Grupo de trabalho: GT I - Direitos humanos, violência e criminalização da
pobreza.
Título do trabalho. SUJEITOS FAUNOS OU SUJEITOS-SEM DIREITOS.
Nome: JOSÉ HENRIQUE CARVALHO ORGANISTA – Dr. Ciências Sociais –
Professor Adjunto de Ciência Política – Universidade Federal Fluminense –
UFF-1
RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo
demonstrar que mesmo na República-democrática
encontram-se presentes elementos constituídos desde o
“achamento” do Brasil que tornam “invisíveis” a violência
contra o outro, o inimigo. Os chamados direitos
fundamentais, mesmo acostados em nossa Carta
Política, são regularmente desrespeitados, fortalecendo a
relação de mando, clientelismo e favor, desta forma é
possível perceber que no lugar do par – igualdade –
liberdade- legitimado pela democracia liberal se reafirma
bloqueando as iniciativas populares que se atrevam ir
além da “rebeldia consentida”, acirrando ainda mais a
carência, a exclusão e carimbando quem é ou não é
sujeito-de-direito.
Palavras-chave: Brasil, direitos, criminalização, inimigo
RESUMEN: El presente trabajo tiene como objetivo
demostrar que incluso en los elementos Repúblicademocráticos son su composición actual de "achamento"
en Brasil que hacen que la violencia "invisible" contra el
otro, el enemigo. Los llamados derechos fundamentales
incluso albergado en nuestra Carta Política, son violados
regularmente, el fortalecimiento de las relaciones de
autoridad, el clientelismo y el favor, de esta manera se
puede ver que, en lugar del par - igualdad - libertadlegitimado por la democracia liberal se reafirma el
bloqueo de las iniciativas populares que se atreven a ir
más allá de la "rebelión consensual", lo que agrava aún
más la escasez, la exclusión y la estampación que está o
no está sujeto a derecha.
Palabras clave: Brasil, los derechos, la criminalización,
enemigo
1
Professor Adjunto de Ciência Política do Curso de Ciências Sociais da Universidade
Federal Fluminense – UFF-. Coordenador do Núcleo de Pesquisas em Teoria Social
(NEPETS-UFF). Pesquisador Associado do Programa de Pesquisa da América Latina
e Caribe (PROEALC-UERJ). Pesquisador do Núcleo de Estudos do Poder (NEPUFRJ). Editor da Revista Convergência Crítica.
INTRODUÇÃO.
Normalmente vemos como pares indissociáveis os conceitos de democracia e
liberalismo de forma que a existência de um parecer prescindir do outro. Fica
claro nos discursos e teses sustentadas pelos ideólogos das chamadas
Revoluções Burguesas a preocupação em separar democracia e liberalismo.
Em síntese, o “povo”, “a massa inculta” deveria ser tutelada, controlada e, por
que não dizer, “desincentivada” de participar da política, através de
mecanismos censitários pautado na propriedade e na renda, formando assim
uma noção não-inclusiva de cidadania.
No Brasil, a relação entre democracia e liberalismo é ainda muito mais
complexa. Entendida, em resumo, como estranha aos interesses da classe
burguesa, posto que na Insula Brasil, ao contrário dos países europeus, a
revolução “atípica” manteve intocáveis os privilégios senhoriais, a relação de
mando-obediência,
o
favor,
o
clientelismo
e
o
mandonismo
como
características que singularizam nosso liberalismo como autoritário.
Este modelo autoritário, como veremos adiante, tem seu construto no período
colonial e se encontra plenamente vigente nos dias atuais. Importa ressaltar
que para ter força e validade, ainda hoje, foi importante estabelecer uma
hegemonia que caracteriza a construção do Estado-Nação a partir dos
discursos transcendental e/ou secular que ressaltam ufanisticamente a
natureza (clima, relevo, etc.), bem como a natureza humana gentil, cordial,
afável e sem preconceitos do “povo brasileiro” em que pese o não insignificante
derramamento de sangue neste Paraíso-País. Não é de se espantar, pois, que
a historiografia brasileira só recentemente trate das inúmeras batalhas de
resistência indígenas, tais como, a Guerra dos Bárbaros, no Rio Grande do
Norte, as guerras do gentio Paiaguá (1732-1736) etc., e as lutas dos negros
quilombolas e colonos como a Guerra dos Mascates (1710-1711), o motim
militar na Bahia (1728), a Conjuração Mineira (1789) e o enforcamento e
esquartejamento de Tiradentes, a Guerra de Canudo (‘ a 1897) no interior do
estado da Bahia.
Este povo ordeiro e pacífico é capaz de cometer e/ou concordar com a prática
de violência, legitimando a exclusão que conforma a sociedade brasileira numa
polarização entre sujeitos-cidadãos e sujeitos-faunos/sujeitos-sem direitos,
onde estes últimos são tratados como inimigos à là Carl Schmitt.
1.A CONSTRUÇÃO DE SEMIÓFORO: Deus e o diabo na Insula Brasil.
No Brasil de 2014, ainda muitos acreditam no semióforo que nos define como
um “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, habitado por um
povo bom, pacífico e ordeiro, mas que se chamado “não foge à luta” e “nem
teme quem te adora a própria morte”.
Como escreveu Afonso Celso em seu livro Porque me Ufano do meu País,
temos, segundo o autor, 11 motivos para a superioridade do Brasil, distribuídos
entre a natureza, a história e o povo. Quanto à natureza, além de nosso imenso
território, temos fauna e flora invejáveis. A nossa natureza é tão rica,
diversificada e abençoada que a sua distribuição se dá “conforme as leis
naturais do trabalho”, assim, “não conhecemos proletariado, nem fortunas
colossais (...)nem pauperismo, pior que a escravidão(...) No Brasil, com
trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições”. “Não existe
pecado embaixo do equador”, posto que contrariando todos os cientistas, “o
mestiço brasileiro não denota inferioridade alguma física ou intelectual”. Como
poderia ser diferente? Afinal, o “achamento” do Brasil não representava o
encontro do Paraíso Terrestre tão decantado no medievo e continuadas no livro
História do Futuro ou Do Quinto Império do Mundo e as Esperanças de
Portugal, do Padre Antônio Vieira.
Entrementes, não podemos esquecer que no Paraíso “original”, além de Adão
e Eva, habitava por lá a serpente que, nos ensina o evangelho, fez pecar o
casal, causando-lhes a expulsão do Paraíso. Claro, não seria diferente nessa
Insulla de Brasil. Por cá, neste jardim, não há apenas nós, povo pacífico e
ordeiro, imagem e semelhança de Deus, há também a serpente, o mal, o diabo,
enfim O outro.
Como, após exposição efusiva de nossa natureza, história e povo, pode no
País-paraíso coadunar a existência de Deus e o Diabo? A resposta não é
simples e opera em dois sentidos interligados: um transcendental e outro
secular. Na primeira, a convivência entre Deus e o Diabo na Terra do Sol pode
ser explicada pela disputa cósmica e teológica onde o homem segue a vontade
de Deus afastando-se e reaproximando de Dele, neste sentido a batalha entre
Deus e o Diabo irá perdurar até que Ele decida o fim dos tempos, o fim da
história, onde a ordem sagrada afirmará seu poderio sobre o tempo profano e
secular, enfim, contra o reino do Anticristo no juízo final. Em outras palavras, no
tempo transcendental o mal deve ser combatido com e pelo evangelho levado
as “nações” indígenas que aqui habitavam e, a posteriori, as “nações” negras
que pra cá foram trazidas e escravizadas. Quanto a segunda, se inspira nas
noções/ideias da existência de um direito natural de filiação católica-romana
que se refere ao direito natural objetivo e subjetivo. O direito objetivo é oriundo
diretamente de Deus. Ele é o criador de uma ordem natural que equilibra os
seres hierarquicamente onde a existência de mando e obediência, comando e
subordinação é previamente definido. Já o direito natural subjetivo entende o
homem como ser dotado de razão, capaz de discernir entre o bem e o mal, o
certo e o errado, o justo do injusto, tendo por fundamento a sociabilidade
natural do homem. Justapostas estas considerações explicam a coexistência
de Deus e do Diabo no Paraíso-país, haja vista que o tempo sagrado, o juízo
final ainda não se consumou, bem como ao tomar como fulcro o direito natural
objetivo e subjetivo temos uma hierarquia de perfeições e valores planejada por
Deus e que alcança a razão e o desejo do homem enquanto ser de uma
sociedade naturalizada.
As nuvens que batizaram nosso “achamento”, o entrelaçamento entre o tempo
sagrado e profano e entre o direito natural objetivo e subjetivo são disposições,
não as únicas, que nos ajudam a decifrar a esfinge que permite obscurecer,
desde o início da colonização o convívio entre pares aparentemente
antagônicos, como escravidão/liberalismo, liberdade/servidão, litoral/sertão,
setor agrário/industrial, moderno/atrasado ou capital/trabalho, bem como a
indiferenciação entre público/privado, legal/ilegal. Sob o símbolo unificador da
Pátria Brasil formamos um povo ordeiro, pacífico, generoso e sem
preconceitos, somos um só povo, uma só língua, um só território, uma só
vontade. Por isto, não é de se estranhar que a cada quadra histórica o Diabo
ou o mal seja incorporado por diferentes personagens – o colonizador, o negro,
o sertanejo, o homem do litoral, o liberal, o comunista, o pobre, etc. -. Todos
representavam/representam o inimigo a ser combatido, o outro que ameaça a
nossa paz interna/externa e nossa unidade.
Como diz o dito popular “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”, em outras
palavras, numa sociedade que conserva fortemente a cultura senhorial, as
relações sociais são verticalizadas e a(s) desigualdade(s) aparece(m) na(s)
forma(s) nua(s) e crua(s) de perseguição, opressão sistemática e naturalizada
que sustenta(m) todo e qualquer tipo de violência, isto é claro, desde que seja
cometida contra o outro, o diferente, enfim o inimigo, jamais reconhecido como
agente ou sujeito de direito.
Sob o manto da cultura senhorial e do semióforo do patriotismo todas as
diferenças sociais, econômicas e políticas são bloqueadas e mantidas sob
controle do aparato burocrático legal, tratadas, portanto, como perigosas e
inimigas da imagem construída de uma sociedade ordeira, una, pacífica e
cordial.
Não há perdão para aqueles que ousam desenvolver qualquer tipo de ação que
tentem expor nossas contradições para além da “rebeldia consentida” e, pois,
tutelada pelo Estado. Estes terão sorte se prevalecer o dito popular que,
conforme citado acima, assevera: ¨ao inimigo a lei”, pois, não raro, a lei se
torna uma exceção. Nada incomum para uma sociedade mediada por uma
concepção quase transcendental do poder – cabe lembrar que o direito objetivo
e subjetivo acima concebem a organização hierárquica de mando-obediência
como emanação divina- que o favor, o clientelismo, o mandonismo, o
compadrio assuma valor positivo, mantendo a indistinção entre o público e
privado, tornando a relação entre governantes e governados marcada pelo
privilégio e pela corrupção não somente dos fundos públicos, mas em relação a
própria realização e operação dos direitos inalienáveis da pessoa humana,
transformando direito, mesmo os já consolidados em nossa Carta Política, em
favor. Trata-se de um magnifico construto hegemônico que é capaz de
naturalizar as diferenças e desigualdades, ocultando as tensões e as
discriminações que operam no cotidiano atrelando a cidadania a luta pelos
direitos humanos aos “donos do poder”.
Será que alguém desconhece que muitos procuram seus representantes para
solicitar favores, para conseguir remédios, internações, escola, segurança,
transporte, etc.? Reparemos que estes “favores” são todos cláusulas pétreas
de nossa Carta Política. Agindo assim não se reforça a relação de mandoobediência ou de clientelismo-tutela?
Não se perde com tal expediente a
situação de cidadão para assumir o “papel” de servidão? Este apelo aos
representantes suprime a ideia de cidadão portador de direitos universais e
reforça o amalgama entre o público e privado, demonstrando de forma clara
que na democracia à brasileira não há espaço regular para além da “hora do
voto” ou quando existe este é regulado e tutelado pelo Estado que trata de
formata-lo, enquadra-lo juridicamente, satanizá-lo ou culpar o(s) agente(s) por
sua degeneração, preguiça, perversidade, criminalizando-os, portanto.
Como não se pode negar a existência extremamente visível e crescente dos
less, ou seja, os sem-teto, sem-terra, sem-trabalho, sem-saúde, semsegurança o Estado ou melhor os representantes eleitos atuam como doador
que ajuda manter a relação verticalizada de poder e a busca individual de
favores e privilégios, dificultando, sobremaneira, ações de cariz coletivo.
Todavia, esta forma de construção de consenso, alicerçada na lógica do favor
e do clientelismo é limitada, não contemplando, pois, a grande maioria dos
less. Para os não contemplados e que teimam em se manter presente no
espaço público são considerados muito mais do que desviantes da norma, na
verdade são “marginais”, “vagabundos”, “terroristas” que desejam viver
acostados junto ao Estado.
Logicamente não estou negando que os conflitos, as tensões e as contradições
não sejam percebidas, em especial pelos agentes sociais que lutam pela
expansão e garantia dos direitos humanos, o que desejo salientar é que o
simulacro do patriotismo de longa duração ajuda a bloquear e a conter as
reinvindicações populares, às vezes cooptando, às vezes ressignificando e não
raro, às vezes criminalizando e carimbando o outro como inimigo que sequer
se deve a observância da lei, tal desideratum aparece de forma concreta na
obra intitulada Teologia Política de Carl Schmitt que tratarei adiante.
Se a cultura senhorial imprimi sua marca de forma contínua nas relações
sociais desde o período colonial, entrelaçada com os preceitos neoliberais
aumenta, de forma sem precedentes, a privatização – stricto e lato sensu- do
Estado e o encolhimento do espaço público, por consequência, para melhor
alcançar a ordem e o progresso faz-se necessário, deste ponto de vista,
desqualificar a política e exaltar a não-política, satanizando tanto o Estado
quanto os movimentos populares e sindicais.
Grosso modo, o neoliberalismo pode ser definido de forma reduzida como mais
Estado para o capital e menos ou ausência completa de Estado para garantias
e/ou investimentos sociais aumentando o gap entre os poucos privilegiados e
os muitos excluídos, tornando mais intensa e visível a desigualdade, posto que
os direitos sociais passam a ser obtidos pela lógica do mercado, no limite
podemos afirmar que tudo, até mesmo a vida, se transforma em mercadoria.
Juntamente com o aumento do gradiente entre privilegiados e excluídos surge
com intensidade a ideologia de “faça-te a si mesmo”, responsabilizando os
indivíduos na corrida pela ocupação de um lugar no Olimpo. Caso não consiga
chegar lá a culpa é do próprio indivíduo. O ponto fulcral da política é a
autogestão para capacitar a si próprio na conquista dos bens sociais extraeconômicos, vejam, bens sociais, não mais direitos sociais.
O resultado da implementação deste paradigma neoliberal é que a maioria irá
ocupar o limbo na condição de sujeitos-não sujeitos, de sujeitos-sem direitos,
considerados assim, não temos mais homens portadores de direitos universais,
mas faunos ou sujeitos-sem-direitos, cuja ação política é desqualificada e
carimbada como perigosa para manutenção da ordem. Para estes sujeitos-sem
direitos, perturbadores da ordem, da harmonia e da paz interna recrudesce o
imperativo da violência, mascarada sob o signo da governabilidade.
Se outrora, segundo Wanderley Guilherme dos Santos, tínhamos uma
“cidadania regulada”, ou seja, uma “casta” de trabalhadores que se enquadrava
dentro da ordem através da carteira de trabalho, hoje temos, sob a ótica que
defendo, a partir de observações empíricas, cidadãos-sujeitos de direitos e
sujeitos-sem direitos. Esta polarização leva ao extremo a hierarquização
presente em nossa sociedade desde o começo de nossa colonização e
mantida sob o viés assumido pela democracia-republicana-liberal, marcada por
um descompromisso com a expansão/garantia dos direitos sociais, mais
notadamente em relação aos direitos humanos.
A existência de sujeitos-sem direitos não abala a imagem que temos de nos
mesmos de uma sociedade cordial, ordeira, generosa, alegre e sem
preconceitos como demostrou as pesquisas de opinião do Instituto Vox Populi,
datada de 1995, encontramos também com resultados praticamente iguais no
texto da pesquisadora Luci Pandofi, tendo como base pesquisa realizada pela
FGV/CPDOC-ISER,2 do mesmo período, na região metropolitana do Rio de
Janeiro. Abaixo reproduzo alguns dados desta pesquisa.
“De acordo com a nossa legislação, uma pessoa só pode
ser presa em situação de flagrante delito ou por ordem do
juiz. Entretanto, mais de 40% dos entrevistados
afirmaram que no Brasil alguém pode ser preso por mera
suspeita”. (p2)
“mais de 60% da população concordam totalmente com
a afirmativa “os bandidos não respeitam os direitos dos
outros e por isso não devem ter seus direitos
respeitados”; mais de 40% consideram “o uso de
métodos violentos para a confissão de suspeitos
justificável em alguns casos” e mais de 40% consideram
“o linchamento de criminosos uma atitude errada, porém
compreensível”.. (p.5)
2
A pesquisa “Lei, justiça e cidadania” foi realizada pelo CPDOC da FGV em parceria com o Iser
entre setembro de 1995 e julho de 1996. Baseada em amostra aleatória da população da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro, foram entrevistadas 1.578 pessoas. Os resultados da
pesquisa podem ser encontrados em duas publicações: Lei, justiça e cidadania: direitos,
vitimização e cultura política na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro,
CPDOC-FGV/Iser, 1997) e Lei, justiça e cidadania: cor, religião, acesso à informação e
serviços públicos (Rio de Janeiro, CPDOC-FGV/Iser, 1998) Os trechos acima foram extraídos
do artigo Percepção dos Direitos e Participação, acessado em 20.07.2014 em
http://www.comunidadesegura.org/files/percepcaodedireitoseparticipacaosocialdulce.pdf
Além da dificuldade de expressar seus direitos, a
precariedade da nossa cidadania parece transformar os
direitos em um bem escasso, em algo que só pode ser
alcançado mediante determinadas condições. Podem,
inclusive, tornar-se objeto de disputa entre pessoas
consideradas merecedoras e não-merecedoras dos
direitos. É como se os benefícios recebidos pelos nãomerecedores representassem uma privação ou um ônus
para os demais membros da comunidade. Sendo assim,
contra as pessoas ou grupos sociais considerados
beneficiários indevidos, justificam-se medidas restritivas
para reduzir os benefícios, ou seja, para reduzir os
direitos. (...) Outras vezes, diante dessa situação de
carência de cidadania, são determinadas qualidades
morais que podem tornar as pessoas merecedoras dos
direitos.(p.10)
ao invés de utilizar os canais institucionais, a população
acredita que o acesso direto às autoridades, apelando-se
inclusive para a sua boa vontade, pode ser o melhor
caminho para a obtenção dos direitos (p.10)
No que diz respeito à polícia, a visão também é bastante
negativa(...) entre aqueles que foram vitimados na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, quer tenha sido por falta
de confiança, quer por medo de represália, apenas uma
minoria de 20% recorreu à polícia. Entretanto, se a
população não confia na instituição para resolver seus
problemas, essa confiança parece aumentar quando se
trata de combater a violência, combater a criminalidade. (
p.12)
Sessenta e três por cento da população concorda que
quanto maior a presença de policiais na rua, menor a
criminalidade. (...) justifica-se, também, que a polícia use
métodos violentos para obter a confissão de culpados.
Ou seja, as pessoas não confiam na polícia, mas
atribuem a ela responsabilidades como o combate à
criminalidade e, mais do que isso, atribuem a ela poderes
discricionários, inclusive atribuições que violam os
direitos humanos, como é o caso do uso de métodos
violentos para obter confissão de culpados. (p.12)
Dos excertos acima podemos concluir que a violência é uma marca indelével
da sociedade brasileira, logicamente, desde que cometida contra outrem, em
especial contra aqueles que recebem o carimbo de inimigo. Afinal, “bandido
bom é bandido morto”. Todavia, nem sempre fica claro de que bandido
falamos, hoje ele pode ser quem comete latrocínio, estrupo, assalto, amanhã
poderão ser os sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, o estrangeiro, o nordestino,
o “afrodescendente” ou simplesmente aquele que “numa balada mexeu com
alguém comprometido(a), a qualificação de inimigo irá depender de quem
assim o condicionar, podendo ser a polícia, o tráfico, a milícia ou o poder
judiciário. É inconteste que a cada dia ouvimos clamores por maior segurança
e que a cada eleição este tema se destaca nas pesquisas como de alto nível
de preocupação por parte do eleitorado.
Pedimos mais polícia, penas mais duras e concordamos, conforme demonstra
a pesquisa acima citada, com a violação dos direitos humanos, repito, desde
que seja do outro. Os clamores por mais segurança e penas mais duras não
ecoam no vazio. Estes sustentam e são sustentadas por discursos
concatenados por políticos, apresentadores de programas policiais e pelo
poder judiciário de que nem todos são igualmente portadores de direitos,
abrindo assim uma verdadeira guerra contra o inimigo do dia. Como num
Estado Democrático de Direito não pode coadunar incertezas na aplicação da
lei e no processo jurídico, muitos tem resgatado o princípio argumentativo de
Carl Schmitt de “Estado de Exceção”. Vinculado incialmente à crítica da
Constituição da República de Weimar que, segundo Schmitt, tenta organizar
sua carta através de um pluralismo político inadequado ao “decisionismo” no
enfrentamento do outro. Assim, entende que a Constituição de Weimar,
configura-se de procedimentos dilatórios que obstam a necessária ordenação
“natural” entre amigos e inimigos.
2.CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Não me parece absurdo colocar o fatídico dia de onze de setembro de 2001,
como a data que inaugura ou deixa mais transparente mundialmente o Direito
de Exceção. Após o episódio do ataque ao World Trade Center e ao prédio do
Pentágono, o congresso dos Estados Unidos aprova uma Lei de exceção que
autoriza o governo americano a vigiar, prender e caçar em qualquer parte do
mundo aqueles considerados suspeitos3. Incrementa-se uma guerra interna e
externa contra o inimigo, mesmo que latente, tendo por consequência o
encerramento dos direitos civis e humanos para garantir a segurança pública.
3
O U. S. Patriot Act ( Ato Patriótico ) foi aprovado por 98 votos contra 1 no Senado e 357 a 66 na
Câmara dos Deputados, em outubro de 2001 e renovada em março de 2006.
A política americana contra o terror reforçou o caráter punitivo do Estado por
todo o globo, marcando um processo de internacionalização do “autoritarismo
democrata”4 como resposta ao surgimento de novas exclusões oriundas do
Consenso de Washington”.
A “guerra contra o terror” não é mais que um simulacro, haja vista seu
deslocamento para questões internas em que o inimigo passa a ser todos e
quaisquer indivíduo, instituição e/ou movimento social –novos e antigos – que
coloquem ou possam vir a colocar em questão o desenvolvimento capitalista
excludente vigente desde o fim do Estado de Bem-Estar Social. A produção de
uma “estética do medo” se faz necessária para sustentar os argumentos que
dão base para que ações extralegais que justifiquem a supressão ou
eliminação do outro, do inimigo. De acordo com Bauman ( 2008, p. 10), “as
reações defensivas ou agressivas resultantes, destinadas a mitigar o medo,
podem ser dirigidas para longe dos perigos realmente responsáveis pela
suspeita da insegurança”. Em outras palavras, o medo é disseminado de forma
a fortalecer ações antidemocráticas que jogam um véu sobre o desinvestimento
do Estado nas questões sociais e faz ampliar o Estado Penal.
O Estado penal ou Direito do inimigo se caracteriza pela desproporcionalidade
das penas através do recrudescimento do código de execução penal, tornando
ainda mais seletivo e autoritário no caso brasileiro, posto que se soma a
desigualdade historicamente mantida onde a prática autoritária, a hierarquia, o
clientelismo, o mandonismo e o “favor” são constituintes e constituídos de
nosso semióforo Paraíso-País5. De acordo com Souza (2003)
Neste início de milênio, quase todas as esferas da vida
social, íntimas ou públicas, foram investidas e pensadas
4
Assim como o capital se mundializou, tornando a exploração do trabalho mais complexificada, também
o fez o Direito. Neste sentido, é esclarecedora a carta de Engels a Conrad Schmidt, que versa sobre a
relação entre direito e economia. Nela esclarece o autor que não existe em Marx uma determinação
monolítica das condições materiais sobre as demais atividades, esvaziando estas e tornando-as sem
valor. O que acontece é “que a nova divisão do trabalho se torna necessária e leva o surgimento de
juristas profissionais, abre-se por sua vez um domínio autônomo que, embora dependente, de maneira
geral, da produção e do comércio, possui também certa capacidade particular de reagir contra aqueles
domínios” (Marx & Engels. Obras escolhidas. São Paulo. Alfa-Ômega, s.d, volume 3).
5
“deslegitimação das instituições legais e judiciárias, a escalada dos abusos policiais, a criminalização dos pobres, o
crescimento significativo da defesa das práticas ilegais de repressão, a obstrução generalizada ao princípio da
legalidade e a distribuição desigual e não equitativa dos direitos do cidadão” (Wacquant, 2001, p. 12).
tendo como foco as questões de segurança. Ela está na
ordem do dia em termos das preocupações de qualquer
cidade, em qualquer quadrante do mundo. Mesmo em
países como o Brasil, nos quais a pobreza e o
desemprego
pesquisas
de
assumem
opinião
dimensões
têm
alarmantes,
apontado
a
as
crescente
preocupação das pessoas com a violência e com o crime.
A segurança tem eclipsado outras mazelas sociais
urgentes do país. Os resultados dessa obsessão
securitária estão expressos claramente no aumento dos
contingentes policiais, no crescimento da população
carcerária, na maior sofisticação dos equipamentos
eletrônicos, numa ampliação dos poderes dos órgãos de
controle e na disseminação de mecanismos de vigilância
(Souza, 2003, p. 164). (Grifos meus).
Se na década de 19[80] em plena pujança do neoliberalismo a justificativa para as
privatizações e flexibilização do Direito do Trabalho era a de que o Estado deveria
investir em saúde e educação, na atual quadra histórica por conta do efeito colateral
desastroso da implementação do ideário neoliberal, a insegurança, o aumento da
criminalidade, da pobreza, o surgimento recente dos Black Bloc, não são vistos como
consequência, mas como fomentadores do medo que, em última instância, pede “uma
resposta pronta e imediata, que deve durar enquanto o estado emergencial
perdure” (Beck, 2004, p. 95)6.
É inconteste que os “efeitos colaterais” concernentes à aplicação do receituário
neoliberal fez aumentar o encarceramento e anulação política e social do
enorme contingente marginalizados neste processo. Assim, a justiça social se
mantém como discurso e meta, cuja gestão passa ser do Direito Penal.
Segundo Garland (2008)
O crime foi redramatizado. A imagem aceita, própria da
época do bem-estar, do delinquente como um sujeito
necessitado, desfavorecido, agora desapareceu. Em
vez disto, as imagens modificadas para acompanhar
a nova legislação tendem a ser esboços
6
Em conformidade com a pesquisa de FRADE (2007) sobre projetos, no poder legislativo, de cariz
criminal, em quatro (4) anos foram apresentados 646 projetos de lei sobre criminalidade. Destes, vinte
tinham como matéria o relaxamento da pena, sendo, portanto, 626 destinados a agravar penas e
restrições.
estereotipados de jovens rebeldes, de predadores
perigosos
e
de
criminosos
incuravelmente
reincidentes, acompanhando estas imagens projetadas,
e em reação retórica a elas, o novo discurso da política
criminal insistentemente invoca a revolta do público,
cansado de viver com medo, que exige medidas fortes de
punição e de proteção. O mote aparente da política é
agora mais a revolta coletiva e o justo reclamo por
retribuição do que um compromisso com a construção de
soluções sociais justas (GARLAND, 2008, p. 54). (Grifos
meus).
Esta imagem modificada, sugere a construção dos “estereotipados” como o
outro, o inimigo cuja norma e a lei não se aplicam, posto que aqueles se
desviam frequentemente destas. Nesta linha, vaticina, Jakobs ser necessário
apreender o direito para o cidadão e o direito para o inimigo, não importando o
fato, mas o autor do “delito”. Desta maneira, ainda conforme Jakobs em
momentos que não se encontra qualquer garantia de condutas pessoais
mínimas na ordem vigente, é justo despersonalizá-las, tornando-as nãopessoas, excluindo, pois, os direitos normativos por elas pretendidos. Seria
ilegítimo com os direitos das pessoas. Para as não-pessoas não se visa um
reparo aos danos causados, mas a eliminação de um perigo.
Este mecanismo de hierarquização de valores ou a separação entre direito do
cidadão e direito do inimigo não é estranho a nossa sociedade. Longe disto. O
problema é que sua dimensão se torna ainda mais grave numa sociedade
fortemente desigual, fortalecendo a relação de mando-obediência, clientelismo
e mandonismo em que os representantes eleitos mais representam o Estado
do que os cidadãos, fomentando uma individuação que ressignifica vícios e
virtudes.
Se a luta pelos direitos humanos por víeis parlamentar é restrita, por outro lado,
a ocupação do espaço público é criminalizada e seus atores carimbados como
“baderneiros”, “desordeiros” ou “vândalos”.
Entendo, pois, que a luta por direitos humanos desindividualiza e sustenta a
universalização do homem, não no sentido burguês, mas, sim, no marxiano, ou
seja, o homem enquanto ser genérico, posto que descortina a simbiose entre
aspectos democráticos e autoritários presentes na contemporaneidade. Neste
sentido, faz-se necessário a construção de uma contra-hegemonia em busca
da politização da arena pública que desembarace as intrincadas teias tecidas
pela estrutura e superestrutura que fez possível a existência de faunos ou de
sujeitos-sem-direitos. Tarefa árdua, principalmente se prevalecer o diletantismo
pedante que não nos deixa enxergar as contradições e os anacronismos no
concreto vivido em que reproduzimos quase bestialmente: “bandido bom é
bandido morto” ou “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
BIBLIOGRAFIFA
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. de Iraci Poleti, São Paulo:
Boitempo, 2004.
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José Henrique C. Organista