Territórios quilombolas e os riscos para os negócios
imobiliários
Por Octávio Chagas Soll da Silva
O procedimento adotado pelo INCRA para o reconhecimento da propriedade
definitiva da terra aos remanescentes de comunidades quilombolas, nos moldes em
que é realizado atualmente, pode representar um verdadeiro risco aos negócios
imobiliários. Isso porque os imóveis que passam a ser objeto de análise não recebem
em sua matrícula nenhuma anotação. O advogado do SSA, Dr. Octávio Chagas Soll da
Silva, responde a perguntas sobre esse importante tema, esclarecendo as principais
dúvidas em âmbito administrativo e judicial, além de relacionar as comunidades
reconhecidas pelo INCRA ou com processo de reconhecimento em trâmite na cidade de
Porto Alegre.
1.
O que é uma comunidade quilombola?
Quilombo foi o nome dado aos locais, geralmente ermos, de difícil acesso,
desabitados e rejeitados por índios e brancos escravistas, nos quais homens e mulheres
africanos se refugiavam da escravização com suas famílias1. Os negros fugidos da
escravidão tinham como estratégia de sobrevivência a invisibilização ao mundo branco
escravista e o convívio em grupo, visando à proteção das famílias e a consolidação da
1
SANTOS, Maria Elisabete Gontijo dos; CAMARGO, Pablo Matos. Comunidades quilombolas de Minas
Gerais no século XXI – História e resistência. Organizado pelo Centro de Documentação Elóy Ferreira da
Silva. Belo Horizonte: Autêntica/CEDEFES, 2008, p. 25 a 37.
1
liberdade em um território que ninguém queria. Assim surgiram as comunidades
quilombolas, também denominadas de “Terras de Preto, Comunidades Negras,
Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres”2.
No âmbito legal, a Constituição Federal de 1988, embora tenha assegurado
direitos aos remanescentes dos quilombos, não conceituou o termo “comunidade
quilombola”. Em 21 de novembro de 2003, com a publicação do Decreto nº 4.887/2003,
comunidade quilombola restou definida como “os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações
territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida”3.
Para os pesquisadores do Centro de Documentação Elóy Ferreira da Silva
(CEDEFES), o atual conceito de comunidade quilombola pode ser atribuído àquela “que
apresenta relações de parentesco entre os seus membros; descendência africana e
vínculos históricos e culturais com determinado território, independentemente da
época em que foi formada”4.
2.
Quais são os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais que
albergam as comunidades quilombolas?
O legislador constituinte recepcionou as comunidades quilombolas no artigo 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o qual assegura o direito à
propriedade de forma definitiva aos remanescentes de quilombos das terras por si
ocupadas. No artigo 216 da Constituição Federal, os quilombos ficaram reconhecidos
como patrimônio cultural brasileiro em razão de sua contribuição na formação da
2 Artigo 1º da Portaria nº 98/2007 da Fundação Cultural Palmares.
3 Art. 2º da Portaria nº 98/2007 da Fundação Cultural Palmares.
4 SANTOS, Maria Elisabete Gontijo dos; CAMARGO, Pablo Matos. Comunidades quilombolas de Minas Gerais no século XXI – História e resistência. op. cit., p. 37.
2
identidade, história, costumes e tradições do povo brasileiro, inclusive tombados “todos
os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos
quilombos”.
Na seara infraconstitucional, destaca-se o Decreto nº 4.887/2003, que
regulamenta o procedimento a ser realizado pelo Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação
e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de
que trata o artigo 68 do ADCT. O INCRA, por sua vez, editou a atual Instrução Normativa
nº 57, de 20 de outubro de 2009, objetivando detalhar os procedimentos técnicos e
administrativos de regularização dessas áreas.
Não se pode olvidar, também, da Convenção nº 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), sobre Povos Indígenas e Tribais, de 27 de junho de 1989,
vigente no Brasil desde 25 de julho de 20035, na qual atribui responsabilidades aos
governos signatários de promoção efetiva dos “direitos sociais, econômicos e culturais
desses povos” (artigo 2º) e de reconhecimento do direito de “propriedade e de posse
sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (artigo 14).
Por fim, vale mencionar as ações governamentais em prol das comunidades
quilombolas, tais como Programa Brasil Quilombola, lançado em 12 de março de 2004,
e a Agenda Social Quilombola, via Decreto nº 6.261, de 20 de novembro de 2007, ambas
coordenadas pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e
atuantes em 04 (quatro) eixos fundamentais: i) acesso à terra (certificação e
regularização fundiária das áreas de quilombo); ii) infraestrutura e qualidade de vida
(saneamento, habitação, eletrificação, comunicação, vias de acesso, saúde, educação e
assistência social); iii) inclusão produtiva e desenvolvimento local (apoio ao
5
Conforme Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004.
3
desenvolvimento produtivo local); e, iv) direitos e cidadania (registro civil, acesso à
escola, assessoria jurídica e força policial em regiões de conflitos agrários).
3.
A qual órgão compete para a identificação e regularização das terras
ocupadas por remanescentes quilombolas?
Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do INCRA, a
identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação, desintrusão6, titulação e o
registro imobiliário das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos
quilombos, sem prejuízo da competência comum e concorrente dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, nos termos do artigo 5º da Instrução Normativa nº 57/2009,
por atribuição do Decreto nº 4.887/2003 (artigo 3º).
4.
Como tramita o processo administrativo?
O processo administrativo é aberto no INCRA através de requerimento, escrito
ou verbal, de qualquer interessado, das entidades ou associações representativas de
quilombolas ou de ofício pelo próprio INCRA, desde que apresentada a certidão de
autodefinição7 como remanescente de quilombo, expedida pela Fundação Cultural
Palmares8. Para sua expedição, faz-se necessário apresentar ata de reunião ou
6
Significa a retirada dos ocupantes não quilombolas de área reconhecida como território quilombola.
(fonte: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/incra-reconhece-comunidade-quilombolaem-pernambuco; http://www.maraiwatsede.org.br/content/o-que-significa-desintrus%C3%A3o)
7
Instituída pela Portaria nº 98, de 26 de novembro de 2007, da Fundação Cultural Palmares, objetiva
reconhecer as origens, ampliar os direitos e facilitar o acesso das comunidades quilombolas às políticas
públicas. É requisito para a instauração do processo administrativo junto ao INCRA.
8
Fundada pelo Governo Federal em 22 de agosto de 1988, trata-se de “instituição pública voltada para a
promoção e preservação da arte e da cultura afro-brasileira”, almejando sempre “uma política cultural
igualitária e inclusiva, que busca contribuir para a valorização das manifestações culturais e artísticas
negras brasileiras como patrimônios nacionais”. (fonte: http://www.palmares.gov.br/?page_id=95)
4
assembleia convocada para tal fim, acompanhada de lista de presença devidamente
assinada pela maioria de seus membros, bem como fotos, reportagens, estudos
realizados, se houver, e relato sintético da história da comunidade e informações sobre
a localização da área objeto de identificação.
Após a instauração do procedimento administrativo por ordem do
Superintendente do INCRA, elaborar-se-á o Relatório Técnico de Identificação e
Delimitação (RTID) a partir de indicações da própria comunidade, de estudos técnicos e
científicos, inclusive relatórios antropológicos, caracterização espacial, econômica,
ambiental e sociocultural da terra ocupada pela comunidade. O RTID, devidamente
fundamentado em elementos objetivos, deverá conter informações cartográficas,
fundiárias,
agronômicas,
ecológicas,
geográficas,
socioeconômicas,
históricas,
etnográficas e antropológicas, obtidas em campo e junto a instituições públicas e
privadas, além de outras informações consideradas relevantes pelo Grupo Técnico
interdisciplinar. Noutras palavras, será analisado o histórico da ocupação daquele
território, árvore genealógica do grupo, modo como vivem, utilização dos recursos
naturais, atividades econômicas, culturais e religiosas, sociabilidade, etc.
Durante a realização do RTID, o INCRA promoverá a notificação de determinados
órgãos federais ambientais e patrimoniais históricos9 para prestarem, se necessário for,
informações que possam contribuir com o estudo pretendido, bem como para
acompanhamento, na hipótese de que alguma questão seja de sua competência. A
comunidade interessada também poderá apresentar peças técnicas e participar de
9
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN; Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, e seu correspondente na Administração Estadual; Secretaria
do Patrimônio da União - SPU, do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; Fundação Nacional
do Índio - FUNAI; Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional - CDN; Fundação Cultural Palmares;
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, e seu correspondente na
Administração Estadual; e, Serviço Florestal Brasileiro - SFB.
5
todas as fases do procedimento administrativo de elaboração do RTID, diretamente ou
por meio de representantes por ela indicados.
Concluído o RTID, o mesmo será submetido à análise preliminar do Comitê de
Decisão Regional do INCRA que, verificando o atendimento dos critérios estabelecidos
para a sua elaboração e deferimento do pedido de reconhecimento do território
quilombola, o remeterá ao Superintendente Regional, para elaboração e publicação do
edital, por duas vezes consecutivas, no Diário Oficial da União e no Diário Oficial da
Unidade Federativa onde se localiza a área sob estudo, assim como fixação do edital na
Prefeitura Municipal do mesmo local. Os ocupantes e confinantes, detentores de
domínio ou não, identificados na terra pleiteada, serão notificados para apresentação
de contestações no prazo de 90 (noventa) dias, as quais serão recebidas nos efeitos
devolutivo e suspensivo. Concomitantemente à publicação do edital, o RTID será
remetido àqueles órgãos federais ambientais e patrimoniais históricos para
apresentarem manifestação sobre as matérias de suas respectivas competências no
prazo comum de 30 (trinta) dias.
As contestações serão julgadas pelo Comitê de Decisão Regional do INCRA em
até 180 (cento e oitenta) dias contados do protocolo, após ouvidos os setores técnicos
e a Procuradoria Regional. Do julgamento das contestações caberá recurso único, com
efeito apenas devolutivo, ao Conselho Diretor do INCRA, no prazo de 30 (trinta) dias, a
contar da notificação. Se dos julgamentos implicar a alteração das informações contidas
no edital, serão realizadas novas publicações e notificações dos interessados.
Prevalecendo decisão de deferimento do pedido inicial, o Presidente do INCRA
publicará, no Diário Oficial da União e da Unidade Federativa onde se localiza a área,
portaria reconhecendo e declarando os limites da terra quilombola, no prazo de 30
(trinta) dias.
6
Ainda, caso o RTID venha a concluir pela impossibilidade de reconhecimento da
área estudada como terra ocupada por remanescente de comunidade de quilombo, o
Comitê de Decisão Regional do INCRA, após ouvidos os setores técnicos e a Procuradoria
Regional, poderá determinar diligências complementares ou, anuindo com a conclusão
do Relatório, determinar o arquivamento do processo administrativo. Nesta hipótese, a
comunidade interessada e a Fundação Cultural Palmares serão notificadas e a decisão
será publicada no Diário Oficial da União e da unidade federativa onde se localiza a área
estudada. Da decisão de arquivamento do processo administrativo caberá pedido de
desarquivamento, desde que justificado.
Por fim, vale ressaltar que as despesas decorrentes deste processo
administrativo de regularização da área quilombola correrão à conta das dotações
orçamentárias consignadas na lei orçamentária anual para tal finalidade, observados os
limites de movimentação, empenho e pagamento.
5.
Como se dá a demarcação e titulação da área quilombola?
A demarcação da terra reconhecida é realizada pelo INCRA, observando-se a
Norma Técnica para Georreferenciamento de Imóveis Rurais, aprovada pelo seu
Presidente através da Portaria nº 69 de 22 de fevereiro de 2010.
Quanto à titulação, o Presidente do INCRA outorgará título coletivo e pró-indiviso
à comunidade, em nome de sua associação legalmente constituída, sem ônus de
nenhuma
espécie
aos
remanescentes
das
comunidades
de
quilombos,
independentemente do tamanho da área, com obrigatória inserção de cláusula de
inalienabilidade, imprescritibilidade e de impenhorabilidade, devidamente registrada
no Serviço Registral da Comarca de localização das áreas.
7
Se as terras reconhecidas e declaradas incidirem sobre terrenos de marinha,
marginais de rios, ilhas e lagos, a Superintendência Regional do INCRA encaminhará o
processo à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), para a emissão de título em
benefício das comunidades quilombolas. Constatada a incidência nas terras
reconhecidas e declaradas de posse particular sobre áreas de domínio da União, do
Distrito Federal dos Estados ou dos Municípios, a Superintendência Regional
encaminhará os autos para os órgãos responsáveis pela titulação. Nestes casos,
envolvendo área de domínio público, será emitido um Título de Concessão de Direito
Real de Uso Coletivo, quando couber e em caráter provisório, enquanto não se ultima a
concessão do Título de Reconhecimento. Frisa-se que a emissão do Título de Concessão
de Direito Real de Uso não desobriga a concessão do Título de Reconhecimento de
Domínio.
6.
As comunidades quilombolas são sujeitos passivos de imposto sobre a
propriedade territorial?
Não mais. Em 2014, as comunidades quilombolas, após anos de reivindicação,
lograram êxito na isenção e anistia do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR)
e do Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU) pela via legislativa.
A partir de 01 de janeiro de 2015, a Lei do ITR (Lei nº 9.303/1996) contará com o
artigo 3º-A – introduzido pela Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014 –, o qual dispõe
que “Os imóveis rurais oficialmente reconhecidos como áreas ocupadas por
remanescentes de comunidades de quilombos que estejam sob a ocupação direta e
sejam explorados, individual ou coletivamente, pelos membros destas comunidades são
isentos do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural - ITR”. De acordo com o
parágrafo 1º do precitado dispositivo, ficarão cancelados o lançamento e a inscrição em
8
Dívida Ativa da União relativos ao ITR referentes aos territórios quilombolas a partir da
data do registro do título de domínio previsto no artigo 68 do ADCT.
No que tange ao IPTU e à Taxa de Coleta de Lixo (TCL), o legislador municipal de
Porto Alegre, RS, deu a mesma amplitude aos efeitos da isenção do crédito tributário
em prol das comunidades quilombolas através do artigo 6º da Lei Complementar nº 731,
de 21 de janeiro de 2014, verbis: “Ficam remitidos os créditos tributários relativos ao
IPTU e à Taxa de Coleta de Lixo (TCL), assim como os juros e os demais consectários
legais insertos na composição desses créditos tributários, e ficam anistiadas as multas
de mora, ou de qualquer outra natureza, relacionadas a esses créditos tributários, cujos
lançamentos identificaram como sujeito passivo até a data da publicação desta Lei
Complementar as associações comunitárias de quilombolas”.
7.
O titular ou possuidor do terreno particular declarado quilombola é
desapropriado? Há indenização? Qual é o procedimento?
Sim, há desapropriação e indenização. Primeiramente, o Presidente da República
deve editar um Decreto de Desapropriação por Interesse Social específico da área
declarada quilombola. Publicado o decreto presidencial, a Superintendência Regional do
INCRA adotará as medidas cabíveis visando à obtenção dos imóveis – avaliação do
terreno, inclusive –, mediante a instauração do procedimento administrativo de
desapropriação, ou ajuizamento de ação de desapropriação na Justiça Federal. A
indenização é baseada em preço de mercado e o pagamento é efetuado em dinheiro,
sendo que corresponderá ao valor da terra nua e das benfeitorias.
9
8.
Quais são os principais objetos de discussão no Judiciário brasileiro
acerca desta matéria?
A principal discussão de cunho quilombola está na decenária Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 3.239, ajuizada no Supremo Tribunal Federal aos 25 de junho
de 2004 pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas (DEM), a qual visa
obter declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003. Depois de
proferido o voto do Sr. Ministro Cesar Peluso, Relator, julgando procedente a ADI10, a
Sra. Ministra Rosa Weber pediu vista dos autos em 18 de abril de 2012. Devido aos
inúmeros pedidos de inclusão no feito como “amicus curiae”, os autos foram recebidos
no Gabinete da precitada julgadora apenas em 18 de agosto de 2014 (dois anos e meio
depois!). Enquanto isso, prevalece a presunção de constitucionalidade do Decreto nº
4.887/2003.
Demais disso, em consulta ao site do Tribunal Regional Federal da 4ª Região,
constata-se a existência de ações de reintegração de posse, manutenção de posse e de
interdito proibitório, nos quais recorrentemente figuram nos polos dos feitos (ativo ou
passivo, conforme o caso) a comunidade quilombola, o INCRA, o Ministério Público
Federal, a municipalidade e o proprietário/possuidor do imóvel. Com a mesma
frequência, verifica-se o ajuizamento de ações de desapropriação pelo INCRA.
Os argumentos comumente utilizados pelos proprietários/possuidores dos
imóveis sub judice são, dentre outros: inconstitucionalidade da norma supracitada;
nulidade do processo administrativo instaurado para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação da área ocupada por remanescentes de quilombo;
posse legítima e direito à moradia preponderante ao pedido de reintegração.
10
Em síntese, o relator declara a inconstitucionalidade formal da norma (Decreto nº 4.887/2003), pois
entende que a normatização do tema deveria ter partido do Poder Legislativo e não do Poder Executivo.
O Ministro critica duramente o processo de identificação e regularização, denominando de "via crucis"
todas as etapas as quais são submetidas as comunidades quilombolas até a titulação do território.
10
9.
Existem comunidades quilombolas reconhecidas pelo INCRA ou com
processo de reconhecimento em trâmite na cidade de Porto Alegre? Onde estão
localizadas?
Sim. Atualmente existem 04 (quatro) comunidades quilombolas em Porto Alegre,
quais sejam: Família Silva (1940), Areal Luiz Guaranha (início do séc. XX), Alpes (início do
século XX) e Família Fidelix (1960/1970).
O Quilombo Família Silva localiza-se no elitizado Bairro Três Figueiras. Na década
de 1940, Naura Borges da Silva e Alípio Marques dos Santos vieram do interior do Rio
Grande do Sul (São Francisco de Paula e Cachoeira do Sul) e se instalaram num local de
muito mato e difícil acesso, próximo de onde hoje é o final da rua projetada João
Caetano, entre as Avenidas Carlos Gomes e Nilo Peçanha. Destarte, importante se diga
que a comunidade quilombola teve que resistir bravamente à transformação e ao
crescimento imobiliário do bairro – leia-se pressão dos agentes imobiliários, violência e
tentativa pelo poder público de remoção da Família Silva para locais mais distantes (Vila
Safira, Alvorada, etc.) –, principalmente após a construção do Shopping Iguatemi no ano
de 1983. A comunidade isolou-se por uma baixa cerca de madeira e as casas simples dos
seus moradores foram dispostas de forma a deixar um grande pátio no centro, para uso
comum. Os integrantes da Família Silva trabalham, em sua grande maioria, nas casas do
bairro, como domésticas e jardineiros, por exemplo. Em contrapartida, os
remanescentes deste quilombo encontram dificuldades quando da realização de
compras diárias (tudo no bairro é muito caro) e do acesso à educação e saúde. Com
processo instaurado no INCRA no ano de 2004, a Família Silva obteve o reconhecimento
público como comunidade quilombola em 20.12.2005 e o primeiro título dominial
emitido aos 21.09.200911.
11
A comunidade ainda aguarda a titulação de outros imóveis componentes do território quilombola.
11
Figura 1 – Planta de localização do Quilombo Família Silva Fonte: Superintendência Regional do INCRA/RS
O Quilombo do Areal Luiz Guaranha localiza-se no Bairro Menino Deus, área
nobre da Capital, na esquina da Avenida Luiz Guaranha com a Rua Baronesa do Gravataí.
A região do areal, reconhecida pela habitação massivamente negra, não abrigou apenas
os descendentes dos escravos que trabalhavam na Chácara da Baronesa do Gravataí,
mas também carnavalescos e músicos. Da mesma forma que a Família Silva, o Quilombo
do Areal também sofreu forte pressão do poder público para que desocupassem o local,
haja vista a valorização imobiliária do bairro. Os integrantes da comunidade trabalham
como domésticas, serventes, policiais militares, dentre outros. Com processo instaurado
no INCRA no ano de 2005, o Quilombo do Areal Luiz Guaranha obteve o reconhecimento
público como comunidade quilombola em 14.02.2014. A comunidade aguarda a edição
do Decreto Presidencial e a conseguinte titulação dos imóveis formadores do território
quilombola.
12
Figura 2- Planta de localização do Quilombo do Areal Luiz Guaranha. Fonte: Superintendência Regional do INCRA/RS
O Quilombo dos Alpes localiza-se no Bairro Glória/Cascata. Sua história teve
início em meados do Século XX com a Edwirges Francisca Garcia e seu marido quando,
ela grávida e com apenas 12 (doze) anos de idade, decidiram fugir das agressões e maus
tratos – ainda que não mais existisse escravidão – a que eram acometidos em uma
fazenda próxima ao Lami. Com os pés tomados por bolhas, encontraram um local onde
estariam a salvo, o Morro dos Alpes. Todavia, com a ocupação do morro, a família teve
que gradativamente subir até o ponto mais alto do morro para se proteger. Dona
Edwirges, que trabalhou como cozinheira nas casas do bairro, faleceu em 1998 aos 108
13
anos e deixou um legado de cultivo de ervas e manuseio de pedras. Seus descendentes
“criam cabras e praticam extrativismo de brotos de bambu e ervas nativas e vem (sic)
desenvolvendo no local, em parceria com EMATER, EMBRAPA (sic) atividades de criação
de aves e cultivo de pomar e canteiros de ervas medicinais”12, bem como “trabalham
como prestadores de serviços domésticos, segurança, pedreiro, eletricista nas
proximidades”13. Com processo instaurado no INCRA no ano de 2005, o Quilombo dos
Alpes obteve apenas a publicação do edital do RTID no Diário Oficial da União aos
07.10.2014, restando pendentes o reconhecimento público como comunidade
quilombola, a edição do Decreto Presidencial e a titulação dos imóveis formadores do
território dos remanescentes de quilombos.
Figura 3- Planta de localização do Quilombo dos Alpes. Fonte: Superintendência Regional do INCRA/RS
12
CUNHA, Juliano Closse da. Reconhecimento e cidadania: Vulnerabilidade e demandas sociais das
comunidades quilombolas em Porto Alegre. Monografia do Curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011, p. 37.
13
Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/gpn/default.php?p_secao=71.
14
O Quilombo Família Fidelix localiza-se entre os Bairros Azenha e Cidade Baixa. Os
precursores desta comunidade, Sérgio Ivan Fidelix, Milton Waldir Teixeira Santana e
Hamilton Correa Lemos, vieram da cidade de Santana do Livramento, interior do Estado
do Rio Grande do Sul, e se instalaram nas décadas de 1960 e 1970 na região conhecida
à época como “ilhota”. Dita área, que já era mal vista porque recorrentemente alagava
por ser próxima ao riacho, não tinha saneamento, eletricidade ou qualquer outro tipo
de infraestrutura, além de abrigar “escravos fugidos, libertos e seus descendentes”14;
todavia, a exemplo do Quilombo do Areal, o local era frequentado por sambistas e
figuras ilustres, tais como Lupicínio Rodrigues e Tesourinha, jogador de futebol. Com
processo instaurado no INCRA no ano de 2007, o Quilombo Família Fidelix ainda não
obteve sequer a publicação do edital do RTID no Diário Oficial da União.
Figura 4- Planta de localização do Quilombo Família Fidelix. Fonte: Superintendência Regional do INCRA/RS
14
SILVA, Daniela Santos da. A luta dos moradores do Quilombo da Família Fidelix (Porto Alegre/RS) pela
regularização fundiária. Dissertação de Mestrado em Administração da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, p. 57.
15
10.
Tendo em vista que até a titulação da área remanescente de quilombo
em favor da Associação Quilombola o registro imobiliário não recebe qualquer
anotação de que o imóvel está sendo objeto de estudo pelo INCRA, há como saber se
o imóvel que se pretende adquirir se encontra em processo de reconhecimento de
área quilombola?
Sim. O interessado pelo imóvel poderá protocolar um requerimento endereçado
ao Superintendente Regional do INCRA solicitando a expedição de certidão quanto a não
sujeição, interesse, análise e/ou estudo do INCRA em relação ao bem pretendido,
especialmente no que toca a uma possível declaração de área quilombola.
Imprescindível que o requerimento seja acompanhado de certidão atualizada da
matrícula do imóvel. A certidão será fornecida gratuitamente pelo órgão federal no
prazo de até 15 (quinze) dias, em média15.
15
Praxis do autor na Comarca de Porto Alegre, RS.
16
BIBLIOGRAFIA
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http://wp.clicrbs.com.br/campoelavouranagaucha/2011/05/25/quilombos-urbanos
-
familia-fidelix/?topo=52,1,1,,171,e171.
CUNHA, Juliano Closse da. Reconhecimento e cidadania: Vulnerabilidade e
demandas sociais das comunidades quilombolas em Porto Alegre. Monografia do Curso
de Ciências Sociais da Universdade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2011.
Disponível em http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/37306/0008 20371
.pdf?sequence=1.
Dicionário Michaelis. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br.
GEHLEN, Ivaldo; SILVA, Marta Borba; SANTOS, Simone Ritta dos (Orgs.).
Diversidade e proteção social: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto
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indígenas; remanescentes de quilombos. Porto Alegre: Centhury, 2008.
Guia de Políticas Públicas para Comunidades Quilombolas – 2013. Disponível em:
www.seppir.gov.br.
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Disponível em: www.seppir.gov.br.
Quadro Atual da Política de Regularização de Territótios Quilombolas. Atualizado
em 25 de julho de 2014. Disponível em: http://www.incra.gov.br/quilombolas.
SANTOS, Maria Elisabete Gontijo dos; CAMARGO, Pablo Matos. Comunidades
quilombolas de Minas Gerais no século XXI – História e resistência. Organizado pelo
17
Centro de Documentação Elóy Ferreira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica/CEDEFES,
2008.
SILVA, Daniela Santos da. A luta dos moradores do Quilombo da Família Fidelix
(Porto Alegre/RS) pela regularização fundiária. Dissertação de Mestrado em
Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
LEGISLAÇÃO
BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Instrução
Normativa nº 57, de 20 de outubro de 2009. Disponível em: http://www.incra.gov.br/
BRASIL. Ministério da Cultura - Fundação Cultural Palmares. Portaria nº 98, de 26
de novembro de 2007. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/
BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil,
de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/legislacao
BRASIL. Presidência da República. Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003.
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BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 6.261, de 20 de novembro de 2007.
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18
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Convenção nº 169, de 27 de
junho de 1989. Disponível em: http://www.oitbrasil.org.br/
JURISPRUDÊNCIA
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº
5017803-68.2014.404.0000, Quarta Turma, Relator Des. Luís Alberto D'Azevedo
Aurvalle, julgado em 30/09/2014.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº
5029712-44.2013.404.0000, Terceira Turma, Relator Des. Nicolau Konkel Júnior, julgado
em 26/03/2014.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação em Reexame
Necessário nº 5002938-62.2014.404.7009, Terceira Turma, Relatora Desa. Marga Inge
Barth Tessler, julgado em 21/05/2014.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Agravo de Instrumento nº
5000406-93.2014.404.0000, Terceira Turma, Relator Des. Fernando Quadros da Silva,
julgado em 28/05/2014.
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