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Como cobrir (sem saber exatamente como) uma revolta popular
contra, entre outras coisas, a polícia
Pedro Rocha1
A “onda de protestos” rebentou em Fortaleza quase uma semana depois da histórica
quinta-feira, 13 de junho, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Na segunda e na terça
alguns poucos milhares de pessoas já haviam marchado pela cidade. Mas nada como
os 80 mil, pelos cálculos da Polícia Rodoviária Federal, que se puseram juntos na
quarta, dia 19, na avenida Alberto Craveiro, durante o jogo entre Brasil e México pela
Copa das Confederações.
Um dos principais acessos à Arena Castelão, a Alberto Craveiro é um cenário
desolador, especialmente no trecho que serviu de concentração. Um descampado de
asfalto e sol quente sem um único pé de árvore. Ao meio dia daquela quarta-feira,
apenas o pulso nervoso que arrepiava o Brasil tornaria aquele espaço habitável a um
ser humano, mesmo que por pouco tempo. O trabalho da polícia dali a poucos minutos
seria justamente devolver ao deserto a sua natureza anterior.
Até o primeiro estouro de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo, tudo
pareceu um show lotado e confuso. A diferença é que nós saberíamos o que fazer na
cobertura de um evento deste, ou teríamos modelos a copiar. Naquele caso, não
tínhamos. Não éramos um jornal diário, uma revista, televisão, rádio, portal de notícias
ou mesmo um blog. Não éramos um veículo. Nem fazíamos cobertura ao vivo, como a
Mídia Ninja, que havíamos conhecido há poucos dias.
A Nigéria surgiu em 2009 como uma produtora de documentários e filmes
institucionais para o terceiro setor e movimentos sociais. A política nunca nos foi
alheia. Mas nossas produções focavam – e continuam focando – em questões de
fundo, como os impactos ambientais e sociais do agronegócio, o déficit habitacional
urbano e o empoderamento feminino no interior do Ceará. Sempre em parceria com
outras instituições e, apesar de às vezes em locais arriscados, geralmente em
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Pedro Rocha é jornalista, integrante do Coletivo Nigéria. O documentário Com Vandalismo tem, até
agora, mais de 100 mil visualizações no YouTube. Já há uma versão legendada em inglês, e a versão em
espanhol, realizada voluntariamente por um chileno, em breve estará disponível.
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condições minimamente controladas. Nada parecido com o que experimentaríamos a
partir dali.
Eu, meus outros três colegas da Nigéria – Bruno Xavier, Yargo Gurjão e Roger Pires – e
algumas outras companheiras e companheiros que se integraram ao que deveria ser a
cobertura do Comitê Popular da Copa não fazíamos a menor ideia de como proceder
no meio daquela multidão. Tudo foi se revelando intuitivamente. Basicamente, nos
posicionamos no limiar entre manifestantes e polícia e começamos a ouvir as pessoas,
entrevistá-las. No final, estas duas ações permaneceriam como as coordenadas básicas
que guiariam o impulso incontornável de registrar o que se passava no país e,
particularmente, em Fortaleza.
Um dos entrevistados rebatia indignado a declaração de Ronaldo “Fenômeno” de que
“Copa não se faz com hospitais”, quando o primeiro estouro nos sobressaltou. Tiros,
alvoroço da massa, o gás lacrimogêneo. Depois, a recomposição paulatina de uma
resistência.
A linha de frente era definitivamente nosso lugar – avançávamos na compreensão da
tarefa documental. Novamente a tensão no ar entre manifestantes e Tropa de Choque
durou alguns minutos, o tempo de um morador do bairro ser impedido – e depois
liberado – de passar pela barreira policial com uma criança no colo. O tempo de nos
colocarmos entre os manifestantes e a polícia, numa posição em que a fuga
simplesmente não tinha roteiro.
A tropa disparou novamente. Corremos. E, ao olhar para trás em busca do Bruno
Xavier, que filmava, fui atingido por um soco, um repuxo que jogou minha cabeça de
volta pra trás e meu corpo no chão.
A bala de borracha que atingiu meu olho não tirou minha vista, por sorte, e ajudou, de
certa forma, a repercutir a violência desproporcional da repressão policial. Para mim,
seus mais incisivos sentidos se fizeram entender imediatamente após o tiro.
Primeiro, quando levei a bala, pensei em me fingir de morto, num regresso
instantâneo aos medos infantis. Alguém me ajudou a levantar e resolvi dar o fora dali,
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até porque nada garantiria que ficar deitado no asfalto quente seria uma melhor
opção. Percebi então que se fingir de morto é um privilégio, já que todo mundo sabe
em quais situações aquelas balas seriam letais.
A repressão policial se transformou em uma pauta em si das manifestações, depois
articulada na discussão sobre sua desmilitarização. O confronto entre manifestantes e
polícia, portanto, não era apenas o desenrolar do tensionamento daqueles dias e sim
um fato político, talvez o único que conjugasse todas as outras variáveis em jogo. Além
do mais, nossas câmeras tinham, literalmente, lado. Não filmávamos por trás da
barreira de escudos policiais. Isso custaria apenas mais dois dias para ficar claro.
Numa outra manifestação na quinta, 20, a concentração foi na Praça Portugal, num
bairro da elite de Fortaleza, uma porção de terra cercada de carros por todos os lados.
Agora a manifestação iria percorrer as avenidas melhor asfaltadas, iluminadas e “bem
frequentadas” de Fortaleza. Naquele momento já sabíamos o que perguntar e até hoje
foram as mais sinceras perguntas que já fiz: por que você está na rua? Essa
manifestação é da classe média? O que é vandalismo pra você? O vandalismo é da
polícia ou dos manifestantes?
Ao chegarmos ao Palácio da Abolição, sede do Governo do Estado do Ceará, também
consegui ver de perto o processo de negociação com um dos prepostos da Casa Civil,
que solicitava uma lista com nomes dos representantes do movimento. A negociação
foi desacreditada por um grupo de inspiração anarquista – pelo menos assim os defini
– que rejeitou qualquer tentativa de delegar poderes: “Sem líderes! Ou entra todo
mundo ou não entra ninguém!” Os entrevistamos e aos líderes “depostos”, incluindo
um estudante secundarista de 17 anos, um dos organizadores da manifestação
originalmente, mas que naquela hora já não reivindicava mais qualquer poder e sabia
que a pauta original – a entrega imediata das carteirinhas estudantis de 2013 – era
mais uma entre outras.
Depois disso, ainda na quinta, a tensão entre manifestantes e polícia aumentou até
acabar em novo conflito e mais de 60 pessoas detidas (cerca de 10 eram
adolescentes), algumas presas em paradas de ônibus após revista de policiais à
paisana. Até bandeira serviu de pretexto para as detenções. Mas nessa hora eu já não
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estava no local, havia saído para prevenir meu olho de um trauma maior. Percebi,
portanto, que havia sido abatido logo nos primeiros movimentos desta batalha,
afastado da linha de frente, único local que nos cabia. Bruno, Yargo e Roger
continuaram filmando.
Na sexta 21 o nome do ato era “Educação 10”. Fiz uma retirada estratégica, para
acompanhar com o Roger uma reunião de partidos de esquerda e movimentos sociais.
Tudo reprise, exceto pelas falas de um militante do movimento hip hop e de um
integrante da Torcida Uniformizada do Fortaleza (clube cearense de futebol). Somente
à noite, depois do relato do Yargo e do Bruno sobre o confronto em frente ao Paço
Municipal (sede da Prefeitura), entendi por que o interesse na fala dos representantes
da torcida e do hip hop. Eles chamaram a atenção justamente para esta juventude que
se lançava contra a polícia.
Na “linha de frente”, que eu relutei em chamar desta forma por um tempo, você
precisa aguçar os sentidos. Corre-se de bomba, de tiro, mas nunca da história. Lá quem
está ao seu lado pode ser um P2 (policial infiltrado), um anarquista contra a tirania do
Estado, um pacifista classe média de quarta-feira que mudou seus conceitos depois da
repressão, mas principalmente adolescentes da periferia da cidade desprovidos de
amor à polícia.
Por isso, escolhemos este lado em nossa cobertura das manifestações, o da “minoria
de vândalos infiltrados” nas frases feitas dos grandes veículos jornalísticos. Escolhemos
o problema como resposta para o seguinte dilema jornalístico: como transformar uma
experiência incontrolável no esforço de uma narrativa coerente e clara?
Começamos a responder esse dilema nas ruas desde a primeira manifestação e
continuávamos nos arriscando, agora com mais foco. No entanto, persistia a questão.
Como transformar isso em narrativa (mesmo que não necessariamente coerente e
clara)?
A opção de lançar pequenos vídeos com o mínimo de edição, apenas como evidências
da repressão, foi defendida por mim. Mas geralmente estávamos muito cansados na
hora que deveríamos fazer isso e nos debatíamos sobre em que elas contribuiriam, já
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que a rede já estava cheia de vários destes pequenos vídeos, além de relatos pessoas,
fotos etc. O Yargo então começou a dizer que tínhamos que contar a história
completa, compor minimamente um retrato – seria nosso papel nessa história.
Depois da quarta e última grande manifestação de junho na cidade, no dia do segundo
jogo da Copa das Confederações em Fortaleza (a semifinal entre Itália e Espanha), já
sabíamos o que filmar, o senso para buscar os entrevistados estava mais apurado.
Estávamos também mais resistentes ao gás lacrimogêneo.
Na Avenida de Dedé Brasil, outra das vias de acesso ao Castelão, o confronto se
estendeu do final da manhã até quase o por do sol. Os manifestantes incendiaram o
carro de uma emissora de TV. Um ônibus que errou o caminho para o estádio teve
todas as suas janelas quebradas. A cavalaria foi enxotada a pedras. E a chuva de gás de
bala continuou até que a tropa nos encurralou. Fui detido com um estudante que fazia
parte da nossa equipe e com umas três dezenas de outros manifestantes. Escapamos,
eu e o estudante, porque a presidente do Sindicato dos Jornalistas do Ceará passou
exatamente no momento. Os outros seguiram para a delegacia e foram sendo
libertados aos poucos até o final da noite.
A revolta nos fez colocar nas redes sociais, ainda naquele dia, alguns vídeos curtos,
fotos e pequenos trechos de entrevistas. No dia seguinte, sem a perspectiva de novas
grandes manifestações da cidade (a Copa das Confederações havia ido embora),
começamos a trabalhar no filme. O Yargo editou em duas semanas um documentário
longa-metragem com nossas imagens e a de outros parceiros. Discutimos
coletivamente o off e decidimos narrar apenas as linhas gerais, um fio mínimo do que
tínhamos vivido naqueles dias. Colocamos o nome de Com Vandalismo e lançamos no
dia 13 de julho, no bar de nossos amigos, com mais espectadores que lugares
disponíveis. No mesmo dia, duas ocupações se iniciaram na cidade – e uma se
estendeu por quase três meses. Continuamos filmando.
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