LIMITAÇÃO E SACRIFÍCIO DE DIREITOS – O CONTEÚDO E AS CONSEQÜÊNCIAS DOS ATOS DE INTERVENÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SOBRE A PROPRIEDADE PRIVADA PATRÍCIA F. BAPTISTA Procuradora do Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Administrativo Doutoranda em Direito do Estado na Universidade de São Paulo. Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. SUMÁRIO: 1. Introdução: a atividade ordenadora da Administração Pública. 2. Os graus de intervenção administrativa sobre os direitos dos administrados. 2.1. As limitações administrativas de direitos. 2.2. Os sacrifícios de direitos. 2.3. Critérios de distinção entre os sacrifícios e as limitações administrativas de direitos. 3. Limites às intervenções ordenadoras da Administração Pública sobre os direitos privados. 4. As limitações e os sacrifícios ao direito de propriedade 1. INTRODUÇÃO: A ATIVIDADE ORDENADORA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA A ordenação da conduta dos cidadãos para que seja desenvolvida conforme os interesses gerais da coletividade ou, ao menos, sem que cause lesões a tais interesses é apontada como uma das principais missões da Administração Pública. Essa missão de ordenação envolve, na verdade, a realização de atividades de distintas ordens, tais as de organização, de direção, de limitação, de controle, de fiscalização e de orientação, por meio das quais a Administração atua sobre a esfera privada dos cidadãos em prol do interesse público1. No direito administrativo brasileiro, acha-se consagrada a denominação poder de polícia para identificar a atividade genérica e multiforme de intervenção da Administração Pública no âmbito privado2. Com efeito, na tradicional definição de Caio 1 Cf. SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso de. Principios de Derecho Administrativo. 3.ed. Madrid: CEURA, 2000, vol. 2, p.255-256. 2 Na verdade, ao menos nas doutrinas alemã, espanhola, italiana e argentina de Direito Administrativo, a denominação poder de polícia, de emprego anteriormente corrente, foi sendo substituída por expressões como Administração Interventora ou Administração Ordenadora. Essas designações são, hoje, preferidas nos manuais daqueles países para identificar as inúmeras formas pelas quais a Administração encontra-se habilitada a incidir sobre a esfera individual dos cidadãos. A decadência e a substituição da designação poder de polícia naqueles países há de ser atribuída ao teor de autoritarismo com que tal expressão acabou impregnada ao longo do tempo, além do aspecto da confusão semântica que suscita à vista das outras formas 2 Tácito, “o poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à administração para disciplinar e restringir, em favor de interesse público adequado, direitos e liberdades individuais”3. Para os fins do presente estudo, interessa-nos investigar especialmente uma das facetas da atividade ordenadora da Administração Pública, qual seja a de limitação dos direitos individuais a finalidades de interesse público e, em particular, a de limitação do direito de propriedade. Assim, serão expostos o conceito e as conseqüências jurídicas das limitações que a Administração impõe sobre os direitos individuais no exercício do poder de polícia e, ainda, as diferenças entre os condicionamentos e os chamados sacrifícios de direitos. 2. OS GRAUS DE INTERVENÇÃO ADMINISTRATIVA SOBRE OS DIREITOS DOS ADMINISTRADOS A atividade administrativa de ordenação dos direitos individuais em decorrência do exercício do poder de polícia administrativa envolve, em geral, todas as atividades de conteúdo negativo que a Administração pratica em relação aos direitos individuais dos cidadãos em prol do interesse público. Em outras palavras, engloba toda intervenção do poder estatal que importe na prática de atos desfavoráveis ou na imposição de gravames que incidam negativamente na posição das pessoas, limitando ou, até mesmo, extinguindo seus direitos por causa do interesse público4. Nesse ponto, convém registrar que a atividade administrativa de ordenação de direitos incide tão-somente sobre direitos legítimos dos particulares. As condutas antijurídicas ou ilegítimas dos cidadãos não são reprimidas por meio de de polícia estatal previstas no ordenamento jurídico. No direito brasileiro, contudo, segue amplamente aceita, sem maior questionamento, a expressão poder de polícia administrativa que, inclusive, tem acolhida no direito positivo, v.g. art. 78 do CTN. No direito francês, até onde se pôde constatar, também permanece a designação de polícia administrativa. 3 4 TÁCITO, Caio. O Poder de Polícia e seus Limites. Revista de Direito Administrativo, vol. , 197 , p. 8. Em oposição aos atos gravosos, estariam os atos ampliadores da esfera jurídica dos cidadãos — os atos favoráveis —, como, por exemplo, as concessões, as subvenções e os subsídios, que, genericamente, constituem a atividade de fomento da Administração Pública, não se confundindo com o exercício do poder de polícia de que ora se trata. Sobre o tema, confira-se CASSAGNE, Juan Carlos. La Intervención Administrativa. 2. ed., atual. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994, p.67-8. Veja-se, também, SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso de. Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p.279. 3 limitações de direitos, mas, sim, pelo emprego da coação e das sanções previstas no ordenamento jurídico5. As intervenções administrativas sobre direitos individuais mais comumente são impostas por meio de atos concretos e singulares de exercício de poder atribuído por lei. Admite-se, porém, que tais limitações possam advir diretamente de normas jurídicas, de leis ou de regulamentos, sem interposição de ato concreto pela Administração. Em qualquer dos dois casos, contudo, há de se ater a Administração à observância do princípio da legalidade administrativa em sua versão mais estrita, na medida em que somente por atribuição legal, direta ou indireta — e, por vezes, constitucional — pode a Administração incidir negativamente sobre a esfera dos direitos individuais6. São diversas as técnicas de ordenação de direitos individuais por razões de interesse público. Tais técnicas se distinguem segundo o grau de incidência ou, em outras palavras, conforme a intensidade da medida interventora incidente sobre o direito do cidadão. Como leciona o administrativista espanhol J. Ramón Parada-Vazquez, dentre as medidas que representariam um grau inferior de intervenção podem ser citadas as obrigações de suportar inspeções ou os deveres de registro, que impõem pequenos ônus ou incômodos aos particulares. Em um patamar intermediário, estariam as exigências de autorização prévia para o exercício de um direito ou de uma atividade. No nível seguinte são mencionadas as proibições formais de exercer atividade ou a imposição de condutas positivas. Por último, o maior grau de intervenção da Administração sobre direito individual seria o próprio sacrifício ou privação do direito em favor de um interesse público, mediante indenização7. Merece registro, igualmente, a sistematização elaborada por Eduardo García de Enterría, na qual o autor pretende alcançar todas as formas em que a ação administrativa incide de forma gravosa ou negativa sobre as situações jurídicas dos administrados. Em especial no aspecto que importa ao objeto do presente estudo, García de Enterría identifica as limitações administrativas de direitos (as que atuam sobre as 5 Nesse sentido, cf. PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. Derecho Administrativo. 12. ed. Madrid: Marcial Pons, 1998, vol. 1, p. 410. 6 Sobre a atuação do princípio da legalidade administrativa como limite às intervenções administrativas sobre os direitos individuais, confira-se o capítulo 3, adiante. 7 PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 1, p. 411-12. 4 condições de exercício do direito, deixando intactos os seus elementos), as delimitações administrativas do conteúdo normal de direitos (que não incidem sobre o exercício do direito, mas, ao contrário, definem o seu próprio âmbito normal) e as potestades ablativas reais (como, por exemplo, as desapropriações e as transferências coativas não expropriatórias)8. Neste estudo, considerando a designação mais freqüentemente adotada nos escritos sobre o tema, tratar-se-á das modalidades de ordenação de direitos individuais pela Administração Pública em dois gêneros: o das limitações administrativas propriamente ditas, também chamadas de condicionamentos de direitos, e o dos sacrifícios de direitos. 2.1. As limitações administrativas de direitos Dentre as diferentes técnicas de limitação de direitos individuais por razões de interesse público, identificam-se, em primeiro lugar, as limitações administrativas em sentido amplo, também chamadas de condicionamentos ou de ablações parciais de direitos. Podem ser enquadradas genericamente como limitações administrativas de direitos tanto medidas que, no direito brasileiro, são estudadas como manifestações do exercício do poder de polícia (por exemplo, as medidas condicionadoras e restritivas do exercício de profissões ou de atividades econômicas), como também medidas elencadas comumente no capítulo da intervenção do Estado sobre a propriedade privada (por exemplo, as limitações administrativas sobre a propriedade em sentido estrito, a ocupação temporária e a requisição administrativa). De um modo geral, a doutrina qualifica como limitações ou condicionamentos de direitos todos aqueles gravames impostos pela Administração 8 Na verdade, E. GARCÍA DE ENTERRÍA repudia a aplicação da idéia de polícia administrativa, que entende ser arcaica, e busca estabelecer um sentido mais amplo de atividade ordenadora ou interventora da Administração Pública, “não no sentido de ordem pública, mas no genérico da ordenação das atividades privadas”, no que, então, se contrapõe ao de atividade prestacional. Por isso, partindo dessa ótica mais ampla da atividade administrativa ordenadora, o autor inclui ainda na tipologia elaborada, além daquelas citadas no texto acima, outras quatro formas de intervenção pública na esfera privada: os sacrifícios das situações de mero interesse (que não configuram direitos subjetivos), as prestações forçadas (pessoais e reais, em especial as tributárias), a imposição de deveres e a imposição de sanções. Todavia, considerando que tais modalidades desbordam daquelas que a doutrina tradicionalmente inclui como sendo expressões do exercício do poder de polícia administrativa, delas não se ocupará o presente estudo. Cf. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo. 9. ed. Madrid: Civitas, 1999, vol. 2, p. 102-104. 5 Pública sobre direitos individuais que não excedam os inconvenientes normais decorrentes da vida em sociedade. Sobre o tema, E. García de Enterría, reportando-se ao esforço dogmático feito pelo italiano Vignocchi, descreve o conteúdo das limitações administrativas de direitos como sendo toda “incidência que não modifica o direito subjetivo afetado, nem tampouco a capacidade jurídica ou de atuar do titular, operando, exclusivamente, sobre as condições do exercício do direito, deixando inalterados todos os demais elementos desse (configuração, funcionalidade, limites e proteção)”. Tais limitações seriam impostas para tornar compatíveis os direitos dos particulares com os da comunidade9. De acordo com o também espanhol J. A. de Santamaría Pastor, toda limitação administrativa envolveria a compressão, a eliminação ou mutilação parcial de algum dos conteúdos do direito. Essa privação parcial poderia se operar de três formas diferentes: (1) pela proibição de um modo concreto do exercício do direito (tal como a proibição de funcionamento de estabelecimento em função do zoneamento urbano ou a proibição de pesca em determinadas épocas do ano); (2) pela privação de alguma das faculdades integrantes do conteúdo do direito (v.g. a ocupação temporária de bens); ou (3) pela imposição de deveres especiais ou requisitos positivos para o exercício do direito (como, por exemplo, a obrigação da observância de normas sanitárias de uso de jalecos ou luvas na venda de carnes ou a obrigação de construção de muro ou de observância de recuo nos imóveis urbanos).10 Como dito anteriormente, parte da doutrina propõe a distinção entre limitações e delimitações administrativas de direitos. Ao contrário das limitações — que atuam sobre o exercício dos direitos —, as delimitações administrativas de direitos, estabelecidas por lei ou por regulamentos, operariam sobre o conteúdo normal do direito, “definindo o âmbito do lícito e recortando os poderes jurídicos do titular, cujo direito não se reputa já preexistente”11. 9 Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., p. 105-6 (tradução do original). No mesmo sentido, a definição apresentada por J. C. CASSAGNE: “as atuações cuja incidência não afeta substancialmente o direito subjetivo do particular nem sua capacidade jurídica, mas atua com exclusividade sobre as condições inerentes ao exercício do direito, sem alterar seu conteúdo normal”. La Intervención Administrativa. Ob. cit., p.73. 10 Cf. Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p.280-1. Os exemplos citados, contudo, são nossos. 11 CASSAGNE, Juan Carlos. La Intervención Administrativa. Ob. cit., p.75. 6 Nessa ótica, por exemplo, seriam delimitações ao direito de propriedade, e não limitações, as restrições legais e regulamentares previstas para o direito de construir. Tais restrições representariam a configuração do próprio âmbito do direito de propriedade, com o objetivo de assegurar a observância da função social da propriedade prevista no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal. Em outras palavras, como próprio direito de propriedade não é assegurado sem o cumprimento de sua função social, as delimitações impostas por norma jurídica ao direito de construir já estariam incluídas na própria extensão original desse direito12. Nem sempre são claras, contudo, as fronteiras entre o que seja uma limitação e uma delimitação administrativa13. Além do mais, a distinção entre ambas não apresenta grande relevância prática na medida em que se assemelham em sua principal característica: a não-indenizabilidade. Talvez por isso, aliás, a doutrina brasileira não costume referir a essa distinção para discriminar os meios de intervenção administrativa sobre os direitos individuais, resumindo-se a diferençar as intervenções restritivas daquelas consideradas supressivas de direitos.14 As mais freqüentes características reconhecidas nas limitações administrativas são: a unilateralidade da imposição pelo Poder Público; a imperatividade da sua observância pelo particular; o caráter meramente restritivo e não supressivo do direito; e, por último, sua não-indenizabilidade, seja em virtude da generalidade do ônus, seja em razão da pequena monta do incômodo imposto. 12 Cf., a propósito, PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 1, p. 416. Semelhante linha de pensamento parece ter influenciado Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, quando este autor estabeleceu a distinção entre a propriedade tomada abstratamente e o direito de propriedade concretamente definido em cada ordenamento jurídico: “Não há direitos ilimitados. Falar em direito — e, pois, em direito de propriedade — é falar em limitações. Assim, é compreensível que dispositivos legais estabeleçam condicionamentos ao exercício de propriedade, traçando deste modo o perfil do direito correspondente. (...) Daí que são distintas as noções de propriedade, abstratamente considerada — ou seja, para além de seu delineamento normativo, em tal ou qual país — e direito de propriedade, pois este é a configuração que ela tem perante certo direito positivo. (...) Percebe-se, então, que ‘propriedade’ é uma noção descompromissada com sua fisionomia em dado direito positivo, ao passo que ‘direito de propriedade’ é a expressão normativamente qualificada da propriedade em certo”. Direito”. In: Tombamento e Dever de Indenizar. Revista de Direito Público, vol. 81, p. 65. 13 14 SANTAMARIA PASTOR, J. A. de. Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 281. Por todos, cf. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p.496; e DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 120. 7 Na verdade, a doutrina é uníssona em apontar o caráter não-indenizável como sendo a nota distintiva mais importante das limitações administrativas de direitos genericamente consideradas. Nesse sentido, é eloqüente a lição de E. García de Enterría: “Uma nota comum a todas as limitações é sua não indenizabilidade. Isso assume especial relevo a propósito das limitações à propriedade e aos direitos patrimoniais, porque esta nota as separa, segundo nosso Direito, das expropriações que supõem incidências administrativas sobre o patrimônio que devem ser indenizadas (...). O tema é extraordinariamente importante, como facilmente se compreende, visto que expressa a diferença entre, por um lado, uma atuação administrativa que deve ser suportada pelo administrado, como uma carga da vida social, sem contraprestação econômica alguma (...) e, por outro lado, aquela outra atuação da Administração que, ainda que produzindo o efeito de um sacrifício imperativo de direitos patrimoniais que o titular destes deve sofrer, faz nascer, correlativamente, um direito a ser indenizado pela perda material que a medida comporta (...).”15 No direito administrativo brasileiro, estão assentadas, praticamente sem divergências, as características das limitações administrativas a direitos, sobretudo o seu caráter não-indenizável, no sentido de devem ser suportadas pelo particular como ônus decorrente da vida em sociedade. Esse entendimento encontra-se muito bem traduzido em decisão proferida, em 1988, pelo Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, cuidava-se do julgamento de recurso no qual o proprietário de um imóvel em Curitiba insurgia-se contra alegada violação de seu direito de propriedade, supostamente perpetrada pela negativa do Prefeito em lhe conceder licença de demolição porque o bem foi considerado como unidade de interesse de preservação em decreto municipal de alcance genérico. “Limitação Administrativa. Prédio considerado unidade de Interesse de Preservação, por decreto do Prefeito de Curitiba. Limitação genérica, gratuita e unilateral ao exercício do direito dos proprietários, em prol da memória da cidade, que tem base no parágrafo único do art. 180 da Constituição da República. Recusa de autorização para demolição que não importa afronta ao direito de propriedade. Recurso não conhecido. (...) 15 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 111-2 (tradução do original). 8 No caso vertente, não tendo havido tombamento, que coloca sob a proteção especial do Poder Público os prédios de valor histórico, não há cuidar de restrição a direitos dos proprietários. Trata-se, sim, de uma limitação, que é uma imposição geral, gratuita e unilateral, condicionadora do exercício daqueles direitos. Entende-se que essa limitação vise a que não se desfigure ou mesmo destrua o prédio que concorra para marcar a memória da cidade de Curitiba. E se o prédio está danificado, a Lei n.º 6.337/82, do Município, prevê a concessão de incentivo construtivo, para a sua recuperação.” (Recurso Extraordinário n.º 114.468-PR, 2ª Turma, Relator Ministro Carlos Madeira, julg. 31/5/88, RDA 173/170) 2.2. Os sacrifícios de direitos Por vezes, a satisfação do interesse público impõe que a Administração Pública vá além do mero condicionamento do direito individual. Determina o próprio sacrifício ou a privação desse direito, no seu todo ou, ao menos em seu conteúdo substancial, em benefício da coletividade. Aqui se estará em face da hipótese que a doutrina reconhece como um sacrifício ou ablação total do direito. Com efeito, designam-se sacrifícios de direitos todos os gravames excepcionalmente impostos pela Administração Pública que importem na eliminação de titularidades específicas de direitos subjetivos em favor do todo social. Trata-se aqui, nas palavras de J. A. de Santamaría Pastor, não de mera limitação, mas da supressão de situações jurídicas ativas16. Apontam-se, normalmente, como sendo espécies de sacrifícios de direitos as desapropriações, as servidões administrativas e, em alguns casos, até os tombamentos, quando estes importem em esvaziamento econômico do bem tombado. As características que com mais freqüência estão presentes nos sacrifícios de direitos são a unilateralidade e a imperatividade das medidas impostas na esfera de uma relação de supremacia geral, a singularidade da privação do direito e, por último, indenizabilidade. Como ensina García de Enterría, não podem ser enquadrados como sacrifícios de direitos decorrentes de intervenção ordenadora do Poder Público aqueles atos ou medidas que se operam em razão da existência de uma relação jurídica singular entre a 16 Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 282-3. 9 Administração e o titular do bem ou direito sacrificado17. Assim, por exemplo, não seriam sacrifícios de direito — no sentido empregado neste estudo — as medidas de ocupação e utilização de bens de concessionária de serviço público pela Administração por ocasião da extinção do contrato de concessão, não obstante a previsão de indenização constante da Lei n.º 8.987/95. Nesse caso, verifica-se uma relação jurídica específica, com critérios próprios de aferição, e não uma relação de sujeição geral no âmbito do poder de polícia. Costuma-se, ainda, apontar a singularidade da medida imposta como uma das características dos sacrifícios de direitos18. Os sacrifícios seriam impostos por ato ou decisão administrativa específica, não decorrendo diretamente de lei ou de regulamento geral. Ocorre, todavia, que, embora a maior parte dos sacrifícios provenha efetivamente de ato singularizador da Administração, aqui e acolá a doutrina e a jurisprudência já têm reconhecido não ser esta uma característica inafastável. Admite-se, na atualidade, que sacrifícios de direitos possam ser impostos por atos de efeitos gerais. A esse tema, porém, retornaremos mais detalhadamente logo adiante, no item 2.3. Por oposição às limitações administrativas de que acima se cuidou, a particularidade apontada como mais importante nos sacrifícios de direito seria o seu caráter indenizável. Mesmo tal aspecto, contudo, não é absoluto. García de Enterría, por exemplo, considera que o dever de indenizar somente estaria presente quando a medida de sacrifício de direito imposta ao particular gerasse, em contrapartida, um benefício econômico ou patrimonial à coletividade ou à Administração. Não havendo, pois, uma inter-relação patrimonial entre aquele que suporta o sacrifício e a Administração, não haveria de se cogitar de indenização. O renomado administrativista cita, como exemplo dessa situação, a transferência coativa de bens que, no direito espanhol, foi determinada pela Lei do Regime do Solo de 1998, na parte em que tratou do reparcelamento urbanístico. Como dito pelo 17 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 247. 18 Nesse sentido, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Tombamento e Dever de Indenizar. Cit., p. 68-9: “É lógico, portanto, que não se qualificam como limitações — e sim como sacrifícios de direito — as medidas que, diversamente do que foi exposto, se propusessem a irrogar particularizadamente gravames excepcionais a certos imóveis (...). Os sacrifícios de direito são impostos por providências legítimas, amparadas em disposições que permitem ao Poder Público, em nome de um interesse sobranceiro, fletir direitos alheios para realizar a satisfação de interesses públicos.” 10 autor, no caso, a transferência coativa de determinados bens foi efetivada em favor dos próprios sujeitos afetados, o que excluiu o direito à indenização19 2.3. Critérios de distinção entre os sacrifícios e as limitações administrativas de direitos A despeito de tudo o quanto acima restou dito acerca das limitações e dos sacrifícios de direito impostos em decorrência da atividade administrativa ordenadora, nem sempre é passível de determinação imediata a efetiva natureza da medida imposta pelo Poder Público. Com efeito, há situações em que não se pode identificar, de pronto, se a hipótese encerra um condicionamento de direito, não indenizável, ou um sacrifício, indenizável. Não tem sido infreqüente, na verdade, que a Administração, por ignorância ou má-fé, se valha de medidas ou formas que ordinariamente são tidas como meras limitações para impor gravames que, na essência, representam autênticos sacrifícios de direito para o administrado. O surgimento de novas medidas de restrição ou privação de direitos também tem contribuído para conturbar ainda mais esse cenário. Situações dessa ordem, por sinal, têm sucedido no âmbito do direito ambiental, ramo em que proliferam novos instrumentos de intervenção administrativa, de controvertida natureza. Mostra-se, assim, de relevância dramática a completa sistematização dogmática do problema. Nas últimas décadas, de fato, a busca de um critério distintivo preciso entre as limitações e os sacrifícios de direitos tornou-se questão tormentosa no direito administrativo, sobretudo à vista de seus importantes reflexos práticos. No passo em que se reconhece o caráter indenizável por essência dos sacrifícios de direitos e a nãoindenizabilidade das limitações, é indispensável perquirir a exata distinção essas espécies do exercício da atividade ordenadora de direitos pela Administração. Na moderna doutrina brasileira, importante contribuição na 20 sistematização do problema foi ofertada por Carlos Ari Sundfeld . No estudo que dedicou ao tema, o ilustre professor paulista enumerou os três critérios mais referidos pela doutrina para distinguir os ditos sacrifícios dos condicionamentos de direitos impostos pela 19 Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 241. Em oposição a esse entendimento, SANTAMARÍA PASTOR vê, no caráter não-indenizável das transferências coativas determinadas pela Lei do Regime do Solo, uma mera decisão legislativa, plenamente alterável, “não tendo sua origem em nenhuma razão institucional”. Cf. Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 283. 20 Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 4, p. 79-83. 11 Administração. São estes os critérios da transferência patrimonial, o do veículo da instituição do gravame e o da generalidade ou singularidade da medida. Segundo narrado pelo Prof. Sundfeld, parte da doutrina aponta a existência de sacrifício de direito diante da efetiva transferência patrimonial do bem. Ao contrário, haveria mera limitação caso o bem permanecesse no patrimônio do indivíduo. Para outros, ainda, os condicionamentos decorreriam de lei, enquanto as privações sempre seriam determinadas por atos concretos e específicos. E, por último, as limitações decorreriam de ato de alcance geral e os sacrifícios, de medidas de alcance singular sobre o direito individual. Esse terceiro critério, que divisa os condicionamentos dos sacrifícios em função da generalidade ou não do ato que incide sobre o direito individual, é invocado no direito brasileiro por, entre outros, Celso Antonio Bandeira de Mello. De acordo com o renomado administrativista, “só é realmente limitação aquela que resulta de disposições gerais que apanham uma abstrata categoria de bens (...) é da essência das limitações administrativas o serem genéricas e provirem de lei. Toda vez que seja necessário um ato concreto especificador (...) não se estará perante uma limitação, mas diante de um sacrifício de direito”21. O critério da generalidade e o da singularidade da medida procura, na realidade, resolver o problema da indenizabilidade dos sacrifícios e da não indenizabilidade dos condicionamentos tomando como base o princípio da solidariedade social. Assim, sempre que, para atender ao interesse público, se impuser a um particular o sacrifício específico de um direito seu, não experimentado pela generalidade dos concidadãos, surge para a sociedade o dever de indenizar este particular pelo prejuízo singular experimentado. Por oposição, se o ônus imposto sobre o direito é suportado pela generalidade dos indivíduos na mesma situação, não haverá que se cogitar de indenização.22 Ao ver de Carlos Ari Sundfeld no estudo citado, todavia, nenhum dos três critérios acima apresentados apresenta solução integralmente satisfatória para o 21 22 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Tombamento e Dever de Indenizar. Cit., p.67-8. Nesse sentido, o magistério de Hely Lopes MEIRELLES: “E justifica-se que assim seja, pois essa regra deflui do princípio da solidariedade social, segundo o qual só é legítimo o ônus suportado por todos em favor de todos. Se o bem-estar social exige o sacrifício de um ou de alguns, aquele ou estes devem ser indenizados pelo Estado, ou seja, pelo erário comum do povo”. In: Tombamento e Indenização. Revista de Direito Administrativo, vol. 161, 1985, p. 5. 12 problema da distinção entre as limitações e os sacrifícios de direitos impostos pela Administração Pública. O autor afasta o critério da transferência patrimonial, na medida em que, conforme afirma, nem sempre o sacrifício atinge um bem corpóreo, além do que nem sempre gera a aquisição de direitos pela Administração que impõe o sacrifício. Já o critério do meio instituidor do gravame levaria em conta uma distinção meramente formal, deixando de considerar que os efeitos sobre o direito podem ser iguais, provenha o gravame de lei ou de ato administrativo (v.g. no caso do tombamento ou da desapropriação por lei)23. Já o critério da medida-geral e da medida-singular, embora seja o mais difundido na doutrina — e, na sua essência, não deva ser afastado —, não oferece solução isolada e absoluta para a distinção entre sacrifícios e condicionamentos de direitos. Com efeito, é preciso reconhecer que há casos em que gravames impostos singularmente não importam em sacrifícios do direito e há outros em que gravames de incidência genérica podem gerar direito à indenização. Além do mais, como novamente destaca Carlos Ari Sundfeld, não é precisa a distinção entre o que é geral e o que é particular24. Daí porque se faz necessário conjugar o critério da generalidadesingularidade ainda com um outro critério: o da intensidade do gravame imposto. Na lição do espanhol J. A. de Santamaría Pastor: “(...) as limitações, evidentemente, não podem ser indenizáveis quando possuam alcance geral ou quando, por sua intensidade, imponham às pessoas privadas gravames que não excedam aos inconvenientes normais que impõe a vida em sociedade (p.ex. a obrigação de desvio em uma rodovia por razão de obras). Porém o dever indenizatório se faz presente nos casos opostos de limitações singularizadas a sujeitos determinados, que suponham uma ruptura do princípio da igualdade ante às cargas públicas e que excedam os parâmetros de incômodo antes citados. Naturalmente, tratase de indicações de uma grande abstração, que somente podem ser especificadas em cada caso concreto.”25 Realmente, se o gravame imposto sobre o direito, ainda que por força de ato de alcance geral, for de tal intensidade que vier a afetar ou a suprimir o conteúdo mínimo ou essencial desse direito, configurará um sacrifício e, portanto, deverá ser 23 Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Cit, p. 79-80. 24 Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Cit., p. 80-1. 25 Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 282. 13 indenizado pela Administração. Essa orientação, segundo E. García de Enterría, é adotada pelo Tribunal Constitucional Espanhol que, em decisão proferida acerca da validade da Lei espanhola de Águas — ato normativo que, em 1985, converteu em domínio público todas as águas do país, incluídas as que, até então, estavam no domínio privado —, assentou o seguinte (sentença de 29 de novembro de 1988): “É óbvio que a delimitação legal do conteúdo de direitos patrimoniais ou a introdução de novas limitações não pode desconhecer seu conteúdo essencial, pois em tal caso não caberia falar de uma regulação geral de direito, mas de uma privação ou supressão do mesmo que, ainda que fixada por uma norma de modo generalizada, se traduzirá em um despojo de situações jurídicas individualizadas não tolerado pela norma constitucional salvo que assegure a indenização correspondente”26. Não têm discrepado de tal posicionamento a jurisprudência e a doutrina brasileira. Entre nós, contudo, para aferir a intensidade da medida geralmente a doutrina tem levado em conta o grau de preservação do valor ou da utilidade econômica do direito em função do gravame imposto27. Nesse sentido, inclusive, já teve oportunidade de pronunciar-se o Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento de recurso interposto em demanda na qual se postulava o reconhecimento do direito à indenização em virtude do tombamento de imóvel pelo Poder Público. No acórdão, do qual foi relator o Ministro Celso de Mello, foi consignada a seguinte decisão: “O tombamento quando importar esvaziamento do valor econômico da propriedade impõe ao Estado o dever de indenizar. (...) A circunstância irrecusável é que, tal como ressaltado pelo magistério de nossa mais autorizada doutrina, sempre que o tombamento importar em esvaziamento econômico da propriedade — tal como no caso ocorreu —, 26 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 217-8. 27 Cf., por todos, MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e Indenização. Cit., p. 4-5: “Toda vez que o poder público, direta ou indiretamente, produz total esvaziamento econômico da propriedade ou reduz substancialmente o valor do bem tombado, fica obrigado a reparar o prejuízo. Não se trata aqui de simples limitação administrativa, mas sim de interdição da propriedade ou de desvalorização sensível de sua utilidade, aviltando o seu valor econômico”; e BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Tombamento e Dever de Indenizar. Cit., p. 66: “Por isso, (salvo quando possuírem caráter sancionador), se (as limitações à propriedade) causarem prejuízo patrimonial, impõem indenização ao lesado, nada obstante sejam, sob esta condição indenizatória, confortadas pelo direito (...) Encartam-se na categoria tipológica denominada “sacrifícios de direito”, realidade conceitual visceralmente distinta das limitações à propriedade.” 14 desse fato emergirá, como insuprimível conseqüência de ordem jurídicoconstitucional, o dever estatal de indenizar o proprietário do bem tombado (...).” (STF, Agravo de Instrumento n.º 127.174, julg. 10 de maio de 1995, in RDA 200/158) Nem sempre, todavia, é necessário recorrer a critérios econômicos para aferir a efetiva existência de um sacrifício de direito e, por conseguinte, do dever de indenizar pelo Poder Público. O sacrifício poderá ser constatado, à revelia de considerações econômicas, pela mera inviabilidade de exercício do direito para os fins aos quais naturalmente se destinaria ou consoante a destinação social que lhe seja conferida. Em suma, quando houver a perda da funcionalidade do direito28. Note-se que, tanto quanto um gravame administrativo de alcance aparentemente geral pode ensejar direito à indenização, algumas restrições particularizadoras poderão ser consideradas como meros condicionamentos de direitos e, por isso, não serão indenizáveis. Basta, para isso, que o gravame imposto não exceda daqueles parâmetros tidos como normais para vida em sociedade. Tais são os gravames suportáveis, pela sua baixa intensidade, extensão ou duração, sem maiores incômodos ou prejuízos para o particular, ao contrário do que ocorre no caso dos sacrifícios de direitos. Gravame normal, afirma Carlos Ari Sundfeld, é aquele “tido por indispensável e coerente com os graus de exigência da vida social, ou que não provoca prejuízo ou o provoca por breve tempo ou em reduzida extensão”29. Nesse sentido, por exemplo, o reconhecimento da doutrina brasileira majoritária do caráter não indenizável do tombamento de bens quando este ato não importar no esvaziamento econômico do direito de propriedade, nem provocar a alteração da destinação natural do bem. Assim não obstante o ato de tombamento incida de ordinário sobre bem ou bens singularizados30. Do exposto parece lícito concluir que a designação de uma limitação administrativa de direito como condicionamento ou como sacrifício de direito não é absolutamente predeterminável em função de características abstratas de cada ato. Ao contrário, somente poderá ser determinada em função de cada hipótese em concreto, com o 28 Cf. Carlos Ari SUNDFELD. Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Cit., p.82. 29 Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Cit., p. 83. 30 Assim, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Ob. cit., p. 132; e MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e Indenização. Cit., p. 2 15 auxílio dos vários critérios acima apontados: da generalidade-singularidade, da intensidade, da funcionalidade e da normalidade. Esses critérios, por sua vez, não poderão ser tomados isoladamente, mas sim em conjunto. Apenas depois de percorrido esse processo intelectivo será possível apontar o caráter indenizável ou não do gravame imposto pelo Poder Público. 3. LIMITES ÀS INTERVENÇÕES ORDENADORAS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA SOBRE OS DIREITOS PRIVADOS A atividade estatal de limitação (em sentido amplo) dos direitos individuais encontra seus próprios e específicos limites em alguns princípios de estatura constitucional31. O primeiro e maior desses limites é formal e decorre da aplicação do princípio da legalidade administrativa. Como mais atrás já se afirmou, é no campo das incidências negativas da Administração sobre os direitos individuais que o princípio da legalidade administrativa, sob a forma da reserva de lei, incide com sua maior intensidade. Assim, somente por lei ou com base em predeterminação legal específica para a hipótese, devidamente permitida pelo texto constitucional, pode a Administração gravar restritivamente os direitos dos cidadãos32. Mas somente a predeterminação legal específica para a imposição da medida gravosa não basta para assegurar a constitucionalidade da restrição de direito. O ato ou a norma restritiva, a fim de assegurar sua própria constitucionalidade, há de observar ainda aspectos relacionados ao seu conteúdo material sob a ótica do princípio da razoabilidade (nas três concretizações desse princípio: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito)33. Assim, uma medida administrativa de restrição ou de privação direito, para ter a sua constitucionalidade assegurada, deve ser apropriada para atingir os fins de interesse público que fundamentam a sua imposição (sub-princípio da adequação). Seria, 31 Nesse sentido, cf. CASSAGNE, Juan Carlos. La Intervención Administrativa. Ob. cit., p. 70. 32 Esse o entendimento de José Joaquim Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional. 4. ed., ref. e aum. Coimbra: Almedina, 1989, p. 483-4: “O legislador não tem, no ordenamento jurídico-constitucional português, uma autorização geral de restrição de direitos, liberdades e garantias. A Constituição individualizou expressamente os direitos sujeitos a reserva de lei restritiva. (...) Os direitos, liberdades e garantias só podem ser restringidos por lei”. 33 A propósito, SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso de. Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p.260-263 e 281; e CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Ob. cit., p. 487-489. 16 por exemplo, inconstitucional, por inadequação entre os meios e os fins, um ato do Poder Público que, com o objetivo de diminuir o número de acidentes de trânsito, vedasse as mulheres de guiar automóveis. Além disso, na aplicação do sub-princípio da necessidade, a medida imposta pelo Poder Público não pode exceder àquela que seria exigível ou necessária para assegurar o atendimento do fim de interesse público. Logo, seria excessivo e, por isso, inconstitucional, um ato expropriatório de um imóvel a fim de que nele funcionasse uma seção eleitoral no dia da eleição. A privação do direito, nesse caso, é desnecessária, podendo ser perfeitamente atendido o fim público com a determinação da ocupação temporária do imóvel34. Por último, uma limitação ou um sacrifício de direitos serão inconstitucionais quando violarem a proporcionalidade em sentido estrito, adotando restrições desmedidas em relação aos fins a serem atendidos. Assim será, exemplificativamente, se, com o objetivo de proteção os espelho d’água e do entorno de uma determinada lagoa, o Poder Público criar uma área de proteção ambiental que alcance terrenos que se situam para mais de cinco quilômetros do espelho d’àgua. A medida nesse caso é adequada e necessária, mas será excessiva no que exceder da área que demanda proteção. 4. AS LIMITAÇÕES E OS SACRIFÍCIOS AO DIREITO DE PROPRIEDADE Tudo o quanto até aqui restou exposto acerca dos condicionamentos e dos sacrifícios de direitos tem especial relevância no âmbito do direito à propriedade privada. Na verdade, é tradicional que a doutrina em direito administrativo no país trate da questão das limitações administrativas a direitos individuais em dois capítulos distintos: naquele referente ao poder de polícia administrativa e, ainda, naquele que dedica exclusivamente às formas de intervenção do Estado na propriedade privada. Tal separação, no fundo, há de se atribuir mais a aspectos didático-expositivos do que propriamente à 34 Trata-se, nas palavras de SANTAMARIA PASTOR, da aplicação do princípio favor libertatis, “segundo o qual, quando a norma que estabelece o poder de intervenção pode razoavelmente optar entre várias medidas alternativas para conseguir sua finalidade ordenadora, deve necessariamente eleger a que resulte menos restritiva da liberdade individual dos sujeitos sobre os quais será aplicada.” Principios de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p.262 (tradução do original). 17 existência de distinções quanto à natureza das formas de atuação interventiva da Administração Pública quer se trate do direito de propriedade, quer se trate dos demais direitos e liberdades individuais. De qualquer modo, não há como negar o crescimento da incidência da atuação administrativa interventora sobre o direito de propriedade privada no decorrer das últimas décadas em virtude do aprofundamento da noção da função social da propriedade. Noção essa que acabou positivada no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal de 1988, passando a se apresentar como uma autêntica delimitação do direito35. Nos dias atuais, ante a necessidade de se atender à função social prevista na norma constitucional, é imperioso reconhecer que a propriedade privada se acha mais e mais constrita a dar conta de diversas finalidades de interesse público, somente sendo assegurada na medida em que forem atingidos tais fins36. Constatando o caráter cada vez mais limitado do direito de propriedade privada, o espanhol Ramón Parada refere à existência de um terceiro gênero à tradicional dicotomia dos regimes de propriedade pública e de propriedade privada. Essa categoria nova seria representada pelas chamadas propriedades privadas de interesse público, identificada pela doutrina italiana. Como ensina o autor: “A óbvia constatação de que os bens da Administração pelo fato mesmo de pertencerem a um Ente público sempre servem a alguma finalidade de interesse geral (...) não significa que os bens dos particulares sejam estranhos à satisfação dos interesses públicos, pois o ordenamento jurídico, cada vez com mais freqüência, insiste na função social da propriedade e impõe aos titulares de determinados bens, obrigações pessoais de melhora ou produção, sob ameaça de sanções diversas, como a desapropriação. (...) Ademais, sobre determinadas propriedades privadas a incidência do interesse público é tão intensa que ao regime normal da propriedade privada se justapõe um regime público (...) na realidade, a propriedade privada está inerte frente a uma lenta progressão dessas limitações que (...) a esvaziam pouco a pouco de seus conteúdos econômicos, subtraindo-lhe um a um os aproveitamentos de que era tradicionalmente suscetível (...)”37. 35 Veja-se, a propósito, o item 2.1, acima. 36 Sobre o tema da vinculação do direito de propriedade ao atendimento de sua função social, cf. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. Ob. cit., p. 121-124. 37 Derecho Administrativo. Ob.cit., vol. 3., p. 12-3. 18 No direito administrativo brasileiro, a doutrina normalmente identifica, como formas de intervenção do estado sobre a propriedade privada, as limitações administrativas em sentido estrito, a ocupação temporária, as requisições de bens, civis e militares, o tombamento, a edificação e o parcelamento compulsórios, as servidões administrativas e a desapropriação. Em regra, apenas as duas últimas são apontadas como sacrifícios de direitos e, por isso, assegurariam o respectivo direito à indenização. Todas as demais são designadas como meros condicionamentos, em maior ou menor grau, do direito de propriedade. Contudo, pelo exposto até aqui, é possível concluir que essa divisão tradicional não é absoluta. Haverá casos, como visto, em que medidas aparentemente designadas como meras limitações em sentido estrito ou mesmo atos de tombamento serão reconhecidos como sacrifícios de direitos em função da intensidade com que, em concreto, venham a atingir o direito de propriedade38 Por último, parece relevante referir brevemente a um caso específico de sacrifício relacionado ao direito de propriedade que, usualmente, não é analisado sob tal enfoque: trata-se do problema da revogação da licença para construir. Como amplamente reconhecido, a concessão da licença para construir é um direito subjetivo do proprietário do imóvel que se submete aos regulamentos edilícios39. Costuma-se dizer, com efeito, que a licença para construir é um ato vinculado ao atendimento dos requisitos normativos, cuja concessão, comprovado o cumprimento desses requisitos, gera direito adquirido ao proprietário à construção licenciada. Sucede, no entanto, que, não obstante o caráter vinculado da licença — o que, a princípio, afastaria sua revogabilidade baseada em razões de mérito ou interesse público —, a jurisprudência, não é de hoje, tem admitido a revogação, por motivo de interesse público, de licenças para construir validamente concedidas40. Tal revogação vem 38 Cf. o item 2.3, acima. 39 A propósito, v. CASSAGNE, Juan Carlos. A autorização para Construir e o Poder Revocatório da Administração. Revista de Direito Administrativo, vol. 135, 1979, p. 11 e ss. 40 A título exemplificativo, confira-se a seguinte decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal: “LICENÇA PARA CONSTRUIR. REVOGAÇÃO. OBRA NÃO INICIADA. LEGISLAÇÃO ESTADUAL POSTERIOR. I. Competência do estado federado para legislar sobre áreas e locais de interesse turístico, visando à proteção do patrimônio paisagístico (C.F., art. 180). Inocorrência de ofensa ao art. 15 da Constituição Federal. II. Antes de iniciada a obra, a licença para construir pode ser revogada por conveniência da administração publica, sem que valha o argumento do direito adquirido. Precedentes do 19 sendo aceita em duas circunstâncias: (a) quando ocorre uma alteração superveniente nas regras de direito objetivo que autorizaram a concessão da licença; e (b) por razões de mérito alegadas pela Administração no caso concreto, usualmente fundadas na alteração das circunstâncias de fato existentes no momento em que concedida a licença. Tal revogabilidade, porém, não é ampla. Ao contrário, guarda limites que lhe tornam minimamente compatíveis com a estabilidade que se espera de uma licença a fim de conferir segurança jurídica aos proprietários. Assim, não são revogáveis as licenças para construir quando a construção já começou a ser executada.41 Como destaca Juan Carlos Cassagne, “procede-se desse modo em virtude da incorporação do direito ao patrimônio do administrado e, no mérito, porque ela opera sobre o direito individual de domínio”42. Da mesma forma, impõe-se que o interesse público que enseja a revogação seja de igual ordem ou natureza que aquele que motivou o deferimento do ato. Logo, como assinala o administrativista argentino, uma licença para construir somente poderia ser revogada “por questões urbanísticas”43. Em qualquer hipótese, porém, reconhece-se que a revogação de uma licença para construir confere ao proprietário o direito de ser indenizado — para J. C. Cassagne, o de ser indenizado previamente — em virtude do efetivo sacrifício de seu direito para o atendimento do interesse geral44. Confere-se, com isso, ao ato revogatório da licença de construção um conteúdo expropriatório do direito do proprietário em benefício do interesse público. E, portanto, tal como ocorre nas desapropriações, assegura-se o direito à indenização correspondente aos prejuízos experimentados.45 Note-se que o fundamento do direito à indenização nesse caso é idêntico ao que motiva a indenização em todos demais casos de sacrifícios de direito impostos pelo supremo tribunal. Recurso extraordinário não conhecido. (RE-105634/PR, 2ª T. do STF, Relator Min. Francisco Rezek, votação unânime, DJ de 08-11-85, p. 20107).” 41 No Brasil, divergem os julgados sobre a fixação do momento em que se deve considerar como iniciada a obra para efeito da admissibilidade da revogação da licença para construir: seja com o início dos trabalhos de terraplanagem e de sondagem, com a realização das fundações ou com a construção da primeira laje. Os limites do presente estudo, porém, não comportam o aprofundamento deste aspecto do problema. 42 A autorização para Construir e o Poder Revocatório da Administração. Cit., p. 20. 43 Idem, ibidem. 44 Idem, ibidem. 45 Essa também é a doutrina de Eduardo GARCÍA DE ENTERRÍA, que, assim como CASSAGNE, expressamente atribui conteúdo expropriatório, de sacrifício de direito, ao ato de revogação de licença de construção mediante prévio pagamento. Curso de Derecho Administrativo. Ob. cit., vol. 2, p. 248. 20 Poder Público no exercício da atividade administrativa ordenadora: o fato de que a sociedade deve indenizar aqueles aos quais impõe o sacrifício particular de um direito em benefício do interesse comum. 21 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Tombamento e Dever de Indenizar. Revista de Direito Público, vol. 81, p. 65-73. CANOTILHO. José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 4. ed., ref. e aum. Coimbra: Almedina, 1989. CASSAGNE, Juan Carlos. A autorização para Construir e o Poder Revocatório da Administração. Revista de Direito Administrativo, vol. 135, 1979, p. 10-22. ———— . La Intervención Administrativa. 2. ed., atual. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1994. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Derecho Administrativo. 9. ed. Madrid: Civitas, 1999. 2 t. MEIRELLES, Hely Lopes. Tombamento e Indenização. Revista de Direito Administrativo, vol. 161, 1985, p. 1-6. ————— . Direito Administrativo Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. PARADA VÁZQUEZ, J. Ramón. Derecho Administrativo. 12. ed. Madrid: Marcial Pons, 1998. 3 v. SANTAMARIA PASTOR, Juan Alfonso de. Principios de Derecho Administrativo. 3.ed. Madrid: CEURA, 2000. 2 v. SUNDFELD, Carlos Ari. Condicionamentos e Sacrifícios de Direitos – Distinções. Revista Trimestral de Direito Público, vol. 4, p. 79-83. TÁCITO, Caio. O Poder de Polícia e seus Limites. Revista de Direito Administrativo, vol. , 197 , p. 1-11.