismo de defesa do Eu diante da castração do Outro.
Ele esclarece que o Eu de uma criança, por estar sob a influência de uma poderosa
exigência pulsional, é subitamente assombrado por uma experiência que lhe ensina que a
continuação dessa satisfação resultará num perigo real intolerável.
Assim sendo, o Eu tem duas saídas diante de “um conflito entre a exigência por
parte da pulsão e a proibição por parte da realidade” (Freud, S., 1932: 309). Por um lado,
com o auxílio de certas modalidades de defesa, rejeita a realidade e recusa-se a aceitar
qualquer proibição; pelo outro, reconhece o perigo da realidade, e assume a angústia
desse perigo com um sintoma patológico e subseqüentemente tenta desfazer-se da
angústia.
Para esclarecer sobre o complexo de castração no menino, ainda nesse texto, Freud
introduz o caso clínico de um menino de três anos de idade, que foi seduzido por uma
menina mais velha. Através dessa experiência, o menino familiarizou-se com os órgãos
genitais femininos, e foi levado a prosseguir a estimulação sexual, praticando
zelosamente a masturbação manual. Por esse motivo, ele foi ameaçado por sua babá de
castração, cuja realização foi atribuída ao pai. A criança não acreditou na ameaça pelo
fato de ter refletido que aquilo que ainda faltava, na menina, [o pênis] se desenvolveria
mais tarde.
Todavia, a criança revive a ameaça de castração, quando percebe que sua irmã ou a
própria mãe não tem o pênis. Tal percepção, da falta de pênis, fez com que ele não se
arriscasse mais a duvidar que seu próprio órgão pudesse encontrar o mesmo destino, a
castração. Por conseguinte, a criança abandona no todo ou em parte a satisfação pulsional
e cria um substituto para o pênis das meninas, o fetiche. Ele resolve esse conflito
aceitando e negando-o, na medida em que desenvolve um sintoma (a fobia) ou elege
objeto (fetiche), que terá a significação de um valor fálico. Ambos os procedimentos de
defesa responderão a angústia desse conflito. “O menino não contradisse simplesmente
suas percepções, e alucinou um pênis onde nada havia a ser visto; ele não fez mais do que
um deslocamento de valor – transferiu a importância do pênis para outra parte do corpo”
(Freud, S., 1938: 311).
Por um outro lado de interpretação do abismo experimentado pela criança no encontro da
castração do Outro, podemos dizer que o sujeito, ao eleger um objeto fóbico, coloca a
cadeia de significantes em operação. Vem a ser o que articulava Hans, quando dizia: “o
cavalo caiu, o cavalo fugiu etc”. Criam-se, assim, possibilidades de idas e vindas na
cadeia de significantes, aparecendo um sujeito desejante, isto é, um sujeito da fala. Como
muito bem pronunciou Soler: “Os discursos são tratamentos da angústia, já que eles a
localizam, a cobrem” (Soler, C., 2001 – Inédito).
Ao esclarecer o momento de constituição da angústia, Soler observara que, pelo
fato do afeto estar ligado ao estatuto do ser falante, a angústia, enquanto efeito de
linguagem, sempre se produz quando aparece o vazio na significação. “Esse vazio pode
ser convocado por cenários imaginários”xiii Eis, portanto, uma questão: será que podemos
equiparar o vazio na significação ao momento de suspensão do sujeito?
Ao discorrer sobre o momento de suspensão do sujeito, Lacan categoricamente enfatiza
que a angústia surge a cada vez que o sujeito é, por menos sensivelmente que seja,
deslocado de sua existência. É o momento em que o sujeito se percebe como estando
prestes a ser capturado por alguma coisa, como por exemplos: a imagem do outro e os
acidentes traumáticos. Como define: “(...) a angústia é correlativa do momento em que o
xiii
Palestra proferida na UERJ (2001).
sujeito está suspenso entre um tempo em que ele não sabe mais onde está, em direção a
um tempo onde ele será alguma coisa na qual jamais se poderá reencontrar” (Lacan, J.,
1956: 231).
É o momento em que a criança é profundamente interpelada e abalada em sua
posição de sujeito. Como nos diz “não obstante, tudo é questionado pela proibição
paterna, que deixa a criança em suspenso quanto a seu balizamento do desejo da mãe”.
(Lacan, J., 1957: 210). Para melhor elucidar o momento de suspensão do sujeito,
ilustramos um caso clínico de Helen Deutsch, intitulado: “Um caso de fobia de
galinhas”xiv. Eis o fragmento do caso:
Um dia de verão, o menino de sete anos brincava com seu irmão mais velho no pátio da
fazenda onde nascera e crescera. Ele brincava com algo no chão, de cócoras, curvado,
quando seu irmão mais velho pulou bruscamente em cima dele por detrás, segurando-o
fortemente pela cintura, gritando: ‘Eu sou o galo e tu és a galinha’. Segundo a analista, foi
claramente um caso de uma brincadeira de ataque sexual por parte do irmão. Iniciou-se
uma briga entre eles, uma vez que o paciente se recusou a ficar no lugar de galinha. Pelo
fato do irmão ser mais forte, ele teve de ceder, porém num paroxismo de raiva e lágrimas,
gritou: “Não vou ser uma galinha”.
Desde então a liberdade de movimentos do menino ficou consideravelmente restrita.
Sentiu-se forçado a manter distância de todas as galinhas, o que não era fácil no ambiente
da fazenda, até porque o irmão mais velho, cada vez que via uma galinha zombava do
menino, dizia-lhe: ‘É você’.
O menino gradualmente passou a evitar as gozações do irmão e a evitar o contato com as
galinhas com as quais até então não tivera problemas. De fato, seu medo logo se tornou
uma fobia, uma vez que, ao sair de seu quarto, alguém tinha que espantar as galinhas para
o galinheiro e vigiar para que nenhuma aparecesse. Somente quando todas essas medidas
de precaução haviam sido tomadas, é que o menino se aventurava temerosamente a sair
de casa. Mesmo assim, olhava atentamente em todas as direções para ter certeza de que
nenhum demônio assustador em forma de galinha apareceria no seu campo de visão. Se
por acaso visse uma galinha, ele tinha um violento ataque de angústia. Segundo Deutsch,
xiv
Este trabalho foi publicado em The Psycho-analysis of the neuroses, Londres, The Hogarth Press Ltda.,
1951 (N. da T.).
depois que o irmão saiu de casa para continuar seus estudos em um outro lugar, a fobia do
menino desapareceu.
Deutsch observa que as galinhas tinham tido um papel importante nas fantasias do
menino, muito antes da experiência com seu irmão. Pelo fato de sua mãe ter o hábito de
cuidar regularmente do galinheiro, o menino alegremente a ajudava, regozijando-se com
cada ovo fresco produzido. Interessava-se pela maneira como sua mãe se certificava de
que as galinhas punham ovos corretamente e gostava do modo como ela o tocava quando
ia lavá-lo. A mãe muitas vezes lhe perguntava por brincadeira se podia tocá-lo com o
dedo para ver se ele colocaria um ovo.
O paciente, ao ser identificar com as galinhas, enfiava o dedo no ânus, segurava suas
fezes, produzindo como uma espécie de ovos fecais, bem redondos, em cada canto do
quarto. Ficava surpreso pelo fato de sua mãe não receber essa prova de amor com o
mesmo prazer que ela recebia os ovos das galinhas. Cabe-nos perguntar: será que, ao
produzir ovos fecais, o menino desejou ficar no lugar de objeto do gozo do Outro?
Na posição de galinha, certamente, o menino se torna a criança ideal para a mãe, porém
quando o irmão o denuncia, dizendo-lhe: “Eu sou o galo e tús é a galinha”, faz vacilar o
narcisismo do menino, que é, na realidade, a razão pela qual ele havia originalmente se
identificado com a galinha. Então, aparece a divisão do sujeito entre querer ser uma
galinha e não querer ser. Abre-se, dessa forma, um espaço para a eclosão da angústia.
Freud (1914) observara que, no final do complexo de Édipo, o menino desiste da
mãe por conta da angústia de castração, ou seja, ele desiste dela em prol do próprio
narcisismo. Acerca do caso de Deutsch, Lacan comenta que:
“A passagem do campo da angústia, aquele pelo qual é inaugurado hoje meu discurso, a
saber, que não é sem objeto, a condição que se vê é que este objeto é a aposta mesma do
sujeito no campo do narcisismo, é aquele donde se desvela a verdadeira função da fobia,
que está em substituir o objeto da angústia por um significante que provoca temor”
(Lacan, J., 1969 - Inédito).
Embora exista uma insuficiência de dados específicos sobre a história edípica do
paciente, podemos levantar como hipótese que o ato do irmão teve certamente uma leitura
sexual da parte do menino, teve efeitos sobre sua relação incestuosa com a mãe, e o
lançou na angústia de ser castrado.
Por um outro ângulo da análise, pela via do momento de suspensão do sujeito, é
interessante observar que o objeto fóbico, a galinha, serviu justamente de instrumento
contra o gozo da mãe, na medida em que o menino, ao temer as galinhas, distanciou-se do
ponto enigmático do desejo do Outro. “O que o Outro quer de mim?”. Pergunta eficaz
que fez o menino responder literalmente no lugar de objeto: a galinha. Em contrapartida,
diante da não resposta do desejo do Outro, ou seja, através da interrogação: “O que eu sou
para esse Outro?”, uma fissura se forma dando espaço para a eclosão da angústia. Mas,
para se proteger, o menino elege de forma perfeita o mesmo objeto causador da angústia,
as galinhas, justamente para tamponar, ou melhor, para enquadrar a angústia.
No Seminário X, Lacan retoma um apólogoxv utilizando-se da metáfora do louvaa-deus para exemplificar a questão do enigma do desejo do Outro como gerador da
angústia. Segue a cena:
“Suponham-me em um recinto fechado, sozinho com um louva-a-deus de três
metros de altura. É uma boa proporção para que eu tenha a altura do louva-adeus macho. Além disso, estou vestindo a roupa de um louva-a-deus de 1,75m,
mais ou menos a minha altura. Eu me olho, miro minha imagem, assim
fantasiado, no olho facetado do louva-a-deus. É isto a angústia? Esta bem perto.
[...] Trata-se propriamente da apreensão pura do desejo do Outro como tal, uma
vez que justamente ignoro minhas insígnias, pois estou ridiculamente vestido
com a mortalha do varão. Não sei o que sou como objeto para o Outro”.xvi
Somos compelidos à pergunta: será que a angústia pontuada no apólogo acima pode ser
interpretada como um momento de suspensão do sujeito? Conforme a história, o sujeito
não sabe se está vestido de macho ou fêmea, assim corre o risco, se estiver vestido de
macho, de ser devorado pela louva-a-deus. Em suspenso, ele se pergunta: “o que o Outro
quer de mim?” Pergunta que aponta para o desejo do Outro, que o leva a tentar descobrir,
através do jogo especular, nos olhos dela [louva-a-deus] quais são suas intenções. Apesar
xv
Lacan trabalha, esse apólogo, na lição de 21 de novembro de 1962, no Seminário à Identificação (Lição de
4/4/1962),
xvi
LACAN, J., “O Seminário, livro 10: A angústia” – Lição 1: 14 de novembro de 1962. Inédito, p. 13.
de nada dizer, quieta, a louva-a-deus mostra, em seus olhos, sua demanda. Nesse jogo
especular, conjugam-se tanto as coordenadas imaginárias do que o Outro quer quanto das
imagens que representam o sujeito para o Outro. Trata-se de uma captura imaginária, pois
o sujeito alienado na imagem do Outro se interroga: o que sou aos olhos do outro? É a
apreensão pura do desejo do Outro. Segundo Lacan, o sujeito sabe que o Outro quer
alguma coisa, mas não sabe o que é, o que o leva a angústia.
Para melhor especificar a função da fobia, ilustraremos um outro caso clínico de fobia, de
jacaré, atendido no meu consultório particular. Trata-se de um menino de seis anos, que
foi encaminhado para atendimento psicológico pela escola, e pela analista da mãe, por
estar apresentando medo da escola, dos colegas, agressividade e hostilidade com as
pessoas.
Na primeira entrevista, a mãe do paciente disse-me: “Eu sou uma mãe superprotetora,
pois sempre tratei o meu filho como um bebê. Inclusive dou-lhe mamadeira até hoje. Não
quero que ele cresça. Quando criança eu dormia com os meus pais, porque sentia muito
medo do escuro”.
Segundo o relato da mãe, M. começou apresentar agressividade aos dois anos e meio,
aproximadamente após a separação dos pais. Após a separação, a mãe depois de alguns
meses foi morar com um outro homem, que tem duas filhas pequenas, uma delas tem
aproximadamente a idade de M.
O padrasto relata, em entrevista, que o menino faz de tudo para aborrecê-lo, não o
respeita, dá ordens para ele, do tipo: “velho careca, pega logo isso!”. M. até a primeira
entrevista dormia com o casal [o padrasto e a mãe]. Embora, o padrasto tenha tentado
impedir a presença do menino na cama, não conseguiu, uma vez que a mãe o proibiu de
fazer qualquer interferência.
Na primeira sessão do atendimento, ao observar as caixas de brinquedo, M. não ficou
inibido, logo tratou de mexer nos brinquedos e me perguntou: “Você quer que eu faça o
que?”. Digo-lhe para fazer o que desejar. Então, M. faz diversos desenhos e brinca com
vários jogos, mas sempre solicita a presença da analista nas brincadeiras.
Na sessão seguinte, M. pegou todas as peças de montar e disse-me: “Vamos construir
uma cidade”. Após a construção da cidade, pergunto-lhe quais são os moradores da
cidade, ele me diz: “Eu e você”. Porém, inclui, dentro dessa cidade, dois homens: um do
bem e um do mal. Encena várias brigas entre os dois [bonecos], e no final retruca: “O
boneco do bem vai matar o boneco do mal”.
No decorrer do tratamento M. observou um jacaré de brinquedo muito pequeno. Não
mexeu no jacaré, apenas o deixou distante. Mas, por ter sido feita uma arrumação no
armário do consultório, o jacaré, que aparentemente, não havia causado nenhum impacto
no paciente, desapareceu. M. na sessão seguinte à arrumação do consultório, assim que
abriu a caixa de brinquedos, perguntou-me em voz alta e agressiva: “Cadê o jacaré que
estava aqui? O que você fez com ele?”. Foi um momento de surpresa, pois como
observado anteriormente, M. em momento nenhum demonstrou interesse pelo jacaré,
apenas o deixava distante. Então, disse-lhe: a faxineira arrumou o armário e
provavelmente o levou para um outro lugar. Espantado com a resposta, M. me disse:
“Então, você vai ligar agora para ela e vai pedir para ela devolver o jacaré!”. Após a
compra de um outro jacaré do mesmo tamanho, M. continuou mantendo-o distante. Passa
a desenhar vários crocodilos, retratando de forma maravilhosa a história familiar dos
‘crocodilos’. Desenhou os filhotes indo ao encontro do pai. Porém, entre vários desenhos,
ele inclui uma crocodila gigantesca. A partir disso, pergunto-lhe: “quem é esse bicho?”
Ele indignado me diz: “Você não sabe? É a mãe dos fin? É Mados fint? É? Éminm
você?”. Numa outra sessão, disse-me: “não sei se sonhei ou se pensei, mas acho que o
meu tratamento vai terminar na semana passada”.
Por conta da melhora no quadro clínico do menino e de vários outros fatores, a mãe do
paciente solicitou uma interrupção no tratamento. Ao ser comunicado, M. concordou,
dizendo-me: “Eu não tenho mais medo do jacaré, mas posso visitar você? Em sua última
sessão, ele chegou com uma mochila de rodinhas e falou: “A minha mochila está
desarrumada, eu nunca limpei a minha mochila, quem faz isso é a minha mãe. Hoje vou
limpá-la”. Ele começou a retirar da mochila todos os materiais, inclusive um dos
crocodilos. Jogou tudo no chão e me perguntou: “Você vai ficar aí sentada sem fazer
nada?”. Então, fiz um movimento para ajudá-lo, foi então que ele disse: “Eu não preciso
mais de sua ajuda. Eu arrumo sozinho”. Depois da arrumação, pedi-lhe que fizesse um
desenho. M. fez um barco com três pessoas dentro: ele, a mãe e o padrasto.
É importante ressaltar, que segundo o relato dos pais M. quase nunca colocava a figura
do padrasto em seus desenhos anteriores à análise, a não ser para dizer que o padrasto
estava se ferrando. Um dia desenhou o padrasto caindo de um precipício e batendo a
cabeça na pedra. No desenho do último dia de sua análise, M. fez um menino do lado do
barco e me disse: “Esse menino é do mal, mas conseguimos matá-lo, ele não vai mais
fazer maldade”.
É importante ressaltar que, embora o caso clínico não apresente de forma explícita
uma fobia de animal, temos a presença de uma das roupagens desta, que foi construída à
frente do ponto de angústia. Visto que, M. angustiado pela captura do desejo do Outro (a
mãe), elege um significante ‘jacaré’ para servir de suporte, como ponto de sustentação do
que a mãe de M. o capturava, não permitia o aparecimento de uma demanda por parte do
sujeito. Como nos diz Lacan:
“O que é que provoca a angústia? Contrariamente ao que se diz, não é o ritmo
nem a alternância da presença-ausência da mãe e, o que o prova é que este jogo
presença-ausência, isto a segurança da presença. O que há mais de angustiante
para a criança é que justamente esta relação sobre a qual ela se institui pela falta
que faz o desejo, esta relação é mais perturbada quando não há possibilidade de
falta, quando a mãe está o tempo em cima, e especialmente a lhe limpar o cu,
modelo da demanda, da demanda que não poderia falhar” (Lacan, J., 1962: 61).
Vale ressaltar, que M. diz com todas as letras: “Eu preciso desse jacaré sob os meus
olhos”. O desaparecimento do jacaré permitiu ao menino trazer a história dos crocodilos.
Através dos significantes crocodilos, o menino faz apelo ao pai simbólico, quando ele diz:
“Os filhotes estão indo buscar o pai”. Eis, portanto, que o desaparecimento do jacaré vai
permitir o encontro de M. com a falta. Falta esta que aponta para o verdadeiro objeto de
sua angústia, que é o temor da perda do membro viril. Pois, quando ele diz: “Eu tenho
medo da boca aberta do jacaré, parece que ele vai comer o meu pintinho”, na realidade M.
está construindo o seu sintoma fóbico, para justamente barrar o gozo devastador da mãe.
Para Lacan os objetos da fobia têm, com efeito, a função especial de suprir o
significante do pai simbólico, na medida em que o simbólico se reorganiza com a
introdução de novos elementos imaginários. Ou seja, a fobia tem a função de falicizar, ou
melhor, metaforizar a própria castração. Não permite que a angústia se torne a angústia de
castração propriamente dita.
Para prosseguir o trajeto sobre a análise da fobia, ilustraremos um caso clínico
analisado por Sándor Ferenczi, intitulado “Um pequeno homem-galo” de 1913.xvii Eis o
fragmento clínico:
Trata-se de menino de cinco anos de idade, o pequeno Arpad, que nas declarações
unânimes de seus parentes mais chegados tivera até os três anos e meio um
desenvolvimento mental e físico perfeitamente regular.
Durante o verão de 1910, a família de Arpad foi para uma estação de águas numa
localidade austríaca, onde passara o verão anterior, e alugou alojamentos na mesma
xvii
Uma antiga paciente de Sándor Ferenczi, que participava das investigações psicanalíticas lhe apresentou o
caso de Arpard.
residência. Desde o momento da chegada, a conduta do menino mudou de maneira
singular: se antes o menino se interessava por todos os acontecimentos, agora se
interessava por uma única coisa: o galinheiro que havia no pátio da casa de campo. Pela
manhã corria para junto das aves, contemplava-as com infatigável interesse e imitava seus
cacarejos e posturas, chorando e gritando quando era forçado a afastar-se do pátio. No
entanto, mesmo longe do galinheiro, não fazia outra coisa senão soltar seus cocorocós e
cacarejos. Era esse seu comportamento durante horas a fio, sem se cansar, só respondendo
a perguntas com os gritos de animais.
A nova conduta do menino persistiu durante todo o período de férias. Em seguida, quando
a família regressou à casa, Arpad recomeçou a utilizar bem a linguagem humana, mas
suas conversas giravam quase exclusivamente em torno de galos, galinhas e pintos, com
algumas alusões ocasionais a gansos e patos. Sua brincadeira habitual, repetida inúmeras
vezes, era: modelar galinhas e galos com pedaços de jornal e pô-los à venda. Depois
pegava um objeto qualquer que batizava de faca, levava a sua “ave” até a cozinha, punhaa debaixo da torneira e cortava o pescoço do seu frango de papel. Mostrava como o
animal sangrava e imitava com perfeição, com gestos e voz, a agonia do galináceo.
Quando os seus pais perguntavam ao filho por que tinha tanto medo do galo, Arpad
contava sempre a mesma história: tinha ido um dia no galinheiro e urinado lá dentro; foi
então que um frango ou um capão de plumagem amarela (às vezes dizia marrom) veio
morder seu pênis, e a arrumadeira fez o curativo em seu ferimento. Cortaram em seguida
o pescoço do galo.
Vale ressaltar que os pais de Arpad lembravam-se desse incidente, que ocorrera durante o
primeiro verão passado na estação de águas, quando ele tinha dois anos e meio. Um dia a
mãe ouviu o menino soltar gritos assustadores e soube pela arrumadeira que Arpad tinha
um medo terrível de um galo, que tentara dar bicadas no seu pênis. Mas, como a
arrumadeira já não estava a serviço da família, foi impossível confirmar se Arpad tinha
sido realmente ferido nessa ocasião ou se a arrumadeira se limitara a pôr um curativo para
tranqüilizá-lo. Embora os pais não se lembrassem, eles acreditavam que o menino havia
sofrido algum tipo de ameaça de castração no decorrer da infância.
A análise clínica feita por Ferenczi da criança nada revelou de surpreendente, já que
desde o instante que a criança entrou em seu gabinete, foi direto no bibelô, um pequeno
galo-do-mato. Após a solicitação de Ferenczi, Arpad desenhou prontamente um galo, mas
não quis falar sobre seu medo. A partir disso, Ferenczi solicitou à vizinha do menino, que
se interessava pelo caso, que anotasse as falas e os comportamentos significativos do
pequeno Arpad. Seguem as anotações:
Arpad cacareja e solta seus cocorocós de um modo magistral. Ao amanhecer, acorda toda
a família ao som de um vigoroso cocorocó de um modo. Possui senso musical, mas só
entoa canções que tratam de galinhas.
Brinca na cozinha com um frango que a cozinheira acaba de matar. De súbito, entra no
quarto ao lado, tira da gaveta do armário um ferro de frisar e grita: “agora vou furar os
olhos desse frango morto”. O momento em que se degola um galináceo é, em geral, uma
festa para ele. É capaz de ficar dançando horas a fio em volta do cadáver dos animais,
tomado de uma intensa excitação.
Quanto à parte afetiva, Arpad é nitidamente ambivalente com os galináceos. Com enorme
freqüência, beija e acaricia o animal morto, ou então, cacarejando e piando sem parar,
“alimenta” seu ganso de madeira.
Arpad se preocupa com a idéia de cegueira, ao perguntar: “pode-se cegar alguém com o
fogo ou com água?” Certa vez disse: “Gostaria muito de comer mamãe escabeche; a gente
poria a mamãe para cozinhar numa panela, então ficaria mamãe escabeche e eu poderia
comê-la. Cortaria sua cabeça e a comeria assim (como se estivesse comendo alguma coisa
com garfo e faca)”. Porém tem acessos de arrependimento de sua crueldade, quando diz:
“Gostaria de ser queimado. Que me quebrem um pé e o ponham no fogo”.
Arpad um dia declarou bruscamente: “Meu pai é um galo!” E uma outra vez: “agora sou
pequeno, agora sou um pinto. Quando for maior, serei uma galinha. Quando for ainda
maior, me tornarei um galo. E quando for muito grande serei um cocheiro”
Num determinado dia a arrumadeira tinha erguido bruscamente o lençol da cama de
Arpad e, vendo-o mexer no pênis, ameaçara-o de cortá-lo. A vizinha, correspondente de
Ferenczi, esforçou-se por tranqüilizar Arpad, assegurou-lhe que não lhe fariam mal
nenhum e que, aliás, todos os meninos faziam a mesma coisa. A isto Arpad respondeu:
“Não é verdade! Todas as crianças, não! O meu papai nunca fez isso!”.
A última declaração de Arpad à vizinha foi: “Casarei com você, com você e sua irmã, e
com as minhas três primas e a cozinheira, não, é melhor a mamãe no lugar da cozinheira”.
Freud (1913) analisa o caso de Arpad a fim de assinalar as características do
totemismo positivo e negativo. Temos uma questão inicial: o que é um totem? O totem é
um animal, que fora das leis totêmicas pode ser comível e inofensivo ou perigoso e
temido. É o antepassado comum do clã, ao mesmo tempo é o seu espírito, guardião e
auxiliar. Embora perigoso para os outros, reconhece e poupa os seus próprios filhos. Os
integrantes do clã são obrigados a não matar nem destruir seu totem e evitar comer sua
carne. Pelo fato das pessoas descenderem do mesmo totem, forma-se uma família única,
cujo grau de parentesco é encarado como impedimento absoluto para as relações sexuais.
Freud (1913) atribui três espécies de totens: 1) o totem do clã: é comum a todo clã,
passando por herança de geração a geração; 2) o totem do sexo: é comum a todos os
homens ou todas as mulheres de uma tribo e 3) o totem individual: pertencente a um
indivíduo isolado, sem passar aos seus descendentes.
Ao trabalhar a tese de J. G. Frazer (1910), sobre: Totemism and Exogamy, Freud
observara que a vinculação entre um homem e seu totem é mutuamente benéfica, na
medida em que o totem protege o homem contra os males.
No texto de 1913, Freud pontua uma semelhança entre os homens primatas e as
crianças. Pois as crianças, como os primatas, não revelam sinais de arrogância com os
animais e não têm escrúpulos em permitir que os animais se classifiquem como seus
plenos iguais. Os homens primatas descreviam o totem como sendo seu ancestral comum
e pai primevo. A partir disso, é possível pensar que um dos recursos imediatos da criança
contra a angústia seja realmente a utilização de significantes da espécie animal, a título de
metaforizar ou significantizar a angústia de castração.
Freud cita o exemplo do dr. M. Woolf, em que uma criança de quatro anos, disse a um
cão: ‘cachorrinho querido, não me morda! Eu vou ser bonzinho’ (Freud, S., 1913: 155). O
ser ‘bonzinho’, segundo o autor, é: ‘não mexer no pipi’, já que o menino tinha sido
ameaçado pelo pai da castração. Assim confirma Freud: “o fato novo que aprendemos
com a análise do pequeno Hans – fato com uma importante relação com o totemismo –
foi que, em tais circunstâncias, as crianças deslocam alguns de seus sentimentos do pai
para o animal” (Ibid.,:156).
Retomando a questão do totemismo positivo, Freud ressalta que o caráter totêmico é
inerente não apenas a alguns animais ou entidade individual, mas a todos os indivíduos de
uma determinada classe. Considera o caso de Ferenczi como um caso exemplar de
totemismo positivo, na medida em que os interesses totêmicos de Arpad não surgiram na
relação direta com o complexo de Édipo, mas sim, em prol da condição narcisista, o
temor da castração. O totemismo positivo vigorou pelo fato de Arpad ter se identificado
com o animal totêmico, ao trocar o falar humano por cacarejos e cocoricós. Os galináceos
não constituíram um objeto específico de medo, ao contrário, Arpad venerava-os
intensamente, inclusive fazendo homenagens ritualísticas quando encenava a morte de
alguma deles. Já no totemismo negativo o objeto totêmico não é venerado, por ser
especificamente temido.
Por um outro viés da história de Arpad, observamos alguns pontos da cena traumática. Na
primeira cena o menino estava com dois anos e meio e sofre a ameaça do galo (de bicar o
pênis), que aparentemente não surtiu nenhum efeito. Ao voltar à fazenda depois de um
ano, ele imediatamente se identifica com os galináceos. Será que podemos pensar que a
segunda cena re-significantizou a primeira e, com isso, a identificação com os galináceos
foi um recurso para o enquadramento de sua angústia? Pois como Arpad pode se
angustiar com os galináceos se ele próprio é um galo?
2.2 – O Eu Ideal
Vimos que Lacan (1962) propõe três tipos de modalidades de enquadramento da angústia: a fobia, que foi trabalhada no subtítulo
anterior, o Eu Ideal e a fantasia. Entraremos agora na questão do Eu Ideal, a fim de averiguarmos quais são os recursos utilizados por
esta instância para combater a angústia.
Após o rastreamento dos textos freudianos verificamos que algumas observações
de Freud lançam luz sobre a afirmação lacaniana de que o Eu Ideal tem a função de
enquadrar a angústia. Ao examinarmos os textos freudianos verificamos que dois termos
foram empregados quase conjuntamente. São estes: “Eu ideal” (Idealich) e “Ideal do eu”
(Ichideal). Os dois termos não constituem temas independentes.
Em 1914, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução”, Freud traz o conceito de
narcisismo como uma etapa na constituição do Eu do sujeito, na qual o próprio corpo é
tomado como objeto da pulsão. Ela sucede ao auto-erotismo, em que predominam as
pulsões auto-eróticas. Ele deixa claro que é nesta passagem, do auto-erotismo ao
narcisismo, que o Eu se constitui pela via de um Eu Ideal. Este Eu Ideal funciona como
um modelo de perfeição, tanto que é ele que avalia e observa o Eu ‘real’.
Se algo não condiz com este modelo de perfeição, o recalque é colocado em ação. Freud
explicita que a formação desta instância está atrelada ao momento de constituição do Eu,
em que alguns traços, tidos como ideais, são fixados e preservados no Eu como traços de
perfeição de valor. “Podemos dizer que o primeiro homem fixou um ideal em si mesmo,
pelo qual mede seu eu real” (Freud, S., 1914: 111).
A descrição acima antecipa a tese de Freud (1926) de que existe uma angústia-sinal, uma
espécie de dispositivo sediado no Eu, que é sempre posto em ação na ameaça de uma
situação de perigo. Sua finalidade é evitar a irrupção da experiência traumática. Isto quer
dizer, portanto, que existe um Eu Ideal que vigia e compara o Eu ‘real’ pela via das
idealizações. Idealizações estas que funcionam como emblemas contra a angústia. Tratase, portanto, de uma onipotência narcísica em que o Eu se acha detentor de toda perfeição
de valor. Porém, quando abalado por algum conflito pulsional, ele tenta recuperar estes
emblemas de potência dando uma nova forma ao Eu Ideal. Como escreve Freud:
“(...) o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora
desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua
infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros
e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder
reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma de um eu ideal”
(Freud, S., 1914: 100).
É interessante observar, ainda neste texto, que Freud é taxativo em dizer que na falta de
um ideal, o Eu buscará um suplemento externo, por exemplo, um amor ou um ideal
sexual, a fim de preencher este vazio.
“Esse expediente é de especial importância para o neurótico, que por causa de seus
excessivos investimentos objetais, é empobrecido em seu eu, sendo incapaz de realizar
seu ideal do eu. Ele procura então retornar de seu pródigo dispêndio da libido em objetos
ao narcisismo, escolhendo um ideal sexual segundo o tipo narcisista que possui as
excelências que ele não pode atingir” (Freud, S., 1914: 107).
Eis que Freud nomeia este tipo de investimento de “cura pelo amor”, na maioria das
vezes o sujeito o escolhe em troca da cura pela análise. Trata-se, segundo Freud, de uma
escolha arriscada, já que o sujeito corre o risco de ficar à mercê do outro, ou melhor,
alienado ao outro.
“Muitas vezes nos deparamos com um resultado não pretendido quando, por meio do
tratamento, o paciente é parcialmente liberado de seus recalques: ele suspende o
tratamento a fim de escolher um objeto amoroso, deixando que sua cura continue a se
processar por uma vida em comum com quem ele ama” (Ibid., 119).
Em 1916, na Conferência XXVI, Freud reafirma que o processo de bipolarização do Eu
ocorre no percurso do desenvolvimento do sujeito, cuja meta é restituir a auto-satisfação
narcísica, já que nesta trajetória do desenvolvimento os ideais se perdem ou, segundo suas
palavras, algo é perturbado ou mortificado. Ou seja, o Eu Ideal tem como objetivo
devolver ao Eu ‘real’ o momento primário ou mítico de satisfação.
Vale ressaltar que o Eu Ideal não só tem como meta restituir a satisfação, mas também
administrar e vigiar as representações intoleráveis, através dos sonhos, dos lapsos, dos
atos falhos do sujeito. Isto significa dizer que o Eu Ideal tem a função de não só satisfazer
o Eu com a retomada dos momentos de satisfação, mas também de protegê-lo de um
perigo iminente. Deste modo fica claro que a instância que realmente opera como sinal de
angústia, a fim de livrar o Eu da angústia propriamente dita, é o Eu Ideal.
Embora o Eu Ideal tenha um papel importantíssimo no psiquismo do sujeito, já que
funciona como censor e defesa contra a angústia, ele foi descrito por Freud, na
Conferência XXVII – “A transferência”, como uma das maiores resistências ao
tratamento analítico. O que nos leva a pensar que seja justamente esta barreira de
resistências, erguida de significantes ideais, que o faz se manter nesta posição ideal. Nesta
posição de ideal o Eu fica fixado e alienado, talvez por achar que estes traços que foram
recapturados sejam essenciais para sua sobrevivência. Ou, por outro lado, talvez a
resistência ao tratamento analítico se dê pelo fato do sujeito não querer abrir mão do
sentimento de onipotência que lhe confere o Eu Ideal. Freud nos diz que:
“(...) A observação mostra que aqueles que sofrem de neuroses narcísicas não têm a
capacidade para a transferência ou apenas possuem traços insuficientes da mesma. Eles
rejeitam o médico, não com hostilidade, mas com indiferença. Por esse motivo,
tampouco podem ser influenciados pelo médico; o que este lhes diz, deixa-os frios, não
os impressiona; conseqüentemente, o mecanismo de cura que efetuamos com outras
pessoas – a revivescência do conflito patogênico e a superação da resistência devida à
regressão – neles não pode ser executado. Permanecem como são. Amiúde, já
empreenderam tentativas de recuperação, por sua própria conta, que conduziram a
resultados patológicos. Isto não podemos modificar de forma alguma” (Freud, S., 1916:
520).
Não querer abrir mão de sua onipotência remete-nos para questão do ‘duplo’ no
psiquismo, como foi elaborado por Freud no texto “O estranho” (1919). Já que o duplo,
segundo as observações que Freud fez à teoria de Otto Rank (1914)xviii, é uma defesa
contra a destruição do Eu, é sobretudo uma energética tentativa de negação do poder da
morte. Ao trazer o exemplo dos antigos egípcios que desenvolviam a arte de fazer
imagens do morto em materiais duradouros, Freud comenta que este ato estava
relacionado à necessidade do povo egípcio de perpetuar a imagem do outro através do
‘duplo’, a fim de preservar o amor próprio ilimitado. Ou seja, a fim de preservar o
narcisismo primário, já que a imagem fabricada do morto era vista como símbolo de
imortalidade, ou seja, a imagem tamponava o terror da morte. Porém no decorrer do
desenvolvimento do sujeito outras significações foram dadas à morte, com isto o ‘duplo’
inverteu seu aspecto. O que era visto como garantia de imortalidade transforma-se em
“estranho anunciador da morte”. O ‘duplo’ passa a ter a função de velar e desvelar o
terror que sempre espreita o sujeito, qual seja: a morte. Escreveu Freud que:
“Quando tudo está dito e feito, a qualidade de estranheza só pode advir do fato de o
‘duplo’ ser uma criação que data de um estádio mental primitivo, há muito superado –
incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O
‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como, após o colapso da religião, os
deuses se transformam em demônios” (Freud, S., 1919: 295).
xviii
Segundo Freud, Otto Rank (1914) desenvolveu um completo trabalho sobre o duplo. Rank penetrou nas
ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença
na alma e com o medo da morte. O que mais interessou Freud foi a seguinte observação de Rank: “o duplo era
uma segurança contra a destruição do eu”.
O aspecto de estranheza do ‘duplo’ foi considerado por Freud como um dos atributos do
processo de repetição, na medida em que um retorno involuntário à mesma situação
provoca no sujeito um sentimento de estranheza e desamparo. Freud conta um episódio de
estranheza que teve quando caminhava pelas ruas desertas de uma cidade provinciana da
Itália: por ter retornado três vezes à mesma rua, ele teve um sentimento de estranheza. É
interessante pensarmos na gestação deste sentimento: será que o sentimento de estranheza
se dá por conta da percepção de que se está no mesmo lugar ou porque o sujeito
desconhece o que o leva a repetir?
Talvez possamos sustentar a segunda hipótese com a seguinte observação de Freud:
“Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos
lembre esta íntima ‘compulsão à repetição’ é percebido como estranho” (Freud, S.,
1919:298).
É em torno deste processo de repetição que Freud chega à conclusão de que o
sentimento de estranheza é provocado pelo retorno das representações recalcadas. Mas o
que isto tem a ver com seu exemplo de retorno a um mesmo espaço físico e geográfico?
Em um texto anterior, “Recordar, repetir e elaborar” de 1914, ele já havia deixado claro
que o sujeito repete para não recordar. O sujeito repete as fontes do recalcado, ou seja,
repete suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. O que
significa dizer que na repetição um fragmento de uma cena ou uma representação
intolerável irrompe no Eu.
Retomaremos a questão do ‘duplo’ no psiquismo pela via lacaniana. Em 1962, Lacan
deixa claro que é através do estudo da angústia de castração que se chega ao Real que está
encoberto. A angústia de castração é a estrutura imaginária da castração. É a forma que o
sujeito tem de imaginarizar a castração para poder falar dela. Assim nos diz: “a castração
não é, no fim das contas, nada mais que o momento da interpretação da castração”.
(Lacan, J., 1962: 54).
A interpretação da castração, segundo Lacan, se dá no momento em que o sujeito
se depara com os acidentes da cena traumática, quando o imaginário é fraturado e aparece
o indizível. Para melhor explicitar este momento de irrupção da angústia pela via da cena
traumática, Lacan retoma o texto Umheimlich [O estranho]. Eis a cena comentada por
Freud:
“Estava eu [Freud] sentado sozinho no meu compartimento no carro-leito, quando um
solavanco do trem, mais violento do que o habitual fez girar a porta do toalete anexo, e
um senhor de idade, de roupão e boné de viagem entrou. Presumi que ao deixar o
toalete, que ficava entre os dois compartimentos, houvesse tomado a direção errada e
entrado no meu compartimento por engano. Levantando-me com a intenção de fazer-lhe
ver o equívoco, compreendi imediatamente, para espanto meu, que o intruso não era
senão o meu próprio reflexo no espelho da porta aberta. Recordo-me ainda que
antipatizei totalmente com sua aparência” (Freud, S., 1919: 309).
É pela via deste notável exemplo que podemos compreender que a angústia de
castração é de fato o momento da interpretação dada pelo sujeito. É no estranho, no
espantoso que a angústia se apresenta, já que é no espantoso, como confere o exemplo
acima, que se encontram os elementos mais aptos para a compreensão de que a imagem
não tampona totalmente o exílio do sujeito em relação ao Eu. Na vacilação desta imagem
emerge o estranho mais íntimo. Isto quer dizer que é justamente aquilo que está destinado
a permanecer oculto, que se torna entretanto manifesto. É o momento de terror em que o
sujeito se vê no Outro [espelho] desprovido de seu próprio olhar, vê-se frente a um olhar
Outro no qual não se reconhece.
Eis como Guimarães Rosa narrou bem freudianamente a questão do duplo:
“Foi num lavatório de edifício público, por acaso. Eu era moço, comigo contente,
vaidoso. Descuidado, avistei... Explico-lhe: dois espelhos um de parede, outro de porta
lateral, aberta em ângulo propício faziam jogo. E o que enxerguei, por instante, foi uma
figura, perfil humano, desagradável ao derradeiro grau, repulsivo senão hediondo. Deume náusea, aquele homem, causou-me ódio e susto, eriçamento, e terror. E logo
descobri... era eu, mesmo! O senhor acha que eu algum dia ia esquecer essa revelação?”
(1978).
Trata-se portanto de uma irrupção pontual, não duradoura, uma experiência que arrebata o
sujeito e o deixa como que em suspenso.
“O que quero somente acrescentar hoje, aqui, é que o horrível, o duvidoso, o
inquietante, tudo aquilo que traduzimos como podemos em francês, este
magistral Unheimlich, apresenta-se através das frestas, que o campo da angústia
se situa, para nós, enquadrado” (Lacan, J., 1962: 82).
Como visto antes, Soler (2001) argumenta de forma precisa que: “a angústia
sempre se produz quando aparece o vazio na significação”.xix O que também equivale a
dizer que há fratura do enquadre da imagem. Na perda dos pontos de referência que os
significantes representam para o sujeito, o cenário se desfaz e a angústia irrompe
justamente no vazio da representação. Eis a angústia!
Antonio Quinet também deixa claro que na experiência do ‘duplo’ comentada por Freud a
angústia irrompe no momento em que o olhar desfaz a imagem especular. Assim ele
escreve:
“Mas se a angústia não deixa de ter um objeto, é porque Freud é afetado pelo
objeto olhar que emerge no espelho, do qual sente-se subitamente alvo – olhar
que desfaz a imagem especular impedindo-o de reconhecer-se: ele é o objeto do
olhar antipático do outro” (Quinet, A, 2002: 140).
Em “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache”, Lacan (1960) retoma a
questão do Eu Ideal pela via do Ideal do Eu. É em prol do reencontro do momento de
satisfação que o sujeito dirige o seu olhar ao espelho, ao Ideal do Eu, com o objetivo de
recapturar o Eu Ideal, ou seja, com o objetivo de recapturar os traços ideais que
provocaram fascínio. Por isso podemos dizer que, se o Ideal do Eu funciona como
modelo, o Eu Ideal funciona como aspiração (Lacan, 1960: 678). Ou seja, o sujeito busca
xix
SOLER, C. “A angústia e o laço social”. Palestra proferida na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
em 09/04/01.
no Ideal do Eu, que é o lugar onde ele acredita que pode ser amado pelo outro, o enquadre
de sua existência: o Eu Ideal.
“Assim ficam circunscritas na realidade, pelo traço do significante, as marcas onde se
inscreve a onipotência da resposta. Não é à toa que essas realidades são chamadas de
insígnias. O termo, aqui, é nominativo. É a constelação dessas insígnias que constitui
para o sujeito o Ideal do Eu.
Nosso modelo mostra que é ao se situar nela como I [Ideal do Eu] que ele fita o espelho
A, para obter, entre outros efeitos, uma dada miragem do Eu Ideal” (Lacan, J., 1960:
686).
A observação acima nos mostra que, embora distintos, o Ideal do Eu dá uma certa
substância ao Eu Ideal no combate à angústia. “Assim, a função do modelo é dar uma
imagem de como a relação com o espelho, isto é, de como a relação imaginária com o
outro e a captura do Eu Ideal servem para arrastar o sujeito para o campo em que ele se
hipostasia no Ideal do Eu” (Lacan, J., 1960: 686).
Lacan retoma o Esquema de Bouasse na lição de 28 de novembro de 1962, para fazer
uma articulação entre a função de dependência do Eu Ideal em relação ao Ideal do Eu.
Pois lembra que a relação especular se encontra na dependência do lugar do Outro, já que
a imagem especular é sustentada no Outro, no simbólico, ou seja, no significante. Em
suas palavras não devemos esquecer “como a relação especular se encontra inserida,
encontra-se então tomando seu lugar [place] do Outro. Ela se constitui por sua marca na
relação ao significante” (Lacan, J., 1962: 39).
Ao ilustrar a cena do Estádio do Espelho, formulada por ocasião do Congresso de
Marienbad (1936), como formadora da função do Eu, isto é, do narcisismo do sujeito,
Lacan marca que este jogo especular designa um momento da história do sujeito em que o
infans forma uma representação de sua unidade corporal por identificação com a imagem
do outro. Este momento é concretizado de forma exemplar pela percepção que a criança
tem de sua própria imagem no espelho. Experiência esta que é fundamental para o sujeito,
porque funcionará como a matriz a partir da qual se formará um primeiro esboço do Eu.
No início da vida, o corpo pode ser concebido como despedaçado pelas pulsões autoeróticas. A unidade do corpo é prefigurada pela imagem do outro ou a do espelho. As
pulsões auto-eróticas se dirigem para a imagem do corpo tomado por um outro, imagem
esta com a qual a criança se identifica para constituir seu Eu. Esta imagem é o Eu Ideal,
que dará a primeira sustentação ao Eu do sujeito.
Este momento é acompanhado de júbilo e de fascínio, já que a criança percebe sua
imagem unificada que:
“Parece ser o limiar do mundo visível, a nos fiarmos na disposição especular
apresentada na alucinação e no sonho pela imago do corpo próprio, quer se trate
de seus traços individuais, quer de suas faltas de firmeza ou suas projeções
objetais, ou ao observarmos o papel do aparelho especular nas aparições do
duplo em que se manifestam realidades psíquicas de outro modo heterogêneas”
(Lacan, J., 1949: 98).
Portanto, trata-se de uma experiência de identificação primária, em que a criança
faz um reconhecimento de sua imagem através da confirmação da imagem do outro. Ao
procurar a realidade de si, a criança encontra apenas a imagem do outro com a qual se
identifica e na qual se aliena. Assim sendo, a imagem do outro sustentada pela palavra
serve de amparo para o reconhecimento da imagem especular: i (a).
Porém Lacan ressalta que existe um limite nessa relação, a impossibilidade de um
investimento libidinal completo, um resto não especularizável. Ele o escreve como – φ,
ou seja, o falo imaginário negativizado e observa que: “o falo é sem dúvida uma reserva
operatória, mas não somente que não é representada ao nível do imaginário, mas que é
cercada e, para dizer a palavra, cortada da imagem especular”.(Lacan, J., 1962: 46). Neste
ponto retomamos o esquema de Bouasse, que ilustra bem a relação do falo com a
imagem:
Vale lembrar que a nossa proposta de trabalho está diretamente ligada à questão da
relação do Eu Ideal com a angústia, portanto utilizaremos o esquema acima com a
finalidade específica de esclarecer a função da imagem. No primeiro espelho, o côncavo,
a imagem é invertida e o que vai aparecer refletido é uma imagem ilusória, caracterizada
por uma falta. Já no espelho plano, temos a imagem do vaso de flores refletida no
espelho. Como visto antes, o reconhecimento desta imagem [de flores] se efetuará a partir
da legitimação do outro. Quanto ao falo (– φ), verifica-se que ele não se repete no
espelho, pois a imagem [do vaso] o encobre.
Ao definir o – φ como reserva operatória que escapa ao jogo especular, que não
aparece no espelho, embora dê brilho à imagem especular, Lacan o vincula pela primeira
vez ao objeto a :
-φ
____
a
Isto equivale a dizer que o – φ recobre o objeto causa de desejo (a), e o objeto a oferece a
alternativa de maquiagem a falta. A angústia advém da ameaça que a falta falte, como nos
diz Lacan. Então, “o que há de mais angustiante para a criança é que justamente esta
relação é mais perturbada quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o
tempo todo em cima” (Lacan, J., 1962: 61).
A citação lacaniana testemunha que o objeto a é um objeto que causa o desejo e a
angústia: o objeto vela e desvela a falta. Talvez seja por isso que o sujeito se aproxima,
cerca e acaricia o que ele acredita ser o objeto de seu desejo, mas, na verdade, este objeto
que causa está desviado e despistado. “O objeto a se apresenta sempre em função de
causa, a ponto de ser (...) o ponto chave de onde se elabora a própria função da causa no
sujeito” (Lacan, J., 1963: 338).
Por ser sempre causado por este objeto, seja por fascínio ou terror, o sujeito tenta
preservá-lo através da imagem especular (cf. no esquema acima, o lado intacto do vaso).
Porém o sujeito é logrado, pois na fratura do cenário imaginário, em um evento da cena
traumática, algo surge no lugar do objeto. É, portanto, neste lugar vazio que o sujeito se
depara com o indizível e que é tomado pela angústia. “E é porque isso me olha que ele me
atrai tão paradoxalmente, pois este olhar me reflete, afinal de contas, e, na medida em que
me reflete, é apenas meu reflexo, vapor imaginário” (Ibid., 294).
Se o sujeito neurótico tenta se distanciar do ponto de seu desejo, é porque este fica muito
próximo do ponto de angústia. Este distanciamento é marcado na histeria pela
insatisfação e na neurose obsessiva pela impossibilidade. Se a imagem vela o objeto que
causa o desejo, podemos nos perguntar como promover numa análise o distanciamento
desses dois pontos: desejo e angústia. Pois, se separamos o sujeito do desejo, ele deixa de
ser sujeito, se o separamos da angústia, ele deixa de ser causado pelo desejo e, não sendo
causado pelo desejo, simplesmente desaparece. É o que tentaremos responder, no
próximo subtítulo, com o estudo da fantasia fundamental.
Nas palavras do poeta, há uma perfeita ilustração daquilo que a imagem vela e desvela:
“Peguemos um espelho olhando-o, captamos dele a nossa imagem.
Atentemos à imagem: podemos achar que corresponde, mas a imagem não é o
que somos: ela é, sendo outra que não nós (...) Que é espelho? É o lugar a partir
do qual especulando, colhemos o que somos e não somos” (Manuel Antonio de
Castro, 1983).
2.3 – A fantasia fundamental
No final do subtítulo anterior deixamos em aberto a seguinte questão: como
promover numa análise o distanciamento entre o ponto de desejo e o ponto de angústia?
Vale relembrar que esta questão surgiu após verificarmos que o objeto causa de desejo é o
mesmo objeto causa de angústia. Se o sujeito é impulsionado por este objeto que causa,
então indubitavelmente as duas faces do objeto se apresentam ao Eu: a face do desejo e a
face da angústia, como verificamos no subtítulo anterior.
Diante desta encruzilhada, entre o desejo e a angústia, o sujeito recorre a uma outra via de
acesso e de manutenção do desejo, pois sabe que sem o desejo ele perderá a sua posição
de sujeito, e perdendo esta posição ele desaparece. Talvez possamos até dizer que se trata
de uma escolha forçada, na medida em que o sujeito terá que escolher uma via de
sustentação do desejo para não correr o risco de desaparecer. É evidente que não se trata
de uma escolha entre desejar e não desejar, já que toda escolha implica um desejo. Tratase, portanto, de uma escolha entre: sustentar ou não sustentar o desejo.
A clínica psicanalítica nos mostra de forma clara que a última escolha é possível de ser
feita, em razão da neurose. Como recentemente me disse um paciente: “O meu desejo
desapareceu e quem está falando com você é um nada, é uma coisa monstruosa, um
bicho, um farrapo humano”. Eis a miséria psíquica demonstrando o quanto a sustentação
do desejo é imprescindível à vida humana.
Por conta desta encruzilhada, entre o desejo e a angústia, o nosso objetivo neste momento
é descrever o papel da fantasia nesse embate. Sabemos que Lacan a considerou como uma
das modalidades de enquadramento da angústia. Então, averiguaremos os textos de Freud
e Lacan, a fim de localizarmos quais são as vias de formação e de manejo da fantasia
diante da angústia.
Um outro modo de interpretação da estrutura da fantasia foi apontado por Freud
em 1908, no momento em que a descreveu em três tempos: no presente, no passado e no
futuro. No primeiro tempo, existe todo um trabalho psíquico que visa articular os
representantes traumáticos a uma impressão atual, uma impressão que tenha sido capaz de
despertar um dos desejos primordiais do sujeito. Despertar o desejo equivale a reativar a
lembrança de uma experiência anterior em que o desejo foi realizado. O sujeito cria uma
fantasia a partir da lembrança da realização deste desejo. Isto significa dizer que a
fantasia sofre alterações na sua forma por conta das impressões recebidas pelo sujeito no
decorrer da vida.
Para retratar os três tempos da fantasia, Freud traz o seguinte exemplo: trata-se de
um sujeito órfão que tem um devaneio ao procurar um emprego. O sujeito fantasia que,
ao ser admitido no emprego, se torna automaticamente um funcionário indispensável.
Com o decorrer do tempo, ele se casa com a filha do patrão. É promovido primeiramente
como sócio do seu chefe, depois como sucessor do diretor.
O que leva Freud a dizer que o sonhador reconquista com seu devaneio uma fantasia
infantil: o desejo de ter um lar protegido junto aos pais amáveis. “Esse exemplo mostra
como o desejo utiliza uma ocasião do presente para construir, segundo moldes do
passado, um quadro do futuro” (Freud, S., 1908: 153).
Ao enfocar uma distinção entre a fantasia consciente e a fantasia inconsciente, Freud
deixa claro que a primeira corresponde à base da constituição da segunda. A fantasia
consciente corresponde a um simples devaneio em que o sujeito tem inicialmente um
prazer auto-erótico. O ato de prazer se liga no decorrer do tempo a um desejo objetal
amoroso. Porém, quando o desejo é renunciado ou abandonado em conseqüência de
algum conflito psíquico, a fantasia passa de consciente para inconsciente. O que leva
Freud a dizer que a não satisfação libidinal sustenta o desenvolvimento da fantasia
inconsciente.
É a própria clínica psicanalítica que nos ensina que a perda da realidade não é um atributo
exclusivo da psicose, uma vez que a encontramos na neurose pela trama da fantasia do
sujeito. Desde 1894, Freud verificou uma incompatibilidade na vida representativa do
sujeito que aparecia no momento em que o Eu tentava ‘esquecer’ uma representação
intolerável. Porém, diante da ineficácia da defesa frente às representações intoleráveis,
várias reações patológicas eram produzidas: a histeria, ou a neurose obsessiva, ou a
psicose alucinatória.
Diante do intolerável, o Eu tenta driblar a angústia ao substituir os objetos da
realidade por objetos imaginários. Estes últimos passam a ser objetos de investimento do
Eu, ou seja, o assim chamado “mundo da fantasia” passa a ser o foco do investimento do
Eu.
Em 1911, voltando a enfatizar o processo de substituição, Freud elucida que é a
fantasia que promove a separação entre o Princípio de prazer e o Princípio de realidade,
para garantir uma reserva de energia contra o desprazer que é introduzido por este último.
Embora imaginários, os objetos mantém uma relação íntima com o inconsciente,
pois são derivados do recalcado. Não se trata de uma substituição aleatória, mas, ao
contrário, a tela da fantasia é construída com significantes primordiais, o que significa
dizer que o que escapa do recalcado é o que veste a fantasia.
“Digo ainda melhor, pois recentemente me pareceu, a propósito do que se disse
sobre o fantasma em uma das reuniões provinciais da nossa sociedade, que algo
na mente de vocês havia tomado efetivamente seu lugar em relação a essa
estrutura tão essencial, chamada fantasma. Verão que a angústia não está
distante dela, pela razão que é realmente a mesma” (Lacan, J., 1962: 11).
Em um texto anterior, de 1956, Lacan faz uma articulação entre o significante
traumático e a fantasia, quando comenta o caso clínico de Joseph Eissler (1914). Eis o
caso:
Trata-se de um paciente de trinta e três anos que sofreu um acidente de trem e
desenvolveu uma determinada dor na costela, que aparecia sob forma de ataques
regulares: vômitos e dores. Ele tinha que se deitar e segurar um travesseiro.
O quadro persistiu e se agravou por longo tempo. Os médicos tornaram a examiná-lo, mas
não encontraram nada. Ao ser submetido a vários exames radiológicos, verificou-se que o
paciente se colocava numa posição de passividade em relação ao radiologista. Nesta
posição passiva, o paciente teve a “fantasia de gravidez”, que se expressava da seguinte
forma: “Será que sou ou não alguém capaz de procriar?”
Lacan observa que esta fantasia tem conexão com uma cena infantil, em que o
sujeito presencia um parto de uma vizinha. A criança é retirada a fórceps e em pedaços.
A fantasia de gravidez é de certo modo confirmada também pela fala do médico à esposa
do paciente: “Eu não consigo perceber o que ele tem. Parece que, se ele fosse uma
mulher, eu o compreenderia bem melhor”. Para Lacan a significação em jogo para o
sujeito seria a seguinte: “Quem eu sou? Um homem ou uma mulher? Sou capaz de
gerar?” (Lacan, J. 1956: 196). A trama da fantasia se constituiu em torno destes
questionamentos, o que permite levantar a hipótese de uma histeria masculina.
Mas, como se constitui a fixação da cena traumática na trama da fantasia? Talvez
possamos responder a esta pergunta com a observação de Lacan, em 1958, no momento
em que diz que a fantasia é uma cadeia de significantes em estado de latência, que fica
borbulhando no núcleo do inconsciente à espera de uma oportunidade de irrupção. É o
que veremos adiante.
Ao irromper do núcleo do inconsciente, os significantes se articulam automaticamente a
outras cadeias de significantes, a fim de maquiar a significação intolerável original e
escapar da censura. Caso não haja uma oportunidade de irrupção, a fantasia pressiona
uma saída através da formação de sintomas. Lacan escreve que:
“Sua característica [da fantasia] é ser uma relação articulada e sempre complexa,
um roteiro que pode permanecer latente por muito tempo num certo ponto do
inconsciente, mas que, não obstante é organizado – assim como um sonho, por
exemplo, só é concebido quando a função do significante lhe confere sua
estrutura, sua consistência e, ao mesmo tempo, sua insistência” (Lacan, J., 1958:
423).
Encadeado ou desencadeado, a representação intolerável serve de pivô para a
irrupção dos sintomas, como foi apontado no exemplo do ferroviário, em que a partir de
uma fantasia inconsciente, o sujeito desenvolve vários sintomas: ataques de dor na
coluna, espasmos e vômitos.
Freud já havia trabalhado esta questão no estudo das “Fantasias histéricas e sua
relação com a bissexualidade” (1908), quando averiguou que é a fantasia que determina o
sintoma. Se o sintoma anuncia algo da fantasia, revela algo do desejo. Poderíamos talvez
dizer que a fantasia corresponde à própria “tela do inconsciente”. Freud nos diz que:
“Dessa forma as fantasias inconscientes são os precursores psíquicos imediatos de toda
uma série de sintomas histéricos. Estes nada mais são do que fantasias inconscientes
exteriorizadas por meio da ‘conversão’, quando os sintomas são somáticos, com
freqüência são retirados do círculo das mesmas sensações sexuais e inervações motoras
que originalmente acompanhavam as fantasias quando estas ainda eram inconscientes”
(Freud, S., 1908:165).
Tomemos um outro exemplo clínico para ilustrar o papel da fantasia. Trata-se de uma
paciente de quarenta e cinco anos, que ficou durante dez anos afastada de suas atividades
profissionais e do círculo social. Z. foi uma atriz comediante de relativo sucesso que
renunciou à sua carreira profissional por conta do sintoma de incontinência urinária.
A paciente foi diagnosticada como “psicótica” pelos psiquiatras que a tratavam e foi
medicada durante dez anos. A justificativa dos médicos em relação ao diagnóstico se
baseava na seguinte interpretação: “Z. apresenta um quadro de perda da realidade”.
Z. não se implicava com nada, já que todas as pessoas “sempre sabiam o que ela
deveria fazer”, isto é, lhe davam ordens. Por conta do diagnóstico de “psicose”, a família
contratou uma série de empregados e profissionais da área de saúde para “cuidarem” de
Z.
Na realidade, Z. era alguém suposto não saber ficar sozinho. Insistentemente nos
perguntava: “O que eu faço para parar isso tudo?” Porém, ela própria encadeava suas
perguntas com assertivas do tipo: “Tenho vários médicos e ninguém resolve nada”. Na
tentativa de me colocar no lugar de mestre, Z. deixava em evidência que, mesmo com
todos os “mestres” ao seu redor, ninguém conseguia resolver o seu problema.
Quando me apresentei à família para iniciar o acompanhamento, Z. estava vestida como
um bebê, de fraldão, andava pela casa chorando e dizendo: “O que eu faço para parar com
isso? Eu não queria que você me visse assim tão regredida”.
Z. sempre manteve uma relação de devastação com a mãe, que a espancava perto de
quem quer fosse, quando não obedecia à ordem do Outro. Embora considerado um gênio
pelo meio artístico, o pai de Z. é um sujeito fisicamente fragilizado e denegrido pela
esposa. Em decorrência de uma operação na próstata, ele apresentou, antes da filha, o
sintoma de incontinência urinária. Foi Z. quem nos disse repetidas vezes a seguinte frase:
“O meu pai teve incontinência urinária, mas ele ficou bom. Agora eu estou tendo a
mesma coisa e não melhoro”. Outras vezes ela nos perguntava: “O que faço com o meu
corpo caído? Você não está vendo que as minhas pernas estão bambas?!”
Z. foi casada com um homem de cinema, que por sua vez também a espancava. Após
diversos espancamentos recebidos do marido, Z. decidiu voltar a morar com os pais.
Neste casamento teve um filho psicótico, que não se aproxima dela por recomendações
médicas. Embora morem na mesma casa, ficam afastados um do outro. Quando se
encontram nas refeições, apenas se olham.
Em relação à trama de devastação mãe-filha, talvez possamos correlacioná-la ao
seguinte dito da paciente: “Eu nunca gostei de um bom homem, sempre fui desejada por
muitos e escolhi um canalha”. Eis uma escolha fundamentada no desejo do Outro, como
observou Sonia Albertixx, na medida em que o marido de Z. é mais uma vez o segundo na
devastação do sujeito. Z. é um sujeito que reeditou no casamento a sua própria relação
com a mãe, na qual ela é completamente devastada.
Ao ir à consulta com o psiquiatra, Z. altera de forma radical o modo de andar, pois entra
no consultório mancando e dizendo: “Ninguém resolve nada. Tomo vários medicamentos
e nenhum resolve. Estou de mal a pior”.
Seu pai fica praticamente o dia todo trabalhando no escritório de sua casa. E Z.,
escondida da mãe, já que esta a proibiu de ver o pai, vai ao encontro dele. Por algumas
vezes fica admirando-o, por outras lhe diz: “Pai, as minhas pernas estão bambas”. Este,
por sua vez, responde-lhe de forma teatral: “Por que você não amarra as pernas com um
barbante!?”
Entretanto, ao enveredarmos pelo caminho do sintoma de incontinência urinária podemos
observar que o fio condutor se desdobra em duas questões: será que a identificação ao
sintoma do pai era uma forma de Z. sustentar a fragilidade dele, já que a mãe sempre o
xx
ALBERTI, Sonia. Apresentação do caso clínico de Z., na disciplina “Questões teóricas e clínicas” – Curso
de Mestrado na UERJ, 2003.
desqualificava? Ou será que era um modo de denunciar a fragilidade do pai, apontando
que este não é imaculado, já que produziu uma filha doente?
Sobre as surras que recebia da mãe, Z. sempre nos dizia: “A minha mãe me bate porque
quer meu bem”. Talvez, ao traduzir nesses termos os espancamentos, Z. tente sustentar,
ou melhor, tente se fixar na sua fantasia. Ou seja, supomos que este dito esteja de acordo
com o segundo tempo da fantasia: “Bate-se numa criança”, mencionado por Freud (1918),
em que o sujeito aparece no lugar do objeto e o ataque é feito pelo Outro. Ataque este que
tem uma versão de gozo sexual, tanto que Z. elege justamente um marido devastador para
continuar sendo espancada.
Isto nos leva a interpretar sua fantasia da seguinte forma: “Derruba-se uma criança”, já
que Z. sempre nos dizia: “O meu corpo está caído” e “as minhas pernas estão bambas”.
Eis que este sintoma mostra de forma literal a fantasia do sujeito. Lacan observa
categoricamente que o sintoma é uma significação da história do sujeito. “Está longe de
concernir unicamente ao sujeito, mas sua história, toda a sua anamnese está implicada
nele” (Lacan, J. 1957: 477).
Nesse ponto queremos relembrar a seguinte frase de Z.: “Eu não queria que você
me visse assim tão regredida”. A frase nos mostra o desejo do sujeito, uma vez que o
“não” pode ser lido como “sim”, já que no inconsciente não existe a negativa. Evidenciase a posição do sujeito histérico com relação ao seu desejo, que Lacan define de forma
exemplar: “o desejo da histérica não é desejo de um objeto, mas o desejo de um desejo,
um esforço de se manter em frente ao ponto no qual ela convoca seu desejo, o ponto onde
está o desejo do Outro” (Lacan, J. 1957: 419).
É importante ressaltar que, ao ser espancada pela mãe, Z. se comportava
automaticamente como um bebê. Isso nos faz pensar na pergunta utilizada por Lacan para
falar sobre o desejo: “O que o Outro quer de mim?” Ao que há de suspenso em tal
pergunta, o sujeito responde fantasmagoricamente. Parece-nos possível dizer que as
sensações de “pernas bambas” e “corpo caído” correspondem à fantasia inconsciente em
que alguém está sendo derrubado, que é como uma criança sem forças e fácil de derrubar.
A clínica psicanalítica, como dissemos antes, não cansa de demonstrar que o afastamento
da realidade não é um mecanismo específico da psicose, porque na neurose, como revela
o caso de Z., o sujeito também se contenta em evitar um fragmento da realidade, a fim de
se proteger de uma representação intolerável. Uma realidade desagradável é substituída
por outra que esteja mais de acordo com os desejos do sujeito. E isso é possibilitado pela
fantasia e seus derivados. É o que retrata o caso de Z., pois uma atriz de relativo sucesso,
aparentemente bem sucedida, afasta-se de tudo e se fixa numa modalidade de gozo
através da qual tenta recuperar a sua relação primitiva com o Outro [a mãe].
Este mundo ou esta “floresta de fantasias” (Lacan, J., 1963:786), permite que o sujeito se
aproxime do objeto causa de desejo, com o objetivo de reconstruir estrategicamente o
Outro, mesmo às custas de ser objeto do gozo do Outro. É o que Freud nos diz: “É deste
mundo de fantasia que a neurose haure o material para suas novas construções de desejo e
geralmente encontra esse material pelo caminho da regressão a um passado mais
satisfatório” (Freud, S., 1924: 233).
Parece-nos que a estruturação da fantasia pelo significante, poderia ser entendida a
partir da ação do recalque originário, uma vez que é no momento de corte da satisfação
que ela se origina. Pois, sabemos que o recalque originário é o ponto de fixação de restos
ou de significantes intoleráveis. Os representantes traumáticos/intoleráveis, que não têm
uma significação, são recapturados e significantizados pela fantasia, cujo objetivo é
encenar uma nova realidade: a realidade psíquica.
“(...) É absolutamente impossível estabelecer uma distinção válida entre as fantasias
inconscientes e essa criação formal que é o funcionamento da imaginação, se não virmos
que a fantasia inconsciente é desde sempre dominada, estruturada, pelas condições do
significante” (Lacan, J., 1958: 263).
Para acentuar que a fantasia é desenvolvida pela não satisfação libidinal, Freud acrescenta
a questão do desejo. Afirma que a fantasia, na histeria, é sustentada por dois desejos: um
masculino e um feminino. O exemplo exposto é o da paciente que pressionava o vestido
contra o corpo com uma das mãos (como mulher), enquanto tentava arrancá-lo com a
outra (como homem). Como interpreta Antonio Quinet:
“No ataque histérico o sujeito feminino coloca em cena sua fantasia de ser
seduzida e assim encena sua divisão entre o homem que a seduz e sua própria
recusa em se deixar seduzir – nessa pantomima, compõe um quadro teatral que
ela encena para o Outro” (Quinet, A, 2002: 169).
Em “Algumas observações gerais sobre ataques histéricos” de 1909, Freud já havia
enfatizado que o ataque histérico é pura encenação da fantasia. Embora seja um
mecanismo de manifestação inconsciente, já que a trilha somática facilita o desvio da
representação intolerável, não garante ao analista uma clareza no reconhecimento da
fantasia. Como acontece nos sonhos, a censura distorce a representação principal. Esta
obscuridade ocorre não só por conta da distorção do representante, mas também porque
inúmeras fantasias são condensadas em um único ataque histérico.
“(...) As fantasias que assim coincidem são sempre de natureza bem diversas,
podendo, por exemplo, consistir num desejo recente e numa reativação de uma
impressão infantil. As mesmas inervações servem então às duas finalidades,
muitas vezes de forma bastante engenhosa. Nos pacientes histéricos que utilizam
em alto grau a condensação, uma única forma de ataque pode ser suficiente;
outros expressam suas numerosas fantasias patogênicas através da
multiplicidade das formas de ataque” (Freud, S., 1909: 234).
A condensação da fantasia no ataque histérico se constitui por meio de um certo
trilhamento. Em primeiro lugar, ocorre uma satisfação auto-erótica, sem conteúdo
ideativo. No decorrer da vida, o ato de satisfação faz uma aliança com uma fantasia que
lhe dá sustentação. Porém a censura que está mais atenta à fantasia, já que esta é acoplada
aos representantes intoleráveis, opera de modo eficaz, fazendo com que o encadeamento
seja abandonado. Deste modo, a fantasia é recalcada e o ataque histérico se forma e se
infiltra na trilha somática, em virtude do descuido ofensivo da defesa. Trata-se,
evidentemente, de uma manobra eficaz, já que o ataque consegue acoplar os derivados do
recalcado e promover o retorno da satisfação. Podemos sintetizar este trilhamento da
seguinte forma:
A sutileza deste mecanismo defensivo nos revela que, de um lado a fantasia tenta alcançar
a satisfação por intermédio do ataque histérico, do outro, ela abre caminho para a
operação do recalque. Isso comprova que os representantes intoleráveis são utilizados
pelo Eu no combate à angústia. Uma vez que a engenhosidade da fantasia na histeria é
eficaz, podemos indagar também a eficácia da fantasia na neurose obsessiva.
Verificamos que a fantasia na histeria não faz muito ruído em conseqüência dos
representantes intoleráveis estarem condensados na esfera motora. Mas, no caso da
neurose obsessiva, como visto no capítulo sobre o recalque, existe a ineficácia do
recalque secundário e, com isso, os representantes intoleráveis ficam permanentemente
bombardeando o Eu. Então, como pensar a manobra da fantasia na neurose obsessiva?
Em 1960-61, Lacan descreve dois modos distintos de funcionamento da fantasia na
neurose obsessiva e na histeria. A fórmula da fantasia na histeria é escrita da seguinte
forma:
a
◊ A
(- )
Evidencia-se nesta fórmula que o sujeito histérico se coloca no lugar do objeto
causa de desejo. Ou seja, é no lugar do a que ele se oferece como objeto para que o Outro
(A) exista. Isto equivale a dizer que, ao ficar no lugar do objeto causa de desejo, a
histérica encobre a castração (-φ) do Outro, justamente para sustentá-lo. Desse modo, nos
diz Lacan, ela “esforça-se para reanimá-lo, reassegurá-lo, recompletá-lo, repará-lo”
(Lacan, J., 1961-1962: 243). Trata-se de uma estratégia, pois, ao reassegurar o Outro
como guardiã da castração, a histérica mantém o seu desejo insatisfeito, enquanto se
mantém em um outro lugar, ou seja, enquanto se mantém como fornecedora da castração.
Ao se manter neste lugar, o sujeito visa não o desejo de um objeto, mas o desejo de um
desejo.
“Ela troca sempre seu desejo por este signo, não vejam noutra parte a razão para aquilo a
que se chama sua mitomania. É que há uma coisa que ela prefere ao seu desejo – ela
prefere que seu desejo seja insatisfeito a que o Outro guarde a chave de seu mistério”
(ibid., 243).
Quanto à fórmula da fantasia na neurose obsessiva, Lacan a escreve como abaixo:
A◊
( a, a’, a’’, a’’’, ...)
O obsessivo se coloca no lugar do Outro (barrado) para manter uma proximidade
com a castração. Ao identificar-se com o Outro barrado, o obsessivo tenta tamponar a
castração deste, através da falicização dos objetos de desejo. Ou seja, no lugar em que a
falta se revelaria, o sujeito a completa com os objetos, falicizando-os. Como escreve
Lacan: “O obsessivo, na medida em que ele nega o desejo do Outro, formando sua
fantasia para acentuar a impossibilidade do esvaecimento do sujeito” (Lacan, J., 1960:
838).
Negar o desejo do Outro, acentuar a impossibilidade do esvaecimento do sujeito,
são estratégias defensivas do Eu, a fim de promover o distanciamento entre o ponto de
angústia e o ponto de desejo. O exemplo mais evidente gira em torno da fantasia do
obsessivo, uma vez que, ao ficar no lugar do Outro barrado, o sujeito mantém uma
relação com a castração. Porém, o desejo é zerificado (do), pois frente a qualquer
insinuação do desejo, o sujeito o tampona com os objetos. Ou seja, não permite a aparição
do desejo, já que o substitui radicalmente pela demanda. É o que articulava o Homem dos
Ratos, quando era obrigado a contar números entre o clarão do relâmpago e o seu ruído.
O obsessivo responde à demanda do Outro antes mesmo desta ser formulada,
inserindo significantes nos intervalos da cadeia. Sua estratégia não visa somente ao
tamponamento do desejo, visa também à onipotência do Eu. Eis o que Lacan escreve:
“Na base da experiência do obsessivo, existe sempre o que chamarei de um certo receio
de desinflar relacionado com a inflação fálica. De certo modo, a função do Φ do falo não
poderia ser mais ilustrada nele do que pela fábula da rã que quer se fazer tão grande
quanto um boi. O miserável animal, como sabem, inchou tanto que estourou” (Lacan, J.,
1961-1962: 253).
Ao reafirmar que as fantasias servem de pólo para a realização de um desejo, e
servem sobretudo de instrumento de retificação da vida real do sujeito, Freud retoma o
que já havia dito em sua correspondência com Fliess, qual seja, que elas “são estruturas
protetoras, sublimações dos fatos, embelezamento deles e, ao mesmo tempo, servem
como auto-absolvição” (Freud, S., 1897: 267).
Em “Romances familiares”, de 1909, Freud acrescentara que o desejo na fantasia é
sustentado por dois objetivos: um erótico e um ambicioso. O último sustenta o primeiro,
já que o objetivo erótico fica oculto no psiquismo. A sustentação ocorre no momento em
que a criança quer se separar dos pais, já que estes passaram a ser comparados com
outros. A comparação põe em dúvida as qualidades reais dos pais e abre caminho para a
crítica dos mesmos.
Os sentimentos de crítica estão atrelados a um sentimento de rivalidade sexual
com os pais. A criança passa a interpretar qualquer intervenção deles como um ato de
desamor e é levada a pensar que foi adotada pelos pais.
A trama fantasmática é construída e os pais são substituídos psiquicamente por
personagens mais elevados. Porém, segundo Freud, esta escolha de substituição nada
mais é do que um sentimento de saudade que a criança tem dos dias felizes do passado,
em que os pais apareciam como nobres e potentes. Nesse sentido, a trama fantasmática é
a forma que sujeito tem de reviver o momento de satisfação. Eis o que Freud nos diz:
“Assim volta a manifestar-se nessas fantasias a supervalorização que caracteriza
os primeiros anos da criança. O estudo dos sonhos nos fornece uma contribuição
ao assunto. Da interpretação dos mesmos concluímos que mesmo em anos
posteriores, se o imperador e a imperatriz aparecem em sonhos, tais nobres
personagens representam o pai e a mãe do sonhador” (Freud, S. 1909: 247).
Outras fantasias infantis foram verificadas por Freud, uma delas está relacionada à
fantasia de vingança que o menino tem com relação à mãe. A causa desta fantasia está
diretamente ligada às escolhas de objeto, na medida em que o menino passa a interpretar
o desejo da mãe pelo marido como uma atitude de infidelidade. Diante deste sentimento
de infidelidade, o menino passa a não mais diferenciar a mãe da prostituta, argumentando
que ambas fazem a mesma coisa. Por não mais diferenciar a mãe da prostituta, o menino
fantasia que esta tem um amante com os mesmos traços de sua personalidade. Eis o
romance construído!
A equiparação entre a mãe e a prostituta recebeu uma melhor significação dois anos
depois desta publicação, quando Freud escreveu que:
“Podemos agora compreender os motivos ocultos sob as fantasias do menino,
mencionadas na primeira dessas ‘Contribuições’, que degradam a mãe ao nível
de uma prostituta. São esforços para transpor a distância entre as duas correntes
amorosas, pelo menos em fantasia e, pela depreciação da mãe, adquiri-la como
objeto de sua sensibilidade” (Freud, S., 1912: 167).
Trata-se realmente de uma estratégia de defesa, pois, ao degradar o objeto de desejo, o
sujeito o torna acessível, ao idealizá-lo, torna-o inacessível. São duas escolhas pontuais,
que apontam para a grande influência da fantasia no universo das escolhas amorosas. Em
outras palavras Lacan nos diz que:
“Esses sujeitos não conseguem pensar em abordar a mulher quando, para eles,
ela goza de seu pleno status de um ser possível de ser amado, de um ser humano,
de um ser no sentido acabado, de um ser que, como se costuma dizer, pode dar e
pode se dar. O objeto está presente, dizem-nos, o que significa, é claro, que ele
está presente sob uma máscara, porque não é a mãe que a sucede, que toma o
lugar dela. Aqui, portanto, não há desejo. Por outro lado, diz-nos Freud esses
sujeitos vão encontrar prazer com prostitutas” (Lacan, J. 1958: 339).
Não podemos deixar de lembrar que a idealização opera também como uma modalidade
de enquadramento da angústia, na medida em que o sujeito apenas cerca e aprecia o
objeto. Caso contrário, o sujeito se depararia com o horror, uma vez que o objeto causa de
desejo é o mesmo objeto que causa a angústia. Por outro lado, podemos então confirmar
que a fantasia realmente permite que o sujeito tenha acesso ao objeto de desejo, porque,
ao degradá-lo pela via da trama fantasmática, ele o acessa sem a ameaça da angústia.
Parece ser a fantasia da neurose obsessiva que melhor responde à primeira questão deste
trabalho: como promover o distanciamento entre o ponto de desejo e o ponto de angústia?
Em conseqüência da ineficácia do recalque secundário, os significantes traumáticos ficam
na esfera psíquica à procura de novos encadeamentos, porém a angústia permanece na
esfera psíquica. Talvez sejam as novas articulações de significantes que abram caminho
para novas respostas sobre o desejo. É claro que o preço pago pelo obsessivo é espantoso,
pois, ao preencher estes intervalos, o sujeito zerifica o desejo, mas permanece com a
angústia. Porém, é necessário relembrar que é apenas uma estratégia defensiva, porque o
sujeito neurótico é sempre desejante. Se aparecesse o desejo zero, estaríamos no campo
da psicose, já que nesta estrutura os intervalos de significantes, que desvelam o desejo,
são rigorosamente preenchidos pela fala do Outro. “(...) A fala do Outro não passa nem
um pouco para seu inconsciente, mas sim o Outro, como lugar da fala, fala-lhe
ininterruptamente” (Lacan, J., 1958: 492). Ou seja, não há intervalo para irrupção do
desejo. Quanto à neurose obsessiva, Lacan nos diz que:
“(...) o obsessivo só se mantém numa relação possível com seu desejo a
distância. O que tem de ser mantido pelo obsessivo é a distância de seu desejo, e
não a distância do objeto. O objeto tem, no caso, uma função bem distinta. Que a
experiência nos mostra de maneira mais clara é que ele tem de se manter a uma
certa distância de seu desejo para que esse desejo subsista” (Lacan, J. 1958:
479).
Embora inúmeras manobras sejam feitas para garantir um distanciamento dos dois
pontos: desejo e angústia, neste circuito fantasmático fica evidente que o sujeito consegue
sustentar o seu desejo através das encenações fantasmáticas. Podemos até dizer que o
sujeito só poderá falar da angústia quando se aproximar do objeto a. Visto que, sem este
objeto, o sujeito seria simplesmente uma marionete à procura incessante de uma pergunta:
O que é o desejo?
Mais do que uma confirmação de defesa, podemos dizer que estamos nos
aproximando do abrigo propriamente dito de defesas, já que as molduras de defesa contra
a angústia visam fundamentalmente ao enquadre do objeto causa de desejo. Na fobia,
como visto antes, o objeto é metaforizado ou maquiado. No Eu ideal, este objeto é
enquadrado pela imagem para não aparecer a falta. Quanto à fantasia, podemos dizer que
é o recurso mais eficaz, não só por possibilitar o enquadramento do objeto a, mas
principalmente, por possibilitar a sustentação do desejo.
“(...) este objeto a que se faz ser em seu fantasma, o neurótico, pois bem! Direi
que ele cai como uma luva mais ou menos como cenouras para um coelho. É por
isso que o neurótico não faz jamais grande coisa com seu fantasma. Isto
consegue defendê-lo contra a angústia justamente na medida em que é um a
postiço” (Lacan, J. 1961-1962: 58).
Podemos dizer metaforicamente que a fantasia se apresenta como um quadro cujas
bordas são pintadas por significantes primordiais e cujo desenho central [o objeto a] é
pintado por significações. Dentro deste quadro se encontra fixado o objeto causa de
desejo, que durante o decorrer da vida é sempre pincelado por novas significações. A
fantasia não só fixa o objeto a, mas coloca também um freio no gozo [pulsão de morte],
fazendo com que o sujeito construa uma nova cena de sua realidade sem as amarras da
angústia.
“É mesmo por isto que a simboliza o que, na esfera do significante, é sempre o
que se apresenta como perdido, como o que se perde para significantização, o
que vem a se constituir no fundamento como tal do sujeito desejante, não mais o
sujeito do gozo, mas o sujeito, na medida em que na via da sua procura,
enquanto goza, que não é procura de seu gozo, mas é de querer fazer entrar este
gozo no lugar do Outro, como lugar do significante, é nessa via que o sujeito se
precipita, se antecipa como desejante” (Lacan, J., 1963: 214).
Ao longo da discussão do caso do Homem dos Lobos, Freud afirma que “a análise
teria que seguir precisamente o mesmo curso, como se tivesse uma fé ingênua na verdade
das fantasias”, e conclui seu exame da fantasia dizendo que “essas cenas de infância não
são reproduzidas durante o tratamento como lembranças, são produtos de construção”.
Produtos de construção de uma análise, para gerar uma nova realidade psíquica?
Será que o final de análise, ou seja, o atravessamento da fantasia não deixa um resto de
significantes primordiais?
Quanto à questão do desejo, no final de análise, temos uma outra questão: se o desejo é o
desejo do Outro, Outro que o sujeito já sabe que não existe, como definir, então, o desejo
após o atravessamento da fantasia? Será que podemos dizer que o sujeito no final de sua
análise é um sujeito do seu próprio desejo? Sabemos que uma vez atravessada a fantasia,
o circuito sintomático se desmonta, mas o desejo permanece, porém sem os fantasmas
para sustentá-lo. Então, o final de análise levaria o sujeito a um desejo de seu próprio
desejo, sem as amarras fantasmáticas que o assombravam na angústia?
Talvez algo fique sem as sombras do fantasma, ou melhor, sem as sombras do
objeto causa de desejo, para apenas sinalizar que o desejo será sempre o desejo do Outro,
ou seja, que o desejo será sempre um engano. Eis o que Lacan nos diz: “(...) Mas o objeto
do desejo, no sentido comum, é, ou uma fantasia que é na realidade a sustentação do
desejo, ou um logro” (Lacan, J. 1964: 176).
Quanto ao final de análise, Jacques-Allain Miller nos diz que não se trata do
desaparecimento da fantasia e “sim, de não ser enganado por ela” (Miller, J. 1987: 149).
Será que deixar de ser enganado pela fantasia significa dizer que é deixar de ser
enganado pelo objeto a? Ou significa dizer que é deixar de ser enganado pela realidade
psíquica. Mas como? Sabemos que podemos engendrar ou criar inúmeros significantes
numa análise, mas não podemos criar significantes primordiais, já que estes são os
determinantes de nossa estrutura. Então, talvez o sujeito deixe de ser enganado pela
fantasia quando a tela fantasmática se apaga, quando ele se depara com os significantes
primordiais sem os disfarces da representação. Por exemplo, quando o sujeito diz: “É
isso!”.
Podemos dizer que não há a queda de todos os significantes primordiais nem mesmo no
fim da análise. Se isso fosse possível, seria equivalente à perda da estrutura. Mais uma
vez, ergue-se uma questão: se nem todos os significantes primordiais são destituídos de
valor, será que algum ou alguns significantes primordiais permanecem como ponto de
encadeamento para outras significações? É o que trabalharemos em seguida, no capítulo
intitulado “Os traços de caráter”.
CAPÍTULO III
O CARÁTER
3.1 – O caráter na teoria de Wilhelm Reich
Ao tomar parte ativamente da técnica do caráter, Reich toma como ponto partida o interesse pelo registro pulsional, considerando
assim que a teoria freudiana devia ser interpretada como uma psicologia das pulsões. Da definição de pulsão, ele retém sua base
biológica, admitindo a impossibilidade de fornecer uma resposta à questão da natureza da pulsão, resolvendo concluir então que esta
questão deve ser transferida à da natureza sexual, já que nada podemos saber da pulsão.
Ao expor como gradualmente foi se distanciando dos pontos de vista do mestre
Freud, Reich relata que a verdadeira melhora do quadro do paciente se dava a partir de
“irrupções da energia genital”, o que só acontecia na técnica freudiana de associação-livre
de maneira acidental. Para ele a técnica da associação-livre de Freud, apenas tinha o
objetivo de desencavar e interpretar fantasias inconscientes, mostrando-se limitado. A
partir disso, reformulou a técnica psicanalítica priorizando a análise das resistências.
Nesse momento, o problema é colocado em termos de modificação radical da
técnica. Assim, ele se perguntava: será que para reduzir o sintoma dever-se-ia interpretar
as formações do inconsciente visando a liberação do recalcado, ou antes, de tudo
deveríamos levar em conta o Eu, que é responsável pelo recalque e analisar suas
resistências? Devemos analisar os sintomas ou devemos analisar as resistências?
Reich toma parte ativamente na elaboração da nova técnica. Toma como ponto de
partida o interesse pelo registro pulsional, considerando assim que a teoria freudiana devia
ser interpretada como uma psicologia das pulsões. Da definição de pulsão, ele retém sua
base biológica. Entretanto, admite a impossibilidade de fornecer uma resposta à questão
da natureza da pulsão, resolvendo concluir então que esta questão deve ser transferida à da
natureza do prazer sexual, uma vez que nada podemos saber da pulsão, mas podemos
estudar o prazer sexual, especialmente os elementos motores colocados em jogo durante a
atividade sexual, ou seja, aquilo que se pode inscrever durante o orgasmo no nível do
tônus muscular.
Entre 1923 e 1933, Reich escreve uma série de artigos, nos quais desenvolve sua
concepção da análise das resistências. Coloca em evidência que a fonte principal das
resistências, ou seja, o caráter, deve ser compreendido enquanto um modo de
“endurecimento” do Eu.
Em 1927, no X Congresso psicanalítico internacional, Reich profere “Sobre a
técnica de análise do caráter”, onde expôs que o caráter do sujeito é uma “barreira
narcísica” ao tratamento analítico. Estas barreiras são expressas por resistências, derivadas
dos “maneirismos” específicos de cada sujeito analisado. É uma forma de reação do Eu,
que remonta às experiências infantis, da mesma forma como ocorre com a derivação do
sintoma e da fantasia.
Reich faz uma diferenciação específica entre sintoma e caráter. A primeira está
relacionada à forma de percepção do sujeito da sua doença. Esta percepção de sua doença
indica a presença de um sintoma neurótico, enquanto a ausência [percepção] aponta para
um traço de caráter. A segunda diferença consiste no fato de que os sintomas não exibem
racionalizações tão completas e admissíveis como os traços de caráter, na medida em que
o caráter possui uma motivação racional, já que ele não aparece como patológico ou sem
sentido. É quando o sujeito diz: “É assim mesmo que eu sou” (Reich, W., 1927: 55). De
certa forma, por não racionalizar, o sujeito não entra em conflito. A terceira diferença,
aponta para o fato de que o sintoma corresponde a uma experiência definida ou a um
desejo delimitado, já o caráter corresponde a um modo de existir específico do sujeito,
formado por fragmentos de seu passado. Reich nos diz que: “(...) por isso, um sintoma
pode aparecer abruptamente, ao passo que cada traço de caráter individual requer muitos
anos para seu desenvolvimento” (Reich, W., 1933: 56).
O caráter neurótico foi nomeado por Reich como “couraça”, que se manifesta no
tratamento como um compacto mecanismo de defesa contra os esforços terapêuticos. É
interessante ressaltar que Freud, em 1914, já havia formulado esta hipótese, no momento
em que observou que a análise se achava ameaçada por resistências ocasionadas pelos
traços de caráter. Como escreveu:
“Quando um médico empreende o tratamento psicanalítico de um neurótico, seu
interesse não se dirige de modo algum em primeiro lugar para o caráter do
paciente. (...) Contudo, a técnica que ele [o médico] é obrigado a seguir logo o
compele a dirigir sua curiosidade imediata para outros objetivos. Observa que
sua investigação se acha ameaçada por resistências erguidas contra ele pelo
paciente, podendo o médico, em razão, encarar essas resistências como parte do
caráter do paciente. Isso passa a adquirir a prioridade de seu interesse” (Freud,
S., 1914: 351).
Se por um lado à “couraça” tem a função de proteger o Eu contra os estímulos externos,
por outro consegue obter um controle sobre a libido, através de formações reativas.
Assim, a angústia permanece ligada à couraça e as formações substitutivas. Reich retoma
Freud, ao descrever literalmente que: “A angústia está sendo continuamente ligada nos
processos que estão na base da formação e preservação dessa couraça, da mesma maneira,
que segundo a descrição de Freud, ela é ligada nos sintomas compulsivos” (Reich, W.,
1933: 56).
Sobre a técnica de análise da resistência de caráter, Reich observa que a forma de
expressão de um sujeito é muito mais importante do que propriamente o conteúdo
ideacional. Ou seja, a maneira de como o sujeito fala, olha para o analista e o cumprimenta
etc. são pontos de referência valiosos para a avaliação das resistências ocultas que o
paciente opõe à regra do tratamento. A interpretação analítica é feita através do modo
como sujeito diz sobre o seu sofrimento. Como pontua Reich: “o indício da resistência de
caráter não está naquilo que o paciente diz e faz, mas no modo como fala e age. Também
não está no que ele revela em sonhos, mas no modo como ele censura, distorce, condensa
etc.” (Reich, W., 1933: 59).
A distinção da resistência no tratamento analítico entre histeria e neurose obsessiva
é feita por Reich pelo fato de que na primeira, o mecanismo de defesa é a angústia. Quanto
à segunda, a defesa é representada pela agressividade a qualquer conteúdo inconsciente
que ameace irromper do Isso. Deste modo, a couraça de caráter é definida como uma
expressão real da defesa narcísica cronicamente implantada na estrutura psíquica. Assim,
o caráter é visto como um aparelho de defesa psíquico contra o mundo exterior e o Isso.
A formação do caráter é decorrente da resistência do Eu, que tem o objetivo de
evitar que algum conteúdo desagradável apareça, de estabelecer e preservar um equilíbrio
psíquico e, por último de consumir quantidades recalcadas de energia e/ou quantidades
que escaparam ao recalque. Portanto, temos um fator importante quanto à estrutura do
caráter, pois se o caráter foi pensado por Reich como uma réplica de defesa, que não só
visa a proteção do Eu, mas principalmente a construção de uma instância de proteção,
temos, se assim podemos dizer, uma segunda instância de vigilância no psiquismo, que
fareja e se arma para a defesa. Esta arma é, provavelmente, muito poderosa, uma vez que
ela é formada pelos conteúdos que escapam do recalque. Cabe-nos indagar: se o sintoma é
um rastro do recalque e o caráter é um mecanismo de defesa contra a irrupção deste rastro,
como identificar a verdadeira função do caráter? Então, o caráter é uma defesa contra o
sintoma ou é uma defesa contra a angústia? Retomaremos essa questão no capítulo
subseqüente “Os traços de caráter”.
Para Reich, o caráter serve, economicamente, na vida diária e na análise do sujeito
como resistência, isto é, como meio de evitar o que é desagradável (Unlust), de estabelecer
e preservar um equilíbrio psíquico e por fim, de consumir quantidades recalcadas de
energia pulsional e/ou quantidades que escaparam ao recalque. O elemento da história
infantil é incorporado e continua a viver e a atuar no caráter, assim como o faz no sintoma
neurótico. É por essa razão que afrouxamento da resistência de caráter fornece uma
aproximação segura e direta ao conflito infantil central.
Quanto à análise do caráter, Reich observa que é necessário separar a resistência
do caráter pertinente do conjunto do material e trabalhá-lo analiticamente interpretando
seu significado. É necessário nessa análise, que o analista se interrogue sobre os motivos
pelos quais o paciente tenta enganar o analista. O que é visado analiticamente é o
isolamento, por parte do analista, do traço de caráter do psiquismo do sujeito, para que o
paciente saiba o que é da ordem do caráter e o que é da ordem do sintoma, possibilitando
assim um significado do caráter.
“(...) fundamentalmente, nosso procedimento aqui não é diferente do seguimos
na análise de um sintoma; na análise do caráter acresce apenas que temos de
mostrar ao paciente o traço de caráter isolado, e isso muitas vezes até que ele
consiga se libertar dele e encará-lo de maneira semelhante à que faria com um
sintoma compulsivo importuno” (Reich, W., 1933: 62).
Reich enfatiza que no início do tratamento o analista deverá dar prioridade a
análise do caráter, enquanto na fase posterior a ênfase recai sobre a interpretação do
conteúdo e das experiências infantis. Ressalta que o tratamento analítico deve evitar as
interpretações, até que o paciente esteja preparado para assimilá-las.
Se no decorrer da análise do caráter, a força pulsional que originou a resistência de caráter na transferência aparece à superfície de
forma manifesta, a análise chega no centro da neurose. Porém, Reich adverte que as resistências não podem ser atacadas pelo analista,
antes do conhecimento das causas infantis determinantes.
3.2 – A análise de três tipos de caráter na literatura psicanalítica
Em seu texto “Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico” de
1916, Freud pesquisa a origem de três tipos de caráter: as exceções, os devastados pelo
êxito, e os criminosos em decorrência de um sentimento de culpa. Eis, portanto, algumas
interrogações iniciais: como pensar o papel da responsabilidade quando o sujeito comete
um crime em decorrência de um sentimento de culpa? Por que encontramos alguns
sujeitos devastados pelo sucesso? E o que leva um sujeito a se colocar no lugar de
exceção?
As ‘exceções’
O primeiro exemplo escolhido por Freud é Glouscester, personagem da peça
Ricardo III, de Shakespeare:
“Mas eu, que não fui talhado para habilidades esportivas, nem para cortejar um
espelho amoroso; que, grosseiramente feito e sem a majestade do amor para
pavonear-se diante de uma ninfa de lascivos meneios; eu, privado dessa bela
proporção, desprovido de todo encanto pela pérfida natureza; disforme,
inacabado, enviado por ela antes do tempo para este mundo dos vivos;
terminado pela metade e isso tão imperfeitamente e fora de moda que os cães
ladram para mim quando paro perto deles.
E assim, já não posso mostrar-me como amante, para entreter estes belos dias
de galanteria, resolvi portar-me como vilão e odiar os frívolos prazeres deste
tempo” (cf. monólogo de Glouscester).
A posição de Ricardo poderá ser descrita com as seguintes palavras de Freud:
“Como não posso desempenhar o papel de amante por causa da minha deformidade, serei
o vilão, conspirarei, assassinarei e farei tudo o que quiser” (Freud, S., 1916: 354). É
interessante observar, que na clínica encontramos sujeitos impulsionados e fixados nessa
posição, como muito bem me disse uma paciente de onze anos que, ciente de ter sido
abandonada pela mãe biológica e adotada por uma família pobre, disse-me o seguinte: “Eu
detesto estudar, quero engordar (a paciente é obesa), não vou fazer nada, detesto as
pessoas e continuarei xingando os meus colegas. Já que eu não sou rica, não farei nada
para melhorar”.
Talvez possamos interpretar o dito da paciente, da seguinte forma: “´Já que eu sofri
o suficiente, com a pobreza, por que deverei mudar?” Essa paciente, como Ricardo, nos
remete para o lugar de exceção, em que ambos se colocam em conseqüência de uma
‘injustiça’ da vida. No caso de Ricardo, Freud faz a seguinte interpretação do monólogo:
“a natureza me causou um doloroso mal ao negar-me a beleza das formas que conquista o
amor humano. A vida me deve uma reparação por isso, e farei tudo para consegui-la”
(Freud, S., 1916: 355).
Pela via da responsabilidade do sujeito, eis uma questão: como trabalhar em
análise com um sujeito que não se responsabiliza pelos seus atos? Para essa pergunta
temos em Lacan a resposta: “por nossa posição de sujeito, sempre somos responsáveis.
Que chamem isso como quiserem” (Lacan, J., 1966: 873). A paciente, supracitada, levou
algum tempo para se responsabilizar por sua vida. Foi um trabalho denso e longo, pois
aparentemente M. não apresentava nenhum conflito, não havia uma sintomatolgia, mas,
por outro lado, havia uma fixação numa determinada modalidade de gozo, que
inviabilizou a intervenção analítica. M. saiu do tratamento com a desculpa de que não
tinha horário para a análise.
Para Jacques-Allain Miller (1999), se colocar na posição de ‘exceção’ é ocupar
determinada posição subjetiva quanto ao gozo. Eis o seu comentário:
“Isto que Freud isola como a posição de exceção do sujeito, que ele inscreve no
registro do caráter, é a recusa de se passar pelo princípio da realidade. Quer
dizer, a recusa de se passar pelo desprazer ou o sofrimento temporário, a recusa
de aceitar uma renúncia provisória” (Miller, J., 1999: 107).
Segundo Freud, todos nós pensamos que temos motivos para repreender nossos
destinos por desvantagem congênitas e infantis, na medida em que exigimos uma
reparação por antigos ferimentos ao nosso narcisismo. Ele menciona um outro exemplo,
ressaltando que as mulheres reivindicam privilégios por se acharem no direito de serem
poupadas dos infortúnios da vida, pelo fato de se sentirem privadas de algo, ou seja,
privadas do falo. Encontra-se aqui a amargura de tantas mulheres com relação a sua mãe.
Para Miller, o que fundamenta a posição subjetiva do sujeito de se colocar no lugar
de exceção é a castração. Castração que o sujeito tenta não sacrificar, isto é, “o sujeito da
exceção pretende é gozar ele próprio de sua castração. O sujeito de exceção tal qual Freud
o descreve, entende subjugar o Outro e constrangê-lo a servir o gozo do sujeito” (Miller,
J., 1999:108).
Os arruinados pelo êxito
Segundo Freud (1916), as pessoas adoecem de neurose devido à frustração da de seus
desejos libidinais. A geração da neurose deriva de conflitos entre os desejos libidinais de
uma pessoa e a parte de sua personalidade que é chamada de Eu. Estes conflitos surgem
quando a libido tenta seguir caminhos que o Eu superou e condenou, ou seja, que o Eu
proibiu para sempre.
Por essa via, nos deparamos com a descoberta de que as pessoas adoecem
precisamente no momento em que um desejo profundamente arraigado atinge sua
realização. Freud menciona dois exemplos: o primeiro, é o da concubina aventureira e
insubmissa que encontra um protetor amado que resolve casar-se, diante disso, ela adoece.
Ela é tomada por ciúmes absurdos, descuida dos afazeres da casa e apresenta sinais de
paranóia, no justo momento em que seu amante a pede em casamento. O segundo tipo, é
do professor universitário, que nutria há anos o desejo natural de ser o sucessor do mestre
que o iniciara nos estudos. Começa a hesitar, a depreciar seu mérito e declara-se indigno
de preencher o cargo para o qual fora designado e passa a apresentar sinais de melancolia,
que o deixam incapaz de toda e qualquer atividade durante vários anos.
Para Freud, nestes dois exemplos, estamos diante de uma frustração interna, mas
esta não entra em ação até que uma frustração externa prepare o terreno, ou seja, o Eu se
defende de um perigo interno ao expor a possibilidade de um perigo externo, pela
realização de um desejo. Como ele nos diz: “(...) nos casos excepcionais em que as
pessoas adoecem por causa do êxito, a frustração interna atua por si mesma; na realidade,
só surge depois que uma frustração externa foi substituída pela realização de um desejo”
(Freud, S. 1916: 359). Apesar de reconhecer a estratégia do Eu em anular um desejo em
prol de uma defesa contra a frustração interna, tal medida não implica em justificar a
devastação do sujeito.
Todavia, a partir de um exame mais detido dos traços de caráter, Freud nos revela que o
Eu sempre se defenderá, ardentemente, contra um desejo tão logo este se aproxime da
realização e ameace se tornar realidade. Paradoxalmente, por que o Eu se defende
ardentemente contra um desejo e o sujeito justamente adoece por não realizá-lo?
Para Freud, as forças da consciência contra o êxito se acham, intimamente,
relacionadas ao complexo de Édipo: a relação do sujeito com o pai e a mãe, da qual esta
relação conduz à formação do sentimento de culpa. A partir disso, ele descreve o terceiro
tipo de caráter: “Os criminosos em decorrência de um sentimento de culpa”.
Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa
A investigação analítica sobre os pacientes que cometiam crimes, mesmo em
análise, levou Freud a contemplar, que tais ações eram praticadas em face de um
sentimento de culpa por parte do paciente e que o crime praticado possibilitava um alívio
psíquico para o sujeito. Ele dá um exemplo de um sujeito, que atormentado por intensos
sentimentos de culpa, encontra alívio após praticar um ato criminoso. Levantando,
conseqüentemente, novo paradoxo, uma vez que o sentimento de culpa antecede o ato
criminoso. Trata-se, enfaticamente, de uma punição e não de uma má consciência.
Deste modo, o obscuro sentimento de culpa origina-se do complexo edipiano e, por
conseguinte, constitui uma reação às duas grandes intenções criminosas: o parricídio e o
incesto com a mãe, dos quais são dois grandes crimes da humanidade e os únicos que são
perseguidos e deploráveis nas comunidades primitivas. Nessa trilha do sentimento de
culpa, Freud averigua que as crianças são propositalmente ‘travessas’ no intuito de serem
castigadas.
Para Miller (1999), esse terceiro tipo de caráter se inscreve pela impossibilidade do
sujeito suportar o gozo. E a passagem ao ato criminoso se traduz por uma liberação moral,
por um bem estar subjetivo. Eis sua pontuação:
“Freud dá conta aqui desta má empreitada com o gozo, ele dá conta da culpabilidade do
desejo a partir do complexo de Édipo e é aí também, sem dúvida, que é necessário
encontrar o ponto de ancoragem que faz, a Lacan, evocar, no fim de ‘Subversão do
sujeito’, a lei do desejo e a sublinhar que é necessário passar pela recusa do gozo para
poder atingi-lo, quer dizer, não se pode atingi-lo a não ser à condição que seja reenviado
à ordem prescrita pela lei do desejo” (Miller, J., 1999: 110. Inédito).
Para melhor elucidar trago um fragmento de uma entrevista realizada no
ambulatório da Igreja Santo Sepulcro. Trata-se de um rapaz de quinze anos, que foi
procurar atendimento, por ter sido pressionado pela mãe a procurar “uma ajuda
psicológica”. Em sua primeira e única entrevista, este rapaz me disse: “Eu estou
assaltando as pessoas. Mas, não sei o porquê disso. Não preciso de dinheiro, moro com os
meus pais e estudo. Ontem, ‘vacilei’ e acabei sendo pego pelos policiais e fui espancado.
Os meus colegas me disseram que eu fui um babaca por ter mostrado a arma para os
policiais, que estavam do lado de fora do ônibus. Não sei por que fiz isso? Por que
continuo assaltando?” Cabe-nos perguntar: será que o sujeito mostrou, inconscientemente,
a arma para o policial para ser penalizado? Em momento nenhum J. se mostrou em
conflito ou indignado por ter sido espaçando pelos policiais, pelo contrário, ao relatar o
episódio de espancamento, revelou um sentimento de alívio.
Dunker (2002), ao ressaltar que os traços de caráter marcam um “estilo de vida” ao qual o
Eu se identifica e se aliena, nos diz de forma clara que:
“(...) Um estilo de gozo, portanto, do qual o sujeito não se queixa. Quando o faz,
a queixa é geralmente indireta, decorrente de sua inviabilidade ou dos
transtornos relacionados secundariamente produzidos. De fato, nesta forma de
neurose [caráter] , os próprios sintomas assumem a força de signos de realidade
para o sujeito e lhe aparecem como testemunho de algo inamovível” (Dunker,
C., 2002: 161).
Por fim, encontramos no texto freudiano a existência de três tipos de caráter, que
nos revelam posições subjetivas diferentes. Parece-nos que o ponto em comum entre eles é
a relação de cada sujeito com o ganho de prazer. No primeiro tipo: as exceções, temos a
caracterização de um excesso de gozo, na medida em que o sujeito se aliena e se fixa na
posição de exceção para, justamente, não abrir mão do gozo. São sujeitos atravessados por
momentos de privação e sofrimento, em que pleiteiam isenção para os novos encargos que
a vida exige. Já no segundo tipo, ou seja, os devastados pelo êxito, encontramos um
excesso de gozo, ao qual o sujeito renuncia, já que é impossível de suportá-lo. Enquanto
no terceiro, os criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa, encontramos o
sujeito numa relação direta com o gozo, que lhe traz um sentimento de culpa.
Até aqui verificamos um conjunto repetitivo de encontros, que expressa uma certa
posição da demanda a uma modalidade de gozo. Precisamos averiguar o que leva o
sujeito a fazer tais escolhas. Soler nos adiante que: “(...) A articulação com o gozo se
impõe, evidentemente: a partir de momento em que o próprio desejo é uma defesa, ali
onde ele diminui, o gozo aumenta” (Soler, C., 2005: 79). Como me disse a paciente: “Eu
não vou mudar”, e podemos acrescentar: porque isso me agrada profundamente. Ou seja,
porque deste modo me distancio do meu desejo.
CAPÍTULO IV
OS TRAÇOS DE CARÁTER: UM ENQUADRAMENTO POSSÍVEL DA
ANGÚSTIA
A nossa proposta visa investigar os traços de caráter em sua dimensão
significante. Verificamos, especialmente com o estudo da fantasia, que nem todos os
significantes são destituídos e que podem persistir para além do final de análise. O que
nos leva a pensar que, com a não destituição desses significantes, o Eu se beneficie de
algo. Além disso, observamos que as três molduras de defesa são constituídas de
significantes-mestres. Agora, precisamos averiguar os traços que, embora não sofrendo a
ação do recalque, ficaram submersos e fixados em alguma parte do sistema psíquico. Para
tal averiguação, iremos inicialmente trabalhar, de forma sucinta, a pulsão em seu aspecto
de repetição, e, subseqüentemente, entraremos com a questão dos traços de caráter.
Cabe-nos indagar: o que significa caráter? A palavra caráter, em português, tem
algumas significações. Tais como: uma “maneira de ser”, “uma condição de ser”, uma
“marca de ser”, “uma formação do ser”. Em resumo, o caráter conota um “modo
específico de ser” que não oscila na conduta do sujeito. Mas, para que serve esta conduta?
Se não oscila, a conduta do sujeito pode ser considerada como uma marca indelével? A
respeito da conduta, Lacan nos adianta que:
“Em sua emergência nos textos e nos ensinamentos de Freud, um deslizamento nos
espreita, que não lhe poderíamos imputar – é de não ver no conceito da transferência
senão o conceito mesmo de repetição. Não esqueçamos que quando Freud o representa
para nós, ele nos diz – O que não pode ser rememorado se repete na conduta, para
revelar o que ela repete, é entregue à reconstrução do analista” (Lacan, J., 1968: 124).
Se o caráter é um modo especifico de ser que não oscila na conduta do sujeito,
teremos que investigar o que se repete no psiquismo, a fim de descobrirmos a estrutura do
caráter, ou seja, precisamos descobrir o que leva o sujeito a ter uma conduta inflexível.
Vale ressaltar que não temos o propósito de trabalhar com a distinção entre um caráter
“normal” e outro “anormal”. Sabemos que a psicanálise nunca estabeleceu normas desta
espécie, ao contrário, a psicanálise trabalha com o sujeito do inconsciente, ou seja, com as
formações do inconsciente. Porém Freud reconheceu a existência de traços que, por
estarem ocultos no caráter, resistem ao tratamento analítico. Ele nos diz que:
“Quando um médico empreende o tratamento psicanalítico de um neurótico, seu
interesse não se dirige de modo algum em primeiro lugar para o caráter do paciente.
Prefere saber o que significam os sintomas, quais as moções pulsionais ocultas por
detrás deles e por eles satisfeitos, e qual o curso seguido pelo caminho misterioso que
conduziu dos desejos pulsionais aos sintomas. Contudo, a técnica que ele é obrigado a
seguir logo o compele a dirigir sua curiosidade para outros objetivos. Observa que sua
investigação se acha ameaçada por resistências erguidas contra ele pelo paciente,
podendo o médico, com razão, encarar essas resistências como parte do caráter do
paciente. Isso passa a adquirir a prioridade de seu interesse” (Freud, S., 1916: 351).
Vale relembrar que a questão dos traços de caráter surgiu nesta dissertação da
articulação da clínica com a leitura do texto “Além do princípio do prazer” (1920), no
qual Freud utiliza o termo, no capítulo III, para ilustrar o papel da repetição. Segundo ele,
a impressão que se tem sobre o que acontece com alguns sujeitos neuróticos “é de serem
perseguidas por um destino maligno ou possuídas por algum poder ‘demoníaco’; a
psicanálise, porém, sempre foi de opinião de que seu destino é, na maior parte, arranjado
por elas próprias e determinado por influências infantis primitivas” (Freud, S., 1920: 35).
Em torno deste comentário de Freud, verificamos que, além de seu aspecto
repetitivo, os traços de caráter apareciam, de forma isolada, no discurso de alguns
pacientes. Então, em primeiro lugar, iremos pesquisar o processo de repetição, para nos
debruçar em seguida sobre a questão dos traços de caráter em outra dimensão.
Em virtude das inúmeras repetições trágicas que apareciam na clínica, Freud
ressaltou pontos preciosos de investigação. Um destes diz respeito à resistência, a maior
de todas, suscetível de paralisar completamente os avanços do tratamento analítico.
Porém, esta mesma resistência fornece a possibilidade de apreender o funcionamento da
repetição, pois uma vez interpretada transforma-se no único desemperramento possível da
neurose e do próprio tratamento.
Evidentemente, por ser da ordem do inconsciente, a repetição aparece para o
sujeito como algo estranho e sem sentido. Assim, em virtude da insistência de
acontecimentos mortíferos, o sujeito busca vários recursos, como por exemplo, a religião,
a ciência, a magia, ou, a própria psicanálise, a fim de encobrir ou decifrar o intolerável, de
acordo com o caso. Como vimos no capítulo “O mal estar na civilização”.
4.1 - A repetição do trágico
Em 1920, ao colocar os traços de caráter como representantes da vida primitiva do
sujeito, Freud traz o exemplo do amante cujos casos amorosos com mulheres atravessam
as mesmas fases e chegam à mesma conclusão. Um outro exemplo é da viúva que, por
três vezes consecutivas, teve que cuidar e velar os três maridos em seu leito de morte.
“Essa ‘perpétua recorrência da mesma coisa’ não nos causa espanto quando se refere a
um comportamento ativo por parte da pessoa interessada, e podemos discernir nela um
‘traço de caráter essencial’, que permanece sempre o mesmo, sendo compelido a
expressar-se por uma repetição das mesmas experiências” (Freud, S., 1920: 53).
Será que o termo “comportamento ativo”, utilizado por Freud, pode ser traduzido
como uma escolha do sujeito? Se for da ordem de uma operação do inconsciente, a
repetição realmente pode estar relacionada a uma escolha. Porém, temos que nos indagar:
o que leva o sujeito a fazer uma escolha trágica? Será que é a própria repetição? Ou, será
que é a própria escolha que o faz repetir?
Ao retomar a questão da repetição em Freud, Lacan recorre à teoria de Aristóteles
para distinguir as duas faces da repetição. Esta teoria sustenta a hipótese de que tudo o
que acontece, acontece a partir de algo, de que não há movimento ou mudança sem causa.
Assim, Lacan trabalha com dois tipos de causas aristotélicas: a tykhé e o autômaton. Estas
duas causas foram assimiladas à noção de acaso, na medida em que elas diziam respeito a
algo que acontecia com o sujeito sem intencionalidade.
Além disso, Lacan retoma os dois termos para analisar a função da repetição na
transferência, articulando-a com a pulsação do inconsciente. A tykhé é vista como “o
encontro do real”. Por trazer uma certa dose de deliberação, ela pode aparecer através de
um bom [eutykhia] ou de um mau [dystykhia] encontro. Quanto ao Autômaton, este
representa a repetição em seu aspecto de insistência automática da rede dos significantes.
“(...) O real está para além do autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos
aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por
trás do autômaton” (Lacan, J., 1964: 54). Assim sendo, Lacan associa as duas causas, a
tykhé e o autômaton, à compulsão à repetição, uma vez que as duas noções representam a
insistência da repetição. Como atesta Jorge:
“A tiquê é precisamente aquilo que se situa mais-além desse automatismo, ela é seu
ponto terminal – e inicial -, pois implica o encontro (faltoso) com o real que vigora por
trás do funcionamento automático do significante. O autômaton representa a tentativa de
trazer para o campo do simbólico, do significante, alguma forma de ligação (Bindung)
possível do real, de assimilação do real – cujo nome é por excelência o trauma” (Jorge,
M. A. C., 2002: 64).
S a tykhé está relacionada a um bom ou a um mau encontro, podemos relacioná-la
a uma escolha do sujeito. Como nos diz Sonia Alberti:
“Tykhé, apesar de implicar o acidente, e diria, por implicá-lo, traz em seu bojo o que
Aristóteles chamou de uma certa dose de deliberação, um certo grau de escolha
(proairesis). Por acaso há um encontro, mas esse encontro, essa chance, é concomitante
a ananké, a necessidade física cega que não tem representação no mundo dos
significantes” (Alberti, S., 1999: 153-154).
Esses acontecimentos trágicos guardavam a particularidade de contradizer
radicalmente o princípio essencial da vida psíquica, uma vez que o psíquico visava à
obtenção da satisfação. Evidentemente, somos compelidos às perguntas: o que está além
do princípio do prazer? Que relação tem o Eu com esse retorno? Freud nos diz que:
“O máximo que se pode dizer, portanto, é que existe na mente uma forte tendência no
sentido do princípio de prazer, embora essa tendência seja contrariada por certas outras
forças ou circunstâncias, de maneira que o resultado final talvez nem sempre se mostre
em harmonia com a tendência no sentido de prazer” (Freud, S., 1920: 20).
Em oposição ao princípio de prazer, a compulsão à repetição aparece como algo
demoníaco e sem sentido, “algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais
pulsional do que o princípio do prazer” (Ibid., 37). A pergunta que Freud se faz é: como
essa característica pulsional pode estar relacionada, como um predicado, à compulsão de
repetição?
Em primeira análise, o caso da viúva se torna enigmático, já que o fator
determinante da tragédia depende de um outro sujeito, diferentemente do sujeito que sofre
diretamente os danos da repetição. Mas, embora sejam repetições distintas, ambas as
situações não isentam o sujeito de sua responsabilidade nos acontecimentos. Como foi
muito bem enunciado por Lacan: “(...) por nossa posição de sujeito, sempre somos
responsáveis. Que chamem a isso como quiserem, terrorismo” (Lacan, J., 1966: 873).
Além disso, no caso da viúva, podemos presumir que os acontecimentos mortíferos
estejam relacionados a um distykhia, na medida em que foram três péssimos encontros.
Lembremos, foram três péssimos encontros escolhidos pelo sujeito.
Em 1913, no texto “O tema do três escrínios”, Freud mostrara que a escolha é
uma das formas que o sujeito tem de significantizar o intolerável. Ele traz o exemplo do
sujeito que, diante de três mulheres, acabou escolhendo a mulher mortífera, a Morte.
“A escolha se coloca no lugar da necessidade, do destino. Desta maneira, o homem
supera a morte, que reconheceu intelectualmente. Não é concebível maior triunfo da
realização de desejos. Faz-se uma escolha onde, na realidade, há uma obediência a uma
compulsão; e o escolhido não é uma figura de terror, mas a mais bela e desejável das
mulheres” (Freud, S., 1913: 377).
Por intermédio da repetição, Freud (1920) se dedica à questão da pulsão de morte,
dizendo que é a própria repetição que confere um além do princípio do princípio de
prazer. Entretanto, o que mais lhe causou espanto foi ter verificado que, diante de tais
fatalidades, alguns pacientes se encontravam como vítimas.
Dessa maneira, para melhor esclarecer a questão do mais além do princípio do
prazer, Freud recorreu aos sonhos traumáticos, levantando a seguinte questão: se os
sonhos são realizações de desejo, como explicar a existência de sonhos traumáticos? Para
explicar tal questão, ele recorreu à brincadeira de um menino de um ano e meio, seu
pequeno neto.
Nesta brincadeira, a criança tinha o hábito de apanhar quaisquer objetos que
estivessem ao seu alcance e de jogá-los atrás dos móveis para em seguida apanhá-los.
Todo esse movimento era acompanhado da seguinte exclamação: “o-o-o-ó” e de um “da”,
que foram identificados como representando os advérbios alemães fort e da, que
significam “ir embora” e “ali”. Freud conclui que a criança brincava de “ir embora” com
os objetos, o que foi confirmado no dia em que ela brincava com um carretel amarrado
pelo barbante. Ao invés de puxar o carretel pelo barbante como se fosse um carro, a
criança o jogava sobre a borda de sua cama e exclamava: “fort”. Ao puxar o carretel de
volta, ela exclamava alegremente: “da”.
No dizer de Freud esta brincadeira era uma encenação, cujo objetivo era
representar simbolicamente a saída e a volta da mãe. Para ele, o brincar se relacionava à
renúncia pulsional da criança ao deixar a mãe ir embora sem protestar.
Em “Recordar, repetir e elaborar”, Freud já havia deixado claro que o sujeito
repete como forma paradoxal de recordar. Ou seja, o que não pôde ser rememorado
retorna de outra forma, por meio da repetição sem que o sujeito perceba. Trata-se de uma
estratégia do Eu, pois, o que não pôde ser simbolizado retorna em encenações,
demonstrando sua insistência em tentar significantizá-lo. Eis o exemplo do menino. Este,
ao encenar o desaparecimento e o reaparecimento, consegue introduzir significantes para
encobrir a angústia. Um outro exemplo citado por Freud, a que nos referimos
anteriormente, é o da menina que, por estar com medo do escuro, disse a sua tia: “Basta
falar para ficar claro”.
Atesta-o a teoria lacaniana, ao afirmar que é nesse buraco da falta do Outro que os
significantes se depositam. Vale ressaltar que este lugar vazio corresponde ao trauma da
teoria freudiana. Pois, quando sobrevém para o sujeito um determinado evento que ele
não pode enfrentar, quando não consegue integrá-lo a suas representações para recalcálo, o evento passa a ter um valor de trauma. Este é destituído de valor no momento em
que o sujeito pode simbolizá-lo. Porém, são meras tentativas, formas parcialmente
inoperantes, porque sua tarefa lhe é sempre negada pela censura, precisa ser refeita
sempre.
Em 1920, Freud levanta a hipótese de que a pulsão é uma tentativa inerente à vida
orgânica de restaurar um estado anterior de coisas. A pulsão, vista até então como
promotora do desenvolvimento do ser vivo, ganha o status de conservadora. Isto significa
dizer que, em decorrência de influências perturbadoras e desviadoras que advém do
mundo externo, sua meta é recuperar o estado primário de satisfação.
“Essas pulsões, portanto, estão fadadas a dar uma aparência enganadora de serem forças
tendentes à mudança e ao progresso, ao passo que, de fato, estão apenas buscando
alcançar um antigo objetivo por caminhos tanto velhos quanto novos” (Freud, S., 1920:
55).
O que fica claro é que essa tendência é interna ao ser vivo e se define como
tendência para retornar ao estado original inorgânico. Freud deixa claro que foi a
realidade externa que provocou o aparecimento da vida, mas, uma vez isso tendo
ocorrido, o movimento em direção à morte é empreendido pelo próprio ser vivo e não
mais por exigência de fatores que lhe são exteriores. Uma morte obtida por ação de
agentes externos seria contrária a essa tendência, na medida em que “o organismo deseja
morrer apenas de seu próprio modo” (Freud. S., 1920: 56).
Em “Pulsões e seus destinos”, Freud enunciara a diferença entre a força (Drang) e
os destinos da pulsão. Além disso, ele enumerara os quatro destinos da força pulsional,
que são: a passagem da atividade para a passividade, o retorno sobre a própria pessoa, o
recalque e a sublimação, questões nas quais nos detivemos em capítulos anteriores. O
movimento inicial da força pulsional conduz à descarga. Assim, à medida que o Outro
puder acolher este movimento originário do ser, ou seja, nomeá-lo e lhe oferecer um
campo possível de objetalidade, a força pulsional estabelecerá uma conexão que a fará
retornar em direção ao organismo. Cabe-nos então indagar: este retorno se dá por um
trilhamento de marcas ou de traços? É o que veremos a seguir.
4.2 – O traço unário
Ao que tudo indica, é no Projeto para uma psicologia científica que surge pela
primeira vez o conceito freudiano de traço. Para Freud, os traços são marcas que se
inscrevem na experiência de satisfação. Esta experiência está relacionada a um estado de
desamparo original do ser vivo. Sua fragilidade em face das ameaças decorrentes do
mundo externo e interno o coloca numa total dependência do outro. Vale ressaltar que o
aparelho psíquico, por ser regulado pelo princípio constância, visa a descarregar os
estímulos que alcançam o organismo. Ocorre, porém, que um recém-nascido não é capaz
de executar uma ação específica que põe fim à tensão decorrente do acúmulo de energia.
No caso da fome, por exemplo, o bebê chora para descarregar energia, uma vez que ele
não sabe o que lhe causa mal estar. Assim, após a diminuição do quantum de energia, ele
continuará chorando, a fim de eliminar toda a tensão interna. Neste momento, o outro [a
mãe] o acolhe e significantiza o mal-estar, dando-lhe alimento, suprimindo assim a tensão
interna. Esta ação específica do outro ficará associada à imagem do objeto que
proporcionou satisfação. Ou seja, a primeira satisfação ficará marcada, por traços
mnêmicos, no aparelho psíquico. Assim, diante de qualquer outro tipo de excitação,
surgirá um impulso psíquico que procurará reinvestir os traços mnêmicos, isto é, os traços
do objeto alucinado [o seio], a fim de reproduzir o primeiro momento de satisfação.
“O impulso desta espécie é o que chamamos de desejo; o reaparecimento da percepção
é a realização do desejo e o caminho mais curto a essa realização é uma via que conduz
diretamente da excitação produzida pelo desejo a um investimento completo da
percepção” (Freud, J., 1900: 602).
Para explicar a inscrição dos traços no psiquismo, em “A interpretação dos
sonhos”, Freud elaborara topograficamente o aparelho psíquico da seguinte forma:
Freud deixa claro que pelo fato do sistema perceptivo não poder reter
modificações e continuar sempre aberto à percepção, existem várias funções [cf. figura
acima] que ficam reservadas aos vários sistemas mnêmicos que recebem as excitações do
primeiro sistema e as transformam em traços permanentes. Temos, assim, a construção de
traços mnêmicos, os quais facilitarão os novos investimentos objetais. Eis o caso do
sonho. Por exemplo, se um determinado terminal não estiver voltado para o mundo
externo, os traços serão reinvestidos e aparecerão na tela da percepção.
Em “Psicologia de grupo e análise do Eu”, Freud enfatizara que quando o objeto é
perdido, o investimento que lhe foi dirigido é substituído por uma identificação que é
“parcial, exatamente limitada e que conserva apenas um traço (Einzigerzug) da pessoa do
objeto” (Freud, S., 1921: 98). É o que trabalhamos no capítulo do “Eu-ideal”.
Ao retomar a teoria da identificação de Freud, Lacan introduz o conceito de traço
unário para designar o significante em sua forma elementar. Em 1958, ele esclarece que,
em um primeiro momento, um traço não é um significante, mas uma marca. Embora
sejam distintos, eles mantêm uma ligação, na medida em que “o significante sempre
participa um pouco do caráter evanescente do traço. Essa até parece ser uma das
condições de existência do material significante” (Lacan, J., 1958: 355).
Para melhor exemplificar a relação da marca com o significante, Lacan cita um
pequeno detalhe da história de Robinson Crusoé. Trata-se de um sujeito que ao caminhar
por uma ilha encontra as marcas do pé de Sexta-feira. Lacan acrescenta que, caso o
sujeito por algum motivo apague essas marcas, os traços do apagamento se tornarão
significantes, uma vez que eles poderão ser interpretados. Ou seja, os restos do
apagamento têm uma significação.
“Se o significante, portanto, é um vazio, é por atestar uma presença passada.
Inversamente, no que é significante, no significante plenamente desenvolvido que é a
fala, há sempre uma passagem, isto é, algo que fica além de cada um dos elementos que
são articulados, e que por natureza são fugazes, evanescentes. É essa passagem de um
para o outro que constitui o essencial do que chamamos de cadeia significante” (Lacan,
J., 1958: 355).
Ao retomar em 1958 a questão do traço unário, Lacan traz o seguinte exemplo:
ele próprio observou no museu de Saint-Germain-em-laye uma costela de animal préhistórico coberta por uma série de traços, que julga terem sido feitos por um caçador,
sendo que cada um dos traços representaria um animal morto.
“(...) O primeiro significante é o entalhe, com o qual se marca, por exemplo, que o
sujeito matou um animal, mediante o quê, ele não se embaralha em sua memória quando
tiver matado mais dez. Ele não terá que se lembrar de qual, e é a partir desse traço unário
que ele os contará” (Lacan, J., 1964: 135).
Como apontado por Lacan, isso mostra a autonomia do significante em relação ao
significado. Pois, independente de suas particularidades, cada animal é contado como
uma unidade. Assim, o traço unário distingue o sujeito dos outros, fazendo valer sua
singularidade. É o que nos mostra o exemplo acima, já que os animais só puderam ser
contados a partir do primeiro traço. Lacan nos diz que:
“O traço unário, o próprio sujeito a ele se refere, e de começo ele marca como tatuagem,
o primeiro dos significantes. Quando esse significante, esse um, é instituído – a conta é
um um. É ao nível, não do um, mas do um um, ao nível da conta, que o sujeito tem que
se situar como tal. Com o que os dois uns já se distinguem. Assim se marca a primeira
esquize que faz com que o sujeito como tal se distinga do signo em relação ao qual, de
começo, pôde constituir-se como sujeito” (Lacan, J., 1964: 135).
Em O Seminário, livro: 20, através de seu aforismo: “o inconsciente é
estruturado como uma linguagem”, Lacan enfatiza o caráter puramente diferencial do
significante, já que ele, enquanto tal, não é “jamais senão um-entre-outros, referido a
esses outros, não é senão a diferença para com os outros” (Lacan, J. 1973: 195).
Lacan se interroga: “O que é que quer dizer Há Um?” (Ibid. 195). Ele observa que, antes
de ser um significante, o significante um, escrito por S1, ele é um enxame (essain, em
francês, termo que faz homofonia com S-Un) de significantes singulares do sujeito. Mas o
S1 estará sempre situado numa referência a S2, já que um único significante não tem
representabilidade.
Lacan deixa claro que o S1 não é um significante qualquer. Pelo fato de representar o
sujeito para um outro significante, ele é um significante primordial, é o significante de
ação, que funda e amarra a cadeia de significantes. “Ele é a ordem significante, no que ela
se instaura pelo envolvimento pelo qual toda a cadeia subsiste” (Lacan, J., 1973: 196).
Para retratar a localização do enxame de significantes, Lacan a representa da seguinte
forma:
S1 ( S1 ( S1 ( S1 Æ S2 ) ) )
Somos levados inevitavelmente a inserir o esquema lacaniano do enxame de significantes
no diagrama freudiano do aparelho psíquico. Assim, temos:
Isto nos mostra que Lacan retomou e preservou a representação do aparelho psíquico
freudiano, trazendo preciosas contribuições à teoria freudiana. Pois, o esquema acima
mostra exatamente que os traços mnêmicos correspondem aos significantes primordiais
de Lacan. Ou seja, a cadeia de significantes, [cf. o esquema acima] esclarece o modo de
funcionamento da topologia freudiana do aparelho psíquico.
Como o inconsciente não se reduz aos significantes, já que ele é também pulsional, Lacan
descreve as duas faces da pulsão: a face simbólica e a face real. Na primeira face, a
pulsão
é
representada
no
inconsciente
pelo
conjunto
de
significantes
[Vorstellunggreprasentanz] – representante da representação, enquanto que a segunda é
representada pelo afeto, ou seja, a angústia. Freud nos diz que:
“(...) A representação [Vorstellung] consciente abrange a representação da coisa
mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação
inconsciente é a representação da coisa apenas. O sistema inconsciente contém
os investimentos da coisa dos objetos, os primeiros e verdadeiros investimentos
objetais; o sistema Pcs ocorre quando essa representação da coisa é hiperinvestida através da ligação com as representações da palavra que lhe
correspondem” (Freud, S., 1915: 230 ).
Freud concebe o inconsciente como um lugar psíquico. Conforme o esquema acima, o
que encontramos nesse lugar são representantes/significantes-mestres da pulsão. Porém,
ele nos diz que o núcleo do inconsciente “consiste em representante pulsionais que
procuram descarregar seu investimento; isto é, consiste em impulsos carregados de
desejo” (Freud, S., 1915: 232).
Algo escapa aos representantes, já que a própria cadeia de significantes, por ser
intervalar, não consegue suturar totalmente o vazio estrutural do ser vivo, assim algo
escapa e permanece insondável. Freud nomeou este lugar de das Ding [a coisa que escapa
ao simbólico], um dos nomes do real lacaniano. Esta falta de objeto a, é “apenas a
presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importar que objeto,
e cuja instância só o conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo” (Lacan, J.,
1964: 159). Por não ser representado, o objeto surge sempre como algo que foi perdido, é
“essa Coisa, o que do real primordial padece do significante” (ibid. S7, 149). É em torno
desse furo que o inconsciente se estrutura enquanto linguagem e, sobretudo, enquanto
desejo.
“O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto,
das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar.
Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas
suas coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que
será buscado”(Lacan, J. 1959: 69).
Vimos anteriormente que o recalque original consegue, através da inserção dos
significantes primordiais, recalcar esse real, instaurando em cada sujeito a fantasia
inconsciente, ou seja, a realidade psíquica.
4.3 - Os traços de caráter: armações de defesa contra a angústia
Agora, podemos dizer que a repetição tem como meta recapturar os significantes
primordiais para significantizar ou recobrir de uma outra forma o real. Pode ocorrer
através de um bom ou de um mau encontro. Sabemos que cada sujeito vai reeditar a sua
história a partir dos significantes primordiais. Além disso, sabemos que nem todo o
momento mítico é marcado de satisfação. Evidencia-se, agora, que a repetição se veste de
S1 para tentar uma aproximação com o núcleo do inconsciente, a fim de simbolizá-lo.
Porém Freud nos mostra, ao longo de sua investigação, que nem todos os significantes
primordiais passam pela ação do recalque. Então, temos que nos perguntar: se existe um
enxame de S1 que opera com o recalque original, fazendo com que o inconsciente se
constitua, como pensar topograficamente a localização dos significantes que não
passaram pelo recalque? Será que esses significantes não foram recalcados por terem se
isolados do enxame de S1? Verificaremos a seguir esta questão.
Em “Resistência e recalque”, Freud situou os traços de caráter como uma resistência e
como um poderoso suporte analítico. Porém, este suporte só terá funcionalidade se “uma
técnica habilidosa souber dar-lhes o rumo apropriado. Não obstante, deve-se observar que
esse material está sempre a serviço da resistência, em princípio, e revela uma façade
[fachada] que é sempre hostil ao tratamento” (Freud, S., 1916: 342). Cabe-nos indagar:
fachada de quê? Podemos dizer, agora, que se trata de uma fachada de S1, que impede
qualquer modificação do sujeito. Porém, precisamos saber como esses significantes são
utilizados pelo Eu. Freud nos diz que:
“Também se pode dizer que aquilo que se mobiliza para lutar contra as
modificações que nos esforçamos por efetivar, são traços de caráter, atitudes do
Eu. Com referência a este aspecto, descobrimos que esses traços de caráter
foram formados em conexão com as causas da neurose e como reação às
exigências desta” (ibid., 1916: 343).
Estamos diante de um paradoxo. Sabemos que os S1 sustentam as três modalidades de
enquadramento da angústia e também servem de trilhamento à pulsão de morte. Por que o
Eu não combate este trilhamento? Vimos que, por ser a sede da angústia, o Eu tem a
liberdade de operar com o recalque em qualquer circunstância. Supomos que, ao não
eliminar o caminho da pulsão, o Eu consiga eliminar um pouco a angústia de seu espaço,
já que ela segue por uma outra trilha.
No texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud afivela a formação do caráter a um tipo
específico de formação reativa, comparando a neurose obsessiva à histeria. Na neurose
obsessiva, a resistência frente à representação recalcada se manifesta sob a forma de um
contra-investimento. Vale ressaltar que, como vimos no subtítulo do Recalque, na neurose
obsessiva o recalque secundário não opera ou opera de modo precário. Então, temos um
dado de extrema importância, pois se não existe o recalque secundário nesta estrutura é
porque existe um outro mecanismo defensivo que o substitui.
“Um contra-investimento dessa espécie é claramente observado na neurose
obsessiva. Ele [contra-investimento] aparece ali sob a forma de uma alteração do
Eu, como uma formação reativa no Eu, e é efetuada pelo reforço da atitude
oposta à orientação pulsional que deve ser reprimida – como, por exemplo, na
piedade, na consciência e no asseio” (Freud, S., 1926: 181).
Quanto à histeria, as formações reativas não aparecem como traços de caráter, mas se
limitam a relações muito especiais. Freud dá o exemplo de uma mulher histérica que trata
com excessiva ternura o filho que no fundo odeia, e acrescenta que isto não faz com que
ela seja no conjunto mais amorosa ou mais terna com outras crianças.
“A formação reativa da histeria apega-se tenazmente a um objeto específico e jamais se
difunde por uma disposição geral ao eu, ao passo que o que é característico na neurose
obsessiva é precisamente uma difusão dessa espécie – um afrouxamento de relações na
escolha de objeto” (Freud, S., 1926: 182).
Vimos com o estudo do recalque que, na neurose obsessiva, com a falha do recalcamento
o afeto ressurge sob a forma de angústia e de autocensura, provocando, assim, novas
substituições por deslocamento e novos mecanismos de fuga. Por não ser recalcado, mas
sofrendo paradoxalmente os efeitos do recalque, o afeto é transformado em angústia.
Trata-se, portanto, de um mecanismo defensivo ininterrupto, o que nos leva a pensar na
formação reativa como suporte de defesa. Mas, aparentemente, este mecanismo defensivo
não consegue dar conta da angústia, porque sem o recalque secundário, os significantes
intoleráveis permanecem na esfera psíquica, fazendo novos e novos encadeamentos,
dificultando assim o circuito defensivo.
“De qualquer maneira, o processo, especialmente nas fases primitivas do
desenvolvimento, é muito freqüente, e torna possível supor que o caráter do eu é
um precipitado de investimentos objetais abandonados e que ele contém a
história dessas escolhas de objeto. (...) Em mulheres que tiveram muitas
experiências amorosas, não parece haver dificuldade em encontrar vestígios de
seus investimentos do objeto nos traços de seu caráter” (Freud, S., 1923:
43-44).
Em 1938, Freud traz preciosas contribuições a respeito dos traços de caráter. Neste texto,
ele revela que a formação do caráter é constituída no trauma. Assim, descreve duas
peculiaridades dos fenômenos neuróticos. A primeira está relacionada aos efeitos do
trauma: os positivos e os negativos. Os primeiros visam a repetição do trauma, já que, ao
repetir o trauma, o sujeito tenta significantizá-lo. Foi o que trabalhamos no item da
repetição. Freud traz o exemplo do homem que passou a infância numa ligação intensa e
atualmente esquecida com a mãe. Este sujeito poderá passar toda a sua vida procurando
uma esposa de quem possa tornar-se dependente. Quanto aos efeitos negativos, eles são
opostos aos primeiros, uma vez que não existe a repetição do trauma inconsciente, pois
em seu lugar estão as “reações defensivas”. Estas tentam evitar o trauma através da
intensificação das “inibições” e das “fobias”. Ele compara esta reação defensiva à
formação do caráter.
“Essas reações negativas também efetuam as contribuições mais poderosas para
a cunhagem do caráter. Fundamentalmente, elas são fixações no trauma, tanto
quanto seus opostos, exceto por serem fixações com intuito contrário. Os
sintomas de neurose, no sentido mais estrito, são conciliações em que ambas as
tendências procedentes dos traumas se reúnem, de maneira que a cota, ora de
uma, ora de outra tendência, encontre nelas expressão preponderante. Essa
oposição entre as reações dá início a conflitos que, no curso comum dos
acontecimentos, não conseguem chegar a qualquer conclusão” (Freud, S., 1938:
95).
Quanto à segunda peculiaridade, Freud ressalta que todos os dois efeitos, os
negativos e os positivos, possuem uma qualidade compulsiva.
“Isso equivale a dizer que têm uma grande intensidade psíquica e, ao mesmo tempo,
apresentam uma independência de grandes conseqüências quanto à organização dos
outros processos mentais, que se ajustam às exigências do mundo externo real e
obedecem às leis do pensamento lógico. Eles [os fenômenos patológicos] são
insuficientemente ou de modo algum influenciados pela realidade externa, não lhe
concedem atenção ou a seus representantes psíquicos, de maneira que podem facilmente
entrar em oposição ativa a ambos” (Freud, S., 1938: 95).
Freud deixa claro que, se ocorresse uma dominação da realidade psíquica interna
sobre a realidade do mundo externo, o caminho da psicose estaria aberto. Ele traz o
seguinte exemplo: “São, poder-se-ia dizer, um Estado dentro de um Estado, um partido
inacessível, com o qual a cooperação é impossível, mas que pode alcançar êxito em
dominar o que é conhecido como partido normal e forçá-lo a seu serviço” (ibid. 95). Eis o
inconsciente a céu aberto.
Esta breve e precisa passagem é bastante ressonante em diferente sentidos. Antes
de tudo, ela nos mostra que os traços de caráter são utilizados pelo Eu no combate à
angústia. Freud equipara as inibições e as fobias à formação do caráter, dizendo que todas
as três têm sua origem na fixação do trauma. Porém, somos compelidos às perguntas: será
que os traços de caráter podem ser pensados como significantes fóbicos, que não
deslizaram na construção mítica do sujeito?xxi Tudo indica que sim, pois verificamos, ao
longo deste trabalho, que os traços exercem grandes influências no psiquismo, já que eles
podem atrair e repulsar outros significantes. “É esse traço de caráter literal que especifica
o significante copulatório” (Lacan, J., 1966: 890). Além disso, ao não passarem pela
censura, os S1 podem circular livremente no psiquismo sem serem percebidos. Diferente
do sintoma que é o significante de um significado recalcado.
Então, precisamos descobrir em qual instância esses traços se encontram. Visto
que, ao produzirem significantes, eles podem se infiltrar na cadeia associativa do sujeito,
obstruindo qualquer interpretação. Freud nos diz que:
“Deparamo-nos com algo no próprio Eu que é também inconsciente, que se
comporta exatamente como o recalcado – isto é, que produz efeitos poderosos
sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder
ser tornado consciente”.
“(...) Reconhecemos que o Ics. não coincide com o recalcado; é ainda verdade
que tudo o que é recalcado é Ics., mas nem tudo o que é Ics. é recalcado.
xxi
Questão levantada por Vera Pollo no exame de qualificação desta dissertação.
Também uma parte do Eu – e sabem os Céus que parte tão importante – pode ser
inconsciente; indubitavelmente é Ics” (Freud, S., 1923: 30).
Verificamos, na associação livre dos obsessivos, a constante infiltração de
significantes que cortam radicalmente o encadeamento da cadeia associativa. Eles
desarticulam totalmente o discurso do sujeito, como se fosse um fenômeno de
neologismo. E o mais complicado disso tudo é quando os S1 surgem como holófrase,
fazendo com que uma palavra condense uma mensagem, ou seja, tenha o valor de uma
frase inteira. Foi o que me disse um paciente obsessivo, assim que se deitou no divã:
“Exclusão”. Quando lhe perguntei: “Exclusão”! O que é isso?” Ele ficou em suspenso e
me disse: “Você já sabe a minha história”. Enfim, parece que este significante surgiu
como condensação de todo o discurso do sujeito. Por ser neurótico, o sujeito conseguiu
colocar a cadeia de significantes em funcionamento, mas com muita dificuldade, já que
ele mesmo não sabia o que o levou a pronunciar este significante. Trata-se de um circuito
defensivo rigoroso, que apela para vários artifícios. Lacan nos diz que:
“Não é preciso apenas o traçado de um labirinto reconstruído, nem tampouco um lote de
mapas já desenhados. É preciso, antes de mais nada, possuir a combinatória geral que
lhe rege a variedade, sem dúvida, mas que, de maneira ainda mais sutil, nos dá conta dos
trompe-l’oeil, ou melhor, das mudanças de vista do labirinto. Pois não faltam nem uns
nem outros nessa neurose obsessiva, arquitetura de contratastes ainda não muito
acentuados, e que não basta atribuir a formas de fachada. No meio de tantas atitudes
sedutoras, insurretas e impassíveis, deve-se captar as angústias ligadas aos desempenhos,
os ressentimentos que não impedem as generosidades [...], as inconstâncias mentais que
sustentam fidelidades inquebráveis tudo isso se movimenta solidamente numa análise
não sem afrontas pontuais. O grande comboio prossegue no entanto” (Lacan, J. 1958:
636-637).
Assim, somos levados a depreender que, de certa forma, os S1 que ficaram alojados no Eu
inconsciente não retornam como formações do inconsciente. Sabemos que quando há a
operação do recalque, os S1 podem retornar ao Eu através das formações do inconsciente:
sonhos, chistes, atos falhos [bem sucedido] e sintomas. Agora, como pensar o retorno dos
S1 que estão alojados na parte do Eu inconsciente? Voltaremos a este ponto em breve.
Quanto à fobia, verificamos que os significantes fóbicos são utilizados pelo Eu no
combate à angústia. Temos o exemplo de Hans, pois, ao eleger um objeto fóbico, o
cavalo, ele coloca cadeia de significantes em operação, ou seja, o Eu introduz
significantes no lugar em que a angústia se manifestaria.
Então, existe uma relação entre a fobia e a neurose obsessiva no mecanismo
defensivo? Supomos que sim. Pois, verificamos que na neurose obsessiva, os S1, que não
sofreram a ação do recalque, podem ser utilizados pelo Eu como armações de defesa. De
fato, os dois mecanismos operam com significantes míticos, a fim de emoldurar a
angústia.
Porém, na neurose obsessiva, os traços de caráter podem ser utilizados em outras
dimensões, já que eles podem eliminar o recalque secundário, através da sedimentação do
Eu. Sedimentado, o Eu não tem como operar com o sinal de angústia, inviabilizando,
assim, qualquer tipo de manobra defensiva. Contudo, o Eu tem um ganho enorme com
esses S1, já que ele pode utilizá-los como se fossem “etiquetas de vitrines” para manter
um bom relacionamento com o Isso. No texto “O Eu e o Isso”, Freud enfatizara que o Eu
se veste dos traços do objeto para manter um bom relacionamento com o Isso.
“Em mulheres que tiveram muitas experiências amorosas, não parece haver dificuldade
em encontrar vestígios de seus investimentos do objeto nos traços de seu caráter.
(...) Quando o eu assume as características do objeto, ele está-se oferecendo, por assim
dizer, ao isso como um objeto de amor e tentando compensar a perda do isso, dizendo:
‘olhe, você também pode me amar; sou semelhante ao objeto” (Freud, S., 1923: 44).
É evidente que o Eu tem mais benefícios quando consegue preservar os traços
como essenciais. Isto foi pontuado no início deste trabalho, quando Freud abordou o caso
da viúva. Ao preservar os traços, o Eu mantém uma função parecida a do Eu-Ideal – i(a),
velando os objetos como traços essenciais. Talvez seja por isso que obsessivo crê nos
significantes para não se perder no labirinto. Como nos diz Maria Anita:
“Subornado desse modo pelo gozo que obtém a contrabando de seus sintomas, o
obsessivo resiste ao inconsciente. Ademais, para os “religiosos do significante”, admitir
a existência da Outra cena é sempre uma ferida narcísica, uma vez que ela não deixa de
evidenciar a falha na potência do pensamento” (Ribeiro, M., 2001: 69).
Com o estudo da fantasia, vimos que o obsessivo tenta zerificar o seu desejo
justamente para se distanciar do ponto de angústia. Por outro lado, ele se esforça para
manter um gozo a contrabando com os S1, que são os significantes traumáticos. Lacan
descreve S1 como o significante que comemora a irrupção do gozo. Isto realmente ratifica
que o obsessivo goza do pensamento, ou seja, goza dos seus traços de caráter, através dos
quais percorre incessantemente todo o labirinto do desejo e da angústia.
“De fato, se o gozo é proibido, claro que é apenas por um primeiro acaso, uma
eventualidade, um acidente, que ele entra em ação. O ser vivo que funciona
normalmente ronrona no prazer. Se o gozo é marcante, e se ele se homologa por ter a
sanção do traço unário e da repetição – que desde então o institui como marca” (Lacan,
J., 1970: 47).
Precisamos retomar a seguinte questão: se nem todos os traços são destituídos de
valor nem mesmo no final de análise é porque o Eu se beneficia de algo. Agora, podemos
dizer que o Eu não só se beneficia dos significantes que permanecem após a análise,
como também da onipotência dos S1. Lacan nos diz que:
“Assim, Reich cometeu apenas um erro em sua análise do caráter: aquilo que denominou
de “armadura” (character armor) e que tratou como tal não passava de armaria. O
sujeito depois do tratamento, conserva o peso das armas que extrai da natureza e apenas
apaga a marca de um brasão” (Lacan, J., 1953: 345).
Por serem significantes sem representabilidade, os S1 podem ser introduzidos em
qualquer rede de significantes sem despertar a censura. Por um lado, o sujeito fica sem a
angústia, por outro, fica entregue à arbitrariedade dos significantes e, sobretudo alienado
e fixado num grande labirinto de gozo, de desejo e de angústia. Quanto à queda desses
significantes no percurso de análise, podemos presumir que o arsenal perca alguns desses
significantes, mas algum deve permanecer para que a história do sujeito possa ser contada
de uma outra forma, sem as amarras do gozo. Como atesta Maria Anita:
“Alguns desses traços podem ser até bem confortáveis, como a generosidade, a
fidelidade inquebrável, como aponta Lacan, e eventualmente posso, porque me agrada
fazer uso deles, mas não mais porque “eu sou assim”... Estrangeiro de si mesma, o
sujeito no incurável de sua divisão subjetiva. Parafraseando Lacan, diria que o sujeito se
deixa escrever pela vida com ares de ser sujeito” (Ribeiro, M., 2000: 82).
CONCLUSÃO
Com o estudo das três molduras de defesa, verificamos a precisão e a eficácia do
circuito defensivo do Eu. É preciso destacar que, a cada nível de organização do Eu,
existe uma relação de suplência dos circuitos de defesa. Caso ocorra uma fissura em uma
das molduras da angústia, por exemplo, quando a fobia perde a sua eficácia, o Eu pode
utilizar o Eu ideal, a fim de reforçar o sistema defensivo. Embora sejam manobras
distintas, as três modalidades: a fobia, o Eu ideal e a fantasia, têm como meta
circunscrever a angústia.
Assim, na experiência de angústia, cabe ao Eu a tarefa imperiosa de construir
circuitos defensivos para dominar satisfatoriamente as representações intoleráveis que lhe
perpassam, assim como tecer a rede de significantes onde acoplar a angústia. Além disso,
como visto antes, o Eu tenta se defender dos ataques constantes dos sistemas vizinhos e,
sobretudo, da inexorável pulsão de morte. Porém, diante da implacável pulsão que tem
como único objetivo a satisfação, o Eu não consegue aniquilar totalmente o conflito
psíquico. Se isso fosse possível, o inconsciente silenciaria e o sujeito ficaria imerso no
caos de sua estúpida existência, carecendo de sentido e realidade.
Sustentamos então, especialmente com o estudo da “fantasia”, que não há a queda
de todos os significantes primordiais, nem mesmo no final de análise. Com isso, anunciase a existência de um paradoxo no final de análise. Pois a psicanálise enuncia que o
sujeito é marcado pelos destinos e pelas fixações de seus circuitos pulsionais, mas indica,
ao mesmo tempo, a possibilidade de se romper com estes.
Cabe-nos indagar: fixações imutáveis? Logicamente não, porque, com ou sem
análise, o sujeito será sempre um sujeito do desejo. Vimos que o sujeito é efeito do
significante, isto é, efeito do desejo, já que ambos surgem dos intervalos dos
significantes. Dessa forma, não podemos falar de fixações, mas sim de movimentos, de
investimentos e de escolhas. Embora os S1 estejam fixados no Eu, nenhum destes fixará o
sujeito, porque a própria cadeia de significantes o levará a repetir sempre de um modo
diferente. O que se fixa são S1, os quais levam o sujeito a repetir, a insistir num modo
específico de ser. Porém o sujeito neurótico, enquanto sujeito do inconsciente, jamais se
fixará, porque o seu aparecimento se dá pela via da suspensão de significantes, fazendo-o
escapar do aprisionamento de qualquer significação.
Pelo fato de se isolarem da cadeia de significantes, os traços de caráter podem
subsidiar as outras modalidades de defesa, caso haja alguma dificuldade de encobrimento
da angústia. Embora sejam eficazes, as molduras são sempre pressionadas pela pulsão de
morte, afetando o sujeito de várias formas. Por não poder ser exterminada, a angústia
mobiliza o Eu e todo o circuito defensivo.
Se a angústia na histeria é condensada numa parte do corpo ou projetada no outro,
na neurose obsessiva, a angústia permanece na esfera psíquica, circulando em toda a
cadeia de significantes. Diante desse campo de duelo, o Eu é forçado a reter os S1,
produzindo preciosas armarias de significantes para desviar ou acoplar a angústia.
Trata-se de um artifício delicado, já que a retenção do S1 pode aniquilar o próprio
sujeito. Veremos adiante. Além disso, ao reter o S1, o Eu pode camuflar não só a
angústia, como também o próprio desejo, já que desejo e angústia se encontram muito
próximos na estrutura.
Petrificado ao Um, o sujeito não consegue movimentar a cadeia de significantes.
Como se estivessem presos em um círculo vicioso, ambos, sujeito e desejo, desaparecem
ou aparecem petrificados. A clínica do obsessivo retrata isso de forma clara. Como me
disse uma paciente por várias sessões: “Eu sou uma pessoa honesta”. O significante
“honesta” foi utilizado pelo sujeito por muito tempo, de tal forma que ela só iniciava o
seu discurso com a introdução deste significante. Depois de dois anos de análise, o sujeito
se deu conta da insistência deste significante, quando me disse: “Eu não sou honesta.
Mas, parece que eu sou levada a dizer isso o tempo todo. Eu não sei que compromisso é
esse que eu tenho que ter com o meu eu”. Bem freudianamente, a paciente neurótica
revela, quase a céu aberto, a formação de compromisso do Eu com o S1, que a submete a
enunciar um significante primordial, embora aparentemente não lhe revele nenhum
sentido. Mas sua operação é diferente do que ocorre na psicose, em que o sujeito
identificado ao S1 não desliza na cadeia de significantes. Quinet nos diz que:
“Na paranóia, o sujeito está fixado a essa identificação e alienado ao significante. O
paranóico tem uma identificação imediata ao significante mestre que o fixa e representa
para todos os outros significantes. Identificado a esse Um, não se inscreve como (-1) em
relação nem ao significante, nem ao gozo. Ele é o Um ao qual tudo e todos se referem,
daí o caráter megalomaníaco observado por Kraepelin” (Quinet, A., 2002: 16-17).
Não podemos deixar de dizer que o discurso do obsessivo assemelha-se às vezes à
fala de um psicótico ou de um débil. Por que? Diz-nos sabiamente Freud:
“Na verdade, toda pessoa normal é apenas normal na média. Seu eu aproxima-se de eu
do psicótico num lugar ou noutro e em maior ou menor extensão, e o grau de seu
afastamento de determinada extremidade da série e de sua proximidade da outra, nos
fornecerá uma medida provisória daquilo que tão indefinidamente denominamos de
“alteração do eu”” (Freud, S., 1937: 268).
Obviamente que na neurose obsessiva encontramos mais nitidamente um Eu
completamente ‘falsificado’, porque com o não recalcamento de alguns S1, sofre
constantemente a invasão da angústia. Tanto que a neurose obsessiva, antes de Freud, era
freqüentemente diagnosticada como melancolia. Se o Eu na melancolia fica à sombra do
objeto, talvez possamos dizer que, na neurose obsessiva, o Eu fica à sombra dos S1,
transformando-se em um sujeito “petrificado” e em cujo discurso encontramos sempre
algumas holófrases, isto é, algumas interjeições, algumas palavras, ou simplesmente
algumas sílabas, que correspondem a uma frase inteira, pois expressam um longo
encadeamento de pensamentos. A brusca intrusão dos S1 na rede de significantes não
permite um deslizamento eficaz, pois o que aparece nos intervalos de significantes é um
Eu absolutamente enjaulado pelos S1 e aparentemente débil, ou louco.
“Chegaria até a formular que, quando não há intervalo entre S1 e S2, quando a primeira
dupla de significantes se solidifica, se holofraseia, temos o modelo de toda uma série de
casos – ainda que, em cada um, o sujeito não ocupe o mesmo lugar.
É na medida em que, por exemplo, a criança, a criança débil toma o lugar, no quadro,
em baixo e à direita, desse S, em relação a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais
que o suporte de seu desejo num termo obscuro, que se introduz na educação do débil a
dimensão do psicótico” (Lacan, J., 164: 225).
Se por um lado temos um Eu debilizado na neurose obsessiva, por outro, temos
um Eu onipotente, que consegue domar a pulsão de morte. Diante de significantes
primordiais que não fazem ruídos, ele obstrui o circuito pulsional, inviabilizando qualquer
possibilidade de irrupção do desejo. Além disso, na vacilação de suas molduras de defesa,
ele pode utilizar suas armarias de significantes para reforçar o circuito defensivo.
Podemos dizer que os traços funcionam como uma carta coringa, tamponando as arestas
do recalque e do desejo.
Vimos que as molduras de defesa contêm fissuras, já que algo sempre escapa de
suas arestas. Na fobia, embora o significante acople a angústia, o Eu recorre a outros
significantes para dar conta do medo. É o que articulava Hans, quando não mais nomeava
o cavalo como o seu objeto fóbico. “Não sei se a fobia é tão representativa [da angústia]
assim, pois, é muito difícil saber de que a criança tem medo. O pequeno Hans articula
isso de mil maneiras, mas permanece um resíduo absolutamente singular” (Lacan, J.,
1957: 251). Evidentemente que o Eu introduz de várias formas outros significantes para
que a angústia seja dissipada.
“Freud nos diz isso expressamente: poderíamos ficar tentados a qualificar a fobia por
seu objeto – o cavalo, no caso – se não percebêssemos que esse cavalo vai muito além
daquilo que é o próprio cavalo. Trata-se primordialmente de uma figura heráldica, que é
prevalente, que centra todo o campo, e que está prenhe de todas as espécies de
implicações: de implicações significantes, em primeiro lugar” (Lacan, J., 1957: 311).
Quanto ao Eu ideal, existe a perda dos pontos de referência, ou seja, os
significantes irrompem da moldura. Temos o exemplo no texto magistral revelado por
Freud. Ele próprio, sem reconhecer-se em sua própria imagem, tem um sentimento de
estranheza. A partir dos acidentes traumáticos, a angústia irrompe no psiquismo. Já a
fantasia, por recortar a pulsão de morte, ou seja, o gozo, protege o sujeito do real
traumático, porém algo também pode escapar de seu enquadramento, fazendo vacilar a
sua estrutura.
Em alguns casos clínicos, verificamos que a produção de significantes pode
aprisionar e determinar o destino do sujeito. Este cumpre seu destino sem saber o que está
cumprindo e o repete sem saber que está repetindo. Vimos que a pulsão é um conceito
situado na fronteira entre o psíquico e o somático. Isto equivale a dizer que a pulsão “é o
representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a
mente” (Freud, S., 142). Ao descrevê-la como representante dos estímulos internos, Freud
enfatizara que a pulsão pode ser representada por uma representação (Vorstellung) ou por
um afeto (Affekt), o qual não pode tornar-se ‘consciente’ sozinho. Por não ser recalcado, o
afeto sofre diferentes modificações: desloca-se, modifica-se, reprime-se e torna-se
eventualmente angústia.
Na impossibilidade de ser representada, a pulsão de morte age silenciosamente no
organismo do ser vivo. Em “Além do princípio do prazer”, Freud enfatizara que a ‘pulsão
de vida’, com o objetivo de manter um controle estável do psiquismo, produz tensões, a
fim de liberar a pulsão de morte. Então, supomos que essa estratégia se dê a partir da
introdução de novos significantes, uma vez que estes podem mobilizar os S1, fazendo
com que a pulsão de morte faça ruído e o circuito defensivo opere de modo eficaz.
“Outro fato notável é que as pulsões de vida têm muito mais contato com nossa
percepção interna, surgindo como rompedores da paz e constantemente
produzindo tensões cujo alívio é sentido como prazer, ao passo que as pulsões de
morte parecem efetuar seu trabalho discretamente. O princípio de prazer parece,
na realidade, servir as pulsões de morte” (Freud, S., 1920: 84-85).
Desde 1894, Freud enunciara que a neurose se funda a partir de uma escolha do sujeito,
que corresponde ao destino dado à representação intolerável. Ao retomar essa questão,
Lacan atribui a representação intolerável ao significante primordial. Através da
linguagem ou do mundo de significantes, o sujeito forçosamente terá que escolher entre
ser um sujeito da linguagem, isto é, um sujeito alienado, ou ser um sujeito de puro gozo.
Trata-se, evidentemente, de uma escolha forçada porque, sem que a linguagem faça
mediação com a pulsão, o sujeito simplesmente desaparece, uma vez que toda pulsão é
primordialmente de morte.
Ao escolher o mundo de significantes, o sujeito perde uma parte do seu ser, que é
justamente a parte de seu ser de gozo, já que a linguagem recorta a pulsão, civilizando os
significantes primários. Vimos que são os significantes primários que constituem o
sujeito, fazendo com que a desordem pulsional seja estruturada e civilizada. Então, a
partir da inserção de significantes, o vazio estrutural, ou melhor, a falta real do ser que
causa a desordem pulsional é suturada pelos significantes primordiais. Em outras
palavras, os S1 conseguem enclausurar uma parte da inexorável pulsão de morte.
Embora sejam aparentemente sem sentido, na medida em que um significante não
representa nada para o sujeito, os S1 exercem incontestavelmente uma função de mestria,
que é a função de tamponar o real, fazendo com que o ruído pulsional silencie. Mas,
como um significante sem sentido pode silenciar a pulsão? Talvez o silêncio pulsional se
dê quando os S1 surgem como representantes da pulsão. É isso! Pois sem representação,
os S1 podem comandar, pacificar, adormecer ou, ao contrário, despertar a pulsão.
Lacan deixa claro que o sujeito é responsável por sua alienação e escravidão, quando
assume os estigmas que vêm do Outro, isto é, quando assume os S1. Ele utiliza o termo
‘escolha forçada’ para falar desta escolha propriamente dita.
Estar alienado é estar submerso nos S1, significantes que vêm do Outro, os quais
constituem o inconsciente. Isto mostra que a alienação é uma etapa constitutiva do ser
falante, que faz com que o sujeito saia de sua “estúpida e inefável existência”. Então,
podemos dizer que o sujeito escolhe a neurose para escapar do abismo pulsional. Em
outras palavras, é preciso passar pela alienação para que o Eu se constitua. Como já havia
sabiamente antecipado Kierkegaard:
“Dessa forma, a evolução consiste em afastar-se indefinidamente de si mesmo, numa
“infinitização”. Ao contrário, o Eu que não se torna ele próprio permanece, saiba-o ou
não, desesperado. No entanto, o Eu está em evolução a cada instante de sua existência –
porque o eu Katà dynamin (em potência) não tem existência real -, e não é senão o que
será. Enquanto não consegue tornar-se ele mesmo, o eu não é ele mesmo. E não ser ele
mesmo constitui o desespero” (Kierkegaard, S., 1849: 34).
Na teoria lacaniana, verificamos que o sujeito é responsável por tudo aquilo que
o causa. Ou seja, o sujeito é responsável pela sua alienação, escravidão e, sobretudo, pela
constituição do seu Eu. Sem este, o sujeito seria devastado pela angústia, como revelam
os casos de psicose, em que o sujeito é constantemente devastado pelo real.
Assim, ao escolher o caminho do Outro, que é o caminho da história, o sujeito
perde uma parte de seu ser de gozo. Por outro lado, constrói o seu palco de encenações,
por intermédio dos rastros da história do Outro.
falsificar nossa percepção interna e a nos dar somente uma representação imperfeita e
deformada de nosso próprio isso. Em suas relações com o isso, portanto, o eu é
paralisado por suas restrições ou cegado por seus erros, e o resultado disso, na esfera dos
eventos psíquicos, só pode ser comparado a caminhar num país que não se conhece, sem
dispor de um bom par de pernas” (Freud, S., 1937: 270).
Parafraseando-o, diremos que, sem dispor de um bom par de lentes, o sujeito
ficará imerso e cego pelos destinos pulsionais e, sobretudo enclausurado pelas armações
do Eu. Então, como promover numa análise a quebra destas armações? Por serem
armações transparentes, o tratamento analítico gira em torno de “pegadinhas” de
significantes que levam o sujeito a um labirinto de falsificações. Porém trata-se de um
trajeto imprescindível, pois será através das pegadas de significantes que as armações
poderão ser descobertas e destruídas. O sujeito poderá surgir, para falar de seus desejos e
de suas angústias. Eis a nossa aposta em um tratamento possível. Quanto ao final de
análise, cabe-nos apenas perguntar: será que os traços de caráter desaparecem? O mestre
Freud nos adianta que:
“Nos casos daquilo que é conhecido como análise do caráter, há uma discrepância muito
menor entre a teoria e a prática. Aqui não é fácil prever um término natural, ainda que se
evitem quaisquer expectativas exageradas e não se estabeleçam para a análise tarefas
excessivas. Nosso objetivo não será dissipar todas as peculiaridades do caráter humano
em benefício de uma ‘normalidade’ esquemática, nem tampouco exigir que a pessoa que
foi ‘completamente analisada’ não sinta paixões nem desenvolva conflitos internos”
(Freud, S., 1937: 284).
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angústia e caráter