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Reserva Cognitiva e Esquizofrenia
Cognitive Reserve and Schizophrenia
Todos nós já nos deparamos com doentes com a suspeita clínica de défice cognitivo em que, após a
avaliação do seu desempenho nas baterias neuropsicológicas, ficamos surpreendidos com a discrepancia entre o seu desempenho e o seu funcionamento no dia-a-dia. Esta constatação foi abordada,
classicamente, através da noção de RESERVA contra o atingimento cerebral. Esta noção decorre da
observação repetida segundo a qual não parece existir uma relação directa entre o grau de patologia ou
lesão cerebral e as manifestações clínicas dessa patologia.
A noção de reserva tem sido abordada sob diferentes ângulos: quer de um ponto de vista passivo,
segundo o qual o cérebro apresenta um determinado limiar fixo, a partir do qual acontece a alteração
funcional para qualquer pessoa, quer do ponto de vista activo, segundo o qual o cérebro tenta compensar,
de forma activa, as lesões cerebrais.
O modelo passivo baseia-se apenas no volume cerebral, segundo a ideia de que “quanto mais melhor”.
Isto é, os indivíduos com maiores volumes cerebrais lidarão melhor com as alterações patológicas
cerebrais, porque podem absorver uma maior quantidade de lesão antes de atingirem o limiar das alterações funcionais. Já o modelo activo da reserva foca-se na associação entre uma maior inteligência ou
maior escolaridade e um atraso do início do processo disfuncional cognitivo. Segundo este modelo, os
indivíduos com maior inteligência ou que tiveram mais escolaridade apresentarão redes neuronais mais
extensas e mais eficientes, provavelmente devido ao facto de se considerar que quer a escolaridade,
quer a estimulação intelectual aumentam o número de redes neuronais. Sempre que haja uma lesão
ou disfunção cerebral, estas redes neuronais fornecem um meio de compensação dessas alterações
no cérebro, por duas vias: quer facilitando vias alternativas para o processamento da informação, quer
tornando mais redes disponíveis para o processamento cognitivo normal.
Estes dois modelos são também conhecidos por “modelo do hardware” (modelo passivo) e por “modelo
do software” (modelo activo).
De acordo com este racional, foram desenvolvidos os conceitos de reserva cerebral
[1]
e de reserva
cognitiva , usados no sentido de serem tampões potenciais entre a patologia cerebral e o curso das
[2]
doenças, mas também usados para explicar a grande variância dentro deste desajustamento entre os
diferentes indivíduos.
De uma maneira geral, a noção de reserva cerebral refere-se à capacidade do cérebro para lidar com
um crescendo de atingimento lesional, sendo avaliado, habitualmente, através de um índice numérico: o
volume cerebral. Já a reserva cognitiva refere-se à capacidade para se usar de forma adaptativa as redes
neuronais menos sujeitas a disfunções, para compensar o aumento lesional, sendo avaliada através de
índices tais como inteligência cristalizada e anos de escolaridade.
A reserva cognitiva é vista como um processo normal em indivíduos saudáveis quando têm que lidar
com determinados requisitos de tarefas. Mas foi descrito também um outro processo - a compensação
- segundo o qual são utilizadas redes neuronais que habitualmente não são usadas por indivíduos com
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cérebros intactos, com vista a compensar as lesões cerebrais.
Enquanto que no modelo do limiar ou da reserva cerebral a capacidade de reserva consiste num conjunto de sinapses adicionais ou num aumento das redes neuronais redundantes, no modelo da reserva
cognitiva a focagem é feita no software, consistindo na capacidade de o paradigma cognitivo que
subjaz a uma tarefa suster a disrupção e, sob essas condições, operar de forma adequada. Ou, pode
também, consistir na capacidade para usar paradigmas alternativos de modo a abordar o problema
sempre que a abordagem mais estandardizada já não está operacional. Este modelo activo da reserva
não sustenta, como o fazem os modelos passivos, que os cérebros dos indivíduos com maior reserva
são anatomicamente diferentes dos com menor reserva (p. ex., têm mais sinapses), mas sim que eles
processam as tarefas de modo mais eficiente. Se bem que esta hipótese tenha servido para enquadrar
uma série de resultados de estudos empíricos que de outro modo não seriam explicados, também é
certo que existem muitos indicadores que sugerem que o conceito de reserva cerebral não é um conceito
meramente passivo. Na verdade, o cérebro adapta-se às mudanças não só através da experiência, mas
também com a idade e mesmo com as lesões que, por sua vez, induzem mecanismos de regeneração
ou compensatórios os quais ajudam a manter ou a recuperar a função neuronal (como, por exemplo, a
neurogénese, a sinapsogénese reactiva, etc.). Ou seja, face aos dados empíricos, parece não se poder
conceptualizar a reserva sem combinar, de algum modo, os dois tipos de abordagem, como Stern
[2]
sugeriu: considerando, por um lado, os dois componentes neuronais que se assemelham ao cérebro
original e, por outro, os conceitos da reserva cognitiva.
Segundo esta perspectiva o foco é colocado tanto no que se perde como no que resta, em termos das
lesões cerebrais. Numa situação concreta, um indivíduo pode começar a expressar sintomas clínicos
quando é eliminado um determinado número de sinapses, enquanto que outro, com mais reserva cognitiva, poderá ser capaz de operar de forma eficaz com o mesmo número de sinapses.
Mesmo com estas diferenças, as capacidades do cérebro estão sempre presentes, tratando-se apenas
do foco da análise. A variabilidade fisiológica que subjaz à reserva cognitiva reside quer na variabilidade
da organização sináptica, quer na utilização relativa de regiões cerebrais específicas. Ou seja, enquanto
que a reserva cognitiva implica variabilidade ao nível das redes neuronais, a reserva cerebral implica
diferenças na quantidade de substrato neuronal disponível.
Dito por outras palavras, o modelo da reserva cognitiva não assume que um tipo específico de lesão
cerebral tenha o mesmo efeito em todas as pessoas, em razão da variabilidade individual relativa à forma
como cada um lida com a lesão cerebral.
Destes dois constructos, o que mais interessa aqui tratar é o conceito de RESERVA COGNITIVA, pois é
o que se ajusta melhor ao específico funcionamento cognitivo dos doentes com esquizofrenia.
Este conceito, como vimos, inclui não só um componente passivo, como também um componente
activo. Relativamente a este - o componente activo - é referido o papel da experiência, traduzido por
níveis elevados de escolaridade, ocupações complexas que requeiram uma aprendizagem contínua e
um empenho intelectual sustentado que requeira um esforço mental. Quanto ao componente passivo,
são referidas estruturas cerebrais que adicionam capacidade ao processamento eficiente da informação,
aumentam a capacidade de evocação mnésica e de resolução de problemas.
Este constructo tem tido alguma validação empírica, muito na dependência das condições cognitivas
associadas à doença de Alzheimer e a outras demências, muito embora Stern [2] tenha alertado para a
necessidade se considerar este conceito como um modelo mais geral explicativo da variação individual
na capacidade para cada indivíduo lidar com a patologia cerebral.
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A prova empírica pela qual este conceito tem passado tem sido focada, essencialmente, em 3 componentes - lesão cerebral, expressão clinica desta lesão e a mediação teórica desta reserva. Mas a resposta
à questão central em relação a este conceito - o que é que medeia as relações entre a lesão cerebral e
a sua expressão comportamental? - ainda foi obtida. Uma das razões para as dificuldades na obtenção
dessa resposta tem que ver com a forma de medir o conceito. Foram propostos quatro constructos como
candidatos a essa medição: (1) a inteligência geral; (2) fontes de processamento; (3) função executiva; (4)
e a razão entre a actividade mental actual e ao longo da vida. Dos quatro constructos, o único que tem
validade de constructo é o primeiro, sendo por isso necessário que os outros 3 sejam sujeitos também
a essa prova. Mas, para além disso, também é necessário que sejam feitos testes de convergência e
de sobreposição de constructos.
Ou seja, no domínio da medição da reserva cognitiva ainda falta fazer muito trabalho. Desde logo, a
questão da medição da lesão cerebral que, em boa verdade, só pode ser feita por estudos anatomopatológicos post-mortem, o que para o fim que este conceito nos interessa - o domínio clínico - pouco
nos serve. Neste domínio, o que nos interessa obter são medidas de proximidade que possam ser
usadas durante o tempo de vida de um doente. Para a doença de Alzheimer, foram sugeridas algumas
dessas medidas, como a redução da perfusão e do metabolismo parieto-temporal e frontal em repouso
. Mas para a esquizofrenia esta medida não só não foi pesquisada como, muito provavelmente, não se
[3]
mostraria adequada, quer em razão da sua difícil demonstração nesta patologia, quer pelo seu carácter
inespecífico, mesmo na doença de Alzheimer.
Mas antes de avançarmos para as questões ligadas à medição da reserva cognitiva na esquizofrenia cabe
perguntar se este conceito é útil para esta patologia? É certo que a natureza neurodesenvolvimental da
esquizofrenia acarreta algumas dificuldades à avaliação da reserva cognitiva nesta perturbação, pois o
próprio processo patológico pode, por si só, alterar a quantidade de reserva cognitiva acumulada pela
experiência. Mesmo assim, parece-nos que este conceito se poderá mostrar muito útil para a avaliação
e as predições que são necessárias serem feitas na esquizofrenia. Uma das razões para tal optimismo prende-se com o facto de as relações entre a inteligência e a esquizofrenia não se restringirem ao
extremo mais baixo do espectro da inteligência, pois parece que o risco é linear ao longo da variação
do quociente de inteligência [4-5], sendo deste modo que operariam os efeitos protectores da reserva
cognitiva. E como? Uma das interpretações que explica esta associação entre a inteligência e o risco de
esquizofrenia centra-se na noção segundo a qual a capacidade cognitiva seria o mediador da capacidade
para racionalizar as experiências bizarras que, de outro modo, seriam interpretadas de forma delirante.
Há já uma vasta literatura que sugere a existência de experiências de tipo psicótico na população geral [6-8].
Destes estudos verificou-se que as pessoas saudáveis que reportam mais experiências de tipo psicótico
são as que apresentam menores desempenhos na função executiva [9]. Ou seja, apesar de haver um
contínuo de experiências de tipo psicótico na população geral, aqueles que apresentam uma melhor
capacidade cognitiva experienciam menor número dessas experiências, provavelmente devido a um
processo inibitório mais intenso ou ao uso do seu controlo executivo mais eficaz para re-interpretar ou
racionalizar estas experiências.
Sendo assim, a determinação da reserva cognitiva na esquizofrenia pode ser uma medida muito importante para predizer as possibilidades de adaptação social e funcional após tratamento.É claro que este
argumento não é suficiente para atestar da importância deste conceito para a esquizofrenia, no entanto
sabe-se que os doentes com esquizofrenia com quocientes de inteligência (QI) pré-mórbidos e mesmo
durante a infância têm maiores resultados a longo termo [10-11]. E o mais curioso reside na demonstração
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de que o QI não prediz a gravidade dos sintomas. Ora, se tomarmos a gravidade dos sintomas como
um marcador clínico da patologia, poderemos postular a seguinte hipótese: os indivíduos com uma
maior reserva cognitiva terão melhores desempenhos funcionais, apesar de terem níveis de patologia
semelhantes. Podemos encontrar várias sustentações teóricas para apoiar esta hipótese, mas não será
difícil perceber que quem tiver uma função executiva a funcionar com altos níveis terá mais competências
para usar os dispositivos de todas as naturezas que a sociedade põe ao dispôr dos indivíduos para se
tratarem. Ou seja, a reserva cognitiva pode assegurar um moderado impacto da psicose nas vidas dos
doentes, ao mesmo tempo que os protege, no início, de desenvolverem a doença.
Tendo sustentado as razões porque entendemos que o conceito de reserva cognitiva poderá ser um
conceito heurístico, cabe agora analisar as possibilidades da sua medição.
Antes de mais é necessário perguntar, qual é o racional para se construir uma medida da reserva cognitiva
para ser aplicada ao estudo da esquizofrenia?
O racional para a construção de uma variável desta natureza sustenta-se em trabalhos anteriores [12-13],
nos quais apresentamos um método para avaliar o desempenho cognitivo pré-mórbido em doentes com
esquizofrenia que, no essencial, se centrava na utilização de medidas neuropsicológicas com pouca
variância ao longo da idade e com a patologia, associada a medidas que reflectiam a estimulação cognitiva, como o número de anos de escolaridade e a profissão. Seguindo a mesma lógica, a construção de
uma medida da reserva cognitiva, tendo em conta os dados atrás referidos relativamente à sustentação
teórica do “modelo do software”, deverá entrar em linha de conta com o desempenho em testes de
vocabulário e de leitura, bem como os anos de escolaridade.
Num plano mais formal, essa medida deverá ser calculada como o componente principal compósito
com o maior eigenvalue da pontuação z de uma prova de leitura, semelhante ao National Adult Reading
Test for Inteligence Quotient (NARTIQ), da pontuação do subteste de vocabulário da WAIS e dos anos
de escolaridade. Entendemos que a combinação dos anos de educação e das medidas do quociente
de inteligência num único factor poderá constituir uma forma mais ampla de capturar a reserva cognitiva,
pois combina as capacidades inatas e adquiridas que, aparentemente, contribuem para a variância da
reserva cognitiva.
Estas reflexões servirão como base ao desenvolvimento de investigações que façam a sua prova empírica.
Esperamos em breve poder falar dessa prova. Para já vale dizer que o conceito de reserva cognitiva é
um conceito heurístico na investigação da esquizofrenia.
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[13]Marques-Teixeira, J. (2005). Manual de Avaliação da Disfunção Cognitiva na Esquizofrenia. Lisboa: Vale e Vale.
João Marques-Teixeira
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