Capı́tulo 3
Espalhamento Rutherford
Em 1909, H. Geiger e E. Marsden observaram que partı́culas α provenientes
de decaimento radioativo, ao atingirem um alvo constituı́do por uma folha
fina de um certo material, eram espalhadas, como resultado da colisão, a
ângulos maiores que 90◦ . Espalhamento a ângulos tão grandes estavam em
contradição com o modelo que J. J. Thomson fez para o átomo após ter
descoberto o elétron. Sabia-se naquela época que as massas atômicas são
muito maiores do que a massa dos elétrons necessários para fazer a matéria
ficar eletricamente neutra. Thomson propôs um modelo no qual a carga
positiva do átomo estaria distribuı́da uniformemente dentro de uma esfera
como as dimensões de um átomo – estimado então ter um raio de 10−10 m
– e os elétrons estariam dentro dessa nuvem positiva, algo semelhante a um
“pudim de ameixas”.
O modelo tinha alguns problemas. Primeiramente, pelo Teorema de Earnshaw, essa distribuição não poderia estar em equilı́brio estável sob a ação
de forças puramente eletrostáticas. A maneira de contornar esse problema
foi supor que os elétrons se movessem com freqüência correspondente à luz
visı́vel. Isso, é claro, não explicava porque o átomo de hidrogênio tem um
espectro que envolve diferentes freqüências!
Dentro deste contexto, Ernest Rutherford (1871-1937), sucessor de J. J.
Thomson no laboratório de Cavendish, na Universidade de Cambridge, propôs
uma explicação para o fenômeno observado por Geiger e Marsden e, ao mesmo
tempo, um modelo alternativo para o átomo.
“(. . . ) Geiger e Marsden chamaram a atenção para o fato notável
de que uma fração pequena das partı́culas α, provenientes de
substâncias radioativas, é defletida por um ângulo maior do que
61
62
3 Espalhamento Rutherford
90◦ como resultado do encontro com um único átomo (. . . ) Para
conseguir descrever esse espalhamento a ângulos tão grandes, supus que o átomo consistia de um núcleo positivamente carregado
de dimensões pequenas, onde praticamente toda a massa estaria
concentrada. O núcleo estaria envolvido por uma distribuição
de elétrons, o que tornaria o átomo eletricamente neutro e que
estaria em distâncias comparáveis ao raio conhecido do átomo.
Algumas dessa partı́culas α passavam através do átomo no seu
caminho e entravam no campo elétrico intenso na vizinhança do
núcleo e seriam defletidas da sua trajetória linear. Para sofrer
uma deflexão de mais do que alguns graus, a partı́cula α tem
que passar muito perto do núcleo e foi suposto que o campo de
forças nessa região não seria apreciavelmente afetado pela distribuição eletrônica. Supondo que as forças entre o núcleo e a
partı́cula α são repulsivas e seguem a lei do inverso do quadrado,
as partı́culas α descrevem órbitas hiperbólicas em torno do núcleo
e sua deflexão pode ser calculada.”
Com essa hipótese, Rutherford obteve uma expressão detalhada para o espalhamento, que foi mais tarde verificada em experimentos subseqüentes e
que nos levaram à imagem que temos hoje do átomo.
3.1
Estimativa simples da consistência das
idéias de Rutherford
Antes de deduzirmos a expressão teórica clássica para o espalhamento de
partı́culas α, vamos fazer algumas estimativas importantes, usando apenas a
idéia de Rutherford e a Fı́sica Clássica.
Em um trabalho que foi escrito em 1911, Rutherford disse:
“ Para se ter alguma idéia das forças necessárias para desviar
uma partı́cula α através de um grande ângulo, considere um
átomo contendo uma carga puntiforme Ze no seu centro e envolvida por uma distribuição de carga negativa −Ze, uniformemente distribuı́da dentro de uma esfera de raio R. O campo
elétrico E num ponto dentro do átomo, a uma distância r do seu
centro, na direção radial, é
Ze h 1
r i
E=
−
.”
4π0 r 2 R3
3.1 Estimativa simples da consistência das idéias de Rutherford
3.1.1
63
Cálculo da força sentida pela partı́cula α ao atravessar o átomo
Vamos calcular, primeiramente, esse campo. Teremos aqui duas contribuições
independentes: uma proveniente das cargas positivas, consideradas puntiformes no centro da distribuição de cargas, e outra proveniente da nuvem eletrônica que circunda essa carga positiva, composta por elétrons distribuı́dos uniformemente no volume esférico formado pelo raio do átomo.
Para realizar esse cálculo, lembremos que o campo elétrico obedece o princı́pio
de superposição e, então, podemos considerar as duas contribuições separadamente.
• Cargas positivas
Considerando o núcleo como uma carga puntiforme, então o campo
elétrico é simplesmente
~ p = Ze r̂ .
E
4π0 r 2
• Carga negativas
Como estamos interessados somente na região interna do átomo, usamos a lei de Gauss, que nos diz que para qualquer superfı́cie gaussiana,
vale
I
~ n · dS
~ = qint ,
E
0
S
~ = n̂dS e n̂ é o vetor unitário normal à superfı́cie S em cada
onde dS
ponto. O lado esquerdo da equação representa o fluxo de campo elétrico
através da superfı́cie arbitrária fechada S, o qual é proporcional à carga
interna qint à essa superfı́cie – cargas externas a essa superfı́cie não têm
nenhuma influência sobre esse campo.
A superfı́cie de Gauss é esfericamente simétrica, concêntrica com a
carga puntiforme Ze. A razão de termos escolhido essa superfı́cie é
porque sobre ela, por simetria, o campo elétrico estará apontando radialmente para fora e seu módulo é constante sobre a superfı́cie. Então,
a lei de Gauss pode ser escrita na seguinte forma mais simples
I
I
~ n · dS
~ = En r̂ · n̂dS,
E
S
S
onde n̂ = r̂, pois, no caso em questão, devido à nossa escolha de S,
a normal à superfı́cie tem direção radial. Assim, temos simplesmente,
64
3 Espalhamento Rutherford
PSfrag replacements
~
E
R
~
E
Superfı́cie
Gaussiana
núcleo
RN
~
E
nuvem
eletrônica
~
E
(a)
(b)
FIGURA 20 - Representação das superfı́cies gaussianas e campos elétricos
dentro de um átomo com núcleo puntiforme (a) e com tamanho finito (b).
que
I
~ n · dS
~ = En
E
S
I
dS = En 4πr 2 =
S
qint
,
0
r é o raio da superfı́cie Gaussiana.
Quanto vale qint ? Essa é a carga interna à superfı́cie Gaussiana escolhida. Ela é uma fração da carga total −Ze proporcional à razão entre
o volume delimitado pela superfı́cie Gaussiana e o volume do átomo,
ou seja,
4
πr 3
r3
3
qint = −Ze 4 3 = −Ze 3 .
R
πR
3
Superpondo os resultados obtidos para ambas as cargas, teremos exatamente
o resultado de Rutherford:
r
1
Ze
~ =E
~p + E
~n =
−
r̂.
E
4π0 r 2 R3
O campo fora dessa distribuição é obviamente nulo, uma vez que o átomo é
eletricamente neutro. Então, para essa imagem simples, onde consideramos
o núcleo puntiforme, temos que a força sobre a partı́cula α é tanto maior
quanto mais próxima ela chegar do núcleo atômico.
Se, no entanto, relaxarmos a hipótese de que o núcleo seja puntiforme, veremos que a força máxima que a partı́cula α sente será quando ela passar rente
ao núcleo. Vamos, então, atribuir um raio RN ao núcleo e recalcular o campo
elétrico na região r < RN . Da mesma forma que fizemos para o cálculo das
3.1 Estimativa simples da consistência das idéias de Rutherford
65
F~
puntiforme
tamanho finito
RN
R
r
FIGURA 21 - Força em uma partı́cula α como função da distância (r) da
carga positiva dentro do átomo.
cargas negativas, usamos a lei de Gauss para determinar o campo elétrico
nesta região, e encontramos
~ p = Ze r r̂.
E
3
4π0 RN
Para as cargas negativas, devemos ter E = 0, já que não há nenhuma carga
negativa dentro do núcleo.
Para a região fora do núcleo, o cálculo é o mesmo feito anteriormente quando
consideramos uma carga puntiforme, pois a carga interna à superfı́cie gaussiana é, simplesmente, a carga total do núcleo. Podemos sintetizar os resultados como segue:
 r

se r < RN ,

3

RN


i
h
Ze
r
E=
×
(3.1)
se RN < r < R,
r −2 − 3
4π0 
R



0
se r > R.
Este resultado pode melhor ser visualizado no gráfico da Fig. 21, onde
podemos confirmar a predição de que a força máxima sentida pela partı́cula
α será quando esta se aproxima da superfı́cie do núcleo1 .
1
Obs: Para sermos mais exatos no cálculo da contribuição das cargas negativas, deverı́amos subtrair o volume do núcleo do volume total do átomo. No entanto, como
3
sabemos, RN R, e portanto o volume do núcleo (∼ RN
) é completamente desprezı́vel
3
quando comparado ao volume do átomo (∼ R ).
66
3.1.2
3 Espalhamento Rutherford
Energia potencial de um átomo de platina
Vamos estimar agora a energia potencial elétrica de um sistema formado por
um núcleo puntiforme de carga Ze e um elétron, separados por uma distância
R. A energia potencial do átomo é dada por
U = −eV,
onde V é o potencial gerado pelo núcleo:
V =
Ze 1
.
4π0 R
Então, a energia potencial será
U =−
Ze2 1
.
4π0 R
Supondo um núcleo de platina, para o qual Z = 78 e R = 5, 3 × 10−11 m,
encontramos um potencial elétrico de
V = 8, 99 × 109 V · m/C
78 × 1, 6 × 10−19 C
5, 3 × 10−11 m
= 2, 1 kV.
A energia potencial para um átomo com Z elétrons será, aproximadamente,
da ordem de
U = −ZeV = −164 keV = −2, 6 × 10−14 J,
uma energia muito pequena se comparada a problemas macroscópicos.
Vamos discutir um pouco sobre as unidades convenientes em problemas de
espalhamento. Como podemos ver, no mundo atômico é mais conveniente
trabalhar com eV como unidade de energia em vez de joule. A relação entre
essas duas unidades é simples: um eV é a energia que uma partı́cula com
uma unidade da carga fundamental e adquire ao atravessar um potencial de
um volt, ou seja,
1 eV = 1, 602 × 10−19 C × 1 V = 1, 602 × 10−19 J.
As distância atômicas são usualmente dadas em angström (1 Å= 10−10 m) e
as nucleares em fermi (1 fm = 10−15 m). A constante eletrostática pode ser
convenientemente escrita nessas unidades como
e2
= 1, 439965 MeV · fm.
4π0
3.1 Estimativa simples da consistência das idéias de Rutherford
3.1.3
67
Potencial elétrico na superfı́cie do núcleo
Vamos determinar o potencial elétrico na superfı́cie de um núcleo de ouro, que
foi um dos alvos utilizados por Rutherford. O raio do núcleo é RN = 6, 6 fm
e Z = 79.
Supondo o núcleo esférico, ele se comporta com já vimos, para pontos externos, como se fosse uma carga puntiforme no centro. Assim, temos
79
e Z
= 1, 44 MV · fm ×
4π0 RN
6, 6 fm
= 17 MV.
V =
3.1.4
Aproximação máxima da partı́cula α incidente
Vamos supor que a partı́cula α incidente tenha uma energia cinética K0 em
pontos distantes do núcleo – longe da influência do potencial – e se mova em
direção a ele. Quão perto essa partı́cula α é capaz de chegar do núcleo antes
de ser brecada pela repulsão coulombiana? Sabendo-se que na experiência
realizada K0 = 5, 0 MeV, o que podemos concluir desses dados?
Se a partı́cula vai frontalmente em direção ao núcleo, então, por conservação
da energia, temos
2Ze2
K+
= K0
4π0 r
Se a partı́cula α for “parada” pelo núcleo, então sua energia cinética será
nula, e a distância em que isso ocorre é dada por
r=
2Ze2
.
4π0 K0
Esta é a menor distância em que a partı́cula α chega do núcleo, que no caso
em questão, considerando um núcleo de platina, será
r=
2 × 79 × 1, 44 MeV · fm
= 46 fm.
5, 0 MeV
Então, Rutherford podia sondar distância dessa ordem com o “aparelho experimental” de que dispunha. Para chegar mais perto do núcleo e descobrir
se este tinha um tamanho finito, eram necessárias energias maiores, o que só
foi feito posteriormente com a criação dos aceleradores de partı́cula.
68
3.1.5
3 Espalhamento Rutherford
Ângulo de espalhamento da partı́cula α
Vamos supor que a partı́cula α esteja viajando com velocidade vα , e se aproxime a uma distância d do centro espalhador. A carga da partı́cula α é 2e e a
carga positiva do núcleo atômico é Ze. A alteração do momento da partı́cula
α quando se aproxima do centro espalhador é dada por
2kZe2 2d ∆p = F ∆t ≈
,
(3.2)
d2
vα
onde k = 1/4π0 e o fator 2 vem da hipótese de que ∆t se refere ao tempo
gasto pela partı́cula α para atravessar o centro de espalhamento.
O ângulo Θα , devido a essa colisão, é, aproximadamente
∆p 4kZe2 1 =
Θα ≈
p
dvα
mα v α
2
2kZe2
2kZe
=
,
= 1
dKα
d( 2 mα vα2 )
(3.3)
onde Kα é a energia cinética da partı́cula α.
O resultado importante desta estimativa é que o ângulo de espalhamento é
inversamente proporcional à distância e, portanto, ângulos grandes, como os
observados, seriam possı́veis dentro das hipóteses de Rutherford.
Se usarmos para d o tamanho do átomo (∼ 105 fm), obtemos a partir da
expressão (3.3), para o caso especı́fico de partı́culas α com energia cinética
de 6,0 MeV (que era aproximadamente a energia de partı́culas α provenientes
do decaimento do Ra) incidindo sobre um átomo de Platina (Z = 78)
2 × 78 × (1, 44 MeV · fm)
2Zke2
=
= 4 × 10−4 ,
Θα =
5
dKα
10 fm × 6, 0 MeV
ou seja, o ângulo de espalhamento para um modelo, no qual as cargas positivas estão distribuı́das no raio do átomo (como o modelo Thomson), leva à
conclusão de que os ângulos de espalhamento observados deveriam ser predominantemente dianteiros. Mesmo que ocorresse um número grande de
colisões no alvo (espalhamento múltiplo) não seria suficiente para explicar os
espalhamento em ângulos de 90◦ .
No entanto, se a carga positiva do átomo estiver concentrada numa região
pequena, a distribuição angular é muito diferente daquela prevista por uma
distribuição uniforme. A razão fı́sica é simples: a partı́cula α pode chegar
muito mais perto desse centro sem penetrá-lo, e a força será maior a distâncias
menores.
69
3.2 Formulação de um problema de espalhamento
área a
detector
θ
alvo
fluxo
incidente
FIGURA 22 - Espalhamento de um fluxo de partı́culas em um alvo fixo.
Note da estimativa obtida para os ângulos como função da distância que para
se obter Θα ∼ π, a carga positiva deveria estar concentrada numa região pelo
menos da ordem de 10−4 vezes menor que o raio do átomo. É claro que a
estimativa não é boa para ângulos grandes (você saberia explicar por quê?),
mas esse resultado já indica que o centro espalhador do modelo de Rutherford
deve ser ordens de grandeza menor que o átomo de Thomson.
3.2
Formulação de um problema de espalhamento
A situação fı́sica tı́pica de um problema de espalhamento é a seguinte: um
fluxo de partı́culas incide sobre um alvo e, devido à interação com esse alvo,
é defletido. A figura 22 esquematiza a situação. As partı́culas contidas no
feixe incidente são denominadas projéteis.
3.2.1
Definição de seção de choque
Considere o espalhamento de duas esferas maciças, um projétil incidindo
sobre um alvo de raio R. Um fluxo de esferas projéteis é direcionado sobre
o alvo como na Fig. 22. A probabilidade de que um dado projétil acerte o
alvo é chamada de probabilidade de espalhamento P . Essa probabilidade é
proporcional à área da seção de corte transversal do alvo, σ, isto é,
P ∝ σ = πR2 .
A área σ é chamada de seção de choque total para o processo de espalhamento. Se as partı́culas projéteis cobrem uma área a, tal que a R 2 (o
70
3 Espalhamento Rutherford
caso contrário, onde a área do feixe é menor que a do alvo é tratada no Ex.
3.1) e a taxa de incidência de partı́culas é ∆N/∆t, então o fluxo incidente
será
∆N
Φ=
,
(3.4)
a∆t
e a taxa de espalhamento – número de partı́culas espalhadas por unidade de
tempo – deve ser igual à taxa de partı́culas incidentes vezes a razão entre a
área do alvo e a área do feixe, isto é,
Resp
πR2 ∆N
.
=
a ∆t
(3.5)
A seção de choque é a taxa de espalhamento divida pelo fluxo incidente, ou
seja,
Resp
σ≡
= πR2 .
(3.6)
Φ
Num caso mais geral, podemos ter partı́culas do tipo A incidindo em partı́culas
do tipo B com a reação
A + B → Estado final.
O estado final representa qualquer resultado possı́vel que quisermos definir
para a reação. A taxa na qual o estado final é produzido é chamada de taxa
de transição. A probabilidade de que a reação A + B produza um certo
estado final é especificada pela seção de choque de interação definida como
σ=
taxa de transição: A + B → Estado final
.
Φ
(3.7)
A seção de choque tem unidades de área. Um barn (b) é definido como sendo
1 b ≡ 10−28 m2 .
A interpretação geométrica da seção de choque é a área da seção de corte
efetiva da partı́cula alvo como vista pela partı́cula incidente.
Exemplo 3.1 : A seção de choque total da interação forte prótonpróton é de cerca de 40 mb. Calcule a fração de prótons que são
espalhados quando um feixe colimado de prótons passa através de um
alvo de hidrogênio lı́quido de comprimento igual a 30 cm. A densidade
do hidrogênio lı́quido é 70 kg/m3 .
Cada próton incidente tem a chance de interagir com prótons alvos
ao longo de todo o comprimento do alvo. Neste caso, é útil calcular
3.2 Formulação de um problema de espalhamento
71
a seção de choque por próton alvo. O fluxo incidente correspondente
é igual a taxa na qual os prótons atingem o alvo vezes o número de
prótons por área no alvo. Sabemos que a massa do alvo é igual a
sua densidade vezes seu volume e também igual ao número de prótons
presentes vezes a massa de um próton, portanto
ρV = ρLA = N mp
⇒
ρL
N
=
,
A
mp
sendo L o comprimento do alvo e A sua área. Sejam R inc a taxa de
prótons incidentes no alvo e Resp a taxa de espalhamento. O fluxo
incidente é portanto
Φ=
Rinc ρL
Rinc N
=
.
A
mp
A expressão para a seção de choque por próton é a taxa de espalhamento divida pelo fluxo incidente:
σ=
Resp
Φ
de onde obtemos que a fração de prótons espalhados é
σLρ
Resp
=
Rinc
mp
40 × 10−31 m2 × 0, 3 m × 70 kg/m3
=
1, 67 × 10−27 kg
≈ 0, 05
O fluxo incidente não depende da área do feixe contanto que esta seja
menor do que a área da seção de corte do alvo. O fluxo incidente
depende no entanto do comprimento do alvo porque cada próton incidente encontra prótons alvos ao longo de todo o caminho no alvo.
Podemos ainda definir a seção de choque diferencial em termos do ângulo
sólido. Para entender melhor esse conceito, imaginemos primeiramente que
o espalhamento se dê apenas em duas dimensões. Neste caso, podemos contar
o número de projéteis espalhados entre os ângulos θ e θ + dθ coletados no
detector (veja Fig. 22). Então pela definição de seção de choque temos que
número de projéteis espalhados no intervalo θ e θ + dθ
número de projéteis incidentes por unidade de área do alvo
dN (θ)
,
=
I/A
dσ(θ) =
72
3 Espalhamento Rutherford
onde dN é o número de projéteis espalhados neste intervalo angular, I é o
número de partı́culas incidentes e A a área do alvo. Esta expressão também
pode ser escrita como
dN (θ) A
dσ(θ)
=
.
(3.8)
dθ
dθ I
No caso do espalhamento em três dimensões, temos dois ângulos de espalhamento, θ e φ. Associamos ao elemento de área compreendido entre os
ângulos θ e θ + dθ, e φ e φ + dφ a um ângulo sólido dΩ = sen θdθdφ. A figura
a seguir ilustra esta definição.
dΩ
θ
φ
A seção de choque diferencial em três dimensões se escreve então como
dσ(θ, φ)
dN A
=
.
dΩ
dΩ I
3.2.2
(3.9)
Seção de choque de Rutherford
Em termos clássicos, o problema pode ser esquematizado como na Fig. 23,
usando a trajetória de uma partı́cula projétil ao ser defletida por um alvo.
Consideremos daqui para frente que os projéteis são partı́culas α. Se o núcleo
não espalhasse a partı́cula α, a distância de menor aproximação da mesma ao
núcleo seria b, o parâmetro de impacto. O ângulo de espalhamento é definido
como o ângulo assintótico (longe do centro espalhador) da partı́cula α com
relação à direção incidente. A força entre a partı́cula α e o núcleo é tanto
menor quanto maior for o parâmetro de impacto.
Um parâmetro de impacto especı́fico conduz, através da trajetória da partı́cula
α a um ângulo de espalhamento especı́fico (ver figura 24: se o parâmetro de
impacto estiver entre b e b + db, o ângulo de espalhamento estará entre θ e
θ + dθ).
73
3.2 Formulação de um problema de espalhamento
B
F~
A
M
θ
~r
b
ϕ
O
FIGURA 23 - Representação esquematizada do espalhamento de uma
partı́cula α por um núcleo atômico (O). A trajetória da partı́cula é definida
pela curva AMB. O parâmetro de impacto é b e o ângulo de espalhamento θ.
db
b
dθ
θ
FIGURA 24 - Relação entre o parâmetro de impacto b e o ângulo de espalhamento θ.
74
3 Espalhamento Rutherford
Então, para obter a distribuição angular prevista pela teoria clássica e compará-la com a distribuição angular medida, precisaremos relacionar b com θ.
É claro que essa relação depende fortemente do potencial espalhador. No
caso do espalhamento Rutherford, o alvo é constituı́do de inúmeros prótons,
e este número deve ser levado em conta no cálculo da seção de choque. Além
disso, o problema tem uma simetria axial, isto é, a interação da partı́cula α
com o núcleo não depende do ângulo em torno do eixo pontilhado da Fig. 23.
Este é o caso de todos os potenciais centrais, como o potencial coulombiano
ou gravitacional. Assim, temos
dN 1
dσ
=
,
(3.10)
dΩ
dΩ In
onde agora, o ângulo sólido é simplesmente dΩ = 2π sen θdθ e I corresponde
ao número de partı́culas incidentes sobre um alvo que contém n núcleos por
unidade de área – este caso é análogo ao estudado no Ex. 3.1.
A comparação teórico-experimental pode ser feita usando a expressão teórica
dσ/db e reescrevendo-a em termos de θ:
dσ
dσ d(cos θ)
=
.
db
d(cos θ)
db
Vamos analisar mais uma vez a Fig. 23. O ponto O é o centro da força. M
representa a partı́cula α lançada com velocidade vα . O parâmetro de impacto
b é a distância perpendicular entre a direção de ~vα e a linha traçada de O
paralelamente a ~vα . Sendo a força repulsiva, a trajetória é delineada pelos
pontos AMB. A forma dessa curva depende de como a força varia com a
distância. Para a força coulombiana, temos
2kZe2
,
(3.11)
r2
e a trajetória será uma hipérbole. Quando a partı́cula está em A, seu momento angular é L = mα vα b. Numa posição qualquer M, seu momento
~ = ~r × p~ = ~r × mα~vα . A velocidade da partı́cula α num ponto
angular será L
qualquer da trajetória é dada pelo vetor
|F~ | =
dr
dϕ
r̂ + r ϕ̂.
dt
dt
Assim encontramos para o momento angular
~ = ~r × mα dr r̂ + r dϕ ϕ̂
L
dt
dt
dϕ
= mα r 2 ẑ,
dt
~vα =
(3.12)
(3.13)
75
3.2 Formulação de um problema de espalhamento
onde ẑ é perpendicular ao plano da órbita. Uma vez que o momento angular
é uma quantidade vetorial e se conserva para forças centrais, isto é,
~
dL
d~r
d~
p
=
× p~ + ~r ×
= ~r × F~ = 0,
dt
dt
dt
(3.14)
então, não se alteram nem seu módulo, nem sua direção ou sentido. Por
isso, a trajetória da partı́cula α estará contida no plano perpendicular ao
momento angular – esta é a mesma teoria que se aplica ao movimentos dos
planetas, por exemplo.
A conservação em módulo do momento angular implica imediatamente que
mα r 2
dϕ
= mα vα b.
dt
(3.15)
Por outro lado, a força na partı́cula α na direção y é dada por
mα
dvy
sen ϕ
= Fy = F sen ϕ = 2kZe2 2 .
dt
r
(3.16)
Utilizando a Eq. (3.15), podemos eliminar r 2 dessa equação e obtermos
2kZe2
dϕ
dvy
=
sen ϕ .
dt
mα v α b
dt
(3.17)
Para o cálculo da deflexão da partı́cula, devemos integrar essa equação de
um extremo a outro da trajetória. No ponto assintótico de onde a partı́cula
vem, temos vy = 0, pelo fato do momento inicial ser paralelo a x e ϕ = 0.
Já no outro ponto assintótico de destino da partı́cula, temos vy = vα sen θ
e ϕ = π − θ. Note que neste ponto, a velocidade da partı́cula deve ser
novamente igual a vα , pois o espalhamento é elástico. Então, temos
Z
Z vα sen θ
2kZe2 π−θ
sen ϕ dϕ.
dvy =
mα v α b 0
0
Então,
2kZe2
(1 + cos θ).
vα sen θ =
mα v α b
Lembrando que cotg 12 θ = (1 + cos θ)/ sen θ, teremos
mα vα2
1
b.
cotg θ =
2
2kZe2
(3.18)
A expressão acima nos dá a relação procurada entre b e θ. Podemos agora
obter a seção de choque. Para obtermos a relação entre a seção de choque
76
3 Espalhamento Rutherford
diferencial e o parâmetro de impacto, lembremos da interpretação geométrica
da seção de choque. Portanto, a seção de choque diferencial deve ser igual à
área do anel de raio b e espessura db (ver Fig. 24), ou seja,
db dσ = 2πbdb = 2πb(θ) dθ
dθ
(3.19)
e usando a relação (3.18), obtemos
2kZe2
dσ = π
mα v α
2
cos θ/2
dθ.
sen3 θ/2
(3.20)
Como sen θ = 2 sen(θ/2) cos(θ/2), podemos ainda reescrever a diferencial
‘dσ’ como segue:
2
sen θ
π 2kZe2
dθ,
(3.21)
dσ =
2 mα v α
sen4 θ/2
ou em termos do ângulo sólido dΩ, teremos
2
1
dσ
2kZe2
=
.
4
dΩ
2mα vα sen θ/2
(3.22)
Note que existe uma singularidade em θ = 0, onde a seção de choque diferencial é infinita. Isto significa que existe uma área infinitamente grande (πb2 ),
onde a partı́cula pode estar e ainda assim, sofrer espalhamento. O fato de
que a seção de choque seja infinita é conseqüência direta do fato de que o
alcance do potencial coulombiano é infinito. Obviamente, a transferência de
momento é muito pequena quando b é grande – lembre que ∆p está diretamente relacionado com θ.
Exemplo 3.2 : Calcule a seção de choque para uma partı́cula α com
energia cinética igual a 12 MeV, sendo espalhada por um núcleo de
prata (Z = 47) em ângulos maiores do que (a) 90 ◦ e (b) 10◦ .
Quando se diz que o espalhamento ocorre para ângulos maiores do
que θ, isto significa que o parâmetro de impacto é menor do que o
correspondente b(θ), isto porque o ângulo de espalhamento é inversamente proporcional ao parâmetro de impacto. Então, para calcular a
seção de choque, basta fazer a integração em b variando de 0 a b(θ).
Usando a expressão que relaciona a seção de choque diferencial com o
parâmetro de impacto (Eq. (3.19)), temos que
σ = 2π
Z
0
b(θ)
bdb = πb(θ)2 .
3.2 Formulação de um problema de espalhamento
Então usando a expressão (3.18) que relaciona o parâmetro de impacto
com o ângulo θ, temos
b(θ) =
θ
Zke2
cotg .
Kα
2
Logo, para um ângulo de 90◦ ,
47 × 1, 44 MeV · fm
cotg(45◦ ) = 5, 64 fm
12 MeV
σ = πb(90◦ )2 = 1, 0 × 102 fm2 = 1, 0 b
b(90◦ ) =
e para o ângulo de 10◦ ,
b(10◦ ) = 5, 64 fm × cotg(5◦ ) = 64, 5 fm
σ = πb(10◦ )2 = 130 b.
Exemplo 3.3 : Um feixe de partı́culas α de 6 MeV atravessam uma
folha de ouro, cuja espessura é de 1 µm, a uma taxa de 10 3 por segundo. Calcule a taxa de espalhamento na qual partı́culas α são espalhadas em ângulos maiores do que 0,1 rad. A densidade do ouro é
1, 93 × 104 kg/m3 e sua massa atômica é 197.
Usando a expressão obtida no exemplo 3.1, temos que a taxa de espalhamento é
σLρ
Rinc ,
Resp =
MAu
onde temos agora a massa do núcleo de ouro dado por M Au = 197mp .
Precisamos então do valor da seção de choque, que pode ser obtida
como no exemplo anterior. O parâmetro de impacto a 0,1 rad é
b(0, 1 rad) =
79 × 1, 44 MeV · fm
cotg(0, 05 rad) = 379 fm
6 MeV
e a seção de choque será
σ = πb(0, 1 rad)2 = 4, 51 × 10−25 m2 .
Assim, temos
4, 51 × 10−25 m2 × 1 µm × 1, 93 × 104 kg/m3
× 103
197 × 1, 67 × 10−27 kg
≈ 26 partı́culas/seg.
Resp =
Este resultado equivale a dizer que apenas 2,6 % das partı́culas incidentes são espalhadas em ângulos maiores do que 0,1 rad, ou cerca de
6◦ !
77
78
3 Espalhamento Rutherford
106
105
dN/dΩ
104
103
102
10
-1
-0.5
0
cos θ
0.5
1
FIGURA 25 - Dados experimentais de Geiger e Marsden e comparação com
a fórmula de Rutherford.
3.3
Comparação com os dados de Geiger e
Marsden
A concordância da expressão obtida por Rutherford com os dados de Geiger
e Marsden é impressionante (veja Fig. 25).
Os dados são consistentes com um núcleo puntiforme. Para conseguir maior
proximidade do núcleo atômico, foram necessárias experiências envolvendo
partı́culas α mais energéticas, que conseguissem se aproximar mais. Mais
tarde, R. Hofstadter et al., em 1953, fizeram um experimento do tipo descrito
acima, porém usando elétrons com energia de 125 MeV espalhados por alvos
de ouro. A partir da comparação dos dados com a fórmula de Rutherford,
foi possı́vel concluir que os dados são inconsistentes com a hipótese de núcleo
puntiforme. Essas experiências foram capazes de estabelecer que o núcleo do
ouro tem um raio de aproximadamente 3 × 10−15 m.
3.4
Crı́ticas ao modelo de Rutherford
As crı́ticas ao modelo de Rutherford, apesar do sucesso obtido em suas previsões, não foram poucas e eram bem fundamentadas em princı́pios gerais da
Exercı́cios
79
Fı́sica Clássica.
A primeira objeção era simples: se toda carga positiva está concentrada no
centro do átomo, e este núcleo tem dimensões tão pequenas, como explicar
porque a repulsão coulombiana não destrói esse aglomerado de partı́culas
positivas? A solução dessa charada veio com a descoberta do nêutron, por
James Chadwick (1891-1974), em 1932. O nêutron é uma partı́cula neutra que atrai os prótons, com uma força da ordem de 200 vezes a repulsão
eletrostática – é a força nuclear forte. Uma das diferenças fundamentais
entre essas duas forças é que a força eletromagnética tem longo alcance, enquanto que a força forte tem um alcance curto. Este fato explica porque não
podemos ter núcleos estáveis de qualquer tamanho – a atração provocada
pelos nêutrons é limitada a alguns vizinhos próximos, enquanto que a força
coulombiana age em todas as cargas presentes no núcleo. Então, núcleos
muito pesados, apesar de terem uma quantidade maior de nêutrons do que
de prótons, são bastantes instáveis.
A segunda objeção era a seguinte: o modelo dinâmico do tipo sistema planetário
proposto por Rutherford apresenta uma dificuldade insuperável dentro da
Fı́sica Clássica. Segundo as equações de Maxwell, cargas aceleradas irradiam
e perdem energia desse modo. Para uma órbita de dimensões atômicas, o
colapso do átomo se daria em 10−9 s. A matéria não seria estável!
Essa última charada só foi resolvida através do modelo de Bohr, que introduziu postulados sobre a estabilidade das órbitas dos elétrons nos átomos.
Um embasamento sólido desse fato só veio com a Mecânica Quântica de
Schrödinger e Heisenberg.
Exercı́cios
3.1 Pesquisadores desejam estudar as propriedades de uma partı́cula
que é produzida em colisões próton-próton com uma seção de
choque de 1 nb. Eles desenharam um alvo de hidrogênio lı́quido
cilı́ndrico com 0,05 m de diâmetro e 0,5 m de comprimento. O
feixe de prótons tem uma intensidade de 108 por segundo. Se o
aparato pode detectar a partı́cula rara com uma eficiência de 10
%, quanto tempo vai demorar para que se colete 106 eventos?
3.2 Um feixe colimado de prótons é enviado para dentro de uma
câmara de bolhas com deutério lı́quido, cuja espessura é de 0,5
m. A densidade do deutério lı́quido é 162 kg/m3 . Uma amostra
com 105 figuras é analisada e três eventos raros são encontrados.
80
3 Espalhamento Rutherford
(a) Calcule a seção de choque de produção desse processo.
3.3 A interação forte tem um curto alcance, aproximadamente 1 fm.
Use este fato para estimar a seção de choque para a interação
forte entre dois prótons energéticos (E mc2 ). Compare sua
resposta com 40 mb.
3.4 Considere um feixe de prótons com momento de 200 MeV/c sendo
espalhado por um núcleo de alumı́nio. (a) Calcule a seção de
choque para o espalhamento eletromagnético em ângulos maiores
do que 10◦ . (b) Se o feixe de prótons é enviado através de uma
folha de alumı́nio de 1 µm de espessura, qual a fração dos prótons
são espalhados em ângulos maiores do que 10◦ ?
3.5 Qual é a importância de ser ter a câmara onde é realizado o espalhamento de partı́culas α evacuada? Para partı́culas α, estime
a espessura do ar que teria a mesma seção de choque que o espalhamento por uma folha de ouro de espessura igual a 0,2 µm.
(A densidade do ouro é 1, 9 × 104 kg/m3 e a densidade do ar é
1,2 kg/m3 à pressão atmosférica e temperatura ambiente.)
3.6 Uma partı́cula α de 10 MeV é espalhada por um núcleo de prata
a um ângulo de 90◦ . (a) Calcule o parâmetro de impacto. (b)
Calcule a distância de maior aproximação.
3.7 Calcule a energia cinética de uma partı́cula α se a distância de
maior aproximação ao núcleo de ouro é 10 fm quando espalhada
a 90◦ .
3.8 Um feixe de partı́culas α de 5 MeV é direcionado sobre uma
folha de ouro de espessura igual a 1 µm. A fração de partı́culas α
espalhada em ângulos maiores do que um certo ângulo θ é igual a
10−3 . (a) Qual é a seção de choque de espalhamento do processo?
(b) Qual é o valor de θ? (A densidade da prata é 1, 05 × 104
kg/m3 .)
3.9 Um feixe de partı́culas α com energia cinética de 4,5 MeV passa
através de uma folha fina de 9 Be. O número de partı́culas α
espalhadas entre 30◦ e 90◦ e entre 90◦ e 150◦ é medido. Qual
deve ser a razão entre estes números?
3.10 Um feixe de partı́culas α, com energia cinética 5,30 MeV e intensidade 104 partı́culas por segundo, incide segundo a normal
sobre uma folha de ouro de densidade 19,3 g/cm3 , peso atômico
197, e espessura 1, 0 × 10−5 cm. Um contador de partı́culas α de
área 1,0 cm2 é colocado a 10 cm de distância da folha. Se θ é o
Exercı́cios
ângulo entre o feixe incidente e uma linha que vai do centro da
folha ao centro do contador, use a seção de choque diferencial do
espalhamento Rutherford para obter o número de contagens por
hora para θ = 10◦ e θ = 45◦ . O número atômico do ouro é 79.
81
82
3 Espalhamento Rutherford
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