D.E.
MANDADO DE SEGURANÇA Nº 2008.70.09.002352-4/PR
Publicado em 15/10/2008
IMPETRANTE
ADVOGADO
IMPETRADO
:
:
:
:
JOSE MARCONDES LEAL
MARIA FRANCISCA CORDEIRO MARCONDES LEAL
DULCE MARIA MENDES
SUPERINTENDENTE REGIONAL DO INCRA/PR
DECISÃO (liminar/antecipação da tutela)
A parte autora ajuizou mandado de segurança e requereu a concessão de liminar visando
a suspensão da exigência do ato do impetrado contida no ofício de notificação nº 3090,
processo 54200.003339/2006-34 e a proibição da autarquia de adentrar nas áreas de
terras, nas quais os impetrantes detêm a posse.
No despacho de folha 25 foi procedida a alteração para o procedimento ordinário e a
parte autora foi facultada a emenda a peça inicial. Entre as questões suscitadas na peça
inicial do mandado de segurança seria imprescindível verificar se as terras alguma vez
foram ou ainda são ocupadas por remanescentes de quilombolas. Para tanto, a
comprovação necessita de dilação probatória, cujo procedimento seria incompatível
com o rito do mandado de segurança.
Às folhas 27-43 a parte autora apresentou petição inicial de ação ordinária, em face do
INCRA, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela.
Os autores receberam no dia 13/08/2008 um ofício de notificação do INCRA com
informações de que a área de posse dos autores estaria sob investigação quanto a
possibilidade de ser uma área remanescente de quilombola. Também mencionou a
realização de um trabalho de campo e que o INCRA estaria legalmente autorizado a
adentrar na propriedade para realizar os estudos pertinentes, além da necessidade de
encaminhamento de uma série de documentos.
Em apertada síntese, sustentam que são detentores da posse de uma pequena área rural
na localidade de Serra do Apon, Distrito de Socavão, no município de Castro pelo prazo
superior a vinte e seis anos. Defendem que o impetrado está extrapolando em suas
atividades, contrariando ao disposto no artigo 68 do ADCT, bem com no Decreto nº
4.887/2003, uma vez que os impetrantes não são proprietários de terras ocupadas nem
ocupantes por remanescentes de quilombos.
Os autores juntaram aos autos cópia da escritura públicas de cessão de direitos e
transferência de posse (fl. 16); recibo de entrega de declaração do ITR (fl. 17);
documento de informação e atualização cadastral do ITR (fl. 18); planta do imóvel rural
(fl. 20); certificado de cadastro de imóvel rural (fl. 21); notificação para trabalhos em
área de reconhecimento de território remanescente de quilombo (fl. 22).
Ao final, requerem a suspensão do processo administrativo 54200.003339/2006-34, pois
estaria em desacordo com o artigo 68 da ADCT e o decreto 4.887/03. O pedido da parte
autora é para suspender o processo quanto a apresentação de documentos e a
possibilidade do INCRA entrar nas terras dos autores. Requerem, ainda, que o INCRA
apresente os documentos e as provas que fundamentam o processo administrativo, bem
como a ordem de proibição do INCRA em adentrar as terras de posse dos autores, para
evitar lesão de difícil reparação. Ao final, requerem a nulidade do processo
administrativo instaurado pelo INCRA, em face da ausência de contraditório.
Decido.
A questão controvertida nos autos é a insurgência da parte autora quanto ao processo
administrativo de responsabilidade do INCRA que visa levantar dados e informações
relacionadas ao reconhecimento de áreas de território remanescentes de quilombo. A
irresignação da parte autora refere-se a possibilidade de reconhecimento de quilombo
quanto as terras que detém a posse.
Antes de adentrar na análise do caso concreto é necessário abordar alguns pontos
relacionados às áreas remanescentes de quilombola, sob o aspecto jurídico e social.
O reconhecimento de direitos específicos às comunidades quilombolas é algo
relativamente recente no Brasil. Os avanços ocorrem muito lentamente e em meio a
períodos de retrocessos e de paralisia das titulações. Somente com o artigo 68 da ADCT
da Constituição de 1988 foi assegurado o direito "aos remanescentes das comunidades
de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos".
O termo quilombo, antes da Constituição de 1988, era atrelado ao conceito histórico de
grupos formados por escravos fugidos. Após, assumiu um novo significado.
Atualmente,
segundo
informações
do
endereço
eletrônico
(http://www.koinonia.org.br/oq/quilombo.asp);
"O termo é usado para designar a situação dos segmentos negros em diferentes regiões
e contextos no Brasil, fazendo referência a terras que resultaram da compra por negros
libertos; da posse pacífica por ex-escravos de terras abandonadas pelos proprietários
em épocas de crise econômica; da ocupação e administração das terras doadas aos
santos padroeiros ou de terras entregues ou adquiridas por antigos escravos
organizados em quilombos. Nesse contexto, os quilombos foram apenas um dos eventos
que contribuíram para a constituição das "terras de uso comum", categoria mais ampla
e sociologicamente mais relevante para descrever as comunidades que fazem uso do
artigo constitucional".
No plano internacional, Eva Thorne (Thorne, Eva. "A questão política do direito à terra
na Afro-América Latina". Brandeis University, 2003), destaca que vários países latinoamericanos reconheceram em suas Constituições mais recentes o direito à terra de afrolatinos (conhecidos como quilombolas no Brasil, cimarrones na Colômbia e creoles e
garífunas na América Central), que vêm ocupando suas terras tradicionais por várias
gerações.
A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é
signatário, assegura aos grupos e comunidades tradicionais (indígenas e tribais) prevê o
direito de auto-determinação dos povos, ou seja, as próprias comunidades podem se
auto-definirem. A partir do decreto nº 4.887/2003, foi concedido a essas populações o
direito à auto-atribuição como único critério para identificação das comunidades
quilombolas. O decreto, que regulamenta o procedimento de regularização fundiária
definiu que: "são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as
utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural."
Convém transcrever parte do texto disponibilizado pela Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR, que trata das ações do governo federal
quanto ao reconhecimento das áreas remanescentes de quilombos:
"No imaginário popular é muito comum a associação dos quilombos a algo restrito ao
passado, que teria desaparecido do país com o fim da escravidão. Mas a verdade é que
as chamadas comunidades remanescentes de quilombos existem em praticamente todos
os estados brasileiros. Levantamento da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da
Cultura, mapeou 3.524 dessas comunidades. De acordo com outras fontes, o número
total de comunidades remanescentes de quilombos pode chegar a cinco mil.
Tradicionalmente, os quilombos eram das regiões de grande concentração de escravos,
afastados dos centros urbanos e em locais de difícil acesso. Embrenhados nas matas,
selvas ou montanhas, esses núcleos se transformaram em aldeias, dedicando-se à
economia de subsistência e às vezes ao comércio, alguns tendo mesmo prosperado. No
entanto, devido justamente ao seu isolamento, existe uma grande dificuldade em se
obter informações precisas e tornar amplo o conhecimento da população sobre as
comunidades remanescentes de quilombos. Esse isolamento fazia parte de uma
estratégia que garantiu a sobrevivência de grupos organizados com tradições e
relações territoriais próprias, formando, em suas especificidades, uma identidade
étnica e cultural que deve ser respeitada e preservada.
O mais emblemático dos quilombos formados no período colonial foi o Quilombo dos
Palmares, que localizava-se na serra da Barriga, região hoje pertencente ao estado de
Alagoas. Palmares resistiu por mais de um século, e o seu mito transformou-se em
moderno símbolo brasileiro da resistência do africano à escravatura.
Conquistas - No período de redemocratização do Brasil, o Movimento Negro e
lideranças das comunidades remanescentes de quilombos intensificaram a busca por
direitos de cidadania. Envolvidos no processo de elaboração da Constituição Federal
de 1988, asseguraram o direito à preservação de sua cultura e identidade, bem como o
direito à titulação das terras ocupadas por gerações e gerações de homens e mulheres,
que se contrapuseram ao regime escravocrata e constituíram um novo modelo de
sociedade e de relação social".
Analisando os suportes jurídicos e sociais em torno do tema, verifica-se que a garantia
do acesso à terra está relacionada à identidade étnica como condição essencial para a
preservação dessas comunidades. Por outro lado, a medida visa de certa forma
compensar ou minimizar a injustiça histórica cometida contra a população negra no
Brasil, aliando dignidade social à preservação do patrimônio material e imaterial
brasileiro. As comunidades remanescentes de quilombos poderão por meio da
regularização da posse da terra, do estímulo ao desenvolvimento sustentável e do apoio
as suas associações representativas restabelecer parte daquilo que lhes foi privado desde
a chegado dos primeiros africanos que chegaram ao Brasil.
Quanto ao suporte legal invocado pela parte autora, verifico que a medida adotada pelo
INCRA com a notificação para adentrar a área de posse dos autores está dentro dos
requisitos legais e constitucionais relacionados ao tema.
O direito de propriedade não é um direito absoluto, ou seja, não é imaginável nos dias
atuais ao uso restrito de um imóvel aos interesses exclusivos do proprietário ou
possuidor. A propriedade deve cumprir a sua função social, consoante determina o texto
constitucional. O proprietário ou possuidor deve permitir que o poder público, por meio
de agentes públicos, realize o objeto de investigação no imóvel para colher dados e
informações para verificar se a área poderá ser considerada uma área tradicionalmente
ocupada pelos remanescentes quilombolas. Por outro lado, as questões relacionadas a
eventual direito a usucapião do imóvel não são objeto de discussão nestes autos, pois
não são da competência da justiça federal.
Também não me parece adequado neste momento processual, em sede de cognição
sumária, acatar a tese defendida pelos autores quanto a determinação constitucional de
reconhecer apenas as terras que estejam sendo ocupadas pelas comunidades de
quilombos. Primeiro, a investigação do INCRA, poderá revelar que a área de posse dos
autores não corresponde as áreas de remanescentes de quilombola. Segundo, de acordo
com o estudo completo e com as conclusões do processo administrativo, poderão ser
esclarecidos os fatos relacionados a área que se pretende ver reconhecida como
remanescente de quilombolas. Terceiro, a parte autora poderá comprovar por meio de
ação judicial os eventuais equívocos no processo administrativo que lhe asseguram o
direito invocado.
Por outro lado, a notificação dos autores (fl.22) permite que eles participem ativamente
do processo administrativo, inclusive possibilitando a apresentação de documentos que
comprovem a sua titulação e posse das áreas investigadas. Ademais, os documentos
juntados aos autos correspondem aos documentos exigidos pelo INCRA (fl. 24).
Observo, ainda, que a petição inicial não atacou nenhum ponto relacionado a eventuais
irregularidades no processo administrativo. Observo, ainda, que a recente instrução
normativa n. 49, de 29/09/2008, do INCRA, regulamentou todo o procedimento
administrativo de reconhecimento de áreas remanescentes de quilombolas.
Portanto, não restou demonstrado nenhum vício no processo administrativo que
autorizasse o afastamento do ato administrativo. O documento da fl. 22, autoriza o
INCRA, a partir de 19/08/2008, a adentrar na propriedade citada na petição inicial para
realizar estudos pertinentes.
Desse modo, considerando que as exigências do INCRA não impossibilitam, a
princípio, o exercício da posse do imóvel em testilha, consigne-se que, qualquer ato
exorbitante dos poderes de fiscalização e investigação da autarquia, poderão ser
comunicados a este juízo.
Ante o exposto, indefiro o pedido liminar requerido pela parte autora.
Intimem-se.
Encaminhe-se os autos ao setor de distribuição para a alteração de classe atribuída aos
autos.
Cite-se o INCRA para apresentar resposta.
Ponta Grossa, 10 de outubro de 2008.
Antônio César Bochenek
Juiz Federal
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