O AMOR PODE SER UMA TRÉGUA
Márcia Smolka
Há um lugar no coração que
Nunca será preenchido
Um espaço
E mesmo nos melhores momentos e nos melhores tempos
Nós saberemos
Nós saberemos mais que nunca
Há um lugar no coração que nunca será preenchido
E nós iremos esperar
E esperar nesse lugar
Charles Bukowski
Sem chance de ajuda
Discorrer sobre o amor e seus transtornos. Para tal é possível tomarmos várias
direções já que o amor é algo de tão fundamental ao humano. Precisamos que alguém
nos deseje para nos constituirmos e isto passa pela linguagem e pelo amor. Podemos
falar de amor materno (o nosso primeiro amor), amor infantil, amor fraterno, amor
adolescente, amor místico. Seriam amores diferentes?
O fato é que estamos sempre diante de amores. Perdidos, esperados, sonhados,
vividos, mas, insaciáveis. Há amores que enlouquecem, amores que adoecem ou há os
amores que apaziguam, que podem ser uma trégua.
O amor talvez seja um dos temas mais escritos, falados e pensados desde a
antiguidade - com as tragédias gregas, a mitologia, passando pela filosofia e psicanálise
- até as mais novas teorias da neuroquímica. Todas falam de amor. E quando se fala de
amor, fala-se de morte, loucura, felicidade, infelicidade. Êxtase. Dor psíquica, dor
física, sensação de aniquilamento, de perda, de não mais suportar viver. Perda da noção
de identidade, despersonalização com todas as consequências fenomênicas da loucura.
Desmesura.
Na antologia “Os melhores contos de loucura”, há uma pequena fábula que traz a
estreita ligação do amor e loucura que é sintetizada na expressão corrente “louco de
amor”. Jean de La Fontaine (1612-1695) nos conta: Mas por que o amor é cego?
Aconteceu que num certo dia o Amor e a Loucura brincavam juntos. O Amor ainda não
era cego, mas surge um desentendimento entre eles e a Loucura, impaciente, lhe deu
uma pancada tão violenta que o Amor ficou cego. Vênus exigiu que o crime fosse
reparado já que seu filho não podia ficar cego. Depois de estudar detalhadamente o
caso, a sentença do supremo tribunal celeste condenou a Loucura a servir de guia ao
Amor.
Como podemos passear por estes matizes que tanto nos dizem e nos tocam?
O que é possível pensar sobre o amor e seus desdobramentos no campo da
psicanálise?
Mario Benedetti nos apresenta em “A Trégua” Martín Santomé, um homem às
vésperas dos seus 50 anos e à espera de sua aposentadoria quando encontra em Laura o
amor inesperado que o tira da mesmice do trabalho, para ele uma espécie de constante
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martelar, ou de morfina, ou de gás tóxico. Um homem que espera pelo ócio sem saber o
que fará com ele. E encontra nesse amor o que considera uma trégua na vida. Ali se
suspendem as suas angústias diante do envelhecer, da passagem do tempo e da solidão.
Assim, o amor para os humanos se traduz nessa busca de um outro, ou de traços no
outro que dizem de mim, sem que eu saiba o que, ou o porquê .
E o que Freud nos fala sobre o amor? Tomaremos de alguns textos para ilustrar
pontos que possam nos nortear através dessa temática.
Em 1914, Freud sugere que tenhamos presente que todo ser humano adquire um
certo modo característico de conduzir sua vida amorosa, ou seja, as condições que
estabelece para o amor. Há na vida amorosa uma parte dos impulsos libidinais que fica
separada tanto da personalidade consciente como da realidade, que permanece
insatisfeita e se voltará para toda pessoa nova com expectativas libidinais e que as duas
porções de sua libido, tanto a capaz de consciência quanto a inconsciente, estão
presentes. Isso explica o caráter da repetição bem como a dimensão inconsciente que se
apresenta na vida amorosa. Há sempre algo de um outro tempo. Busca-se na atualidade
algo vivido, porém insabido. O amor está na cena cotidiana mas trazendo seus
paradoxos. A felicidade buscada nunca é encontrada. O que se busca no amor?
Recorremos ao texto de 1919, no qual Freud trata do “Das Unheimliche” ou “O
Inquietante”. O inquietante relaciona-se ao que é terrível, ao que desperta angústia e
horror. O inquietante seria sempre algo em que nos achamos desarvorados, por assim
dizer. Freud, no entanto considera essa caracterização incompleta e procura ir além
dessa equivalência entre inquietante e não familiar. Após uma longa citação das várias
nuances do termo em alemão nos indica que a palavra “heimlich” ostenta em seu
significado coincidências com o seu oposto “unheimlich”. O que é “heimlich” vem a
ser “unheimlich”. Assim tudo que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu,
seria “unheimlich”.
Freud nos dirige a entender o inquietante, à partir da experiência psicanalítica, na
sua relação com a angústia infantil, ou seja, com o medo da castração. Refere-nos à
sensações de desamparo e inquietude quando nos perdemos em ruas desconhecidas,
quando nos deparamos com a morte, com a loucura, com membros seccionados. O
angustiante seria justamente o inquietante. Esse inquietante não é realmente algo novo
ou alheio, mas algo há muito familiar à psique, que apenas mediante o processo da
repressão alheou-se dela: “o elemento angustiante é algo reprimido que retorna”
(p.360). Assim o que hoje nos parece inquietante preenche a condição de tocar em
restos de atividade psíquica, conteúdos inconscientes, estimulando sua manifestação.
“Quanto ao silêncio, solidão e escuridão, tudo o que podemos dizer é que são
realmente os fatores a que se acha ligada a angústia infantil, que na maioria das
pessoas nunca desaparece inteiramente”. (p.376). O amor não seria essa possibilidade
de recobrir a angustia, a falta e o abandono?
Em 1916 Freud publica “A Transitoriedade” e, de acordo com nota de James
Strachey esse ensaio é um enunciado da teoria do luto. Portanto perda. Freud afirma
que a transitoriedade não implica na perda do valor de algo, pelo contrário, significa
maior valorização. É o caráter do transitório, daquilo que perdemos, que nossa libido
estará novamente livre para substituir os objetos perdidos por outros novos. Podemos
pensar que o estado amoroso, a paixão, também atendem a esse caráter de
transitoriedade, mesmo que todo sujeito apaixonado queira acreditar na imortalidade do
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amor. O amor não é eterno, nosso desejo é que assim o quer. O amor é sempre narcísico
e é inevitável que tenhamos que perder. Perder amor significa perder narcisismo. O
encontro amoroso proporciona um investimento libidinal no objeto amoroso que tem
como efeito a satisfação, a completude imaginária que todos buscamos que nos mantém
numa ilusão narcísica. Sobre o enamoramento diz Freud: “ele se apresenta como um
abandono da própria personalidade em favor do investimento de objeto”. (p. 17) O
enamoramento é o encantamento pelo outro, o transbordamento da libido do Eu para o
objeto.
Ainda no texto “Introdução ao Narcisismo” Freud faz uma questão que nos
interessa na temática amorosa: de onde vem mesmo a necessidade que tem a psique de
ultrapassar as fronteiras do narcisismo e por a libido em objetos? Diz ele: “surge
quando o investimento do Eu com libido superou uma determinada medida. Um forte
egoísmo protege contra o adoecimento, mas afinal é preciso começar a amar, para não
adoecer, e é inevitável adoecer, quando, devido à frustração, não se pode amar”.
(p.29) Vinícius de Moraes já dizia: nada melhor para a saúde do que um amor
correspondido.
Assim o amor é uma das possibilidades de elaboração psíquica, mesmo que todos
nós em momentos particulares da vida voltemos a um modo dominante de narcisismo
primário. Vale notar que é indiferente que a libido seja investida em objetos reais ou
imaginários, e aí entra o papel da fantasia na vida amorosa. Ser amado eleva o amor
próprio. Dá consistência ao Eu. Penso ser esse o caráter de trégua que a experiência
amorosa dá. Mesmo que ilusória. A trégua é a inclusão no desejo do outro. É quando a
angústia silencia
Em “Sobre o amor de transferência” (1915) Freud afirma que o amor sexual é uma
das principais coisas da vida, e a união de satisfação física e psíquica, no gozo do amor,
é uma das suas culminâncias. O que Freud concebe é fazer do amor uma cura. “Esse
amor deslocado, amor-logro, dito de transferência, é para ele, a única cura possível para
o aleatório sempre frustrante das buscas amorosas” (Zalcberg, 2007, p.6).
Malvine Zalcberg, em seu livro “Amor, paixão feminina” se debruça a traçar a
problemática do amor para as mulheres, no entanto nos diz: “o sujeito, de ambos os
sexos para escapar de grande desamparo, motivo de eterna aflição, busca formas que
o protejam de alguma maneira desse encontro com o real, que no fundo é inevitável em
um momento ou outro da existência de cada um, não sem produzir alguma angústia”
(2007, p. 94).
A autora faz um desenvolvimento em torno de um ponto que toca ao homem e à
mulher: para que haja amor, deve haver uma condição de castração (p.157) “O amor é
o que vem compensar o desacordo entre um homem e uma mulher, mesmo sem
derrubar o muro que existe entre os sexos. Pela mediação do amor é possível para um
homem e uma mulher que não falam a mesma língua e que pertencem a duas lógicas
distintas viverem juntos. O amor é o que, pela via do imaginário, permite tornar
suportável, e mesmo agradável, a arte do encontro enquanto desacordo” (p.182). Por
intermédio do amor, homens e mulheres encontram uma solução para lidar de algum
modo com esse impossível da relação sexual.
Juan David Nasio nos traz a noção de dor psíquica ou dor de amor como o afeto
que resulta da ruptura brutal do laço que nos vincula com o ser ou a coisa amados.
Freud precisa que o sofrimento é a perda do ser amado ou do seu amor.
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Mas quem é este outro que amo que resulta em tão essencial, que faz com que eu
pense que com ele sou o que sou?
Isso se deve a ele mesmo, ou algo dele em que me reconheço, que passa a fazer
parte de mim mesmo? Há uma incorporação do outro, como um duplo interno.
Poderíamos pensar a partir daí que o objeto amoroso tem assim algo de “heimlich”,
algo que Freud afirma em 1919: o amor é a nostalgia do lar. Aquilo que é o meu mais
íntimo, que é meu – meu amor. No entanto, neste deslizamento do familiar ao estranho,
irrompe o “unheimlich” com todos os seus desdobramentos de angústia. Fim da trégua.
BIBLIOGRAFIA
1. Benedetti, Mario, A Trégua, Porto Alegre, L&PM, 2008.
2. Fontaigne, Jean de La, in “Os Melhores Contos de Loucura”, Flávio Moreira da
Costa (org.), Rio de Janeiro, Ediouro, 2007.
3. Freud, S.(1912) A Dinânica da Transferência, Vol. 10, tradução e notas Paulo
Cesar de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
4._______ (1914) Introdução ao Narcisismo, Vol. 12, tradução e notas Paulo Cesar
de Souza , São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
5. _______(1915) Observações sobre o Amor de Transferência, Vol.10, tradução e
notas Paulo Cesar de Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
6. _______(1916) A Transitoriedade, Vol.12, tradução e notas Paulo Cesar de
Souza, São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
7.________(1919) O Inquietante, Vol. 14, tradução e notas Paulo Cesar de Souza,
São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
8. Nasio, Juan David, El Libro del Dolor y Del Amor, Barcelona, Editorial Gedisa,
1999.
9. Zalcberg, Malvine, Amor Paixão Feminina, Rio de Janeiro, Elsevier, 2007.
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