Um olhar sobre Santa Cruz
A permanência em Santa Cruz1, ainda que por poucos dias, fez-me reportar a um passado não muito
distante. A minha infância e juventude estão intimamente ligadas, enraizadas nesse cenário: casarões,
palacete do matadouro, base aérea, áreas arborizadas, largo do bodegão:
«o grande largo conhecido por Bodegão (hoje conhecido oficialmente), apresentava no apogeu da carne
verde, um movimento diário calculado em mais de duas mil pessoas, que para ali acorriam na
expectativa dos mais extravagantes negócios» 2.
Enorme surpresa as informações que acenam para o largo do bodegão com tamanha vitalidade
hodiernamente. Trata-se da mega festa em louvor a São Jorge, que acontece desde 1963, quando da
iniciativa dos devotos do santo em realizar procissões todos os anos caso a epidemia da febre amarela que
assolava a região Oeste do Rio de Janeiro cessasse. O Santo guerreiro foi grande intercessor diante de Deus,
o que resulta na grande manifestação popular todos os anos3.
Diante de tantas belezas que respiram cultura, faço mencionar as palmeiras imperiais, o matadouro
industrial, a cruz do mirante e a imponente paróquia da Imaculada Conceição, fruto da luta, garra dos padres
1
[A fazenda de Santa Cruz foi a mais importante propriedade dos Jesuítas, com origem remontando à fundação do Rio de Janeiro
e a existência sócio-econômica repercurtindo extra-fronteiras, decorrente da intensa valorização de seus bens, oriundos de doações
à Companhia]. FREITAS, B. Santa Cruz, fazenda jesuítica, Real, Imperial, Vol I. Artes Asa gráfica Ltda, Rio de Janeiro/RJ, 1985,
p. 28-29.
2
[Hoje o Bodegão é sombra do que foi. Mas, como quem é rei, sempre é magestade, ele ainda virá a possuir seus dias de esplendor], FREITAS,
B.História do matadouro industrial de Santa Cruz, Pongetti editores, Rio de Janeiro/RJ, 1950, p. 100-101.
3
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2009/04/22/santa-cuz-tera-tradicional-procissao-do-dia-de-sao-jorge-755376387.asp
estigmatinos e da comunidade católica Santacruzense, que ali tanto trabalharam e fizeram história, fato este
que me fez registrar numa entrevista por ocasião dos 250 anos da paróquia: «Os estigmas trabalharam
incansavelmente focados na formação do povo de Deus naquela região, bem como a construção dos
templos4. Tudo isso faz jus ao que é retratado na letra e melodia de Salvador P. da Silva sobre a nossa
realidade: « Oh! Santa Cruz! Teu passado tem glória, o teu nome seduz. Oh! Santa Cruz, o teu nome é
história»5.
No tocante a presença da Igreja, cabe lembrar sem desmerecer outros, a figura do Pe. Guilherme
Decaminada6 e Pe. Luciano Dal`zoppo7. Foi nesse espaço sagrado que se deu a minha ordenação presbiteral
precisamente no dia 01/02/1992, depois de longo tempo de estudos no seminário estigmatino em
Campinas/SP8. Santa Cruz é um bairro composto de pessoas dignas, simples e acolhedoras, essa é a minha
gente!
Não é fácil para um jovem, ou adolescente deixar o seu nascedouro, o aconchego da família e seus
amigos com a finalidade de abraçar a vida religiosa e sacerdotal, consciente também, que depois de todo
processo formativo, o trabalho a ser desenvolvido dificilmente se daria no seu «habitat» predileto por se
tratar da pertença a uma Congregação religiosa missionária por excelência, que propõe como finalidade:
"Missionarii Apostolici in obsequium Episcoporum". De que modo? «sob a orientação e dependência dos
Ordinários do lugar onde se pregarem Missões. Devem obedecer-lhes em tudo no que se refere às
atividades do Ministério Apostólico, recebendo antes a autorização com as devidas faculdades necessárias,
e observando sempre as disposições acerca do lugar e tempo do exercício do ministério» (do Decreto da 5.
Congregação de Propaganda de 20 de dezembro de 1817)9.
Em busca do ideal deixa-se a jurisdição, mas guardando sempre no coração as preciosas coisas
vivenciadas em Santa Cruz. Tenho orgulho de pertencer ao bairro, de ser sacerdote estigmatino e carioca.
Santa Cruz é uma paixão, lugar do meu descanso, minha casa. A permanência nesse «ninho» rejuvenesce.
Cabe aqui ressaltar a importância de um projeto de vida: o jovem precisa manter firme não apenas o
seu ideal, mas a busca cotidiana da concretização do que lhe realiza como pessoa humana. A formação é um
4
http://www.arquidiocese.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=3946&sid=39
http://pt.wikisource.org/wiki/Hino_de_Santa_Cruz_(bairro_do_Rio_de_Janeiro).
6
Guilherme nasceu em Cis (região do Trentino-Alto Ádige, Itá1ia), aos 17 de novembro de 1912. Entrou no seminário em Verona
aos
02
de
setembro
de
1926.
Noviço
aos
08.09.1931,
professou
aos
09.09.1932.
Veio para o Brasil aos 13.11.1.935. Ordenou-se sacerdote em Ribeirão Preto - SP aos 15.08.1.939.
Exerceu seu ministério pastoral como pároco e vigário paroquial em Ituiutaba - MG, Formosa - GO, Uberaba - MG, São Paulo –
SP (Parada Inglesa) e Rio de Janeiro – RJ (Santa Cruz). Era amigo e colega sempre disposto para tudo quanto fosse iniciativa ou
trabalho. Tinha verdadeira paixão pela botânica prática. Encantava-se com a flora tropical. Gostava de longos passeios a pé, sentia
prazer e entusiasmo em escalar montanha, para cujo esporte era dotado de grande resistência física. In,
http://falecidosdeabril.blogspot.com/
7
Luciano Dal Zoppo nasceu aos 19 de setembro de 1916, em S. Stefano di Zimella. Entrou em Trento aos 09/09/1930. Ordenado
sacerdote em Verona aos 28 de Julho de 1942, exerceu o ministério na Itália em Sezano, Verona e Milão. Aos 19 de março de
1947 chegou ao Brasil a fim de por em prática seu zelo missionário. Exerceu o sacerdócio em Rio claro/SP, Ribeirão Preto/SP,
Barretos/SP, São Caetano/SP e Santa Cruz/RJ. Foi professor, vigário paroquial e pároco. De inteligência privilegiada e grande
preparo intelectual, lecionou por alguns anos, em nossos seminários. No ambiente paroquial pôde tornar-se muito útil ao povo de
Deus. In, HTTP://falecidos demaio.blogspot.com/
8
A paróquia Imaculada Conceição foi entregue a arquidiocese aos 06 de fevereiro de 1999, conforme Doc. Prot.007/99-Boletim
Provincial/Província Santa Cruz, Ano XL - Janeiro a Julho/1999, nº 01, p. 50.
9
BONETTI, I. Alla Scuola di Dio con S. Gaspare Bertoni (Note di Spiritualità), Biblioteca Eletrônica: www.estigmatinos.com.br.
5
processo que acontece de modo permanente. De longe, ou às vezes conferindo de perto, tomo as devidas
informações e notícias sobre o espaço que amo. Posso dizer que não existe dicotomia, e que apesar de tantos
anos, sinto-me como se nunca tivesse dali me ausentado.
O que me entristece?
A notícia do incêndio que atingiu o hospital Pedro II em outubro de 2010; o «asfalto» colocado na
Travessa Victor Dumas e em tantas outras ruas, sem considerar antecipadamente a importância do
saneamento básico, o que resulta nas águas das chuvas que invadem as casas causando danos e perdas aos
moradores. Esta é uma pequena amostra do descaso das autoridades competentes no que se refere aos
cuidados do bem estar do povo. Áreas desocupadas e cheias de mato, o que causa aos moradores certo
medo. Falta de oportunidade de emprego em meio a tantas empresas de grande porte que se alojam no
distrito industrial.
O que me alegra? Ouvir o eco e conferir a resistência e a insistência do Ecomuseu, no que tange a
apresentação de propostas de trabalhos, exposições e estudos, cuja finalidade é manter viva a memória do
seu povo, do seu bairro, a sua cultura; escolas e faculdades que ali se fazem presente, o que facilita aos
nossos estudantes o não deslocamento para outros bairros; a vila olímpica Oscar Schmidt, que tanto bem traz
ao local ao focar os jovens na prática de esportes salutares; o carnaval com a presença de blocos e do povo
que toma o seu espaço como outrora; o G.R.E.S. Acadêmicos de Santa Cruz, que mantém obras sociais de
inclusão e não mede esforços para alcançar o seu lugar na elite do carnaval carioca.
Recordo-me do período, quando seminarista ainda, na fase dos estudos filosóficos, escrevi algumas
linhas que retratavam a realidade da praia de Sepetiba, tão badalada outrora, outro marco da minha
adolescência:
Poeira nos olhos, areia no chão
Em Sepetiba, vento do mar.
Saudade tenho daqueles tempos,
das gaivotas felizes a voar.
Porque tuas ondas, tristezas
Te fazem o lamento do povo infeliz,
Até Iemanjá se acanha
Com tua fineza ao vir se banhar.
Cadê teus saveiros, os pesqueiros
Da festa de Pedro do mar.
Cadê pescadores com cheiro
De peixe, cachaça e suor10.
Muito me apraz constatar as obras de recuperação da praia de Sepetiba, motivo de orgulho para nós
Santa-cruzenses. Aliás, exatamente nesse local se deu nos idos anos de 1973, a gravação da novela o Bem-
10
OLIVEIRA, J. L. M. Cadê Sepê. Do simples ao feudalismo (Escritos descompromissados), 1984, Campinas/SP. Algo mais
sobre Sepetiba podemos constatar em Roda de lembranças – Sepetiba: Memórias dos pescadores e moradores. Quarteirão, NOPH
nº 85, Rio de Janeiro/RJ, p. 15
Amado, telenovela brasileira, escrita por Dias Gomes11. Quero nutrir a esperança de que estas iniciativas
benéficas possam ser estendidas ao bairro na sua totalidade e que possa ser garantida a manutenção deste
trabalho magnífico.
Um olhar sobre Santa Cruz se faz mister. Não podemos nos omitir e sim nos lançar e nos
aprofundar sobre a nossa história e torná-la conhecida. Ter o prazer de pertencer a um lugar que, como
afirma Moritz Schwarcz em sua obra12:
«A fazenda foi cenário de luxo para d. João VI ritualizar seus costumes monárquicos portugueses, os
quais começaram a tropicalizar-se em virtudes da força do clima, que rapidamente desfazia as finas
sedas usadas para cobrir as paredes do palácio como atestou a viajante inglesa, e da presença de novos
povos e culturas. Foi ainda palco para as extravagantes caçadas de d. Pedro I e para as vistorias de d.
Pedro II aos famosos escravos cantores».
Não poderia deixar de parabenizar o trabalho de Janaina Botelho, que, solitária e na surdina, com a
sutileza e delicadeza das mãos, apresenta a história do nosso bairro nas suas várias etapas de construção, ou
seja, recria o bairro em maquetes13, obra minuciosa e singular exposta no Centro Cultural, por iniciativa do
NOPH.
Pe. Dr. Jorge Luis Moura de Oliveira, CSS.
Doutor em Direito Canônico pela Pontificia Universitas Lateranensis/Roma
Juiz do Tribunal Eclesiástico de Apelação de São Paulo/SP e do Tribunal eclesiástico de
Campinas/SP.
Estudante do curso de Direito na Unisal em Campinas/SP.
Pároco da Paróquia São Benedito – Centro – Campinas/SP.
11
O Bem-Amado foi gravado em Sepetiba, bairro da cidade do Rio de Janeiro, cf. http://pt.wikipedia.org/wiki/O_BemAmado_(telenovela).
12
Schwarcz, L. M. Nas barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1998,
p.228.
13
Reportagem de autoria do jornalista Bruno Cunha e ilustração com belas fotos de autoria de Thiago Lontra, in O Globo e Extra,
revista Oeste, edição de sábado, 21 de maio de 2011.
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