APELAÇÃO CÍVEL Nº 2008.70.09.001331­ 2/PR
RELATOR:Des. Federal VALDEMAR CAPELETTI
APELANTE:ASSOCIAÇÃ O DOS PROPRIETÁRIOS E POSSUIDORES DO IMÓVEL PINHAL OU ÁGUA GRANDE
ADVOGADO:Joao Alberto da Silva Borges e outros
:Marco Antonio Joaquim
:Francisco Carlos Ribeiro
APELADO:INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZACAO E REFORMA AGRARIA ­ INCRA
ADVOGADO:Solange Dias Campos Preussler
:Joao Carlos Bohler e outro
APELADO:ASSOCIAÇÃ O DA COMUNIDADE NEGRA RURAL DA ÁGUA MORNA
ADVOGADO:Maria Rita Reis
EMENTA
PROCESSUAL. CIVIL. INTERDITO PROIBITÓRIO. INDEFERIMENTO INICIAL. POSSÍVEL ÁREA REMANESCENTE DE COMUNIDADE QUILOMBOLA.
Evidenciado que o INCRA agiu nos estreitos ditames legais ao fazer inspeções nas propriedades dos apelantes, visando ao levantamento de informações e demarcação de área a ser proposta como remanescente de comunidade quilombola, mostra­se correta a sentença que entendeu não haver justo motivo para a expedição de mandado interdital proibitório.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, por unanimidade, negar provimento à apelação, nos termos do relatório, votos e notas taquigráficas que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
Porto Alegre, 17 de junho de 2009
VALDEMAR CAPELETTI Relator
RELATÓRIO
Trata­se de apelação contra sentença que indeferiu a petição inicial e extinguiu, sem resolução de mérito, ação de interdito proibitório proposta pela Associação dos Proprietários e Possuidores do Imóvel Pinhal ou Água Grande em desfavor do INSS e da Associação da Comunidade Negra Rural da Água Morna. Em razões, os Apelantes reiteram as razões da inicial no sentido de que tiveram suas terras invadidas por funcionários a serviço do INCRA, acompanhados de moradores da Comunidade Quilombola Água Morna, todos portando aparelhos de georreferenciamento e facões.
Apresentadas as contrarrazões, subiram os autos.
O Ministério Público Federal opinou pelo desprovimento do apelo.
É o relatório.
VALDEMAR CAPELETTI Relator
VOTO
Trata­se de apelação contra sentença que indeferiu a petição inicial, em ação de interdito proibitório proposta pela ora Apelante visando à proteção da posse de seus associados sobre imóveis rurais localizados no Município de Curiúva/PR.
Penso que deve ser mantida integralmente a sentença de 1º grau, por seus próprios fundamentos.
Com efeito. Os autos dão conta de que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária está fazendo estudo antropológico na localidade de Água Morna, pretendendo averiguar possível área remanescente de quilombo.
Em função disso, houve a necessidade de fazer inspeções nas propriedades dos Autores, a fim de levantar informações da região e demarcar a área a ser proposta como remanescente da comunidade quilombola.
O MM. Juiz a quo entendeu que o INCRA agiu nos moldes legais para tanto, eis que notificou os proprietários dos imóveis sobre as inspeções e não usou de ações intimidativas.
Assim, não haveria justo motivo para a expedição de mandado interdital proibitório, nos termos em que preconizado pelo art. 932 do CPC.
Nesse sentido, confiram­se os termos da sentença monocrática, que mantenho integralmente:
"Aduz o Procurador da República, em suas argüições preliminares, que a via eleita pela requerente é inadequada, pois "a Autarquia agiu amparada pelo poder de Império que a Administração Pública em certas situações goza em razão supremacia do interesse público".
Pois bem.
A Constituição Federal, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ­ ADCT, reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir­lhes os títulos respectivos.
O Decreto nº 4.887, de 20 de dezembro de 2003, por sua vez, dispõe:
Art. 1º Os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, serão procedidos de acordo com o estabelecido neste Decreto.
Art. 3º Compete ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária ­ INCRA, a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1º O INCRA deverá regulamentar os procedimentos administrativos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, dentro de sessenta dias da publicação deste Decreto.
§ 2º Para os fins deste Decreto, o INCRA poderá estabelecer convênios, contratos, acordos e instrumentos similares com órgãos da administração pública federal, estadual, municipal, do Distrito Federal, organizações não­governamentais e entidades privadas, observada a legislação pertinente.
§ 3º O procedimento administrativo será iniciado de ofício pelo INCRA ou por requerimento de qualquer interessado.
Art. 6º Fica assegurada aos remanescentes das comunidades dos quilombos a participação em todas as gases do procedimento administrativo, diretamente ou por meio de representantes por eles indicados.
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
§ 1º Para os fins deste Decreto, o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel de propriedade particular, operando as publicações editalícias do art. 7º efeitos de comunicação prévia.
O egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região já se manifestou pela constitucionalidade do Decreto nº 4.887/03, consoante se infere pela ementa a seguir transcrita:
CONSTITUCIONAL. REMANESCENTES DE COMUNIDADES DE QUILOMBOS. ART. 68­
ADCT. DECRETO Nº 4.887/2003. CONVENÇÃO Nº 169­0IT. 1. DIREITO COMPARADO. DIREITO INTERNACIONAL. O reconhecimento de propriedade definitiva aos "remanescentes de comunidades de quilombos" é norma constitucional que encontra similitude no direito constitucional do continente americano. Questionamento, por parte de comitês e comissões internacionais cuja jurisdição o Brasil reconheceu competência, no sentido da preocupação com a violação dos direitos das comunidades negras, recomendando adoção de procedimentos para efetiva titulação das comunidades quilombolas. Compromissos firmados e que encontram substrato na "prevalência dos direitos humanos" como princípio regente das relações internacionais. 2. INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. Na interpretação das normas constitucionais, há que se ter em conta a unidade da Constituição, a máxima efetividade e a eventual concordância, não sendo, em princípio, inconstitucional regulamentação, por decreto, de direitos das referidas comunidades, passados quase vinte anos da promulgação de uma "disposição constitucional transitória". 3. NECESSIDADE DE LEI. A regulamentação, por meio de decreto, que não fere a Constituição, nem constitui espécie de decreto autônomo, quando: a) inexiste, para o caso, expressa previsão de lei em sentido formal, a regular a matéria; b) as Leis nº 7.688/88 e 9.649/98 dão suporte ao procedimento da administração; c) estão presentes todos os elementos necessários para a fruição do direito. 4. CONVENÇÃO Nº 169­OIT. Plena aplicabilidade do tratado internacional de proteção de "comunidades tradicionais", não destoando o Decreto nº 4.887/2003 de seus parâmetros fundamentais: a) auto­atribuiçã o das comunidades envolvidas; b) a conceituação de territorialidade como garantidora de direitos culturais; c) o reconhecimento da plurietnicidade nacional. 5. QUILOMBOLAS. Conceito que não pode ficar vinculado à legislação colonial escravocrata, tendo em vista que: a) a historiografia reconhece a diversidade cultural e de organização dos quilombos, que não se constituíam apenas de escravos fugitivos; b) a Associação Brasileira de Antropologia estabeleceu, com base em estudos empíricos, um marco conceitual, a servir de base para o tratamento jurídico; c) o dispositivo constitucional, de caráter nitidamente inclusivo e de exercício de direitos, não pode ser interpretado à luz de uma realidade de exclusão das comunidades negras; d) os remanescentes não constituem "sobra" ou "resíduo" de situações passadas, quando o comando constitucional constitui proteção para o futuro; e) fica constatada a diversidade de posses existentes, por parte das comunidades negras, desde antes da Lei de Terras de 1850, de que são exemplos as denominadas "terras de santo", "terras de índios" e "terras de preto". 6. DESAPROPRIAÇÃO. Instituto que não é, de início, inconstitucional para a proteção das comunidades, considerando que: a) a Constituição ampliou a proteção do patrimônio cultural, tanto em sua abrangência conceitual ( rompendo com a visão de "monumentos", para incluir também o patrimônio imaterial), quanto em diversidade de atuação ( não só o tombamento, mas também inventários, registros, vigilância e desapropriação, de forma expressa); b) onde a Constituição instituiu "usucapião" utilizou a expressão "aquisição de propriedade", ao contrário do art. 68­
ADCT, que afirma o "reconhecimento da propriedade definitiva"; c) existe divergência conceitual em relação à natureza jurídica prevista, que poderia implicar, inclusive, "afetação constitucional" por "patrimônio cultural" ou mesmo "desapropriação indireta". 7. CARACTERÍSTICAS SINGULARES. Existência de territorialidade específica, não limitada ao conceito de "terras", mas envolvendo utilização de áreas de uso comum, parcelas individuais instáveis e referenciais religiosos e culturais, a amparar pleno "exercício de direitos culturais", que não se estabelece apenas com a demarcação, que é mero ato declaratório. Obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público no processo. Necessidade de oitiva da comunidade envolvida e conveniência de participação de um "tradutor cultural", que permita às partes "se fazer compreender em procedimentos legais" ( Convenção nº 169­OIT). (TRF4, AG 2008.04.00.010160­ 5, Terceira Turma, Relatora Maria Lúcia Luz Leiria, D.E. 30/07/2008)
In casu, o Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares, reconheceu a Comunidade de Água Morna como remanescente das comunidades dos quilombos (fl. 187).
O INCRA, órgão administrativo federal a quem cabe identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular terras de comunidade remanescentes de quilombos, à luz do disposto no Decreto nº 4.887/03, notificou os associados da requerente, informando­os, entre outras coisas, que os imóveis sob seu domínio ou posse seria objeto de investigação e que eventual realização de trabalhos de campo seria realizada por equipe técnica designada pela Superintendência Regional do INCRA no Paraná (fls. 55/89).
A participação da Associação da Comunidade Negra Rural da Água Morna na vistoria é assegurada pelo artigo 6º do Decreto nº 4.887/03.
A teor do disposto no artigo 9º do Decreto, será garantido aos interessados, no âmbito do procedimento administrativo instaurado pelo INCRA, o contraditório e a ampla defesa, porquanto serão devidamente cientificados e poderão impugnar o relatório do laudo técnico elaborado pelo INCRA (art. 7º).
Os atos praticados pelo INCRA estão, portanto, amparados pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ­ ADCT e pelo Decreto nº 4.887/03, o que afasta o justo receio a que se refere o artigo 932 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 932. O possuidor direto ou indireto, que tenha justo receio de ser molestado na posse, poderá impetrar ao juiz que o segure da turbação ou do esbulho iminente, mediante mandado proibitório, em que se comine ao réu determinada pena pecuniária, caso transgrida o preceito.
Sobre a natureza da ação de interdito proibitório, ensina Antonio Carlos Marcato:
"... o interdito proibitório caracteriza­ se pela sua natureza preventiva, impondo ao réu, sendo acolhido pelo órgão jurisdicional, um veto (preceito de não fazer, ou seja, de não turbar ou não esbulhar a posse do autor) e uma cominação de pena pecuniária, caso ele transgrida a ordem judicial (CPC, art. 932).
A concessão do mandado proibitório implica necessariamente o reconhecimento, pelo juiz, da pertinência do justo receio demonstrado pelo autor em ver sua posse na iminência de ser molestada pelo réu, daí a correção da advertência feita por Furtado Fabrício no sentido de que 'o justo receio, de um lado, é o temor justificado, no sentido de estar embasado em fatos exteriores, em dados objetivos..." (in Procedimentos Especiais. 13ª ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 163, negrito no original). De todo o exposto, conclui­se que o meio utilizado pela Associação dos Proprietários e Possuidores do Imóvel Pinhal ou Água Grande não se presta ao fim por ela pretendido. Com efeito, o pedido veiculado não se dirige à proteção do fato posse, mas ao trancamento de quaisquer atos de identificação, reconhecimento, delimitação e demarcação de terras por parte dos requeridos. Ocorre que tais atos visam instruir procedimento administrativo destinado à titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, previsto no artigo 68 do ADCT e no Decreto nº 4.887/03.
O indeferimento da petição inicial é, portanto, medida que se impõe" (fls. 215/217).
Ante o exposto, voto por negar provimento à apelação.
VALDEMAR CAPELETTI Relator
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