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A QUEM INTERESSAR POSSA: BREVE ELOGIO À FORMAÇÃO REBELDE
Eder Amaral e Silva∗
RE-SUMO
Este texto é fruto de um exercício de amizade. Escrever na métrica justa do excesso que só o
encontro entre amigos permite, eis sua condição de aparecimento. Enredar elos leves e
produtivos entre os muitos intercessores que permeiam a experiência cotidiana, solo de onde
se extrai cada elemento aqui manifesto po(((i)))eticamente. Pensar em desvio, pelo desvio
alterar o pensamento. E cada linha trepidando no movimento das práticas do nosso agora.
Leiam, e se reverberar, ativem!
Palavras-chave: são aquelas capazes de abrir fendas no firmamento.
____________________________________
Misturo coisas quando falo, não desconheço esses desvios, são
as palavras que me empurram, mas estou lúcido, (...) sei onde
me contradigo, piso quem sabe em falso, pode até parecer que
exorbito, e se há farelo nisso tudo, posso assegurar, (...) tem
também aí muito grão inteiro. Mesmo confundindo, nunca me
perco, distingo pro meu uso os fios do que estou dizendo.1
Dedicado ao irruptor de menores Valter A. Rodrigues
♠
De algum lugar surge a voz sisuda que nos pede para sermos objetivos. Atendendo ao
conclame, sejamos: nosso objetivo com este texto é trazer para a escrita as marcas de uma
experiência de formação acadêmica, neste exato momento (vide data) ainda em curso, mais
especificamente numa instituição privada, mais especificamente ainda de graduação, e neste
caso, em psicologia. O que justifica sua produção é um desejo – e isso já vai complicando
nossa situação... – de fazer dessa experiência algo que possa sair da repetição do mesmo, e
que na passagem de uma coisa à outra, aconteça aquilo que sustenta as expectativas
alimentadas desde o ingresso na universidade, isto é, o encontro com as condições para
∗
Estudante de graduação em psicologia na Faculdade de Tecnologia e Ciências (campus Vitória da ConquistaBA). Participa do coletivo USINA - estudos e práticas micropolíticas. Endereço para correspondência: Rua
Livramento, 865 – Patagônia. Vitória da Conquista, Bahia - CEP 45065-110. e-mail: [email protected] .
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Raduan Nassar. Lavoura Arcaica. Companhia da Letras, 1989. p. 163.
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pensaragir (verbo pouco utilizado nos recintos educacionais, mas que significa justamente o
que pensaste ao ler separado o que era pra ser junto). E aí sentimos a necessidade de começar
pelo que fazemos dia após dia, lendo com garantias os textos e livros exigidos, saboreando o
mergulho arriscado nos escritos clandestinos que atrapalham o cumprimento dos prazos,
correndo para evitar os freqüentes atrasos para chegar à faculdade, assistindo às aulas com
interesse gravemente oscilante, voltando para casa com as impressões, dúvidas, anotações e
confusas convicções de que algo se passa além do alcance corriqueiro. A sensação é um tanto
estranha, surge como se a cabeça pesasse mais do que suporta o pescoço, e o epíteto de
“cabeção” acaba por fazer justiça à triste figura, forjada com laboriosa disciplina:
encadernados, teorias mil, fichamentos, resumos, resenhas, relatórios, trabalhos, provas e
mais provas vão pesando como chumbo, e o resto do corpo não poderia ficar indiferente: a
postura se transforma na manifestação mais evidente do excesso de carga, o que nos faz
lembrar do animal carregador de fardos desenhado por Nietzsche em seu Zaratustra2. Da
simplicidade que figura no dito anterior espocam ambições as mais insólitas: não se suporta
bem a situação em que nos encontramos, mas ela persiste. Seria necessário re-suscitar a
dúvida russa: que fazer?
Não, não... Que fique a dúvida sem o rótulo. Não vamos precipitar tudo e localizar este
texto no velho front bolchevique. É preciso um tom mais sutil para conseguir sair do
estereótipo, mudar de direção sem perder o sentido. Alquimicamente, o querer “formar-se”
vai criando uma liga da qual o escudo protetor da “profissão” e a espada afiada da crítica
dificilmente equipam o mesmo corpo, mas em todo caso é composta, nos dois instrumentos,
por maior ou menor quantidade de quilates e cifrões. Por aqui não, melhor não esbarrar tanto
em barroquismos (mas que se mantenham as provocações).
O que vem nessa pequena epístola ou mani(((n)))festo quer ser mais simples. É que o
exercício da escrita não se faz sem simular, no sentido de experimentar os territórios possíveis
para dar língua ao sentimento vivido, ao pensamento acionado. Talvez por isso nomear este
tecido de ensaio seja a melhor saída, mas ainda assim, provisória. Passemos adiante!
♣
2
Friedrich W. Nietzsche. Assim Falava Zaratustra. Trad. Mário Ferreira dos Santos. Vozes, 2007.
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Diz-se que a academia é um lugar sério. Não sei bem o que se quer dizer com isso. Na
academia recomendam-se boas maneiras, como evitar o uso da primeira pessoa do singular, e
o ouvido caleja de saber a justificativa nas aulas de metodologia científica. Mas o lugar é
povoado por um estranho culto ao EU. Eu-autor, eu-pesquisador, eu-professor, eu-aluno...
Subjugado, o verbo não se conjuga coletivo, e acima de tudo a assinatura de quem pensa, diz,
escreve e faz tende a dar valor em si mesma à empreitada (mais-valia “ex-cátedra”
contabilizada em plataformas). O pensado, o dito, o escrito e o feito só precisam ser
form/atados e submetidos à respectiva norma técnica. Não obstante, a maior solicitação é a de
que sejamos criativos, originais, inovadores, o que só é possível se fugirmos a este exercício
repetitivo. Como no duplo impasse (double bind) batesoniano, aqui não se pode vencer, pois
“a mão que afaga é a mesma que apedreja”3. Assediado por estas capturas e muito confuso, o
estudante encontra à sua frente o cordão tecnocrata que amarra o discurso da competência
científica/profissional (“universidade é lugar para se especializar e/ou se preparar para um
emprego”) e umas poucas linhas de fuga espalhadas, as quais têm a potência de formar redes
tanto de vida como de morte na experiência institucional. O que vai enredar cada corpo na
universidade é a capacidade de tessitura de seu próprio território, quer estejamos falando de
um aluno apenas ou de um coletivo engendrado nos encontros possíveis neste espaço. Vício e
virtude não existem fora do entre.
♥
Há quem pense – e não sou poucos, se pensam – ser exagero dizer que tudo está
prenhe de política. Isso seria, vejamos, “politicismo”. A temperança e o bom senso pedem
moderação para alcançarmos algum conhecimento da realidade. Mas essa senhora nos cobra
todos os dias dezenas de extermínios planejados pelo Estado nas periferias, e o vidro elétrico
que sobe indiferente no sinal não pode mesmo ter algo a ver com política... Realmente, talvez
seja exagero pensar assim, não?
O cotidiano transborda em políticas. E eu bem sei que com essa frase bonita não se
descobre a pólvora. É o que se diz: “todo mundo sabe disso”! Então, o que falta acontecer
para que as coisas aconteçam? Todos os dias, a violência arromba a tranqüilidade dos portões
3
Augusto dos Anjos. Versos Íntimos. Eu e outras poesias. Bertrand Brasil, 2004.
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das universidades, que já passam da hora de aprender a ouvir (e falar) as linguagens das ruas,
povoando-as, contribuindo efetivamente para sua produção. Se o lugar do pensamento crítico
e da transformação coincide pouco com o espaço das “academias”, é que estamos diante de
um sintoma do sufocamento daquilo que extrapola o tecnici[ni]smo das instituições de ensino,
que ultrapassa as disciplinas, que extravasa o saber/poder do Estado e do Capital. Desviar se
torna assim uma questão de sobrevivência.
Mais do que inventar outra palavra que aproxime os relutantes, talvez seja preciso reinventar as práticas, experimentar outros modos de fazer. Não há o que garanta sucesso à
tentativa. E isso é mais um incentivo que um obstáculo. Bingo, camaradas! Começamos a
criar possibilidades para a ética.
♦
Aqui preciso livrar a cara d’uns professores, ao menos de parte deles. Eles não têm a
menor responsabilidade pelo que resulta neste incendiário e pretensioso conjunto de
desaforismos. Se houver leitor que busque causa para as torções da boa-forma acadêmica ou
científica, por favor, que não pense maldades dos que lecionaram nesse trajeto. É melhor ir
direto às fontes: meia culpa, como brincamos, é do desejo inquieto que habita a vida deste que
escreve. A outra metade está pulverizada entre os muitos que me compõem. De Guattari a
Chico Science, de Clarice a Sebastião Salgado, de Galeano ao estranho embriagado da outra
mesa, vertente das enunciações mais geniais entre um copo e outro... E não há ordem que os
hierarquize. No percurso da formação, tudo é fragmentário e instável, mas nem por isso há
falta ou incompletude. No entusiasmo do encontro com um novo pensamento, com a
inquietação gerada por falas inesperadas, na quase inevitável raiva provocada pela
impossibilidade de discutir, já alertada em certos Diálogos, nada forma um sistema ou corpo
coerente, unitário. É muito mais um mosaico, um caleidoscópio, um rizoma isso a que
chamamos formação. Se é o desejo que a move, ela volta e meia muda de direção antes que
tenhamos tempo de concluir algo que até a pouco era a razão de tudo. “O desejo circula”, diz
uma amiga. Modificando seu dito sem perder sua força, diria que o desejo perambula, é
flâneur nas ruas do corpo e do pensamento. Corre solto pela cidade que nos povoa, sem o
menor compromisso, sem a menor dívida moral, funcional ou lógica. Desejo é fruição, e
quando nós, universitários-bem-comportados aprendemos a vivê-lo enquanto tal, em sua
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intensidade, é a vereda da ética no estudar que começa a se abrir. Se será largo ou estreito este
caminho, só depende da força do corpo e do corte do facão.
A malícia de certo leitor o leva a indagar se essa história de desejo não é um vale tudo
ou um nada vale “niilista”... Hobbes reencarna por todos os lados. O mais difícil é lidar com o
Estado-em-nós que pensa ser tudo desgraça em sua ausência. O lugar do desejo nessa história
é um tanto mais interessante que o simples “vale tudo” oportunista ou o nada vale
choramingoso. Não estamos num tempo em que explicações resolvem o problema. De fato,
esse tempo nunca houve. A ação e o pensamento não precisam de salvo-conduto. O que vier a
reboque que se ajeite no andar da carrocinha desejante, condutora cavilosa do texto.
♠
Outro dia, lendo O homem sem qualidades, livro que não sei se terei tempo de ler
todo, achei venturosamente à trigésima quarta um dito encantador, epígrafe certa das muitas
desforras que ainda investirei brincando com os austeros afeitos a cobrar senso de realidade.
Fugindo à promessa secreta de não colar citações, faço o convite à Musil e a quem tem o
desacerto de ler este texto para pensarmos juntos:
(...) se existe senso de realidade, e ninguém duvida que ele tenha justificada
existência, tem de haver também algo que se pode chamar senso de possibilidade.
Quem o possui não diz, por exemplo: aqui aconteceu, vai acontecer, tem de
acontecer isto ou aquilo; mas inventa: aqui poderia, deveria ou teria de acontecer
isto ou aquilo; e se lhe explicarmos que uma coisa é como é, ele pensa: bem,
provavelmente também poderia ser de outro modo. Assim, o senso de possibilidade
pode ser definido como a capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser
e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é (grifo
nosso).4
Esta seção poderia ser maior, mas já basta. Assim como é preciso calar quando não há
o que dizer, também é melhor o silêncio quando o que precisa ser dito já foi. “Se sou confuso,
se evito ser mais claro, é que não quero criar mais confusão”, diz André, filho da Lavoura de
Nassar. No mais, é como fábula e piada: se explicar demais perde o encanto e a graça. Ser
total é paranóia. Eis minha ode à lacuna que pira o arrazoado!
4
Robert Musil. O homem sem qualidades. Nova Fronteira, 2006. p. 34.
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♣
Vamos aos atos: queremos pesquisar como quem busca a cor não vista; ensinar como
o artista em performance; aprender como discípulo de acordes novos... Conhecer como o
poeta, a vida. É preciso lembrar que as ciências são artifícios de verdades (e não instrumentos
da Verdade), para recuperar seu potencial de criação de outras sensibilidades: novos olhares,
novas escutas, novas falas... Façamos ecoar a voz de Glauber: “sem linguagem nova não há
realidade nova”. O que estamos a fazer repetindo os manuais, cultuando os métodos,
arrotando saberes de ontem, enquanto a vida e a morte acontecem à revelia da impostura
acadêmica? Quando o saber se torna mercadoria, é preciso dizer que a ciência nunca foi senão
arte. Quando falar “educadamente” se faz inócuo, é preciso não esquecer que sabemos cantar.
“Por uma vida menos ordinária que pintamos o chão”5. É hora de se apropriar do expediente
do poeta. Talvez assim tenhamos condições de inventar outra história para o lugar em que
atuamos, qualquer que seja.
♥
Sim, tens razão, este texto não tem a menor importância. Não é útil, nem rigoroso,
nem equilibrado, nem científico, nem poético, nem filosófico, nem. Se assumir facetas de
qualquer destas formas, será mais pelo que lê que por quem escreve, e não menos por
acidente.
Às vezes é preciso romper com o pretendido para que ele aconteça. De algum modo,
vou jogando meus naipes por aí. Só é possível dizer algo que valha a pena se te permites
também ouvir pelo ouvir, ver pelo ver, escrever pelo escrever, sem a gravidade dos
teleologismos. Assim e entretanto, já não tendo importância o escrito, posso dizer, roubando
composições de Sandra e Tomaz, que o risco de não mais pensarmos o que aos modos do
tecnocrata se faz irrelevante é o de começarmos a condescender aos ditames de um currículoAssentado, asséptico, assassino da vida estudante, pesquisante, desejante. Por isso é que
elogio a vagamundagem do currículo, ensinada por bruxas arteiras e selvagens de estirpe
sulina, mas também espalhada no sertão como erva daninha, trazida nas bagagens de ventura
5
Jorge dü Peixe. Onde Tenho Que Ir. Nação Zumbi. Fome de tudo. Deckdisc, 2007. Faixa 6.
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d’outros tantos loucos. Seu disfarce mais comum é o de professores, mas podem aparecer sob
qualquer forma, pouco importa qual seja. O que os qualifica na verdade é mais o movimento
que operam por onde passam, independente do nome que atribuímos às práticas que exercem.
Indício a mais da presença do encontrar como campo intensivo privilegiado, o cruzamento
com estas figuras singulariza o que o currículo-normose quer controlar, padronizar, vender:
“Você do lado de quem pensa, baby”6! Mas só do lado, por favor...
♦
Um esclarecimento importante: assim como os adequados sujeitos podem entortar,
quem contrapensa não é imune ao que combate. À espreita dos críticos severos, é justamente
por todas estas imposturas coabitarem nosso próprio modo de vida, se entranharem em
pensamento, discurso e prática, que temos o ímpeto de colocá-las em xeque. Do contrário,
talvez não instigassem qualquer atitude. É por prudência – e não por descuido – que me
implico no que faço, que preciso desejar, gostar, sentir raiva, arriscar a pele e as certezas
quando pratico isso de cienciar, estudança. Preciso fabricar minhas próprias questões para ter
algo que valha a pena ser dito – além dos roubos que faço aos amigos de percurso. Olhar
parcialmente não é escolha, é condição. Aos neutralizados, isolados, afastados, que dizer? Se
não podem nem querem sentir, que ao menos façam mover seus pára-digmas. “Achar,
encontrar, roubar, ao invés de regular, reconhecer e julgar. Pois reconhecer é o contrário do
encontro.”7 No mais, a Arte Bruta da Pesquisa é melhor que o Fino Trato do Saber-Acabado.
♠
O que é sábio no sábio é a postura, concluiu Brecht. Tenho escoliose e dificuldades
com a obediência. Logo, não sou lá mui versado em sabedorias. Acho até que por isso
prestam mais atenção ao meu sarcasmo que ao conteúdo do que digo. Numa historinha do sr.
Keuner, o que pensa, achei imagem para enfeitar um desaforo aos meus pares, estudantes,
colegas, alunos et cetera. Trata-se de um “exemplo de bom ensinamento”:
6
7
Slogan de uma rede de faculdades particular. O “baby” é por nossa conta.
Gilles Deleuze & Claire Parnet. Diálogos. Escuta, 1998. p. 16.
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O matemático D. contou à sua pequena sobrinha, que acreditava em anjos, que atrás
dela havia um anjo, mas quando ela olhava para trás, o anjo não estava lá, e também
não quando ele olhava. Ela olhou para trás várias vezes, e a cada vez seu tio
afirmava que o anjo estava sim atrás dela.8
Vi num instrutivo decálogo que “todos os inclames9 fazem as coisas, quando fazem
as coisas, exatamente como todos os outros inclames fazem as coisas.” Tem gente caindo de
tão tonta que está por rodar em torno de si procurando o que dizem estar sempre atrás
(nauseante a ausência de vírgula?). Esta é a sina da massa diplomada e graduanda-gradeada
que se acumula em cada parte. Não são poucos os anjos sodomitas que fantasmeiam às nossas
costas. Mercado, Currículo, Reputação, Histórico, Salvação, Moral, Punição, Recompensa,
Liberdade, Saúde... Longe de pretender julgar as crenças – antes varredor que juiz –, o mais
importante é que o engodo vendido pela goela do asceta bem-sucedido só acha comprador por
que desejamos, mais do que tememos (se é que isso ocorre), manter ligada a máquina de moer
vida que funciona sem parar por toda parte, desde que decidimos ser mais importante garantir
qualquer migalha de pão mofado a arriscar o fracasso possível de tentar fazer massa nova. E
aos que ameaçam dizer que “isso não dá em nada” ou que “também já foram assim”, que
estão cansados de falar, atenção, só transmito a recomendação do Dr. Nietzsche para a saúde
de todos: “engolir as coisas produz necessariamente mau caráter – estraga inclusive o
estômago.”10 Panifiquei esta imagem para aludir ao quão cotidiano é o conformismo da
média. Mas também para desencantar o exercício de desvio, de (((trans)))formação, invenção
de realidades. Desmistificar as práticas que deslocam as coisas de lugar, para que o ato de
criar territórios outros para a existência esteja presente a cada gesto, pensamento, fala,
percepção, encontro. Não é por nenhuma ordem que certas idéias se compõem com certos
corpos. Foi bem por acaso que aprendi a pensar de outras maneiras. Mas é preciso estar atento
para acompanhar o acaso, para pegar o acontecimento, viver com o caos11. Talvez se o tempo
e a energia dissipados em procurar/estabelecer a ordem ou a razão das coisas fossem
8
Bertolt Brecht. Histórias do Sr. Keuner. Trad. Paulo César de Souza. Ed. 34, 2006. p.115.
Inclame: indivíduo de classe média, segundo a terminologia estabelecida pelo preciso zoopatologista social e
ex-poeta Sebastião Nunes. Para ter uma dimensão detalhada de sua classificação, bem como dos demais
conceitos e argumentos revolucionários do autor a este respeito, ver seu Decálogo da Classe Média, Edições
Dubolso, 1998.
10
Friedrich Nietzsche. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. Cia. das Letras, 2008. p. 27.
11
Isso remete à aula do filósofo Cláudio Ulpiano (1932-1999), intitulada ENKRATEIA - Estética da Existência
(22/08/1995). A transcrição desta aula e de muitas outras, além de gravações em áudio e textos de Ulpiano
podem ser acessados no site do Centro de Estudos que leva seu nome: www.claudioulpiano.org.br .
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dedicados ao aprendizado intenso de lidar com o impensado, o imprevisível, o inclassificável,
o intempestivo, enfim, o que extravasa o já sabido, talvez assim a impotência diante do
inaceitável fosse exceção à regra.
♣
Ao início do texto a vontade era de armá-lo com citações as mais seletas. Mas tudo
flui melhor quando se aprende a canibalizar as leituras. Aí a citação é quase dispensável, ela
já está lá, incorporada à própria escrita, já com a marca do encontro, da diferença entre o
escrito e o lido. Aqui não há pretensão de posse das idéias. Pensamento que tem dono é idéia
morta. Original é a relação. “Fundamental é mesmo o amor” no que se faz, “e é impossível ser
feliz sozinho”12. Abaixo, seguem os intercessores que estão registrados em algum tipo de
suporte impresso ou digital. Por mais que a lista fosse maior, ainda seria pequena, na medida
em que só contempla parte dos bons – e maus, por que não? – encontros que fizeram surgir
este texto. Como não dá para fazer o Livrão da vida caber na ABNT, fiz este parágrafo para
marcar sua presença. Porque é na hora suada, barulhenta, bagunçada, hora-pão-com-manteiga
– hora viva – que acontece aquilo que faz explodir a arte de fazer a existência valer mais, por
já não precisar valer nada além do próprio existir. Que alguém já tenha dito algo escrito nestas
páginas, tanto melhor, tanto faz. Mais que a origem dos enunciados, o que importa é saber se
a leitura deste breviário de invencionices fez passar seu fluxo e afetar o corpo que encontrou
suas enunciações, que como desde a primeira linha avisei, são produtos da amizade, e por
isso, coletivas.
Por ordem de aparecimento no texto, menciono aqui apenas o que não tive
oportunidade ou capacidade de citar no devido espaço, nas notas de rodapé ou no próprio
texto. Espero que este breve esforço sirva mais como lista de malfeitores a procurar quando
preciso que como índex de julgamento dogmático.
Quando falo em duplo impasse (double bind), conceito do antropólogo inglês
Gregory Bateson, o faço a partir da leitura de Gilles Deleuze e Felix Guattari em O AntiÉdipo (edição portuguesa, Assírio & Alvim, 2004), que o empregam para além da posição de
fator esquizofrenizante, tornando-se mesmo situação corriqueira de edipianização – diga-se,
12
Tom Jobim. Wave. Wave. CTI-A&M Records, 1967. Faixa 1.
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10
curta e grossamente, de mediocrização – processo intrínseco à sociedade capitalista (p. 83).
Na tradução portuguesa do livro de Deleuze e Guattari, double bind é traduzido por “duplo
impasse”, diferente da tradução mais comum no Brasil (duplo vínculo). Optei pela tradução
portuguesa por ser mais explícita quanto ao sentido em que uso o conceito. Forma ainda mais
clara pode ser encontrada no livro A invenção da psicologia social (Editora Vozes), de
Rosane Azevedo Neves da Silva. Neste trabalho, para avaliar o problema das relações entre o
social e o individual, ela sugere o termo “dupla captura” como desdobramento do conceito de
Bateson.
Os Diálogos que menciono são os de Claire Parnet e Gilles Deleuze, que foram
publicados sob este mesmo título pela editora Escuta. De suas Conversações (Editora 34)
aludo à “Carta a um crítico severo”, endereçada, como este meu pequeno bricolage, a quem
interessar. Ainda da caixa de ferramentas do Sr. D. e seu parceiro G. puxo um ramo do
rizoma, que pode ser encontrado pelas tramas dos Mil Platôs (Ed. 34), partindo do volume 1,
que não é o começo de nada: só meio, entre só, mas nunca só um.
O contágio implacável da educ[ri]ação infernal de Sandra Corazza, Tomaz Tadeu,
Paola Zordan e outras más companhias me fizeram padecer de Grande Saúde, a ponto de
querer também invencionices crianceirando pelo texto. Aos desejosos por uma educação antifascista, por favor, três passos: 1) Por uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche,
Deleuze e outros malditos afins; 2) Composições; 3) Linhas de Escrita (todos pela Editora
Autêntica).
Aqui amarro um ponto das linhas que carrego comigo. Mas não dou nó-cego, que
gosto mais é de desatar. Pra cada tempo existe um jeito de marcar no corpo o que nos
compõe: um coração de caneta, uma tatuagem, um broche, uma cicatriz de traquinagem, uma
estampa, um panfleto... assim também é na escrita, ato de fazer a letra dançar. Já foi divertido
fazê-lo, deixá-lo passar – nenhuma escrita é pessoal. Que ele encontre outros simul’autores e
prolifere!
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