Estressado
ARTIGO 144 – ESTRESSADO PADRÃO
PEREIRA, José Alberto Gonçalves. Estressado Padrão. REVISTA AMANHÃ [on line] n. 148 Novembro
1999.
RESUMO : A medicina do trabalho tem evoluído mas, infelizmente, o Brasil continua apresentando o
vergonhoso título de campeão em acidentes do trabalho. E os especialistas estão preocupados que o
quadro de transtornos mentais e emocionais causados pelo stress aumente consideravelmente. PALAVRAS-CHAVE: Stress - Medicina do trabalho
ESTRESSADO PADRÃO
Raimundo das Neves, casado e pai de filhos pequenos, espera ser reintegrado à empresa em uma
função compatível com suas condições de saúde. Vive uma batalha para que seu caso volte a ser
caracterizado pelo INSS como doença do trabalho, o que poderia lhe assegurar estabilidade de um ano.
Laudos de médicos do sindicato e do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador do Estado de São
Paulo (Cerest) atestaram que o sofrimento mental de Raimundo tem origem na organização do trabalho,
que teria demandado um esforço exagerado para alcançar as metas de produção.
Lúcia Rodrigues, separada e mãe de dois filhos, teve o punho direito operado, mas conseguiu recuperar
apenas parte dos movimentos perdidos. Da lista de doenças que exibe, as mais graves são síndrome do
túnel do carpo (uma compressão do nervo mediano do punho) e tendinite nos braços, ambas Distúrbios
Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (Dort), nome mais abrangente para as conhecidas e
temidas Lesões por Esforços Repetitivos (LER). Os problemas de Lúcia foram reconhecidos como
doença do trabalho. Entre 1998 e março deste ano, ela foi atendida por um grupo multidisciplinar do
Hospital das Clínicas de São Paulo, onde também fez tratamento neurológico e psicológico.
Os nomes Raimundo e Lúcia escondem a verdadeira identidade de dois trabalhadores paulistas.
Raimundo foi fotografado com a condição de ficar no anonimato. Os casos mostram o outro lado da
moeda da modernização das empresas brasileiras. Não chegam a ser novidade no universo fabril, desde
que a Revolução Industrial deu as caras na Inglaterra do século passado. O novo – e preocupante – é
que a agregação de tecnologias e a batalha competitiva no mercado, aliadas à ameaça de desemprego,
criaram um terreno fértil para o agravamento do estresse e dos transtornos à saúde a ele associados,
como dores de cabeça, problemas gástricos, depressão, síndrome do pânico, propensão ao suicídio e
Dort.
A tendência, na avaliação dos especialistas, é de que a reestruturação produtiva ajude o Brasil a se
libertar do vergonhoso título de campeão mundial em acidentes de trabalho, mas acabe aprofundando o
quadro de transtornos mentais e físicos motivados pelo estresse.
Em meio à escassez de estatísticas sobre o tema, uma pesquisa da médica Margarida Barreto, feita
entre 1994 e 1998, com 2.072 trabalhadores que procuraram o serviço de saúde do sindicato dos
químicos de São Paulo, aciona o sinal de alerta. Coordenadora do curso de especialização em Medicina
do Trabalho da Faculdade de Ciências Médicas (FCF) da Santa Casa, em São Paulo, a médica verificou
que 42% dos trabalhadores relataram situações desencadeadoras de estresse. Sobrecarga de trabalho
(produção máxima no menor tempo), medo de não saber fazer a tarefa (gerando temor da perda de
emprego) e violência psicológica, segundo o estudo, traduzida em amedrontamento, ofensas e
intimidações por parte das chefias e dos colegas.
"Boa parte dos operários recorria ao serviço de saúde do sindicato por causa da insatisfação com o
atendimento do médico da empresa", revela Margarida Barreto. "É prática generalizada entre esses
médicos sonegar aos operários atestados de saúde ocupacional e resultados de exames, e passar para
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Estressado
o departamento pessoal informações que teoricamente são protegidas pelo sigilo médico", denuncia a
especialista.
Em função do volume expressivo de reclamações sobre o mau atendimento prestado por médicos de
empresas, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) emitiu em 1996 uma resolução
com diretrizes para os profissionais de medicina do trabalho. A norma foi praticamente reproduzida para
todo o país, no ano passado, pelo Conselho Federal de Medicina. A resolução do Cremesp determina
que o médico deve estabelecer o nexo entre a organização do trabalho e os transtornos de saúde. Para
isso, é preciso ouvir depoimentos, que relatem a experiência dos trabalhadores e contribuam para a
identificação de riscos físicos, químicos, biológicos, mecânicos e de estresse.
O documento é incisivo. Mas, segundo Margarida Barreto, amplamente desrespeitado. Não é o que
pensa Luiz Frederico Hoppe, presidente da Sociedade Paulista de Medicina do Trabalho. "Em todas as
áreas existem bons e maus profissionais. Considero correta a obrigação legal das empresas de contratar
o médico do trabalho, o que não exclui uma eventual atuação complementar de profissionais do Estado."
Mesmo admitindo que algumas das incumbências desses profissionais, como a vistoria do local de
trabalho, podem não estar sendo cumpridas com rigor, Hoppe não aceita que se desqualifique a carreira
com generalizações. "Se não fosse a luta dos médicos e engenheiros de segurança do trabalho nas
empresas, a situação de saúde dos operários seria muito pior."
Ironicamente, o sindicato dos químicos de São Paulo desfez este ano sua equipe multidisciplinar de
saúde, integrada por médicos e engenheiros. Parte da receita da entidade virou pó com a redução de
120 mil para 65 mil no número de trabalhadores da base sindical. "Numa conjuntura de aperto, como a
atual, a questão da saúde acaba ficando em segundo plano nas prioridades do movimento", desculpa-se
Oswaldo Bezerra, diretor de saúde do sindicato.
"Sentia dores no braço com dois meses de trabalho. Vivia estressada, triste, agoniada, irritada e
tinha pesadelos de madrugada que me traziam à mente a gritaria e o xingamento das
encarregadas pressionando a gente a produzir além de nossas forças."
(Lúcia Rodrigues, operária numa multinacional farmacêutica em São Paulo)
Moderna autônoma - Para sorte do trabalhador, em muitos casos a reestruturação produtiva tem sido
acompanhada de soluções de organização do trabalho mais humanizadoras, que amenizam ou eliminam
situações deflagadoras de estresse. Um bom exemplo são os grupos de trabalho semi-autônomos,
implantados em 1995, na Mercedes Benz de São Bernardo, no ABC paulista. Os grupos viraram
realidade após discussões que duraram dois anos, envolvendo os próprios metalúrgicos da montadora.
Segundo Nilson Tadashi Oda, engenheiro de produção da subseção do Dieese no Sindicato dos
Metalúrgicos do ABC, a maior autonomia no trabalho permite aos operários definir como vão produzir a
partir das metas acertadas com a empresa. "Isso possibilita uma quebra da monotonia no esquema
tradicional de produção, pois dentro do grupo os operários podem se revezar na realização de tarefas,
determinar o ritmo de trabalho adequado ao potencial de cada um e se requalificar para novas funções",
explica.
O exemplo positivo da Mercedes funciona para mostrar que a reestruturação de conceitos e tecnologias
de produção pode transformar uma fábrica de produtos em uma fábrica de estressados. Isso acontece se
a mudança não for acompanhada pela remoção de elementos tradicionais do sistema de trabalho, como
a monotonia e a execução de tarefas programadas exclusivamente pelo pessoal de nível gerencial. Sem
abertura para "a peãozada" sugerir e até definir formas de trabalho, os fatores de estresse podem tomar
conta da linha de montagem, alerta o professor e pesquisador Mário Salerno, do Grupo de Tecnologia,
Trabalho e Organização (TTO) da Escola Politécnica da USP.
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