Curso de Sustentabilidade em Projetos Culturais.
Transversalidades da Cultura e Gestão de Projetos Culturais:
Articulações e Possibilidades.1
Diogo Reyes da Costa Silva. 2
Introdução:
O presente texto se concentra na característica transversal da cultura.
Suas múltiplas conexões como o mundo em que vivemos. E a partir desse
elemento, refletir em como pode ser traduzida em possibilidades fortalecedoras
do trabalho de gestão de projetos culturais.
A cultura é um elemento de tal forma essencial na vida humana, que e
atravessa e dá sentido a todas as nossas ações e modos de vida. Dessa forma
1
- Texto elaborado como material didático de apoio para o módulo VI do curso Sustentabilidade
em Projetos Culturais: Criação e Dinamização de Redes e Mobilização de Recursos para a
Cultura.
2
- Gestor de projetos culturais no Instituto Cultural Casa Via Magia. Sociólogo, especialista em
sociologias cultural, da educação e urbana. Doutorando em Sociologia pela Universidade
Federal da Bahia e Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
se relacionando com todos os outros aspectos da nossa vida humana em
sociedade.
Essas idéias, em conjunto com constatações concretas, levam a
conclusão que intervenções e projetos que envolvam a sociedade, é
necessário (ou pelo menos benéfico) levar em conta o fator cultural. Ou seja,
nenhuma ação ou projeto que tenham uma perspectiva de ganho coletivo pode
se dar de forma satisfatória sem levar a cultura em conta. E hoje em dia essa
idéia se encontrar cada vez mais difundida, uma vez que essa característica se
encontra, em nosso momento histórico, mais delineada e reconhecida, como
aponta Stuart Hall ao destacar ascensão da noção da centralidade da cultura
para a vida humana. Baseando inclusive direitos e reparações balizadas por
esse aspecto, como as políticas de resistência de culturas tradicionais, ou de
direito de reparação para culturas espoliadas historicamente, entre outras.
Com aponta a estudiosa Clélia Côrtes, a cultura hoje em dia é tema
transversal de muitas políticas públicas, ocupando um lugar de orientação e
definição. Dessa forma, ao pensarmos na mobilização de recursos para
projetos culturais, a idéia é propor uma inversão, um tanto malandra, mais
ainda assim honesta, de partir da cultura como ponto construtor dessas
intervenções. Admitir que o fator humano é importante e pode ser o fio
condutor de iniciativas que a princípio seriam guiadas por campos variados,
como ecologia, trabalho e outros.
Cultura: Centralidade e Transversalidade.
Ao pensarmos na relação entre cultura e sociedade. Podemos apontar
que, muitos autores consistentes apontam não só que a cultura é um elemento
fundamental para humanidade, mas também que sua centralidade vem se
evidenciando no momento histórico atual.
Um marco nesse sentido é a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
em 1948 pela ONU. Que, apesar de desrespeitada em muitas situações,
conjuga os “direitos econômicos, sociais e culturais” enquanto um discurso
legítimo. A referida declaração ressalta também “o direito a participar
livremente da vida cultural da comunidade, de fluir as artes e de participar do
processo cientifico e de seus benefícios” e a “ter acesso aos serviços públicos”.
Transversalidade e diversidade: Essa centralidade implica também em uma
difusão, na diversidade cultural, múltipla, “infinita” como são os modos e visões
de vida. E também significa que as culturas atravessam e influenciam
praticamente todos os aspectos da vida humana. Por isso trabalhar com cultura
possibilita uma diversidade quase infinita de possibilidades de atuação, em
encontro com diversos elementos e com metodologias diversas.
Nesse sentido, é fortalecedor da atuação, da proposta e do discurso de
um projeto é também encarar a cultura como um recurso, como uma
potencialidade e uma riqueza. Fonte de desenvolvimento em diversos
aspectos.
Interdisciplinaridade e transversalidades.
Essa transversalidade, quando vamos para as formas de conhecimento,
se traduz em interdisciplinaridade com as várias correntes. Ou seja, mesmo em
áreas como Economia, Agronomia e Biologia, existem questões que não
podem ser entendidas sem levar a cultura em conta. Isso possibilita a troca dos
projetos com outras áreas do conhecimento que não a antropologia e a
comunicação, que são mais tradicionais nesse sentido.
Assim, a seguir temos algumas transversalidades interessantes no
sentido de conquistarmos a sustentabilidade de projetos culturais. Sem dúvida
essas transversalidades são vastas demais para caber nesse pequeno artigo,
mas temos a seguir alguns exemplos. Outra coisa interessante a apontar é que
elas também acabam sendo transversais entre si, sendo através da cultura ou
não.
Atividades produtivas: Ao contrário do que se poderia supor por uma
visão racionalista do capitalismo, que buscaria a “melhor” forma de produzir, a
cultura também está presente nesse aspecto da sociedade. Nossas atividades
produtivas são sempre dotadas de significâncias, de alteridades, e marcadas
pela forma como encaramos o mundo e a vida. Nas atividades vinculadas a
modos de vida tradicional isso aparece mais claramente. Mas mesmo nas
atividades mais “modernas” e vinculadas a era da globalização isso também
acontece, vinculando-as a cultura global.
Hamilton Faria e outros autores destacam, ainda, a importância da cultura
como fator de desenvolvimento e como resultado da ação dos grupos e
movimentos sociais. Assim ela é a alavancadora do processo social,
fomentando a discussão e integração das partes, dando consciência a um
cenário mais amplo. Para ele, o desenvolvimento local vai de encontro aos
valores de pensar, criar, agir, imaginar e sonhar a liberdade.
Em realidade, muitas correntes da economia já apontam como levar essa
questão em conta é muito proveitoso economicamente. Que mesmo em
produtos industrializados, por exemplo, pode ser muito interessante vincular
aspectos culturais menos “genéricos”.
Ainda, a ascensão dos direitos a diversidade cultural, tem também
fomentado políticas e iniciativas na direção de valorização da diversidade dos
modos
de
produção
e
conhecimentos.
Uma
dimensão
de
forte
transversalidade com a cultura.
Ecologia: Outra transversalidade muito em evidência atualmente é a da
cultura com as questões ambientais. Por um lado pela própria emergência da
segunda, mas também pela convenção de que a intervenção humana é a
principal questão a se tratar. Abarcando desde a tentativa de difusão de
culturas ecológicas modernas, até o retorno a culturas mais tradicionais e
menos predatórias. Algumas vezes passa pela intercessão entre esses dois
extremos, promovendo o encontro entre novos e antigos modos de vida.
Também pode se conectar com esses outros elementos, como a educação, as
atividades produtivas e pesquisa.
Educação: Talvez a transversalidade mais fácil de apontar seja da cultura
com a educação, o caráter social da educação, da sociabilização do ser
humano, conecta-a com a cultura de forma quase inseparável. Nós
internalizamos nossas culturas não apenas na interação social da “educação
informal”, mas também nos corredores da educação formal.
Dessa forma a educação pode interagir com os projetos culturais de
diversas maneiras. E sua vinculação com a difusão de conhecimento,
transformação social, empoderamento e produtividade fazem dela uma
transversalidade privilegiada do ponto de vista dos resultados e conquistas de
um projeto.
Atualmente temos muito a prática da educação como contrapartida, mas
também existe uma grande parcela de projetos onde a educação aparece
como protagonista. Tanto em situações onde a cultura seja um pano de fundo
para conhecimentos diversos, ou quando a formação se direciona para
aspectos estritamente culturais.
Pesquisa: Uma transversalidade que ainda é um pouco tímida, mas vem
crescendo muito no nosso país é a interação entre a cultura e a pesquisa, a
produção de conhecimento, seja técnico ou teórico. Sua restrição relativa pode
ser pensada pela própria restrição de profissionais atuando dessa forma no
Brasil (mas que vem aumentando). Por outro lado, a captação de recursos (que
muitas vezes pode ser indireto) nesse campo pode ser muito interessante, uma
vez que costuma fugir da intercessão com outras iniciativas da cultura.
Entendo que essa interação pode acontecer mesmo se os “cabeças” de
um projeto não se aventurem nesse tipo de atuação. Mas é razoavelmente
possível a atração de algum estudioso de alguma área que possa se interessar
e escrever um projeto de pesquisa com o objeto do seu projeto, ou mesmo
tendo o projeto com objeto. Considerando as muitas transversalidades,
podemos pensar em diversos profissionais e objetos de pesquisa, econômicos,
antropológicos, sociais, ecológicos, etc...
Tecnologia Social.
A idéia da tecnologia social é interessante nessa questão que estamos
abordando, é uma forma de elaborar técnicas que levam em conta elementos
sociais, como a cultura.
Essa idéia compreende produtos, técnicas ou
metodologias reaplicáveis desenvolvidas na interação com a comunidade e que
representem soluções as diversas demandas da sociedade. Remete para uma
proposta de desenvolvimento que considera a participação coletiva no
processo de organização, desenvolvimento e implementação. Está baseado na
disseminação de soluções para problemas voltados a diversas demandas,
como alimentação, educação, energia, habitação, renda, recursos hídricos,
saúde, meio ambiente, dentre outras.
As tecnologias sociais podem aliar saber popular, organização social e
conhecimento técnico-científico. Assim tem a possibilidade de conjugar
diversos fatores transversais a cultura, como educação, meio ambiente e
pesquisa. Ainda por cima atuando em questões relativas à produção e
desenvolvimento econômico. Ou seja, uma ferramenta de atuação que pode
agregar esses diversos elementos na sua atuação, difundindo seus efeitos.
Além de simples, reconhecido e atraente para se tratar com instituições
parceiras e financiadores.
Algumas vezes já trabalhamos com tecnologias sociais sem nos darmos
conta, ou valorizar determinadas técnicas como tal. Os modos de produção
tradicional, artesanais, familiares, agroecólogicos, bem como as técnicas de
interação
com
os
diversos
ambientes
naturais,
são
exemplos
de
conhecimentos que podem ser sistematizados para serem difundidos como
tecnologias sociais.
Instituições e financiamentos transversais.
Pensando na instrumentalização das idéias apresentadas, é interessante
trazer alguns exemplos de financiamento transversal possível para o trabalho
com a cultura. Sem dúvida, nem sempre os projetos se encaixam nessas
propostas e existem muitas outras que poder servir de exemplos.
Apesar
disso, apresentar alguns casos podem ser bastante ilustrativos e fomentar a
criatividade.
Temos, por exemplo, a Fundação Banco do Brasil, que se concentra
especialmente em tecnologias sociais, pensando a relação entre produtividade,
comunidade
e
desenvolvimento
local.
Permitindo
a
autogestão
e
o
envolvimento das comunidades, gerando aprendizagem constante e nova
cultura tecnológica, construindo processos participativos para a geração de
políticas públicas.
Boa parte dos programas e projetos da fundação interagem com as
transversalidades da ecologia (Fossas Sépticas Biodigestoras; Agroecologia,
cadeias da sociobiodiversidade), atividades produtivas (como as agroindústrias
e
cadeias
produtivas
da
mandiocultura,
apicultura,
cajuicultura,
ovinocaprinocutura, etc.) e da educação (programas de extensão e formação e
capacitação).
Outro exemplo de instituição que atualmente financia trabalhos de
transversalidades com a cultura é a Petrobrás Socioambiental, que segundo
seu website atua “em temas socioambientais relevantes para a Petrobras e
para o país, articulando iniciativas que contribuem para criar soluções e
oferecer alternativas com potencial transformador e em sinergia com políticas
públicas”.
Interessante apontar que esse programa foi anteriormente nomeado de
Petrobrás Ambiental, mas a necessidade da transversalidade com o fator
humano se pronunciou e foi adotada pela política do programa. Como apontam
em sua proposta
Ao revisarmos os projetos apoiados pelo programa podemos observar
que muitos deles apresentam transversalidades com a cultura e suas muitas
manifestações. Além disso, permite constatar também que muitos são
associados a questões culturais, sendo geridos por entidades dessa natureza
Essa coerência com os elementos emergentes nos discursos não é
coincidência, apontando a intenção em congruir com as tendências mundiais
nesse sentido. Novamente segundo site do programa:
“Alinhado com nossas normas e políticas
internas, o Programa Petrobras Socioambiental reflete
uma tendência mundial na área e foi criado com base
em diretrizes e princípios globais de Responsabilidade
Social e que apresentam a transversalidade em
relação ao desenvolvimento humano e sustentável
tais como o Pacto Global da Organização das Nações
Unidas (ONU) e a norma ISO 26000.”
Outro exemplo de financiamento transversal é o programa do governo
federal CONEXÃO CULTURA BRASIL – INTERCÂMBIOS. Este é um Edital
do MinC, via secretaria de economia criativa, que compreende a possibilidade
de financiamento para diversas finalidades, como ações, espetáculos, pesquisa
e empreendedorismo, entre outras. Abarcando desde uma perspectiva mais
micro, até outras mais globais. Tem uma tendência a virar programa
consolidado, em vez de editais avulsos.
E seu objetivo é descrito no edital como:
“O presente processo seletivo tem como objetivo
promover a difusão e o intercâmbio cultural nos campos
do patrimônio cultural (material, imaterial, arquivos e
museus), das expressões culturais (artesanato, culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, artes visuais e
digitais), das artes do espetáculo (dança, música, circo,
teatro), do audiovisual (cinema e vídeo), do livro, leitura
e literatura (publicações e mídias impressas) e das
criações
culturais
e
funcionais
(moda,
design,
arquitetura, gastronomia, games, novas mídias).”.
Conclusão:
Nesse
pequeno
trabalho
discutimos
algumas
possibilidades
de
transversalidade da cultura como possibilidades de ampliar o escopo de
possibilidades de financiamentos ou parcerias para a gestão de projetos
culturais. É possível pensar que o evidenciamento dessa característica vem se
fortalecendo no campo em questão, possibilitando aos produtores, artistas e
ativistas da cultura mais um meio de fortalecer seus trabalhos.
Importante ressaltar que não é o caso de manipular a proposta de um
trabalho na direção de alguma intercessão, de descaracterizar ou forçar uma
iniciativa para melhorar suas possibilidades de execução. Mais proveitoso é
entender que essas transversalidades existem e são múltiplas em toda
iniciativa que tenha na cultura seu fio condutor. Para a figura do
gestor/idealizador, cabe investigar suas propostas e desvendar onde estão tais
elos, para então planejar como utilizá-los em benefício do projeto.
Referências:
CÔRTES,Clélia
Neri. CULTURA,
DIVERSIDADE
E
POLÍTICA:
TRANSVERSALIDADE DOS CONCEITOS NAS POLÍTICAS CULTURAIS.
Revista
Políticas
Culturais,
2012.
Disponível
em: http://repositorio.ufba.br:8080/ri/bitstream/ri/12003/1/politicas_culturais.pdf#
page=140
FARIA, Hamilton. O Desenvolvimento cultural como desafio. - Revista Polis,
2000.
HALL,
Stuart. A
centralidade
da
cultura:
notas
sobre
as
revoluções culturais do nosso tempo.
Educação & Realidade.
Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141324782003000200013&script=sci_arttext
LOIOLA,
Elizabeth;
MIGUEZ,
Paulo. SOBRE
CULTURA
E
DESENVOLVIMENTO. Trabalho apresentado no III ENECULT – Encontro de
Estudos Multidisciplinares
em
Cultura.
Salvador:
2007.
Disponível
em:
http://politicasculturais.files.wordpress.com/2009/06/b4_iiienecult_bete-miguez_cultura-desenvolvimento.pdf
Download

Articulações e Possibilidades.