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Carta com Guimarães Rosa
Conrado Augusto Gandara Federici1
Resumo
Carta com Guimarães Rosa foi um exercício poético feito a alunos de cursos de nível
superior da área da saúde e a todos os que se dedicam à narrativa de vida.
Há contemporaneamente o genuíno desejo de humanizar o trabalho em saúde, tão
distanciada que foi da vida, ela própria.
A tarefa pedagógica concreta mostra-se complexa, uma vez que as gerações atuais
em formação universitária nasceram e cresceram com os distanciamentos e velocidades das
novas tecnologias de comunicação. Colocar-se diante do outro desconhecido e ouvi-lo de
fato não é fácil e exige esforços inabituais, como uma carta, de aproximação entre
humanos.
As vozes, de Guimarães Rosa e minha, misturam-se no estilo e nos excertos do
clássico Grande Sertão: veredas.
Propor as ideias da arte literária sobre o recurso da narrativa de vida e compor-se
em simetria possível são os desejos maiores desta carta simples. Com cuidado, pois viver é
perigoso.
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Doutor e mestre em Educação na área de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte
pela UNICAMP - e graduado em Licenciatura em Educação Física pela mesma
Universidade. Músico e palhaço. Professor adjunto na Universidade Federal de São Paulo Campus Baixada Santista. E-mail: [email protected]
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Santos Mares, verão de 2012
Bons dias compadre meu, quanto tempo passou? Já nem não lembro
dos últimos escritos nossos. Desta vez, inventei foi de agarrar a máquina
mesmo, não é a mesma coisa, eu lá sei. Posso errar, consertar, arrepender,
tornar para o perfeito e o senhor nem de longe me soube.
Peço a licença e a paciência da vossa parte, desaprendemos um bocado
com o tempo que agora voa. A leitura anda é de pé descalço no chão sujo e
no escuro, devagar e cuidando de não ferir. A modo de fisgar de novo a gente
um com o outro, vamos ter de falar é alto mesmo, para se ouvir certo a voz,
para eu olhar a vossa boca mexer, com todo o respeito, e sentir o gosto da
palavra cozinhada e mastigada.
O que o senhor me conta desta vez? Sempre me futrico de saber o que
passa por aí. Se bem me arrecordo, o senhor andava se dobrando na lida com
a saúde dos outros e a vossa mesmo, ouvindo as pessoas e escrevendo o que a
memória deixasse. Entendo nada não. Tenho calor pra mexer nisso, saber
como faz para fazer bem, pois A lembrança da vida da gente se guarda em trechos
diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não
misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada
vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como
se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O
senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do
que outras, de recente data. O senhor mesmo sabe .i
Destas bandas, trago que no verão me sentei com um tal de Seu João,
vindo lá de Cordisburgo, das Gerais. Homem médico antigo, muito do letrado
e tudo, diz-se que fala até outras várias línguas de maior enrolamento. Nem
não sei, desconfio até desta uma que arrabiscamos. Acho até que peguei foi
um bocado do jeito dele no falar, sem propósito e nem querência medida.
Sendo isto. Ao dôido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como
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papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes
conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do
sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas
raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua
fineza de atenção.ii Depois de alguma brecha do nosso proseamento, já nem sabia
se era eu que falava ou o tal. A confusão tornou alegria.
Os trechos todos acho que nem não misturam, quem é quem, o que é o
que. Os outros de fora é que quiseram peneirar tudo pra poder guardar em
caixas e botá nome e olhar de perto, fechado. Era de medo. Desperdício de
vida. Para entender? Para ter mais pertença ainda e segurar sozinho? Na
cabeça vai é o chapéu, que segura o sol que vem por cima, e as ideias boas,
para não escapulir rápido demais, pois sobem forte é do coração. Quando é
que elas vão poder chegar todinhas na pele sem medo, sem despedaçar?
Quando forem corpo todinho?
Ah, as nossas miudezas, minhas e do tal homem, nem sei mais quais
foram as inventadas, as sucedidas de fato e as que atinamos de arrancar do
nada mesmo. Deixa disso, só não prefiro as copiadas. Também, Para que referir
tudo no narrar, por menos e menor? Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum,
sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê. Mesmo o que estou contando,
depois é que eu pude reunir relembrado e verdadeiramente entendido – porque, enquanto
coisa assim se ata, a gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do
que o que: o real roda e põe diante. – “Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo,
são as horas de todos” – me explicou o compadre meu Quelemém.iii Seu João dizia era
difícil demais, porque era verdade demais. Pelejei a deixar meter para dentro
em paz.
Digo que esse tal me assustou, contou coisas que eram minhas, lá do
sertão imenso que eu nem nunca fui no agora. Arrepiei todo feito onça e
fiquei assim, gostando sem saber. Isso é que são as horas da gente? Posso me
deixar, se o senhor me permitir? Queria mesmo é me deixar junto com os
outros todos. Preferia nem saber pensar a palavra os "outros".
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Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é
que a velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja: sabe por
que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa memória. A
luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu, lembro de tudo. Teve grandes
ocasiões em que eu não podia proceder mal, ainda que quisesse. Por quê? Deus vem, guia a
gente por uma légua, depois larga. Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de
cabeça-para-baixo, ninguém pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim,
conto para o senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.iv, pois eu conto
mesmo é para viver. Importa irmos juntos, pelo menos um pedaço.
Essas coisas todas se passaram tempos depois. Talhei de avanço, em minha história. O
senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de
fora, quase. Não sei contar direito. Aprendi um pouco foi com o compadre meu Quelemém;
mas ele quer saber tudo diverso: quer não é o caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outracoisa. Agora, neste dia nosso, com o senhor mesmo – me escutando com devoção assim – é
que aos poucos vou indo aprendendo a contar corrigido. E para o dito volto.v Enquanto o
Seu Guimarães proseava, parece que eu ia junto. O que é que é essa coisa? De
que um conta e o outro vai ouvindo, vai ouvindo? Deixando o tempo se
achegar e se ajuntar na conversa nossa? Quando fui atinar, o retrato estava era
pintado na minha cabeça de gente, com a tinta que eu nem mais alembrava é
de ter escondido. Viver é perigoso, ele repetia.
De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos;
servia para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí,
então, careço de que o senhor escute bem essas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunço.
Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço
Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – porque não sou, não quero ser. Deus esteja! vi Esse
fato aí. A história desse cabra é de um jeito tanto que só aí vale viver com
saúde. Eu é que queria poder ter vida cheia assim. Foi o Seu João que disse
bonito bem para lá de demais.
Mas, para mim, o que vale é o que está por baixo ou por cima – o que parece longe e
está perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não
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sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba.vii
Foi isso, me encontrei com esse homem, o Seu João Guimarães, que até boa
fama já tinha pela região, mas que a honra da prosa ainda não tinha me
encontrado. Esse sim me contou das coisas que ele não sabia só para me
testar, o safado. Clareou tudo de cara, quando veio com a história da
jagunçaiada, que nem sei se existe mesmo. Ele dizia que falava das minhas
terras, para mim. O senhor que me perdoe a ignorância de minha parte, mas lá
já isso foi espiado em algum canto, o outro dizer das suas coisas como um
conhecimento passado atravessado? Só se fosse um espelho de gente sem
data.
Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que
há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de
necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da
gente – o que produz os ventos.viii
O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a
gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda
no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por
coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.ix Eu mais é escutava do
que outra coisa, digo de honesto para o senhor. Andei todo o tempo cabreiro,
achando a esquisitice de ouvir as minhas histórias da boca de um outro
homem, com todo o respeito. E digo ainda mais, ele parece é que misturava as
ideias e o tempo e embrulhava os acontecidos das gentes todas, como se fosse
passar um café. Restava era só uma água, quente e escura e cheirosa, que só
bebendo mesmo pelos ouvidos, sem muito pensar. Nem que não gostasse,
nem que o quente de pelar o interno assustasse os pensamentos mais
costumeiros. O que o medo é: um produzido dentro da gente, um depositado; e que às
horas se mexe, sacoleja, a gente pensa que é por causas: por isto ou por aquilo, coisas que só
estão é fornecendo espelho. A vida é para esse sarro de medo se destruir; jagunço sabe. Outros
contam de outra maneira.x Acreditei bem nestas histórias que me contou. Até
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compreendi um pouco dos casos de melhorar a saúde e estas coisas. Outros
contam bem mais sisudo, enfeiando até.
Se o senhor não achar ruim, já vou me terminando por aqui. Não canso
à espera da próxima notícia, sabendo que vai me animar, como o senhor faz
de acostumado. Nem percebi bem da prosa que gastamos, mas eu queria
mesmo é contar daquele Seu João, João Guimarães Rosa é o homem, explica
bonito por demais dos assuntos, muito distinto senhor, da vida. Parece que A
vida inventa! A gente principia as coisas, no não saber por que, e desde aí perde o poder de
continuação – porque a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada.xi O senhor
me perdoe se caí juntando demais um pouco as letras todas, foi por gosto
sincero, eu lhe garanto.
Uma saudosa lembrança de seu amigo sempre.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2006.
páginas:
i 98, 99
ii 100
iii 138, 139
iv 144, 145
v 198
vi 216
vii 229
viii 311
ix 318
x 366
xi 461
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