NOVAS REFLEXÕES SOBRE A PRESCRIÇÃO DE OFÍCIO NO
DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO
Mauro Schiavi1
Segundo Pontes de Miranda2, “a prescrição é a
exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante certo tempo, que
alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação. Serve à segurança e à paz
públicas, para limite temporal à eficácia das pretensões e das ações”.
Sob o prisma do Novo Código Civil (lei 10406/02),
destaca Carlos Roberto Gonçalves3, “o novo Código Civil, evitando essa
polêmica, adotou o vocábulo ‘pretensão’ para indicar que não se trata do direitos
subjetivo público abstrato de ação. E, no artigo 189, enunciou que a prescrição se
inicia no momento em que há violação do direito”.
Continuando, Carlos Roberto Gonçalves4 menciona
que “hoje predomina o entendimento na moderna doutrina, de que a prescrição
extingue a pretensão, que é a exigência de subordinação de um interesse alheio
ao interesse próprio. O direito material, violado, dá origem à pretensão (CC, art.
189), que é deduzida em juízo por meio da ação. Extinta a pretensão, não há
ação. Portanto, a prescrição extingue a pretensão, atingindo também a ação. O
instituto que extingue somente a ação, conservando o direito material e a
pretensão, que só podem ser opostos em defesa) é perempção”.
Atualmente, com a entrada em vigor do parágrafo 5o
do artigo 219 do CPC5, que revogou o artigo 194 do CC 6 a prescrição pode ser
conhecida de ofício pelo Juiz de Direito. Desse modo, independentemente de
1
Juiz do Trabalho na 2ª Região. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Professor Universitário
(graduação e pós-graduação). Professor dos Cursos Preparatórios LACIER (Campinas) e ROBORTELLA
(São Paulo). Autor dos livros: A revelia no Direito Processual do Trabalho; Ações de Reparação por
Danos Morais Decorrentes da Relação de Trabalho, ambos publicados pela Editora LTr.
2
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado, Campinas: Bookseller, Volume 6, 2000, p. 135.
3
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil, 10a Edição, São Paulo: Saraiva, Volume 1, Parte Geral,
2003, p. 181.
4
Op. cit., p. 183.
5
Artigo 219, p. 5º, do CPC: “O juiz pronunciará de ofício a prescrição”.
6
Artigo 194 do CC/2002: “O juiz não pode suprir de ofício, a alegação da prescrição, salvo se favorecer
absolutamente incapaz”.
requerimento do réu, a prescrição pode ser reconhecida pelo juiz em qualquer
grau de jurisdição.
Inegavelmente, com o conhecimento de ofício pelo
juiz da prescrição, esta ganhou contornos de matéria de ordem pública e interesse
social, de modo que a prescrição deixa de ser um instituto renunciável, para
adquirir contornos de irrenunciabilidade, destacando o caráter publicista do
processo.
Nota-se que o legislador, motivado pelos novos rumos
da celeridade e efetividade processual, priorizou a segurança e estabilidade das
relações jurídicas, bem como com a tranqüilidade do devedor, em detrimento do
titular da prescrição.
Como destaca Luciano Athayde Chaves7, “o atual
desenho da prescrição no plano processual , como matéria afeta à defesa indireta
contra o mérito da causa, apresenta-se como mais uma demonstração da
tendência publicista que se incorpora à atuação jurisdicional, atribuindo ao Juiz
um papel mais ativo na composição dos conflitos”.
Pode-se questionar o acerto do legislador em alterar a
natureza jurídica da prescrição para matéria de ordem pública, pois a prescrição é
um instituto que beneficia o réu, pode ser renunciada, ainda que tacitamente, é
matéria de mérito (artigo 269, IV, do CPC) e, portanto, deve ser invocada em
defesa, pode em determinadas hipóteses legais, sofrer suspensão e interrupção.
Além disso, pode-se até invocar o fato de quebra da imparcialidade do juiz ao
pronunciar de ofício a prescrição, aniquilando a pretensão do autor e por via
reflexa o próprio mérito.
Mesmo sendo aplicável de ofício a prescrição pelo
juiz de direito, acreditamos que ele deva tomar algumas cautelas ao tomar tal
providência. Acredito que deva propiciar o contraditório e observar as hipóteses
de interrupção e suspensão da prescrição, bem como se o direito for patrimonial
disponível, tentar a conciliação, uma vez que a finalidade do processo, diante do
seu caráter publicista de ser um instrumento de pacificação social, sempre que
7
CHAVES, Luciano Athayde. A recente reforma no Processo Comum. Reflexos no Direito Judiciário do
Trabalho. São Paulo: LTR, 2006, pág. 136.
possível, deve o juiz tentar a conciliação, objetivando a pacificação do conflito,
ao invés de aplicar, de forma incisiva a legislação processual.
Não obstante os argumentos acima destacados, diante
da clareza do parágrafo 5º, do artigo 219, do CPC, não há como de negar que a
prescrição adquiriu contornos de matéria de ordem pública.
Com a mudança do CPC, a prescrição de ofício pode
ser pronunciada pelo Juiz do Trabalho?
Talvez esta seja uma das questões mais polêmicas
tanto do Direito Material com do Processual do Trabalho da atualidade.
Em trabalho anterior, com suporte nas primeiras
manifestações da doutrina a respeito, e das primeiras reflexões a respeito,
sustentamos a possibilidade do Juiz do Trabalho pronunciar de ofício a
prescrição, pelos seguintes argumentos8:
a)no processo do trabalho não se aplica o princípio da
irrenunciabilidade de direitos; b)a prescrição ganhou contornos de matéria de
ordem pública e interesse social; c)a CLT é omissa a respeito do momento em
que se deve pronunciar a prescrição e quem pode invocá-la, restando aplicáveis
as regras do CC (artigo 8º, da CLT e do CPC (artigo 769, da CLT); d)embora a
prescrição tenha natureza jurídica de mérito e pertença ao Direito Material, é a lei
processual que deverá dizer o momento de sua alegação em juízo; e)se, em razão
da natureza irrenunciável do crédito trabalhista, não se puder invocar a prescrição
de ofício, também não poderemos aplicar a decadência, diante das similitudes
entre os dois institutos9, já que a prescrição fulmina a pretensão e a decadência o
próprio direito;f)há compatibilidade da norma processual civil com o processo do
trabalho, pois a CLT é omissa e não há violação dos princípios que regem o
8
SCHIAVI, Mauro. A Revelia no Direito Processual do Trabalho: Legalidade, Justiça e Poderes do Juiz
na Busca da Verdade. São Paulo: LTr, 2006, p. 94.
9
Como adverte com propriedade Manoel Antonio Teixeira Filho se referindo à atual redação do p. 5º, do
artigo 219 do CPC, “o texto legal em exame é de grande importância prática para o réu, por evitar que ele
seja prejudicado pelo fato de não alegar a prescrição (extintiva). A norma incidirá no processo do
trabalho, pelo mesmo motivo que o art. 219, p. 5º, do CPC, em sua redação anterior, era pacificamente
aplicado ao processo do trabalho. Não haverá antagonismo com o art. 7º, inciso XXIX, da Constituição
Federal (As novas leis alterantes do Processo Civil e sua repercussão no Processo do Trabalho. In Revista
LTR 70-03/298).
Direito Processual do Trabalho, restando aplicável o artigo 769 da CLT10.
Após muita reflexão a respeito, e estudos mais
aprofundados sobre o tema, estamos convencidos de que o juiz do trabalho não
deve pronunciar de ofício a prescrição.
Com
efeito,
primeiramente,
destaca-se
que
a
prescrição tem natureza híbrida, pois se entrelaça tanto o direito material como o
processual do trabalho. Embora, hoje, o conceito de prescrição esteja vinculado à
extinção de uma pretensão, tal efeito provoca a inexigibilidade do direito,
acarretando a extinção do processo com resolução de mérito.
Em tendo o instituto contornos de Direito Material, a
interpretação da prescrição no Direito Material do Trabalho não pode estar
divorciada dos princípios do Direito Material do Trabalho, dos quais se destacam
os da proteção tutelar e irrenunciabilidade de direitos.
Ensina Américo Plá Rodriguez 11 que o fundamento
do princípio protetor “está ligado á própria razão de ser do Direito do Trabalho.
Historicamente, o Direito do Trabalho surgiu como conseqüência de que a
liberdade de contrato entre pessoas com poder e capacidade econômica desiguais
conduzia a diferentes formas de exploração. Inclusive as mais abusivas e iníquas.
O legislador não pôde mais manter a ficção de igualdade existente entre as partes
do contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade
econômica desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica a ele
favorável. O Direito do Trabalho responde fundamentalmente ao propósito de
nivelar desigualdades. Como dizia Couture: ‘o procedimento lógico de corrigir
desigualdades é o de criar outras desigualdades’”.
Quanto à irrenunciabilidade de direitos, este princípio
impede que o trabalhador abandone um direito de forma definitiva que já está
incorporado ao seu patrimônio jurídico.
10
No sentido da aplicabilidade do instituto do reconhecimento da prescrição de ofício ao Processo do
Trabalho, encontramos os recentes estudos de Sebastião Geraldo de Oliveira (Prescrição nas ações
indenizatórias decorrentes de acidente de trabalho ou doença Ocupacional, in Revista LTR 70-05/523);
José Augusto Rodrigues Pinto (Reconhecimento ex officio da prescrição e processo do trabalho, in
Revista LTR 70-04/391); Francisco Antonio de Oliveira (Prescrição com nova cara in Revista LTR 7005/519).
11
Rodriguez, Américo Plá. “Princípios de Direito do Trabalho, 3ª Edição, São Paulo, LTr, 2000, pág. 85.
Deve ser destacado que o processo do trabalho e o
judiciário trabalhista têm por finalidade e função institucional dar efetividade aos
direitos trabalhistas e garantir a dignidade da pessoa humana do trabalhador, bem
como facilitar o acesso do trabalhador à Justiça do Trabalho. Estes fatores que
são a razão da existência da Justiça do Trabalho impedem que a prescrição seja
pronunciada de ofício pelo Juiz do Trabalho.
Por outro lado, embora o Direito do Trabalho e o
Processo do Trabalho sempre tenham se valido tanto do Código Civil (artigo 8º,
da CLT), como do Código de Processo Civil (artigo 769, da CLT), para
disciplinar as hipóteses de interrupção, suspensão e até o momento da alegação
da prescrição pelo demandado, esse argumento não autoriza que o parágrafo 5º
do artigo 219 do CPC seja automaticamente aplicável ao Processo do Trabalho,
pois embora a CLT, aparentemente, não discipline tais questões, há necessidade
de uma filtragem prévia pelo juiz acerca da compatibilidade de tal instituto com
os princípios que regem o Direito Processual do Trabalho e o Direito Material do
Trabalho.
Além disso, o reconhecimento da prescrição, de
ofício, pelo juiz do trabalho, não propicia a melhoria da condição social do
trabalhador12, previsto no “caput” do artigo 7º, da CF13. Vale lembrar, que a
prescrição é um direito social da classe trabalhadora previsto no inciso XXIX do
artigo 7º, da Constituição Federal. Parece haver uma antinomia entre o “caput”
do artigo 7º, da CF e seu inciso XXIX, pois a prescrição extingue direito, e se
extingue, como se trata de um direito?. Considerando-se os princípios da
interpretação constitucional da máxima efetividade e da unidade da Constituição,
o fato da prescrição constar no rol dos direitos sociais do trabalhador, significa
12
Como destaca Jorge Luiz Souto Maior: “A prescrição, dizem, é um mal necessário. No que diz respeito
ao direito do trabalho é apenas um mal. Não há necessidade nenhuma para a sociedade em geral, que
direitos trabalhistas percam efetividade pela regra da prescrição” (Reflexos das Alterações do Código de
Processo Civil no Processo do Trabalho. In Revista LTr70-08/928). No mesmo sentido, sustendo a
aplicabilidade do princípio protetor vide José Antonio R. Oliveira Silva in Revista LTr 70-12/484.
13
Conforme da definição clássica de Octavio Bueno Magano, o direito do trabalho “conceitua-se como o
conjunto de princípios, normas e instituições, que se aplicam à relação de trabalho, tendo em vista a
proteção do trabalhador e a melhoria de sua condição social”. Ensina Magano que “a referência à
melhoria da condição social do trabalhador indica o fundamento do direito do trabalho, o fim para o qual
convergem suas normas e instituições” (ABC DO DIREITO DO TRABALHO. São Paulo: RT, 1998, p.
10-11).
dizer que esse prazo não pode ser reduzido por lei ordinária e até mesmo por
Emenda Constitucional, pois trata-se de uma garantia fundamental do
trabalhador.
No
nosso
sentir,
além
dos
argumentos
principiológicos acima mencionados, há um dispositivo previsto na CLT que
pode impedir o alento subsidiário do parágrafo 5º do artigo 219, do CPC. Tratase do parágrafo 1º do artigo 884, da CLT que tem a seguinte redação: “a matéria
de defesa será restrita às alegações de cumprimento da decisão ou do acordo,
quitação ou prescrição da dívida”. Embora o referido dispositivo se referia aos
embargos à execução e à fase de execução, pode ser transportado para a fase de
conhecimento por meio da interpretação analógica e se afirmar, no Processo do
Trabalho, por força do citado dispositivo consolidado, a prescrição depende de
iniciativa do demandado, não havendo lacuna na legislação, o que impediria a
aplicação do parágrafo 5º do artigo 219 do CPC.
Por derradeiro, ao aplicar a lei, o juiz deve atender aos
fins sociais a que ela se destina e às exigência do bem comum (artigo 5º, da Lei
de Introdução ao Código Civil). Ainda que se possa sustentar que há
compatibilidade entre o parágrafo 5º do artigo 219 do CPC e o Direito Processual
do Trabalho, acreditamos que o juiz do trabalho possa deixar de aplicá-lo, por ser
socialmente inadequado e injusto, considerando-se os princípios do Direito
Material e Processual do Trabalho. Como destaca Vicente Ráo14, sem dúvida
casos ocorrem nos quais o juiz pode se encontrar diante de lei manifestamente
injusta, à qual não corresponde às condições sociais do momento e cuja aplicação
rígida possa causar dano à ordem pública ou social. Nessa hipótese, melhor será
considera-se a lei inadaptável ao caso concreto, por dissonância com os
elementos de fato e socorrer-se para a solução do conflito, das demais fontes do
direito.
CONCLUSÕES
Diante da redação dada ao parágrafo 5º do artigo 219
14
RÁO, Vicente. O direito e a Vida dos Direito. 3ª ed., São Paulo, RT, 1991, v. 1, p. 68.
do CPC, pela Lei 11.280/2006, a prescrição ganhou contornos de matéria de
ordem público, devendo ser reconhecida de ofício pelo Juiz de Direito.
Mesmo sendo aplicável de ofício a prescrição pelo
juiz de direito, acreditamos que ele deva tomar algumas cautelas ao tomar tal
providência. Acredito que deva propiciar o contraditório e observar as hipóteses
de interrupção e suspensão da prescrição, bem como se o direito for patrimonial
disponível, tentar a conciliação, uma vez que a finalidade do processo, diante do
seu caráter publicista de ser um instrumento de pacificação social, sempre que
possível, deve o juiz tentar a conciliação, objetivando a pacificação do conflito,
ao invés de aplicar, de forma incisiva a legislação processual.
O parágrafo 5º do artigo 219 do CPC não se aplica ao
Direito Processual do Trabalho pelos seguintes argumentos:
a)Incompatibilidade com os princípios que regem o
Direito Material e Processual do Trabalho, máxime os princípios protetor, da
irrenunciabilidade e da melhoria da condição social do trabalhador;
b)reconhecer a prescrição de ofício é socialmente
inadequado e também injusto no Processo do Trabalho;
c)existência de regra expressa na CLT (parágrafo 1º
do artigo 884, da CLT).
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