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Fotobiografema de um frame:
a imagem-escusa de Está tudo pela hora da morte
por Daniel Gutierrez
Está tudo pela hora da morte. A
frase com que começo este texto
nos remete, evidentemente, a
uma expressão popular da língua
portuguesa. Tal expressão é
comumente utilizada para se
referir à carestia cotidiana neste
nosso modo de vida capitalista;
ad argumentandum tantum. Mas
não é disso que se trata. A
recente crítica do professor
Marcos da Rocha Oliveira
procura evidenciar certa causa a
esta frase. A probidade está na
questão de que a crítica de
Oliveira tem por base não um
termo do linguajar, dito e tido como de uso do “populacho espúrio” (para
usar a expressão de nosso mais reacionário articulista: Sandoval
Melquíades), mas o título de um filme baseado na obra de Joaquim Arievillo.
Para usar um ar faulkneriano ao modo onettiano do estilo repetido por Piglia
afirmo: Todos nós sabemos; todos nós que alguma vez estivemos sob a luz
penumbrosa de uma sala de cinema e assistimos, à revelia de nossas
teleologias, cenas compostas por imagens infames, tênues, taquicárdicas,
pacientes, depressivas, alusórias, compulsivas, inflamantes de uma narrativa
cinematográfica, todos nós que amamos a literatura e o cinema, sabemos que
adaptar literatura ao cinema ou cinema à literatura é traduzir estados não
subjetivos, modos de afetar nossos corpos e espíritos; todos nós conhecemos
este animus jocandi que produz novidades aos nossos corpos ansiados por
leituras moventes; todos nós sabemos da existência de procedimentos
adaptativos e poderíamos descrevê-los a forasteiros desavisados, contar
epistolarmente a um parente ou amigo, afirmar suas evidências em blogues,
sites, redes sociais, aulas; mas isto não conhecíamos, não esta forma de
narrar. Eis, que o professor Marcos da Rocha Oliveira evidencia em seu
artigo que o filme Está tudo pela hora da morte ganha um sentido especial na
cena em que aparecem os originais de Beckett que seriam traduzidos no
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Daniel Gutierrez assina por Máximo Daniel Lamela Adó ao modo de Bustos Domeq. E-mail:
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quase romance de Joaquim Arievillo. A presença destes volumes que
conferem à cena um efeito de verdade lhe dando um ar quase documental, a
la kino-pravda, resultam ser um embuste imagético. Eu me pergunto se não
seria este, exatamente, o must da empreitada cinematográfica do diretor
anônimo de Está tudo pela hora da morte? Primeiro tenho que revelar certo
movimento de minha pesquisa, movimento que desencobre o falseamento da
cena onde aparecem os livros na mesa de Joaquim Arievillo, em especial no
frame em close-up acompanhado pela legenda: originais de Beckett na mesa
de tradução de Joaquim Arevillo. Não é difícil notar, apesar de que para isso
temos de parar a cena e dar a devida atenção aos textos dos volumes que a
compõe, que os volumes que estão no quadro não são de Beckett. O texto em
inglês resulta ser de Melville e o texto em francês de Pascal.
No texto de Herman Melville o punctum está na frase “Ere revolving any
complicated project [...]” e nos opúsculos de Pascal percebo como punctum a
frase “Divertissement. — La dignité royale n'est-elle pas assez grande d'ellemême pour celui qui la possède [...]”. De chofre poderíamos julgar todo este
movimento como um grande engodo. Engambelação condenável pela lógica
do original, da primeira vez, do traço da verdade, mas, com Sonic Youth
afirmo: I don’t wanna. I don’t thing so. Antes de um “I would prefer not to”
bartlebyano prefiro deduzir que Joaquim Arievillo, este português de
sobrenome com sonoridade espanhola, sofre da mesma inaptidão tradutiva
que Roberto Arlt. Talvez seja aí que more o gosto de seus escritos e para nós
o gosto de lê-los. Se ler Arlt é ler um escritor que constrói seu estilo na
leitura que recebe da literatura estrangeira pela peneira de uma tradução, ler
Arievillo é ler um estilo fragmentado de Beckett via traduções googlenianas
de zines rascunhados na Restinga portoalegrense. Arlt erige seu estilo e
escritura via traduções espanholas de Dostoiévski, eis que é tributário de
traduções baratas da editora Tor. Já não lembro quem foi que nos disse, se
foi Piglia, Renzi ou Marconi, que Arlt vem de um lugar que é outro que não
esse onde se escreve “bem” e se faz estilo na Argentina. E é esta a questão que
nos interessa, qual seja: a de que o estilo de Arlt é, justamente, a ficção e,
portanto, sua ficção é seu estilo. Em Arievillo não é diferente. Seu estilo
plagiotrópico e digamos, ao modo vattimoniano, fraco é o que nos convence.
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A força está exatamente nesse movimento de convencimento vazio, cheio de
inabilidades, de faltas que se constroem longe de qualquer originalidade, ou
melhor, a originalidade está aí, nas diferenças dos iguais; nas cópias baratas.
É disso que trata Está pela hora da morte, um filme de potencialidades
periféricas. O frame dos textos falsos denominados como originais de Beckett
funcionam como falseamentos originais atribuídos a um autor falso. Os
textos possuem origem autoral, mas são lidos de modo transversal e assim
esses nomes-autorias resvalam, dão outro tom para a leitura. Percebam:
lemos Melville e Pascal na “voz” de um Beckett que haveria de ser traduzido
por Arievillo e presentificado em um filme de diretor anônimo. Ao selecionar
o frame-efeito-de-verdade do filme Está tudo na hora da morte para uma
investigação genética da probidade e propriedade dessa cena, o que fiz foi
alçar meu indicador ao centro de um ponto. E o ponto resultou ser nada mais
que El Aleph borgeano. Como na fala do professor Marcos Oliveira o
emaranhado de fios de algodão cru ligam versos rabiscados, mas os versos,
agora, são infinitos. Infinitas transposições. Se lemos, em El Aleph de Jorge
Luis Borges, um Daneri como contração de um Dante Alighieri, neste frame
de falsidades e plagiotropias lemos que o que está pela hora da morte é a
ideia de autor e de planos essencialistas. Quando a professora e crítica
cinematográfica Sandra Corazza, na estreia de Está tudo pela hora da morte,
pergunta à seleta e exígua plateia da première no Salão SA-606: Quem e como
seria o Educador falsário? Arievillo sai da sala. Penso que não poderia ser
diferente, as evidências são plasmares. Arievillo concatena seu ato a uma
ação de interpretação literal, um estilo clichê que denota em seu ato a ideia
de imagem-percepção em Gilles Deleuze. Antes de entrarmos ao Salão AS-606
conversava com Arievillo e ele havia destacado que seu interesse no
momento era o de viver o seu estilo, dizia: O ato fundamental da linguagem
não é mais metafórico, pois a metáfora homogeneiza o sistema. A questão
está no discurso indireto livre, pois assim pode-se afirmar um sistema
sempre heterogêneo, distante do equilíbrio e por isso não está sujeito a
categorias linguísticas, pois estas são homogêneas ou homogeneizadoras. É
uma questão de estilo, uma estilística nos diria Pasolini. Por isso
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performatizo meus dialetos. Traduzir uma língua desconhecida é como criar
uma correlação entre dois processos dissimétricos. Quando Arievillo sai da
sala está performatizando a resposta àquela pergunta via uma ação que julga
estar do lado de um discurso indireto livre. Notem que ao sair da sala, os
presentes na première lembrarão da cena, Arievillo, com perspicácia, aciona o
play do projetor e a plateia, agora com outra postura corporal, lê a frase que
inicia o filme: “[...] tratamos de confundir imagem e ideia sem deixar de saber
que o que precisamos sempre é de uma imagem-escusa”. E o discurso
continua, lida a frase Jorge Dajás clica no stop do aparelho. A crítica fez uma
pergunta e a resposta ressoa em miríades produtivas. Quem e como seria o
Educador falsário?
No escuro da sala alguém ainda grita mais um punctum do famoso frame de
Está tudo pela hora da morte:
“I resolved to gather all my faculties together and forever rid me of this
intolerable incubus”.
O todo sempre é distinto da soma de suas partes!
Referências:
ADÓ, Máximo. 2012. (Notas avulsas)
CORAZZA, Sandra Mara. “Seminário Avançado: Imagem-movimento de AICE –
Autor, Infantil, Currículo, Educador”. Seminário Avançado realizado junto ao
PPGEDU/UFRGS no primeiro semestre de 2012. Porto Alegre, 2012. (Notas
do Seminário)
DELEUZE, Gilles. Cinema 1 A imagem-movimento. Trad. Stella Senra. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
OLIVEIRA, Marcos da Rocha. “Gilles Deleuze e o cinema do não”. Alegrar,
número 10, 2012.
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