PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião
COMO UM RIACHO DE FOGO:
estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de
“A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach
Anderson Geraldo Pinheiro Malta
Belo Horizonte
2011
Anderson Geraldo Pinheiro Malta
COMO UM RIACHO DE FOGO:
estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de
“A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach
Dissertação apresentada ao Programa de Pósgraduação em Ciências da Religião, da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do Título de Mestre
em Ciências da Religião.
Orientador: Flávio Augusto Senra Ribeiro
Belo Horizonte
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
M261c
Malta, Anderson Geraldo Pinheiro
Como um riacho de fogo: estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à
religião a partir de “A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach /
Anderson Geraldo Pinheiro Malta. Belo Horizonte, 2011.
103f.
Orientador: Flávio Augusto Senra Ribeiro
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
1. Religião – Filosofia. 2. Feuerbach, Ludwig, 1804-1872. 3. Cristianismo –
Literatura polêmica. I. Ribeiro, Flávio Augusto Senra. II. Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião.
III. Título.
CDU: 21
Anderson Geraldo Pinheiro Malta
COMO UM RIACHO DE FOGO:
estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de “A essência do
cristianismo”, de Ludwig Feuerbach
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências da Religião, da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Mestre em Ciências da Religião.
___________________________________________________
Flávio Augusto Senra Ribeiro – PUC Minas
_________________________________________________
José Carlos Aguiar de Souza – PUC Minas
__________________________________________________
Deyve Redyson Melo dos Santos – UFPB
Belo Horizonte, 11 de julho de 2011.
RESUMO
A questão de Deus sempre despertou interesse, estudos, intrigas, disputas e mortes. Na
verdade, as ações e reações oriundas das mais diversas experiências religiosas, ocorridas entre
os mais diversos povos, culturas e épocas, traduzem a questão do homem. Este trabalho
intenta buscar a essência da religião e especificamente do cristianismo servindo-se do
pensamento de Ludwig Feuerbach, que considera as práticas religiosas como mantenedoras de
uma estrutura alienadora, que coloca o mundo como inimigo do homem e o homem separado
de sua essência. Como consequência dessa alienação, o ser humano passa a supervalorizar o
além e a menosprezar o aquém sem ter consciência de que tal atitude apenas traduz a
divinização e objetivação de sua essência. Os capítulos que compõem este trabalho procuram
realçar a tese de que o cristianismo adora as forças que fundamentam o ser humano em
contraste com tudo aquilo que se encontra ao seu redor. Através da crítica de Feuerbach à
religião, a vontade, a inteligência e a consciência serão consideradas não mais como essências
e poderes divinos, mas como forças que traduzem a essência humana. Está colocada como
fundamento desta dissertação a afirmação feuerbachiana de que a religião cristã é a atitude do
homem para consigo mesmo, para com sua essência como se fosse uma essência diferente e
separada de si. Mostrar que a religião é a consciência de si, desprovida de consciência, do
homem, é a intenção primeira e última destas páginas. Em suma, esta dissertação quer ser um
estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião desenvolvida por Feuerbach no
clássico “A essência do cristianismo”.
Palavras-chave: Ludwig Feuerbach; Crítica religiosa; Filosofia da religião.
ABSTRACT
The question of God has always aroused interest, studies, intrigues, dispute and deaths. In
fact, the actions and reactions originated from the most diverse religious experiences,
occurred among the most diverse nations, cultures and periods explain the concept of man.
This paper aims to seek the essence of religion, specifically the Christianity, through the
thought of Ludwig Feuerbach, which considers the religious practices as supporters of an
alienating structure that set the world as enemy of the man and separate the man from his
essence. As a consequence of this alienation, the human being overvalues the other world and
underestimates this world, without being aware that this attitude demonstrates the deification
and objectification of its essence. The purpose of these work chapters is to reinforce the thesis
in which the Christianity adores the force that the man is consisted in contrast to everything
that surrounds him. According to Feuerbach critique to religion, the will, the intelligence and
the consciousness are considered not essence and divine power but forces that explain the
human essence.
This dissertation is based in the feuerbachian assertion that the Christian
religion is the attitude of the man to himself, to his essence, as if it was different and apart
from him. From the beginning to the end, this work intends to show that the religion is its
consciousness, destitute of conscience of the man. In summary, this paper wishes to be a
study about the anthropological foundation of the religious criticism fostered by Feuerbach in
the classic The Essence of Christianity.
Key-Words: Ludwig Feuerbach. Religious criticism. Philosophy of religion.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6
2 OS SEGREDOS DO HOMEM COMO “MISTÉRIOS DE DEUS”............................... 11
2.1 Análise do processo de abertura ao presumível divino................................................. 12
2.2 Regresso ao homem como encontro com a essência humana ....................................... 23
2.3 A religião no seu acordo com a essência do homem ...................................................... 32
3 DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ARGUMENTATIVO QUE SUSTENTA
SER A TEOLOGIA UMA ANTROPOLOGIA................................................................... 42
3.1 Desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso ........................................... 43
3.2 Teoria da reversibilidade: Deus é o espelho do homem, o homem o espelho de Deus51
3.3 A negação de Deus como negação da negação do homem ............................................ 61
4
EXPERIÊNCIA
DO
DIVINO
OU
OBJETIVAÇÃO
SENTIMENTAL
E
FANTÁSTICA DOS DESEJOS HUMANOS? .................................................................... 70
4.1 Elementos de uma antropologia empírica ...................................................................... 71
4.2 A experiência religiosa como fruto do vazio ou da tensão entre realidade e
idealidade, existência e possibilidade, finitude e superação ............................................... 80
4.3 Ruptura humana com sua estrutura interior como causa da projeção no
transcendente .......................................................................................................................... 88
5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................100
6
1 INTRODUÇÃO
Uma melhor compreensão do homem só é possível a partir de uma análise das
dimensões que o especificam e que fazem dele um ser que age orientando-se por um objetivo.
Assim, como homo sapiens conhece, como homo ludens brinca, como homo loquens fala,
como homo faber trabalha, como homo volens quer.
No decorrer da história, diante de várias situações que causam medo, tristeza, angústia,
desespero, o ser humano passou a procurar explicações numa esfera diferente de seu mundo,
numa esfera além da realidade, no sobrenatural. Passou a acreditar que no além se
encontravam forças infinitamente maiores do que as suas, capazes de mudar os rumos do
mundo do aquém. Assim, o homem passou a ser analisado na sua dimensão religiosa, na sua
relação com o presumível além,com o que passou a denominar divino.
Buscando compreender como se dá o processo de abertura ao presumível divino e
como é administrada a absorção das doutrinas e “verdades” que surgem para reafirmá-lo, será
tomado como apoio para esta análise o pensamento de Ludwig Andréas Feuerbach (18041872) e alguns de seus comentadores e de outros estudiosos e pesquisadores que, em
consonância com seu pensamento, analisam a religião e o perfil dos que se entregam às
experiências religiosas.
Analisar o fenômeno religioso requer uma pesquisa séria, vasta e contínua que só se
processará com o conhecimento da influência das questões de cunho cultural, político,
econômico e social que, por sua vez, exigem um estudo aprofundado dos aspectos histórico,
sociológico, antropológico, filosófico e psicológico desse fenômeno.
São muitos os estudiosos e pensadores que se aprofundaram na busca de explicações e
melhor compreensão das atitudes daqueles que aderem às ideias religiosas e das mais diversas
manifestações que se estendem pelas mais diferentes partes do planeta. A opção por
Feuerbach nasce da necessidade de conhecer as verdadeiras motivações de seus
questionamentos concernentes à religião e, especificamente, ao cristianismo e como seu
pensamento contribuiu para a crítica religiosa de hoje.
É notória a importância e vastidão de sua obra, que começa com a tese de
doutoramento Da razão una, universal e infinita, de 1828, e se estende através de
Pensamentos sobre morte e imortalidade, de 1830; História da filosofia moderna de Bacon de
Verulam a Spinoza, de 1833; Abelardo e Heloisa (1834); Pierre Bayle (1838); Sobre crítica
da filosofia positivista, de 1838; Crítica da filosofia hegeliana, de 1839; Sobre filosofia e
7
cristianismo (1839); Para a crítica da filosofia do futuro (1839); A essência do cristianismo
de 1841; Necessidade de uma reforma da filosofia, de 1843; Teses provisórias para a reforma
da filosofia, de 1843; Princípios da filosofia do futuro, de 1843; A essência da religião, de
1846; Preleções sobre a essência da religião, de 1851; Teogonia, de 1857. Além dessas
obras, outros textos não citados só aparecem nas obras completas.1
No intuito de focar nossa atenção no fundamento antropológico de sua crítica à
religião e ao cristianismo, o presente trabalho visa realçar o pensamento desse pensador
tomando como obras de referência primária os clássicos A essência do cristianismo (1841) e
Preleções sobre a essência da religião (1851).
A obra A essência do cristianismo trata da essência do homem deduzindo que o Ser
Absoluto, o Deus dos homens, é seu próprio ser, sendo o homem o criador e origem de todos
os deuses, incluindo o Deus cristão – o que para muitos equivale a uma defesa explícita do
ateísmo.
Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach aborda não só a essência da
religião cristã, mas a essência da religião em geral, incluindo as religiões pagãs e pré-cristãs.
Nessa obra também aborda a concepção materialista ao analisar a relação do homem com a
natureza e a relação entre o ser e o pensamento.
Partindo dos questionamentos levantados nessas obras, serão analisadas nesta
dissertação as motivações primeiras que levam o ser humano a buscar fora de si aquilo que se
encontra no seu interior, desencadeando a transferência de sentido do natural e humano para o
sobrenatural e extra-humano.
Servir-se de Feuerbach é reconhecer que seu pensamento trouxe para o cotidiano uma
nova leitura para o que era até então “explicado” pela religião ou pelo idealismo abstrato, ou
seja, buscou o fundamento humano de fatos e ideias no próprio ser humano e na natureza.
Trabalhar seu pensamento é reconhecer e afirmar a importância e necessidade do
protagonismo humano, mostrando que a história é processo de humanização do homem, ao
contrário de sua alienação que se concretiza na experiência religiosa.
A grande contribuição de Feuerbach se traduz por ter colocado a questão de Deus não
como simples questão acadêmica, mas como busca do significado do problema de Deus para
o homem sugerindo ser a compreensão desse Deus a compreensão do próprio homem.
1
Essas obras foram elencadas a partir das seleções feitas por Paulo Hahn e por Deyve Redyson nos livros
Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2003
e Homem e natureza em Ludwig Feuerbach. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
8
É, portanto, preocupação e interesse deste trabalho também ressaltar que lidar com a
questão da existência ou não de Deus implica lidar com consequências para o
autoconhecimento do homem e para sua maneira de administrar sua vida e de viver em
sociedade. Trata-se, portanto de uma questão que contribui não só para o conhecimento do
ser-homem como também para a realização do homem enquanto tal.
Aprofundar-se no pensamento feuerbachiano é buscar o fundamento antropológico da
religião, descobrindo que o conhecimento de Deus passa a ser o conhecimento do próprio
homem. Assim, a proposta deste trabalho traduz o interesse e a busca de fundamento e
compreensão da redução da religião em antropologia, ou seja, buscar compreender como
Feuerbach reencontrou o homem na estrutura da alienação religiosa, pois essa leitura
feuerbachiana da religião – especificamente do cristianismo – é de grande importância para
devolver ao ser humano sua autonomia diante da história pessoal e coletiva.
Dentro dessa ótica, não se pode negar que a análise da religião operada por Feuerbach
contribui para a alforria do homem que se permite aprisionar pelos grilhões daquelas ideias
que o mantêm na passividade como miserável criatura que sempre deve acatar os supostos
desígnios divinos.
Quando Feuerbach afirma que o próprio Deus é uma entidade sensorial, um objeto da
contemplação da fantasia, passa a considerar como sujeito da divindade a razão e o da razão o
homem, instigando assim a curiosidade e a busca de maior entendimento sobre sua teoria
sensitista do conhecimento, devendo ser entendida não como negação da razão, mas seu
fundamento.
Feuerbach sugere que a razão ordene o que a sensibilidade oferece, pois sem a razão
não há propriamente conhecimento, mas também ressalta que sem a sensibilidade não há
nenhuma possibilidade de alcançar o que há de verdadeiro no saber. Portanto, este trabalho
apresenta o pensamento feuerbachiano como auxílio na compreensão das experiências
religiosas que se fundam nos sentidos.
Se ao pensar que a realidade fundamental e originária seja a natureza, o indivíduo
empírico, então a vida espiritual passa a ser considerada como uma pálida imagem, um
reflexo apagado da natureza que leva o homem a exteriorizar no objeto da religião e a
procurar concretizar no transcendente todos os seus desejos, exigências, ideais que não pode
concretizar na realidade efetiva.
A reflexão feuerbachiana sugere um olhar para a natureza humana, para o
desenvolvimento histórico e pré-histórico, no intuito de compreender a psicologia humana, a
moral, a história, a ciência da arte e das religiões.
9
Na época de Feuerbach – Alemanha dos anos 40 do século XIX – a estrutura sóciopolítica encontrava sua fundamentação ideológica na religião. Diante dessa situação, não
havia outro caminho senão desmistificar a estrutura religiosa, pois tal desmistificação
culminaria na desmistificação de outras estruturas que, assim como a religião (cristianismo),
eram tidas como inquestionáveis. A superação de uma estrutura tida como injusta, opressora,
alienante só poderia concretizar-se a partir do questionamento e superação das ideias
religiosas como tradutoras da vontade de Deus.
Curiosamente, a atual conjuntura carrega os traços de uma sociedade que ainda se
mantém refém de uma mentalidade alimentada por ideias religiosas que sustentam uma
estrutura de alienação e de desumanização do ser humano, salvaguardando interesses de uma
pequena minoria que sugere aos demais a busca de explicações, justificativas, respostas e
esperanças num céu imaginário, projeção de seus anseios.
O presente trabalho vem mostrar que a crítica feuerbachiana da religião e do
cristianismo vem de encontro à necessidade de superação de uma ideologia que ainda tenta
justificar o sofrimento e os desafios como parte integrante da pedagogia divina para a
expiação dos erros e pecados da sociedade, sobretudo quando esta insiste em caminhar
sozinha, de maneira autônoma, traçando seu próprio destino, escrevendo sua própria história.
Colocar a questão de Deus a partir do homem é desenvolver a crença na humanidade,
que precisa aprender a se olhar sem preconceito e sem pessimismo, mesmo porque é dela que
brotaram os predicados divinos. Canalizar esse potencial humano transferido para Deus é
despertar o homem como sujeito capaz de mudar os rumos da história que tanto carece de
investimentos e projetos que transformem este mundo no paraíso.
Certamente por acreditar imensamente no homem é que escrevera a seu irmão que fora
da filosofia não há salvação. Feuerbach assim se manifesta após ter abandonado os estudos
teológicos e iniciado os estudos filosóficos em Berlim, no ano de 1825. Não se pode negar
que essa afirmativa feuerbachiana trata-se de um instigante convite para um mergulho em seu
pensamento no intuito de melhor conhecer sua visão de mundo e o que propõe à humanidade.
É importante ressaltar que este trabalho não se ateve à investigação das fontes do
pensamento teológico e filosófico de Ludwig Feuerbach, pois certamente exige um estudo
pormenorizadamente mais aprofundado.
Através dos capítulos que serão discorridos, será realçada a proposta de Feuerbach em
auxiliar o homem a libertar-se das supostas determinações divinas no intuito de fazer com que
assuma sua liberdade para edificar-se e edificar a sociedade a partir dele mesmo.
10
No primeiro capítulo os segredos do homem serão tomados como a chave de leitura
dos “mistérios de Deus”. Através da observação e constatação de que o ser humano é um ser
aberto à experiência religiosa, neste primeiro capítulo será proposta uma análise desse
processo de abertura ao presumível divino, intencionando levar o homem a reencontrar-se
consigo através do encontro com sua essência. Assim, de acordo com o pensamento
feuerbachiano, a religião será apresentada como a manifestação da essência humana, estando
de acordo com aquilo que está escondido no interior do coração e da mente do homem.
No segundo capítulo será apresentado um conjunto de análises e ideias que intentam
buscar compreender o desenvolvimento do processo argumentativo feuerbachiano que
sustenta ser a teologia uma antropologia. Os três itens desse capítulo buscarão apresentar o
desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso servindo-se da teoria da
reversibilidade e da proposta feuerbachiana da negação de Deus como negação da negação do
homem.
Finalmente, no terceiro capítulo, a experiência do divino será apresentada como
objetivação sentimental e fantástica dos desejos humanos. Essa questão será trabalhada a
partir do que se apresenta como elementos de uma antropologia empírica e tomando a
experiência religiosa como fruto do vazio ou tensão entre realidade e idealidade, existência e
possibilidade, finitude e superação. Essa análise será a base de sustentação do pensamento de
Feuerbach, que afirma ser a ruptura humana com sua estrutura interior a causa da projeção no
transcendente.
Assim, através da análise feuerbachiana do cristianismo e da religião, será traduzido o
objetivo desta dissertação, ou seja, mostrar que a constituição da religião se alicerça num
conteúdo humano e que a experiência religiosa nada mais é que a experiência antropológica
que leva o homem a encontra-se consigo mesmo ao buscar a Deus.
11
2 OS SEGREDOS DO HOMEM COMO “MISTÉRIOS DE DEUS”
Como na época de Feuerbach, também hoje a história contemporânea afigura-se
“como um período de ilusão e de falsidade, de mediocridade e de aparências, de indecisão e
de imortalidade.” (SIEGMUND, 1966, p. 237).
Diante desse deprimente quadro, a crença num ser divino – com tudo aquilo que traz
como consequência – ainda é tida como única solução para os problemas, o que evidencia o
desprezo pela busca do conhecimento ou o receio de que este venha a desvendar o que não
deve ser desvendado.
Afirma Feuerbach que “quanto mais limitado é o horizonte do homem, menos
conhecimento tem da história, da Natureza, da Filosofia, e mais intimamente adere à sua
religião. É por isso que o religioso não tem em si qualquer necessidade de cultura.”
(FEUERBACH, 1994, p. 266).
Daí surge a necessidade de uma reflexão fundamentada sobre o que consideramos ser
da esfera divina. Não se pode negar que desde os primórdios da história humana o homem
colocou os efeitos da natureza acima de suas forças, entregando-se à crença de que seriam tais
efeitos uma entidade sobre-humana, ou um ser com propriedades humanas tais como
inteligência, razão, capacidade de executar seus pensamentos, porém num grau
desproporcionalmente mais elevado e que ultrapassa infinitamente a medida das capacidades
humanas.
Ao tomar a religião como um fato humano, Feuerbach sugere que ela esteja a serviço
do homem e não o contrário, pois quando ela passa a colocar o homem a seu serviço,
automaticamente elimina a liberdade e o espaço para o discernimento que o ser humano deve
cultivar para analisá-la.
Quando Feuerbach ressalta a ideia de homem como sua referência última,
independente de uma realidade transcendente, procura colocar o ser humano no centro de sua
história retirando-o da marginalização sustentada pelas ideias religiosas. O pensamento
feuerbachiano é, portanto, um convite convicto para o regresso do homem ao homem de
maneira que este possa instaurar o reino humano em substituição ao reino de Deus.
Nesta primeira parte do trabalho será abordada a questão da consciência de Deus como
sendo a consciência que o homem tem de si mesmo, o que levou Feuerbach a sugerir o
conhecimento mais aprofundado do homem para se ter um conhecimento mais acertado
acerca de seu Deus.
12
Servindo-se da análise que Feuerbach faz da religião, será focada no primeiro capítulo
do trabalho a busca da sua significação, ao mesmo tempo em que se buscará descobrir e
analisar as motivações de seu surgimento.
Com o título Os segredos do homem como “mistérios de Deus”, serão expostas as
motivações que levam o homem a iniciar o processo de abertura para o que considera divino
dentro da perspectiva metodológica que Feuerbach chama de “genético-crítica”. Tal
perspectiva auxiliará na compreensão dos mecanismos que permitem a formação da ideia de
transcendência e como estes são reconduzidos à sua origem.
Dessa maneira se dará o regresso ao homem tomado como lugar de encontro com sua
essência e se colocará a pergunta pelo significado de Deus. Pergunta que coincide com o
esclarecimento de um enigma psicológico, ou seja, com a pergunta pela própria natureza
humana.
A negação de Deus, trabalhada no pensamento de Feuerbach, é indicada como
investimento num processo de redescoberta da dignidade do homem ou, em outras palavras,
como o resgate da essência humana perdida na experiência religiosa que só será possível
através da destruição da religião. Não se pode falar de realização do homem sem negar a Deus
e tal negação se faz necessária em virtude da afirmação do humano no homem.
No final desse capítulo a religião será estudada no seu acordo com a essência do
homem. Diga-se a propósito, título que se encontra na primeira parte de A essência do
cristianismo. Nesse tópico será trabalhada a proposta de Feuerbach em converter os
“mistérios” da transcendência em “segredos” da natureza humana, através da tradução dos
predicados divinos em predicados humanos.
2.1 Análise do processo de abertura ao presumível divino
Este tópico tem como intuito procurar compreender a escolha feita por aqueles que
alimentam a crença em Deus ao invés de procurar valorizar suas potencialidades. A abertura
ao divino traduz a busca por explicações diante de tudo aquilo que não se quer aceitar ou por
consolo diante das necessidades que brotam do interior daquele que faz a experiência
religiosa, mas, ao mesmo tempo, entrava qualquer investimento nas potencialidades latentes
que devem ser melhor conhecidas para serem melhor trabalhadas em benefício da autonomia
e participação ativa do homem na história do mundo.
13
Constata-se que, a cada dia, mais homens e mulheres se entregam à experiência
religiosa sem se darem conta da necessidade de melhor se conhecerem para melhor lidarem
com os problemas cotidianos. Preferem alimentar a crença no divino e a descrença no
humano, contribuindo assim para a desumanização do homem. Daí a pergunta: como entender
“a diversidade de experiências, a complexidade das motivações, a multiplicidade dos grupos
religiosos, a espantosa variedade de crenças, atitudes e reações?” (CATALAN, 1999, p.161).
Como norte deste tópico e dos posteriores será considerado o que é apresentado como
a essência do homem e da religião pela análise feuerbachiana, conforme o comentário de
Paulo Hahn.
A religião é um fato puramente humano, logo de caráter não-absoluto. Tal
contribuição convida-nos à liberdade frente à religião, a tê-la como serviço ao ser
humano e não ter o ser humano a serviço da religião. E, por ser obra humana, apesar
de seu caráter conservador (em certos casos), a religião é passível de transformação
em todas as suas dimensões: de organização como de culto. Além da liberdade,
somos convidados ao contínuo discernimento para ver se nossa religião é alienação
(...) ou se a religião é expressão da natureza humana (HAHN, 2003, p. 142).
Sendo o discernimento e o senso crítico imprescindíveis para a análise da experiência
religiosa na história humana, serão tomados como ferramentas a nos auxiliar nesta empreitada
que tem como estímulo maior a dedicação e o interesse de Feuerbach pela busca e estudo da
essência da religião:
Interessa-me acima de tudo, e sempre me interessou, iluminar a obscura essência da
religião com a luz da razão, para que finalmente os homens parem de ser explorados,
para que deixem de ser joguetes de todos aqueles poderes inimigos da humanidade
que, como sempre, servem-se até hoje da nebulosidade da religião para a opressão
do homem (FEUERBACH, 1989, p. 28).
A preocupação de Feuerbach em devolver ao homem sua autonomia e capacidade para
se libertar das estruturas que o impedem de caminhar como protagonista de sua própria
história é evidente, pois considera tais estruturas como obstáculo ao processo de
transformação do ser humano de autômato em autônomo. Por isso, busca colocar o ser
humano como única referência para si mesmo, tirando-o da margem e conduzindo-o para o
centro da história e para a experiência do real.
Feuerbach elege a ideia de homem como sua referência última, sobretudo porque o
humano concreto é apenas a totalidade da vida e da essência humana, e não de uma
realidade transcendente. Em torno desta homologia se concentra todo um exame
crítico de uma tradição cultural e filosófica, lida por Feuerbach como a história de
um esquecimento e de uma marginalização do homem real. Nestes termos, a
antropologia proposta por Feuerbach, e aí reside seu mérito para a
contemporaneidade, é a constante superação das inúmeras formas de desumanização
14
de que se revestiu e se reveste a humanidade: seja a teologia que degrada o homem à
condição de súdito de um senhor divino, a metafísica que o reduz a ser abstrato, ou a
ciência que o instrumentaliza como objeto, sejam ainda outras formas de alienação
ideológica e de repressão política (HAHN, 2003, p. 144).
Alienado de si, pela experiência religiosa, o homem, segundo Feuerbach, deve voltar a
si, pois não deve permanecer numa situação de estranhamento. Assim, para que tal processo
se concretize, torna-se necessária uma pedagogia embasada na perspectiva dialética da
alienação religiosa, ou seja:
É preciso primeiro desdobrar-se num certo sentido, perder-se, alienar-se para
encontrar-se. Mas a alienação deve cessar um dia. Depois de alienar-se na religião, o
homem deve voltar-se a si mesmo, retomar em seu coração aquilo que ele projetou
fora de si. Deve chegar, enfim, o reino do homem, o qual substituirá o reino de
Deus. Deus não é senão o conjunto dos atributos que fazem a grandeza do homem,
cuja existência é que é o ser supremo. A virada na história se dará no momento em
que o homem tomar consciência de que o único Deus dele é ele próprio (HAHN,
2003, p. 14).
A partir da perspectiva feuerbachiana um novo horizonte se abre para aqueles que
ousam romper com as estruturas que os transformam em seres inertes e passivos. A
contribuição do autor reside na capacidade de apontar para o perigo da alienação do homem
que se processa e se solidifica à medida que este não se dispõe a romper com aquilo que o
afasta de si.
Mesmo percebendo que as respostas apresentadas e dogmatizadas pela religião não
respondem, alguns homens preferem permanecer na ilusão, no torpor causado pelas doutrinas
que corrompem o ser humano ao colocá-lo contra o movimento da busca e do
questionamento.
A religião é assim como que uma longa efabulação que nunca tem fim, um imenso
sonho contínuo e de olhos abertos (...), uma analogia utilizada com frequência para
acentuar o ensinamento de uma subjetividade aprisionada no mundo interior das
suas próprias criações, as quais lhe aparecem contudo como se fossem seres reais
dotados de existência autônoma (SERRÃO, 1999, p. 64).
O pensamento feuerbachiano procura acordar o homem religioso deste sonho de olhos
abertos. No clássico A Essência do Cristianismo, Feuerbach realça a superioridade do homem
teórico, autônomo, livre e sem carências, diferente do homem religioso, que “na religião, nega
a sua razão [...], nega o seu saber, o seu pensar [...], renuncia à sua pessoa” (FEUERBACH,
1994, p. 33), tornando-se passivo, isolado do mundo e da sociedade. Também evidencia o
primado do conhecimento objetivo e o da transparência intelectiva sobre a dimensão afetiva e
emocional.
15
O conhecimento objetivo provém da mútua cooperação da atividade sensorial, que
capta os elementos sensíveis, com a atividade reflexiva que os elabora. Sem a
sensorialidade, a reflexão cairia na abstração vazia de um pensar autofundado sem a
correspondência na realidade, autônomo e autoprodutor dos seus conhecimentos.
Mas sem a seletividade do pensamento, nunca se passaria da particularidade
empírica dos fenômenos à universalidade do conhecimento objetivo. A
sensorialidade recoletora, que capta o mundo como multiplicidade sensitiva, mas
não alcança a unidade do conceito, é insuficiente para fundar sozinha a objetividade
do conhecimento (SERRÃO, 1999, p. 99).
Na experiência religiosa o ser humano, paradoxalmente, fala de uma realidade
diferente daquela que lhe dá condições de falar de outra que não existe fora dele. Assim,
imperceptivelmente, o ser humano fala de si mesmo acreditando estar falando de outro ser que
seja de natureza diferente da sua e que não seja ele próprio. Afirma Feuerbach: “a religião (...)
é a atitude do homem para consigo mesmo, ou melhor, para com a sua essência; mas uma
atitude para com a sua essência como se fosse uma essência diferente.” (FEUERBACH, 1994,
p. 24).
Considerar o pensamento de Feuerbach significa adotar uma nova metodologia para
lidar com o real sem transformá-lo numa ilusão que se processa graças à fé, pois: “A fé é o
poder da imaginação que transforma o real em irreal, o irreal em real – a contradição direta
com a verdade dos sentidos, a verdade da razão. A fé nega o que a razão objetiva afirma e
afirma o que ela nega.” (FEUERBACH, 1994, p. 296).
Para a compreensão da escolha daqueles que se desumanizam em nome da crença no
divino e para uma análise de tal atitude, faz-se necessária certa cautela e redobrada atenção
para não incidir-se no erro de apenas inverter o objeto de crença2. Para tanto, recorrer ao
pensamento de Feuerbach para melhor compreender por que o ser humano se entrega à crença
em algo que não se encontra fora dele é de grande importância.
Assim como outrora, o ser humano se sente atraído “por uma outra dimensão, tem
necessidade de acreditar em alguma coisa ou em alguém que possa, seja de que maneira for, e
por pouco que seja, ajudar a suportar o fardo da existência.” (CATALAN, 1999, p. 61). No
entanto, refugiar-se na religião não diminui o peso desse fardo nem traz respostas ou soluções
para os problemas, pois não poderá impedir que a existência continue impondo seus desafios
ao ser humano.
2
Sobre esta questão nos servimos do comentário de Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão acerca de
um dos questionamentos levantados por Max Stirner em seu livro O único e a sua propriedade sobre A essência
do cristianismo de Feuerbach: “O humanismo feuerbachiano não constituiria uma verdadeira aniquilação da
ilusão teológica, uma vez que se teria limitado a substituir a figura de Deus pela figura da Humanidade, ou
gênero humano, uma nova transcendência que erguendo-se sobre os indivíduos como uma verdadeira essência
metafísica se lhes impunha como instância de dominação.” (SERRÃO, 2005, p. 27).
16
Feuerbach, ao analisar os limites, faz menção à importância da necessidade, pois
considera a necessidade como portadora de ânimo, força e o que dá fundamento ao ser.
Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma necessidade, aí também
não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum spiritus, nenhum fogo,
nenhum amor. Só o ser necessitado é o ser necessário. Existência desprovida de
necessidade é existência supérflua. O que está livre de necessidades em geral
também não tem qualquer necessidade de existência. Se é ou não é, é o mesmo – o
mesmo para ele próprio, o mesmo para outro. Um ser sem necessidade é um ser sem
fundamento. Só quem é capaz de sofrer merece existir. Só o ser repleto de dor é ser
divino. Um ser sem sofrimento é um ser sem ser. Ora, um ser sem sofrimento nada
mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria (FEUERBACH, 2005, p. 92).
Por isso, afirma Feuerbach sobre o homem religioso: “No mais íntimo fundo da tua
alma queres que o mundo não exista, pois onde há mundo, há matéria, e onde há matéria há
pressão e choque, espaço e tempo, limitação e necessidade.” (FEUERBACH, 1994, p. 130).
Estando o ser humano constantemente deparado com situações que lhe causam medo,
angústia, mal-estar, tenderá a insurgir-se contra tais males pela experiência religiosa, apelando
sempre para Deus, reforçando o desprezo por este mundo, pela natureza.
A visão feuerbachiana do mundo3 vem mostrar que a tentativa de fugir dele jamais se
efetivará, pois os sentimentos que brotam no homem, causados pela percepção e pela relação
com a existência, traduzem o movimento existente entre interioridade e exterioridade,
confirmando que o ser humano, por ser e estar no mundo, não pode privar-se da sensibilidade,
mesmo porque “é a sensibilidade que abre os olhos do pensamento4, que lhe pede uma
conversão ao mundo, uma atenção aos seus acontecimentos.” (SERRÃO, 2005, p.16).
“Quanto mais o homem se afasta da natureza, mais subjetiva, quer dizer, mais
sobrenatural ou antinatural se torna a sua visão do mundo.” (FEUERBACH, 1994, p. 163).
Optar pelo homem é procurar entendê-lo para explicá-lo. É administrar o dilema
colocado por Lima Vaz: “ou o Absoluto existe como ser-em-si e como Criador e, então, o
3
Em relação à visão feuerbachiana do mundo, Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão destaca duas
principais linhas argumentativas que estruturam os fundamentos deste olhar: “Uma que sublinha o sentido da
realidade como existência fora do pensamento, precedendo-o na ordem genética e excedendo-o sempre na ordem
gnosiológica. A noção de realidade desloca-se assim da esfera da essência, ou da idealidade, para a existência
concreta: real é o modo de ser existindo por si mesmo, independentemente de ser pensado. Em lugar do ser como
conceito ou ideia, que se aplica indistintamente a tudo o que é, ergue-se o ser real, desdobrado na multiplicidade
dos existentes concretos, cada um dos quais é por sua vez uma singularidade dotada de qualidades intrínsecas
que o tornam num ser diferente, único pela sua diferenciação imanente. (...) A outra linha defende que o mundo
real, como mundo pleno, encontra a sua expressão filosófica mais genuína no modo sensível ou sensibilidade
(Sinnlichkeit) ou, por outras palavras, que o espírito de realismo da nova filosofia se deixa traduzir pelo
Sensualismo: o ser real é o ser sensível.” (SERRÃO, 2005, p. 15).
4
É importante deixar claro que Feuerbach não tem intenção de anular ou substituir o pensamento pelos sentidos.
Sua intenção evidencia sua preocupação em superar o pensamento abstrato num pensamento sensível que esteja
aderido ao ser, promovendo no universo da interioridade um processo de abertura à exterioridade mundana.
17
homem é nada; ou o homem é o artífice real de si mesmo e do seu mundo e, então, o
Absoluto transcendente é uma quimera a ser exorcizada.” (VAZ, 1992, p. 121).
Tal compreensão só será possível mediante a consciência de si e de sua essência que o
homem deve ter, sobretudo quando se entrega à experiência religiosa. Não tendo esta
consciência, o homem inicia um processo de transferência daquilo que se encontra dentro de
si que culminará na projeção humana na direção de uma essência divina.
Nesse sentido, Feuerbach nos apresenta uma pedagogia que procura trabalhar com o
homem no intuito de ajudá-lo a perceber que a consciência que tem de Deus é a consciência
que tem de si e da sua essência. Por isso afirma:
Se na religião, a consciência de Deus é referida como a consciência de si do homem,
tal não se deve compreender no sentido em que o homem religioso estaria
diretamente consciente de que a consciência que tem de Deus é a consciência de si
da sua essência, visto que é justamente a falta desta consciência que funda a
diferença específica da religião. O homem começa a lançar a sua essência para fora
de si, antes de a encontrar em si. A sua própria essência começa por ser para ele
objeto como uma essência diferente (FEUERBACH, 1994, p. 23).
A partir da compreensão expressa por Feuerbach, não se pode inferir que a experiência
religiosa seja simplesmente um buscar iludir-se ao acreditar em um poder diferente de si para
superar os obstáculos e dificuldades cotidianas. Considerada como egoísta – no sentido
negativo do termo5 –, o que ela representa é mais uma exponenciação do eu em um outro
divino posto a seu próprio serviço e interesse.
Considerando o raciocínio feuerbachiano, chegamos ao princípio fundamental da
religião e da teologia: o ser humano procura sujeitar o divino às suas vontades, tornando-o
sempre benéfico e útil aos seus interesses. É o homem barganhando consigo mesmo,
divinizando sua própria vontade, ou seja, o seu egoísmo negativo, pois assim o é ao alienar-se
num outro divino ao invés de viver a afirmação de si prescindindo de tal transferência.6 Dado
5
Evidentemente não podemos esquecer que Feuerbach diferencia o egoísmo vil do egoísmo positivo que traduz
o anseio do homem em buscar respostas e possíveis soluções para os seus problemas sem prejudicar os
semelhantes. Porém, o que aqui queremos realçar é o egoísmo negativo, pois trata-se da força propulsora da
sustentação da crença num ser diferente de si mesmo que lhe corresponda como e quando ele quiser. No sentido
vulgar da palavra, trata-se do egoísmo do homem para com o homem, do egoísmo moral, “o egoísmo que tudo
faz, ainda que aparentemente fazendo para os outros, só faz tendo em vista sua própria vantagem”
(FEUERBACH, 1989, p. 50).
6
Cabe ressaltar o sentido positivo que também pode ter o egoísmo na perspectiva feuerbachiana. Nessa ótica,
bem distinto desse egoísmo negativo que pode assumir o ser humano que se projeta nos conceitos da teologia e
nas religiões, explana Feuerbach na obra Preleções sobre a essência da religião: “Entendo por egoísmo o fazer
valer-se a si mesmo conforme a natureza e, consequentemente (porque a razão do homem nada mais é do que a
natureza consciente do homem) conforme a razão, o afirmar-se a si mesmo do homem diante de todas as
instâncias antinaturais e anti-humanas que a hipocrisia teológica, a fantasia religiosa e especulativa, a brutalidade
e o despotismo político impõem ao homem. Entendo por egoísmo o egoísmo sem o qual o homem não pode
viver; porque para viver devo apropriar-me constantemente do que me é conveniente e evitar o que me agride e
18
que o egoísmo é um componente humano fundamental, não é de se estranhar seu uso
negativo, como acabou de descrever-se.
Quem poderá negar ser o egoísmo humano o princípio fundamental da religião e da
teologia? Pois, se a dignidade de ser adorado e implorado, logo, se a divindade de
um ser dependente exclusivamente de sua relação com o bem-estar humano, se é
divino somente um ser que seja benéfico e útil ao homem, então o motivo da
divindade de um ser está somente no egoísmo do homem, que relaciona tudo só
consigo e só julga conforme essa relação (FEUERBACH, 1989, p. 59).
Nas obras A essência do cristianismo e Preleções sobre a essência da religião,
percebe-se que, assim como no passado, ainda hoje, diante das mais variadas situações que
desafiam o ser humano, a ânsia de proteger-se o leva a criar para si uma redoma, uma
carapaça supostamente capaz de defendê-lo dos problemas e desafios. Assim, na experiência
religiosa, o ser humano apega-se a estruturas que ele mesmo cria para aliviar suas dores e
sofrimentos transformando essas estruturas em divindades, em fantásticos poderes capazes de
assegurarem sua proteção e livrá-lo dos males.
A projeção humana em seres sobrenaturais parece ter sido muito frequente em culturas
pré-modernas. Ainda hoje pode ser percebida, apesar dos processos decorridos a partir do
século XVI no Ocidente cristão, bem como em outras culturas.
Até o século XVI, em todas as culturas do passado, incluindo o Ocidente cristão, e
ainda hoje na grande maioria dos cristãos, existe a ideia de que este nosso mundo
dependeria absolutamente de outro mundo, o qual é pensado e representado de
acordo com nosso modelo. Na visão cristã, isso significa que seria governado por
um Senhor divino, com plenos poderes (...). Este Senhor todo-poderoso dita leis e
prescrições, vela por seu exato cumprimento, ameaça, castiga e ocasionalmente
perdoa. Espontaneamente pensa-se que este mundo está situado “sobre” o nosso, e
por isso ele é chamado sobrenatural e também céu, ainda que num sentido distinto
do de firmamento. Nesse mundo de cima se sabe e se conhece tudo, até o mais
recôndito. Qualquer conhecimento humano é inferior em comparação com aquele.
Felizmente, de vez em quando esse mundo nos comunica o que considera
indispensável saber e que não poderíamos descobrir sozinhos. A boa vontade, ao
menos latente, daquele mundo de cima fundamenta, por sua vez, a esperança de que
– mediante humildes súplicas e oferendas – conseguiremos uma parte das
inumeráveis coisas de que precisamos e não podemos alcançar com nossas próprias
forças (LENAERS, 2010, p. 21).
me é nocivo, o egoísmo pois que está no organismo, na posse do material assimilável e na recusa do não
assimilável. Entendo por egoísmo o amor do homem por si mesmo, ou seja, o amor pela essência humana, o
amor que é o impulso para a satisfação e aprimoramento de todos os anseios e talentos, sem os quais ele não será
nem poderá ser um homem verdadeiro, completo. Entendo por egoísmo o amor do indivíduo por indivíduos de
sua espécie; porque o que sou sem eles? O que sou sem o amor à essência de meu semelhante? – o amor do
indivíduo por si mesmo no sentido em que todo amor por um objeto, por uma coisa, é um amor indireto por si
mesmo, porque só posso amar o que corresponde a meu ideal, a meu sentimento e a minha essência.”
(FEUERBACH, 1989, p. 50).
19
O aspecto modelar da projeção religiosa destacado por Lenaers favorece a
compreensão do trânsito religioso, ou seja, das mudanças das crenças nos vários deuses em
distintas culturas ao longo da história. Recorde-se que, na perspectiva feuerbachiana, como
afirmado anteriormente, ao criar estruturas e, a partir delas, crenças, superstições e ritos, o ser
humano evidencia o seu egoísmo, pois sempre pede, invoca, oferece e ritualiza em benefício
próprio, em busca de sua própria satisfação. Assim, “Toda satisfação de um impulso, seja esse
baixo ou elevado, físico ou espiritual, prático ou teórico, é para o homem um prazer divino e
somente por isso adora ele objetos ou seres como majestosos, adoráveis, divinos por depender
deles essa satisfação.” (FEUERBACH, 1989, p. 53).
Portanto, o presumível divino, os poderes fantásticos, as forças extra-humanas devem
estar sempre a serviço dos anseios, sonhos, projetos, e ambições daqueles que o invocam. Se
não atendem ao esperado, perdem a credibilidade, a confiança e deixam de ser venerados,
adorados. Consequentemente são substituídos por outros que nascem das necessidades não
satisfeitas. Feuerbach nos dá como exemplo a atitude dos cristãos quanto às divindades pagãs.
Mas por que os cristãos repudiaram os deuses pagãos, gregos e romanos? Porque seu
gosto religioso se transformou, porque os deuses pagãos não mais ofereciam a eles o
que desejavam. Por que então só o Deus deles é para eles Deus? Porque é a essência
da essência deles, porque é semelhante, correspondente a suas necessidades, desejos
e ideias (FEUERBACH, 1989, p. 53).
É bastante improvável que o ser humano deixe de buscar apoio na religião ou deixe de
acreditar no divino, pois a própria existência o leva a investir nesta crença uma vez que exige
explicações e soluções para vários problemas que não consegue solucionar. Já nos lembra
Feuerbach: “somente quando o homem perde o sabor da religião, quando a própria religião se
torna insípida, só então torna-se também a existência de Deus uma existência insípida.”
(FEUERBACH, 2007, p. 47).
As limitações e a incompletude fomentam no ser humano a experiência religiosa.
Assim, percebe-se que: “em Feuerbach a insuficiência humana se compensa num eu pessoal
deificado, que é resposta também às suas dores, misérias, sofrimentos, angústias, pressões da
vida social e política e ao desejo de vida melhor após a morte.” (HAHN, 2003, p. 116).
Nesta experiência, que sugere ou supõe uma abertura ao divino, o homem explicita o
processo inconsciente de sua própria projeção. O ser humano é, portanto e inconscientemente,
aberto para sua própria essência, evidenciando que o divino outra coisa não é senão o
totalmente eu.
20
A essência diversa e independente do homem, o objeto da religião, não é somente a
natureza exterior, mas também a natureza própria, interior do homem, diversa e
independente de seu saber e querer. Com esse princípio chegamos ao ponto mais
importante, à genuína origem da religião. O mistério da religião é em última análise
somente o mistério da união do consciente com o inconsciente, do arbitrário com o
casual em um único ser (FEUERBACH, 1989, p. 258).
Como pode o ser humano falar de Deus sendo que deposita suas forças em seus
interesses egoístas, transformando-os no único deus, na única religião da humanidade? 7 Não
está este mesmo ser humano, na prática, demonstrando acreditar somente em si mesmo, se
colocando como medida de todas as coisas?
Não se pode negar que todas as vezes em que o homem se afirma através de sua
liberdade, colocando-se como fim último de seus projetos, já está concretizando – ainda que
sem consciência clara – o ideal humanista. A crítica feuerbachiana, propõe a libertação
daqueles que ainda procuram justificar a vida e os rumos da história teologicamente,
alienando-se da capacidade de protagonizarem mudanças necessárias para emancipação da
consciência humana. Assim, a pedagogia feuerbachiana procura:
Ajudar o homem a encontrar seu lugar na vida e também nela estimular o desejo de
dedicar seus esforços diretamente à humanidade, de sorte que sua vida, plena de
riquezas espirituais, se torne uma felicidade terrena, e não um mero preparativo para
a recompensa no outro mundo. Feuerbach propõe o amor ativo pelo ser humano e a
incompatibilidade com as ilusões, mitos e ideias que o impedem de viver uma vida
revestida de significação social. Pois a necessidade de fazer o bem aos outros e de
não pensar apenas em seus próprios interesses exige a emancipação da consciência
do homem, que impõe a necessidade de libertá-lo de muitas ilusões e superstições
acerca da sociedade justificada teologicamente (HAHN, 2003, p. 77).
Enquanto o ser humano não assumir a sua responsabilidade e o seu papel de
protagonista na mudança dos rumos da história, continuará servindo-se da religião para
esquivar-se de seu compromisso para com a transformação do mundo. Por isso Feuerbach
Critica a religião por não dar a devida importância à vida presente pondo toda a
esperança de libertação no céu. Por isso o homem religioso, segundo ele, não se
compromete com a mudança e transformação, com a justiça, o sofrimento e a
miséria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas coisas resignadamente
7
Cabe aqui ressaltar o pensamento de Max Stirner acerca do eu e do mundo, na obra O único e a sua
propriedade. Pensamento que, sobre esta questão especificamente, não se distancia da análise feuerbachiana do
egoísmo. Assim expõe Stirner como se processa a nossa relação com o mundo: “já não faço por ele nada “por
amor a Deus”, nada “por amor aos homens”; o que faço, faço-o “por amor a mim”. Só assim o mundo me
satisfaz, enquanto é característico do ponto de vista religioso, no qual incluo também o moral e humanista, tudo
nele ser um voto piedoso (pium desiderium), ou seja, um além inacessível. É o caso da bem-aventurança
universal dos homens, o mundo moral de um amor universal, a paz perpétua, o fim do egoísmo etc. “Nada é
perfeito neste mundo”: com este dito desolador, os bons afastam-se dele e refugiam-se em Deus ou no orgulho
da sua “consciência-de-si”. Mas nós ficamos neste “mundo imperfeito” porque nos podemos servir assim mesmo
dele para nosso... gozo pessoal.” (STIRNER, 2009, p. 412).
21
sem lutar contra elas, projetando nossa felicidade no outro mundo (ZILLES, 2007, p.
102).
A atual conjuntura, na sua complexidade, tornou-se o convite para um repensar a
religião e, especificamente, o cristianismo. A busca pelo sagrado, pelo transcendente, pelo
sobrenatural tem contribuído para a evolução da humanidade? Até quando o ser humano
continuará privando-se de sua condição de sujeito originário que deve escrever sua história?
A crítica feuerbachiana à religião vai nos mostrar que não podemos mais continuar
tomando a história como manifestação do querer divino, pois tal postura impede todo e
qualquer processo de humanização do homem. Por isso sugere a busca do fundamento
antropológico da religião. Interessa-nos, portanto, investigar
Como Feuerbach buscou mostrar ser a religião apenas antropologia, como
reencontrou o homem na estrutura da alienação religiosa, porque este foi um passo
fundamental, dado por Feuerbach, para tornar o ser humano sujeito ativo de sua
história e não mais um simples ser a cumprir os supostos desígnios divinos
(SCHUTZ, 2001, p, 19).
O ser humano precisa entender o que fala e se, quando fala, não está falando dele
mesmo ao direcionar o seu pensamento ao que considera ser de outra natureza ou dimensão.
O Deus que o homem distingue de sua essência e que pressupõe esta como causa ou
origem nada mais é do que a própria natureza. O Deus humano ou o Deus espiritual
ou o Deus ao qual ele atribui predicados humanos como consciência e vontade que
ele imagina como um ser semelhante a si, distinto da natureza enquanto entidade
destituída de vontade e consciência, nada mais é que o próprio homem
(FEUERBACH, 1989, p. 76).
Ludwig Feuerbach analisa a natureza humana na sua compleição, o desenvolvimento
histórico, no intuito de compreender toda a psicologia humana, a moral, a história, a religião.
Sem o estudo de tudo aquilo que faz parte da natureza e da história humana e sem a
compreensão das motivações primeiras da experiência religiosa, não conseguiremos entender
porque o ser humano, sobretudo frente a suas necessidades, alimenta o sentimento de
dependência religiosa. Afirma Feuerbach: “o sentimento de dependência é a base da religião.”
(FEUERBACH, 1989, p. 29).
Enquanto o ser humano estiver projetando sua grandeza e sua infinitude num ser
distinto de si, continuará permitindo que a religião avance neste processo de esvaziamento do
homem, pois dela não se pode esperar senão a alienação e debilitação do ser humano,
apresentando-se como autoestranhamento e autoalienação de cada homem individual. “A
religião, sobretudo o cristianismo, faz com que o homem não se empenhe nas tarefas
temporais, na construção da história e da sociedade, afastando o interesse humano da
22
realidade concreta, devido à esfera de um quimérico mundo vindouro.” (SOUZA, 1993, p.
69).
Não se pode negar que na medida em que o homem se torna religioso, vai alienando-se
de sua humanidade, “adornando Deus com tesouros de sua própria interioridade.” (SOUZA,
1993, p. 70).
Investigar o pensamento de Ludwig Feuerbach traduz a busca de fundamentos e de
compreensão de suas críticas à religião no intuito de valorizar no homem o amor por si
mesmo, o amor pela essência humana e pelos indivíduos de sua espécie. Por mais que isso
possa sugerir uma espécie de egoísmo, não se pode associá-lo à busca de vantagem, mas:
O fazer valer-se a si mesmo conforme a natureza e, consequentemente (...) conforme
a razão, o afirmar-se a si mesmo do homem diante de todas as instâncias antinaturais
e anti-humanas que a hipocrisia teológica, a fantasia religiosa e especulativa, a
brutalidade e o despotismo político impõem ao homem. (FEUERBACH, 1989, p.
50).
Como conclusão deste item pode-se afirmar que não haverá ruptura com tudo aquilo
que aprisiona o homem se o próprio homem não tomar consciência daquilo que lhe prende. O
afirmar-se a si mesmo exige necessariamente a coragem e a ousadia para desligar-se do que,
até então, era considerado como parte integrante e normal da vida humana.
Tomar as instâncias antinaturais e anti-humanas como naturais e humanas traduz, tão
somente, a incompreensão do valor e da importância do humano no cumprimento do papel
protagonizador da mudança de rumo da história que tantas vezes deixou de ser assumida e
administrada por muitos que se esquivaram desta humana missão.
Abrir-se ao presumível divino é contribuir para a expansão das ideias religiosas que,
no decorrer da história humana, mantiveram o homem no anonimato, resignado e destituído
de seu poder de questionamento e de transformação.
O pensamento de Feuerbach quer auxiliar o homem no reencontro consigo mesmo de
maneira que, uma vez reencontrado, possa fazer valer suas potencialidades, sua razão, sua
autonomia, sua essência. Potencial sufocado que deve ser libertado e administrado em nome
de uma história que deverá ser escrita e celebrada por ele mesmo ao invés de se entregar à
crença num deus que a escreve à sua maneira.
23
2.2 Regresso ao homem como encontro com a essência humana
Conforme trabalhado no item anterior, o homem jamais poderá conhecer sua essência
se não se dispuser a fazer aquela viagem necessária ao seu interior. Para tanto, deverá
percorrer um caminho diferente daquele apresentado pela religião, uma vez que encontrará
como placas indicativas neste novo caminho não as verdades do além, mas o que a realidade
apresenta como conteúdo a ser pesquisado, trabalhado e administrado sem o auxílio das ideias
religiosas.
O caminho que leva ao homem é, portanto, o próprio homem. Seu auxílio será a sua
curiosidade. Sua força a sua perseverança na busca da compreensão de seu interior. Sua
recompensa a sua libertação frente às inverdades apresentadas pela religião.
A proposta de Feuerbach é que o homem procure conhecer melhor sua essência para
que passe a acreditar mais no seu potencial de transformação. A libertação do homem frente
ao que lhe é imposto pelas doutrinas e pelas crenças só será possível a partir do momento em
que aprender a se respeitar como ser autônomo e capaz de decidir pelo seu destino. Daí a
importância de regressar a si para descobrir-se como responsável pelos outros, pois na sua
liberdade e nas suas escolhas não deve furtar-se de seu compromisso para com os demais que
participam e traduzem a essência genérica humana.
No título A essência do homem em geral, da Introdução de A essência do cristianismo,
Feuerbach apresenta a consciência em sentido estrito como a diferença essencial entre o
homem e o animal, entendendo por consciência em sentido estrito a capacidade de um ser
tomar como “objeto o seu gênero8 ou a sua essencialidade.” (FEUERBACH, 1994, p. 9).
A distinção entre a existência finita, que define a individualidade de um indivíduo, e
a essência finita, que pertence a todos, apenas pode ser reconhecida pela
consciência. Não aquela consciência em sentido amplo, graças à qual se dá a
8
Faz-se necessária uma sistematização mais precisa das diferentes acepções cobertas pela categoria de gênero
humano. Tal sistematização é dada por Feuerbach, sendo dividida em quatro acepções conforme nos apresenta
Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “Gênero significa em primeiro lugar, ‘o tu em face do eu
singular fixado por si’. Aqui se consagra a noção de indivíduo concreto no seio da estrutura da socialidade, o
face a face do existir em comum na dinâmica relacional. Numa segunda acepção, gênero indica ‘o outro em
geral’. A ideia de Humanidade é alargada dos “tus” atuais aos outros possíveis, contendo a individualidade
genérica de qualquer possível ser humano, ainda que atualmente não presente. Numa terceira acepção, o gênero
são ‘os indivíduos humanos que existem fora de mim’. Refere-se ao conjunto numérico, a soma das
individualidades discretas passadas e presentes, a reunião presuntiva de todos os indivíduos. Não se tratando da
soma estatística e contável, mas de uma adição incontável e aritmeticamente inabarcável, perder esta acepção
aditiva seria voltar a cair na nulidade do singular. Por fim, numa quarta acepção, o gênero indica a ‘natureza do
homem’, a natureza sociável da essência humana (SERRÃO, 1999, p. 255).
24
apreensão perceptiva de um objeto sensível, mas a consciência de si, a relação que
um ser mantém com a sua essência interior. A natureza mais genuína do ser humano
não se encontra tanto no fato de ser exteriormente um elemento de um gênero,
quanto no fato de ser interiormente consciente de ser elemento de um gênero; ou,
noutros termos, na capacidade de poder apreender subjetivamente, em si, um poder
infinito objetivo. A consciência é assim a estrutura humana mais fundamental.
Consciência e essência distinguem-se somente como duas faces, a subjetiva e a
objetiva, da vida em relação com o gênero, com a essência humana universal
(SERRÃO, 1999, p. 51).
Embora o animal tenha sentimento de si, possua faculdade de diferenciação sensível
conseguindo perceber as coisas que se encontram ao seu redor, ainda lhe falta a capacidade
para a ciência enquanto consciência do gênero. É interessante observar que Feuerbach parte
dessa distinção para mostrar que somente a partir da consciência de sua essencialidade é que
“um ser começa a tomar por objeto outras coisas ou seres segundo a sua natureza essencial.”
(FEUERBACH, 1994, p. 9).
Enquanto o animal possui uma vida simples, pois sua vida interior coincide com a vida
exterior, o homem possui uma vida dupla, ou seja, uma vida interior e uma exterior. É
justamente essa vida interior que vai permitir a relação do homem “com o seu gênero, a
relação do homem com sua essência universal.” (FEUERBACH, 1994, p. 10). O animal, por
não ter consciência do gênero, se encontra impossibilitado de realizar qualquer função
genérica sem que haja um outro indivíduo além dele. O homem, ao contrário, já consegue
realizar as funções genéricas do pensar, do falar sem que haja um outro.
Sabemos que o homem consegue situar-se no lugar de seu semelhante, e isso nos leva
a crer que ele é concomitantemente eu e tu. “O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu;
pode colocar-se no lugar do outro, precisamente porque tem como objeto, não apenas a sua
individualidade, mas o seu gênero, a sua essência.” (FEUERBACH, 1994, p. 10).9
Ainda apresentando as diferenças entre o animal e o homem, Feuerbach vai nos falar
da consciência que o homem possui de sua essência infinita, pois se não a possuísse não
poderia pensar sobre a infinitude, muito menos sobre a infinitude de sua consciência. Isso o
difere do animal que, ao contrário, possui instinto.
Precisamente pela consciência do gênero ou essência, que tem a qualidade da
infinitude, é que o indivíduo toma consciência de sua limitação e finitude. Nesta
tomada de consciência da própria limitação por parte do indivíduo frente ao gênero,
consiste sua diferença específica frente ao animal (SOUZA, 1993, p. 53).
9
A sequência das citações deste tópico deve-se à necessidade de atermo-nos às ideias chaves que se encontram
na Introdução de A essência do cristianismo. Tomamos propositalmente essa sequência como o alicerce para os
passos subsequentes de nossa pesquisa.
25
Atentos à maneira como Feuerbach vai desenvolvendo seu raciocínio, percebe-se que
à medida que o homem passa a tomar consciência do infinito é que ele, enquanto ser
consciente, vai tomando como objeto a infinitude da própria essência. Por isso afirma:
A religião em geral, enquanto idêntica à essência do homem, é idêntica à
consciência de si do homem, à consciência que o homem tem da sua essência. Mas a
religião é, numa expressão geral, consciência do infinito; portanto, não é e não pode
ser outra coisa senão a consciência que o homem tem de sua essência, a saber, de
uma essência não finita, limitada, mas infinita (FEUERBACH, 1994, p. 10).
Percebe-se, a partir da análise de Feuerbach, que o homem não pode ter consciência da
infinitude se não fosse infinito e se sua essência fosse finita. Sua consciência nada mais é
senão a consciência que toma a essência infinita por seu objeto. Ora, se a religião é a
consciência do infinito e esta consciência é a consciência que o homem tem de sua essência
infinita, então deduz-se que a consciência dessa essência infinita é a religião da humanidade.
Os desdobramentos desse raciocínio vão evidenciando que a essência do homem é a
coluna mestra da religião e que sem ela o sobrenatural, o transcendente, o sobre-humano,
desmoronaria, pois não poderia se sustentar em nada mais além do humano. Portanto o
presumível além não é senão o aquém projetado para fora de si. E o ato de projetar-se para o
suposto além não seria possível se o homem não tivesse consciência de sua essência infinita.
Aqui, faz-se necessário perguntar com Feuerbach: “mas o que é então a essência do
homem, da qual ele tem consciência, ou o que é que constitui o gênero, a humanidade
propriamente dita no homem? A razão, a vontade, o coração” (FEUERBACH, 1994, p. 11).
Analisando o pensamento de Feuerbach, Adriana Veríssimo Serrão afirma que:
Sendo a razão como a unidade mesma dos homens, não poderia ela encontrar-se a
não ser na imanência do mundo humano, único terreno onde se concretiza e tem o
seu lugar de manifestação. E sendo essa unidade necessariamente também universal
e infinita, não limitada por uma entidade superior nem afetada internamente por
qualquer clivagem, é a própria totalidade dos homens encarnada no gênero humano
que é levada ao estatuto de realidade suprema e de única figura do divino. A rejeição
de qualquer posição de transcendência é particularmente patente na introdução do
atributo da infinitude. Determinar limites à razão, ou ao gênero que a encarna,
significaria introduzir o ponto de vista da comparação com uma entidade superior
relativamente à qual a razão se poderia saber como finita, mas também na qual,
contraditoriamente, ao ultrapassar-se e sair de si mesma para se ver como limitada,
se colocaria imediatamente como razão e não-razão, como sua negação (SERRÃO,
1999, p. 34).
Percebe-se que Feuerbach fala da humanidade como um todo não fugindo para uma
dimensão transcendente, distante da realidade, da natureza, do universo. Assim, o indivíduo
só poderá humanizar-se concretizando o que é comum a todos.
26
A essência não se confunde com uma ideia platônica, uma entidade metafisicamente
subsistente ou uma alma substancial. É um complexo dinâmico de faculdades ou
forças de coesão universal, cujo único sujeito e protagonista é o todo da
Humanidade, o gênero humano, que se desdobra na inesgotável multiplicidade e
diversidade de indivíduos reais. O pensamento, a vontade e o sentimento
representam, na unidade do seu conjunto, os poderes fundamentais, a “essência
absoluta” de que o homem não se pode privar nem ser privado sem gerar a
incompletude e o empobrecimento da sua própria identidade (SERRÃO, 1993, p.
12).
Quando o homem se desloca de sua essência para se apoiar na individualidade, na
particularidade, priva-se daquilo que lhe é mais precioso: a humanização que só se dá na
realização do universal comum a si e aos demais semelhantes. Esse movimento que nega a
essência acaba por instalar na humanidade o processo de individualização e de personalização
que, gradativamente, vai deixando o homem vazio, carente da sua verdadeira identidade.
Negando aquilo que Feuerbach coloca como perfeições essenciais absolutas – a razão,
a vontade, o coração –, o homem se ilude de poder não mais participar delas, não aceitando
que é a partir delas que ele se define, pois são forças que o animam e o determinam. São
forças perfeitas porque encontram em si mesmas a finalidade para a sua existência e para o
seu ser.
Mas aquilo que é o fim último de um ser é também o seu verdadeiro fundamento e
origem. Mas qual é o fim da razão? A razão. Do amor? O amor. Da vontade? A
liberdade da vontade. Pensamos para pensar, amamos para amar, queremos para
querer, isto é, para sermos livres. Um verdadeiro ser é um ser que pensa, ama e quer.
Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si. E tal é o amor, tal
a razão, tal a vontade. A trindade divina no homem, acima do homem individual, é a
unidade de razão, amor e vontade (FEUERBACH, 1994, p. 11).
Mas, existiria o verdadeiro fim da razão, do amor, da vontade se não existisse a
consciência do gênero que permite ao homem pensar, amar e querer? O que ele buscaria, o
que amaria sem a razão? De que mundo falaria se não deste mundo, desta realidade, desta
natureza, deste universo? Não existe a mínima condição – por natureza – de pensar, amar,
querer além daquilo que faz parte do gênero, que é permitido por ele, pois, caso contrário,
haveria uma contradição na própria essencialidade.
Assim, tudo aquilo que está ligado ao que o homem ama, quer e pensa só existe
enquanto amado, querido e pensado segundo a sua essencialidade. Portanto, o presumível
transcendente, o sobrenatural, o divino já existe dentro do ser humano, pois quando se busca
na religião o que supostamente está acima da humanidade, da natureza, busca-se – na verdade
– o que sempre esteve no seu interior.
27
Por que devo então ir além da natureza? Só teria uma justificação para isso se fosse
eu mesmo um ser que existisse acima da natureza. Mas não sou um ser sobrenatural
e nem mesmo supraterrestre, porque a terra é o critério absoluto de minha essência;
eu não só estou sobre a terra com as duas pernas, mas também só penso e sinto sob o
ponto de vista da terra, só em conformidade com esta situação que a terra ocupa no
universo; certamente elevo minhas vistas até o mais distante céu, mas vejo todas as
coisas à luz e segundo o critério da terra (FEUERBACH, 1989, p. 83).
Constata-se que realmente “o homem nada é sem objeto” (FEUERBACH, 1994, p. 13)
e que esse objeto não existe nem se encontra fora dele mesmo. Na verdade o homem passa a
ser mais bem conhecido a partir de seu objeto, pois é ele, o objeto, que revela a essência, o
autêntico objetivo do homem.
Quando Feuerbach afirma que “o homem torna-se consciente de si mesmo pelo objeto:
a consciência do objeto é a consciência de si do homem” (FEUERBACH, 1994, p. 13),
demonstra claramente que o homem é o seu próprio deus10 e que a projeção para o
transcendente, sobrenatural, não passa de uma patologia que nega a verdade objetiva e fria, a
verdade da realidade, do mundo e da razão objetivos, uma patologia11 que deve ser curada a
partir do assumir-se totalmente humano e limitado, carente de respostas ou de soluções para
seus problemas. Apresenta-se aqui a diferença fundante entre a consciência de si do homem e
a consciência religiosa:
A consciência religiosa liga imediatamente o mundo a Deus; deduz tudo de Deus,
porque não toma nada como objeto na sua particularidade e realidade, nada é para
ela objeto como objeto da teoria. Tudo provém de Deus – e isto basta, satisfaz
completamente a consciência religiosa (FEUERBACH, 1994, p. 270).
O pensamento feuerbachiano vai delineando com peculiar maestria aquilo que traduz a
sã consciência: autoativação, autoafirmação, amor de si, alegria pela sua perfeição em vista da
superação de estruturas que sempre tentaram desumanizar o humano. Segundo Hahn,
Feuerbach
10
Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão salienta que “a interpretação feuerbachiana da religião
começa por ser a mostração da origem humana do divino através da redução do divino ao humano: é este o cerne
da tese segundo a qual “Deus é o homem”. Mas a intenção que orienta – compreender como e porquê cria o
homem os seus deuses – vem a tornar-se, por sua vez, propedêutica de outra interrogação mais profunda – quem
é esse criador dos Deuses? – , interrogação condutora de um processo maiêutico bem expresso no “conhece-te a
ti mesmo” socrático que Das Wesen des Christentums elege como lema inspirador. Procura acima de tudo a
resolução do enigma que envolve todo o fenômeno da transcendência, através da reconstituição da sua gênese
psicológica.” (SERRÃO, 1999, p. 62).
11
Em relação ao termo patologia, a professora Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão ressalta que “a
designação patologia psíquica diagnostica uma situação de quase delírio e o grau de excessividade que esta
faculdade pode atingir quando se torna onipotente e se sente capaz de ultrapassar todos os limites.” (SERRÃO,
1999, p. 64). Na experiência religiosa o ser humano procura administrar os desafios e as situações que lhe
afligem através da negação da realidade quando, pela religião, imagina estar superando os limites próprios da
natureza.
28
Elege a ideia de homem como sua referência última, sobretudo porque o humano
concreto é apenas a totalidade da vida e da essência humana, e não de uma realidade
transcendente. Em torno desta homologia se concentra todo um exame crítico de
uma tradição cultural e filosófica, lida por Feuerbach como a história de um
esquecimento e de uma marginalização do homem real. Nestes termos, a
antropologia proposta por Feuerbach, e aí reside seu mérito para a
contemporaneidade, é a constante superação das inúmeras formas de desumanização
de que se revestiu e se reveste a humanidade: seja a teologia que degrada o homem à
condição de súdito de um senhor divino, a metafísica que o reduz a ser abstrato, ou a
ciência que o instrumentaliza como objeto, sejam ainda outras formas de alienação
ideológica e de repressão política (HAHN, 2003, p. 144).
Feuerbach também mostra que, imperceptivelmente, a grande maioria não se deu
conta de que negar-se a si mesmo é negar o deus gerado pela negação do gênero. Se negam a
si mesmos, como podem sustentar um deus perfeito que outra coisa não é senão eles mesmos?
Como podem negar aquilo que não é distinto nem separado deles mesmos? Precisamos,
portanto, ter clareza sobre o que estamos tratando. Temos que compreender de que maneira o
homem toma consciência de si mesmo. “É, pois, impossível ter consciência de uma perfeição
como sendo imperfeição, impossível sentir o sentimento como limitado, impossível pensar o
pensar como limitado.” (FEUERBACH, 1994, p. 15).
Evidentemente Feuerbach não está sugerindo que o indivíduo humano deixe de sentirse ou de reconhecer-se como limitado. Ao contrário, até admite que o indivíduo humano
procure tomar consciência disso. O que quer mostrar é que a consciência das limitações e da
finitude só se torna possível pelo fato de ele ter como objeto a perfeição, a infinitude do
gênero.
Diante de suas limitações, o indivíduo humano, na maioria das vezes, serve-se delas
para transformá-las em limitações do gênero, sustentando a ilusão de que se identifica assim
com o gênero. Na verdade, tal fato demonstra a dificuldade do indivíduo em lidar com aquilo
que ele toma para si como vergonhoso, como humilhante. Para libertar-se desse sentimento,
investe no processo de transformação das limitações individuais em limitações da essência
humana. “O que é para mim incompreensível, é também incompreensível para os outros;
porque é que me hei de preocupar mais? Não é culpa minha, não está no meu entendimento,
está no entendimento do próprio gênero.” (FEUERBACH, 1994, p. 16).
Entender esta dinâmica de transferência de uma limitação individual para a esfera do
geral só é possível se levarmos em consideração que tal procedimento reflete tão somente
uma imperfeita consciência de si. “É no momento em que uma deficiência individual se
estende à totalidade dos homens, quando um defeito particular não é reconhecido como tal
mas considerado como defeito de todos, que se instala a ilusão religiosa.” (SERRÃO, 1999, p.
53).
29
Considerando essa linha de raciocínio percebemos que da mesma maneira que o
indivíduo transfere para a esfera do geral aquilo que lhe é peculiar, podendo ser uma
limitação, uma deficiência, uma incapacidade, também o faz ao projetar para o presumível
transcendente, sobrenatural, divino aquilo que se encontra na sua essência, a saber: o
ilimitado, a perfeição, a infinitude do gênero.
Afirmar o transcendente, o sobrenatural, o divino como entidades totalmente diversas
e externas ao ser humano é negar inconscientemente a própria essencialidade, pois a essência
absoluta do homem é a sua própria essência. Como poderá o homem ir além de sua essência
sendo que quando imagina que isso esteja acontecendo está alimentando uma transcendência
ilusória, uma ilusão, sem sair de si mesmo? Essa ilusão tornou-se o conteúdo da religião,
resultado de uma consciência iludida.
E se o conteúdo da religião é tão só o de uma consciência iludida e deficientemente
dirigida, então é algo de provisório e que poderá a qualquer momento ser suspenso,
convertendo-se definitivamente em atitude consciente uma atitude desprovida de
consciência, somente ainda desconhecida e cujos mecanismos ainda não foram
compreendidos como tal (SERRÃO, 1999, p. 54).
Se “o que faz da essência aquilo que ela é, é justamente o seu talento, a sua
capacidade” (FEUERBACH, 1993, p. 17), então se torna impossível querer explicar o
transcendente, o divino como não sendo oriundo da essência humana, pois como poderia o ser
humano pensar o infinito sem a infinitude da faculdade de pensar e como poderia sentir o
infinito sem a infinitude da faculdade de sentir? “O objeto da razão é a razão que se toma a si
mesma como objeto, o objeto do sentimento é o sentimento que se toma a si mesmo como
objeto.” (FEUERBACH, 1994, p. 18).
Encontramo-nos conosco na experiência da projeção no transcendente, pois na
tentativa de encontrarmo-nos com Deus encontramo-nos com nossa essência, que deixa de
afirmar-se para afirmar um além que não passa de um aquém que não quer assumir-se.
Como poderias perceber o divino através do sentimento, se o sentimento não fosse
ele mesmo de natureza divina? O divino só é reconhecido pelo divino, Deus apenas
por ele mesmo. A essência divina que o sentimento percebe nada é, de fato, senão a
essência do sentimento enfeitiçada e encantada consigo mesma – o sentimento
extasiado, feliz consigo mesmo (FEUERBACH, 1994, p. 19).
O encontro fundamental do homem-homem com o homem-deus evidencia a questão
da cisão originada pelo próprio e único responsável por ela, o homem, que, alienado de sua
essência, busca embriagar-se no etéreo que nunca existiu fora de si, mas que desde a origem
30
da religião passou a ser considerado existente externo, separado, diferente, alheio, contrário à
essência humana.
É importante observar que, mesmo alienado de sua essência, o homem nunca deixou
de ter consciência de si. A questão que nos chama a atenção é justamente a separação, a
distinção que ele faz entre ele e um possível outro distinto de si. Um outro que se difere de si
por ser infinito e superar todas as limitações. Um outro que não é senão ele mesmo. Um outro
que recebe as características da essência do gênero sendo considerado transcendente, distinto
do homem, distante da natureza humana, com qualidades e poder para decidir sobre o homem,
sendo que tais qualidades e tal poder são delegados pelo próprio homem.
É consequência de minha doutrina que não existe nenhum Deus, ou seja, nenhum
ente abstrato, suprassensível, diverso da natureza e do homem, que decide sobre o
destino do universo e da humanidade a seu bel-prazer; mas essa negação é apenas
uma consequência do conhecimento da essência de Deus, do conhecimento de que
esse ser nada mais expressa do que, por um lado, a essência da natureza, do outro
lado, a essência do homem (FEUERBACH, 1989, p. 29).
O regresso ao homem como encontro com sua essência torna-se o processo autêntico
para a compreensão da religião, uma vez que analisando a essência humana analisa-se o
próprio conteúdo da religião. Como afirmado acima, não existe outro caminho a ser
percorrido senão aquele que nos leva ao homem, pois o objeto religioso se encontra dentro
dele, não devendo ser procurado fora, distante de si. É o homem quem elege o objeto da
religião: “é o ser preferido, primeiro, supremo; pressupõe essencialmente um juízo crítico, a
diferença entre o divino e o não divino, entre o que é e o que não é digno de adoração.”
(FEUERBACH, 1994, p. 22).
Como poderia se dar a diferenciação entre o divino e o não-divino senão a partir do
homem? Acaso poderia uma entidade, uma força extra-humana, sobrenatural apossar-se do
homem para fazer essa diferenciação? E, caso isso fosse possível, que recursos tal entidade ou
força utilizaria para se comunicar com o ser humano senão com o que se encontra à
disposição do homem, a saber: o sentimento, a vontade, a razão? Estamos diante daquilo que
Feuerbach considera:
O núcleo fundamental e originário do cristianismo, a simultânea divindade e
humanidade de Cristo, que são utilizadas por ele para fundamentar a um tempo suas
próprias ideias e para realizar sua crítica ao cristianismo. A figura de Cristo é assim
interpretada como uma maneira de expressar que “o homem e Deus são uma mesma
coisa.” (II 387). Portanto, Deus não tem de ser buscado mais além do homem.
31
Crença em Cristo, não é senão crença no homem, na humanidade (CASTRO, 2002,
12
p. 8, tradução nossa).
Fica assim evidenciado como se processa a revelação do presumível divino para com o
humano. O homem, incapaz ou inseguro consigo mesmo, não querendo assumir nem revelar
aquilo que nele se encontra mais escondido, protegido, projeta em Deus o seu interior, os seus
segredos. “Deus é o interior revelado, o si-mesmo do homem expresso, a religião é o
desvendamento festivo dos tesouros escondidos do homem, a confissão dos seus pensamentos
mais íntimos, a proclamação pública dos seus segredos de amor.” (FEUERBACH, 1994, p.
23).
No entanto, observa-se um dado interessante. O fato de o homem religioso projetar-se
em Deus não quer dizer que tenha consciência de que esteja se projetando, ou seja, não está
consciente de que a consciência que tem de Deus é a consciência que tem de sua própria
essência. A falta dessa consciência é que se torna característica fundante da religião.
É evidente que se o homem religioso tivesse essa consciência não procederia como
homem religioso, pois certamente iria trabalhar consigo mesmo para reverter o processo de
projeção.
Se ao invés de projetar-se em Deus o homem procurasse lidar com as questões de
gênero sem apelar para a individualidade, para a particularidade, certamente estaria entrando
em acordo com sua essência.
A religião, pelo menos a cristã, é a atitude do homem para consigo mesmo, ou
melhor, para com a sua essência (a saber subjetiva), mas uma atitude para com a sua
essência como se fosse uma essência diferente. A essência divina nada é senão a
essência humana, ou melhor, a essência do homem purificada, liberta das limitações
do homem individual, objetivada, isto é, intuída e adorada como uma essência
própria, diferente, distinta dele – todas as determinações da essência divina são, por
isso, determinações humanas (FEUERBACH, 1994, p. 24).
É importante também observar que quando o homem cai na ilusão de ter conseguido a
força necessária para a superação de seus problemas – ao apelar para a esfera do
transcendente – acaba idolatrando os predicados humanos como se fossem característicos e
dignos de um deus. Se Deus ama o ser humano porque é amor, se compadece da dor e do
sofrimento porque é compassivo, se perdoa suas faltas e alivia seu coração porque é
misericordioso, deve, por isso, ser buscado e adorado.
12
“El núcleo fundamental y originario del cristianismo, la simultánea divinidad y humanidad de Cristo, que son
utilizadas por él para fundamentar a un tiempo sus propias ideas y para realizar su crítica al cristianismo. La
figura de Cristo es así interpretada como una manera de expresar que “el hombre y Dios son una misma cosa” (II
387). Por lo tanto, Dios no ha de ser buscado más allá del hombre. Creencia en Cristo no es sino creencia en el
hombre, en la humanidad.” (CASTRO, 2002, p. 8).
32
Porque é justamente nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para
mim, o seu ser-em-si-mesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá
ser sempre para mim. O homem religioso está inteiramente satisfeito com o que
Deus é em relação a ele – como homem, não conhece outra relação – pois Deus é
para ele o que pode ser para o homem em geral (FEUERBACH, 1994, p. 27).
Como conclusão deste item uma questão pode ser levantada: de que outra maneira
poderia Deus existir se não existisse a cooperação inconsciente do homem para a sua
presumível existência? Conforme explanado acima, Deus existe porque existe para o homem
religioso. Então, se não existisse o homem religioso Deus nada seria em relação a ele, pois
não existiria. O homem, portanto, seria para si mesmo dispensando toda e qualquer
possibilidade de um ser acima e diferente dele.
O regresso ao homem outra coisa não é senão a negação da religião justificada
teologicamente enquanto ordenamento contrário ao que se apresenta na realidade, ou seja,
negação da sobreposição do que fora gerado pelo humano ao ser humano. Contrapor-se ao
que é justificado teologicamente é fazer jus ao ser humano enquanto único responsável pela
criação de Deus.
Levar o homem a conhecer sua essência é ajudá-lo a libertar-se da submissão e
passividade sustentada pela religião. Trata-se de devolver ao homem a religião autêntica
caracterizada como expressão da natureza humana. Uma religião que estará além das religiões
existentes e se constituirá como a superação de todas elas, pois não aceitará hipostasiação de
deuses separados do homem e recusará a realidade objetiva do além.
2.3 A religião no seu acordo com a essência do homem
Neste item, a análise de Feuerbach vem reforçar a ideia da religião como expressão da
natureza humana. A partir dessa ideia de religião, abre-se o caminho para que o homem
melhor conheça e trabalhe suas potencialidades, sua liberdade e sua identidade.
O pensamento de Feuerbach quer buscar e desvendar o fundamento humano da
religião. Para tanto, serve-se da religião para ajudar o homem a se dar conta de sua essência.
Assim, procurando desenvolver no homem uma reflexão conscientizadora, vai conduzindo-o
à libertação da ilusão religiosa alienante.
Uma vez libertado da ilusão alienante da religião, através do uso da razão, o homem
novo conceberá a realidade como constituída da essência humana e eliminará o divino.
33
Na obra A humanidade da razão, Adriana Veríssimo Serrão ressalta a grande
preocupação do jovem Feuerbach, que, já nos seus primeiros textos, defendia a tese de que a
unidade da razão é expressão da unidade dos homens.
A tese segundo a qual “a unidade dos homens nada mais exprime ou significa do que
a unidade da própria razão” – unitas hominum nihil aliud exprimat significetque,
quam unitatem rationis ipsius –, que sintetiza o núcleo forte da Dissertação de 1828,
não representa apenas a reivindicação da autonomia da razão humana face a todas as
formas, teológicas ou filosóficas, dogmáticas ou apenas reguladoras, de
transcendência. Ela marca sobretudo a formulação mais remota daquela que
constitui a matriz fundamental do pensamento de Feuerbach: a procura de uma
reversibilidade entre a ordem da razão e a ordem do humano (SERRÃO, 1999, p.
33).
Assim, verifica-se que “os primeiros escritos de Feuerbach orientam-se coerentemente
na direção de uma recomposição conceitual do humano e na defesa de uma racionalidade
terrena exclusivamente fundada em categorias da imanência.” (SERRÃO, 1999, p. 33).
Como poderia o homem ao falar da religião não falar de si mesmo? Como poderia ao
referir-se a Deus não referir-se a si mesmo? Como chegaria às qualidades de Deus se não
conhecesse suas próprias qualidades? Como chegaria aos predicados se não tivesse
consciência do que lhe falta, do que lhe preenche, do que afeta seus sentimentos? Como
pensaria Deus senão através da razão? “A razão é, pois, a essência da Natureza e do homem
na sua identidade, depurada das barreiras da finitude, do espaço e do tempo, a essência
universal, o Deus universal.” (FEUERBACH, 1994, p. 343).
Sendo a razão a unidade mesma dos homens, não poderia ela encontrar-se a não ser
na imanência do mundo humano, único terreno onde se concretiza e tem o seu lugar
de manifestação. E sendo essa unidade necessariamente também universal e infinita,
não limitada por uma entidade superior nem afetada internamente por qualquer
clivagem, é a própria totalidade dos homens encarnada no gênero humano que é
elevada ao estatuto de realidade suprema e de única figura do divino (SERRÃO,
1999, p. 33).
As tentativas feitas pelo homem no intuito de afirmar a existência de um deus fora de
si, extra-humano, sobrenatural, transcendente, autônomo e capaz de intervir na história
humana, mesmo não sendo humano, não podem se sustentar dispensando as categorias
humanas. Tal deus, hipoteticamente existindo, deveria eximir-se da razão, dos sentidos e dos
sentimentos humanos para afirmar sua existência e não poderia privar-se de sua essência
divina para servir-se da essência humana para se fazer sentido, experimentado.
Deus enquanto Deus, enquanto ser espiritual ou abstrato, isto é, não humano, não
sensível, acessível e objetivo só para a razão ou para a inteligência, nada mais é do
que a essência da própria razão, a qual, porém, é representada pela teologia comum
34
ou pelo teísmo mediante a imaginação como um ser autônomo, diferente, distinto da
razão. É pois uma necessidade interna, sagrada, que se identifique finalmente com a
razão a essência da razão distinta da razão, por conseguinte, que se reconheça,
realize e atualize o ser divino como a essência da razão (FEUERBACH, 2002, p.
39).
Dentro dessa linha de raciocínio fica claro que da mesma maneira que o presumível
ser divino não pode servir-se do humano sem servir-se de sua essência – e isso seria uma
contradição, pois para algo ser o que é não pode ser o que não é ao mesmo tempo –, também o
ser humano não pode, para sentir e falar de Deus, eximir-se de sua essência. Portanto, quando
o homem fala ou imagina sentir Deus está sentindo e falando de si mesmo, considerando e
realçando a sua essência.
Deus é o ser independente, autônomo, que não precisa de nenhum outro ser para a
sua existência e, por conseguinte, existe a partir de si e por si mesmo. Mas também
esta determinação metafísica abstrata só tem sentido e realidade como uma definição
da essência do entendimento e enuncia apenas que Deus é um ser pensante e
inteligente ou, inversamente, só o ser pensante é divino. Com efeito, só um ser
sensível precisa de outras coisas fora dele para a sua existência (FEUERBACH,
2002, p. 41).
Percebe-se, portanto, que a religião adota os atributos humanos e os transfere para
Deus. Assim o faz para imediatamente negar estes mesmos atributos ao homem como se
pertencessem à esfera divina, diferente e oposta à esfera humana. Ao atribuir o que lhe
pertence a Deus, o homem inicia um processo de autotraição inconsciente, deixando de
assumir sua própria essência, deixando de viver sua própria humanidade para entregar-se à
ilusória experiência da divindade.
Pode-se imaginar que Feuerbach esteja sugerindo um culto ou adoração à
humanidade13 quando apresenta a essência divina como sendo humana, mas sua preocupação
se limita a demonstrar a necessidade do homem voltar a si sem incorrer no erro da projeção
num ser divino, pois esta o aliena da percepção de si mesmo e estabelece a inimizade do
homem consigo mesmo.
O objetivo principal de A essência do cristianismo é demonstrar que a essência da
religião (do cristianismo), a sua essência divina, é a essência do homem, que a
teologia é, na verdade, antropologia, que a suposta unidade entre a essência divina e
a humana é a unidade da essência humana consigo mesma, ou que a suposta
diferença entre a essência divina e humana é apenas a diferença entre indivíduo e
gênero (SOUZA, 1993, p. 33).
13
Conforme nos sugere a análise de Henrique Cláudio de Lima Vaz, no livro Antropologia Filosófica I, São
Paulo: Loyola, 1991, p. 126, quando afirma que o antropocentrismo de Feuerbach é um antropoteísmo.
35
A primazia da humanidade não induz ao culto ou à adoração à humanidade, pois isso
se tornaria uma idolatria e criaria um paradoxo no próprio pensamento feuerbachiano que
questiona o fato de transformarmos o que buscamos e o que imaginamos em deus. “Qualquer
religião, qualquer forma religiosa que coloca no alto e faz de objeto de sua adoração um Deus,
isto é, um ser irreal, diverso da natureza real, abstraído e diverso da essência humana, é um
culto a imagens, é uma idolatria” (FEUERBACH, 1989, p. 159).
No entanto, não se pode deixar de considerar que a atenção voltada ao ser humano
traduz a “crença” numa humanidade nova que concentre toda sua força e “fé” em homens
que, uma vez conscientes de seu papel protagonizador de mudanças dos rumos da história,
realmente se reafirmem como os únicos capazes de administrar os desafios através de busca
de soluções possíveis sem deixar de levar em consideração suas reais limitações.
Está evidenciada a contribuição de Feuerbach para a mudança da sociedade de sua
época e para a nossa quando sugere aos homens tomarem o controle da situação ao invés de
apelarem para o sobrenatural. “Neste contexto Feuerbach dirigirá uma crítica ampla e sem
reservas a determinados modos de comportamento de um cristianismo descomprometido com
as atividades terrenas, tanto de cunho político como científico ou social.” (CASTRO, 2002, p.
13, tradução nossa).14
Assim, o pensamento feuerbachiano instiga o espírito contestador naqueles que não se
conformam com a leitura ou com a condução puramente religiosa da história. Por isso, nos
alerta para o perigo de transformarmos a realidade em nada e de desvalorizarmos a vida
terrena em função de uma vida celeste.
Onde a vida celeste é uma verdade, a vida terrena é uma mentira – onde tudo é
fantasia, a realidade é nada. Para quem acredita numa vida celeste e eterna, esta vida
perde o seu valor. Ou melhor ainda, já perdeu o seu valor: a fé na vida celeste é
precisamente a fé na nulidade e insignificância desta vida (FEUERBACH, 1994, p.
195).
Feuerbach “lutou pela fundação de uma nova ‘religião da ação’, por uma concentração
total no mundo de cá, pela formação de homens que podem e querem encarregar-se de
revolucionar a vida.” (SIEGMUND, 1966, p. 237).
A humanidade realmente não pode privar-se de sua missão frente aos desafios e
obstáculos que surgem no decorrer dos tempos. Uma vez que a religião, dentro do
14
“En este contexto Feuerbach dirigirá una crítica amplia y sin contemplaciones a determinados modos de
comportamiento de un cristianismo descomprometido con las actividades terrenales, tanto de signo político
como científico o social.” (CASTRO, 2002, p. 13).
36
pensamento feuerbachiano, vai de encontro à essência do ser humano, deve ser
conscientemente recolocada no seu devido lugar, se é que de seu lugar algum dia ela saiu.
Na verdade, Feuerbach pretende devolver ao ser humano aquilo que lhe pertence por
natureza e que deste mundo real nunca deveria ter sido teoricamente separada, pois na prática
a religião simplesmente traduz os anseios mais latentes do humano. “Se a essência do homem
é a essência suprema do homem, também, na prática, a lei suprema e primeira tem de ser o
amor do homem pelo homem. Homo homini Deus est – eis o supremo princípio prático.”
(FEUERBACH, 1994, p. 328).
Eis aqui uma questão um tanto complexa, pois quando Feuerbach afirma ser a essência
do homem sua própria essência suprema, acaba por apontar um outro problema ainda maior
que é o desafio de investigar as causas da projeção para o transcendente, sobrenatural. Parece
não ser suficiente apenas recolocar o ser humano no seu lugar, mas considerar a questão do
ser humano como contraditório consigo mesmo e que, por esse motivo, requer uma solução
prática.
Em outras palavras: se o ser humano é o próprio autor da projeção para o sobrenatural,
não deveria então ser eliminado? É possível resolver o problema da alienação, da busca pelo
divino, pelo transcendente, pelo sobrenatural sem extinguir o ser humano?15
Buscar os meios adequados e necessários que favoreçam o encontro do homem
consigo mesmo torna-se o único caminho para a compreensão daquilo que há muito nos
intriga: a busca de soluções e respostas fora de si. Se a questão do transcendente, do
sobrenatural nasce do desencontro do homem consigo mesmo, então devemos procurar
conhecer melhor o humano, o natural, o terreno.
Anular a humanidade, o terreno, o natural é o mesmo que admitir o discurso religioso
que desconsidera a importância e a autonomia do mundo. É alienar ainda mais o que tende à
alienação. É sustentar a ideia de que nada somos, nada podemos, nada faremos de positivo por
nós mesmos ou que sempre incorreremos no erro de simplesmente buscar acertar.
Percebe-se que Feuerbach sugere sim um aniquilamento, mas não do ser humano.
Quando fala de aniquilamento, refere-se à destruição de uma ilusão com a qual todas as
demais desapareceriam.
Uma ilusão com a qual caem, mesmo que não no primeiro instante, todas as ilusões,
todos os preconceitos, todas as limitações – antinaturais – do homem; a ilusão
15
Aqui nos deparamos com uma das críticas feitas por Marx ao pensamento de Feuerbach em Teses sobre
Feuerbach, especificamente a de número quatro.
37
fundamental, o preconceito fundamental, a limitação fundamental do homem é, com
efeito, Deus como sujeito (SERRÃO, 2005, p. 172).
Não se trata, portanto, de furtar-se da exigência de trabalhar o ser humano ou de
considerar o que dele brota como algo totalmente desprezível e que, por conseguinte, exigiria
seu aniquilamento como se não houvesse alternativa.
Feuerbach revela sua preocupação em resgatar a consciência do homem, seu
verdadeiro conteúdo sem subordinar o que é característico do humano a um ser superior
simplesmente ilusório.
Esta ilusão é a razão pela qual a religião é a falsa consciência do homem, e Deus a
objetivação da verdadeira consciência, seu verdadeiro conteúdo, mas negado no
homem. Quanto mais o homem vai recuperando sua consciência, quanto mais o
homem vai-se reapropriando da essência divina, afirmando a identidade, tanto mais
se verá a religião obrigada a afirmar a diferença (SOUZA, 1993, p. 68).
O pensamento feuerbachiano vai desvelando o que fora consagrado como divino,
transcendente, sobrenatural ao mostrar que o homem quando busca a Deus traduz a fé em si
mesmo, “mostra, portanto, que o divino não é divino, que Deus não é Deus, mas é apenas o
ser humano que se ama a si mesmo, se afirma e reconhece a si mesmo, e o faz em grau
superlativo; com efeito, o homem só reconhece um Deus que reconhece o homem.”
(SERRÃO, 2005, p. 172).
Na visão de Cabada Castro, estamos lidando com uma significativa contribuição de
Feuerbach para o pensamento moderno, pois com sua firmeza e radicalidade analítica se
destaca ao assumir sem reservas e de maneira explícita a antropologização da religião.
Dada a radicalidade da antropologização da religião levada a cabo por Feuerbach,
não é nada estranho que tenha sido considerado como o verdadeiro iniciador do
pensamento ateu da modernidade. De toda maneira, seu ateísmo tem umas
características peculiares, às que o próprio Feuerbach não desejou aludir. Trata-se do
sentido antropológico de seu ateísmo e da concepção, por assim dizê-lo,
“grandiosa”, que do homem tem Feuerbach (CASTRO, 2002, p. 17, tradução
16
nossa).
É curioso observar que aqueles que se entregam à experiência religiosa muito se
esforçam para não aceitar a realidade da projeção no transcendente, sobrenatural, divino. No
entanto, paradoxalmente, pouco esforço fazem para aceitar o que é projetado como realidade.
16
“Dada la radicalidad de la antropologización de la religión llevada a cabo por Feuerbach, no es nada extraño
que haja sido considerado como el verdadero iniciador del pensamiento ateo de la modernidad. De todos modos,
su ateísmo tiene unas características peculiares, a lãs que el próprio Feuerbach no há dejado de aludir. Se trata
del sentido antropológico de su ateísmo y de la concepción, por decirlo así, “grandiosa”, que del hombre tiene
Feuerbach.” (CASTRO, 2002, p. 17).
38
É possível, então, pensar num processo consciente (ou inconsciente?) de divinização
do humano e de desumanização do presumível divino. O homem negando a si mesmo ao
buscar fora de si o que sempre esteve consigo. “Aquilo que o não-religioso apenas conserva
na cabeça, o religioso coloca como objeto fora dele e ao mesmo tempo acima dele, aceitando
por isso a relação de subordinação, de sujeição.” (FEUERBACH, 1994, p. 69).
Para que o homem trilhe o caminho do encontro consigo mesmo, é necessário o
mínimo de consciência de sua autonomia e de sua importância na sociedade como um todo,
pois, caso contrário, estaria aqui como resultado de uma determinação externa, sobrenatural
que, paradoxalmente serve-se do que é diferente de si para sua própria satisfação. Ora, como
pode o ser humano entregar-se a esta crença senão deixando de acreditar em si mesmo para –
de maneira contraditória – divinizar a leitura que faz da constatação de suas limitações e
carências projetando-se numa irrealidade que para ele se torna real?
Feuerbach vai mostrar que é justamente a partir da constatação das limitações e dos
desejos do ânimo que se chega à resposta, à essência da fé.
A essência da fé, que se pode confirmar através de todos os seus objetos até ao mais
especial, é a seguinte: o que o homem deseja, existe – ele deseja ser imortal, logo, é
imortal; deseja que exista um ser que é capaz de tudo o que é impossível à Natureza
e à razão, logo, um tal ser existe; deseja que exista um mundo que corresponda aos
desejos do ânimo, um mundo da subjetividade ilimitada, isto é, do sentimento não
perturbado e da felicidade não interrompida; mas apesar de tudo, porque existe um
mundo que é a antítese deste mundo subjetivo, então esse mundo tem de desaparecer
– e desaparecer tão necessariamente quanto permanece necessariamente um Deus, a
essência absoluta da subjetividade (FEUERBACH, 1994, p. 153).
Não se pode negar que a religião empobrece o homem usurpando a sua própria
humanidade, servindo-se de sua grandeza e infinitude ao projetá-las num ser distinto de si.
Está iniciado o processo de autoalienação, pois o homem se coloca como negador de si
mesmo para estranhar-se e familiarizar-se com o que de fato é estranho a si. Trata-se de um
procedimento artificial uma vez que requer a negação da própria essência humana e a
aceitação caótica daquilo que invalida a sensibilidade17, pois onde começa o sentido acaba a
religião. O homem vira as costas para si para buscar o si mesmo num ser conjeturado.
A religião, portanto, leva à reduplicação e à multiplicação, consistindo num processo
de alienação e depauperamento do ser humano. Apresenta-se claramente como
autoestranhamento e autoalienação, não de Deus, mas de cada homem individual.
Na medida em que o homem se torna religioso, aliena-se também de sua
17
Na apresentação da obra Ludwig Feuerbach Filosofia da sensibilidade. Escritos (1839-1846), Adriana
Veríssimo Serrão afirma ser a sensibilidade responsável por abrir “os olhos do pensamento, que lhe pede uma
conversão ao mundo, uma atenção aos seus acontecimentos.” (FEURBACH, 2005, p. 16).
39
humanidade, adornando Deus com tesouros de sua própria interioridade. E pelo fato
de Deus e o homem não serem vistos numa unidade, a religião gera um homem
cindido, empobrecido interiormente (SOUZA, 1993, p.70).
É, no mínimo, curioso constatar que o homem não precisa sair de si para voltar a si,
para encontrar-se consigo mesmo, pois, na verdade, nunca saíra de si quando pensou estar em
contato com algo supostamente diferente e além dele mesmo. “Feuerbach não se cansa de
insistir uma e outra vez, de uma ou de outra forma, nesta identidade básica entre o divino e o
humano, que reduz o primeiro ao segundo” (CASTRO, 2002, p. 6, tradução nossa).18
A religião, no seu acordo com a essência do homem, confirma sobremaneira que
somente o homem é capaz de se colocar como Deus ainda que negando tal façanha, pois ao
projetar-se para o transcendente não o faz com plena consciência da escolha que faz de negarse a si mesmo para, automaticamente, colocar sua projeção num patamar que não existe fora
de si. “O homem começa por lançar a sua essência para fora de si, antes de a encontrar em si.
A sua própria essência começa por ser para ele objeto como uma essência diferente”
(FEUERBACH, 1994, p. 23).
Portanto, há sentido quando se afirma que Deus escuta, compreende, se compadece e
atende a humanidade e não poderia ser diferente, pois este Deus que escuta, compreende, se
compadece e atende é o próprio homem que se volta para sua natureza, sentindo-se limitado e
desafiado pelo mundo. É a manifestação do amor do homem para consigo mesmo, mas que
ele considera amor de Deus. O homem é o coração do homem, por isso é o coração de Deus.
Se o amor se constitue, pois, no núcleo e centro do pensamento a-teológico, mas de
raiz teológica, de Feuerbach, resulta obvio que não se pode falar de amor a Deus,
senão unicamente de amor ao homem. O Deus cristão mesmo não é, por outra parte,
senão o Deus que ama os homens e que – na formulação de Feuerbach – “o homem
é o coração de Deus”. Esta é, pois, a exigência ética feuerbachiana fundamental, que
se deriva da absolutez e divindade do amor: uma ética do amor, que se constitue em
verdadeira religião. Feuerbach considera esta a ideia básica de sua obra A essência
do cristianismo (CASTRO, 2002, p. 11, tradução nossa).19
A profundidade e clareza da análise feuerbachiana vão realizando a maiêutica
necessária no processo de [re]humanização do homem e, ao mesmo tempo, vão nos
18
“Feuerbach no se cansa de insistir una y outra vez, de una o de outra forma, en esta identidad básica entre lo
divino y lo humano, que reduce lo primero a lo segundo.” (CASTRO, 2002, p. 6).
19
“Si el amor se constituye, pues, em núcleo y centro del pensamiento a-teológico, pero de raiz teológica, de
Feuerbach, resulta obvio que no se puede hablar ya de amor a Dios, sino únicamente de amor al hombre. El Dios
cristiano mismo no es, por outra aprte, sino el Dios que ama a los hombres, ya que – emn formulación de
Feuerbach – “el hombre es el corazón de Dios”. Esta es, pues, la exigência ética feuerbachiana fundamental, que
se deriva de la absolutez y divinidad del amor: uma ética del amor, que se constituye em verdadera religión.
Feuerbach considera ésta de hecho la idea básica de su obra La essência del cristianismo.” (CASTRO, 2002, p.
11).
40
mostrando o quanto o homem ainda teme se conhecer, sobretudo quando começa a perceber
que as respostas buscadas ou depositadas no além se encontram nas tantas outras perguntas
que ele condena e sufoca no aquém.
O encontro essencial do homem consigo mesmo não se dará fora da experiência
existencial que só é possível a partir da aceitação de seu ser que é influenciado pela natureza
e, ao mesmo tempo, capaz de tomar consciência de sua infinitude. A religião no seu acordo
com a essência do homem assim o confirma, pois:
Em geral, enquanto idêntica à essência do homem é idêntica à consciência de si do
homem, à consciência que o homem tem de sua essência. Mas a religião é, numa
expressão geral, consciência do infinito; portanto, não é e não pode ser outra coisa
senão a consciência que o homem tem de sua essência, a saber, de uma essência não
finita, limitada, mas infinita. Uma essência realmente finita não tem sequer a mínima
ideia, quanto mais a consciência, de uma essência infinita, pois as limitações da
essência são também as limitações da consciência.(...) Consciência limitada não é
consciência: a consciência é, por essência, de natureza infinita. A consciência do
infinito não é senão a consciência da infinitude da consciência. Ou melhor: só na
consciência do infinito é que o ser consciente tem como objeto a infinitude da
própria essência (FEUERBACH, 1994, p. 10-11).
Percebe-se que o suposto além se encontra muito próximo do ser humano. Aliás,
dentro dele mesmo. O fascínio, o anseio, o apego, a busca pelo além traduzem a infinitude da
consciência humana. E não poderia ser diferente, pois de outra maneira não proporcionaria a
consciência do infinito. “Por consequência, se pensas o infinito, pensas e confirmas a
infinitude da faculdade de pensar; se sentes o infinito, sentes e confirmas a infinitude da
faculdade de sentir.” (FEUERBACH, 1994, p. 18).
Conclui-se, portanto, que levar o homem a se perceber como o grande e único criador
do transcendente trata-se de tarefa honesta, pois outra missão não existe para o ser humano
senão essa, uma vez que explicita e reconhece a necessidade de fazer jus à racionalidade.
Se existe um Deus criador do ser humano, que o presenteia com a razão e lhe permite
o uso correto para chegar até Ele, então na verdade cai em contradição consigo mesmo, pois
fazendo jus à sua essência não pode servir-se de outra natureza para se manifestar.
Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach explana sobre essa contradição
a partir da afirmação corriqueira de que o mundo é inexplicável sem Deus e afirma que o
oposto dessa afirmação é justamente o verdadeiro, ou seja, se – de fato – Deus existe, a
existência do mundo torna-se desnecessária, supérflua, sem explicação.
Ao invés, então, de o mundo ter seu fundamento num Deus, como diziam os antigos
deístas, é antes o fundamento do mundo anulado se existir um Deus. De um Deus
nada se segue, tudo além dele é supérfluo, vão, nulo; como posso então pretender
41
derivar dele o mundo ou explicá-lo por ele? Mas o mesmo se dá com o raciocínio
oposto. Se existe um mundo, e esse mundo é uma verdade, e essa verdade garante
sua existência, então é um Deus apenas um sonho, apenas um ser imaginado pelo
homem, existente em sua imaginação (FEUERBACH, 1989, p.123).
Assim, da mesma maneira, “o ser criado” só pode traduzir aquilo que faz parte de sua
essência. Ou somos o próprio Deus que se percebe ou nos percebemos como criadores de
Deus que sendo assim outra coisa não é senão a manifestação de nossa essência.
42
3 DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ARGUMENTATIVO QUE SUSTENTA
SER A TEOLOGIA UMA ANTROPOLOGIA
Uma das preocupações de Ludwig Feuerbach foi a de evidenciar a força propulsora da
adesão do ser humano à crença em Deus. Para tanto precisava servir-se de um método que
fosse capaz de reconduzir a transcendência à interioridade humana e que analisasse as
representações religiosas visando encontrar as faculdades subjetivas que as desencadeiam.
Feuerbach se serve do método genético-crítico procurando esclarecer o que e o como
da religião e o motivo pelo qual a subjetividade se desliga dos vínculos à realidade para
estabelecer-se no seu mundo interior.
Como será explanado neste capítulo, o argumento feuerbachiano se sustenta a partir do
que se observa no cotidiano da vida do ser humano, ou seja, que há um sentimento de
profunda dependência tomado como única explicação e considerado como único conceito
para designar e explicar o que Feuerbach coloca como fundamento psicológico e subjetivo da
religião.
No primeiro item Feuerbach desenvolve a interpretação do fenômeno religioso a partir
da relação do homem com o que se encontra ao seu redor e argumenta que, desde os
primórdios, o ser humano lidou com elementos externos a ele como seres ou coisas que se
tornaram objetos da religião enquanto foram causa do medo da morte e da alegria de viver, ou
seja, tornaram-se objeto do sentimento de dependência.
O argumento feuerbachiano se desenvolve a partir de exemplos que foram analisados e
considerados como tradução de sentimentos de dependência que justificam a origem da
religião e que também evidenciam que a religião é a característica de um ser que se relaciona
necessariamente com outro ser, ou seja, nenhum Deus, nenhum ser autossuficiente,
independente ou infinito.
Fica, portanto, ressaltada a importância e a necessidade do aprofundamento de dois
pontos ou duplo movimento, conforme análise de Adriana Veríssimo Serrão, presentes no
pensamento feuerbachiano. O primeiro, que vai da transcendência à subjetividade, considera a
atitude religiosa nascida na profundidade da intimidade, revelando o dinamismo dos seus
próprios sentimentos e desejos. E o segundo ponto, ou movimento, trata da relação do homem
com a existência, marcada pelo conflito entre o sofrimento experimentado no decorrer da vida
e o desejo de felicidade que, segundo Feuerbach, se encontra na raiz de todas as religiões.
43
Especificamente no segundo item a religião será estudada como manifestação de uma
antropologia invertida que espelha indiretamente em Deus a tensão entre aquilo que o homem
é e aquilo que ele deseja ser. Buscar-se-á compreender com Feuerbach a interpretação do
divino como espelho ou semelhança, o que permite a comparação entre essência divina e
essência humana e, consequentemente, a passagem do conhecimento de Deus para o
conhecimento do homem, demonstrando, portanto, que Deus é o espelho do homem e o
homem é o espelho de Deus.
O último item do capítulo será trabalhado com a conclusão feuerbachiana que
questiona a contradição existente na negação do homem, afirmando ser tal negação
inadmissível e, por isso, sugerindo a negação de Deus como alternativa para o resgate,
afirmação e valorização do homem, ou seja, colocando a negação de Deus como negação da
negação do homem.
Assim, o ateísmo aparece como caminho para a afirmação da verdadeira essência do
homem e restituição de sua divindade, pois não pode ser mais considerado apenas como
negação, mas como negação da negação que nega o homem.
Tomando a religião como a confissão dos desejos, projetos e aspirações humanas,
Feuerbach vai desenvolvendo sua argumentação mostrando que a divindade do homem é a
finalidade última de toda religião, desembocando, portanto, na antropologia. Assim, procura
desmascarar e desmistificar a Deus e os deuses, auxiliando o homem a reencontrar-se em si
mesmo através da superação de qualquer tipo de dependência, medo, ignorância.
3.1 Desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso
No intuito de melhor compreender o fenômeno religioso, este item terá como linha
condutora a intenção de realçar uma antropologia latente, timidamente considerada ou
ofuscada pela ideias religiosas que conseguem desviar a atenção daqueles que se dão à
experiência religiosa para a ordem do além. Para tal empreitada não se pode dispensar a busca
de conhecimento da natureza sensível das faculdades humanas tão menosprezadas ou
relegadas a segundo plano pela religião.
A fundamentação do aspecto antropológico desenvolvida por Feuerbach devolveu ao
mundo sensível o que até então estava sob o domínio da religião, ou seja, o fundamento
44
humano do divino, contribuindo assim para transformar a questão de Deus em questão
humana.
À medida que a análise da religião vai sendo desenvolvida, automaticamente se
processa uma transcrição das ideias teológicas em verdades antropológicas. Assim, o discurso
sobre o divino, sobre o além, sobre o eterno se transforma na linguagem da natureza, do real,
do humano, do aquém, do tempo, da terra.
A partir do que se observa como resultado da crença no divino, das mais variadas
experiências religiosas e da alienação do homem que se processou pela influência do discurso
teológico, a análise feuerbachiana da religião afirma que Deus é um momento da consciência
humana, o resultado de uma projeção subjetiva que traz como consequência negativa a
perversão do sujeito cognitivo, quando “o homem cria uma imagem de Deus, isto é,
transforma a essência abstrata da razão, a essência da faculdade de pensar num ser da
fantasia.” (FEUERBACH, 1994, p. 86).
O desenvolvimento da análise e crítica feuerbachiana da religião se processa à medida
que intenta demonstrar que o segredo da teologia é a antropologia, ao tomar Deus como uma
abstração fantasmagórica que se encontra fora da realidade sensorial20 humana, considerando
a imanência humana e a consciência, intencional e projetiva, como a origem da religião.
Percebe-se que o pensamento de Feuerbach sugere uma revisão ou uma reproposta do sentido
do argumento ontológico.
A ideia de Deus no homem é somente isso, ideia sem conteúdo real algum. Não se
trata de que a essência representada por Deus seja uma construção humana, isso já
era afirmado pela tradição anterior desde a teologia negativa, mas que, ao contrário,
o que não tem realidade é a existência de Deus, enquanto o conceito da essência de
Deus é válido: expressa os atributos da essência humana, as qualidades e
determinações da espécie. Feuerbach mantém a infinitude potencial do sujeito
humano a partir do narcisismo idealizado da espécie. As qualidades que o indivíduo
tem de forma finita e limitada acontecem em Deus de maneira infinita, e estes
predicados têm como sujeito a humanidade (DIAZ, 2003, p. 154).
Desde o início da obra A essência do cristianismo, Feuerbach busca colher a essência
do fenômeno religioso, procurando a sua natureza comum, ou seja, aquilo que lhe é específico
e que se encontra por detrás de suas diferentes manifestações no percurso da história. “A
busca de uma essência do fenômeno religioso mostra, como diversamente da perspectiva
racionalizante, se trata de uma descida do filósofo ao fundo do homem religioso para
20
Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma que: “a religião, assim como a poesia, concebe
como real, sensorial aquilo que só existe na imaginação, transforma desejos, pensamentos, estados de espírito em
seres reais diversos do homem.” (FEUERBACH, 1989, p. 210).
45
descobrir e interpretar a fonte dessa força que se encontra nele e dele emana.” (SERRÃO,
1999, p. 63).
No decorrer da obra, Feuerbach vai confirmando que o traço característico da religião
reside na criação, operada pelo homem, de uma ordem sobrenatural, diferente da realidade
que é oferecida pelos sentidos e confirmada pela ciência. Esse homem religioso desmerece a
realidade e elege como superior, em dignidade e valor, aquele fantástico mundo sobrenatural
e, paradoxalmente, se coloca como inferior diante de tal mundo, passando a acreditar na
nulidade de suas potencialidades.
O homem religioso volta a desmentir a nulidade da atividade humana quando
converte as suas intenções e ações num objeto de Deus, quando faz do homem o fim
de Deus – pois o que no espírito é objeto, é fim no agir – e da atividade divina um
meio da salvação humana. Deus atua sobre o homem, é ativo para que o homem se
torne bom e feliz. Assim, o homem é, aparentemente, profundamente rebaixado,
mas, na verdade, sumamente elevado. O homem visa-se a si mesmo em Deus e
através de Deus (FEUERBACH, 1994, p. 36-37).
Desenvolvendo sua argumentação contra as ideias religiosas, Feuerbach procura
mostrar que ao procurar a Deus o homem procura a si mesmo, pois visando Deus está visando
sua salvação. Se Deus visa somente a salvação moral e eterna do homem logo confirma que o
homem só se visa a si mesmo. Essa constatação desencadeia uma busca pela atitude
psicológica específica que se encontra na origem da experiência religiosa.
Uma análise dessa experiência é de vital importância para trazer à luz uma
“antropologia plena, reveladora de segredos que não vêm de outro mundo, que não são
mistérios estrangeiros (ausländische), mas “indígenas” (einheimische) e se encontram selados
em faculdades e traços da natureza humana.” (SERRÃO, 1999, p. 73).
No intuito de esclarecer o que e o como da religião para melhor estudá-la e
compreendê-la, Feuerbach serve-se do método genético, procurando reconduzir a
transcendência à interioridade.
É interessante observar que Feuerbach desenvolve seu pensamento aliando descrição e
análise genética, juntamente com a compreensão do processo que alimenta a formação da
ideia de transcendência e como se dá a recondução desse processo à sua origem, denominando
esta perspectiva metodológica de “genético-crítica”.
O método genético reconduziu a transcendência à interioridade desiderativa.
Seguindo o princípio da correspondência entre cada uma das diversas faculdades e a
natureza própria de seus objetos, partiu da análise das representações religiosas até
encontrar as faculdades subjetivas que as originam. Esta sua vertente subjetiva
permite entender como, para além da adesão a um qualquer culto, conteúdo
dogmático ou manifestação histórico-cultural, a religião seja, antes do mais,
46
religiosidade e tenha por base uma atitude (Verhalten) psicológica específica
(SERRÃO, 1999, p. 68).
Procurando melhor conhecer e compreender essa atitude psicológica específica,
tomada como motivação primeira da experiência religiosa, a análise feuerbachiana da religião
vai à procura do que pode ser considerado “a gênese da gênese da religião” (SERRÃO, 1999,
p. 69). Segundo Feuerbach, tal origem se encontra no sofrimento, traduzido e acentuado pelos
termos infelicidade e carência, indigência e miséria.
Feuerbach, através da análise genética, evidencia a força do emocional, do irracional
na origem e sustentação da crença religiosa. É o emocional que leva o homem a colocar como
fim da religião a sua felicidade, a sua salvação, uma vez que deixa de acreditar na força e na
capacidade da razão.
Não se pode negar que o relacionamento do ser humano com a vida traduz profunda
infelicidade, tornando-o cada vez mais subjetivo. Essa atitude revela o quanto tem se fechado
em si para fugir de todos e de tudo, negando sua própria natureza enquanto ser de relação com
o real para investir numa contínua produção do divino, irreal. Assim, num processo de
autocompensação imaginária e de ininterrupta produção do divino, o homem contribui cada
vez mais para o seu empobrecimento e alienação e para o engrandecimento de Deus, do qual
se torna dependente.
Está evidenciado no pensamento feuerbachiano que o sentimento de dependência21 é o
fator subjetivo para esclarecer a religião, sendo o fator objetivo a natureza. Feuerbach afirma
que tal sentimento é duradouro, já experimentado pelos primeiros povos e considerado como
explicação para a origem das religiões.
A projeção sobre as forças e elementos naturais de capacidades e propriedades
pessoais é a faceta correlativa da situação de dependência vivida pelos povos
primitivos; sem a consciência da distinção do homem relativamente às forças e
elementos naturais, e também sem o sentimento da dependência perante eles,
nenhum culto do mundo natural teria surgido (SERRÃO, 1999, p. 264).
Para Feuerbach, “um ser ou uma coisa só é objeto da religião enquanto for um objeto,
uma causa do medo da morte e da alegria de viver, portanto um objeto do sentimento de
dependência.” (FEUERBACH, 1989, p. 35). Assim, onde e quando tudo se processa na mais
perfeita ordem e harmonia a atenção do homem não é exercitada, nem cativada.
21
Feuerbach aceita com Schleiermacher que a origem da transcendência está fundada no sentimento de
dependência e contrapõe-se a este sentimento teológico, tomado como fundamento do sentimento religioso, a
dependência individual e concreta.
47
Mas, a partir dos acontecimentos que abalam a harmonia, a paz, o maravilhoso, a
felicidade do ser humano, aí sua atenção é ativada e daí se fortalece aquele sentimento de
dependência não só do que fora ameaçado, mas de uma força, de uma divindade, de um ser
sobrenatural, que possa novamente tudo organizar e dar sentido. Deus, portanto, é tomado
como aquilo de que depende a existência do homem.
O sentimento de dependência é o único nome e conceito universalmente certo para
designação e explicação do fundamento psicológico e subjetivo da religião. Na
realidade, entretanto, não existe nenhum sentimento de dependência como tal, mas
sempre sentimentos determinados e especiais, como por exemplo, (para tomar
exemplos à religião natural) o sentimento da fome, do mal-estar, o medo da morte, a
tristeza em tempo escuro, a alegria no bom tempo, a dor em consequência do esforço
inútil e de esperanças fracassadas diante de acontecimentos naturais desastrosos,
casos em que o homem se sente dependente (FEUERBACH, 1989, p. 35).
A partir do que Feuerbach analisa como sentimento de dependência se observa um
esquema interpretativo que trabalha a questão do intercâmbio entre receptividade e atividade,
movimentos contínuos em todos os níveis da vida do ser humano.
A análise de Feuerbach, quando coloca a origem da religião baseada nesse sentimento
de dependência, sustenta ser a religião apenas a característica ou a qualidade de um ser que se
relaciona necessariamente com um outro ser real, deste mundo, finito. “Sim!, o homem não é
somente um ser espacial em geral, mas também um ser essencialmente terreno, inseparável da
terra.” (FEUERBACH, 1989, p. 22).
Considerando a religião como o lugar da expressão do emocional, passamos a
entender melhor a preocupação de Feuerbach em criticar o cristianismo moderno e sugerir sua
redução à antropologia, voltando sua atenção ao cristianismo clássico ou primitivo, o que
pode parecer contraditório num primeiro momento.
Sobre esta questão – a atenção de Feuerbach ao cristianismo clássico ou primitivo –
nos ajudará a compreender com maior clareza o comentário de Draiton Gonzaga de Souza, na
obra O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach.
Feuerbach quer fazer uma filosofia da religião distinta das demais, pelo fato de
tomar o cristianismo naquilo que originariamente é religião; e não como um
conjunto de proposições dogmáticas ou história bíblica ou especulação filosóficoteológica. Propõe-lhe uma volta ao estado religioso, já que, então, ainda não estava
misturado com especulação. A consideração do cristianismo como religião mostra
que seu sujeito é o homem, que a religião é resposta a necessidades humanas, uma
vez que é o lugar da expressão dos sentimentos e do coração humano. Neste sentido,
A essência do cristianismo será uma investigação sobre a religião em geral, ainda
que tratando principalmente do cristianismo, pois é neste que mais claramente se
mostra a essência da religião. Por religião se entenderá o comportamento humano
que é a resposta a determinadas necessidades; portanto, para compreender a religião,
é necessário seguir o seu processo genético até chegar ao sujeito humano: o
48
sentimento, o coração, a vontade. Não se trata de restaurar o verdadeiro cristianismo,
o dos tempos clássicos, mas de explicá-lo por sua determinação antropológica
(SOUZA, 1993, p. 36).
Feuerbach se mantém convicto da necessidade de trazer o homem de volta para si,
para este único mundo, não permitindo que a crença religiosa o aliene de sua essência e o
impeça de progredir na busca da compreensão de sua própria natureza. A alienação religiosa
traduz-se pela conversão que realiza do que é natural em sobrenatural, do que é conhecido em
desconhecido. Assim afirma Feuerbach em A essência do cristianismo:
A característica da religião é a intuição imediata, involuntária e inconsciente da
essência humana como uma essência diferente. Esta essência, intuída objetivamente,
mas transformada em objeto da reflexão, da teologia, torna-se numa mina
inesgotável de mentiras, ilusões, fantasmagorias, contradições e sofismas
(FEUERBACH, 1994 p. 264).
Diante das limitações que desafiam o ser humano e das tantas necessidades que
nascem de seu relacionamento com o mundo, o caminho da crença no além não é o mais
viável, pois o aprisiona no mundo da fantasia22 sustentando a ilusão de que a felicidade só
será alcançada fora deste mundo. “A religião, que nasce de uma insatisfação, de um conflito,
abandona a terra natal, vai para longe, mas apenas para sentir mais vivamente nesse
afastamento a felicidade da terra natal.” (FEUERBACH, 1994, p. 218).
Desenvolver essa percepção conduzirá o homem ao reencontro consigo mesmo, com
sua essência e, dessa forma, o libertará da inverdade religiosa. A partir do raciocínio
feuerbachiano, a religião passa a ser percebida de outra maneira, ou seja, como “Atitude do
homem para com sua própria essência – nisto reside a sua verdade – mas com a sua essência,
não como a sua, mas como uma outra, especial, distinta e mesmo oposta a ele – nisto reside a
inverdade, as limitações, a má essência da religião.” (FEUERBACH, 1994, p. 225).
A libertação do homem, portanto, requer transformar a questão religiosa “numa
questão do homem, traduzir a teologia para a antropologia, buscar a felicidade do céu na
terra.” (ZILLES, 1991, p. 108).
Em A essência do cristianismo Feuerbach insiste em mostrar a necessidade de
superação da oposição sustentada pelos que elegeram o divino como totalmente diferente e
oposto ao humano e que a busca da compreensão do humano torna-se a chave para o
desvelamento do sobrenatural e para a dissolução de todas as doutrinas e dogmas de fé que
sustentam fantasias.
22
Na perspectiva feuerbachiana, “a fantasia é ela própria conduzida por uma outra instância mais funda e apenas
obedece a esse poder diferente e mais forte, o poder do desejo e do coração.” (SERRÃO, 1999, p. 65).
49
Para uma compreensão mais clara da tese feuerbachiana que afirma ser a teologia uma
antropologia, é importante recorrer à analise que desenvolve acerca dos atributos
fundamentais – religiosos ou dogmáticos – do Deus cristão, pois através dela fica evidenciado
uma pluralidade de dimensões da essência humana.
A partir de uma sucinta recapitulação de A essência do cristianismo, desenvolvida por
Serrão, fica evidenciada uma gama de dimensões da essência humana que Feuerbach analisa
e, a partir dessa análise, o que cada uma delas significa e traduz enquanto parte integrante
desse complexo maior que é o ser humano.
A encarnação desvenda o segredo da pessoalidade e do amor; a paixão, a presença
do corpo e da sensibilidade; a trindade encerra o poder da relação interpessoal e a
fecundidade do princípio feminino; o verbo divino afirma a força da linguagem e da
palavra, assim como a oração simboliza o diálogo. O princípio cosmogônico
significa a alteridade e a diferença; a criação, o valor da matéria; a providência, o
valor absoluto do homem; a ressurreição revela o desejo de não morrer e o amor à
vida; o céu, a qualidade e a determinidade desta vida (SERRÃO, 1999, p. 73-74).
Como já mencionado acima, a preocupação de Feuerbach não se restringe à discussão
sobre a legitimidade ou a razão de ser da religião. O que realmente lhe interessa – na visão de
Adriana Veríssimo Serrão – é captar a significação da religião, “explicando e descrevendo o
processo e as motivações do seu surgimento” (FEUERBACH, 1994, p. XV).
Sendo o ser humano um ser de relação e em relação, logo participa de experiências de
encontro com a realidade. Podemos compreender melhor como se processa tais experiências
através da relação estabelecida entre as funções vitais consideradas mais básicas como
alimentação e respiração com os elementos físicos tais como água, alimentos, ar. Esta mesma
relação das funções vitais com os elementos físicos é extensível às sensações e ao
pensamento.
Ver é comer com os olhos, ouvir comer com os ouvidos; a linguagem e pensamento
saciam, como os alimentos, a fome e a sede da alma. Transitando
imperceptivelmente da vida física à espiritual, e associando-os, a ponto de não se
distinguirem, o sentido literal e o sentido metafórico, através da estrutura alimentar
Feuerbach generaliza a todos os níveis da existência a idêntica necessidade da
alteridade, racionalizando a constitutiva dependência humana de outro (SERRÃO,
1999, p. 197-198).
É importante observar que, ao admitir a origem da transcendência fundada no
sentimento de dependência, Feuerbach acaba colocando a dependência individual e concreta
contra o sentimento teológico, entendido como fundamento do sentimento religioso, o qual
considera nebuloso, indeterminado e abstrato. Para Serrão,
50
O sentimento religioso abarca tanto a essência subjetiva, geradora de toda
religiosidade, como a essência objetiva, as propriedades constitutivas do objeto. A
religião é de natureza subjetiva, é afeto e emoção, e objetiva, na medida em que cada
crente cria e configura pessoalmente as qualidades do seu Deus (SERRÃO, 1999, p.
70).
O pensamento feuerbachiano torna-se um convite à reflexão sobre como se processa a
articulação entre o mundo do homem e o mundo natural e como, a partir dessa articulação,
produz a religião. Essa reflexão contribui para uma melhor compreensão da essência humana
e a ela confere nova consolidação, configurando uma complementação à análise das estruturas
transcendentais.
Feuerbach tenta nova hermenêutica da religião. Pergunta: por que o homem produz a
religião? Que é que ela significa? (...) Diz que os símbolos religiosos não são vazios,
nem se referem a Deus, mas ao próprio homem. Religião é antropologia. Tudo o que
o homem fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que
confissão de seus desejos, projetos e aspirações. Por isso precisamos amar não a
Deus, mas ao homem: crer não em Deus, mas no homem (ZILLES, 1991, p. 112).
Nas palavras de Urbano Zilles, é possível perceber que o pensamento de Feuerbach
tornou-se uma grande contribuição para a desmitificação de Deus e dos deuses, auxiliando a
homem a reencontrar-se a si e em si mesmo. É através desse reencontro consigo que se dará a
superação da dependência, do temor e da ignorância.
Na obra A humanidade da razão: Ludwig Feuerbach e o projeto de uma antropologia
integral, Adriana Veríssimo Serrão chama a atenção para o que podemos apontar como um
caminho que possibilite o reencontro do homem consigo mesmo ao afirmar que:
Retirar esta origem emocional, e não intelectual, que faz da transcendência uma
realização irreal de desejos reais, seria extrair ao sentimento religioso o seu cerne:
aquela dimensão de excessividade que o leva a ultrapassar as fronteiras da realidade
e do conhecimento (SERRÃO, 1999, p. 70).
Fazer com que o ser humano se conscientize da necessidade de conviver com a sua
essência é proporcionar o encontro do homem consigo mesmo, especialmente quando se
entrega à ilusória experiência com o divino. Dessa maneira, o caráter humano da religião
propicia a verificabilidade da experiência religiosa.
Uma vez analisando e interpretando a experiência religiosa e o que ela traz como
consequência para a vida do ser humano e da sociedade, Feuerbach considera a destruição da
religião “como um momento de transformação histórica, como o passo decisivo para a
emancipação da Humanidade.” (SIEGMUND, 1966, p. 238).
Nesse sentido não há como negar a repercussão do pensamento feuerbachiano e sua
influência sobre outros pensadores de sua e de nossa época.
51
A interpretação da religião exposta por Feuerbach, principalmente na obra A
essência do cristianismo, se converte no ponto crucial de toda a crítica moderna da
religião, tendo essa obra suscitado um enorme eco entre os intelectuais europeus. A
história da repercussão pode seguramente ser rastreada, através do marxismo e do
existencialismo (HAHN, 2003, p. 76).
A leitura antropológica que Feuerbach faz da religião reforça a descrença num Deus
absoluto e pessoal do universo, convidando o ser humano a colocar-se contra o Deus
onipotente, verdadeiro e onipresente que por si mesmo fala, castiga, interfere à sua maneira na
vida dos homens e na natureza. Sugere, portanto, que: “o lugar da antiga ilusão deve ser
ocupado, em sobriedade realística, pelo homem como verdadeiro valor supremo, atraindo para
si a significação do religioso.” (SIEGMUND, 1996, p. 241).
É possível constatar que o pensamento feuerbachiano repercute insistindo no projeto
que deve ser assumido por cada homem em prol de sua liberdade, autonomia e identidade. Tal
projeto requer ousadia para a luta constante que o ser humano deve empreender contra a
ilusão que se desencadeia a partir do momento que passa a transferir para o presumível
transcendente aquilo que se encontra na esfera do real.
Assim, a supressão de toda e qualquer ideia religiosa, que se apresenta neste mundo
real falando de um mundo irreal, se desponta como o caminho a ser trilhado pelo ser humano.
Analisar o fenômeno religioso a partir da ótica feuerbachiana desencadeia um
processo irreversível de combate a todo discurso que tente tirar o homem daqui da terra para
levá-lo para o céu da ilusão, da fantasia. É preciso assumir como tarefa o resgate daqueles que
para essa irrealidade foram levados. É preciso transformar tal céu em terra para que o homem
não volte a ficar sem “chão”, para que o homem volte a ter onde pisar. Para que o homem
volte a sentir a realidade e a partir dessa experiência possa redescobrir a humanidade.
3.2 Teoria da reversibilidade (Deus é o espelho do homem, o homem o espelho de Deus)
A ideia central deste item se alicerça na proposta filosófica de Feuerbach que sugere a
re-inversão da realidade religiosa que transforma o homem num ser inautêntico, separado de
sua essência e distanciado de seu potencial de verdade que se encontra contido nos seus
desejos e aspirações.
Uma melhor compreensão da proposta de Feuerbach será possível a partir da análise
de sua tese antropológica sobre a religião, desenvolvida na obra A Essência do Cristianismo,
52
quando inverte o trecho bíblico de Gênesis que afirma ter sido o homem criado à imagem de
Deus. Contrapõe Feuerbach: “primeiro, o homem criou Deus à sua imagem, e só depois este
Deus criou por sua vez o homem à sua imagem.” (FEUERBACH, 1994, p. 141).
Evidentemente não se trata apenas de inversão de um trecho bíblico, mas de um processo de
recondução do homem ao seu lugar de origem como tenta demonstrar este item.
A teoria da reversibilidade evidencia a intenção do pensamento feuerbachiano de
resgatar o humano sufocado pelas ideias religiosas e através da inversão desse trecho bíblico
questiona o que é considerado tradução do teísmo cristão ao colocar Deus como reflexo do ser
humano, o espelho do homem.
Deus é um momento da consciência humana, resultado de uma projeção subjetiva
que, além disso, leva consigo a perversão do sujeito cognitivo. Não é o homem que é
imagem e semelhança de Deus, afirmação fundamental do teísmo cristão, mas Deus
é a imagem do homem que se projeta em uma entelequia. Trata-se da
hispostatização de uma projeção, à qual concede-se existência real quando seu único
conteúdo é o do pensamento (DIAZ, 2003, p. 154).
Feuerbach, mais uma vez, usa de uma metodologia que se contrapõe à teologia, pois,
através do procedimento denominado inversão, procura resgatar os predicados que traduzem a
essência humana e que foram depositados em Deus para devolvê-los ao homem.
Enquanto na projeção acontece um mecanismo vivencial e inconsciente no qual o
sujeito adere totalmente aos seus conteúdos sem os conseguir distinguir de si e
reconhecer como criações suas, a inversão (Umkehrung) é um procedimento
metodológico conduzido pelo filósofo como explicitação e esclarecimento, o ato
interpretativo que permite separar o sujeito dos predicados, conservar os predicados
e restituí-los ao seu verdadeiro sujeito criador. Em cada ato de tradução do divino,
enriquece-se o conhecimento humano, que assim se vê desdobrado em inúmeras
qualidades (SERRÃO, 1999, p. 73).
Assim procedendo, Feuerbach muda de lugar o sujeito, colocando-o no lugar do
predicado e o predicado no lugar do sujeito, enfatizando que o homem se encontra num lugar
de destaque, ou seja, acima dele só se encontra ele mesmo e nada mais. O homem é, portanto,
colocado como fim e verdadeiro fundamento da criação.
Se o homem é o fim da criação, é também o seu verdadeiro fundamento, porque o
fim é o princípio da atividade. A diferença entre o homem como fim da criação e o
homem como seu fundamento é apenas a de que o fundamento é o homem oculto,
interior, a essência do homem, mas o fim é o homem que se revela, o homem
empírico individual, o homem que se sabe certamente como o fim da criação mas
não como o seu fundamento, porque distingue de si o fundamento, a essência, como
uma essência pessoal diferente (FEUERBACH, 1994, p.125-126).
53
Essa análise evidencia uma nova compreensão que Feuerbach provoca acerca da
religião e do homem. Não se trata de simples questionamento às ideias teológicas, mas de
uma visão acerca do homem e do mundo que sugere total independência e autonomia dessas
duas realidades em relação ao que é sustentado pela religião.
Ao apoiar-se sobre a fecundidade do realismo e do sensualismo, a Antropologia
afirma desde logo o homem como um ser sensível, concretamente existente e dotado
de intrínseca realidade. A unidade e indivisibilidade do mundo certificam a unidade
e indivisibilidade do ser humano; a realidade da existência garante-o como um
existente e não como uma ideia (SERRÃO, 1999, p. 132).
Fazer com que o homem se perceba como parte integrante do mundo é justamente
devolver a ele aquela verdade ofuscada pelas inverdades da religião, ou seja, é auxiliá-lo na
compreensão de que é um ser inserido no mundo e na natureza. Sendo toda a existência real e
por isso existência no mundo e sendo o mundo natural, o homem por ser, pertencer e
participar deste mundo não pode ser, pertencer ou participar de um mundo diferente deste.
Por isso Feuerbach propõe total rompimento com o Deus transcendente no intuito de
levar o homem a fazer uma nova experiência de abertura à totalidade do gênero humano ao
invés de continuar projetando seus atributos em Deus.
Feuerbach define a religião como a consciência própria do homem. Tanto a
antropologia como a fisiologia (estudo da natureza) apresentam-se, assim, como
herança e crítica da teologia em sua explicação do homem e do mundo. A filosofia é,
portanto, na visão de Feuerbach, a dissolução da teologia na antropologia. De um
lado essa dissolução tem como resultado uma antropologia materialista: o homem
como “ser sensível”, define-se inteiramente por suas carências (Bedurfnisse) e,
consequentemente, por sua relação com o mundo objetivo; essa relação permite
caracterizar o homem como um “ser genérico” (Gattungswesen), ou seja, aberto aos
outros homens ou à totalidade do gênero humano que, na verdade, é o sujeito real
dos atributos que o homem individual projeta em Deus. O dissipar-se na ilusão do
Deus transcendente é a descoberta da relação essencial Eu-Tu e, nela, do caráter
radical e fundante da experiência do Outro, primeiro dogma da “religião do homem”
que Feuerbach, a partir da Essência do cristianismo, propunha como meta para uma
nova idade (VAZ, 1991, p. 126-127).
Após reduzir a teologia à antropologia, como visto anteriormente, Feuerbach questiona
a religião enquanto cúmplice de certa organização social que atrofia o humano, esconde o real
e se opõe a qualquer tipo de novidade. Além disso, impede que o homem melhor se conheça
uma vez que o mantém alienado através das ideias religiosas.
Minha intenção era mostrar que os poderes diante dos quais o homem se curva e os
quais teme na religião, diante dos quais ele não se intimida nem mesmo de praticar
sangrentos sacrifícios humanos a fim de aplacá-los são apenas criações de sua
própria afetividade servil e medrosa, assim como de sua razão ignorante e inculta;
mostrar que o ente diante do qual o homem se coloca na religião e na teologia, como
54
um ser distinto dele próprio, é sua própria essência, para que o homem, uma vez que
é sempre dominado inconscientemente só por sua própria essência, faça no futuro,
conscientemente, de sua própria essência, isto é, da essência humana, a lei e o
fundamento, a meta e o critério de sua moral e de sua política. E assim será, assim
deverá acontecer. Se até agora foi a religião desconhecida, a nebulosidade da
religião o princípio supremo da política e da moral, irá de agora em diante, ou um
dia ao menos, a religião conhecida no homem, determinar o destino dele
(FEUERBACH, 1989, p. 28).
A proposta de Feuerbach certamente pode ser considerada como projeto de
emancipação humana, pois procura devolver ao homem tudo aquilo que até então depositara
em Deus, sobretudo suas potencialidades. Procura despertar no homem a consciência de que
Deus simplesmente expressa a essência do homem, é o homem espelhado, refletido e não
outra coisa.
Algumas perguntas, no entanto, emergem desta análise: podemos afirmar, a partir do
pensamento feuerbachiano, que Deus é determinado pelo sentido que o ser humano lhe
confere? Como posso saber se Deus em si é diferente de mim e se o que ele é para ele é
diferente do que é para mim? A tais perguntas Feuerbach responde da seguinte maneira:
Não posso de modo algum saber se Deus em si ou para si é algo de diferente do que
é para mim; tal como é para mim, assim é tudo para mim. Porque é justamente
nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para mim, o seu ser-em-simesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá ser sempre para
mim. O homem religioso está inteiramente satisfeito com o que Deus é em relação a
ele – como homem, não conhece outra relação – pois Deus é para ele o que pode ser
para o homem em geral. Com aquela distinção, o homem eleva-se acima de si
mesmo, isto é, da sua essência, da sua medida absoluta; mas esta elevação não passa
de uma ilusão. Pois só posso estabelecer a diferença entre o objeto como é em si e o
objeto como é para mim, quando um objeto me puder aparecer de um modo
realmente diferente daquele no qual me aparece, mas não quando ele me aparece tal
como me aparece e como tem de me aparecer segundo a minha medida absoluta
(FEUERBACH, 1994, p. 27).
O pensamento feuerbachiano analisa a razão de se atribuir a um deus abstrato e
ilusório aquilo que se encontra no humano. Pergunta sobre a atitude do homem que se entrega
à experiência religiosa de não querer olhar para si mesmo diretamente, mas através de sua
criação. Assim, Feuerbach propõe um resgate da realidade alienada, a saber, a realidade
humana, no intuito de trazer de volta à realidade o homem que se perdera na religião.
Feuerbach propõe-se destruir a ilusão religiosa, reduzi-la inteiramente a realidade
humana. Reduzir é demolir, mas é também recuperar uma realidade alienada, a
realidade humana. Para recuperar o homem, perdido na religião, é preciso começar
por desmitificar a própria religião, mostrando que tudo quanto se afirma de Deus, é
realmente dito do homem. Por isso a crítica da religião não é um fim em si mesmo.
É apenas o desvio necessário para que o homem possa aceder ao conhecimento de si
mesmo. Assim se explica o título primitivo – Conhece-te a ti mesmo – que
Feuerbach pensou dar a esta obra A Essência do Cristianismo, de resto, mais
55
consentâneo com o programa que se propusera: chegar ao conhecimento do homem
através da crítica religiosa (BARATA-MOURA; MARQUES, 1993, p. 38).
Sendo o ser humano aquele que deposita em Deus suas qualidades, seus predicados,
sua essência, é por isso considerado o criador de Deus. Daí o uso do termo espelho, ou seja,
Deus é a imagem do homem, seu reflexo. Assim, através da teoria da reversibilidade, ao invés
de recorrer às ideias religiosas que afirmam falar de Deus, o ser humano é convidado a
investigar e a conhecer o seu próprio interior, que se revela como o autêntico e único
conteúdo divino. Conteúdo que ainda não é reconhecido como tradução das qualidades
humanas.
A interpretação do divino como “espelho” (Spiegel), “espelhamento” (Spiegelung)
ou semelhança – criação de Deus à imagem do homem – garante o paralelismo entre
essência divina e essência humana e permite a correlativa passagem do
conhecimento de Deus para o conhecimento do homem, segundo a conversão dos
predicados divinos em predicados humanos. O processo hermenêutico de tradução
ou inversão do sujeito divino em sujeito humano é apenas o correlato do processo
real da projeção. Enquanto na projeção acontece um mecanismo vivencial e
inconsciente no qual o sujeito adere totalmente aos seus conteúdos sem os conseguir
distinguir de si e reconhecer como criações suas, a inversão (Umkehrung) é um
procedimento metodológico conduzido pelo filósofo como explicitação e
esclarecimento, o ato interpretativo que permite separar o sujeito dos predicados,
conservar os predicados e restituí-los ao seu verdadeiro sujeito criador. Em cada ato
de tradução do divino, enriquece-se o conhecimento do humano que assim se vê
desdobrado em inúmeras qualidades (SERRÃO, 1999, p. 72-73).
O processo da inversão utilizado por Feuerbach vem justamente realçar a necessidade
de se diluir a teologia em antropologia uma vez que Deus é uma abstração fantasmagórica.
Tal procedimento vem trabalhar a origem da religião, ou seja, a imanência humana e a
consciência. Para que o resultado desse empreendimento seja positivo é preciso que o ser
humano passe a enxergar o que a religião não permite ver, ou seja, que sua proposta
desencadeia e sustenta uma visão invertida da realidade.
O pensamento feuerbachiano aponta a ilusão que sustenta a oposição entre indivíduo e
divindade como a oposição existente entre indivíduo humano e a essência humana
objetivada23. Percebe-se, portanto, que o Deus imaginado pelo homem não pode ser o Deus
verdadeiro em si mesmo, pois é fruto da imaginação e, sendo fruto da imaginação, traduz o
que o homem deseja que seja de acordo com suas necessidades, de acordo com seus desejos.
23
No livro Filosofia da religião, no capítulo intitulado: Feuerbach: sua crítica da religião e seu ateísmo, Urbano
Zilles comenta: “O cristianismo é a velha religião que deve morrer para nascer a nova religião do humanismo
[...]. Feuerbach destrona Deus e diviniza o homem. Segundo ele, os amigos de Deus devem tornar-se amigos do
homem neste mundo. Deus é apenas a personificação da espécie humana: o homem vê sua essência fora de si,
objetivando-a, ou seja, Deus é a manifestação do interior do homem [...]. Para Feuerbach, negar o sujeito Deus
não é eliminar os predicados que dele se afirmam. Esses conservam sua dignidade sem o sujeito Deus, pois
devem ser aplicados ao próprio homem.” (ZILLES, 1991, p. 108-109).
56
A crença do homem em Deus, entenda-se, em Deus enquanto não expressa a
essência da natureza, é portanto, como já afirmei em A essência do cristianismo,
apenas a crença do homem em sua própria essência. Um Deus é apenas um ser que
realiza os desejos do homem, mas como posso crer num ser que realiza meus
desejos, se eu não acreditar antes ou ao mesmo tempo na sacralidade, na
essencialidade, na autenticidade e na validade incondicional de meus desejos? Mas
como posso eu acreditar na necessidade da realização de meus desejos, que é o
fundamento da necessidade de um realizador de vontades, de um Deus, sem
acreditar em mim, na verdade e na sacralidade de minha essência? Aquilo que eu
desejo é meu coração, minha essência. Como posso distinguir minha essência de
meus desejos? Portanto é a crença em Deus dependente só da crença do homem na
alteza sobrenatural de sua essência. Ou, na essência divina objetiva ele somente sua
própria essência, na onisciência divina realiza ele apenas seu desejo de saber tudo ou
objetiva apenas a capacidade do espírito humano de não ficar restrito a este ou
aquele objeto em seu conhecimento, mas de compreender tudo; na onipresença
divina realiza ele apenas o desejo de não ficar preso em algum lugar ou objetiva
apenas a capacidade que tem o espírito humano de estar em toda parte; na eternidade
divina realiza ele apenas o desejo de não ficar preso a nenhum tempo, de não acabar,
ou objetiva apenas a infinitude e (pelo menos, se pensa coerentemente) o não-terinício (Anfangslosigkeit) da essência humana, da alma humana, porque se a alma
humana não pode morrer, acabar, não pode também surgir, começar, como muitos
acreditam muito coerentemente; na onipotência divina realiza ele apenas o desejo de
tudo poder, um desejo que está intimamente relacionado com o de tudo saber ou que
é apenas uma consequência dele (FEUERBACH, 1989, p. 227-228).
Por isso Feuerbach procura transformar o objeto da fantasia no objeto da realidade.
Sua análise evidencia, a todo o momento, a dicotomia instaurada pela religião entre
essência humana e essência divina. É por isso que sugere a substituição do cristianismo pela
antropologia como proposta alternativa para esse processo dicotômico, no intuito de resgatar o
ser humano da alienação e reentroduzi-lo como sujeito único e verdadeiro de sua própria
história e como centro das preocupações humanas, livre das especulações teológicas que
impedem a investigação e a compreensão do comportamento humano diante das mais
variadas necessidades.
A proposta filosófica de Feuerbach gira em torno do projeto crítico-positivo da
religião, ou seja, tem como finalidade libertar o ser humano das ilusões da teologia,
que é o fundamento último da falta de liberdade espiritual e política. Contudo,
Feuerbach reconhece que a religião tem uma significação histórica, no sentido de
que o homem, projetando as suas possibilidades num ser fantástico/Deus, tomou
consciência de sua grandeza. Mas é preciso pôr fim a este sonho, e a grande
revolução da história vai dar-se quando o homem tomar consciência de que o único
Deus do homem é o homem (HAHN, 2003, p. 24).
Ao buscar o fundamento humano da religião, sobretudo da religião cristã, Feuerbach
manifesta seu interesse em demonstrar a imagem do homem refletida em Deus e,
consequentemente, mostrar esse Deus que se encontra no homem. Não porque quis fazer
morada no humano, mas porque o humano é sua morada, é seu início, é sua origem. Chegar a
57
essa raiz,
a esse início torna-se indispensável, pois trata-se da base antropológica da
experiência religiosa.
A partir do contato com essa base, desencadeia-se o processo de percepção do grande
potencial humano que precisa ser valorizado e trabalhado como meio de libertação do ser
humano em relação às ideias religiosas. Daí percebe-se claramente o perigo das especulações
teológicas, pois estas procuram afastar o ser humano de sua essência, como se ela existisse
independente, separada enquanto Deus.
Feuerbach procura mostrar que a religião não pode servir-se de outro conteúdo a não
ser das potencialidades humanas. Nesse aspecto a religião pode ser utilizada como convite à
reflexão sobre a essência humana ainda não objetivada.
A religião é negativa para Feuerbach apenas no sentido teológico, ou seja, quando a
essência humana se torna objetiva e independente na forma de um Deus. Mas não,
enquanto é uma primeira forma, embora indireta, de o homem se dar conta de sua
essência. O potencial da manifestação religiosa é desvendado quando a diferença
entre teologia e antropologia é eliminada, pois, em verdade, Deus pode apenas ser
identificado com o homem (SCHUTZ, 2001, p. 27).
Assim, no decorrer da obra A essência do cristianismo, Feuerbach discorre sobre os
mistérios religiosos e sobre os dogmas do cristianismo, expondo o que verdadeiramente se
encontra por detrás deles: “Os dogmas fundamentais do cristianismo são desejos do coração
realizados.” (FEUERBACH, 1994, p. 169).
Na religião é só o homem que está em causa, de que o segredo da teologia é a
antropologia, de que o conteúdo, o elemento constitutivo do ser infinito é o ser
finito. Deus vê o homem significa que o homem apenas se vê a si mesmo em Deus;
Deus cuida do homem significa que o cuidado do homem por si mesmo é a sua
essência suprema (FEUERBACH, 1994, p. 366).
Feuerbach procura demonstrar que aquilo que o ser humano considera existir fora
dele, ou seja, o objeto religioso, nada mais é do que a sua essência objetivada. Daí conclui que
o homem pode ser conhecido pelo Deus que tem e o Deus pelo homem que o fabrica.
Pelo seu Deus conheces o homem e, vice-versa, pelo homem conheces o seu Deus; é
a mesma coisa. O que para o homem é Deus, isso é o seu espírito, a sua alma, e o
que para o homem é o seu espírito, a sua alma, o seu coração, isso é o seu Deus:
Deus é o interior revelado, o si-mesmo do homem expresso, a religião é o
desvelamento festivo dos tesouros escondidos do homem, a confissão dos seus
pensamentos mais íntimos, a proclamação pública dos seus segredos de amor
(FEUERBACH, 1994, p. 23).
No entanto, a conclusão de Feuerbach não quer afirmar que o homem religioso tenha
consciência de que a consciência que tem de Deus é a consciência de si da sua essência,
58
mesmo que, na religião, a consciência de Deus seja referida como a consciência de si do
homem. “É justamente a falta desta consciência que funda a diferença específica da religião.
Para eliminar esta incompreensão, é preferível dizer: a religião é o primeiro, mas indireto,
conhecimento de si do homem.” (FEUERBACH, 1994, p. 23).
À medida que Feuerbach vai discorrendo a respeito da negação de si que o homem
opera quando apela para Deus, vai evidenciando automaticamente a ilusão característica da
consciência religiosa. Uma vez descrente de sua capacidade de saber algo acerca de Deus e,
em consequência do menosprezo, banalização e minimização da sabedoria humana, o homem
religioso passa a buscar o que não quer entender a partir de si fora dele e além dele.
No cristianismo, especificamente, esta crença no que presumivelmente se situa além
do humano encontra respaldo na revelação. Sobre essa questão, Feuerbach ressalta:
A crença na revelação desvenda da forma mais clara a ilusão característica da
consciência religiosa. A premissa universal desta crença é a seguinte: por si mesmo,
o homem não pode saber nada acerca de Deus; todo o seu saber é apenas vão,
terreno, humano. Mas Deus é um ser sobre-humano: Deus só se reconhece a si
mesmo. Não sabemos, portanto, nada de Deus para além daquilo que ele nos revela.
Só o conteúdo comunicado por Deus é conteúdo divino, sobre-humano,
sobrenatural. Portanto, graças à revelação, conhecemos Deus por ele mesmo, porque
a revelação é a palavra de Deus, o Deus que se exprimiu por si mesmo. Por isso, na
crença na revelação, o homem nega-se, sai fora de si e para além de si, opõe a
revelação ao saber e à opinião humana; nela se desvenda um saber oculto, a
plenitude de todos os segredos suprassensíveis; e aqui a razão tem de se calar, aqui o
homem tem de se comportar apenas como crente, apenas passivamente
(FEUERBACH, 1994, p. 254).
Mas, é inegável que tudo aquilo que o homem religioso afirma ser revelado está
fortemente determinado pela natureza humana, pois se trata de linguagem humana com
representações também humanas.
O homem é o objeto de Deus antes de ele comunicar exteriormente com o homem,
ele pensa no homem, é determinado pela sua natureza, pelas suas necessidades. Deus
é certamente livre na vontade, pode revelar-se ou não, mas não é livre no
entendimento; se se quiser revelar, não pode revelar ao homem tudo o que bem
quiser, mas só o que convém ao homem, o que é conforme à sua natureza, seja ela
qual for; revela o que tem de revelar, se é que a sua revelação deve ser uma
revelação para os homens e não para outro ser qualquer. O que Deus pensa para o
homem, pensa-o enquanto determinado pela ideia do homem, proveio da reflexão
sobre a natureza humana. Deus coloca-se no lugar do homem e pensa a respeito de si
mesmo tal como este outro ser pode e deve pensar a respeito dele; não se pensa com
a sua faculdade de pensar, mas com a faculdade de pensar humana. No projeto da
sua revelação, Deus não está dependente de si, mas do poder de compreensão do
homem. O que de Deus chega ao homem apenas passa do homem em Deus ao
homem, isto é, da essência do homem ao homem fenomênico, do gênero ao
indivíduo (FEUERBACH, 1994, p. 254-255).
59
Partindo do pensamento de Feuerbach, fica evidenciado que entre a revelação divina e
a chamada razão ou natureza humana existe uma diferença apenas ilusória, pois o conteúdo da
revelação divina não pode ser de outra natureza senão a humana, isto é, proveio da
necessidade humana.
O pensador para quem a religião é objeto, o que a religião não pode ser para si
mesma, descobre a essência da religião que para ela está oculta. A nossa tarefa é
justamente mostrar que a oposição do divino e do humano é inteiramente ilusória e,
por consequência, que também o objeto e conteúdo da religião cristã são
inteiramente humanos (FEUERBACH, 1994, p. 24).
A crença na revelação torna-se, portanto, um perigo, pois contribui para a descrença
no homem, sustentando a tese de que o homem nada pode alcançar por si mesmo. Feuerbach
quer realçar o paradoxo existente nessa crença, mostrando que naquilo que é tomado como
revelado se opera o desvendamento da natureza oculta do homem, que torna-se para ele
objeto. Mesmo sendo afetado e determinado pela sua essência, o homem ainda continua a
acreditar que é determinado e afetado por uma outra essência.
Afirmar que a teologia é antropologia é justamente compreender que “a essência da
religião, a sua essência divina é a essência do homem (...), que a suposta unidade entre a
essência divina e humana é a unidade da essência humana consigo mesma.” (SOUZA, 1993,
p. 34).
Sobre esta questão da essência da religião e a essência do homem, tomamos a análise
de Paulo Hahn como auxílio para nossa compreensão. Na obra Consciência e emancipação,
uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach, assim afirma:
O aspecto religioso, a essência da religião coincide com a consciência de si mesmo,
sendo que o objeto religioso está intimamente presente no homem. Por isso, a
religião é caracterizada como a consciência do infinito enquanto essência divina
mesma. Reconhecida a identidade entre consciência e própria essência, torna-se
claro que a essência denominada divina nada mais é do que a essência humana. A
religião, nesta circunstância, é entendida como a manifestação das aspirações
íntimas do homem; isto é, a exteriorização da própria essência humana, mas de
forma não consciente ainda. É nessa perspectiva que Feuerbach nos leva a concluir
que o homem, e é aí que reside o mistério da religião, objetiva a sua essência, em
seguida constitui-se a si próprio como objeto desse ser objetivado, transformado
num sujeito e numa pessoa; ele pensa-se, é o seu próprio objeto, mas como objeto de
um objeto, de um ser diferente de si. O homem é um objeto de Deus (HAHN, 2003,
p. 104).
60
Na ótica feuerbachiana a religião acaba por desviar o homem de sua essência24,
impedindo-o de se ver na sua criação, ou seja, de se ver em Deus e de ver Deus nele mesmo,
pois ele mesmo é o próprio e o único Deus, tomado como sendo distinto do ser humano, com
uma essência diferente e fora dele. Assim afirma Paulo Hahn:
Assim, a essência da religião é a relação do homem consigo mesmo, com sua
essência, mas a sua essência como um outro ser distinto. O ser divino nada mais é do
que a essência humana separada dos limites do homem individual. Pode-se dizer que
é de maneira indireta que a religião é autoconsciência humana, uma vez que o
homem primeiro exterioriza o que depois traz de volta para si. Diante disso,
Feuerbach entende que quanto mais o homem tenta se igualar a Deus, tanto mais se
distancia, pois se tantas são as semelhanças que o homem pensa ter com Deus,
infinitamente mais numerosas e maiores são as diferenças que ele deve pensar; ou
ainda: quanto mais o homem tenta se igualar a Deus, tanto maior a diferença entre
eles (HAHN, 2003, p. 109).
O homem precisa aprender a conhecer-se e a valorizar-se mais, não se submetendo ao
fantástico, ao imaginário. Na experiência religiosa, ao adorar as qualidades humanas
substancializadas em Deus, o homem acaba por negá-las a si mesmo, pois quanto mais as
sustenta e as valoriza num Deus concebido como absolutamente perfeito, forte, rico,
poderoso, mais passa a considerar-se imperfeito, fraco, pobre e impotente. Por isso precisa
“dar-se conta de que é ele quem confere significado à religião, dar-se conta de que a razão,
vontade e amor – componentes da essência humana – são absolutos, são ‘poderes divinos’.”
(HAHN, 2003, p. 111-112).
Conclui-se, portanto, que a proposta feuerbachiana de fazer com que o homem se veja
quando “olha” para Deus tem como intenção a humanização do deus abstrato em favor de um
projeto que leve à emancipação humana. Assim, uma vez redescobrindo as riquezas e os
atributos genéricos atribuídos ao deus ilusório, procura resgatá-los com e para o homem.
A teoria da reversibilidade quer justamente recuperar no homem a sua consciência de
maneira que possa ir se reapropriando da essência humana genérica que tem de ser encontrada
na existência.
24
No livro O ateísmo antropológico de Feuerbach, Draiton Gonzaga de Souza afirma: “se a essência humana é
não apenas o fundamento, mas também o objeto da religião e esta é considerada como a consciência do infinito,
então, da infinitude que se afirma da religião, deduz-se a infinitude da essência humana, se o homem não fosse
infinito, se sua essência não fosse infinita, não poderia ter consciência do infinito, pois sua essência é o objeto
específico e determinante de sua consciência. Dá-se, pois, uma identidade entre consciência e essência
(consciência em sentido estrito; no sentido especificamente humano é ter consciência da própria essência; a
essência humana constitui-se da reflexão sobre si mesma, pela consciência da essência).” (SOUZA, 1993, p. 46).
61
3.3 A negação de Deus como negação da negação do homem
Com este título, será tratada neste item a preocupação de Feuerbach em esclarecer e
demonstrar a necessidade da negação de Deus para se perceber que tal negação trata-se da
afirmação do ser humano que é negado quando se afirma o divino. Portanto, a negação de
Deus representa a negação de um conjunto de ideias e doutrinas que negam o homem, daí a
negação da negação do homem.
Conforme trabalhado anteriormente, pela experiência religiosa opera-se a separação do
homem de si mesmo quando este transfere para fora de si suas potencialidades, seus
predicados. Essa transferência evidencia uma descrença na realidade e negação deste mundo,
o que acarreta negação de si mesmo uma vez que, enquanto homem, é e participa desta
realidade como parte integrante da natureza.
Feuerbach questiona essa negação do real e a separação do homem de si, pois como
consequência desse processo nasce a crença e o culto ao eu glorificado, divinizado, o que
evidencia um movimento cíclico, porém inconsciente. “Na religião, o homem separa-se de si
mesmo, mas apenas para voltar sempre ao mesmo ponto donde partiu. O homem nega-se, mas
apenas para se pôr de novo, bem entendido, numa forma agora glorificada” (FEUERBACH,
1994, p. 218).
Na segunda parte de A essência do cristianismo, Feuerbach discorre sobre a religião na
sua contradição com a essência do homem. Assim, a análise que Feuerbach faz do
cristianismo o leva a condená-lo por estimular a separação entre o homem e seu meio sendo
por isso considerado como religião que mantém o homem em sua interioridade, excluindo-o
da relação com o mundo e do diálogo com os outros, tornado-se a expressão do egoísmo, da
abstração, do irreal e da alienação.
Uma vez centrando tudo em Deus, o cristianismo deixa de oferecer e de trabalhar uma
visão integral do mundo. Estabelecendo uma experiência totalmente reduzida – Deus e eu –,
arrasta tudo o mais para o descrédito apresentando o mundo como sendo sem valor
desnecessário e prejudicial ao homem.
Como consequência desta visão redutora e negativista do mundo, intensifica-se o
comprometimento do convívio humano, pois leva o homem a negar-se, e uma vez negando-se
nega também o outro e ao negar o outro passa a perder a consciência da humanidade, pois:
62
O outro é o meu tu – embora isto seja recíproco – o meu alter ego, o homem
objetivado para mim, o meu interior desvendado – o olho que se vê a si mesmo. É no
outro que começo por ter consciência da Humanidade. Através dele começo a
experienciar, a sentir que sou homem; só no amor por ele se torna para mim claro
que ele me pertence e que eu lhe pertenço, que não poderíamos existir um sem o
outro, que só a comunidade constitui a Humanidade (FEUERBACH, 1994, p. 191).
No livro Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach,
Paulo Hahn ressalta a análise que Feuerbach faz da religião ao considerá-la como responsável
pela cisão que opera naquele que a ela se sujeita.
A religião é a divisão do homem consigo mesmo porque considera a Deus como
sendo um ser oposto a si, exterior e superior. Assim, Deus e homem são dois
extremos: Deus é absolutamente positivo, o homem é o negativo. Então, para libertar
o homem é preciso transformar a questão de Deus numa questão do homem,
transformar a teologia em antropologia, a ciência de Deus em ciência do homem e
buscar a felicidade do céu na terra (HAHN, 2003, p. 71-72).
Torna-se necessário observar que a negação do humano na experiência religiosa é a
negação do próprio Deus tomado como um ser transcendente, poderoso, soberano, pois
quando se nega o homem automaticamente se negam os predicados de Deus porque os
predicados de Deus são predicados humanos.25 Existirá um Deus sem predicados humanos? O
que seria se é que poderia ser alguma coisa? Afirma Feuerbach:
A negação do sujeito é considerada como irreligiosidade, até como ateísmo, mas não
a negação dos predicados. Mas o que não tem determinações também não tem
quaisquer efeitos sobre mim, e o que não tem efeitos também não tem existência
para mim. Negar todas as determinações é o mesmo que negar a própria essência.
Uma essência sem determinações é uma essência não-objetiva, e uma essência nãoobjetiva é uma essência nula (FEUERBACH, 1994, p. 24-25).
É importante ressaltar outro aspecto que resulta desta negação do homem que se opera
de maneira inconsciente: a cisão que a religião opera quando contribui com a ideia de que
existe uma divisão entre dois seres essencialmente distintos, ou seja, Deus e o homem.
25
Sobre esta questão, Rosalvo Schutz faz o seguinte comentário no livro Religião e capitalismo: uma reflexão a
partir de Feuerbach e Marx: Feuerbach “busca mostrar que todos os predicados de Deus são predicados humanos
e que um suposto Deus sem predicados não existe, assim como nenhum sujeito sem predicados existe, não passa
de um vazio, uma não existência. Por isso, embora no sentido vulgar um ateu seja aquele para o qual os
predicados de Deus nada significam, ser ateu no sentido feuerbachiano significa, apenas, não aceitar o sujeito
como sendo algo diferente da essência humana, ou seja, atribuir os predicados a quem eles realmente pertencem:
ao homem. Ser ateu torna-se, assim, condição essencial, para que as características, que aparecem na religião
como atributos divinos, possam ser humanamente vividas. (...) Predicados sem sujeito podem subsistir, mas
sujeito sem predicado, não. Como todos os predicados divinos são humanos, não há como deduzir daí a
existência de um sujeito não humano. Restaria então ao crente dizer que Deus possui predicados que nós não
conhecemos e que, portanto, não seriam humanos. Porém, o que seria do sujeito Deus sem predicados, o que
seria ele além de um não-ser? Não há, pois, outra solução senão admitir que tudo que é, supostamente, atribuído
a Deus é do próprio homem.” (SCHUTZ, 2001, p. 26).
63
Na verdade, essa cisão sugere e mantém um processo de alienação que nega o humano
e o coloca como estranho em relação a ele mesmo, pois sustenta a divisão no seu interior. Em
consonância com a análise feuerbachiana, nos afirma Draiton Gonzaga de Souza:
A religião é, em primeiro lugar, identidade, pois este é o seu princípio, objeto e
conteúdo. Somente em sua realização e desenvolvimento chega à diferença, cria uma
cisão nesta identidade original e imediata; e, nesta cisão, encontra sua diferença
específica, sua maneira peculiar de ser. Este duplo traço é de tal maneira
característico da religião, que ela mesma pode ser definida como dupla e sua
dinâmica consiste em criar divisão, pois na religião o homem tem consciência de sua
essência como se lhe fosse alheia e contraposta, como um ser estranho [...]. O
trágico da cisão criada pela religião é que não se trata de uma divisão entre dois
seres que nada tenham essencialmente em comum, mas, ao contrário, esta
contraposição entre Deus e o homem é uma divisão no homem mesmo. Na ruptura
desta identidade original consiste a cisão da religião; a razão de a religião ser
percebida como desarraigamento e divisão está precisamente na unidade e
identidade destes supostamente diferentes dois seres: Deus e o homem; por causa da
identidade original, é que se dá a divisão, levando Feuerbach a afirmar que ‘a
religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um ser
anteposto a ele’.” (SOUZA, 1993, p. 64-65).
A análise feuerbachiana da religião quer mostrar que a religião deve ser entendida
como manifestação dos desejos que se encontram no âmago do ser humano ou exteriorização
da própria essência humana, ainda que de forma inconsciente. Sobre essa questão, Feuerbach
amplia sua análise em Preleções sobre a essência da religião afirmando:
A essência diversa e independente do homem, o objeto da religião, não é somente a
natureza exterior, mas também a natureza própria, interior do homem, diversa e
independente de seu saber e querer. Com esse princípio chegamos ao ponto mais
importante, à genuína origem da religião. O mistério da religião é em última análise
somente o mistério da união do consciente com o inconsciente, do arbitrário com o
casual em um único ser. O homem deseja e, no entanto tem ele desejo sem seu
desejo (frequentemente ele inveja os seres destituídos de desejo!), ele é consciente e,
no entanto, atinge a consciência sem ter consciência (quantas vezes ele se destrói por
causa de sua consciência! E como, no fim de um pesado dia de trabalho, ele se volta
com prazer à inconsciência do sono!), ele vive, mas não tem em seu poder nem o
início, nem o fim de sua vida; ele surgiu e, no entanto, depois de pronto, imagina ter
sido criado por uma geração primitiva, como se tivesse desabrochado
repentinamente como um cogumelo da noite para o dia; ele possui um corpo; ele o
sente em todo prazer e em toda dor como sendo seu e, no entanto é ele um estranho
na própria casa; recebe com todo prazer uma recompensa que não merece, mas
também em todo sofrimento um castigo de que não é culpado; ele sente a vida nos
bons momentos como uma dádiva que não pediu, mas nos maus como um fardo que
lhe foi imposto sem a sua vontade; ele sente a fonte das necessidades e as satisfaz
sem saber se o faz por um impulso próprio ou estranho, sem saber se com isso
satisfaz a si mesmo ou a um ser estranho. O homem está com seu Eu ou sua
consciência à beira de um abismo insondável que nada mais é que sua própria
essência inconsciente que lhe aparece como um ser estranho. O sentimento que ataca
o homem diante desse abismo e que se irrompe nas exclamações: “Que sou eu?”
“De onde?” “Para onde?” é o sentimento religioso, o sentimento de que eu nada sou
sem o não-eu que é de fato diverso de mim, mas que é intimamente ligado a mim,
que é uma outra essência e, no entanto é a minha própria (FEUERBACH, 1989, p.
258).
64
Voltar nossa atenção para o homem é voltar a atenção para o fundamento da religião,
pois quando este toma consciência do infinito, toca na essência divina. Na afirmação da
divindade na autoconsciência humana, se dá a autoafirmação da divindade da consciência
humana. Assim: “Nesse processo em que Feuerbach faz a transição da divindade ao ser
humano, a religião não mais se ocupará de Deus, mas exclusivamente do homem e sua
essência. O fator religioso não pode ser estranho à essência humana, uma vez que o homem é
o fundamento da religião.” (HAHN, 2003, p. 108).
Fica claro, portanto, que a fé em Deus é a fé no homem, não podendo ser outra coisa.
É a fé na infinitude e verdade do próprio ser. É o ser humano em sua liberdade e ilimitação
absolutas, entendido como tradução e revelação única do presumível divino.26 O que se
apresenta ao homem ou o que ele permite que a ele se apresente como sendo manifestação
divina nada mais é que sua capacidade humana exteriorizada. “Na religião, o homem separase de si mesmo, mas apenas para voltar sempre ao mesmo ponto donde partiu. O homem
nega-se, mas apenas para se pôr de novo, bem entendido, numa forma agora glorificada.”
(FEUERBACH, 1994, p. 218).
Segundo Feuerbach, há uma identidade entre sujeito e objeto, ou seja, o objeto da
religião é o mesmo da consciência. Isso quer dizer que os objetos espirituais e os objetos
sensíveis são a essência objetivada. Essa análise traz como consequência a necessidade de
uma revisão e transformação da concepção acerca da religião para mostrar que a relação até
então entendida como consciência de Deus sempre fora a autoconsciência.
Feuerbach tentou demonstrar esta identidade, afirmando-a de sujeito e objeto, ou
seja, de consciência e objeto, e a identidade do objeto da religião com o da
consciência. Por isso, a transformação da definição da religião é consequência
lógica: a religião não é consciência de Deus, mas autoconsciência [...]. O homem,
portanto, através deste processo, assume o lugar de Deus. A religião não mais se
ocupará de Deus, mas do próprio homem (SOUZA, 1993, p. 62-63).
26
Juan Antonio Estrada Diaz afirma que esse Deus desejado, projetado, “é construção humana, sempre
ameaçado pela arbitrariedade e pela suspeita que introduz a consciência que duvida. Passamos do Deus
postulado (...) ao Deus projeção (que canaliza a subjetividade humana). O problema de uma transcendência
gerada desde a imanência humana coloca em descoberto as implicações da correlação entre Deus e os homens: a
afinidade de Deus-homem deve-se à própria estrutura do ser ou é mera projeção subjetiva? Feuerbach revela o
caráter projetivo que Nietzsche chamará perspectivismo do conhecimento humano. Com isso, cancela-se
definitivamente a possibilidade de um conhecimento objetivo e absoluto da essência de Deus, já que este está
sempre impregnado da subjetividade de quem afirma. O problema está em se a projeção está somente na
conceitualização da essência divina (a imagem de Deus) ou estende-se à própria existência. Deformamos a
realidade ao conhecê-la ou chegamos até a criar a realidade? Somos meros demiurgos que damos forma ao
existente ou criadores de entidades fantasmagóricas?” (DIAZ, 2003, p. 156-157).
65
O intuito de Feuerbach é fazer com que o homem descubra que as potencialidades que
ele atribui a um ser objetivo exterior é a alienação da qual deve libertar-se, pois transfere para
este outro ser suas próprias potencialidades.
Feuerbach estabeleceu o caráter relacional de Deus com respeito ao homem e ao
mesmo tempo estabeleceu o caráter projetivo de nossas imagens sobre Deus, para,
desde aí, dar lugar à ordem lógica à afirmação ontológica: Deus é uma projeção
humana carente de entidade real. Deve-se recuperar essa essência e devolvê-la à
espécie (DIAZ, 2003, p. 162-163).
O pensamento feuerbachiano contrapõe-se ao cristianismo não admitindo a mínima
possibilidade de transcendência. Reduz a sua mensagem, entendida como mensagem divina, a
fato essencialmente humano, através do qual temos a possibilidade de descobrir muitas coisas
sobre o próprio homem, seus desejos mais profundos, seus projetos, seus segredos, sua
história, suas qualidades, mas jamais sobre Deus.
Como as qualidades humanas são infinitas, ao objetivarmos Deus (ilusão!),
percebemos que não podemos conhecer todas as suas qualidades. Imaginamos,
então, poder conhecê-las num outro mundo. Ora, tudo que delegamos a Deus, ou a
um outro mundo, subtraímos de nosso mundo. Por isto, quanto mais se atribui a
Deus, menos se atribui ao ser humano. O homem deixa-se objetivar por algo que ele
próprio objetivou: Deus. Desta forma, a aparência de um Deus objetificado e
abstraído de toda realidade concreta e real é o ponto culminante da religião.
Feuerbach quer buscar o fundamento humano da religião, e, na obra em causa, de
modo especial, da religião cristã. Por isto, volta à origem, ao conteúdo
autenticamente religioso, a fim de contrapô-lo ao conteúdo meramente teológico e
especulativo, com a intenção de perceber os verdadeiros fundamentos
antropológicos que o geraram, ainda não mesclados com as especulações teológicas.
A exposição desta intenção nos revela que para Feuerbach, portanto, a religião não
deve ser vista como sendo apenas negação do homem, mas também, enquanto
portadora de potencialidades humanas (...). É uma primeira forma, embora indireta,
de o homem se dar conta de sua essência (SCHUTZ, 2001, p. 26-27).
No intuito de confirmar o fundamento humano da religião, Feuerbach se serve da
contradição que afirma existir na revelação de Deus, traduzindo o conteúdo desta revelação
em manifestação daquilo que o ser humano objetivou: Deus. Assim, revela a mais genuína
manifestação dos anseios do homem.
A crença na revelação é a certeza imediata do ânimo religioso de que o que ele crê, o
que ele deseja, o que ele representa, existe. A religião é um sonho no qual as nossas
próprias representações aparecem como seres fora de nós. O ânimo religioso não
distingue entre subjetivo e objetivo – não duvida; não possui os sentidos para ver
outras coisas, mas só para ver as suas representações como seres fora dele. Para o
66
ânimo religioso, uma coisa em si teórica é uma coisa prática, uma coisa da
27
consciência é um fato (FEUERBACH, 1994, p. 251-252).
É interessante observar que Feuerbach evidencia sua preocupação e interesse na
valorização do ser humano, sobretudo no enfrentamento dos problemas e dificuldades que a
ele se apresentam durante a vida. Assim compreende-se porque sugere que os homens sejam
amigos dos homens ao invéz de serem amigos de Deus. É preciso que o ser humano se atente
para a necessidade de protagonizar as mudanças necessárias na história, libertando-se da
crença na existência de um Espírito onisciente e todo-poderoso pelo qual os problemas e
dificuldades sejam resolvidos e todos os dramas desvanecidos.28 Em consonância com o
pensamento feuerbachiano, afirma Francis Jeanson:
Negação dos valores divinos em favor de uma exigência de “valorização” concreta
do mundo humano; negação da vida eterna em favor de uma verdadeira aceitação de
nossa finitude; negação da culpabilidade e da salvação segundo Deus, em favor de
uma consciência que se quer mais e mais responsável perante as outras consciências,
em favor do sentido que ela se esforça por dar a seus empreendimentos: eis o
caminho novo que aparece dialeticamente exigido a partir do momento em que o
homem se tornou capaz de conceber a necessidade da Encarnação. A paz não está
nos céus, e não haverá paz em nós, não haverá reconciliação de cada um consigo
mesmo e com os outros, enquanto não tivermos aprendido a encarregar-nos de Deus,
a assumir finalmente nossa exigência de humanidade (JEANSON, 1969, p. 138).
É necessário desenvolver no ser humano a consciência emancipadora de maneira que
ele possa perceber e querer assumir a tarefa diária de transformar sua história sem auxílio ou
garantia exterior, criando, paulatinamente, as verdades e valores através da convivência com a
natureza, com os demais homens, transformando o próprio conhecimento.
27
Na ótica feuerbachiana fato é “uma representação de cuja verdade não se duvida, porque o seu objeto não é um
objeto da teoria, mas do ânimo que deseja que aquilo que ele deseja e crê exista; fato é o que é proibido negar,
senão exteriormente, pelo menos interiormente; fato é toda a possibilidade que vale como realidade, toda a
representação que durante o tempo em que é fato exprime uma necessidade e, com isso, uma barreira que o
espírito não pode transpor; fato é cada desejo realizado; em suma, fato é tudo o que não se pode pôr em dúvida,
pela simples razão de que não se põe nem se deve pôr em dúvida.” (FEUERBACH, 1994, p. 253).
28
Sobre esta questão, muito nos ajudará o comentário sobre o pensamento de Francis Jeanson, feito por Jean
Lacroix, no livro Posições do ateísmo contemporâneo: “como diz Francis Jeanson, eu não devo contar senão
comigo e com os outros homens para enfrentar nossas dificuldades humanas; e a moral de que eu tenho precisão
é a minha própria existência que a forma, arriscando-se toda inteira, e quase a toda hora. Que eu me sinta
ajudado nesta obra de reconstrução da humanidade, é bem certo. A graça se experimenta sem cessar. Outra coisa
não é, porém, senão esta ajuda preciosa que me emprestam o amor dos homens e sua cooperação. O ateísmo se
apresenta, então, como uma afirmação de liberdade e uma reivindicação de responsabilidade. Atirado numa
situação e numa condição que não escolheu, o indivíduo deve ser julgado apenas do ponto de vista de como aí se
comporta, quer dizer, por critérios puramente humanos. ‘Eu decido ser livre, escreve Jeanson, quer dizer, existir
não mais em relação a Deus, mas, em relação àqueles que são meus irmãos porque partilham de minha condição,
mesmo que sua condição seja muitas vezes pior do que a minha. E para não me arriscar a uma traição deste
dever de solidariedade, recusarei a qualquer outro dever, a qualquer outra obrigação, a qualquer outra justiça,
enfim, e a qualquer outro amor além destes, que me esforçarei para progressivamente e cada vez melhor
estabelecer com eles, nesta vida e nesta terra.” (LACROIX, 1965, p. 41-42).
67
É importante aqui ressaltar o comentário de Viriato Soromenho Marques, no capítulo
Religião e Historicidade em a Essência do Cristianismo: contributo para um diálogo entre
Feuerbach e Lessing, da obra Pensar Feuerbach: Colóquio comemorativo dos 150 anos da
publicação de A essência do cristianismo:
O humanismo de Feuerbach não parece, portanto, prestar-se a uma fácil redução a
mais um exemplo de inconsciente laicização de uma escatologia da salvação, como
ocorre com tantas outras aventuras intelectuais do século XIX. Mesmo as suas
esperanças, talvez excessivas, nas capacidades demiúrgicas do nosso gênero não
deixam de conter, nas palavras que se revelam sob outras, uma declaração da
impossibilidade do credo salvífico. Nem mesmo a memória que as gerações
guardarão das grandes obras poderá servir sequer de Erzsat à irremediável perdição
da consciência singular nos abismos do tempo e da morte. Talvez por isso a
profunda mensagem de amor, altruísmo e generosidade contida na filosofia de
Feuerbach seja apenas uma outra maneira de dizer: amemo-nos, então, pois já não
existem céus eternos pelos quais valha a pena matar e morrer (MARQUES, 1993, p.
118).
A crença nos céus eternos, tradução da objetivação da essência humana, torna-se
obstáculo a qualquer iniciativa emancipatória, pois leva o homem a dirigir-se para Deus
negando a si mesmo, colocando-o como inferior, subordinado ou incapaz de levar a cabo
projetos de sua autoria. Por isso, afirma Feuerbach:
Interessa-me acima de tudo, e sempre me interessou, iluminar a obscura essência da
religião com a luz da razão, para que finalmente os homens parem de ser explorados,
para que deixem de ser joguetes de todos aqueles poderes inimigos da humanidade
que, como sempre, servem-se até hoje da nebulosidade da religião para a opressão
do homem (FEUERBACH, 1989, p. 28).
Ao invés de buscar e deixar-se guiar por um fim último puramente humano, o homem
religioso se permite guiar pela ilusão de que a vida se torna sem sentido e desprovida de fim
sem a religião. Portanto, coloca a religião como seu único fim.
Aquilo que o não-religioso apenas conserva na cabeça, o religioso coloca como
objeto fora dele e ao mesmo tempo acima dele, aceitando por isso a relação de
subordinação, de sujeição. Em suma, o religioso, porque é uma coletânea, tem um
ponto de concentração, tem um fim. Sem religião, a vida parece ao homem
desprovida de fim (FEUERBACH, 1994, p. 69).
Um dilema se apresenta: tomar a humanidade fundada sobre o reconhecimento
recíproco entre os homens ou submeter-se aos efeitos alienantes da crença num ser supremo
que impede os homens de investirem nos seus esforços, desviando-os de seus objetivos
humanistas. A proposta feuerbachiana é justamente de alertar ao homem quanto ao perigo de
continuar sustentando a ilusão religiosa que se apoia na objetivação da essência humana.
68
Esta ilusão religiosa é perniciosa pela diferença que estabelece entre Deus e o
homem, convertendo-se em contraposição e, então, em domínio de Deus sobre o
homem, em subordinação dos objetivos humanistas a um ser superior puramente
ilusório. Esta ilusão é a razão pela qual a religião é a falsa consciência do homem, e
Deus a objetivação da verdadeira consciência, seu verdadeiro conteúdo, mas negado
no homem. Quanto mais o homem vai recuperando sua consciência, quanto mais o
homem vai-se reapropriando da essência divina, afirmando a identidade, tanto mais
se verá a religião obrigada a afirmar a diferença. Esta inversão ilusória da religião
pode chegar a constituir uma imagem tão desairragada do homem, que este não
chegue à realização de sua essência, a não ser de uma maneira ilusória. (...) Sobre
esta ilusão, pois, fundamenta-se não só a ideia de Deus, mas também a configuração
da vida, seu sentido, a crença na vida eterna, na ressurreição e no além. Este caráter
ilusório, fantasioso, mostra-se também na atitude frente às necessidades humanas,
que são a origem da religião (SOUZA, 1993, p. 68-69).
O pensamento feuerbachiano contrapõe-se à negação do homem que se dá na
experiência religiosa. Sua intenção é justamente a de inverter este processo, ou seja, procurar
ajudar o homem a tomar consciência de sua importância, de seus valores, de seu potencial
transformador e direcionador da história, assumindo-se como único protagonista das
mudanças necessárias para o bem-estar da humanidade.
Essa missão só poderá ser efetivada se, de fato, o homem deixar de buscar em Deus o
que se encontra nele para assim proclamar e experimentar algo de diferente: a emancipação da
consciência de si. Assim, “nesse processo em que Feuerbach faz a transição da divindade ao
ser humano, a religião não mais se ocupará de Deus, mas exclusivamente do homem e sua
essência.” (HAHN, 2003, p. 108).
Finalizando este item, percebe-se que o intuito da crítica feuerbachiana à religião e ao
cristianismo é o de contribuir para a descoberta e reconhecimento das potencialidades
humanas, propiciando uma desmistificação religiosa para demonstrar que o ser humano é o
grande e único construtor do ente divino.
O pensamento de Feuerbach também serve de alerta para o perigo da construção ou
manutenção de estruturas que possam dominar as pessoas, sobretudo quando essas pessoas
passam a considerar as estruturas não mais como suas criaturas, mas como criações de um
presumível criador que tem morada no além.
A negação de Deus como negação da negação do homem deve ser constante na vida
do ser humano, pois traduz a compreensão de uma ideologia que não pode ser mais assumida
nem mantida como proposta de felicidade ou de realização do homem.
Negar Deus, na ótica feuerbachiana, é assumir a crença no real para impedir que o ser
humano continue se negando na experiência religiosa que alimenta sua crença no irreal.
Não negar o homem é perceber, assumir e lidar com o aquém como morada única do
ser humano. Aceitar o aquém é descobrir que aqui é o espaço, o momento, a circunstância
69
propícia para a criação do divino. Negar a Deus, portanto, é não negar o humano como único
criador do Criador, como deus de Deus.
70
4 EXPERIÊNCIA DO DIVINO OU OBJETIVAÇÃO SENTIMENTAL E
FANTÁSTICA DOS DESEJOS HUMANOS?
Toda e qualquer análise comportamental do homem religioso não pode dispensar a
compreensão da influência do meio sobre este, pois as experiências religiosas não acontecem
numa esfera sobrenatural, num mundo supraterreno. Assim, a experiência do presumível
divino só pode efetivar-se a partir da experiência humana com o mundo ao qual o homem
pertence, o que se torna pré-requisito para qualquer atitude ou prática religiosa.
Na ótica feuerbachiana pode-se afirmar, portanto, que a natureza é a origem da crença
no divino, pois as ideias religiosas nascem da experiência humana com a realidade e com as
situações que se processam a partir dessa relação nem sempre pacífica ou menos conflituosa.
No primeiro item deste capítulo é ressaltada a atenção feuerbachiana para com a
existência do mundo colocado como responsável pela existência do ser humano. A reflexão
que se processa a partir dessa consideração vai justamente analisar e questionar o discurso
religioso que se funda no pensamento dualista que separa os mundos terreno e celeste,
desvalorizando tudo o que se encontra ao nosso redor, desconsiderando a realidade que sobre
nós mantém sua primazia para colocar como real tudo aquilo que se encontra fora dela ou
pelo menos estranho a ela.
Prosseguindo nessa linha de análise, especificamente no segundo item, a experiência
religiosa será trabalhada como consequência do vazio e das insatisfações daqueles que a ela se
entregam, traduzindo o tenso conflito em que vivem por não saberem separar o ideal do real,
existência e possibilidade, finitude e superação.
É importante observar que o pensamento feuerbachiano alerta para o perigo do
fechamento do homem em si quando se sente desafiado pela realidade. Por isso a religião, na
ótica feuerbachiana, é considerada um perigo ainda maior, pois apresenta este mundo como
inimigo do homem e de Deus e não dá o devido valor a esta vida, colocando toda a esperança
de uma vida melhor no paraíso celeste.
A incapacidade de lidar com tais questões ou a indiferença quanto à necessidade de se
buscar conhecer cada vez mais o seu interior leva o homem a mergulhar cada vez mais
profundo no mar da fantasia. A cada mergulho no fantástico mais se especializa em criar
mundos imaginários sem se dar conta de que na criação desses mundos está manifestando o
desejo de um mundo real diferente deste, tal como se nos apresenta.
71
No último item será colocada como proposta de análise a ruptura humana com sua
estrutura interior que surge como consequência da projeção no divino. Essa ruptura que se
processa de maneira gradativa e imperceptível sacrifica a condição do homem como sujeito
originário e verdadeiro que deve escrever sua história a partir de seus sonhos e projetos sem
atribuir a eles um estatuto de sobrenaturalidade.
A análise feuerbachiana da religião vem contribuir para a percepção do ser humano
como ser dotado de potencialidades ainda não desenvolvidas ou assumidas por aqueles que se
entregam às experiências tidas como religiosas. Tais potencialidades, uma vez trabalhadas e
desenvolvidas, são a contribuição necessária para religar o homem com sua estrutura interior
e para a ruptura deste com o processo que desencadeia a ruptura com ele mesmo.
O conteúdo deste capítulo e, especificamente, o do último item quer trabalhar
justamente essa contribuição de Feuerbach para o processo que deve ser desencadeado a partir
da própria experiência religiosa, ou seja, procurando servir-se daquela ruptura inicial que se
deu quando o sujeito religioso rompeu consigo mesmo para entregar-se às ideias religiosas,
alienando-se de sua interioridade para buscá-la num imaginário mundo além deste.
Inconscientemente imaginou poder sair de si para buscar-se a si mesmo fora de si.
O que a análise feuerbachiana quer mostrar é que tal procedimento pode ser
desestruturado desde que o homem passe a fazer as pazes com ele mesmo através do reencontro com sua estrutura interior.
Este último capítulo, com a abordagem acerca da experiência do divino, vem reforçar
o conteúdo trabalhado nos capítulos anteriores e confirmar a conclusão feuerbachiana a
respeito do que realmente traduz a experiência dita religiosa feita por aqueles que ainda não
tomaram consciência de sua essência e, por isso, continuam objetivando seus desejos.
No intuito de melhor entender como se opera esse processo de objetivação, que
dispensa o uso da razão e evidencia a primazia do sensível sobre o intelectual, o capítulo ficou
dividido obedecendo uma ordem de análise que procura estar o mais próximo possível da
sequência de raciocínio de Feuerbach.
4.1 Elementos de uma antropologia empírica
Procurando aprofundar no pensamento de Feuerbach para melhor compreender como
enxergava e analisava o mundo e qual o alcance de seu conceito de realidade, este item se
72
aterá à critica feita a toda tentativa de separar o homem de sua essência e da realidade
existente, pois somente neste mundo o ser é real e por isso existe.
O conhecimento acerca do mundo é que possibilita uma análise mais ampla acerca do
homem como peça de uma engrenagem mais complexa. Como ser exposto ao inesperado,
como extensão da natureza que se encontra em contínua metamorfose, o ser humano não pode
furtar-se do enfrentamento que deve administrar frente ao que se lhe apresenta como desafio
ou limite.
No decorrer desse item o ser humano será apresentado como ser sensível finito, mas
dotado de potencialidades e capacidade para superar seu limite neste mundo real que, na ótica
feuerbachiana, é tomado como espaço e oportunidade para a experiência do exercício de
infinitização do ser finito.
Certamente torna-se estranho procurar discorrer sobre uma possível experiência do
divino dispensando a compreensão acerca da realidade, pois tal compreensão auxilia na
experiência daquilo que não ultrapassa a Natureza, reconduzindo todo o ser ao ser sensível,
isto é, “ao ser existente sempre provido de determinação e qualidades intrínsecas: o ser é por
isso real somente como existência, realidade, mas a existência determinada é qualidade e só
graças à sua determinidade e na sua determinidade ele é algo.” (SERRÃO, 1999, p. 97).
Como o jovem Feuerbach lançava os alicerces de uma concepção de realidade que
instituía a independência do ser, torna-se necessário, portanto, compreender esta concepção
feuerbachiana de realidade, pois trata-se de um tema cuja evolução se processa numa linha
crescente de continuidade.
As raízes da ontologia feuerbachiana mergulham no período juvenil, configurandose aí na paralela demarcação da supra-humanidade e do supranaturalismo e sob a
contestação conjunta ao criacionismo e à concepção especulativa de realidade. A
primeira filosofia da Natureza, de cariz organicista e instituindo a precedência da
Natureza sobre o Espírito, cruza-se com uma ontologia que estabelece a
independência do ser relativamente ao pensamento, seja o pensamento criador ou o
pensamento lógico (SERRÃO, 1999, p. 95-96).
A análise feuerbachiana quer mostrar que a Natureza é reduzida a coisa segunda e
derivada quando se toma a criação de Deus a partir do nada. Seu surgimento “se encontra
suspenso da arbitrariedade de um ato inaugural que lhe é exterior e que, por ser aleatório,
torna a sua existência posterior inteiramente contingente.” (SERRÃO, 1999, p. 96). Feuerbach
evidencia o caráter vazio desse nada cristão, do qual, segundo ele, nenhum conteúdo pode ser
extraído.
73
Se este mundo for nada, também a existência que nele se processa nada é; a vida
humana será um curso transitório que decorre na passagem entre um começo e um
fim que a transcendem, sendo o aqui e agora somente o frágil interregno entre
ambos. Se este mundo for desvanecido, porque só uma zona dele corresponde à sua
essência, então também só será racional e verdadeira no homem aquela disposição
que o capta como verdadeira essência: o pensamento reflexivo, categorial ou lógico.
No seguimento da tradição religiosa fundada na separação de dois mundos, também
a velha filosofia desvalorizou “este mundo”, a realidade existente à nossa volta, e
colocava a verdadeira realidade num fundamento invisível situado para além dela ou
oculto nela (SERRÃO, 1999, p. 101).
No clássico A essência do cristianismo, Feuerbach apresenta a dúvida humana acerca
da criação – enquanto ato divino – como tradução do ateísmo. A simples curiosidade a
respeito de como Deus criou o mundo parece confirmar que o homem sempre o considerou
objeto da ciência. Assim afirma Feuerbach:
A questão de saber como Deus criou constitui indiretamente uma dúvida de que
Deus tenha criado o mundo. E foi com esta questão que o homem chegou ao
ateísmo, ao materialismo, ao naturalismo. Quem coloca tal pergunta já considera o
mundo como objeto da teoria, da física, isto é, na sua realidade, na determinidade do
seu conteúdo. Mas este conteúdo contradiz a representação da atividade
indeterminada, imaterial, desprovida de matéria. E esta contradição conduz à
negação da representação fundamental (FEUERBACH, 1994, p. 270).
Segundo Feuerbach, uma lógica especulativa – pois é o pensamento do pensamento –
jamais conseguirá explicar como que de um conceito de ser pode originar o ser determinado
ou se existe a possibilidade de o ser puramente pensado produzir a partir de si o movimento e
o devir.
O fragmento Zweifel, datado de 1827-1828, formulava em termos interrogativos a
dúvida sobre a possibilidade de estabelecer a passagem do pensar ao ser, ou do ser
pensado ao ser real no interior da categoria de ser puro: ‘como se relaciona o pensar
com o ser, como se relaciona a Lógica com a Natureza? [...] Estará fundamentada a
transição daquela a esta? Onde se encontra a necessidade, onde se encontra o
princípio desta transição? [...] Mas de onde sabes então que ainda há um outro
elemento? A partir da lógica? De modo algum.’ E adiantava como resposta o
imperativo de aceitar como primeiro o ponto de vista imediato e natural: Portanto, o
outro da Lógica não é deduzido da Lógica logicamente, mas ilogicamente, ou seja, a
Lógica só passa para a Natureza porque o sujeito pensante encontra previamente,
fora da Lógica, uma existência imediata, uma Natureza, e é impelido a reconhecê-la
graças ao seu ponto de vista, ou seja, natural (SERRÃO, 1999, p. 96).
A antropologia feuerbachiana pode ser caracterizada por uma desmitologização da
teologia, pois reduz a ideia de Deus e de todas as representações da dogmática cristã
almejando a promoção consciente de autoconhecimento do homem.
O programa que em Das Wesen des Christentums se materializa é, por conseguinte e
desde o fundo, um desígnio de esclarecimento, uma intenção de Aufklärung.
Feuerbach chega mesmo a qualificar o Grundgedanke, seu pensamento fundamental,
74
de “purer, radikaler Rationalismus”, de racionalismo puro, radical. Pela crítica da
“impureza” da razão teológica e pela promoção consciente de autoconhecimento do
homem, trata-se, no fundo, de proceder à revelação do segredo que permite dissipar
as trevas que peiam a abordagem da problemática religiosa: “das innerste Geheimns
der Religion und Theologie die Anthropologie ist”, “o segredo mais íntimo da
religião e da teologia é a antropologia” (BARATA-MOURA: MARQUES, 1993,
p.54).
Por negar a existência de um Deus transcendente e pessoal e por opor-se à concepção
cristã de divindade, o pensamento de Feuerbach é também denominado de ateísmo
antropológico.
O antropocentrismo de Feuerbach será, pois, um antropoteísmo: o homem é o único
deus para o homem e os atributos de Deus, que estão presentes no discurso teológico
cristão, deverão constituir a estrutura e a sequência do discurso antropológico. Por
isso, pode-se dizer que a crítica da religião é apenas o aspecto negativo de um
propósito positivo: a antropologia (SOUZA, 1993, p. 78).
Percebe-se que o homem religioso associa o Divino com o infinito e o ser humano
com o finito. Tal associação provém da aceitação daquilo que se configurou como negativo
proveniente do finito e como positivo vindo do infinito. Ora, se o homem religioso mantém
associada a ideia de negativo ao finito e, sendo o finito entendido como tradução da realidade
humana, consequentemente irá associar a ideia de positivo ao infinito. E, se o finito traduz a
realidade humana, sendo por isso negativo, não poderá, então, ser considerado Divino. Este
passa a ocupar lugar de destaque, ou seja, pertencente a uma outra esfera, a uma outra
dimensão, distante e diferente do mundo do ser limitado e finito.
Mas, na ótica feuerbachiana, uma nova compreensão surge e questiona a tradicional
maneira de lidar com o limitado, com o finito:
Porque a qualidade é o limite (Grenze) internamente constitutivo das coisas
individuais, o ser sensível finito é intrinsecamente dotado da capacidade para a
superação do seu limite, processando-se deste modo todo o desdobramento e
crescimento do real, não como a finitização de um sujeito infinito, mas,
inversamente, como o movimento de infinitização de cada ser finito: ‘Algo (Etwas)
é um determinado, as suas determinações ou a sua determinidade são o seu limite, a
sua negação [...], mas esta limitação, a finitude é, pois, negada, suprimida, e daí cada
algo é já infinito’ (SERRÃO, 1999, p. 97).
Como já fora ressaltado no capítulo anterior, na compreensão de Feuerbach, a religião
deve ser entendida enquanto processo pelo qual o homem objetiva sua essência interior,
transferindo-se para Deus. Assim, Feuerbach apresenta Deus e o homem como um único ser e
como um ser único em essência, porém uma essência alienada do ser humano. É o finito
projetando em Deus sua infinitude, sendo esta entendida como a capacidade de superação de
seu limite.
75
As qualidades de Deus são as qualidades humanas. Por isso afirma: “O homem
religioso está inteiramente satisfeito com o que Deus é em relação a ele – como homem, não
conhece outra relação – pois Deus é para ele o que pode ser para o homem em geral.”
(FEUERBACH, 1994, p. 27).
Na objetivação dos sentimentos e desejos, o ser humano deixa evidente sua busca
ininterrupta pela felicidade, pois a coloca como bem supremo, como valor absoluto29, como o
único e verdadeiro Deus de sua vida. “Deus deve sua existência somente ao instinto de ser
feliz que o homem possui, e que a religião não satisfaz a esse instinto a não ser na
imaginação.” (FEUERBACH, 1989, p. 169). Ainda afirma:
A religião é, portanto não só um objeto da imaginação, da fantasia, mas também um
objeto da faculdade apetitiva, do desejo e da ânsia do homem de evitar sentimentos
desagradáveis e proporcionar a si sentimentos agradáveis, de conseguir o que não
tem, mas que gostaria de ter e se livrar do que tem, mas que gostaria de não ter,
como por exemplo, esse mal, essa deficiência, em síntese, ela é um objeto do desejo
do homem de se livrar dos males que ele tem ou teme e conseguir o bem que ele
deseja, que sua fantasia lhe mostra – ela é objeto do chamado instinto de busca da
felicidade (FEUERBACH, 1989, p. 168).
É importante observar que Feuerbach trabalha a questão da felicidade como valor
absoluto sem dissociá-la da sensibilidade que, dentro de sua ótica, traduz a exigência da vida.
O ser humano deve participar do dinamismo da vida, procurando se realizar através da
concretização de suas necessidades sem perder de vista a importância e necessidade de tudo
realizar de maneira equilibrada.
A felicidade é uma realidade, e daí uma noção inabarcável, não se encerrando na
acepção restritiva de um conjunto de bens empíricos e privados, e inquantificável,
pois excede todo e qualquer critério matemático de avaliação. Apenas pode referir
uma qualidade, aquela qualidade que assinala a equivalência entre ser e ser bem,
entre estar e estar bem, e de que o equilíbrio natural pode ser tomado como
longínquo paradigma, mas que não pode ser atribuída a um qualquer fim da
natureza, pois esta só protege a vida no plano mais global da conservação da
espécie, sem cuidar dos indivíduos. Em sentido humano, a felicidade aproxima-se de
um estado dinâmico em que diversos impulsos, individualizados e diferenciados em
cada indivíduo, se encontrariam, cada um deles, no movimento expansivo que tende
para a realização e, no seu conjunto, reciprocamente harmonizados. Trata-se, em
todo o caso, de um equilíbrio ativo e não estático, manifestando uma tendência
expansiva e progressiva, e no qual o próprio todo se renova momento a momento
(SERRÃO, 1994, p. 321).
29
Sobre a felicidade como valor absoluto, afirma Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “o objetivo
primeiro da argumentação de Feuerbach consiste em mostrar que nenhum outro valor além da felicidade pode
ser assumido como absoluto e incondicionado, pois só ela traduz a exigência da sensibilidade como totalidade e
respeita a plenitude e potenciação de ser contidas na noção englobante de Vida.” (SERRÃO, 1994, p. 320).
76
O comportamento do homem religioso revela a distinção que realiza entre aquilo que
considera divino e não divino, o que pode e deve ser adorado30 e o que não pode nem deve ser
adorado. “Assim, o objeto do homem não é outro que sua essência objetiva. Tal como é o
pensamento do homem, tais serão seus sentimentos, tal será seu Deus.” (HAHN, 2003, p. 99).
Na linha da análise feuerbachiana da religião e, especificamente, do cristianismo, fica
evidenciado o uso da religião como instrumento destinado a preencher os vazios, acalmar e
exorcizar os medos, escutar os clamores, saciar os desejos. “Deus é a ânsia de felicidade do
homem satisfeita na fantasia. Se o homem não tivesse desejos, não teria religião nem deuses,
apesar da fantasia e do sentimento.” (FEUERBACH, 1989, p. 168).
Torna-se necessário ressaltar a análise feuerbachiana do desejo, mostrando como se
processa e qual sua importância para a análise da religião a partir dessa ótica. Mais do que
simplesmente psicologizar a análise do ser humano ou a crítica da religião, o pensamento de
Feuerbach acerca do desejo quer justamente realçar o poder e a força propulsora que se
encontra no íntimo do homem, capaz de alavancar todo e qualquer investimento ou mudança.
A análise feuerbachiana do desejo não se processa apenas na mostração de uma
estrutura humana fundamental, isolada e distinta das outras. Traz à luz a importância
de um mecanismo profundo que confirma o primado do sensível sobre o intelectual:
‘Assim os olhos dos homens não alcançam mais longe do que os seus desejos.’ São
necessidades e desejos que fazem mudar as verdades racionais, assim como a
própria vontade é, na origem, desejo e possibilidade, motivo pelo qual ‘os homens
sem desejos são mortos, cadáveres, quando muito, como entre os Gregos, colunas
belas, mas frias como o gelo.’ Se prevalecesse apenas o querer previamente
assegurado da vontade, não haveria tempo, nada se alteraria, apenas se confirmaria o
que já há e o que já se é. Nada mais haveria do que a atualidade reiterada; o futuro
seria um constante presente, a cada momento confirmado e repetido (SERRÃO,
1999, p. 370 - 372).
Em relação à história da humanidade, Feuerbach a analisa a partir da história das
religiões como um processo desencadeado e sustentado pelas emoções, projetada pelas mais
diferentes carências e desejos. Assim, Feuerbach afirma serem os desejos os verdadeiros
condutores da história e que os rumos da história só mudam em consequência da mudança dos
desejos, sejam eles explícitos ou não.
30
Na obra Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma o seguinte, quanto à questão do que pode ou
não ser adorado: “A palavra deus, divindade, é originariamente apenas um nome genérico, mas nenhum nome
próprio, que a palavra deus não é originariamente um sujeito, mas um predicado, isto é, não um ser mas expressa
uma qualidade que é usada e cabe em qualquer objeto que surja diante do homem como um ser divino, à luz da
fantasia, que cause no homem, por assim dizer, uma impressão divina. Por isso qualquer coisa pode ser um deus
ou, o que dá na mesma, um objeto da adoração religiosa. Digo que dá na mesma um deus ou um objeto da
adoração religiosa porque não existe outra característica da divindade a não ser a adoração religiosa: um deus é o
que é adorado. Mas um objeto só é adorado quando e enquanto for uma entidade, um objeto da fantasia ou da
imaginação.” (FEUERBACH, 1989, p. 151).
77
Também a história, entende-a Feuerbach não como processo transparente e lógico,
mas movido por dimensões sensíveis, emocionais, perspectivada e projetada pelos
desejos e carências. A força dos desejos muda na história e muda a história, e a
diversidade das religiões mais não é do que a mutabilidade dos desejos e das
necessidades. Ao abordar privilegiadamente a história da Humanidade através da
história das religiões, Feuerbach confirma a revelação positiva da dimensão
profundamente enraizada de um querer-ser da fantasia criadora de mundos possíveis,
que se exprime no mundo do sonho acordado e nas representações do destino e do
fim, do sentido da vida e da morte. Se todos os desejos possuem orientação
antecipadora e futurizante, os mais pregnantes são aqueles que respondem à
expectativa do destino e que preenchem o conteúdo do próprio futuro: ‘o homem
não se preocupa com aquilo que foi antes do seu nascimento, mas apenas com o fato
de viver no futuro, e de viver com felicidade.’ Aqui se situa o imenso campo
simbólico, que cristaliza e fixa o objeto desejado e onde o desejo reina como senhor
absoluto, nas representações religiosas, nas narrativas dos Deuses e relatos nos céus,
símbolos concretizados e personificados como realidades. A inventariação
conduzida na Theogonie mostra como, apesar da diversidade das religiões históricas
se mantêm, enquanto manifestações culturais persistentes, alguns desejos típicos. Os
mitos da criação primordial, do começo e da origem, o desejo da juventude e vida
duradoura, do amor, da justiça e da felicidade desvendam através de uma expressão
simbólica constantes antropológicas (SERRÃO, 1999, p. 370 - 372).
No decorrer da história humana, Deus sempre fora idealizado como Aquele único
capaz de responder a todas as necessidades, de dar sentido a tudo aquilo que sem o seu auxílio
e interferência seria absurdo e impossível. Percebe-se, portanto, que o homem religioso, a
partir de suas necessidades, cria o Deus de seus desejos e toma essa criação como tradução e
sustentação da necessidade de Deus – entendido como sobre-humano –, não admitindo que
seja a busca de sua própria satisfação. “Deus é então representado como um ser que realiza os
desejos e ouve os pedidos.” (FEUERBACH, 1989, p. 169).
Em consonância com a análise feuerbachiana da religião, afirma Jean-François
Catalan:
Quando se fala ‘necessidade de Deus’ surgem algumas dificuldades, como a de
transformar Deus em objeto, até mesmo em objeto de consumo, unicamente
destinado a satisfazer necessidades, desejos, e vontades – para não dizer caprichos –
dos pobres seres humanos que somos. Ao definir a religião como “ópio do povo”,
Marx se referia a esse tipo de Deus desmobilizador, que despoja o homem daquilo
que faz a sua grandeza de homem, retirando-lhe a possibilidade de assumir a sua
finitude, de aceitar a sua morte, como também de combater pelo advento de um
mundo mais justo e mais humano. “Como quem é consolado por sua mãe”, dizia o
profeta Isaías (capítulo 66): um “Deus-mamãe”, não teria outra função, senão de
adormecer o homem infante aliviando os seus temores. Mas esse sono tem um gosto
de morte. O homem que concebe um Deus assim, o concebe apenas em função de
seus próprios desejos, de seus próprios temores e de suas próprias necessidades. Ao
invés de abrir-se à presença, ao apelo, ao encontro de um outro, ele se fecha, apesar
das aparências, numa atitude puramente egocêntrica, narcisista, onde o que conta é
só ele, sem referência aos desejos do outro (CATALAN, 1999, p. 70).
Diante das dificuldades e desafios com os quais se depara no seu dia-a-dia, o ser
humano percebe-se frágil para lidar com tais situações que se tornam ameaças aos seus
desejos, sonhos e ao seu instinto de ser feliz.
78
Devendo assumir os desafios como ser capaz de administrá-los com sua força e
sabedoria, nega-se a si mesmo para buscar auxílio na sua essência objetivada31 – tomada
como uma força exterior – num deus imaginário, fantástico, ilusoriamente fora dele, mas que
se encontra no seu interior.
Assim como o sentimento faz parte da essência subjetiva da religião, assim outras
forças, atividades e potências também o fazem. Deus é estas qualidades em sua
pureza. A existência delas em nosso ser individual surpreende tanto que chegamos a
pensar que são uma natureza fora de nós. Atribuímo-las a um Deus objetivo e
exterior. Esta é, pois, a alienação religiosa: atribuir os atributos próprios da essência
humana a uma existência imaginária e estranha. Um engano! Porque é a nossa
própria essência humana que temos por objeto nestes momentos. É a partir deste
engano que se constitui a religião (SCHUTZ, 2001, p. 24).
A análise feuerbachiana vem mostrar que, nessa perspectiva, Deus recebe a missão de
acolher e satisfazer os desejos humanos reforçando, automaticamente, a crença de que só ele
é, de fato, capaz de realizar tamanha façanha. Paradoxalmente, tal mentalidade apenas
evidencia a soberania dos desejos humanos que no cristianismo assim como em outras
religiões sustentam a crença no divino como garantia suprema da concretização da felicidade.
Não se pode negar, portanto, que o fim da religião é fundamentalmente o ser humano.
Embora não assuma as suas necessidades em sua imediatez, procura administrá-las via
mediação ascética, através de Deus. Mas este não é o caminho, pois Feuerbach esclarece que:
A transcendência não é mais do que a fixação de um desejo hiperbólico; o divino, a
máxima condensação do desejo-limite. Os deuses são os ‘pleonasmos do coração
humano’, formados e fixados pelos mecanismos de reduplicação (Reduplikation,
Verdoppelung) e de incremento (Augmentation, Vermebrung). Por esta razão não
poderia encontrar-se em Feuerbach qualquer pensamento ou promoção da “morte de
Deus”, o qual é a soma de ideais humanos, o motor coletivo de esperanças e sonhos.
Esta identidade reiteram-na algumas das principais definições explicativas do
divino, seja como ‘futuro antecipado’ (antizipierte Zukunft) ou como a compensação
de ‘esse algo que falta’ (dieses fehlende Etwas). Em suma, como o ideal que
preenche o espaço entre o não ser e o ser, acompanhado do esforço para se ser:
‘Deus é somente o ideal, a ideia, que o homem deve e quer realizar. [...] Aquilo que
impulsiona os homens, os anima, os determina, os enlaça entre si, o que os torna
dignos de valor e lhes dá preço por eles mesmos, é o seu princípio, o seu Deus’
(SERRÃO, 1999, p. 373).
31
Segundo Paulo Hahn, no livro Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach, o
pensamento feuerbachiano “tenta demonstrar efetivamente que há uma identidade entre sujeito e objeto, isto é,
que o objeto da religião é idêntico ao da consciência, ou seja, tanto os objetos espirituais como os sensíveis não
são mais que a essência objetivada. Em função disso, a concepção acerca da religião deve passar
necessariamente por uma transformação, ou seja, a relação que fora entendida como consciência de Deus passa a
ser nada mais e nada menos que autoconsciência. Deste modo, a oposição entre indivíduo e divindade, na
verdade, é uma ilusão, que não passa de oposição que existe entre o indivíduo humano e a essência humana
objetivada. Assim, o Deus que o homem imagina não é o Deus verdadeiro em si mesmo, mas é um Deus que o
homem pensa ser assim, porque está nas possibilidades de sua imaginação.” (HAHN, 2003, p. 101).
79
A partir do pensamento de Feuerbach, fica realçado o significado de relação32 que
existe na religião: “primeiro, como relação entre o homem e Deus; depois, como relação entre
o homem e sua essência, o gênero, o outro, até chegar a encontrar seu verdadeiro núcleo e
realização nas relações humanas.” (SOUZA, 1993, p.74).
Coincidindo a essência da religião com a consciência que o homem tem de si mesmo,
fica evidenciado que o objeto religioso está intrinsecamente presente no ser humano. Portanto,
a religião pode ser caracterizada como a consciência do infinito enquanto essência divina
mesma. Assim, vamos percebendo que a essência humana nada mais é que a essência
considerada divina, uma vez evidenciada a identidade entre consciência e própria essência.
É nessa perspectiva que Feuerbach nos leva a concluir que o homem, e é aí que
reside o mistério da religião, objetiva a sua essência, em seguida constitui-se a si
próprio como objeto desse ser objetivado, transformado num sujeito e numa pessoa;
ele pensa-se, é o seu próprio objeto, mas como objeto de um objeto, de um ser
diferente de si (HAHN, 2003, p. 104).
A antropologia feuerbachiana trabalha os aspectos constitutivos do ser e devolve ao
ser humano tudo aquilo que por ele fora transferido para a esfera do divino. Analisando o ser
na sua natureza e “reconduzindo-o ao ser sensível (sinnliches Sein) provido de determinação e
qualidades intrínsecas” (SERRÃO, 1999, p. 97), Feuerbach propõe a sensibilidade como uma
atividade fundamental em todo o processo de conhecimento e a ela atribui a força corretiva de
todo pensamento puramente especulativo.
Conclui-se, a partir desse item trabalhado, que a sugestão da negação de Deus ao invés
da negação do homem mostra que a negação do divino nada mais é senão a negação da
negação do homem, a negação de tudo aquilo que o desumaniza e o distancia de sua essência.
Daí percebe-se a importância da contribuição de Feuerbach para levar adiante a luta por uma
geração que coloque como prioridade da filosofia o ser humano.
Sua luta foi travada não somente contra a filosofia especulativa, mas também contra a
religião moderna que, como já fora pontuado, sustentava toda uma estrutura voltada para os
interesses de uma pequena classe dominante.
32
Sobre o significado de relação na religião, servimo-nos da análise do pensamento feuerbachiano feita por
Draiton Gonzaga de Souza, no livro O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach: “a atitude ou maneira da
relação religiosa não é definida explicitamente por Feuerbach, mas, pelo contexto e valoração que lhe dá, se
entende que se trata de algo sagrado, essencial ao homem, que, de uma maneira radical, realiza e expressa a
essência humana, pois assim como a consciência que o homem tem de Deus é autoconsciência de Deus, assim
também a consciência da essência é a autoconsciência; ou, assim como a relação com Deus era considerada
constitutiva da essência humana, assim é agora considerada essencialmente constitutiva da essência do homem e
de sua autoconsciência a relação com o outro, com o gênero” (SOUZA, 1993, p. 74).
80
A negação de Deus é, portanto, também a negação de uma ideologia política e social
que usufruía e ainda usufrui da alienação desenvolvida e sustentada pelas ideias religiosas que
procuram desviar a atenção do homem para as “coisas do céu”, para o gozo no paraíso celeste.
4.2 A experiência religiosa como fruto do vazio ou da tensão entre realidade e
idealidade, existência e possibilidade, finitude e superação
Será observado neste item que qualquer análise sobre a experiência religiosa requer o
estudo das motivações que brotam do íntimo do ser humano. É praticamente impossível
analisar a experiência religiosa sem procurar conhecer o universo interior e até mesmo
exterior daqueles que se refugiam nas suas crenças.
No decorrer da história humana, o homem vem procurando, de várias maneiras,
respostas para suas dúvidas e soluções para seus problemas, mas, muitas vezes, deixa de
conduzir essa busca no único caminho capaz de levá-lo ao encontro consigo mesmo.
A análise feuerbachiana sugere como pedagogia o olhar para si e para o mundo
confirmando assim a influência deste mundo sobre o universo interior de cada homem e de
todos como humanidade. Certamente tal olhar não pode negar o exercício da sensibilidade,
pois se trata de uma experiência por excelência sensível.
Na experiência religiosa percebe-se o movimento de duas forças que se atraem:
daquela que é afetada e da outra que afeta. Dá-se, portanto, a efetivação de um processo que
só pode existir graças a um impulso necessário que traduz a própria dinâmica da natureza.
Como ser de relação, o ser humano não pode ancorar-se num mundo outro que
dispensa essa dinâmica do encontro. E todo e qualquer encontro só e possível graças à
experiência sensível. Por isso, na experiência religiosa, deve-se buscar conhecer as forças
motivadoras de tal experiência para, a partir desse conhecimento, analisarmos seu poder de
influência no coração e na mente daqueles que a ela se entregam.
Para tanto, torna-se necessária a busca de compreensão daquilo que faz parte da
intimidade do ser e tal busca só é possível através da experiência sensível.
Diversamente das outras estruturas, patentes e reconhecidas por cada um em si e em
todos os outros, a intimidade apenas pode ser reconhecida por cada sujeito em si
mesmo. Sentida na experiência do seu próprio interior, como o sentimento do que
lhe é mais próprio e exclusivamente seu, é vivenciada no movimento de introversão,
na direção intencional para dentro de si. Trata-se de uma experiência eminentemente
81
sensível, pois apenas o ser sensível possui a capacidade de um acesso tão íntimo,
sentindo no seu interior o emergir do seu próprio fundo como o mais profundo de si
mesmo (SERRÃO, 1999, p. 294).
O que se observa a partir do pensamento de Feuerbach é que o homem, no seu íntimo,
anseia por uma vida diferente daquela que se lhe apresenta e, tomando esta vida como desafio
que lhe provoca angústia e vazio, pois se sente incapaz e sem recursos capazes de lhe tirar
dessa situação, idealiza uma vida melhor que lhe dê condições de viver na mais completa
felicidade mediante a realização de seus desejos. Assim, na experiência religiosa, o homem
busca amparo em Deus como aquele único capaz de solucionar os problemas, de dissolver as
dificuldades e de lhe dar condições para superar os desafios.
O homem não tem o sucesso de seu empreendimento em sua mão. Entre o desejo e
sua realização, entre a meta e sua execução está um abismo de dificuldades e
possibilidades que podem frustrar o intento. Por mais excelente que seja meu plano
de batalha, vários acidentes, tanto naturais quanto humanos, uma tempestade, uma
perna quebrada, a chegada casualmente tardia de um esforço e acidentes
semelhantes podem frustrar meu plano. Por isso o homem, através da fantasia,
preenche esse abismo entre a meta e a sua execução, entre o desejo e a realidade,
com um ser de cuja vontade ele julga dependerem todas essas circunstâncias e cujo
favor basta que ele implore para se certificar, em sua imaginação, de um desenlace
feliz para seu intento, da realização de seus desejos. O homem não tem sua vida em
suas mãos, pelo menos incondicionalmente; qualquer causa externa ou interna, ainda
que seja apenas o rebentar de uma veiazinha em minha cabeça, pode acabar de
repente com minha vida, pode me separar da mulher e dos filhos, dos amigos e
parentes sem eu querer nem saber. Mas o homem quer viver; a vida é pois o cerne de
todos os bens! Por isso transforma o homem (por causa de seu instinto de
conservação ou por causa de seu amor à vida) espontaneamente esse desejo num ser
que tem olhos, como o homem, para ver suas lágrimas, e ouvidos, como o homem,
para ouvir seus lamentos (...) (FEUERBACH, 1989, p. 170).
Fazendo a experiência do seu próprio interior, descobrindo e sentindo o que lhe é
exclusivamente seu, o ser humano acaba por descobrir que sua presença neste mundo é
marcada por situações extremamente inesperadas e desafiadoras que lhe cobram ações e
reações à altura de sua capacidade de lidar com o complexo e assustador. Mas, enquanto
estiver se protegendo das intempéries da vida, servindo-se da religião para esquivar-se da
missão de protagonizar humanamente sua história, o homem religioso estará desumanizandose ao colocar como modelo de homem, de vida e de mundo aquilo que não existe a não ser na
idealização.
Quando assim idealiza, o homem religioso revela o que ainda não é ou o que ainda não
possui e, por isso, entrega-se ao culto de um ideal tomado como superior e oposto à sua
própria natureza. Assim afirma Feuerbach:
82
O ideal tal como é objeto da religião, assim como o da cristã, não pode ser nosso
modelo. O Deus, o ideal religioso, é sempre uma entidade humana, mas de maneira
a se filtrar dela uma série de atributos do homem real; não é a essência humana total,
é apenas alguma coisa do homem, algo arrancado ao todo, um aforismo da natureza
humana (FEUERBACH, 1999, p. 213).
Na ótica feuerbachiana o termo ideal revela todo um universo de desejos considerados
como tradução fidedigna do anseio por um mundo que ainda não existe, mas que pode existir.
Até aqui nada de mais. O problema surge quando o homem passa a acreditar que esse outro
mundo possível seja real, mesmo fora da realidade.
Tudo o que o homem ainda não é realmente mas um dia acredita e espera ser, tudo o
que é portanto apenas objeto de desejo, do anseio e, exatamente por isso, que não é
objeto da contemplação sensorial mas apenas da fantasia, da imaginação, tudo isso
chama ele de ideal, em alemão um Ur-, Vor- e Musterbild, isto é, uma imagem
original, imagem primitiva e um modelo. O Deus de um homem ou de um povo
(pelo menos de um povo que não permanece sempre, como o rude, num mesmo
lugar, no solo da rudeza) que quer progredir e que tem por isso uma história (porque
a história só tem sua origem no instinto e no anseio que o homem tem de se
aperfeiçoar, de conseguir para si uma existência razoável), o Deus de um tal povo
nada mais é que o seu ideal. “Deveis ser perfeitos como vosso Pai no céu é perfeito”,
lemos no Novo Testamento. E no Antigo Testamento lemos: “Eu sou o Senhor
vosso Deus, por isso deveis vos santificar para que vos torneis santos, porque eu sou
santo”. Quando sob religião nada mais se entende do que o culto de um ideal em
geral, tem-se total razão quando de desumana a supressão da religião, porque é
necessário que o homem estabeleça uma meta, um modelo para seu anseio
(FEUERBACH, 1989, p. 213).
A análise feuerbachiana do ideal aponta para o potencial humano ainda não conhecido
e, por isso, não administrado como força motriz para todo e qualquer investimento na
construção de um futuro melhor a partir do protagonismo consciente que coloca como meta a
transformação deste mundo.
Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma que toda crença ou
concepção só se mantém ou é tida por verdadeira se, de fato, tornar-se consolo, corresponder
ao amor próprio do ser humano. Assim, quando o homem se vê desafiado pelas forças da
natureza, pelas circunstâncias diversas que nele desencadeiam qualquer tipo de tensão seja
entre realidade e idealidade, entre existência e possibilidade ou entre finitude e superação,
busca – na experiência religiosa – a proteção do transcendente, sendo procurado e adorado
como “ser antropomórfico, que ama o homem, um ser com vontade e razão, que dirige e rege
a natureza de uma maneira conveniente para o homem, que toma o homem em sua especial
proteção, protege-o dos perigos que o ameaçam a todo instante.” (FEUERBACH, 1989, p.
173).
A experiência do real, da existência e da finitude, podendo ser tomada como
experiência contrária à religiosa, é apontada por Feuerbach como o caminho para a superação
83
dos medos do homem religioso e como reação ao esvaziamento do ser humano que se dá com
a projeção num ser transcendente. Por isso afirma:
Quando o homem abre os olhos e encara a realidade como ela é, sem se ofuscar com
concepções religiosas, então o coração se revolta contra a ideia de providência, por
causa do partidarismo com o qual ela salva uns e deixa sucumbirem os outros,
determina uns à felicidade e à fortuna e outros à infelicidade e à miséria, por causa
de sua crueldade ou pelo menos inação com a qual submete milhões de homens aos
mais terríveis sofrimentos e martírios. Quem pode conciliar os terrores do
despotismo, da hierarquia, da crença e da superstição religiosa, da justiça criminal
pagã e cristã, os terrores da natureza, assim como a peste ou a cólera, com a
providência divina? Os teólogos e filósofos crentes empenharam de fato toda sua
inteligência para conciliar essas contradições evidentes da realidade com a ficção
religiosa de uma providência divina; mas é muito mais condizente com a dignidade
de Deus ou de um Deus, negar categoricamente sua existência do que tentar garantir
penosamente sua existência através de vergonhosos e tolos sofismas e truques que
tramaram os teólogos e filósofos deístas para justificar a providência divina. É
preferível sucumbir honradamente do que continuar a viver na desonra
(FEUERBACH, 1989, p. 173).
A relevância da contribuição de Feuerbach traduz-se pela sua preocupação e interesse
em conscientizar o ser humano da sua força e importância na mudança dos rumos da história
da humanidade, pois ao evidenciar a potencialidade humana para execução de projetos
totalmente independentes da crença num ser divino que tudo comanda segundo seus critérios,
coloca nas mãos do homem os instrumentos para a construção de novos caminhos, tendo
agora como critérios o bem-estar da sociedade.
As consequências da escolha feita pelos que se deixam guiar pelo sentimento religioso
podem ser sentidas e detectadas no dia-a-dia da sociedade. Prisioneiros de um mundo
idealizado, deixam de honrar seus compromissos como cidadãos deste mundo. “A convicção
de que exista fora do homem um Ser onipotente e onisciente induz o homem a considerar já
realizada em Deus toda perfeição, e, portanto, o leva a desistir de tentar realizá-la no mundo
humano com a cultura, as artes e as ciências.” (ROVIGHI, 1999, p.73).
Na tensão entre realidade e idealidade o pensamento religioso comete um “pecado”
contra a humanidade ao sugerir refúgio no obscurantismo da religião33, transformando os
33
No colóquio comemorativo dos 150 anos da publicação de “A essência do cristianismo”, intitulado Pensar
Feuerbach, José Barata-Moura escreve no capítulo Esclarecer significa fundamentar. Alienação e alteridade em
Das wesen des christentums de Ludwig Feuerbach: “E Feuerbach tira mesmo, num texto de 1842, a
consequência política que decorre da imolação – não esclarecida – nos altares da obscuridade: ‘Quem é servo
dos seus sentimentos religiosos não merece também politicamente senão ser tratado como servo. Quem não tem
poder sobre si próprio também não tem a força, não tem o direito, de se libertar da pressão material e política.
Quem em si próprio se deixa dominar por seres obscuros, estranhos, permanece também exteriormente na
obscuridade da dependência de poderes estranhos. E quem, portanto, fala a favor do sentimento religioso – em
oposição à liberdade do pensar – é um inimigo das “luzes” e da liberdade, fala a favor do obscurantismo’.”
(BARATA-MOURA, 1993, p. 50-51).
84
homens em inimigos deles mesmos, forçando-os a deixarem de lado ou a condenarem a
liberdade de pensar e de agir, pois tal liberdade contraria as determinações divinas.
Feuerbach vai justamente mostrar que “a religião é um artifício humano que joga as
aspirações de felicidade do ser genérico humano para o além, fazendo com que o aquém
permaneça tal e qual está.” (SCHUTZ, 2001, p. 57).
Observa-se a importância da análise feuerbachiana da religião para a transformação da
sociedade, pois mostra que aquilo que o homem religioso procura alcançar através da
experiência religiosa – considerada como caminho para a superação de suas incapacidades – é
apenas e simplesmente reflexo de suas capacidades próprias como ser genérico e que o
sentimento do homem perdido de si na verdade realça as potencialidades do ser humano
entendidas como autoconsciência. Assim, Deus passa a ser considerado como um erro
didático que auxilia o ser humano a perceber suas qualidades, verdade e virtude.
Deus, nada mais é do que a essência humana, ou seja, a espécie humana, a
humanidade intrínseca dos homens particulares abstraída deles e apresentada como
se existisse em si, fora de todos, como se fosse a verdade transcendente. Deus é
então um erro psicológico; erro este que, contudo, tem seu valor didático, pois serve
para expor aos olhos dos homens a verdade e a virtude gerais deles mesmos, porque
não é mais do que o conjunto das boas qualidades humanas reunidas num objeto
aparentemente real que passa por ser a imagem da perfeição de que carecemos. A
Imitação de Cristo, nessa ordem de ideias, ao pregar a renúncia do homem, em
verdade ensina e prega a imitação do Homem. Cristo, quando se fizer a nova
revolução de Copérnico, há de ser cultuado como o Homem Verdadeiro feito Deus e
não como o Deus Verdadeiro feito Homem. A “redenção dos homens” não significa,
por conseguinte, o reatamento da aliança com Deus, mas antes o reatamento da
aliança entre os homens, aquela que deve ter vigorado no Éden antes da “queda”. O
pecado original deve ser reinterpretado, a partir dessas razões como a “alienação”
dos homens pela “abstração” do homem enquanto espécie, do homem universal na
figura de Deus. A essência do cristianismo, o enigma revelado de Cristo, é o
homem, não é Deus. Esta seria a verdadeira mensagem da religião universal cristã,
já oculta nas profecias do Messias, que a faz superior às demais religiões, pois não
se prende a povos particulares nem a deuses nacionais, mas ao homem universal, à
espécie humana vista como Deus (ARTHUR, 2006, p. 73-74).
O homem, portanto, é sua própria religião, seu próprio Deus. O único responsável pela
transformação de sua história e da história de seu meio. Esta consciência trava, portanto, uma
luta contra o caráter ilusório, fantasioso da religião que sempre surge a partir das necessidades
humanas. A religião, como bem nos mostra Feuerbach, “deixa de assumir as necessidades
humanas na sua imediatez e crueza, mas responde-lhes com a mediação ascética, de Deus, o
rodeio objetivador descrito antes, isto é, soluciona-as ilusoriamente.” (SOUZA, 1993, p. 69).
Percebe-se a partir das análises de Feuerbach que, na experiência religiosa, o homem
desvia o seu olhar das necessidades deste mundo para focá-lo num mundo idealizado,
entendido como superação da realidade concreta. A tensão entre realidade e idealidade vivida
85
por quem participa da religião parece ser superada mediante a crença de um poder
infinitamente superior daquele que comanda o imaginado além e que promete um mundo
vindouro quimérico. Assim, para Feuerbach:
A única e máxima mudança possível a um ser real é o seu autoesclarecimento. Este
se dá seja por meio da conscientização de seu conteúdo essencial (pela educação,
por exemplo), seja através da desalienação recuperadora desse mesmo conteúdo
humano (pela crítica da religião ou da filosofia); qualquer outra transformação que o
leve para fora de si mesmo, a uma experiência nova, só pode ser alcançada
ilusoriamente como resultado de um processo de abstração, que é tarefa urgente da
filosofia desmentir. Toda modificação enriquecedora se dá, pois, exclusivamente no
nível da consciência do homem, no lado subjetivo de sua realidade, em virtude da
34
razão, do amor e da vontade (ARTHUR, 2006, p. 77-78) .
A consideração deste tópico, que toma a experiência do transcendente como resultado
do vazio ou da tensão entre existência e possibilidade, realidade e idealidade, finitude e
superação, leva em consideração o tipo de relação que o indivíduo mantém com a vida.
Relação esta que traduz pura infelicidade, brotada do sofrimento35 que, por sua vez, leva este
ser infeliz a buscar o divino e, neste divino, a buscar uma compensação psicológica de
satisfação e meio de consolação.
Termos como infelicidade (Ungluck) e carência (Bedurfnis), como indigência (Not)
e miséria (Elend) acentuam a passividade e o sofrimento como raiz e a origem ou, o
que é equivalente, como a gênese da gênese da religião. O sujeito fecha-se em si,
aparta-se do mundo e dos outros, não devido ao desconhecimento teorético do
gênero humano ou uma relação inadequada e não consciente com a sua essência,
mas em virtude de uma relação infeliz com a vida. Apenas o sofrimento, que
desponta numa subjetividade profundamente vulnerável e implantada na vida, e não
indiferente a ela, pode, em última instância, provocar uma situação de hipersubjetivismo. Porque sofre, o homem mais infeliz é também o mais subjetivo. Não
que sua consciência reflita diretamente e de modo transparente a existência, mas
precisamente por refletir o modo como ela foi já subjetivamente vivenciada e
experimentada no coração (Herz) e no ânimo (Gemut) (SERRÃO, 1999, p. 69).
A crítica feuerbachiana da religião se dá em decorrência do que considera uma ameaça
à autonomia humana. O homem não pode simplesmente resignar-se frente aos desarranjos da
34
Sobre o processo de abstração exposto nesta citação, o mesmo comentador de Feuerbach assim esclarece:
“abstrair implica, pois, situar a natureza fora dos seres naturais, a espécie fora dos espécimes individuais, a
essência fora da existência, a humanidade fora do ser humano. Fora de cada um e entre todos não há, portanto,
nada: a totalidade se encontra no ser individual.” (ARTHUR, 2006, p. 74).
35
Sobre a questão do sofrimento e sua relação com a religião, temos o seguinte comentário de Adriana
Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “A associação entre religião e sofrimento remonta à Introdução à
Lógica e Metafísica, ressalvando a diferença de que, para Feuerbach, espiritualista dos anos 30, a filosofia não
tinha que se preocupar com o vale de lágrimas e a miséria dos homens: ‘os homens infelizes são, como se sabe,
habitualmente os mais subjetivos; a infelicidade, a pressão e a opressão do exterior conduzem o homem que só
fixa o negativo da consciência eleva-se diretamente à intuição do negativo, como um absoluto.’ Einl. Logik, 102103.” (SERRÃO, 1999, p. 68-69).
86
vida, pois assim procedendo deixará de descobrir cada vez mais sua força e seu potencial
transformador. E, assim, continuará desacreditado de si e sem “fé” na humanidade.
Feuerbach critica a religião por não dar a devida importância à vida presente pondo
toda a esperança de libertação no céu. Por isso o homem religioso, segundo ele, não
se compromete com a mudança e transformação, com a justiça, o sofrimento e a
miséria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas coisas resignadamente
sem lutar contra elas, projetando nossa felicidade no outro mundo (ZILLES, 1991, p.
102-103).
O pensamento de Feuerbach se desenvolve dentro do que se pode considerar filosofia
materialista, pois reconhece e ressalta a autoridade da verdade contrapondo o conceito
materialista deste mundo e a realidade desta vida à experiência religiosa – tomada como
ilusão –, reforçando assim a ideia de que só a verdade da vida deve constituir a base da
humanidade e da moralidade.
O humanismo feuerbachiano consiste em ajudar o homem a encontrar seu lugar na
vida e também nela estimular o desejo de dedicar seus esforços diretamente à
humanidade, de sorte que sua vida, plena de riquezas espirituais, se torne uma
felicidade terrena, e não um mero preparativo para a recompensa no outro mundo.
Feuerbach propõe o amor ativo pelo ser humano e a incompatibilidade com as
ilusões, mitos e ideias que o impedem de viver uma vida revestida de significação
social. Pois a necessidade de fazer o bem aos outros e de não pensar apenas em seus
próprios interesses exige a emancipação da consciência do homem, que impõe a
necessidade de libertá-lo de muitas ilusões e superstições acerca da sociedade
justificada teologicamente (HAHN, 2003, p. 77).
Não se pode negar que a experiência religiosa propicia certas satisfações àqueles que a
fazem. Feuerbach não nega tal verdade facilmente constatada no cotidiano daqueles que
acreditam na oferta de alívio nas angústias e aflições, consolo diante das provações,
minoração do sentimento de culpa, perdão das faltas, existência do mundo celestial, promessa
de vida eterna.
O que a crítica feuerbachiana contesta é a maneira utilizada pela religião ao lidar com
este mundo, quando esta o descarta. As promessas religiosas não podem tomar o lugar da
realidade por mais dura que seja, mesmo porque negar a realidade é negar a condição humana
enquanto parte integrante deste mundo. Feuerbach evidencia a ótica religiosa acerca do
mundo.
O mundo é nada para a religião – só a teoria revela o mundo na sua magnificência, o
mundo que é a totalidade do real; as alegrias teóricas são as mais belas alegrias
intelectuais da vida, mas a religião nada sabe das alegrias do pensador, das alegrias
do investigador da Natureza. Falta-lhe a intuição do universo, a consciência do
infinito real, a consciência do gênero. Só em Deus ela supre a falta da vida, a falta de
um conteúdo substancial que na plenitude infinita da vida real se oferece aos olhos
87
do curioso homem de teoria. Deus é para ela o substituto do mundo perdido – Deus é
para ela a intuição pura, a vida da teoria (FEUERBACH, 1994, p. 238).
A proposta feuerbachiana intenta trabalhar com o ser humano a partir de uma
perspectiva libertadora, ou seja, procurando fazer com ele descubra sua capacidade de tornarse solidário com os demais, visando à libertação da humanidade de toda e qualquer estrutura
ou crença no presumível mundo do além. Considerando apenas o que pertence ao outro
mundo como sendo de Deus, a consciência religiosa induz o homem a deixar de acreditar
neste mundo, tomado como empecilho para a satisfação humana.
A consciência religiosa liga imediatamente o mundo a Deus; deduz tudo de Deus,
porque não toma nada como objeto na sua particularidade e realidade, nada é para
ela objeto como objeto da teoria. Tudo provém de Deus – e isto basta, satisfaz
completamente a consciência religiosa (FEUERBACH, 1994, p. 270).
Feuerbach procura incentivar o empenho do ser humano num projeto verdadeiramente
humano, que tenha como interesse maior aquilo que, de fato, possa renovar a condição
humana sem apelar para o divino. Quer que o ser humano se redescubra a partir dele mesmo,
da realidade, para que – uma vez redescoberto – se liberte de toda crença que o afaste de sua
natureza. É importante observar que Feuerbach, no prefácio à segunda edição (1843), assim
afirmava: “É certo que o meu livro é negativo, negador, mas – note-se bem – apenas contra a
essência não humana, não contra a essência humana da religião.” (FEUERBACH, 1994, p.
428).
Conclui-se, a partir do que fora trabalhado neste item, que tratar da experiência
religiosa é tratar da experiência humana, pois “na religião, ao referir-se a Deus, o homem
volta a referir-se às suas necessidades, tanto em sentido superior como inferior.”
(FEUERBACH, 1994, p. 239).
O mundo como se nos apresenta com suas mazelas, desafios, infortúnios tornou-se a
motivação primeira daquela experiência que descredita a crença do ser humano nele mesmo e
no aquém. Assim, “a insuficiência humana se compensa num eu pessoal deificado, que é
resposta também às dores, misérias, sofrimentos, angústias, pressões da vida social e política e
ao desejo de vida melhor após a morte.” (HAHN, 2003, p. 116).
Mas, conforme já ressaltado, ao referir-se ao divino como resposta, proteção e amparo
frente às circunstâncias que ameaçam e impedem a felicidade, o homem acaba por revelar
seus sentimentos, suas carências, evidenciando a experiência do divino como objetivação
sentimental e fantástica de seus ideais.
88
4.3 Ruptura humana com sua estrutura interior como causa da projeção no
transcendente
Neste último item da dissertação já se evidencia a conclusão do pensamento de
Feuerbach ao procurar compreender a religião a partir dos sentimentos, da experiência
sensível e do conflito existente na dinâmica relacional homem-mundo.
A antropologia feuerbachiana nada mais procurou fazer senão devolver ao homem as
suas potencialidades, procurando arrancá-las de um deus que só pode existir graças aos
atributos humanos que lhe são ingenuamente atribuídos e, por isso, considerados como
distintos e separados da própria essência humana.
Este item quer realçar o grande perigo da desumanização que se efetiva naqueles que
projetam no transcendente aquilo que pertence somente a eles, a este mundo, a esta realidade.
É nessa projeção que o homem aliena-se de si mesmo, desencadeando o processo de ruptura
com sua estrutura interior, alimentando assim a projeção num ser divino.
Não é possível iniciar este item sem fazer menção ao estranhamento que a religião
provoca no ser humano, uma vez que o impede de descobrir-se como protagonista de sua
história e da história da sociedade. Isso se deve ao caráter dual da religião que, ao mesmo
tempo em que expressa os desejos e potencialidades humanas – conforme trabalhado no item
anterior –, também aliena o ser humano.
É expressão das potencialidades humanas porque só é possível no ser humano. O
fato de os próprios atributos divinos serem apenas atributos humanos revela, em
parte, esta potencialidade fantástica contida na religião. A religião aparece, pois,
como sendo um momento essencial para que o homem dê-se conta de suas
potencialidades. Mas é também expressão de alienação e estranhamento
(Entfremdung) humano, pelo fato de o ser humano não ser ainda consciente de que,
ao se relacionar com Deus, está apenas relacionando-se consigo mesmo. Desta
forma, o próprio ser humano se ilude e constrói um ser objetivo que parece estar
independentemente constituído. E, uma vez independente, passa a determinar o
próprio homem, ou seja, uma vez considerados como independentes e atribuídos a
um ser objetivo, os atributos humanos tomam formas sobre as quais a humanidade
não parece mais ter poder. Por isto, os homens submetem-se a estas estruturas e
deixam de perceber-se como protagonistas, passando a agir por mera submissão e
passividade (SCHUTZ, 2001, p. 176-177).
À medida que o ser humano vai se estranhando, ou seja, deixando de descobrir, de
valorizar e de administrar suas potencialidades, consequentemente vai se desumanizando, pois
vai se distanciando de sua essência. A consequência imediata desse estranhamento é a ruptura
que opera com seu interior uma vez que coloca acima dele e de suas relações um ser
89
transcendente, deixando de ir até os fundamentos e possibilidades da vida. A contribuição de
Feuerbach vem justamente colocar o fenômeno religioso como expressão das possibilidades,
dos desejos e necessidades do ser humano neste mundo, nesta vida.
O homem projeta a idealização de suas qualidades próprias em um ser
transcendente. Feuerbach nega, pois, o correlato metafísico da fé, não a projeção. Ao
projetar a si mesmo, o homem aliena-se de si mesmo, gerando a divisão em si
mesmo. A alienação religiosa, segundo ele, é tomar como Deus algo que, na
verdade, é apenas expressão do próprio homem, ilusão, ídolo (ZILLES, 1991, p.
103).
A antropologia apresentada por Feuerbach busca a unidade entre o eu, o tu e nós, entre
indivíduos e espécie, entre história universal e história individual. Sobre o pensamento está o
primado do amor. Segundo Feuerbach, essa unidade se encontra no próprio homem, que,
tendo consciência de si mesmo, coloca sua própria essência como objeto de sua consciência.
“A religião nasce onde o homem considera essa sua essência como separada de si como Deus.
Neste caso, Deus é a projeção daquilo que o homem deseja ser. Nada mais.” (ZILLES, 1991,
p. 106).
A ruptura humana com sua estrutura interior, que desencadeia o processo de
esvaziamento36 de si, revela o que é Deus, ou seja, Deus é o que o homem nega em si e no
mundo para afirmar Nele. Assim, segundo a análise feuerbachiana, a questão do ser ou não
ser de Deus é na verdade a questão do ser ou não ser do homem. Assim:
Desde a perspectiva de que toda visão religiosa leva implícita uma projeção humana
coloca-se um limite aos fundamentalismos e dogmatismos religiosos, que não
assumem a relatividade do conhecimento humano e que identificam as
representações de Deus como próprio Deus. Ao mesmo tempo, a partir de sua
metafísica da subjetividade, esclarece a inevitabilidade da mediação humana e seu
papel em toda proposta religiosa, como sujeito finito que fala do infinito e que
37
inevitavelmente o torna finito e humaniza (DIAZ, 2003, p. 160) .
36
Sobre esta questão, afirma Adriana Veríssimo Serrão na obra A humanidade da razão: “No termo deste
processo de gradual esvaziamento, dá-se a inversão final do ser com o nada; e nesse momento final: ‘o sujeito só
conhece as sombras, as ilusões exteriores superficiais do mundo real, porque em si mesmo é superficial e oco;
toma as sombras do mundo pelo próprio mundo; daí que o mundo verdadeiro e real seja necessariamente para ele
apenas uma sombra, a imagem onírica e a peça de fantasia do futuro’.” (SERRÃO, 1999, p. 29).
37
É interessante ressaltar o comentário de Juan Antonio Estrada Dias quanto à reação teológica e eclesiástica
cristã ante o pensamento feuerbachiano, no livro Deus nas tradições filosóficas, volume 2: “Não se deve cair, no
entanto, na armadilha de superar a crítica feuerbachiana postulando uma revelação “pura” de Deus, que se
contraporia ao conhecimento humano como mediação inevitável, como defendia a teologia dialética para
impedir a projeção feuerbachiana. A heterogenidade absoluta entre fé e razão não é um recurso para escapar da
impugnação feuerbachiana. Mas, ao contrário, implica aceitar a acusação de irracionalismo fideísta que só salva
a fé religiosa à custa de separá-la radicalmente da razão e que não supera as armadilhas da subjetividade, até ao
separá-la dessa presumível revelação pura, mas que simplesmente a ignora. Boa parte da reação teológica e
eclesiástica cristã ante a proposta de Feuerbach segue a linha de uma separação clara entre o âmbito da revelação
e a fé, dentro da qual inscrevia-se um magistério autoritário, sem necessidade da argumentar e convencer, que
interpretaria e atualizaria corretamente a presumível revelação pura. O fideísmo se contrapõe à crítica
90
A crença em Deus reforça a preocupação de Feuerbach em relação ao esvaziamento do
homem, pois uma vez voltando sua atenção e direcionando o seu ser para o divino, fica
incapacitado de lidar com sua essência ao projetá-la num além inexistente que deforma a sua
humanidade e o mundo no qual vive e o transforma em inimigo dele mesmo e do aquém.
Na religião, o homem separa-se de si mesmo, mas apenas para voltar sempre ao
mesmo ponto donde partiu. O homem nega-se, mas apenas para se pôr de novo, bem
entendido, numa forma agora glorificada: quanto mais se rebaixa aos seus olhos,
tanto mais se eleva aos olhos de Deus. E nega-se, porque o homem positivo, o
positivo da Humanidade é Deus; rebaixa-se porque Deus é o homem elevado. Deus
é homem, por isso o homem tem de ter de si mesmo uma ideia tão depreciativa
quanto possível. Não precisa de ser nada para si, porque o seu Deus já é aquilo que
ele é. Deus é o seu eu, por isso, ele tem de se negar. Deste modo o homem nega
também o aquém, mas apenas para voltar a pô-lo, no fim, como além
(FEUERBACH, 1994, p. 218-219).
A religião, portanto, gera um homem cindido38, interiormente empobrecido, levando
“à reduplicação e à multiplicação, consistindo num processo de alienação e depauperamento
do ser humano. Apresenta-se claramente como autoestranhamento e autoalienação, não de
Deus, mas de cada homem individual.” (SOUZA, 1993, p. 70).
Percebendo que na experiência religiosa o homem vai rompendo com sua estrutura
interior e, em decorrência, projetando-se no divino, Feuerbach sugere um processo de
desalienação, ou seja, procura reduzir a essência sobre-humana e racional de Deus, fruto dessa
projeção, à essência natural e imanente do homem. Considerando que Deus – o ideal religioso
do cristão – é o espírito, Feuerbach afirma o seguinte:
O cristão combate sua essência sensorial; ele nada quer saber do instinto “animal”
vulgar do comer e do beber, do instinto “animal” vulgar do amor sexual e filial; ele
considera o corpo como uma mácula e uma ignomínia que está agarrada desde seu
racionalista moderna, a quem se nega competência para entrar no âmbito incomensurável da revelação e da fé.
Esta postura, que hoje inspira boa parte dos fundamentalismos e tradicionalismos cristãos, paga-se com o preço
da desautorização da fé, da religião e da teologia, que ficam confinados ao campo dos sentimentos e emoções,
carentes de valor cognitivo, ou ao âmbito do irracional patológico que entra em contradição com a maioridade
proposta pela Ilustração. O fideísmo e o pietismo protestantes, e o tradicionalismo e a potenciação autoritária e
antimodernista do magistério hierárquico católico, foram duas das reações cristãs à proposta epocal de
Feuerbach.” (DIAZ, 2003, p. 160-161).
38
Sobre a questão da cisão existente naquele que se entrega à crença no mundo celestial ou que deposita sua
esperança no além e como tal crença reflete negativamente no ser humano, servimo-nos do comentário de
Adriana Veríssimo Serrão: “confrontado com o absoluto da sua intimidade, cindido num eu essencial e puro, que
é tudo, e num eu corpóreo e empírico, que é nada, também o indivíduo se torna um nada e opõe-se a si-mesmo
como o seu contrário, como o nada de si-mesmo. Sobre a irrealidade deste “dúplice nada”, do mundo e do
indivíduo, teria inevitavelmente de se impor a ideia de uma realidade diferente, a ficção compensatória de um
mundo melhor. A representação da imortalidade pessoal, em cuja origem parece encontrar-se a declaração
orgulhosa da indestrutibilidade e da sobrevivência ilimitada do indivíduo, acabará, no fundo, por conduzir à sua
desintegração, uma vez que concede apenas à alma, uma forma vazia e indeterminada, a esperança de poder vir a
perdurar eternamente no espaço impreciso de um além e no tempo indefinido de uma segunda vida.” (SERRÃO,
1999, p. 29).
91
nascimento a sua dignidade, a sua honra de ser em si um ser espiritual, como uma
decadência e uma negação, necessária apenas temporariamente, de sua essência
verdadeira, como uma roupa suja de viagem, como um incógnito vulgar de seu
estado celestial (FEUERBACH, 1989, p. 216).
A proposta de Feuerbach almeja, como resultado do processo de desalienação, que o
homem passe a perceber-se como único Deus para ele mesmo, pois Deus – conforme proposto
na religião – é a negação do homem. Dessa maneira, Feuerbach propõe, “com seu ateísmo,
negar a negação do homem. Afirma: ‘Eu nego Deus. Isto para mim significa: nego a negação
do homem’.” (SOUZA, 1993, p. 71).
Torna-se importante ressaltar que Feuerbach, ao combater a ruptura do homem com
sua estrutura interior, acaba por demonstrar outra contradição na religião, ou na crença no
divino:
Na religião, o homem objetiva a sua própria essência secreta. É preciso, portanto,
demonstrar que também esta oposição, este desacordo com o qual a religião começa,
é um desacordo do homem com sua própria essência. Aliás, a necessidade interna
desta demonstração resulta já do seguinte fato: se a essência divina que é objeto da
religião fosse efetivamente uma essência diferente da humana, não poderia dar-se
qualquer cisão, qualquer desacordo. Se Deus for de fato outro ser, que me importa a
sua perfeição? A cisão só se dá entre seres que estão desunidos, mas que devem ser
um só, que podem ser um só e que, por consequência, na essência, na verdade, são
um só. Partindo desse princípio geral, aquela essência da qual o homem se sente
cindido tem de ser uma essência que lhe é inata, embora tenha de ser ao mesmo
tempo de uma natureza diferente da essência ou da força que lhe confere o
sentimento, a consciência da unidade e da reconciliação com Deus ou, o que é o
mesmo, com ele próprio (FEUERBACH, 1994, p. 41-42).
Outra questão que se apresenta e que coloca outra contradição é a seguinte: apesar de
Deus ser considerado todo poderoso, absoluto, de imperar sobre a criação, não se pode negar
que existe uma autonomia para as coisas fora dele. Mesmo procurando romper consigo
mesmo, o homem – na projeção do divino – não consegue abandonar a humanidade e a razão,
pois o próprio “Deus pensado como extremo do homem, é a essência objetiva do
entendimento.” (FEUERBACH, 1994, p. 42).
Como trabalhar essa questão senão reconhecendo a autonomia de uma das esferas?
Feuerbach quer mostrar que uma escolha deve ser feita e esta não pode ser outra senão a do
reconhecimento da autonomia do mundo, pois caso seja admitida a autonomia divina o mundo
torna-se então desnecessário, nulo. Por isso afirma:
Certamente está essa contradição na própria essência da teologia; porque, se existe
um Deus, o mundo é desnecessário, e vice-versa. Como podem, pois essas entidades
que se excluem mutuamente se conciliarem e se unirem em suas atividades? A
atividade de Deus anula a atividade do mundo, e vice-versa. Se eu fiz algo, não foi
Deus que o fez e, se foi Deus que o fez, não fui eu que fiz. Um exclui o outro. Como
92
cabe aqui a concepção do intermediário? A concepção de que Deus realizou isto
através de mim? Uma autonomia não admite intermediário. Em síntese, pretender
deixar que Deus e o mundo existam e ajam ao mesmo tempo leva às mais absurdas
contradições, aos mais ridículos sofismas e artimanhas, como a história da teologia o
provou de sobra na doutrina do chamado Concursus Dei, a colaboração de Deus nas
ações humanas livres. (FEUERBACH, 1989, p. 137).
A leitura feuerbachiana do divino quer nos mostrar o perigo da façanha realizada por
aqueles que nele acreditam ao tentarem romper com sua essência – na experiência religiosa –
distinguindo entre o espírito criador, perfeito e infinito e seu espírito humano como sendo
imperfeito e limitado39. Assim, “mediante o caráter alienante da religião, o ser humano
considera-se um nada, ignorância, fraqueza, submissão e privação. Assim, o homem tende a
levar ao extremo seu espírito de renúncia.” (HAHN, 2003, p. 70).
Ao tomar o espírito humano como limitado, o ser humano se percebe numa posição
aquém do que deseja e, por isso, procura desligar-se dessa limitação pressupondo e
idealizando um espírito ilimitado, infinito e perfeito fora dele. Assim analisa Feuerbach:
Por ser então para o cristão o espírito, o ser sensível, pensante, voluntário, seu ser
supremo, seu ideal, transforma ele esse ser no ser primeiro, na causa do mundo, isto
é, ele transforma seu espírito num ser objetivo, existente fora dele. Deus, diz o
cristão, Deus, o espírito objetivado, concebido como existente fora do homem, criou
o mundo por sua vontade e razão. Mas o cristão distingue entre esse espírito criador,
perfeito e infinito e seu espírito humano em geral como sendo o espírito imperfeito,
limitado, finito. Esse processo da distinção, essa conclusão que leva do espírito
“finito” para um espírito infinito, essa prova da existência de um Deus, isto é, aqui
de um espírito perfeito, é a psicológica. Enquanto a chamada prova cosmológica
parte do universo em geral, a prova fisiológica ou teleológica parte da ordem e da
conexão ou finalismo da natureza, parte a prova psicológica, que é a que caracteriza
a essência do cristianismo, da Psyché ou da alma, do espírito do homem
(FEUERBACH, 1989, p, 217-218).
Percebe-se, portanto, que o que é considerado experiência do divino na verdade tratase de uma objetivação sentimental e fantástica dos ideais humanos, do homem ideal. A
tentativa do homem em romper com sua estrutura interior é contraditória, pois tal estrutura é a
causa primeira, criadora de Deus, só que de maneira objetivada. Fica mais clara a análise de
Feuerbach quando apresenta Deus, esse espírito, como o desejo realizado que o homem possui
de ser um espírito infinito.
39
Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach faz a seguinte consideração sobre esta questão do
espírito humano: “O deus pagão é abstraído da natureza, surgido da natureza; o Deus cristão é um Deus que
surge da alma do espírito, é abstraído do espírito. A conclusão é esta: o espírito humano existe, não podemos
duvidar de sua existência; existe algo invisível incorpóreo em nós que pensa, quer e sente; mas o saber, querer e
poder do espírito humano é falho, limitado pelos sentidos, dependente do corpo; o que é limitado, finito,
imperfeito, dependente pressupõe algo ilimitado, infinito e perfeito; então pressupõe o espírito finito um espírito
infinito como sua base; existe um tal e esse é Deus.” (FEUERBACH, 1989, p. 218).
93
Esse espírito infinito não é exatamente o espírito do homem querendo ser
infinitamente perfeito? Os desejos do homem não são levados em consideração
durante o surgimento desse Deus? Não deseja o homem ser livre das limitações do
corpo, não deseja ele ser onisciente, onipotente, onipresente? Não é, pois esse Deus,
esse espírito, o desejo realizado que o homem tem de ser um espírito infinito? Não
temos refletida nesse Deus a essência do homem? Os cristãos não concluem (mesmo
os cristãos racionalistas atuais) desse tudo-querer-saber, dessa infinita sede de saber
do homem (que aqui não será e não poderá ser satisfeita), da vontade infinita de ser
feliz não-satisfeita por nenhum bem, nenhuma felicidade da terra, desse anseio por
uma moralidade perfeita, não-maculada por nenhum instinto, não concluem, digo, a
necessidade e a realidade de uma vida ou existência do homem infinita, não limitada
pelo tempo desta vida e o lugar desta terra, não ataca ao corpo, à morte? Não
expressam eles com isso, mesmo que indiretamente, a divindade da essência
humana? (FEUERBACH, 1989, p. 218).
O que Feuerbach evidencia em suas análises é a contradição existente dentro da
própria experiência religiosa que não questiona a atitude do homem religioso que, ao buscar
romper consigo mesmo, não consegue perceber-se como ser de relação com seu interior e com
o gênero.
Não é possível afirmar haver experiência do divino quando não se aceita o humano e
não é possível viver verdadeiramente como humano quando se procura experimentar o divino
enquanto conteúdo diferente daquele que se encontra no meu íntimo. Assim pergunta
Feuerbach:
O que amo eu então em Deus e junto a Deus? O amor, o amor pelo homem. Mas
quando eu amo e venero o amor com o qual Deus ama o homem, não amo eu o
homem, não é o meu amor por Deus, embora indiretamente, amor pelo homem? Não
é então o homem o conteúdo de Deus, quando Deus o ama? Não é o meu íntimo que
eu amo? (FEUERBACH, 1994, p. 60).
O que caracteriza aquele que acredita num ser divino é a cisão que inicia e sustenta
consigo mesmo quando deixa de aceitar-se incompleto, insatisfeito, não realizado em suas
vontades e anseios. Sustentando uma situação de repulsa com seu eu incompleto e insatisfeito,
procura afastar-se de si mesmo e passa a viver de maneira irreal ao entregar-se à experiência
religiosa. “A irrealidade religiosa tem o seu começo fora da consciência, pois brota de uma
relação sofrida do homem com a existência.” (HAHN, 2003, p. 115).
A análise feuerbachiana da religião quer deixar evidenciado que a causa que
desestrutura o vínculo harmonioso entre o indivíduo e sua própria essência é a inconsciência
deste fator originário da religião, a fé – entendida como força propulsora que separa o homem
do homem.
A fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem; Deus não é senão o
místico conceito genérico da Humanidade, por isso a separação entre Deus e o
homem é a separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo
94
comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com a eticidade, com a razão,
com o sentido simples e humano da verdade [...]. A fé isola Deus, faz dele um ser
particular diferente, o amor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor
coincide com o amor pelo homem. A fé cinde o homem no interior, consigo mesmo,
e, por consequência, também no exterior [...]. A fé transforma a fé no seu Deus
numa lei [...]. A fé acaba por ser fato exterior, fé histórica. Reside, pois, na essência
da própria fé o fato de ela poder vir a ser um credo totalmente exterior, de se
poderem ligar à simples fé, enquanto tal, efeitos supersticiosos e mágicos [...]. A fé
separa: isto é verdadeiro, aquilo é falso. E reivindica a verdade apenas para si
mesma. A fé tem como seu conteúdo uma verdade determinada, particular, que por
isso está necessariamente ligada à negação. A fé é por natureza exclusiva [...]. A fé
particulariza e limita o homem [...]. A fé é orgulhosa, mas distingue-se do orgulho
natural pelo fato de deslocar para outra pessoa que a privilegia, o sentimento da sua
superioridade, da sua soberba, mas para uma outra pessoa que é o seu próprio simesmo oculto, o seu instinto de felicidade personificado e satisfeito [...]. A fé é
imperativa. Por isso é necessário, pertence à essência da fé ser fixada como dogma
(FEUERBACH, 1994, p. 301-305).
Aquele que se entrega às ideias religiosas não procura administrar sua incompletude a
partir da compreensão do gênero40 e isso vai contra a essência do “ser genérico”
(Gattungswesen), ou seja, o homem como um ser “aberto aos outros homens ou à totalidade
do gênero humano que, na verdade, é o sujeito real dos atributos que o homem individual
projeta em Deus.” (VAZ, 1991, p. 127).
Deixa de buscar a superação dos desafios através do engajamento nas questões que
dizem respeito ao bem da sociedade e alimenta a ilusão de poder caminhar de maneira
solitária, impenetrável, desprovido de relação, a não ser aquela relação com Deus.41
Feuerbach analisa a contradição dessa relação da seguinte maneira:
Quem ama um Deus, não pode mais amar nenhum homem; esse perdeu a
sensibilidade para o que é humano; mas também vice-versa: quem ama o homem
verdadeiramente e de coração não consegue mais amar nenhum Deus, esse não
consegue mais deixar seu sangue humano quente se evaporar no espaço vazio, em
vão, na infinitude de um nada e de uma irrealidade (FEUERBACH, 1994, p. 248).
Mas como se efetiva tal relação sendo que o homem religioso toma Deus como sendo
seu extremo oposto? É diante dessa questão que Feuerbach sustenta ser a religião a
responsável pela ruptura, cisão do homem com ele mesmo.
A religião é a cisão do homem consigo: ele põe Deus face a si como um ser que lhe
é oposto. Deus não é o que o homem é – o homem não é o que Deus é. Deus é o ser
infinito, o homem o ser finito, Deus é perfeito, o homem imperfeito, Deus eterno, o
homem temporal, Deus todo-poderoso, o homem impotente, Deus santo, o homem
pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o absolutamente positivo, a soma de
41
Trata-se aqui de um paradoxo, pois ao dirigir-se a Deus demonstra precisar do tu e assim se revela como ser
que só pode realizar-se com.
95
todas as realidades, o homem o absolutamente negativo, a soma de todas as
nulidades (FEUERBACH, 1994, p. 41).
Uma vez demonstrado que “o conteúdo da religião teológica é uma consciência
iludida, deficiente e provisória que poderá vir a ser desfeita” (HAHN, 2003, p. 113), devemos
então perguntar por que o homem ainda procura alhear-se e por que ainda insiste em construir
a divindade sem nela reconhecer-se. Respondendo a essa questão, Feuerbach afirma que o
homem não toma consciência de sua essência de forma direta, ele precisa se alienar, se
objetivar, se projetar. “O homem – eis o segredo da religião – objetiva-se e torna a fazer de si
objeto desta essência objetivada, transformada num sujeito; ele pensa-se, é objeto para si, mas
como objeto de um objeto, de um outro ser.” (FEUERBACH, 1994, p. 36).
O pensamento feuerbachiano alerta para o perigo do conteúdo alienante das doutrinas
teológicas, sobretudo quando cristalizado em visão exclusiva e acrítica. Dentro desse
processo, a crença se autonomiza ganhando a consistência de uma ordem própria na qual o
objeto do desejo se transforma num ente personificado.
Ao romper com sua estrutura interior, pela experiência religiosa, o ser humano passa a
considerar a existência humana como dependente desta outra ordem própria. Dessa maneira,
aquele que se entrega a essa experiência se entrega ao acaso ou ao destino, pois não se sente
responsável pela administração de sua liberdade e inteligência, nem pela condução de sua
vida ou da vida da sociedade.
A alienação na transcendência torna-se, por isso, a mais perigosa e a mais visível,
dado o poder que exerce sobre o íntimo e por arrastar uma inteira concepção da vida.
É típica do abandono total ao arbítrio, ao destino e ao acaso, de uma existência
adiada, irresponsável e infantil, que se entrega cegamente a um poder outro
(SERRÃO, 1999, p. 376).
A análise feuerbachiana busca, portanto, servir-se da psique humana individual para
procurar a raiz da ideia especificamente religiosa, pois considera o Deus dos homens
conforme seu pensamento e atitude.
Feuerbach reduz o fato de imaginar um Deus em geral à força do pensamento,
porque o indivíduo encontra em si qualidades, características que facilmente podem
ser elevadas a um grau infinito. Mas, ao mesmo tempo, tem consciência da
impossibilidade de atingir este grau de perfeição. Então, como atribuir à espécie, ao
gênero humano, fora dos limites do individual a perfeição absoluta do Saber, do
Sentir e do Querer? A incapacidade de fazê-lo leva o homem religioso a projetá-la
num ser fictício, a quem suplica participação nos dons que lhe atribui, Onisciência,
Amor, Onipotência (HAHN, 2003, p. 113).
Feuerbach procurou com sua análise da religião e, especificamente, do cristianismo, ajudar o
ser humano a perceber que através do dissipar-se na ilusão do Deus transcendente ele pode
96
descobrir a relação essencial Eu-Tu e, nela, descobrir o caráter fundante da experiência
antropológica proposta como meta para uma nova idade do homem. Assim, buscou contribuir
para a conciliação do homem com a humanidade.
Concluindo, Feuerbach lançou o convite para o discernimento contínuo sobre a
religião, no intuito de analisar se ela está a serviço do ser humano ou se coloca o ser humano a
seu serviço, através da alienação – entendida como anulação, cegueira, ruptura, passividade,
submissão, inconsciência e não-identidade.
Tomar consciência da ruptura humana com sua estrutura interior não é tarefa fácil nem
é possível de se processar da noite para o dia. Exige um constante e perseverante exercício de
análise de nossa maneira de olhar o mundo, de olhar para si e de lidar com as situações.
Neste item procurou-se analisar a razão de o homem não querer se aceitar como é e de
não se perceber como a única origem do divino. Essa postura, característica explícita daqueles
que se entregam às experiências religiosas, evidencia a contradição que existe no interior da
própria experiência que não trabalha a consciência de si que o ser humano deve tomar para
viver de maneira mais harmoniosa com sua essência e com o mundo.
Sendo a religião um fato puramente humano, conforme nos sugere Feuerbach, não
pode continuar a serviço do que não pertence à realidade humana. Estando o homem neste
mundo, pois é filho deste mundo, não pode se entregar à ilusão de ter que servir a um Deus
que é de outro mundo. Esta seria a maior das contradições dentro da religião, pois não há
sentido em buscar satisfazer as vontades de um Deus que não tem vontade humana, porque
não é humano.
Não há razão em procurar investir numa vida além dessa, pois outra vida não seria
neste mundo e do outro mundo o homem não tem a mínima noção de como é e como nele se
adaptaria, uma vez que necessita dos sentidos para avaliar o que a ele se apresenta e o que se
apresenta só pode ser apresentável a partir do real. Mas, no presumível outro mundo, não
existirá a natureza que gerou o ser humano e sem ela não haverá condições de o ser humano
continuar existindo, pois só existe porque ela existe.
A estrutura interior do ser humano existe porque existe o mundo real. Sem este mundo
não haverá ruptura humana com esta estrutura interior, pois não haverá ser humano. Portanto,
torna-se urgentemente necessário investir na desalienação do ser humano para que ele possa
regressar ao seu mundo e ao seu ser e deixar de se destruir e de se desumanizar através da
crença no presumível ser divino.
97
5 CONCLUSÃO
Aprofundar-se no pensamento de um autor requer bastante respeito, disciplina,
perseverança e coragem para assumir o quanto ainda não se sabe e o quanto ainda é preciso
saber.
Tomar o pensamento de Ludwig Feuerbach como referência para análise do
comportamento humano frente à religião é, acima de tudo, dispor-se a caminhar por um
caminho extremamente desafiador, pois suas ideias carregam a força de uma correnteza
avassaladora que consegue arrastar até mesmo o que se considerava firme e seguro. O seu
nome certamente bem traduz essa força. Afinal, além de arrastar o que se apresentava
inabalável, consegue incendiar o que se constituía indestrutível.
Numa sociedade fortemente marcada por ideias provenientes de uma gama de
experiências religiosas, o pensamento de Feuerbach vem colocar em questão a validade e a
honestidade das doutrinas que se sustentam graças à necessidade do ser humano de buscar
consolo e alívio para as acrimônias oriundas de seu relacionamento com a existência.
Através dos capítulos deste trabalho buscou-se apresentar e realçar a crítica
contundente de um pensador instigado pela história de uma sociedade marcada por tensões e
pela ideologia dominante que conduzia o destino dos pobres mortais com as bênçãos do
cristianismo.
As críticas endereçadas àqueles que zelavam pela doutrina sagrada não deixavam de
traduzir tamanha insatisfação de quem pretendia se libertar do jugo alienante e desumanizante
do que se escondia por detrás dos véus sagrados.
Considerando a religião, especificamente o cristianismo, como entrave ao progresso
humano e baluarte dos interesses de quem dele usufruiu para se manter no poder, Feuerbach
propõe uma ruptura com o cristianismo moderno como alternativa para a emancipação da
história humana. Emancipação que só poderá efetivar-se através da luta pelo resgate da
dignidade, da moral, dos direitos, da relação harmoniosa com a natureza e do amor próprio do
homem.
A partir dessa proposta de ruptura com o cristianismo, Feuerbach trouxe à tona
questões relevantes que, posteriormente, passariam a dominar as discussões de tantos outros
pensadores modernos e contemporâneos. Questões como: o relacionamento do homem com
Deus e com o mundo, o relacionamento do indivíduo com a sociedade, o relacionamento do
98
homem consigo mesmo, as consequências das experiências religiosas na vida do indivíduo e
na vida da sociedade.
A proposta deste trabalho consistiu em analisar o que Feuerbach apresenta como
questionamento à religião e à teologia e se seu pensamento consegue nortear o pensamento do
homem contemporâneo, sobretudo no que diz respeito à crítica à religião e ao cristianismo.
Ao propor a negação que nega o homem, Feuerbach aponta o caminho da superação
da religião e do cristianismo ao afirmar o mundo e o homem. Na verdade, contrapõe-se ao
caminho que dizia levar ao transcendente hipostasiado.
A proposta de Feuerbach, apresentada nesta dissertação, pode ser entendida como
proposta de emancipação da consciência e essência genérica humana, visando colocar o
homem como único senhor de sua história. Daí sua crítica à religião teológica que, na sua
visão, além de provocar uma cisão interna no homem, desencadeia um sentimento de
indiferença e frieza para com a sociedade ao priorizar um relacionamento exclusivamente
vertical e intimista, ou seja, eu e Deus.
A análise feuerbachiana procura devolver à humanidade todas as qualidades que lhe
foram arrancadas e transferidas para Deus através da religião, mas pelo próprio homem. No
entanto, a emancipação do homem religioso só poderá efetivar-se através de um processo de
conscientização e de desalienação capaz de mostrar-lhe a necessidade de requerer aquilo que
possui de mais valioso e que fora projetado em Deus, a saber, sua essência. Para tanto, o
despertar da consciência deverá ser assumido como missão da humanidade que deverá
combater a falsidade que escraviza a tantos através das ideias teológicas que outra coisa não
traduzem senão a intenção de racionalizar o irracional, desumanizar o humano e de colocar o
divino como diferente, oposto e acima da essência humana.
Um ponto que certamente chama a atenção no pensamento de Feuerbach é a sua
crença na humanidade, uma vez que concebe o homem e a história como ainda-não, como
meta, como projeto. A partir dessa concepção, abre-se o caminho para as considerações da
transcendência não hipostasiada.
O que pode parecer uma contradição no pensamento feuerbachiano na verdade
confirma seu interesse em investir no ser humano como ser totalmente aberto para o que ainda
não é, ou, em outras palavras, Feuerbach conseguiu enxergar na incompletude do ser humano
o desejo de viver num mundo diferente, numa sociedade que lhe traga felicidade através da
concretização de seus desejos e projetos.
Assim se abre o espaço necessário para o trabalho de resgate do homem enquanto ser
que espera. Feuerbach vai justamente procurar trabalhar este ser que espera mostrando a ele
99
que o esperado não existe nem virá do além, mas poderá e só poderá ser encontrado e
experimentado aqui no aquém. Daí sua contribuição para a transformação da sociedade, pois
através da transformação da mentalidade e das atitudes daquele que até então se deixava
escravizar pelas ideias religiosas, automaticamente se efetivará a transformação do que se
encontra ao seu redor.
É importante também ressaltar que o esforço de Feuerbach por superar a filosofia
teológica tradicional não deixou de confluir para o rompimento da alienação religiosa,
desenvolvendo a crítica da falsa essência do homem concentrada na religião. Por isso,
repudiada como instrumento de dominação.
Apesar de não expostas, as críticas a Feuerbach foram levadas em consideração,
porém não foram aqui focadas uma vez que a preocupação primeira e única foi a de realçar o
pensamento feuerbachiano sem desviar o olhar para questões que emergem de sua análise e
crítica da religião e do cristianismo, mas que carecem de um estudo mais aprofundado e
específico, o que fugiria da proposta desta dissertação.
Enfim, a proposta deste trabalho é de contribuir para a expansão do pensamento
feuerbachiano, uma vez que, em meio a tantas e diversas linhas de estudo do fenômeno
religioso e do cristianismo, pouco se tem recorrido a ele.
Evidentemente não se pode dispensar a contribuição de Feuerbach para o
aprofundamento do estudo e análise da religião cristã. Sua crítica certamente encontra eco no
trabalho de outros pensadores de seu tempo e dos dias atuais, instigando a continuidade da
pesquisa sobre um tema que tanto tem despertado interesse de estudiosos do mundo inteiro.
Esta dissertação pretendeu fomentar o interesse pelo conhecimento e aprofundamento
dos estudos sobre o fundamento antropológico da crítica à religião e ao cristianismo
desenvolvida por Feuerbach.
Os capítulos desenvolvidos procuraram realçar questões que apenas indicam um
caminho a ser percorrido. A vastidão das obras de Feuerbach e a complexidade de seu
pensamento certamente exigem uma atenção maior por parte daqueles que querem melhor
conhecer sua crítica à religião e ao cristianismo.
Espera-se que esta dissertação desperte a reflexão e reações naqueles que dela se
servirem para simples leitura ou para vindouras pesquisas sobre o seu pensamento. Fica assim
traduzida a intenção de contribuir para a análise e aprofundamento da crítica religiosa
tomando como motivação a crítica feuerbachiana.
100
REFERÊNCIAS
AROSSI, Gustavo. Feuerbach ateu: a redução da teologia em antropologia. Barbarói: Revista
do Departamento de Ciências Humanas e do Departamento de Psicologia, Santa Cruz do Sul,
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