<><> UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO DE PESQUISAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” <> <> <> <> EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: QUANDO OS SUJEITOS (RE)SIGNIFICAM O ESPAÇO EDUCATIVO NOS SEUS MOVIMENTOS DE BUSCA E DE ABANDONO DA ESCOLA <> <> <> Por: Elielza Marques de Oliveira <> <> <> Orientador Prof. Marco A . Larosa Rio de Janeiro 2001 UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO DE PESQUISAS SÓCIO-PEDAGÓGICAS PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” <> <> <> <> EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: QUANDO OS SUJEITOS (RE)SIGNIFICAM O ESPAÇO EDUCATIVO NOS SEUS MOVIMENTOS DE BUSCA E DE ABANDONO DA ESCOLA <> <> <> <> <> <> Apresentação de monografia ao Conjunto Universitário Cândido Mendes como condição prévia para a conclusão do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Psicopedagogia Por : Elielza Marques de Oliveira II AGRADECIMENTOS Ao meu esposo e filhos pela compreensão da minha ausência no decorrer deste trabalho III DEDICATÓRIA A todos que contribuiram para a realização deste trabalho “Se você tem planos para cinco anos, semeia um grão. Se tem planos para dez anos, plante uma árvore. Mas se você tem planos para cem anos, eduque uma pessoa.” Desconhecido IV RESUMO Este trabalho pretendeu compreender o que levava os alunos da educação de jovens e adultos procurar a escola e, depois de algum tempo abandonarem. Para tentar responder a essa questão, mesmo que provisoriamente, foi realizada uma pesquisa em uma escola da rede estadual de ensino, no curso do regular noturno de 3ª série do ensino fundamental, localizada no município de São Gonçalo. Considerando a fundamentação teórica que baseou esta pesquisa revelada principalmente no pensamento do educador Paulo Freire, é que se traz uma outra forma de conceber, pensar e atuar na educação de jovens e adultos. Sendo assim, reconhece-se os sujeitos presentes no universo escolar. Busca-se através dos relatos das histórias de vida dos alunos e professora resgatar os saberes que circulam no cotidiano da escola, considerando que no confronto entre esses saberes há a possibilidade de se criar novos conhecimentos. Como pistas que revelam novas possibilidades de se pensar e atuar na EJA, apontou-se a formação de ser educador, como parte integrante nas formulações das políticas da educação de jovens e adultos no país. Uma formação que precisa reconhecer que o ato educativo, é complexo porque envolve questões que vão além do espaço escolar. É também um ato político, porque o educador precisa ter consciência das relações de poder estabelecidas na sociedade, compreendendo, assim, o seu papel social no espaço escolar. V METODOLOGIA Como caminho metodológico optou-se pelo “mergulho” no espaço cotidiano escolar, que se deu de forma mais intensa no ano de 2001, onde foram realizadas entrevistas, observação em aulas, registrou-se momentos fotográficos e procurou-se conhecer vários instrumentos (materiais didáticos, alguns cadernos dos alunos etc.). VI pedagógicos 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO CÁP. I - PEDAGOGIA INCLUDENTE. CÁP. II - BUSCANDO COMPREENDER A PRÁTICA PEDAGÓGICA. CONCLUSÃO BIBLIOGRAFIA ÍNDICE FOLHA DE AVALIAÇÃO ANEXOS 8 9 INTRODUÇÃO Pensar a Educação de Jovens e Adultos (EJA) no mundo atual exige um novo olhar para o mundo, percebendo que uma nova ordem sócioeconômica mundial se organiza e os avanços da revolução científicotecnológica causam impacto de todo tipo. O quadro é alarmante : 2/3 da população do planeta ou está passando fome ou morrendo de fome; as opções econômicas vêm afetando o meio ambiente no que diz respeito à qualidade do ar e da água; grande contigente de pessoas são excluídas do mercado de trabalho. No que se refere a educação, cresce o número absoluto de analfabetos...Por trás disto, está a idéia da lógica do mercado econômico. Na reflexão pedagógica sobre essa modalidade educativa, tem especial relevância a consideração de suas dimensões social, ética e política. O ideário da Educação popular, referência importante na área, destaca o valor educativo do diálogo e da participação, a consideração do educando como sujeito portador de saberes, que devem ser reconhecidos. Educadores de jovens e adultos identificados com esses princípios têm procurado, nos últimos anos, reformular suas práticas pedagógicas, atualizando-as ante novas exigências. O educador Paulo Freire, através das riquezas do seu pensamento, representa a fonte inspiradora desses princípios. O acesso à leitura de sua obra foi permitindo ampliar o olhar para a educação, especialmente aquela direcionada aos jovens e adultos. Vale registrar duas idéias que marcaram essa experiência. A primeira, quando o educador afirma: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”. Isso significa dizer que o alfabetizando quando procura a escola já traz consigo conhecimentos e experiências da vida - sua leitura de mundo indispensáveis para que possa ler a palavra. Experiência e conhecimentos que vão sendo produzidos nos múltiplos espaços da vida cotidiana. Essa vivência, 9 10 marcada pela relação entre pessoas e conhecimentos vai sendo (re) significada compondo suas idéias, seus pensamentos, suas aspirações. Assim, os sentidos atribuídos à leitura de palavras estarão sempre marcados por essa leitura de mundo, como afirma Paulo Freire (1995, p.63). “É partindo da leitura do mundo: ”Que alfabetizando faz e com o qual vem aos cursos de alfabetização (leitura que é social e de classe)... todo processo de alfabetização de adultos implica o desenvolvimento crítico da leitura do mundo, que é um que fazer político conscientizador”. A segunda idéia importante no pensamento freireano diz respeito à relação dialógica entre os sujeitos - professor e aluno - no ato educativo, não havendo, supremacia de um pensamento (do professor), nem a desqualificação do outro (o do aluno). Ao contrário, esta relação dialógica permite o respeito à cultura do aluno e a valorização do conhecimento que este traz para a escola. O diálogo se torna a peça-chave para a compreensão do ser humano e do próprio processo educativo. Diversas pessoas não tiveram oportunidade de ter acesso ao conhecimento sistematizado e institucionalizado na idade própria ou, ainda, quando conseguiam chegar à escola, foram expulsas após sucessivas reprovações. Normalmente, depois de algum tempo, voltam à escola para “recuperar” o tempo perdido. Entretanto, na busca desse saber institucionalizado encontram verdadeiros obstáculos, levando-os, novamente, a abandonarem a escola, ou serem expulsos dela, mais de uma vez. O que será que leva os alunos da EJA a procurarem a escola tardiamente e, depois de algum tempo, a abandonarem ou serem, por ela, excluídos? Qual a importância do professor na permanência ou exclusão do aluno na escola? Como percebe o seu papel social e como esse papel se revela na sua prática pedagógica? O que influencia ou influenciou essa forma de ser professor? 10 11 Para tentar responder essas questões, mesmo que de forma provisória, foi desenvolvida uma pesquisa numa escola estadual que oferece o regular noturno para jovens e adultos, especificamente, na turma de 3ª série do ensino fundamental. Como caminho metodológico optou-se pelo “mergulho” no espaço cotidiano da escola, visando sentir, conversar, estabelecer um olhar renovado para os sujeitos aí presentes (professora e alunos). Esse mergulho se deu de forma mais intensa em 2001, num período de 3 meses, durante dois dias da semana. Nesse tempo, realizou-se entrevistas com a professora e alguns alunos, no intuito de resgatar suas histórias de vida; conversas com alunos, professores, funcionários nos vários espaços da escola (refeitório, pátio, secretaria); procurou-se conhecer vários instrumentos pedagógicos (material didático, alguns cadernos dos alunos; plano de aula e avaliação do professor); observação de aulas; fotografias de imagens significativas. Com tantos dados da pesquisa, foi-se desvelando os fios que tecem a trama do cotidiano investigado. Para melhor compreender esse estudo investigativo a estrutura do presente documento está composta de dois capítulos. No primeiro - Pedagogia includente: Uma concepção de educação de jovens e adultos, como próprio nome sugere, explicita-se a concepção que irá fundamentar o trabalho de pesquisa. No segundo capítulo - Buscando compreender a prática pedagógica, analisa-se o contexto dessa prática, os materiais didáticos e o papel dos sujeitos na re-significação do espaço educativo da EJA. Finalmente, a conclusão que aponta pistas, buscando sinalizar questões que poderiam contribuir para uma prática mais conseqüente, mais ética e mais humana. 11 12 CAPÍTULO 1 PEDAGOGIA INCLUDENTE: UMA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 12 13 PEDAGOGIA INCLUDENTE: UMA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS Falar sobre educação de Jovens e Adultos no Brasil exige análise e discussões bem amplas, dada a complexidade do ato educativo, porque envolve questões além do educacional, relacionadas às condições de desigualdade sócio-econômica em que se encontra a maioria da população de nosso país. Porém, não podemos deixar que essas condições impostas pelo poder, que certos grupos (elite) exercem sobre outros (populares) e pelo descaso que nossos governantes dão à educação em geral, principalmente à educação de jovens e adultos, feneçam nossas forças. Por isso é imprescindível reporta-se à Paulo Freire, quando afirma: “Ao reconhecer que, precisamente porque nos tornamos seres capazes de observar, de comparar, de avaliar, de escolher, de decidir, de intervir, de romper, de optar, nos fizemos seres éticos e se abriu para nós a probabilidade de transgredir a ética, jamais poderia aceitar a transgressão como um direito mas como uma possibilidade. Possibilidade contra que devemos lutar e não diante da qual cruzar os braços.” (Freire, 1997, p.113). Quando Paulo Freire alerta para o perigo de se “cruzar os braços” reconhece que a luta é uma categoria histórica e, por isso, temos a possibilidade de reinventar a forma também histórica de lutar. Como a história não é determinista mas sim feita de possibilidades, as pessoas, assumindo a condição de sujeitos, produzem também na EJA uma infinidade de experiências significativas. Algumas vezes influenciadas pelo poder público, 13 14 outras vezes pelo movimento social, outras, ainda, por ações particulares de pesquisadores e educadores da EJA. Frente a esse universo multifacetado de práticas educativas, podemos distinguir uma concepção de educação que reconhece o universo cultural e a experiência do educando em processos educativos, bem como, o sentido social e político da educação. Através do pensamento de Cortella (1998) é válido refletir o sentido social e político desta educação, considerando a imensa massa de cidadãos adultos ainda analfabetos. Hoje, fala-se euforicamente sobre o aumento da universalização do ensino fundamental no Brasil, mas não se pode esquecer que essa dimensão quantitativa é insuficiente para assegurar a educação às classes trabalhadoras como um direito objetivo de cidadania. E ele ainda afirma que, a dimensão quantitativa (universalização do ensino) precisa ser tratado junto com a qualidade social (acesso e permanência) e a qualidade do ensino (formação contínua do professor; a relação democrática entre aluno e professores e entre esses e as instâncias dirigentes; a gestão democrática englobando as comunidades; a democratização do saber). O sentido político e social da educação das classes trabalhadoras está assim ligado à democratização do saber, marcada por uma sólida base científica, formação crítica de cidadania e solidariedade de classe social. Retomando a universalização do ensino, se é verdade que as classes trabalhadoras, neste momento, passam a freqüentar mais amiúde os bancos escolares, não se pode negar que, o discurso neoliberal vem reservando a modalidade de atendimento escolar aos jovens e adultos, objetivos bastante definidos, que são os de qualificar e requalificar a mão-deobra para atender às exigências do mercado capitalista. Entretanto, não é uma escola pública na qual o trabalhador simplesmente aprende o que iria utilizar no dia-à-dia (em uma dimensão utilitária e redutora) que vai revelar uma nova qualidade social e, sim, aquela que: 14 15 “selecione e apresente conteúdos que possibilitem aos alunos uma compreensão de sua própria realidade e seu fortalecimento como cidadãos, de modo a serem capazes de transformá-la na direção dos interesses da maioria social.” (Cortella, 1998,p.16) Ao refletirmos o porquê de não se estabelecer uma intimidade entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduo, estamos nos dando conta de um olhar imbuído daquilo que Paulo Freire chama de consciência ética. Como educador devemos estar atento à situação que merece o repensar e o refletir em cima dessa questão. Para isso é necessário a ética, inseparável da prática educativa, pois: “não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não ser assumindo-nos como sujeitos éticos”. (Freire, 1997, p.43). Saber que se deve respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando e, na prática, procurar coerência com este saber, comprova a superação de uma posição anti-ética. Nesta perspectiva, é antiético, por exemplo, tomar como verdadeiro o saber do educador no espaço escolar, desqualificando os educandos na sua forma de falar, de se comportar, tal qual ocorre na prática social mais ampla de uma sociedade marcada pelas relações assimétricas de poder entre pessoas e grupos. Para ilustrar situações de uso do conhecimento como o poder que certos grupos exercem sobre outros, faz-se referência aos exemplos descritos por Cortella (1998, p.18), quando afirma: “O Conhecimento é fruto da convenção, isto é, de acordos circunstanciais, que não necessariamente representam a única possibilidade de interpretação da realidade.” São eles: 15 16 • O termo vândalo, designição do povo de origem germânica que no século V avançou sobre domínios anteriormente conquistados pelos romanos, transmutou-se em sinal de brutalidade, gerando, inclusive, a palavra vandalismo; • Muitos livros, ao narrarem a ascensão do mundo romano, contam as violentas e avassaladoras conquistas por ele empreendidas usando a valorosa expressão “expansão do Império”, quando, ao contrário, apontam causas de sua queda, fala-se em “invasões bárbaras” (sendo que muitas delas eram somente a retomada de seus territórios); uma é expansão e, quando feita do mesmo modo pelo outro, é invasão. Assim, temos “civilização romana”, mas não “civilizações bárbaras”. Ampliando as reflexões sobre a pedagogia inclusiva e não excludente, vale à pena retomar o discurso da “qualidade” na educação dos alunos trabalhadores. O que seria “qualidade” para os teóricos neoliberais e os homens de negócios? Provavelmente não será o mesmo atribuído por muitos educadores: o significado de luta e práxis educacional. A concepção de qualidade para esses educadores, está assim atrelada a uma visão sociológica e política de educação: o combate às desigualdades, às dominações e às injustiças de qualquer tipo. Contrapondo a essa visão de qualidade, os defensores da política neoliberal formatam um novo sentido a esta palavra. Como está ligado ao modelo gerencial das instituições, uma nova roupagem ganha espaço e entra em cena a “Gerência de Qualidade Total” (GQT). Segundo essa perspectiva, a escola vem sofrendo com a má qualidade, má administração e incompetência dos professores e se faz necessário tomar medidas que venham solucionar os problemas detectados. Dentre estas medidas estão: a determinação de um currículo comum a todas as escolas do país, a introdução de modernos recursos 16 17 tecnológicos nas salas de aulas, programas de capacitação dos docentes, bem como estratégias de avaliações das escolas. Essa é a expressão daqueles que ainda pensam que a sociedade, a economia, a educação e todas as esferas da vida social funcionam melhor se regidas pela lei do mercado. No Brasil, com base nessa perspectiva, defende-se uma educação que: “se coloque a serviço do processo de modernização do país e que atenda as novas exigências do mercado de trabalho, derivadas das transformações que o recente avanço tecnológico vem provocando no processo produtivo” (Moreira, 1996). Assim, o emprego da expressão “GQT” no setor educacional tem sido justificada, por ser a escola um dos elos da cadeia produtiva e sustenta uma moral puramente técnica, que na verdade esconde sua natureza essencialmente política. Segundo Silva (1996, :173) a qualidade da educação está estreitamente ligada à distribuição dos recursos materiais e simbólicos que lhe são associados. Quanto mais houver desigualdades, mais ainda poderá se medir o grau de qualidade de um ou outro serviço, partindo do pressuposto de que não é possível ignorar o fato de que a qualidade educacional que visa a competitividade tem sua matriz conceitual na diferença, pois as condições de igualdades não são viabilizadoras de disputa. Não se pode deixar de mencionar que a discussão da qualidade educacional perpassa também a discussão de currículos, dos métodos e dos processos de avaliação, pois, é sabido que esses critérios estão vinculados à uma idéia hegemônica que acentua, discrimina e hierarquiza certos saberes em detrimento de outros. Nesse sentido, a qualidade na educação tem significado, na maioria das práticas educativas, a tentativa de preparação dos alunos para a competitividade, mediante um ensino supostamente mais competente, fortemente marcado pelo tecnicismo, pelo “como fazer”, e não pelo “por que fazer”. Não é à toa que muitos países vêm adotando formas de controle por 17 18 meio de estabelecimento de Parâmetros Curriculares Nacionais e Avaliações Nacionais. Segundo Moreira (1996) teria-se melhor aproveitamento dessa propostas curriculares, se fossem direcionados para o apoio e o incentivo a reformas locais, organizadas segundo os interesses e as necessidades do professorado, dos estudantes e da comunidade. Porém, o que se percebe é que estas propostas têm como objetivos: avaliar, classificar e controlar o trabalho docente, mostrando-se como instrumento de controle nas salas de aulas. Esse mesmo autor aponta para o fato de que o currículo nacional, ao ser justificado como um projeto que visa a construção e preservação de uma cultura comum, tende a privilegiar um saber em detrimento de outro, ou seja, manter o discurso hegemônico e excluir os discursos e vozes dos grupos sociais oprimidos, vistos como “não merecedores de serem ouvidos no espaço escolar.” Destaca-se também, que o interesse econômico prevalece na formulação do currículo, assim como a valorização da modernidade da sociedade como ajuste social, acentuando-se a exclusão e as desigualdades sociais. É Moreira ainda, que estimula o debate em torno desta problemática quando lança os seguintes questionamentos: “Pode-se construir uma sociedade moderna e democrática a partir de fundamentos sociais tão precários? Deve-se organizar a escola e o currículo em conformidade com as novas necessidades tecnológicas ou deve-se elaborar teorias pedagógicas e curriculares que considerem a exclusão social que busquem alternativas de lutas por justiça social? Há ainda, uma outra crítica desse mesmo autor que dirige-se aos possíveis efeitos da implantação do currículo nacional nos docentes e discentes: A desqualificação do professorado, uma vez que se tem uma “receita” que poderá ser administrada sem maiores complicações. O professor 18 19 de posse desta receita não se sentirá estimulado para buscar alternativas e inovações em sua atuação pedagógica, visto que, supostamente já as possue. O tom conservador que está implícito nas propostas curriculares evidencia um paradoxo no discurso modernizador que ouvimos anunciar e que está impressa na seleção e organização dos conteúdos curriculares. No caso da EJA o currículo poderia ser organizado para além das disciplinas, considerando que o conhecimento que representa - o científico não é o único, nem o verdadeiro. Além disso, o caráter fragmentado das disciplinas dificulta a compreensão da realidade que é complexa. A adoção de eixos temáticos ou temas transversais no currículo tem sido o caminho apontado pelos educadores como aquele que possibilita a circulação de outros conhecimentos, que confrontados com o científico, favorece a criação de novos saberes para explicar e atuar na realidade social. Se conclamamos a favor de uma pedagogia includente e crítica, é preciso assim, incorporar no currículo as “culturas vividas” pelos alunos jovens e adultos, respeitando suas experiências e seus saberes, sempre confrontando com “outros” saberes. É preciso, ainda, levar em consideração a relação escola e trabalho, não na ótica da preparação de mão-de-obra qualificada, e sim, no sentido de considerar o trabalho como eixo fundamental para se pensar o currículo, através da compreensão de como as sociedades vêm organizando seus processos de trabalho, buscando compreender o expressivo índice de desemprego na sociedade brasileira. Como princípio alternativo às críticas apresentadas às propostas de currículo nacional, é ainda Moreira quem sugere: “Ao invés de um currículo que se projete a partir de uma suposta cultura comum, propõe-se um currículo que parta das desigualdades e 19 20 diversidades da cultura brasileira, dando e garantindo espaço às diferentes vozes e grupos que constituem”. Pensar a construção de um projeto político pedagógico da EJA (currículo) significa resgatar o papel do aluno e professor - sujeitos na trama social, considerando o desenvolvimento das potencialidades humanas como um marco, que tem continuidade nas diversas fases da vida humana. Significa romper com estigmas e rótulos que estão presentes nos discursos oficiais, priorizando na relação dialética o conhecimento, o saber e a participação ativa dos sujeitos (aluno-professor) ali envolvidos. Esses critérios são extremamente importantes para que se construam relações, tanto nas histórias do cotidiano quanto na vida concreta da escola, e que vão definindo como os sujeitos sociais ali atuam, pois, como lembra Edwards (1997) ... “professor e aluno constituem-se sujeitos sociais que se relacionam e interagem com as diversas situações vividas tanto no mundo da escola quanto na particular elaboração de seu mundo.” Edwards (1997, p.13) 20 CAPÍTULO 2 BUSCANDO COMPREENDER A PRÁTICA PEDAGÓGICA 22 BUSCANDO COMPREENDER A PRÁTICA PEDAGÓGICA 2.1 - CONTEXTUALIZANDO A PRÁTICA EDUCATIVA Inicialmente foi mencionado que, o contexto escolar pesquisado situa-se no município de São Gonçalo, na rede estadual de ensino em uma turma de 3ª série do ensino regular noturno, com uma média de 20 alunos. A escola atende alunos do ciclo básico (1ª a 4ª série) no período diurno e a noite funciona com o curso regular de 1ª a 4ª série para jovens e adultos. Apesar da escola estar localizada bem próximo ao centro de São Gonçalo, a comunidade escolar é oriunda de bairros periféricos, cujos alunos, na sua maioria, pertencem à classe popular. 23 Este serviço foi extinto de forma arbitrária, e a partir daí, buscouse os órgãos oficiais, no sentido de compreender os motivos pelos quais se deixa de oferecer esta modalidade de ensino aos alunos trabalhadores. O modelo burocrático dos sistemas educacionais e a dificuldade, de se obter dados para os trabalhos de pesquisa nessa área, impediram de ter maior clareza sobre a problemática da extinção do curso da EJA. Foi possível apenas que a divisão técnica informasse o número de escolas que oferecem a EJA: 44. Desse número, 22 funcionam com o curso supletivo e 22 com o curso regular noturno. Seria esse número suficiente para atender a demanda de escolaridade, ao nível de ensino fundamental, dos jovens e adultos? Ao contatar a Coordenação de Ensino da II Metropolitana Regional, a chefe responsável por esse setor afirma que a continuação de um determinado curso exige número suficiente de alunos e que de acordo com o diário oficial, a estimativa é que se tenha um número quantitativo de 22 alunos (1ª a 4ª série) no mínimo. A visita nas escolas realizada pela controladora que tem a função, como o próprio nome sugere, de controlar toda a parte burocrática e administrativa da escola, determina em comum acordo com a direção, as viabilidades e possibilidades de se executar determinada tarefa. Desta feita, foram elas (controladora e diretora) que apresentaram através de documentos encaminhados à coordenadoria o pedido de extinção do curso. Insistindo nesta questão, segundo o relato da diretora da respectiva escola, a causa teria sido a elevada taxa de evasão escolar que ocorria no ano letivo. Assim, sendo, os alunos deste curso foram remanejados para outras escolas que ofereciam tal serviço. 24 Parece claro que a justificativa utilizada para a extinção de um serviço que, de uma forma ou de outra, contribui para a garantia do direito dessas pessoas à educação está estreitamente ligada a lógica do poder, legitimando um discurso que é próprio daqueles que decidem. Assim, a idéia de participação que envolve vários sujeitos (incluindo os alunos) é negada na prática, prevalecendo as idéias, as concepções, os interesses de determinados grupos. Neste caso específico a culpabilidade da evasão parece recair sobre os alunos. São aqueles que, segundo a direção da escola, não “querem” estudar e, por isso abandonam a escola. Um dado importante de mencionar é que no quadro de profissionais que atuam na escola pesquisada - especialista (1), diretor (1) e professores, incluindo os de EJA (12) - 4 (quatro) possuem nível de escolaridade superior. Embora essa atuação se deva, segundo eles, a um desejo de cada professor, não se pode deixar de reconhecer a ausência de uma formação específica na área da EJA. Problema que marca a história dessa educação e que, por isso mesmo, exige a sua inclusão nas formulações da política. O relato de toda essa problemática torna-se importante para analisarmos a falta de políticas públicas na EJA, no âmbito federal, que se expressa pela própria indefinição da responsabilidade da EJA e da limitação orçamentária para essa área como por exemplo, quando o Presidente da República veta a possibilidade de inclusão do quantitativo de alunos do supletivo, para destinação de recursos relacionados ao FUNDEF (Fundo de Manutenção do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério). 2.2. LIVRO DIDÁTICO: DEFINIDOR DO CONTEÚDO DA EJA? 25 Logo no primeiro contato com a escola, dentro da sala de aula, e ao longo de toda a pesquisa constatou-se que o livro didático se tornou um acessório indispensável na atividade docente da professora D., na medida em que ele basicamente definia o conteúdo escolar. Por que será que o livro didático continua presente nos espaços escolares, apesar das várias mudanças ocorridas no pensamento pedagógico? O que faz a escola de hoje continuar adotando o livro didático? É necessário resgatar a dimensão histórica do uso do livro didático para tentar compreender um pouco essas questões. Na realidade o livro didático nasce nos meados do século XVII, quando novas necessidades sociais exigiam novos moldes de satisfazê-las. Do atendimento quase individual na classe burguesa a escola agora sob a responsabilidade das autoridades oficiais, precisa atender centenas de alunos. Assim Comênio propõe, um plano de organização da escola em um método para se educar com eficiência - “ensinar tudo a todos”. Se a existência de muitos livros levava, segundo Comênio, a distração dos espíritos, ele propôs o uso de um único livro que contivesse todo o saber da humanidade, tal livro redigido por homens sábios, conforme as leis da conformidade, da solidez e da benignidade ocupando-se das coisas úteis. Se naquela época, o livro didático continha os elementos fundamentais do trabalho docente - conteúdo e método, subtraindo do professor o seu próprio fazer, ainda hoje, não permaneceria esta mesma lógica? Soares (1996) ajuda compreender a própria essência da escola, quando afirma: “A escola é uma instituição burocrática, portanto, fundamentalmente ortodoxa: nela se ordenam e se hierarquizam ações e tarefas... Sobretudo, 26 selecionam-se no amplo campo da cultura, dos conhecimentos, das ciências, das políticas sociais, os saberes e as competências a serem ensinados e aprendidos”. Sendo assim, o saber sofre um processo de seleção, acentuando a tradição dominante do saber escolar como sendo o saber da elite. Currículos, programas e materiais representam estratégias sociais e educacionais para a concretização e operacionalização desse saber produzido pela “humanidade”. Mas não seria este saber, como nos lembra Costa (1998) aquele produzido pelo colonizador, branco, europeu? Nesse sentido, o livro didático instituiu-se historicamente como instrumento escolar para assegurar a aquisição de saberes e competências julgados indispensáveis “à inserção das novas gerações na sociedade”, isto é, aqueles saberes que a ninguém é permitido ignorar. Ao colocar o livro didático em questão, intenciona-se refletir sobre seu uso nas práticas de educação de jovens e adultos, pois, este foi utilizado como fonte exclusiva de informação na prática pedagógica pesquisada, a partir da qual não posso deixar de me perguntar: onde ficam as demais linguagens que circulam no cotidiano dos alunos? Como contemplar os conhecimentos produzidos pelos grupos populares? De que forma um material voltado para o público infantil pode se destinar ao jovem e adulto? Para compreender melhor o uso de material didático, já agora nas práticas pedagógicas da EJA, novamente reporta-se à dimensão histórica de sua produção. Fávero (1982), menciona que é a partir de uma nova concepção de educação de jovens e adultos que tinha por princípio alfabetizar com conscientização é que serão criados materiais educativos para jovens e adultos rompendo com a lógica que sempre norteou o uso de materiais didáticos para a EJA (voltado para crianças), como revela um fragmento do livro de leitura Viver é Lutar produzido na década de 60. Pedro não desanima. Sente que a luta não é só dele. É uma luta de todo o povo. Luta de todos os homens. Todos devam lutar por Justiça. Justiça para todos os homens: homens que sofrem, homens que fazem sofrer. A luta de Pedro é nossa luta. Todos nós lutamos para viver como homens. 27 Bilhete: BILHETE é uma carta mais simples e mais curta Exemplo de bilhete: Goianinha, 21-6-63 Prezado João Lembre-se da reunião do Sindicato, domingo próximo, dia 30, aqui na sede. Avise o pessoal daí e venha com muita gente. O assunto a ser discutido será a Reforma Agrária, de tanto interesse para todos nós. Um abraço para você e até Domingo. Pedro Exercício: Escreva bilhetes sobre os seguintes assuntos: 1.° dizendo que estará presente na reunião do Sindicato; 2º a um colega, avisando que haverá reunião na escola. Esse mesmo autor lembra que a partir de 1970, a poderosa máquina do Mobral produziu materiais únicos sob a justificativa do baixo custo. Isso não impediu a existência de outras iniciativas educativas vinculada ao movimento social, como também, não impediu a existência de outros materiais didáticos ligados a Fase, o Idac, o Urplan, o Cepis e o Seduc-Social. Atualmente, apesar da produção ainda restrita nessa área, vivemos um paradoxo. Ao mesmo tempo que o MEC encaminha a todas as Secretarias Municipais um conjunto de materiais produzidos por diferentes entidades (livro didático - SME Curitiba- PR, Parâmetros Curriculares Nacionais - Ação Educativa / SP, Avaliação Diagnóstica dos níveis de Alfabetismo Adulto - PUC / RJ) não se pode negar à transferência de técnicas e recursos por parte das instituições que produzem materiais, para elementos das classes populares. 28 Retomando a pesquisa, além de perceber que o livro didático basicamente definia o conteúdo daquela experiência, ainda era possível perceber o quanto este era desprovido de aprendizagem significativas para o aluno. Esses questionamentos possuem uma certa preocupação na forma como o conteúdo é trabalhado, até porque o ensino da gramática não assegura aos alunos uma maior desenvoltura no seu processo de escrita. É possível perceber que a maioria desses exercícios se limitava a enunciados do tipo: copie, complete, ordene sílabas e separe em sílabas. É válido ressaltar que o uso da gramática na escola pode ser um objetivo válido, desde que se utilize alguns procedimentos que vão ajudar o aluno a dominar efetivamente o maior número possível de regras, isto é, segundo Possenti (1996, p.83) significa, “que se torne capaz de expressar-se nas mais diversas circunstâncias, segundo as exigências e convenções dessas circunstâncias.” Esse aspecto é relevante na medida em que se faz necessário adequar cada conhecimento, cada leitura ao mundo do aluno jovem e adulto. Na concepção desenvolvida por Dayrell (1996, p.156) o aluno aprende quando, de alguma forma, o conhecimento se torna significativo para ele, ou seja, quando estabelece relações substantivas e não arbitrárias entre o que se aprende e o que já conhece. Para esse autor significa dizer que: “a aprendizagem implica, assim, estabelecer um diálogo entre o conhecimento a ser ensinado e a cultura de origem do aluno”. Diferente desta concepção, o que foi oferecido aos alunos através de textos infantilizados, provavelmente significou uma experiência desprovida de sentido porque desconsiderou o nível de preocupações, de desejos, de interesses, dos alunos, considerando que desempenham diferentes papéis sociais (trabalhadores, pais ou mães, integrantes de movimentos religiosos, políticos, sociais etc...) 29 Ao invés de levar os alunos a um conhecimento mais profundo da realidade e a um posicionamento crítico frente a essa realidade, os temas apresentados nas aulas de português, extraídos do livro, pareciam servir apenas como simples leituras de “interpretações” de textos, restritas ao que o autor quis dizer, negando a co-autoria dos alunos porque poderiam atribuir outros sentidos ao texto. COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO 1. Qual a resposta verdadeira? Escreva no caderno. Que é Tumebune? a) Um mosquito. b) Um vaga-lume. X c) Um pernilongo. 2. Complete no caderno: Doido apaixonado enamorado a) Tumebune era ★ e ★. Vivia sempre ★. desenhando poesia b) Ele vivia ★ corações e fazendo ★. 3. Responda no caderno: a) Qual era a paixão de Tumebune? Ele tinha paixão por eletricidade. b) O que Tumebune fazia quando via um enceradeira? Ele não resistia, acendia... escrevia uma poesia, muito da e 4. Tumebune, o vaga-lume, só sabia o verbo amar. Quantas vezes ele usou esse verbo nos versos que fez para a lâmpada elétrica? Três vezes. As interpretações de texto possuíam, assim, uma única interpretação. O próprio livro didático parecia possuir a mágica desta interpretação e o aluno não tinha oportunidade alguma de sugerir outras interpretações possíveis ao texto. Nessa situação descrita, o professor elimina a etapa reflexiva da leitura ao fazer com que os alunos se encaixem na interpretação fornecida no seu manual, com resposta certa, pronta e acabada. 30 Assim, a leitura dos textos, da forma como eram apresentados não ajuda a desenvolver nos alunos, a reflexão, a criatividade, a criticidade etc... Retira-lhes a possibilidade de serem sujeitos dos seus próprios atos. Há uma nítida dicotomização. De um lado a leitura da palavra e de outro a leitura do mundo (realidade). Ampliando as possibilidades de leitura do texto escrito, Paulo Freire (1997, p.12) afirma: “Como educador preciso de ir lendo cada vez melhor a leitura do mundo que os grupos populares com quem trabalho fazem de seu contexto imediato... Não posso de maneira alguma, nas minhas relações políticopedagógicas com os grupos populares, desconsiderar seu saber de experiência feito.” Essas reflexões desafiam os educadores, especialmente os da EJA, a desenvolverem posturas e instrumentos metodológicos que possibilitem o aprimoramento do seu olhar sobre o aluno, (“outro”). Só assim, poderá compreender as marcas étnicas, religiosas, sociais, culturais, de gênero que definem os grupos e as pessoas (incluindo os alunos da EJA), entendendo que a diferença não é deficiência. 2.3. NO CONFRONTO ENTRE OS SABERES DA ESCOLA E DO ALUNO, OS SUJEITOS RE-SIGNIFICAM O ESPAÇO EDUCATIVO DA EJA. 31 Reconhecer a escola como espaço sócio-cultural implica resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituição, buscando compreendê-la no seu fazer cotidiano. Segundo Edwards (1997) são as histórias do cotidiano - os fatos e as relações que se manifestam na vida concreta da escola - que vão definir como os sujeitos sociais ali atuam. Esta análise privilegia a ação dos sujeitos, sem desconsiderar as relações que estabelecem entre si, sempre marcados pelas tensões e negociações, alianças e conflitos em função de situações determinadas pelo contexto e vivenciadas pelos sujeitos (alunos, professores, funcionários). Uma tarefa nem sempre fácil na pesquisa sobre cotidiano escolar. Chegando à escola pesquisada, mais especificamente à sala de aula, a primeira impressão foi a de que os alunos da EJA reagiam de forma passiva ao que lhes era apresentado. Porém, quanto mais observava-se, percebia-se que o equívoco era notável. Flora (uma aluna de 36 anos, que trabalha num lar para idosos no Centro de São Gonçalo) é um relato vivo dessa experiência. Seu caderno, inicialmente revela indícios sobre quem é a aluna Flora: uma pessoa zelosa, caprichosa, super organizada e que registra aquilo que está no quadro-negro ou no livro didático. Porém, em uma folha solta de caderno, talvez aí esquecida, supõem-se ser uma carta direcionada a um ente querido seu. Neste momento, vislumbra-se uma outra Flora. Não mais aquela que copia ou cumpre o que a escola determina mas que, autonomamente, busca um outro sentido para a escrita no uso do caderno: a carta, como veremos a seguir. 32 Buscando compreender o que ela tem a dizer à sua cunhada, inicialmente identifica-se o uso social que faz da escrita - comunicar-se com pessoas através da carta - tão diferente das práticas vivenciadas na sala de aula. Revela ainda, o sentimento de partilha, de generosidade, de solidariedade humana. Percebe-se também que domina a estrutura de um texto, mas faltam elementos(cabeçalho e despedida) Em uma reportagem da revista Nova Escola intitulada: Ler e escrever de verdade, verifica-se a importância de se conhecer a necessidade real do aluno, muito mais do que decodificar códigos escritos, é essencial aprender a ler e descobrir o mundo. Ora, se percebe-se que essas pessoas possuem todos esses saberes, essa vivência, então, é de extrema valia, resgatar a história da vida desses sujeitos que ali estão. Esse resgate é importante porque aprendemos a 33 dialogar com o “outro” e nesse processo, confrontar saberes, permitindo criar novos conhecimentos no espaço escolar. É pertinente ressaltar a análise feita por TITO (1996) quando propõe que a instituição escolar seria resultado de um confronto de interesses: de um lado, uma organização oficial do sistema escolar que “define conteúdos, atribui funções, organiza, separa e hierarquiza o espaço e os saberes, a fim de diferenciar trabalhos, definindo idealmente, assim, as relações sociais”; de outro, os sujeitos - alunos, professores, funcionários, que criam uma trama própria de inter-relações, fazendo da escola um processo permanente de construção social. Retomando a experiência inicial na pesquisa, no sentido de conhecer melhor os sujeitos (alunos), através de um gesto simples, mas “grávido” de sentido, ouviu-se as histórias daqueles alunos, como por exemplo: o relato de Leandro quando fala do seu cansaço diário, já que saía do trabalho direto para escola. Cansaço que não o impediu de buscar na escola conhecimentos que foram sendo mais eficazes à medida em que eram aplicados em sua vida cotidiana. Ele conta que aprendeu a ler melhor quando começou a trabalhar, pois, sua profissão exigia conhecimento de leitura, já que era entregador de medicamentos (FARMAIS) e por isso precisava ler os endereços dos clientes. Nas conversas, ia-se percebendo os usos sociais da sua escrita e os sentidos que ele atribui à ela, como revela a sua fala: “Aprender mais porque ajuda no meu trabalho” Conversas que se davam nos múltiplos espaços da escola e que fizeram aprender e refletir sobre as marcas desqualificadoras que carregam essas pessoas (estereótipos) revelados na fala da aluna Creuza: “Acontece que eu tô perdendo muita aula, português então. Matemática até que eu levo, mas português é difícil, eu não sei nada, sou burra, burra.” 34 Esses estigmas são muito bem analisados por Costa (1998) que em seu ensaio relata o quanto a política de representação cultural está encharcada de representações que criam identidades que são legitimadas segundo visões de mundo na qual, quem estabelece critérios de validade e realidade é quem tem o poder: o poder de narrar, o poder da representação. Desta mesma forma, essas idéias vão minando os currículos escolares. Não é à toa que muitos desses alunos reproduzem o que a vida toda eles ouviram falar e tiveram como correto. No entanto, sabemos que essa não é a realidade. Seria diferente e compensador se, ao invés de uma aula em que os alunos chegam na sala, depois de um dia estafante de trabalho, só copiam, copiam e copiam, se fizesse uma atividade pedagógica que lhes proporcionassem um momento prazeroso, onde essas pessoas pudessem dialogar, interagir, trocar experiências, partilhar idéias, enfim, vivenciar “experiências humanas”. Experiências que, sem desconsiderar a razão, reconhecessem a emoção como parte integrante das pessoas, portanto, fundamental nos processos de aprendizagem e de formação de cidadãos autônomos, críticos. Condição quase sempre negada pela situação de exclusão em que vivem, cotidianamente, a maioria desses alunos. São situações desafiadoras que nos remetem a auto-reflexão, a repensar nossas práticas e discursos. Por mais que a escola determine conteúdos, espaços, regras, ainda assim, esses alunos sempre, de alguma forma, se apropriarão dos espaços, que a rigor não lhes pertencem, recriando neles novos sentidos. Resignificando-os, eles vão produzindo estratégias próprias, para suportar a “chatice” das aulas. Um outro movimento realizado na tentativa de (re)conhecer os sujeitos que ocupam os diversos espaços na escola, foi o registro fotográfico. 35 Nesta foto as imagens revelam momentos de alegria, de interação entre os alunos. Procuram qualquer espaço físico ao ar livre quando estão “sem aula” como por exemplo: a quadra, o quintal bastante simpático com muitos arbustos, o pátio para neles marcarem o sentido da escola que não está restrito ao “conhecimento escolar”. Ao contrário, esse sentido está ligado a brincadeira, festas, jogos, conversas. Já nesta outra foto, tentando captar as escritas que circulam nas escolas, depara-se com os trabalhos produzidos pelos alunos em comemoração ao dia internacional da mulher. É interessante observar as imagens que sempre sugerem padrões de belezas - mulher branca, loira, de olhos azuis, e condições sociais quase sempre de uma classe social privilegiada. Nesse sentido como as identidades das alunas negras, pobres vão se constituindo? Se considerarmos as fontes, revistas, que foram utilizadas para retiradas das imagens deste trabalho, não seriam os meios de 36 comunicação, incluindo o poder de televisão, instrumentos que legitimam um único modelo de identidade? Buscando compreender ainda melhor o papel dos sujeitos na resignificação do espaço educativo da EJA, a pesquisa redireciona-se para um outro sujeito - a professora. Para tanto foi necessário ouvir a narrativa da sua história de vida no intuito de identificar as razões que revelam a sua forma de pensar a educação e nela atuar. Neste movimento de ouvir e analisar percebeu-se inicialmente uma certa resistência de D. ao relembrar sua infância, quando afirma: “minha infância eu não lembro não.” Levando em consideração que sua infância foi marcada pelas precárias condições de vida: ajudava a mãe a lavar roupa para outras pessoas, estudava, mas não lhe restava muito tempo para brincar. E quem de nós, ao recordarmos nossa infância, não nos lembramos de nossas divertidas brincadeiras? Quase sempre, imediatamente, associamos infância ao prazer, à alegria, à brincadeira reconhecendo o direito de ser criança. Nesse caso, talvez de uma forma justificada, D. não tenha o que lembrar desse período de sua história. Uma passagem marcante deste relato, já agora na fase adulta, foi o fato dela anunciar que a princípio tinha medo de trabalhar com adolescente, porque ouvia as pessoas falarem “mal”. Então, o que a levou a lecionar na educação de jovem e adulto? Após uma pausa respondeu: - “Eu sempre quis trabalhar à noite, e eu queria deixar de trabalhar com criança...” Percebe-se aí, que ela difere trabalho com criança do trabalho com adulto. Essa noção de diferença, porém, parece se limitar a identificá-los biologicamente mais amadurecidos e, conseqüentemente, mais fácil de se trabalhar. Essa idéia foi percebida em um dos momentos da sua fala: “os 37 alunos mais interessados eram os mais velhos, os desinteressados eram os mais jovens.” Interessados, para ela, eram “bons alunos”. E o que seria um bom aluno? Por meio de uma ficha-resumo, identificou-se o sentido desta qualificação: possuir um certo conhecimento dos conteúdos programáticos, como mostra a sua ficha de avaliação de um dos seus alunos. Esta foi a concepção que D. Trouxe consigo ao longo de sua história, especialmente no curso de formação de professores. Tradicionalmente, aprendeu assim. A tradição, aliás, é um marco muito forte em sua trajetória de vida profissional - é professora há 28 anos, mas, parece que não conseguiu ousar romper com a cultura escolar que foi sendo incorporada no seu dia-a-dia na escola. Esta idéia se baseia na pesquisa em sala de aula onde a “mesmice” parecia marcar a sua prática pedagógica: o uso exclusivo do livro didático como referência das atividades de leitura, de escrita, de matemática; a repetição das mesmas práticas educativas quase sempre iguais; a ausência do 38 diálogo entre alunos e professora como se à essa apenas coubesse o papel de transmissora de conhecimentos; a ausência de uma prática coletiva de trabalho do conjunto de professores. Acredita-se que assim como D., existem muitos profissionais do ensino, que atuam dessa mesma forma. E serão eles o “culpado” por isso? Não seria necessário uma inclusão nas políticas de formação de professores, de uma formação específica, como já anteriormente foi mencionado? 39 CONCLUSÃO Foi refletindo sobre as subjetividades e a condição de sujeitos dos alunos, da professora, enfim, de todos os envolvidos no processo de pesquisa, que tenta-se apontar pistas que revelam novas possibilidade de se pensar e atuar na EJA. Se almeja-se uma sociedade includente onde a educação de jovens e adultos tenha um importante papel nesta construção, a formação do educador dessa área precisa fazer parte da política de educação do país. Formação que possibilita em conhecimento específico dos jovens e adultos: seus saberes, seus conhecimentos, seus falares, seus valores, formação que precisa reconhecer que o ato educativo é complexo porque envolve questões que vão além do espaço escolar, como as questões de gênero, classe, etnia, religião. Só assim o professor poderá compreender que a sua prática será sempre um ato político. Qualquer decisão está sempre a favor de alguns ou contra outros. Compreendendo as relações de poder postas na sociedade é que o professor poderá compreender o seu papel social no espaço escolar: promover confrontos entre os saberes dos alunos e os da escola, a partir das experiências que organiza. Uma formação que precisa reconhecer que a prática educativa é inseparável da ética. Respeitar os múltiplos papéis sociais que o aluno assume na sociedade, enfim, a sua própria história de vida, é sem dúvida, uma posição eticamente correta. Só assim será possível construir um projeto de sociedade mais democrático, mais humano e mais solidário. Esta postura ética na prática pedagógica, ajuda a superar as desigualdades e as injustiças, tão enraizadas em nossas escolas e em nossa sociedade. Quem sabe não seria a ausência dessas percepções que fizeram 40 e ainda fazem os alunos da EJA, a “desistirem” da escola? Reafirma-se que são as histórias narradas, contadas e vividas no cotidiano pelos sujeitos que poderiam ser priorizadas no ato do fazer educativo, histórias de vida que ajudam a seleção de “conteúdos” merecedores de maiores aprofundamentos. Nesse sentido o material didático não pode ser definidor do conteúdo das práticas educativas da EJA, considerando os demais conteúdos que são extraídos das histórias de vida dos alunos. Se considerarmos ainda, o sentido ideológico de todo o bem cultural, incluindo o didático, a formação do educador precisa contemplar nas suas propostas a análise desse material, percebendo as intenções e concepções de como se dá o conhecimento. Formação que precisa ser contínua, considerando a incompletude do ser, e, reconhecendo ainda, os saberes que a professora vai criando na sua prática pedagógica em outros espaços de sua vida cotidiana. Nessa perspectiva de formação não se pode deixar de considerar o trabalho coletivo do conjunto de professores, possibilitando a partilha de saberes. Uma outra pista que precisa ser considerada na educação de jovens e adultos é o reconhecimento da condição de sujeitos dos alunos e professores. Voltando-se a questão inicial - por que se abandona a escola?, hoje percebe-se que se essa educação não for marcada pelas experiências humanas, pode contribuir para o seu abandono. Entretanto, como os alunos reagem de forma diferenciada ao mesmo contexto, diante de suas histórias de vida, muitos insistem em permanecer na escola. Buscar a qualidade da EJA no que se refere a escolaridade, não pode desconsiderar a dimensão quantitativa de atendimento, que já envolve qualidade dessa educação, mas precisa considerar também a dimensão qualitativa desse ensino. Qualidade que precisa ampliar as práticas de 41 pesquisa considerando a condição de sujeitos, na perspectiva de contribuir nos conhecimentos teórico-metodológicos da educação de jovens e adultos. BIBLIOGRAFIA CORTELLA, Mário Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. São Paulo: Cortez, 1998. COSTA, Marisa Vorraber. Currículo e Política. Cultural. In: Costa, Marisa Vorraber (org.). O Currículo nos limiares do Contemporâneo. Rio de Janeiro: DP&A, 1998 DAYRELL, Juarez. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, Juarez. Múltiplos Olhares. MG: UFMG, 1996. EDWARDS, Verônica. Os sujeitos no universo da escola. São Paulo: Ática, 1997. FÁVERO, Osmar (Org.). Cultura popular e Educação popular: Memória dos anos 60. Rio de Janeiro: Graal, 1982. FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1995. Cartas a Cristina. São Paulo: Paz e Terra, 1994. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997. LIPPI, Valéria Martins. De palavra em palavra: Língua Portuguesa 3 . São Paulo: FTD, 1991 MOREIRA, Antonio Flávio Barbosa. Parâmetros Curriculares Nacionais: Críticas e Alternativas. In: SILVA, Tomaz Tadeu da e GENTILI, Pablo (org.) Escola S/A: quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: ALB: Mercado de letras, 1996. RIBEIRO, Vera Maria Masagão et el; Joia, Orlando (coor). Metodologia da Alfabetização: Pesquisas em educação de jovens e adultos. Campinas, SP: Papirus; São Paulo: CEDI, 1992. SILVA, Tomaz Tadeu da. O projeto educacional da nova direita e a retórica da qualidade total. In: SILVA, Tomaz Tadeu da e GENTILI, Pablo (org.). Escola S/A quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. Brasília: CNTE, 1996. SOARES, Magda B. Um olhar sobre o livro didático. In: Presença Pedagógica v.2 n.12 - nov/dez. Belo Horizonte: Dimensão, 1996. TITO, Eneida Mª R. de Macedo. A cidadania em sala de aula: Professora cidadã, aluno cidadão. In: SILVA, Luiz Heron (org.). Novos Mapas Culturais: Novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996. ÍNDICE AGRADECIMENTO III DEDICATÓRIA IV RESUMO V METODOLOGIA VI SUMÁRIO VII INTRODUÇÃO 08 CAPÍTULO I PEDAGOGIA INCLUDENTE: UMA CONCEPÇÃO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS 12 CAPÍTULO II BUSCANDO COMPREENDER A PRÁTICA PEDAGÓGICA 2.1 – Contextualizando a prática educativa 21 2.2 – Livro didático : definidor do conteúdo da EJA? 24 2.3 – No Confronto entre os saberes da escola e do aluno, os sujeitos resignificam o espaço educativo da EJA. 30 CONCLUSÃO 38 BIBLIOGRAFIA 41 ÍNDICE 43 FOLHA DE AVALIAÇÃO 44 ANEXOS 45 FOLHA DE AVALIAÇÃO UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES Instituto de Pesquisa Sócio-Pedagógicas Pós-Graduação “Latu Sensu” Título da Monografia: EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS: QUANDO OS SUJEITOS (RE)SIGNIFICAM O ESPAÇO EDUCATIVO NOS SEUS MOVIMENTOS DE BUSCA E DE ABANDONO DA ESCOLA Data da Entrega: 04/01/02 Avaliado por:__________________________________Grau______________. Rio de Janeiro, 04 de Janeiro 2002 ____________________________________________ Coordenador do Curso ANEXOS