MARCELO CORRÊA S A N D M A N N
Poesia de José Paulo Paes
Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Letras, área de concentração
em Literatura Brasileira, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, para a obtenção do
grau de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Édison José da Costa
CURITIBA
1992
A
S¿Zv¿a.
A
me.u-6
pa^ii .
A todo¿ oò me.u¿ am¿go¿.
ii
AGRADECIMENTOS
Ao P r o f .
Édison J o s é da C o s t a ,
pela o r i e n t a ç a o
deste
trabalho.
Ao CNPq,
gral ao curso de
por me t e r p o s s i b i l i t a d o
uma dedicação
pós-graduação.
A Leociléa Aparecida V i e i r a ,
i i i
pela
datilografia.
inte-
R esum o
0
tica
do
presente
escritor
no
ano
de
de
198 6 ,
1947 ,
data
sua- p o e s i a
balhos
tas
al
brasileira
até
foca
com
publicaçao
em
0
(1953),
de
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A
construindo
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ao
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Paes
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(1951),
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(1967 ) ,
a
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Novas
da
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Meia
poesia
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estudo
poético
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anos
A
con-
esse
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vai
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se m o s t r a
do
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a
vai
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contemporâneas.
engajamento
de
que
50,
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Modernismo
político-social
a
que
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solicitações
cultural
a
de
e combativas
acentuadamente
brasileira
obra
permeia
maduro,
polêmicas
agora
sao
que
outras
mais
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poesia
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tempo
contato
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sensível
de
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p e r p l e x o , (1983 ) .
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de
poé-
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pessoal
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logo:
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longo
No
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contemporâneo
pelo
Sao
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Anatomias
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sua
reunião
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da
poesia.
com
mas
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(1958),
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A
por
(1947 ) ,
(1980)
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aluno
80.
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Um
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detalhe
trabalhos
Paulo
primeiro
seus
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livro
Residuo
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reunião,
e
da
momento
contidos:
Num
22
até
(1973),
aborda
brasileiro
publicada
chilenas
palavra
estudo
início,
se
e
revela
atento
ãs
experimentações
destas
nia,
das
um
ao
pendor
certo
formas,
gredientes
da
vanguarda,
combativo
travo
intenção
amargo,
de
subordinando
sua
concisão
intertextual
fundamentais
da
poesia.
.sua
Sátira,
conquistas
humor,
epigramática,
mais
madura
iro-
enxugamento
e m e ta 1 i n g i V l s t i c a
dicção
V
certas
e
sao
os
in-
pessoal.
Zu samm e n f a s su ng
Diese
Werkes
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im
Arbeit
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brasilianischen
Jahre
1947 ,
zu
por
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von
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Gedichte.
(1947),
gramas
Cúmplices
(1958 ),
(1 98 0 )
und
Im
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1922
Im
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kulturellen
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cartas
(1967 ) ,
Meia
der
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man
den
Kontext
in
in
1 986,
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es
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Datum
bis
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Be-
der
dann
Werke:
chilenas
des
ver-
0
aluno
(1954),
(1 9 7 3 ) ,
Ver-
Epi-
Residuo
(1983).
eine
de
f/ber s i c h t
1922)
bis
werden
von
zum
dann
Paes
jedem
Sicht.
einer
Paes,
tfber
die
wich-
b r a s i l i a n i s c h e n ^ D i c h t u n g - vom
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immer
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der
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und
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neuerer
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Analyse
lich
A n a tom i a s
ersten
vorgelegt.
Im
(1951),
Calendario
von
zelnen
Um
Dichters
bis
öffentlichung
sich
Jahrzehnt
mit
Details
untersucht.
einzelnen
Werke
letzten
Kapitel
Im
organischen
Entwicklungen
der
Dichtung
Eigenschaften,
die
diese
Weise,
von
die
Paes
Dichtung
Bei
Moder198 0,
die
ein-
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wird
schliess-
thematischen
im
Laufe
der
kennzeichnen,
und
Zeit
zu
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Das
sich
im
tigsten
Das
Laufe
in
sich
der
nahe
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Strömungen
Abstimmung
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stehen.
Zu
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soziale
Fragen,
den
als
ein
Werk,
engen
Dialog
mit
den
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Ziel,
durch
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frühen
der
im
In
das
Modernismus,
des
mit
die
und
bei
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reifsten
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starker
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das
herausbildet.
ein
eigene.
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ist
Aufforderungen
stehen
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Stimme
liegt:
als
des
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poetischen
seine
Dichter
sich
einem
eigenen
sehr
bestimmt
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in
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einer
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zeigt
der
zeigt
zeitgenössischen
Erlangen
Dialog
Paes1
Werk
denen
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ihm
aber
Engagements
politischgegenüber
sich
die
brasilianische
Dichtung
ist
dann
die
bestimmte
ner
ihrer
Dichtung
bitterer
men,
offen
fii'r
1 950
Experimente
Er r u ng e n sc hf t e n
ausdrucken.
Nachgeschmack,
i n t er t ex tu e 11 e u n d
wichtigsten
ab
Bestandteile
als
Satire,
sehr
der
sensibel
Avantgarde,
kämpferische
Humor,
epigrammatische
Ironie,
Kiïr z e ,
m e ta 1 i n g u i s t i sc h e
seiner
reiferen
d r u c k s we i se .
V i i
zeigt,
und
indem
Neigung
ein
er
sich
in
sei-
gewisser
KiYrzung
Absicht
und
sind
der
For-
die
persönlichen
Au s-
S U M Ä R I O
RESUMO
.
iv
ZUSAMMENFASSUNG
vi
1
INTRODUÇÃO
2
PANORAMA DA MODERNA POESIA BRASILEIRA
2.1
2.1.1
1
13
DUAS CONSIDERAÇÕES
13
O que se e s t á entendendo p o r moderna
poesia
brasileira
2.1.2
13
A moderna p o e s i a - b r a s i l e i r a
e -seus. momentos . - ..
2.1.2.1
Observações
2.1.2.2
Propostas
2.1.2.3
Reconhecendo momentos da moderna poesia
iniciais
15
destacadas
16
19
brasileira
2.2
MODERNISMO:
15
FASE
(19-22-19 30)
21
2.2.1
Um momento de renovação
21
2.2.2
O Modernismo
24
2.2.3
A poesia
2.3
MODERNISMO:
de 19 22
25
2^. FASE
(1930-1945)
2.3.1
Da ruptura ã c o n s o l i d a ç ã o
2.3.2
A poesia
2.4
40
.
40
42
GERAÇÃO DE 45
55
2.4.1
Duas versões c o n t r a d i t ó r i a s
2.4.2
A Geração de 45 como f a s e da p o e s i a
leira
55
brasi57
V i i i
2.4.3
2.5
A poesia
59
VANGUARDAS ANOS 5 0 / 6 0
2.5.1
Uma f a s e
2.5.2
Em s i n t o n i a
2.5.3
A poesia
67
de programas p o é t i c o s
coletivos
com o seu tempo
...
67
69
73
2.5.3.1
Concretismo
74
2.5.3.2
Neoconcretismo
78
2.5.3.3
Poesia Práxis
82
2.5.3.4
Poema P r o c e s s o
86
2.5.3.5
Violão
89
2.5.3.6
Tropicalismo
2.6
de Rua
PÕS-VANGUARDAS
2.6.1
Poesia Marginal
2.6.2
Poesia- anos 80
3
-
3.1
94
100
(anos
70)
...
108
A P O E S I A DE JOSË - PAULO- PAES.
O ALUNO
102
(1947)
...
120
120
3.1.1
Introdução
120
3.1.2
Análise
121
3.1.3
Conclusão
158
3.2
COMPLICES
(1951)
164
3.2.1
Introdução
164
3.2.2
Análise
164
3.2.3
Conclusão
204
3.3
NOVAS CARTAS CHILENAS
(1954)
209
3.3.1
Introdução
209
3.3.2
Análise
213
3.3.3
Conclusão
24 8
3.4
3.4.1
EPIGRAMAS
(1958)
253
Introdução
253
IX
3.4.2
Análise
254
3.4.3
Conclusão
29 2
3.5
ANATOMIAS
(1967)
298
3.5.1
Introdução
29 8
3.5.2
Análise
301
3.5.3
Conclusão
342
3.6
MEIA PALAVRA
(1973)
347
3.6.1
Introdução
34 7
3.6.2
Análise
348
3.6.3
Conclusão
385
3.7
RESÍDUO
(1980)
391
3.7.1
Introdução
3.7.2
Análise
393
3.7.3
Conclusão
412
3.8
CALENDÁRIO- PERPLEXO
. 391
(1983)
414
3.8.1
Introdução
414
3.8.2
Análise
416
3.8.3
Conclusão
442
4
CONCLUSÃO
. ...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
X
450
473
1
INTRODUÇÃO
Entre as possibilidades do discurso literário, a poesia
parece ocupar um lugar bastante peculiar. Há uma certa unanimidade com relação à sua importância e uma reverência acentuada frente â posição medular que ela ocupa entre os demais gêneros, como se a própria essencialidade do literário nela se
realizasse de maneira privilegiada. Ela é sempre
identificada
como a melhor"expressão do trabalho criativo com a palavra. No
entanto, ao que - tudo indica,1 o texto poético é muito^ pouco freqüentado- pelo jã-escasso -público leitor. Prefere-se em geral a
prosa de ficção, normalmente mais acessível, e, talvez por isso,
mais sedutora. Basta entrar numa livraria ou mesmo numa biblioteca e constatar: o espaço físico reservado à poesia é relativamente muitíssimo mais singelo. Confiram-se ainda os títulos
de literatura publicados pelas.editoras e uma mesma conclusão
se insinuará.
Os leitores comuns fogem do texto poético, situação por
vezes não muito distinta da de' -outros leitores,
supostamente
mais sofisticados, situados em posição de privilégio - alunos
de Universidade, professores, críticos, etc. Ou a poesia torna-se objeto de culto de uns poucos produtores e receptores,
que por sua vez não se incomodam muito em alimentar a súa inacessibilidade; ou ela é simplesmente deixada de lado, julgada
muito difícil e excessivamente distante do universo
imediato
2
das pessoas. Mistificação e despreparo vão se revelando assim
os pólos extremos entre os quais oscila o pêndulo da leitura
do texto poético, pólos perigosos, que falseiam a natureza viva e humana desse mesmo texto.
0 presente trabalho ê uma tentativa de aproximação amorosa do universo da1 poesia por alguém que num.determinado
ins-
tante já se sentiu um pouco intimidado em fazê-lo, talvez
jus-
tamente por acreditar tratar-se de um universo
impenetrável
para o comum das pessoas. 0 despreparo inicial revelou-se, ao
longo do tempo, aspecto muito mais circunstancial, do que essencial, carência de explicação menos misteriosa, enraizada em
todo um contexto cultural, e educacional especifico, que não se
importa em--massacrar no_: indivíduo-os_ seus impulsos vitais em
direção ao-artístico. Aprende-se a 1er e a gostar, de poesia
como se aprende qualquer outra coisa. A sua possível
ê a
complexidade
complexidade do próprio homem, portanto algo que está ple-
namente ao seu alcance.
Esse desejo de aproximação do universo da poesia - aqui
concretamente através de uma elaboração textual analitico-interpretativa - encontrou num autor especifico uma boa via inicial de acesso. José Paulo Paes, entre outros possíveis autores brasileiros, revelou-se um. poeta ideal., justamente por certas qualidades imediatamente sedutoras de sua poesia - acessível, ágil, lúdica, de franca e rápida comunicação com o leitor, ao mesmo tempo que refinada, culta, critica,
inteligente.
Sua obra permite ainda um passeio revelador pela produção poética brasileira das últimas décadas, dado o estreito diálogo
que ela estabelece com as tendências poéticas que lhe são contemporâneas, e com os problemas políticos, sociais, culturais
3
do pals que ecoam afinal no cerne dessas tendências. Ao desejo inicial de se mergulhar um pouco mais a fundo no universo
do texto poético vem se somar a possibilidade de um conhecimento melhor da realidade cultural brasileira contemporânea
através de um de seus poetas. 0 engajamento intelectual nas
coisas do pais, a que tanto se é solicitado, realiza-se de alguma forma aí.
Além destes pontos de justificativa pessoal de escolha,
convém destacar, tendo em vista o circuito eminentemente acadêmico ao qual este trabalho se encontra destinado, que Paes,
pelo que a bibliografia presentemente acessível indica, não
foi objeto ainda de estudo de mais vasto fôlego. Por ser um
intelectual importante da-s-letras- brasileiras da atualidade,
ativo não apenas como poeta, mas também como ensaísta e tradutor - e a importância do poeta deverá ser mais. incisivamente
assinalada no corpo deste trabalho -, justifica-se assim a dedicação de tempo, recursos e esforços pessoais e institucionais
ao estudo da sua poesia.
José
Paulo Paes nasceu em Taquaritinga, no interior do
estado de São Paulo, em 1926. Seus contatos iniciais mais vitais com o universo da poesia se dão já em sua juventude.
Augusto dos Anjos, com o seu Eu e outras poesias, é o autor
de primeiro impacto
sobre a sensibilidade
Mas é com Bandeira e Drummond
do futuro poeta.
que um certo conceito de poesia
enquanto linguagem ornamentada e .pomposa, necessariamente metrificada e rimada, ainda presente em Augusto dos Anjos, vem
abaixo e. o poeta descobre o veio da poesia moderna.
Entre 1946 e 1949, Paes se estabelece em Curitiba para
estudar química industrial no Instituto de Química do Paraná.
4
Aqui, juntamente a Armando Ribeiro Pinto, Glauco Flores de Sá
Brito e Samuel. Guimarães da Costa, organiza a revista "Idéia"
e colabora no "Joaquim", de Dalton Trevisan. Nessas duas publicações saem os seus primeiros poemas. Ainda em Curitiba, em
1947, viria a público O aluno, seu primeiro livro de poesia.
Depois dessa sua significativa permanência por aqui,
Paes vai para São Paulo a fim de trabalhar numa empresa farmacêutica, cidade em que se instalará definitivamente. Paralelamente a essa atividade profissional, continua escrevendo poemas- e produzindo artigos de jornal. Em 1952 sai Cúmplices, seu
segundo trabalho poético, todo ele dedicado a Dora, com quem
se casa nesse mesmo ano.
As ilustrações que acompanham os poemas desse segundo
livro haviam sido feitas por Nonê, filho de Oswald de Andrade
e amigo de Paes, através de quem o poeta, trava um contato pessoal com o polêmico e inovador modernista, naquele instante em
baixa no cenário da literatura.brasileira. A poesia de Oswald,
toda ela feita de condensados-"flashes" poéticos e vincada por
um humor muito característico exerce confessada influência sobre Paes.
É, aliás, sob o signo do humor, bebido também da poesia
inicial de Drummond, que Paes vai produzir a sua poesia de engajamento político-social, aspecto de sua personalidade
intec-
tual visível já desde os tempos de militância estudantil, mas
que iria encontrar formulação poética mais consistente somente
agora por volta de meados dos anos 50. Novas cartas chilenas,
de 1954, e Epigramas, de 1958, trabalhos que só sairiam em
livro em Poemas reunidos, de 1961, compõem a faceta mais militantemente ativa do poeta, nesse instante em plena sintonia
5
com a guinada ã esquerda dada pela intelectualidade brasileira.
Por essa época, Paes muda de atividade profissional,
passando a trabalhar, em regime de meio-expediente, numa editora. A outra metade do.seu tempo de trabalho ele vai dedicar
a traduções de livros, pagas â parte, atividade que exercerá
por mais de 20 anos, até finalmente aposentar-se e passar a
se dedicar a verter para o português trabalhos de sua escolha e
preferência, em especial livros de poesia.
Através de Cassiano Ricardo., um dos autores publicados
pela editora, Paes entra em contato pessoal com os poetas concretistas. A tendência ã concisão, ã síntese, ao enxugamento
expressivo, aspecto que" passa a caracterizar-cada vez mais a
sua obra, revela-se bastante afim ã tendência anti-discursiva
do' pro jeto - concretista. - A -influência do Concretismo,- devidamente assimilada e subordinada às. intenções crítico-satíricas de
Paes, são visíveis em livros como Anatomias, de 1967, Meia
palavra, de .1973, e Resíduo, de 1980, livros que compõem o instante em que Paes, confessadamente, teria atingido enfim, a sua
dicção poética mais pessoalizada.
Na década de 80 sairiam ainda Calendário perplexo, de
1983, Um por todos, de 1986, reunião de toda a obra do poeta
publicada em livro até então, e A poesia está morta mas juro
que não fui eu, de 1988, publicada na Coleção Claro Enigma,
organizada por Augusto Massi, marco editorial no âmbito da
poesia brasileira recente, que repôs em circulação autores
significativos e apresentou poetas novos surgidos na última
década. É ao longo desse período que Paes se vai destacando
cada vez mais como exímio tradutor de poesia e literatura, com
versões sempre elogiadas pela crítica.
José Paulo Paes, portanto, além de poeta - aspecto que
será abordado neste trabalho -, é também tradutor e ainda ensaísta 1 , o que delineia um perfil bastante específico de artista da palavra. Como.ensaísta - e no ensaio, entre as questões variadamente culturais, predominam as relativas ã literatura - ele é também de alguma forma um critico, portanto
alguém que exerce uma atividade de reflexão e avaliação da
produção literária. Paes vai se debruçar, com as armas da inteligência e da sensibilidade, sobre determinados textos de
criação, para, a partir deles, organizar um texto próprio de
intervenção analítico-interpretativa. Há sempre, nesse procès
so, um desejo de participação polêmica nas questões da cultura a partir-de uma- operação ; centrada-no próprio. texto. Com
essa faceta suar-sintoniza-se-bem também a de tradutor, a prin
clpio ativo nos mais variados.campos, mas- a p a r t i r de certo
momento dedicado'apenas ãs traduções literárias e, nesse âmbi
to, ã dificílima tarefa de traduzir poesia. Do inglês, do
alemão, do francês, do grego clássico e moderno, do latim,
etc. - são. muitas as versões de importantes autores, acessíveis agora também
em português. Como.no caso do ensaísta,
agora subordinadas a uma intervenção igualmente criativa, sen
sibilidade e inteligência são requisitos indispensáveis para
o tradutor. Encontrar paralelos poéticos em língua portuguesa para textos em outras línguas mobiliza uma gama ampla de
experiências. Entra aí, por exemplo, o crítico, mas também
o criador literário, o artesão da palavra - o poeta, portanto. A tradução de textos poéticos exige sobremaneira uma atividade de construção verbal, muito mais do que de expressão.
O tradutor opera a partir de um primeiro texto para organizar
um segundo, que, se não é mais já aquele, quer-se como uma
7
espécie de sucedâneo do primeiro. Não é totalmente o texto do
autor original,
mas
também não ë totalmente o texto do tra-
dutor - ele vai se erigir justamente nessa tensão, tornando-se
palavra compartilhada. Na abordagem da poesia de Paes, será
interessante verificar em que medida o ensalsta-crltico e o
tradutor-r-artesão, figuras que trabalham sempre a partir de um
primeiro texto para estabelecer um segundo, entram como ingredientes ativos do processo criativo.
Feitas estas considerações iniciais, convém destacar
enfim mais incisivamente
o objetivo do presente estudo, e que
é o de, através de um acompanhamento, sistemático da trajetória
poética de José Paulo Paes dentro do contexto amplo da poesia
feita modernamente no Brasil, chegaria uma compreensão mais
precisa dos traços caracterizadores da poesia- do, autor. Trata-se, portanto, de um estudo que pretende abordar a obra do
poeta no seu processo de construção ao longo do tempo e na sua
interação com o ambiente, literário e, em ressonância, histõrico-cultural que lhe é contemporâneo, para, nessa dupla operação, apreender melhor os seus aspectos definidores.
Para dar conta do objetivo proposto, o presente trabalho deverá cumprir o seguinte percurso:
Num primeiro capítulo, vai-se procurar - traçar um panorama do que neste estudo se vai chamar de "moderna poesia brasileira", ou seja, da poesia feita no país do Modernismo' ¡.da 'década de 20 até as produções recentes dos anos 80. A partir do
contraste de importantes estudos de caráter historiogrãfico,
serão destacados do "continuum" temporal diferentes momentos
dessa poesia, nos quais determinados princípios poéticos deverão ser assinalados como dominantes. Cada momento será caracte-
8
rizado de forma sintética a partir de considerações histórico-culturais abrangentes e da análise de poemas representativos de poetas de perfil significativo no respectivo momento, e
de projeção, em maior ou menor grau, no cenário da poesia brasileira como um todo.
Num segundo capítulo, será feito um estudo minucioso da
poesia de José Paulo Paes, livro a livro cronologicamente, desde a sua estréia em 194 7, com 0.aluno, até meados da década de
80, especificamente 1986, ano em que vem a público a reunião
Um por todos, que contém todos os livros publicados pelo autor
até então. Deverão ser abordados os oito livros que compõem
essa reunião fundamental, deixando-se de lado poemas que tenham
vindo a público esparsamente através de jornais e revistas e .
que não constam da reunião, bem.como aqueles reunidos em livro
posteriormente-, como é o caso dos que compõem A poesia está
morta mas juro que não fui, eu, de 1988. A restrição da abordagem aos oito livros contidos em Um por todos surge a partir da
necessidade de se estabelecer um "corpus" homogêneo e definido
para a realização do estudo. 2 A reunião da totalidade da poesia
do autor publicada em livro entre 1947 e 1986 num único volume
confere a ele esse caráter de unidade indispensável que se requer de um "corpus". Como se trata de" poeta vivo e produtivo,
é de se esperar que outros livros seus de poesia sejam lançados, o que inviabiliza de qualquer forma um estudo, neste momento, que pretenda abordar a totalidade da obra.
Os trabalhos presentes em Um por todos são versões integrais de livros anteriormente jã publicados, excetuando-se
Calendário perplexo, de 1983, publicado pela primeira vez somente nessa reunião de 1986. Os livros que serão estudados,
9
arrolados cronologicamente a partir da data referencial recebida, são os seguintes: O a l m o
cartas chilenas
Meia palavra
(194 7) , Cúmplices
(1954) , Epigramas
(1973), Resíduo
(1951) , Novas
(1958) , Anatomias
(1967) ,
(1980) e Calendário perplexo
(1983).
Cada livro do autor será abordado individualmente ao
longo desse segundo capituló, no corpo de subcapltulo especifico. Vai-se procurar, para cada livro, num primeiro instante,
delinear rapidamente o ambiente poético dominante no períod.o da
sua elaboração e publicação, bem como destacar, de forma genérica, algumas características histõrico-culturáis
relevantes
então. Um contraponto sistemático com o "panorama da moderna
poesia brasileira", traçado no primeiro capitulo, já estará
sendo realizado-al. A seguir, ocupando o grosso do espaço reservado no subcapltulo, serão analisados poemas individuais
avaliados como significativos no ¡contexto, do livro em foco,
a partir do que se procurará chegar âs suas principais características formais e. temáticas. Estas, num. terceiro instante,
serão então apresentadas de forma mais sintetizada, procurando-se elaborar, a partir- daí, algumas conclusões parciais a
respeito do livro em questão e da sua significação no trajeto do autor.
Finalmente, na conclusão, será projetado de maneira
mais precisa e orgânica o estudo da poesia de Paes no quadro
amplo do desenvolvimento da poesia brasileira traçado no "Panorama", a fim de que, nessa operação de aproximação e afastamento, portanto ria visualização de semelhanças e diferenças,
se possa vislumbrar melhor o caráter distintivo da poesia do
poeta.
Os poemas escolhidos para ilustrar o "Panorama da
moderna poesia brasileira" serão abordados sempre em função
10
da explicitação de aspectos poéticos do momento a que pertencem. Com relação aos que integram o estudo da poesia de Paes,
muitos deverão receber abordagem relativamente bastante minuciosa; outros, abordagem mais ligeira, para ilustrar determinadd aspecto que se esteja destacandò.
Para a análise e interpretação dos textos mais minuciosamente focados, será privilegiada uma perspectiva que parta
da consideração dos elementos mais específicos relativos ã composição do poema até chegar a observações mais generalizantes
que projetem-no num contexto poético
e/ou.histõrico-cultural
que o transcenda. Aspectos composicionais como construção do
verso e da estrofe, ou de unidades poéticas outras
(no caso de
poemas mais experimentais em que aqueles se encontrem
dos) ; exploração de recursos sonoros, e gráficos;
aboli-
seleção-lexi-
cal e organização gramatical; elaboração das imagens, exploração das figuras e outros recursos de linguagem;
ressonâncias
intertextuais; etc. - esses aspectos composicionais deverão
ser destacados logo de inicio, para a partir deles poder-se
orientar uma leitura mais aprofundada dos "sentidos" mais imediatos do texto e partir para uma sua contextualização mais
abrangente.
Nessa operação, vai-se procurar ter em vista, de um
lado, certos estudos que se pautam pelas lições da Fenomenología e do Estruturalismo, além de outros de perspectiva mais
tradicional
sobre metrificação e formas poéticas,
bastante
produtivos para uma abordagem do poema enquanto objeto de linguagem construido através de técnicas poéticas especificas. De
outro lado, como se trata também de um estudo que leva em consideração o eixo da diacronia e o contexto mais amplo em que
11
os livros e poemas se encontram inseridos, estudos literarios
de Orientação historiogrãfica. e pautados por reflexões abrangentes acerca da produção cultural também entram em perspectiva. Por vezes, essas duas.maneiras.de ver o fato literário têm
entrado em atritos e polêmica.. .Antonio Candido, em vários de
seus estudos, mas com exemplar, felicidade no seu Na sala de
aula
3
, em que analisa com virtuosa minúcia alguns poemas de
importantes poetas brasileiros do Arcadismo ao Modernismo, ensina-nos a ultrapassar o dilema. O autor, nesse trabalho, vai
organizando a sua leitura entre o texto e o contexto, utilizando um pólo para iluminar o outro, numa operação dialética
de fina inteligência e grande independência critica. Ë com o
tipo de abordagem do poema presente-n:esse estudo que o presente trabalho quer buscar afinidades.
Convém ressaltar ainda que, gradualmente, algumas reflexões teóricas suscitadas pela abordagem da poesia de Paes,
relativas a certos conceitos da teoria literária como, por
exemplo, metalinguagem, intertextualidade, paródia, pós-modernismo, etc., irão sendo desenvolvidas de maneira integrada ao
corpo geral do texto de estudo da sua poesia e subordinadamente
ãs intenções da análise e interpretação dos poemas.
12
NOTAS DE REFERÊNCIA
cas,
*Cf.
obras
áo
de
f i n a t d e s t e e s t u d o , nas
P a e s e n s a í s t a e d o Paes
2
referências
tradutor.
bibliográfi-
~
Os p o e m a s de P a e s q u e s e r ã o t r a n s c r i t o s e a n a l i s a d o s
ao l o n g o d e s t e e s t u d o d e v e r ã o s e r t o d o s r e t i r a d o s d e s s a e d i . ç i o :
PAES, J o s é P a u l o .
Um p o r t o d o s - p o e s i a r e u n i d a .
São P a u l o :
Brasi-l iense,
19 8 6 .
3
CANDIDO, A n t o n i o .
Ná
literária.
2.ed.
São PauTõ
s a l a de a u l a : Atica,
19 86 .
c a d e r n o de a n a l i s e
Série
Fundamentos.
2
PANORAMA DA MODERNA
2.1
POESIA
BRASILEIRA
DUAS CONSIDERAÇÕES
Duas considerações precisam ser feitas logo de inicio
quando se tem em perspectiva traçar um panorama daquilo que
este estudo pretende chamar de "moderna poesia brasileira".
A primeira relaciona-se ao emprego do adjetivo
"moderno"
nessa expressão, termo de semântica elástica e flutuante. É.
preciso explicitar, em primeiro lugar, o que se está-entendendo por "moderna poesia brasileira", o que implica também
delimitar o período de tempo que a designação abrange. Essa
implicação remete de imediato ã segunda consideração, que ê
justamente a observação dos diferentes "momentos" do desenvolvimento dessa poesia, com respeito' a que nem sempre são
unânimes os estudos de história da literatura. Os termos
escolhidos para designar cada um dos possíveis
"momentos",
bem como o período de tempo que cada um deles engloba, diferem por vezes de autor para autor. A isso se deve ainda
acrescentar a não consideração, em estudos de caráter panorâmico, da produção poética mais recente do pais, o que se
vai intentar aqui.
2.1.1
O que se está entendendo por Moderna Poesia Brasileira
A consideração do termo "moderno" é polêmica e complexa.
No presente estudo, ao se falar em "moderna poesia brasileira",
] k
tem-se em vista a poesia produzida no país desde o Modernismo
até os dias de hoje. A utilização da expressão neste estudo é
portanto afim à utilização que Affonso Romano de SANT 1 ANNA
lhe dá em Música popular e moderna poesia brasileira 1 , designando com "moderna poesia brasileira" a produção poética
que vai do Modernismo até as tendências contemporâneas ã elaboração do seu estudo, por volta de meados dos anos 70. No
presente trabalho, ampliou-se um pouco esse arco temporal,
que se estende agora até ã poesia dos anos 80.
O período de tempo aí englobado
é extenso e abrange
tendências poéticas múltiplas e muitas vezes antagônicas. No
entanto, apesar das diferenças claramente observáveis, é
possível..entendê-las como partes conflitantes de uir; mesmo
todo dinâmico.
A partir - do-Modernismo, -a- poesia--brasileira inicia
um processo de constante pesquisa formal e aprofundamento
temático, sintoniza-se com os movimentos mais avançados da
arte ocidental para não mais perder o passo, ao mesmo tempo
em que mergulha na própria- problemática nacional e desenvolve características altamente individualizadas em relação à
produção de outros países. A partir do Modernismo, cria-se
uma tradição viva na poesia brasileira que se desenvolve
ininterruptamente até o presente, apesar das aparentes
rupturas.
Ë com essa tradição que cada novo poeta vai dialogar
produtivamente no.processo de elaboração da sua própria
poesia. Os problemas poéticos colocados por Mário de Andrade,
Oswald, Drummond, Murilo Mendes, João Cabral, pelo Concretismo, e outros nomes que se vão consagrando mais recentemente
15
- num encadeamento continuo onde se observa toda uma dialética de aceitação/rejeição de princípios -, continuam alimentando ã praxis poética dos novos autores. É esse acúmulo
e permanência de conquistas relativamente recentes que se
prolonga até o presente que permite entender esse período
como um todo, e ã poesia que engloba chamar "moderna".
Convém ressaltar assim que o termo "moderno" está
sendo empregado aqui exclusivamente para designar esse período referido. Na sua utilização, tem-se em perspectiva certas
sugestões semânticas nele implícitas, que sinônimos seus
como "recente" ou "atual" 2 também evocam. "Moderno", neste
estudo, não deve portanto ser entendido em conexão com "Modernismo"-, relativamente ao qual se utilizará >.aqui o adjetivo "modernista", ou ainda em conexão estreita" e necessária
com-concei.tos-chave da reflexão cultural atual, complexos
e polêmicos, como "Modernidade" e "Pós-Modernidade".
2.1.2
2.1.2.1
A Moderna Poesia Brasileira e seus Momentos
Observações iniciais - A delimitação de segmentos
de tempo num "continuum" temporal implica sempre a escolha
de determinados critérios. No caso da historiografia literária, nem sempre são consonantes os critérios escolhidos
e as conclusões a que chegam os vários estudiosos. Considerações estritamente poéticas se sobrelevam em certas abordagens, ao passo que, em outras, destacam-se também
elementos mais exteriores ao fato literário.
A delimitação dos princípios poéticos de um periodo
determinado é sempre redutora em face da complexidade das
lb
manifestações literárias. A multiplicidade das poéticas
individuais acaba tendo de ceder em favor do estabelecimento de uma poética geral, ou de poéticas dominantes. Certos
elementos são postos em evidência; outros, secundários mas
presentes, são abafados, a fim de que as contradições não
perturbem a construção teórica. Autores menos
facilmente
enquadrãveis são empurrados para frente ou para trás no tempo, tornando-se, de acordo com a importância vislumbrada em
sua obra, epígonos de um momento anterior ou prenunciadores
do que está .por vir.
Porém, apesar desses problemas, a visão panorâmica
é necessária e não pode prescindir de certas reduções. 0
particular, deve ser posto a serviço do geral,, o menos , evidente-deve ceder espaço ao mais evidente. O olhar, para
poder apreender toda a extensão do seu objeto, se afasta
para um ponto distante e se torna sensível apenas aos traços
mais marcantes.
2.1.2:2
Propostas destacadas - Antes de se traçar um pano-
rama da aqui chamada moderna poesia brasileira, convém observar as delimitações temporais da poesia produzida no Brasil
desde o Modernismo até momentos mais recentes consagradas
por alguns estudos fundamentais de história literária.
Em sua História concisa da literatura brasileira 3 ,
Alfredo BOSI, no cap. VII, intitulado "Pré-Modernismo e
Modernismo", reserva a designação "Modernismo" ao período
que vai de 19 22 a 19 30. Tudo o que ocorre na literatura
brasileira após essa data ele vai estudar no cap. VIII,
intitulado "Tendências Contemporâneas", e que se encontra
17
subdividido em dois momentos distintos: de 1930 até 1945-50,
e desta data até o presente
(as últimas referências no âmbito
da poesia dizem respeito ã c h a m a d a poesia.Marginal dos anos
70) .
Affonso Romano de SANT'ANNA, em seu Música popular e
moderna poesia brasileira1* , no. cap. VI do livro, apresenta
uma "Minuta Didática dos Principais Movimentos Poéticos Brasileiros do Séc. XX", onde arrola os seguintes: Modernismo
(1922); Geração 45; Concretismo
Tendência
Processo
(1957); Prãxis
(1956); Neoconcretismo
(1962); Violão de Rua
(1967) ; Tropicalismo
(1959);
(1962); poema
(1968) ; pós-Vanguardas e Mar-
g.inália (19 73) .
Além destes-dois estudos mais-abrangentes, que dão
conta da produção que vai de 1922 até quase o presente,
outros, restritos a momentos mais específicos, trazem delimit
tações importantes.
Antonio CANDIDO e. José Aderaldo CASTELLO, no terceiro
volume do seu Presença da lá-teratulra brasileira 5 , dedicado
ao Modernismo, reservam este. termo ao período que vai de
1922 até 1945, distinguindo duas subdivisões internas: de
1922 a 1930 - "momento mais dinâmico e agressivo" - e de
1930 a 1945 - "nova etapa de maturação". Em segmento final
do estudo, intitulado "Literatura. Atual", são feitas referências ainda à Geração de 45 e ao Concretismo.
No seu O modernismo 6 , Wilson MARTINS delimita o
momento modernista entre os anos que vão de 1916 a 1945.
Sugere, no entanto, algumas subdivisões no interior desse período, a partir de certas tendências literárias dominantes:
18
os primeiros dez anos seriam os anos de ruptura, do combate
de idéias, anos predominantemente poéticos; os dez anos seguintes seriam os anos do romance social e da atuação p o l í tica; os últimos dez seriam os anos de efervescência da crítica literária.
péricles Eugênio da Silva RAMOS, em seu estudo "0
Modernismo na Poesia" 7 , que integra a obra mais ampla A
literatura no Brasil, organizada por Afrânio COUTINHÒ, subdivide o Modernismo em três fases: "fase de ruptura", de 1922
a 1930; "fase de extensão", de 1930 a 1945; e "fase esteticista", de 1945 em diante. Nesta última fase ele chega a
incluir a Poesia Concreta e a Poesia Práxis. A cada fase,
por sua vez, corresponderia uma geração: as de 22, 30. e 45,
respectivamente.
Em estudo importante sobre a poesia dos anos 60 e 70,
Impressões de viagem - CPC, vanguarda e desbunde 8 , Heloísa
Buarque de HOLLANEA.destaca, desde meados dos anos 50 e ao
longo dos anos 60, duas tendências dominantes: "o engajamento
cepecista", referindo-se â produção social e politicamente
engajada de Violão de Rua, e "o engajamento experimentalista",
referindo-se ã produção de vanguarda, em especial ao Concretismo. Na virada da década, estão o Tropicalismo e as tendências põs-tropicalistas que dele partem, e, ao longo dos
anos 70, a Poesia Marginal.
Como se pode observar, há sensíveis diferenças entre
os autores consultados, tanto no quê diz respeito ã delimitação temporal quanto ao termo utilizado para designar o
período de tempo abrangido. Entretanto, certas constantes
podem ser verificadas, e é a partir delas que se vai tentar
19
estabelecer aqui uma delimitação de diferentes e específicos
momentos da poesia moderna do Brasil, com base na qual o
panorama deverá ser traçado a seguir.
2.1.2.3
Reconhecendo momentos da Moderna Poesia Brasilei-
ra - Em pelo menos três datas a maioria dos estudos consultados estão de acordo: são elas 1922, 19 30 e 1945. O que em
geral difere entre eles diz respeito ao termo utilizado para
designar o período de tempo nelas englobado. Alfredo BOSI
reserva o termo "Modernismo" para o período 1922-30, considerando a partir de então mais duas fases distintas, 1930-45/50
e 1945/50 em diante, que ele engloba sob a designação de
"Tendências Contemporâneas"; Affonso Romano de SANT'ANNA
abrange com o termo "Modernismo" os anos 1922-45, concordando
com Antonio CANDIDO- e Aderaldo -CASTELDO,.. que no entanto subdividem-no em duas fases internas: 1922-30 e 19 30-45; Wilson
MARTINS refere-se com ele aos anos de 1916-45; a maior extensão de tempo proposta para o termo é a de Pêricles Eugênio
da Silva RAMOS: 1922 até o início dos anos 60, subdividindo
o período em três fases: 1922-30, 1930-45, 1945 em diante,
chamando a esta última também, de "Geração de 45".
A partir daí o quadro se complica. Alguns autores
falam numa Geração de 45. Silva RAMOS confunde-a com a terceira fase do Modernismo; BOSI, bem como CANDIDO e CASTEELO,
utilizam o termo com certa cautela para indicar uma entre
outras tendências da poesia brasileira depois do ano de
1945; SANT'ANNA utiliza o termo sem reservas, englobando
com ele a poesia produzida dominantemente até pelo menos
1956, momento em que assinala o surgimento do Concretismo e
20
dos varios movimentos que o sucedem de forma marcadamente
breve nas- décadas seguintes.
Aqui surge um detalhe interessante: Affonso Romano de
SANT'ANNA, na sua "Minuta Didática", reserva um arco temporal bastante vasto para o Modernismo enquanto momento único
(1922-45), passando a partir de então a segmentar o tempo
em instantes cada vez menores. Parece haver ai uma certa
desproporção e uma supervalorização dos movimentos poéticos
mais recentes nas suas particularidades. Subdivisão equivalente poderia ser empregada no caso do Modernismo, tratando-se separadamente movimentos particulares como Pau-Brasil,
Verde-Amarelismo, Anta e Antropofagia, por exemplo, coisa
que o autor não faz. No entanto, como ele mesmo sugere em
outra parte, do seu estudo 9 , poderíamos falar num- "período
das vanguardas", que diria respeito aos anos que vão de 56
até 68, e em "pós-vanguardas" a partir de então.
Considerada esta situação na historiografia literária
brasileira, o presente estudo propõe como significativa a
seguinte seqüência histórica:
1. Modernismo - 1. fase (1922-30)•
2. Modernismo 3. Geração de 45
fase
(1945-56);
4. Vanguardas anos 50/60
5. pós-Vanguardas
(1930-45);
(1956-68); e
(1968 até hoje).
Esta delimitação cronologicamente precisa de cinco
momentos distintos da moderna poesia brasileira tem de ser
compreendida, nas simplificações violentas que ela opera
sobre a complexa realidade literária, enquanto um esforço
de oferecer uma moldura didática para uma consideração
21
panorâmica dessa poesia. Ela surgiu, como se tentou evidenciar acima, da tentativa de
conciliar delimitações temporais
e designações nem sempre idênticas presentes em importantes
estudos de história da literatura brasileira. Com a abordagem mais detalhada desses momentos poéticos a seguir, na
qual, através de análises de textos representativos, se
procurará destacar elementos caracterizadores da poesia de
cada momento, a segmentação didática pela qual se está optando para a elaboração do panorama deverá ser mais incisivamente justificada.
2.2
2.2.1
MODERNISMO: 1? FASE
(1922-1930)
Um Momento de Renovação
Para a arte brasileira do inicio do século, o Moder-
nismo da década de 20 representa, antes de mais nada, um
momento de renovação geral. Com o Modernismo, a arte brasileira entra definitivamente no séc. XX. Na literatura, por
exemplo, o que se observava até então eram, com raríssimas
exceções, manifestações epigonais de tendências que tiveram
sua razão de ser no final do século anterior, como o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, mas que no novo
século não acompanhavam mais as transformações materiais
e espirituais que se operavam em todo o mundo e chegavam
até o pals, e muito pouco de significativo haviam produzido.
A sensação de um esgotamento no âmbito das artes se insinuava e a necessidade de superá-lo era tarefa que passara
a captar os esforços dos espíritos mais novos.
22
A renovação modernista na arte e na cultura brasileira pode ser vista como um movimento de dupla orientação.
De um lado, a Europa das duas primeiras décadas do
século acenava com uma agitação cultural vigorosíssima que
não poderia passar desapercebida do Brasil, pais historicamente dependente nesse aspecto. A necessidade de atualizar
a produção brasileira se pautou desde muito cedo pelos movimentos revitalizadores das vanguardas européias, plenamente sintonizados com o espirito dos novos tempos, eminentemente urbano, industrial e dinâmico. Expressionismo,
Futurismo, Cubismo, Dadaísmo e, mais tarde, Surrealismo,
eram pontos de referência obrigatórios para a nova intelectualidade no. .momento de formação-do-Modernismo.
De- outro lado, estava o impulso de-descobrir um:Brasil
ainda em-grande parte-ignorado, que -a produção - cultural do
pais, desde as tendências nacionalistas e regionalistas do
Romantismo, passando pelo Realismo/Naturalismo, até o momento de transição marcado pelas obras significativas de Euclides
da Cunha, Lima Barreto -e-- Monteiro Lobato-, vinha a. seu modo,
e dentro de limites estéticos bastante precisos, tentando.
Esse impulso, existente antes da deflagração da revolução
modernista, em certa medida abafado no primeiro instante
mais acentuadamente cosmopolita do movimento, irã encontrar
um espaço cada vez maior a seguir e, através dos novos meios
de expressão conquistados, tornar-se uma das dimensões mais
fecundas da nova arte.
Essa dupla orientação do Modernismo - num pólo a
dimensão urbana e cosmopolita do movimento, em sintonia com
as vanguardas que se irradiam dos grandes centros industriais
23
europeus; no outro, a preocupação em pesquisar um país
marcado a fundo pelo rural e pelo primitivo,
continuando,
a partir de novos padrões expressionais, a vertente nacionalista e regionalista da arte brasileira anterior - encontra
paralelos na própria estrutura social, econômica e cultural
do pais.
O Brasil do primeiro Modernismo, o Brasil da República
Velha
(1894-1930), ê um pais ainda em grande escala predomi-
nantemente agrário, onde a cultura cafeeira e a pecuária
constituem as atividades econômicas fundamentais, e a hegemonia política encontra-se nas mãos dos grandes proprietários de São Paulo e Minas Gerais. Ao lado desse Brasil, no
entanto, com o inicio do processo de industrialização e com
o crescimento dos: centros --urbanos-;- novos grupos de poder,
ligados ã burguesia industrial, ãs profissões liberais e ao
Exército, começam a se fortalecer. Além destes, nos centros
urbanos, um proletariado e um subproletariado cada vez menos
incipientes vão se fazendo notar. Uma sociedade de antagonismos não conciliáveis está se delineando,
antagonismos
que encontrarão um dos seus primeiros pontos críticos na
Revolução de 19 30.
Portanto, ao lado de um Brasil arcaico,
agrário,
rural, de valores estáticos, fechado a qualquer tipo de inovação, começa a surgir um Brasil moderno, industrial, urbano,
influenciado pela dinâmica do novo século, aberto aos influxos renovadores do estrangeiro. Essas duas dimensões da
realidade brasileira vão marcar a arte do período.e, mantendo-se sensivelmente presentes até hoje, configurar-se enquanto um dos grandes problemas da arte brasileira do séc. XX.
24
Os grandes autores do Modernismo de 22 serão justamente
aqueles que tentarão a fusão do Brasil urbano e industrial,
o Brasil da São Paulo onde vai nascer o movimento - um pals
receptivo ãs novas possibilidades expressivas da arte européia - com um Brasil rural, tradicional, antigo, primitivo,
Brasil em direção ao qual o Modernismo caminhará a seguir.
2.2.2
0 Modernismo de 1922
Os anos que vão de 1922
(ano da Semana de Arte Moder-
na) até 19 30 (ano da Revolução de Outubro) compreendem o que
comumente se tem chamado de "fase de ruptura" ou "fase heróica" do Modernismo, brasileiro. São anos de combate, durante
os quais os defensores da nova arte irão pugnar por-seus princípios estéticos, em^geral' revolucionários para a-arte brasileira de então. Durante esse período, surgem na imprensa
manifestos literários e artigos polêmicos e apaixonados de
ataque e defesa em relação ao movimento. As primeiras produções representativas são publicadas, assim como algumas revistas de militância estética, em redor das quais diferentes
grupos se aglutinam em franco confronto entre si.
Como marco inicial do movimento renovador, tem sido
tomada a Semana da Arte Moderna, realizada em São Paulo nos
dias 13, 15 e 17 de fevereiro, de 1922. Ho entanto, a Semana
pode ser vista também enquanto um momento intermediário do
processo de renovação modernista. Ela será uma espécie de
ponto de convergência de uma série de tendências que vinham
se insinuando ainda timidamente
ao longo da segunda metade
da década anterior, abrigadas todas então sem grandes divergências sob as bandeiras do antipassadismo, do antiacademicismo
25
e da liberdade e renovação da expressão. Posteriormente, os
artistas modernistas, que num primeiro momento poderiam parecer compor um todo homogêneo,
irão optar por posições indi-
viduais ou de grupo divergentes entre si. Com o correr dos
anos, a partir do momento
deflagrador
da Semana, os princí-
pios modernistas ultrapassarão as fronteiras de São Paulo e
Rio agitando outros centros urbanos do país.
2.2.3
A Poesia
Como um movimento de renovação da arte brasileira, o
Modernismo, na sua fase inicial de formação, teve de confrontar-se com uma arte comodamente estabelecida, legitimada
em seus valores--pelos/principais meios de formação de opinião
do período : a academia,-a e s c o l a a imprensa e a crítica. Enfrentando as previsíveis
resistências que esses meios, por
natureza conservadores, lhe ofereciam, o Modernismo atacou
de forma corrosiva a arte que se. fazia então, tida como acadêmica e passadista, absolutamente incapaz de expressar a
sensibilidade dos novos tempos. O antipassadismò e o antiacademicismo tornaram-se as bandeiras sob as quais reuniram-se
os novos autores. A necessidade de dar combate aos velhos
valores e de fazer com que os novos princípios fossem aceitos
foi fator de união de um grupo de artistas que, posteriormente, passada a fase de polêmica com a velha guarda, iriam
revelar ideais estéticos e políticos divergentes, quando
não frontalmente antagônicos entre si.
Na poesia, passadistas eram os poetas que insistiam
em produzir uma arte dentro dos moldes do Parnasianismo e do
Simbolismo, escolas surgidas no final do século passado e que
26
reinavam soberanas até então, sobretudo a primeira- 0 Parna^sianismo, baseado num classicismo de superficie e numa poética rígida e normativa, era um modelo ideal para a poesia
acadêmica. 0 Simbolismo, que na França havia, produzido poetas
revolucionários do porte de um Rimbaud e de um Mallarmé,
poetas-chave para o entendimento da poesia moderna, no Brasil
não vingara nessa sua vertente mais contundente e produtiva.
O verso livre, por exemplo, conquista dos simbolistas mais
inovadores, só_ seria trazido para a poesia brasileira, com
atraso, pelo Modernismo. Além da poesia dessas escolas, fazia-se também um tipo de poesia sertanista, singela e bucólica, que- mesclava elementos populares e cultos, e que tinha
na fig.ura. de um Catulo da Paixão. Cearense um típico representante.
A poesia modernista vai reagir ãs velhas poéticas de
forma contundente. O Parnasianismo, sobretudo, foi o alvo
preferido de muitos dos novos autores. A clausura das suas
prescrições poéticas era um ponto vulnerável extremamente
atrativo para aqueles que defendiam uma liberdade absoluta
de composição e expressão.
Manuel BANDEIRA, em seu "Poética", expõe de forma
inigualável os princípios poéticos do lirismo modernista:
POÉTICA
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionario público com livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço
ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no
dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo
27
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo.
De resto não e lirismo
Serã contabilidade tabela de co-senos secretario do
amante exemplar com cem modelos de cartas e as
diferentes maneiras de agradar ãs mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
0 lirismo dos bêbados
0 lirismo difícil e pungente dos bêbados
0 lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não.quero mais saber do lirismo que não é libertação. 10
O poema todo gira em torno do que o seu postulado final sintetiza: " - Não quero mais saber do lirismo que não
é libertação". "Liberdade" é a palavra-chave do poema, e o
exercício dessa liberdade ê o que o poeta realiza enquanto
reitera de diversas maneiras a sua profissão de- fé poética.
O verso livre surge aqui como um elemento central no
exercício da liberdade de compor, contrapondo-se ao verso
metrificado da tradição anterior. Sua estruturação ao longo
do poema é vária. Ãs vezes ele corresponde a uma unidade
sintática ampla, todo um período completo e suficiente, como
nos versos: "Estou farto do lirismo comedido"; "Abaixo os
puristas"; "De resto não ê< lirismo". Outras vezes, o verso
vai corresponder a um segmento sintático menor, eventualmente até uma única palavra, ligado a uma estrutura maior anterior, como é o caso do segundo destes versos: "Estou farto
do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado"; "Estou
farto do lirismo namorador/ Político". Mas o que vai quebrar
mais ostensivamente a conveção é um verso como o terceiro
da primeira estrofe: "Do lirismo funcionário público com
livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço
ao sr. diretor". Fica evidente aí, pela extensão e pelo ritmo
de um verso como esse, o desejo deliberado de aproximar prosa
e poesia. 0 impulso ã libertação total do lirismo implica,
assim, o questionamento do próprio verso enquanto estrutura
indispensável ã poesia.
O desejo de liberdade formal também se manifesta na
utilização da pontuação. Se tivéssemos simplesmente a sua
ausência total, estaríamos diante de um uso uniforme, de
uma opção do poeta manifestada de forma coerente. No entanto,
em "Poética", o que se observa-é uma utilização caprichosa
dos pontos finais e da vírgula. Aqueles aparecem*ao
final
da primeira, da quarta, da quinta (neste caso-podendo ser
também simplesmente o ponto de abreviação de "etc.") e do
verso solto final do poema, indicando o fim de períodos
longos . • Porém, em outros instantes, similares,., como na segunda, na terceira e na sexta estrofes, não há a utilização do
ponto. Quanto ã vírgula, ela ê sempre omitida, mesmo tratando-se de enumerações extensas, como por exemplo na quinta,
aparecendo, nessa mesma estrofe, numa única ocorrência em
todo o poema, solitária mais ao final do período, logo
antes de "etc.". Chama a atenção a não utilização de recursos indicadores de pausa entre os termos das enumerações
mais extensas. Há uma tensão clara entre a necessidade prosódica das pausas e a sua não indicação através de um recurso
qualquer pelo poeta ( recurso gráfico, espaço em branco,
segmentação em versos, etc).
29
O poema todo é um grande desabafo, expansão de um
lirismo que se liberta, que se desamarra, e que jorra caprichoso e necessariamente descuidado. A exaustão do poeta
frente a toda uma poesia se extravasa em declarações contundentes. Ao longo da primeira, da segunda e da quarta estrofes, a repetição da expressão "estou farto do lirismo", seguida de diferentes focalizações desse lirismo, dã bem idéia
da dimensão dessa exaustão. Na esfrofe terceira, em contraponto, BANDEIRA clama como um agitador literário: "Abaixo
os puristas". E assim, em tons entusiasmados de manifesto,
o poeta vai fazendo o repúdio de um "lirismo comedido", de
um "lirismo bem comportado", de um lirismo absolutamente
subordinado ao controle . racional-do poeta, lirismo artificial
e artificioso,
obediente aos* cânones, submisso aos-padrões
das prescrições lingüísticas,-posto em função de necessidades exteriores a ele próprio.
A esse lirismo ele contrapõe um outro, e aí se delineia de forma clara a sua própria postura poética. Na sua
poesia, o poeta quer, sem restrições dogmáticas, "todas as
palavras", "todas as construções", "todos os ritmos", e
entre cada um desses elementos, respectivamente,
justamente
os mais execrados pelo purismo formal: "os barbarismos
universais", "as sintaxes de exceção" e "os ritmos
inumeráveis".
(...)
Quer, em suma, uma liberdade total de com-
posição e expressão. E para dar forma a esse material
escolhido sem restrições, o poeta vai em busca.de um novo
impulso lírico, antiacadémico e antidogmático por natureza,
o lirismo "dos loucos", "dos bêbados" e "dos clowns de
Shakespeare". Esse apelo â essencialidade lírica de figuras
30
marginais revela muito bem a essência espiritual da sua
própria poesia.
A dicção de BANDEIRA neste poema aproxima-se do coloquial, da oralidade, da fala cotidiana. Não se observam aí
contorções sintáticas, léxico erudito ou de circulação rara,
nem explorações sonoras exageradas ao gosto simbolista. 0
que se tem são períodos inteiros, sem inversões, muito próximos da fala corrente. Há aí. uma ausência daqueles elementos
mais explicitamente "poéticos" que serviam para diferenciar
drasticamente o discurso da poesia do discurso da prosa. 0
poético não está mais apoiado em elementos formais evidentes,
exteriores, facilmente identificáveis. O poético vincula-se
a - algo mais interior, â intensidade emocional do—enunciado,
que cativa o leitor.ou o~_ouvinte muito mais pelo seu apelo
afetivo do que pelo seu virtuosismo-lingüístico ou pelo seu
artesanato.
"Poética" ê um exemplo claro de vários dos elementos
da poesia modernista. Nele, a liberdade de expressão postulada é plenamente exercitada: verso livre, dicção coloquial,
despojamente léxico-sintático, jorro emotivo, etc. Ao lado
deste verdadeiro "manifesto poético", outros poemas significativos podem ainda reiterar estes e apresentar outros aspectos expressivos e temáticos importantes da poesia do
primeiro Modernismo.
Ao longo dos anos 20, observa-se um desejo crescente
de aprofundamento nas realidades contraditórias do próprio
Brasil. Aquele que é considerado o primeiro livro de poesia
modernista, Paulicéia desvairada, de Mário de ANDRADE, publicado em 1922, ê um livro inteiramente dedicado á cidade de
31
São Paulo. Nele o universo agitado da nascente metrópole, com
seus. vários grupos humanos (da aristocracia quatrocentona
aos recentes imigrantes), com suas ruas e lugares típicos,
com seu clima característico
("Minha Londres das neblinas
finas..."), com suas primeiras indústrias e automóveis, com
toda a problemática sõcio-cultural inerente aos complexos
urbanos, com suas rusgas literárias, etc. , é> cantado pelo
poeta, ãs vezes com ironia, ãs vezes com crítica corrosiva
(como na "Ode ao burguês"),ãs vezes com simpatia e ternura.
Formalmente, a poesia aí
contida, carregada de preciosismo
e afetação, excessivamente artificiosa, ainda se afasta um
pouco da simplicidade coloquial típica da vertente mais
produtiva do movimento, poesia que Mário fará em livros
seguintes.
"0 domador" ê um bom exemplo da poesia inicial de
Mário, cheia de vitalidade experimental:
0 DOMADOR
Alturas da Avenida. Bonde 3.
Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira
Sob o arlequinal do céu ouro-rosa-verde...
As sujidades implexas do urbanismo.
"Filets" de manuelino. Calvicies de Pensilvãnia.
Gritos de goticismo.
Na frente o "tram" da irrigação,
Onde um Sol bruxo se dispersa
Num triunfo persa de esmeraldas, topãzios e rubis...
Lánguidos boticellis a 1er Henry Bordeaux
Nas clausuras sem dragões dos torreões...
Mario, paga os duzentos reis.
São cinco no banco: um branco,
Um noite , um ouro_,
Um cinzento de tísica e Mario.
Solicitudes '. Solicitudes !
32
Mas... olhai, oh meus olhos saudosos de ontens
Esse espetáculo encantado da Avenida!
Revivei, oh gaúchos Paulistas ancestrementeI
E oh cavalos de colera sangüínea!
Laranja da China, Laranja da China, Laranja da China!
Abacate, cambucá e tangerina!
"Guardate!" Aos aplausos do esfusiante clown,
Heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes,
Passa galhardo um filho de imigrante,
Louramente domando um automóvel! 11
Este poema de Mario é um poema predominantemente descritivo. Temos aí um "eu" lírico situando-se espacialmente
("Alturas da Avenida. Bonde 3.") que descreve de modo muito
pessoal aquilo que seus sentidos apreendem ao seu redor. A
representação dessa realidade revela-se antiobjetiva e fragmentária.
0 sujeito distorce violentamente, aquilo que percebe.
A consciência poética seleciona~alguhs entre muitos dados
possíveis do real e representa-os através de uma linguagem
plena de circunloquios e imagens carregadamente rebuscados.
Assim, a sujeira da cidade é "as sujidades implexas do urbanismo"; os ruídos de vozes-de estrangeiros, ou talvez simplesmente os rui dos-da metrópole, são- "gritos de goticismo";
pessoas lendo nos andares superiores das casas - um dos sentidos prováveis da expressão - são "Lánguidos boticellis a
1er Henry Bordeaux/Nas clausuras sem
dragões dos torreões...".
Se as paráfrases traem a ambigüidade do poético,, apontam, no
entanto, para o artificioso dessa dicção.
Ao lado desta, porém,
vemos surgir, inesperadamente,
uma outra dicção, mais espontânea, mais coloquial, como é o
caso do verso "Mário, paga os duzentos réis", logo no início
da terceira estrofe. A forma imperativa do verbo, proferida
por uma voz não identificada em meio ã do próprio poeta,
contrasta em muito, por exemplo, com a forma imperativa que
33
surgirá nos versos a seguir, e com o tom grandiloqüente neles
presente: "Mas... olhai, oh meus olhos saudosos do ontem/(..,)".
O artificioso mesclado ao prosaico, a rebuscada descrição de
uma situação do cotidiano urbano, o patético fundido ao irônico revelam a intenção de pesquisa lingüística, de experitação literária, índices óbvios de uma insatisfação com os
recursos poéticos ã disposição. Paulicéia desvairada tem toda
o tom desse poema.
Nos livros seguintes, o espaço poeticamente pesquisado, com todo o universo temático a ele ligado, irá se ampliar
cada vez mais, deixando de centrar-se na cidade de São Paulo
para abarcar outros pontos do Brasil. Em Clã do jaboti, por
exemplo, de 1927, a ampliação geográfica, é evidente em -poemas
como "Carnaval carioca" e* "Noturno de Belo Horizonte" , entre
outros ' presentes no -mesmo livro. A essa ampliação geográfica
vai corresponder, paralelamente, o interesse pela história
nacional e pela cultura brasileira em geral, sobretudo no que
ela tem de distintivo. Alguns poemas-desse mesmo livro baseiam-se, por exemplo, em motivos folclóricos e ritmos populares, material ricamente aproveitado pela literatura modernista, como se pode ver em Macunaíma, do próprio Mário, em
Cobra Norato, de Raul BOPP, entre tantos outros textos.
Um exemplo de aproveitamento do folclórico - portanto
de algo que transcende os limites da cultura de elite, do
meio urbano e industrial e. da dinâmica do tempo presente, em
que se encontra circunscrito Paulicéia desvairada - é este
poema de Clã do jaboti:
34
TOADA DO PAI-DO-MATO
(índios Parecis)
A moça Camalalô
Foi no mato colher fruta.
A manhã fresca de orvalho
Era quase noturna.
- Ah . . .
Era quase noturna...
Num. galho de tarumã
Estava um homem cantando.
A moça sai do caminho
Pra escutar o canto.
- Ah . . .
Ela escuta o canto...
Enganada pelo escuro
Camalalô fala pro homem: .
Ariti, me dá uma fruta
Que eu estou com fome.
- Ah . . .
Estava com fome...
0 homem rindo secundou:
- Zuimaaluti se--engana,
Pensa que sou ariti?
Eu sou Pai-do-Mato.
Era o Pai-do-Mato. 12
O poema revela muito bem o desejo de voltar-se para as
coisas de Brasil primitivo presente na obra de tantos modernistas. Mário parte,, para a sua elaboração, do aproveitamento
de um material de pesquisa, cuja origem a observação entre
parênteses abaixo do titulo logo esclarece. Ele recorre ao
folclórico, ao mitológico, ãs tradições populares, ã dicção
oralizante que as caracteriza, aproveitando temas e formas
dessa tradição. 0 resultado ê um poema narrativo, muito próximo da prosa, com personagens e diálogos, todo ele construído
em cima de metros populares (predominam as redondilhas maiores) .
Se "0 domador" ê um típico representante da vertente cosmopolita do movimento, carregado de influências do Expressionismo
35
e do Futurismo, poema de pesquisa de uma linguagem particularxssima, diferenciada, experimental, "Toada do Pai-do-Matö"
envereda por outro caminho,, volta-se para o popular, impregna-se da língua do coletivo, recupera uma tradição do fazer
poético marginalizada pela alta cultura.
A preocupação modernista com as coisas do Brasil vai
fatalmente desaguar no nacionalismo. Este está presente nos
principais grupos e vertentes literários que surgirão nos
anos posteriores ã Semana de Arte Moderna de 22,. e que deixaram seus princípios registrados em manifestos e revistas. A
preocupação com o nacional - e com o primitivo - encontra-se
já em seus nomes: Pau-Brasil (1924), Verde-Amarelismo
(1926),
Anta (1927), Antropofagia-41928) . Passado o momento de-.postulação de uma-ruptura corn os passadistas, quando as divergências ideológicas em potencial contiveram-se em favor de um
antagonismo.estético estrategicamente homogêneo, os modernistas enveredaram por estéticas e ideologias cada vez mais divergentes, e o combate passou a se travar entre eles mesmos.
Pau-Brasil e Antropofagia, encabeçados por Oswald de Andrade,
trilham o primitivismo
(em grande parte de influência euro-
péia) de caráter mais anárquico. Verde-Amarelismo e Anta
(Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo,
membros típicos), por sua vez,.trilham o nacionalismo xenófobo. Ambos mergulham, ã sua maneira e com a sua poética própria, na realidade do país, voltam-se à sua formação cultural , acentuando ora o histórico, ora o mítico dessa formação.
Pau-Brasil, livro de poemas de Oswald de Andrade
publicado em 19 25, fornece-nos um bom exemplo desse mergulho
poético. Aí vamos ter a poesia resgatando a história, a
36
geografia, as questões político-sociais, os tipos culturais,
as falas, etc. de um país ainda muito pouco conhecido pela
sua própria literatura. O intuito de inventariar os element
tos componentes da realidade brasileira perpassa todo o livro.
E tudo isso é feito de maneira radicalmente original para a
poesia brasileira, de forma fragmentária, elíptica, através
de poemas curtos com versos também curtos, sem requintes de
estilo, sem afetação, num discurso muito próximo ao da
prosa :
FAZENDA ANTIGA
0 Narciso marceneiro
Que sabia fazer moinhos e mesas
E mais o Casimiro da cozinha
Que aprendera no Rio
E o Ambrósio que- atacou Seu Juca de faca
E suicidou-se
As dezenove.pretinhas grávidas 13
0 despojamento e a simplicidade de um poema como este
são evidentes. Através do título,., o poeta nos dá '.importante
indicação para a sua -compreensão, sugerindo com ele uma espê,cie de contexto,- ou cenário, do qual os vários elementos apresentados a seguir fazem parte. De . forma muito rápida, através
de fragmentos predominantemente nominais, sem que uma articulação sintática usual reúna as partes, o poeta fornece um
inventário de certos tipos humanos que habitam essa "fazenda
antiga". Nos seis primeiros versos, três personagens masculinas são apresentadas, todas com nomes próprios e algum tipo
de caracterização individual específica. A seguir, dezenove
figuras femininas, todas anônimas e com caracterização sinté<tica e indiferendada
(simplesmente "pretinhas grávidas")
37
espremem-se no espaço de um único verso. Com uma economia
poética absoluta, o poeta sugere toda uma interpretação de
ordem cultural de uma fase da formação do país
(o poema
encontra-se na parte do livro intitulada "Poemas da Colonização") .
Poemas curtos e elípticos, carregados de sugestões,
compõem todo o livro. Contrariamente ao que se verifica em
relação a "0 domador", de Mário de ANDRADE, estes tendem a
um maior despojamento lingüístico e objetividade. O "eu" lírico apreende o real de uma forma igualmente
fragmentária,
no entanto sem o mesmo tipo de distorção subjetiva. A linguagem recorta a realidade sem impregná-la com a excessiva emotividade do sujeito. Aliás, de modo significativo, este se
encontra, na maior parte dos poemas, sintaticamente ausente
do.enunciado.
A poesia de Oswald de Andrade apresenta ainda algumas
características;
importantes da poesia modernista, na utili-
zação que faz do humor, e da paródia como elementos de crítica. Motivo de grande irritação por parte dos' defensores de
uma poesia "circunspecta", "polida", "elevada", e causador
de tantas polêmicas, inclusive em momentos posteriores do
desenvolvimento da poesia brasileira, trata-se de um dos
veios mais. típicos do Modernismo, presente na poesia de
autores significativos como Manuel Bandeira, Carlos Drummond
de Andrade, Murilo Mendes, etc., e do qual o poeta foi mestre .
38
A presença do humor e da ironia é clara na seguinte
composição :
0 GRAMÁTICO
Os negros discutiam
Que o cavalo sipantou
Mas o que mais sabia
Disse que era
S ipantarrou 14
Este poema revela-se um bom exemplar do que ficou
conhecido como "poema-piada". A prescrição de um termo em
detrimento de outro, ambos em evidente e saboroso desacordo
com as normas do português padrão, é bastante sugestiva de
um tipo de. mentalidade, dominante que, como o.-poeta sugere
com a escolha do-meio social—("os negros") em que a discussão se dã,- acabou por se espraiar para além do-estrato, social
de origem. A designação "o que mais sabia", caracterizando
aquele que intervém., de forma absurdamente normativa no uso
que os demais fazem da língua, ê acentuadamente irônica,
como também, ê irônico o próprio título do poema, que amplia
ainda mais o poder de critica de um episódio que poderia, a
principio, se configurar como restritamente anedõtico.
A paródia ê processo composicional básico deste outro
poema :
CANTO DO REGRESSO A PÃTRIA
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lã
39
Minha terra
E quase que
Minha terra
Minha terra
tem mais rosas
mais amores
tem mais ouro
tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de 1a
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lã
Não
Sem
Sem
E o
permita Deus que eu morra
que volte pra São Paulo
que veja a Rua 15
progresso de São Paulo 1 5
t
"Canto do regresso ã pátria", retomando de forma paródica a "Canção do exílio", de Gonçalves DIAS, é também paradigma de uma operação poética que iria se generalizar a
partir do Modernismo. Murilo Mendes, Drummond e José Paulo
Paes, a título de exemplo., retomaram, em-posteriores -e distintos momentos-, também esse mesmo poema, eada qual de forma
bastante singular. A paródia, pelo revelador confronto e
distorção de sentidos que necessariamente opera a partir de
um dado texto, é procedimento recorrente nos momentos em que
mais- agudamente a poesia se quer crítica, seja em termos de
uma crítica de natureza política, poética, ética, ou o que
for.
Através dos exemplos e comentários, estão delineadas
algumas tendências da poesia da primeira fase do Modernismo.
Mário de ANDRADE, em balanço posterior extremamente crítico
do movimento, iria sintetizar em três pontos as suas principais contribuições ã literatura nacional: "o direito permanente â pesquisa estética"; "a atualização da inteligência
crí-
tica brasileira"; "a estabilização de uma consciência criadora nacional". 1 6
40
2.3
2.3.1
MODERNISMO - 2? FASE
(1930-1945)
Da Ruptura ã Consolidação
De 1922 até 1930, estende-se a fase considerada de
ruptura do movimento modernista. Durante esse período, como
se frisou, surgem novos e importantes autores no cenário da
cultura nacional, defensores radicais de uma renovação geral
das artes, que vão bater-se com os representantes de um
ambiente estético dominante tido como esgotado. Diante das
transformações materiais e espirituais por que passam o pais
e o mundo naquele inicio de século, era necessário revitalizar os recursos expressivos e ampliaria temática para que a
arte pudesse, dar conta de toda^essa nova dinâmica cultural.
Ao longo da década, os autores vão se reunir em grupos, vão
fundar revistas, lançar manifestos e publicar os seus primeiros trabalhos. Esse instante é ainda de muita agitação, combate e polêmica no campo das preocupações estéticas, próprios
de um momento de afirmação de novos valores.
19 30, ano da Revolução de Outubro, tem sido tomado
como um divisor de águas do Modernismo, assinalando um momento já notadamente distinto do anterior. A Revolução, um acontecimento eminentemente político-social, acaba tendo grande
repercussão em toda a cultura brasileira. A vitória dos
liberais cria um clima favorável para as renovações artísticas que vinham sendo realizadas pelos primeiros modernistas,
aos quais juntam-se agora novos e decisivos autores, e que,
mesmo com os anos autoritários do Estado Novo (1937-1945),
não serão comprometidas. A arte modernista, que em 1922
ainda era algo marginal, periférico e de combate no universo
41
da cultura brasileira, se estabelece como a melhor expressão
dessa cultura. Em 19 30, o Modernismo é já um movimento vitorioso e as conseqüências disto se fazem sentir amplamente.
Se os anos 20 foram anos de agitação cultural e ruptura estética, "os anos 30 foram de engajamento politico, religioso e social no campo da cultura", para citar Antonio CANDIDO
no seu ensaio "A Revolução de 19 30 e a cultura". 17 João Luiz
LAFETÃ coloca o problema da distinção das duas fases modernistas em termos de uma passagem do "projeto estético"
senvolvido nos anos 20) ao "projeto ideológico"
do nos anos 30), dois momentos de um mesmo
(de-
(desenvolvi-
processo. 18 Wilson
MARTINS diz a esse respeito que "a curva vai da gratuidade
estética de 1922 ao compromisso ideológico dos anos 30; da
revolução em literatura para a revolução em política". 19
Alfredo BOSI também constata a mudança de orientação a partir
de 1930, ao dizer que a Revolução."vincou fundo a nossa literatura lançando-a a um estado 'adulto' e 'moderno' perto do
qual as palavras de ordem de 22. parecem fogachos de adolescente". "Mas", completa a seguir o autor, "se desviarmos o
foco da atenção da ruptura para as permanências, constataremos o quanto ficou da linguagem reelaborada no decênio de
20". 2 0
Todos estes autores se referem a uma mudança sentida
por volta de 19 30 na arte brasileira. Resumidamente, pode-se
dizer que o Modernismo de 19 2 2 lutou sobretudo por uma nova
"linguagem"
(entendendo-se aqui o termo em sentido bastante
amplo). Conquistada essa "linguagem", o que se passou a fazer
então foi utilizá-la de forma cada vez mais madura e individualizada na compreensão do homem e seus problemas, sejam
42
eles políticos, sociais, religiosos, metafísicos, estéticos,
etc., elementos mais ou menos acentuados por este ou aquele
autor.
2.3.2
A Poesia
Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade,
entre outros, renovaram radicalmente, na década de 20, os
códigos poéticos vigentes no país. Deram um golpe de misericórdia na poesia acadêmica, de raiz paranasiana e simbolista.
Fizeram um uso amplo das formas livres e introduziram temas
poéticos anteriormente proibidos. Os poetas que surgem a
partir de suas conquistas encontram uma linguagem poética
plenamente estabelecidada= qual partirão para. explorar toda
uma nova. temática.
Péricles Eugênio da Silva RAMOS, que a esta segunda
fase também reserva a designação de "fase de extensão de
campos" 2 1 , contrasta, no que diz respeito especificamente â
poesia, da seguinte forma a segunda com a primeira fase:
a 1 f (...)
f o i d e
r u p t u r a com os mo 1 d e s c o n s a g r a d o s e l o g o em s e g u i d a
ret r a ç ã o de a s s u n t o s ã ó r b i t a
nacionalista
(embora não e x c l u s i v a m e n t e ) ; a
s e g u n d a , a p a r t i r de 3 0 , p a s s a a p r e o c u p a r - s e com o h o m e m , em s i ou c o m o
s e r s o c i a l , p a r t i l h a d a em v á r i a s
dir e t r i z e s , de q u e a o s p o u c o s se v a i
e x c l u i n d o o h u m o r i s m o : s o c i a l ou p o l í tica
( C a r l o s Drummond de A n d r a d e ) ,
religiosa
( J o r g e de L i m a ,
Murilo
M e n d e s ) , de i n t e r i o r i z a ç ã o
(Cecília
M e i r e l e s ) , e t c . A e x p r e s s ã o se f a z
m a i s d e n s a d o q u e na p r i m e i r a
fase,
l e v a n d o a t é ao h e r m e t i s m o n a l g u n s
c a s o s . 0 q u e se p r o c u r a é e x p r i m i r
a v e r d a d e h u m a n a o u s o c i a l de c a d a
p o e t a , n ã o se p e r d o a n d o a a u s ê n c i a
de p e r s o n a l i d a d e
definida.21
43
Alfredo BOSI tem opinião muitíssimo semelhante a esta
no que diz respeito ã poesia. Os primeiros modernistas "haviam
rompido com os códigos acadêmicos e incorporado ã nossa lírica as formas livres com exemplos tão vigorosos, e felizes que
aos poetas dos anos de 30 não
seria mister inventar 'ex nihilo'
uma nova linguagem". Aos poetas que surgem após a fase heróica caberã a conquista de novas dimensões temáticas:.
a p o l í t i c a * em D r ummon d e M u r i l o
Mendes;
a r e l i g i o s a , n o mesmo M u r i l o , em J o r g e
de L i m a , em A u g u s t o F r e d e r i c o
Schmidt,
em C e c í l i a M e i r e l e s . E n i o s ó :
também
se i m p õ e a b u s c a d e , u m a l i n g u a g e m e s s e n c i a l , a f i m ãs e x p e r i ê n c i a s
metafísicas e
h e r m é t ¡ c a s d e c e r t o ve i o r i 1 k e a n o d a
l í r i c a modeitrn a ( . . . ) . 2 3
Se quanto à primeira fase era..relativamente simples
-constatar as- mudanças operadas, a nívei de* linguagem poética,
visto serem elas gritantes em relação ã poesia anterior,
agora, na passagem para este novo momento, a constatação de
mudanças vai exigir um mergulho na poética individual de cada autor. já. não ê mais possível falar de forma genérica em
"incorporação do verso livre" , "utilização de uma dicção coloquial", "abolição das fronteiras exteriores entre prosa e
poesia", etc. para caracterizá-la distintamente em relação â
poesia da década de 20. Todos esses elementos, continuando
presentes, revelam-se comuns às duas etapas e não podem ser
vistos como diferenciadores. Para caracterizar essa poesia
abrangentemente, como sugerem. Alfredo Bosi e Pericles Eugênio
da Silva Ramos,. tem-se de partir para o exame de elementos
mais acentuadamente temáticos e recursos expressivos bastante
individualizados, portanto não tão facilmente generalizãveis.
44
Algumas passagens de "Mundo grande", poema de Carlos
Drummond de ANDRADE, do livro Sentimento do mundo, de 1940,
podem dar uma boa idéia de uma das preocupações dominantes
da poesia.do periodo: a de sair do indivíduo em direção aos
demais homens, a de voltar-se para o mundo, para o social e
para o político, enfocando as tensões existentes no confronto do indivíduo com o coletivo.
Vejamos a primeira estrofe do poema, que estabelece
em seu início significativo diálogo com poema anterior do
mesmo autor :
Não, meu coração não é maior que o mundo.
£ muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto, tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente
nas livrarias :
preciso de.todos. 2 ^
Os primeiros versos dialogam com outros, do "Poema de
sete faces", composição que abre o livro inaugural de
Drummond-, Alguma poesia-, publicado em 1930 , trabalho ainda
bastante dentro-do espírito da primeira fase do- Modernismo.
Os versos famosos daquele poema ("Mundo mundo vasto mundo,/
mais vasto é meu coração..") contrastam com estes, que os
estão questionando de maneira frontal: "Não, meu coração não
é maior que o mundo./Ë muito menor.". Se lã o poeta via a
si próprio enquanto um "gauche", um homem ä margem do mundo,
distanciado de tudo e de todos através de uma visão irônica
e cáustica da realidade, incapaz por isso de se comunicar,
de se identificar com qualquer valor positivo, aqui neste
45
poema essa perspectiva se atenua, e o poeta vai tentar aproximar-se desse mundo.
Essa aproximação encontra um dos seus meios na poesia.
A partir da constatação dos primeiros versos,
Drummond como
que procura explicar o impulso que o leva a escrever, a se
expor publicamente através dela, e assim estabelecer um contato com o mundo. Sentindo-se pequeno, sentindo seu "coração"
como algo inferior ao "mundo", o poeta percebe que nele já»
não cabem nem as suas próprias dores, e por isso precisa
extravasá-las de alguma maneira, partilhar essas dores com
esse mundo: "preciso de todos", ele diz. E a maneira de
fazê-lo é. escrever: "Por isso me dispo/por isso me grito".
A descoberta da grandeza do "mundo diante da pequenez
do sujeito se amplia ainda na segunda estrofe:
Sim, meu coração ê muito pequeno.
So agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cã fora, estão na rua.
A rua e enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas .também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o., mundo.
0 mundo ê grande.
Repare-se no tom de revelação que perpassa o texto.
Mergulhado anteriormente.na própria subjetividade,
sentin-
do-se plenamente capaz de abarcar dentro de si, e portanto
compreender ã sua maneira, tudo o que lhe era exterior, o
sujeito de repente se dã conta da precariedade dessa ilusão,
e com certo espanto começa a descobrir a realidade ã sua
volta. Hã um crescendo nas constatações. Primeiro ele percebe a sua pequenez
("meu coração ê muito pequeno") em rela-
ção ã totalidade dos outros sujeitos ( -"nele não cabem os
homens"). Percebe então o espaço mais imediato, "a rua", mas
46
esse espaço ainda se lhe afigura pequeno em relação aos
"homens". Descobre então, finalmente, "o mundo", espaço
vasto
("O mundo ë grande."), que pode conter toda a humani-
dade .
Esta nova perspectiva diante dos homens e do mundo
contrasta, como o diálogo com "Poema de sete faces" bem evidencia, com a que possuía o poeta anteriormente. Drummond
insiste nesse aspecto e explicita:
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e
convocando ao suicídio .
Meus amigos foram ãs ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Seu mundo anterior era um mundo de "países imaginários" e "ilhas sem problemas"
riamente convocarem
(apesar de estas contradito-
"ao suicídio"), um mundo de alienação,
de evasão, de distanciamento, de solidão, de não-comunicação.
Os versos - "Meus amigos foram ãs ilhas./Ilhas perdem o
homem." - parecem sugerir que essa realidade não lhe era
particular, circunscrita exclusivamente ã sua pessoa, mas
algo mais amplo, relativo a toda uma geração. Esse dado ë
importante para avaliar a amplitude deste poema, que escapa
ao eminentemente pessoal para constatar toda uma época.
As estrofes finais explicitam o instante da ruptura
com essa perspectiva:
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo esta crescendo todos
os dias,
entre o fogo e o amor.
47
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
- Ö vida futurai nos te criaremos.
Alguns rompem
com essa visão, escapam ao isolamento e
retornam com a boa noticia. Ê ela, a constatação da grandeza
do mundo, que deslumbra o poeta ao longo de todo o texto, e
que lhe abre uma possibilidade de esperança e solução para
a sua angústia. Na última estrofe, a possibilidade do poeta
tentar se aproximar desse mundo em crescimento para poder
também crescer adquire tonalidades de euforia e o leva a
uma explosão de esperança na capacidade construtiva do
homem: " - Õ vida futura! nós te criaremos.".
Neste poema verificam-se alguns procedimentos característicos da poesia modernista, comuns aos dois momentos assinalados: o poeta faz uso do verso livre e opta por uma dicção
bastante coloquial. Além disso, deixa de lado torneios sintáticos muito complicados e suas escolhas lexicais e metaforização se revelam simples e de fácil entendimento. Há, neste
poema, um desejo claro de comunicação com o leitor, fato
corroborado pelo caráter confessional e pelo tom discursivo
e emotivo do texto.
No entanto, aquele caráter agressivo e afirmativo do
primeiro Modernismo, presente no manifesto de intenções que
é "Poética", de Manuel Bandeira, ou ainda nas experiências
precioslsticas de
Mário com a linguagem poética, em Paulicéia
desvairada, não se fazem notar. Não há também o humor e a
ironia de Oswald, ou daqueles mesmos dois poetas em outros
textos seus, elementos dos quais também Drummond faz uso
48
significativo em sua poesia inicial. 0 caráter sintético do
"poema-piada" mais característico contrasta com a circunspecção de largo fôlego reflexivo deste seu "Mundo grande". O
descritivismo do Modernismo inicial, afim ao desejo de inventariar as realidades brasileiras, cede espaço a um tom mais
confessional e filosófico. Não são os detalhes da paisagem
rural ou urbana, os aspectos anedóticos do cotidiano, os tipos sociais, as peculiaridades regionais, os dados da história - enfim, o mapeamento de um Brasil que se descobre com
"novos olhos" (para usar aqui a expressão de Oswald) - o. que
propriamente interessa, como no primeiro, momento, mas sim a
problemática do homem projetada em termos bem mais universais. Drummond tematiza as tensões entre o sujeito e o mundo,
entre os sujeitos e os demais-sujeitos, e—nesse sentido seu
poema toca o filosófico.
É importante acentuar que este poema diz respeito a
"um" dos momentos poéticos de Drummond e a "uma" das tendências temáticas da sua vasta e importante poesia. Ele serve,
aqui, para explicitar.a propensão humanística de boa parte
da produção desse período, que se concretiza em termos de
preocupação com os problemas do sujeito em relação ao social,
ao coletivo, ao político, e que encontra no próprio Drummond
um poeta capital.
já em "Corte transversal do poema", de Murilo MENDES,
publicado no livro Poemas, de 1930, vamos ter um tipo de
poesia bastante diferente. Aqui, o onírico, o mágico e o alógico, na esteira da imagística do Surrealismo francês, ganham
destaque. A busca de uma "linguagem essencial", através de
uma "expressão que se faz mais densa", beirando por vezes o
49
"hermetismo", de que falam Alfredo BOSI e Silva RAMOS, encontra um bom exemplo aqui :
CORTE TRANSVERSAL DO POEMA
A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços.
Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça,
"fica com um braço de fora.
Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.
Um anjo cinzento bate as asas
em torno da lâmpada.
Meu pensamento desloca uma perna,
o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados.
Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia,
um olho andando, com duas pernas.
0 sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem
A outra metade da noite foge. do mundo, empinando os' seios.
So tenho o outro lado da energia,
me dissolvem no tempo que vira, não me lembro mais quem sou. 2
0 primeiro verso do poema pode nos dar alguma espécie
de chave para.v o-ingresso-no seu universo de imagens-inusitadas. Temos aqui a referência a uma interrupção ("a música do
espaço pára") e a uma cisão ("a noite se divide em dois pedaços") . A interrupção da ordem das coisas ("música do espaço"
"harmonia do universo") e a cisão de um todo homogêneo ("noite") resultam num novo tipo de realidade, onde tudo parece se
ordenar de forma absolutamente distinta. Cabe aqui tentar
entender onde isto ocorre: se na realidade exterior ou na
subjetividade do poeta; se no universo dinâmico e caótico do
mundo moderno, que. põe de pernas para o ar todos os valores e
relações, ou na percepção líricamente deformadora do sujeito.
0 enquadramento ideal dessa questão está provavelmente no movimento pendular entre esses dois pólos. A reordenação da. realidade é apresentada pelo poeta através das fantásticas imagens que vão surgindo a seguir. O sujeito parece se
voltar, nas várias descrições, para coisas aparentemente
50
exteriores e que lhe chegam ã consciência sobretudo através
do sentido da visão. O descritivismo do texto ë acentuado e
precisa ser ressaltado pelo que pode revelar de impulso em
direção ã realidade objetiva. No entanto, o caráter onírico
e inconsciente dessas imagens parece insinuar que sua origem
se encontra na verdade no interior da própria
subjetividade
lírica do poeta. Tem-se assim, na constituição dessas imagens, uma orientação em direção ao exterior objetivo e ao
interior subjetivo. A fusão dos dois estatutos dã a sensação
de caos*,
de desorganização, de dissolução de limites. Sujei-
to e objeto perdem seus contornos. Versos como - "Eu sou o
olho dum marinheiro morto na índia,/dum olho andando, com
duas pernas." — i n s i n u a m essa dupla orientação, essa fusão
entre sujeito e objeto. O poeta projeta seu próprio ser em
algo distante no tempo e no espaço, e que se encontra organizado de forma absolutamente absurda. Tempos, espaços e formas
normalmente distintos e mutuamente excludentes passam a conviver
simultaneamente.
Outros segmentos do poema reiteram o seu modo de ser.
0 caráter onírico das imagens, por exemplo, ë referido explicitamente: "Alguém anda a construir uma escada pros meus
sonhos.". A idéia de ruptura com a ordem usual das coisas,
também: "Meu pensamento desloca uma perna". No último verso
do poema - "me dissolvem no tempo que virá, não me lembro
mais quem sou." - acentua-se a referida dissolução de limites. 0 poeta, na sua plena fusão com as coisas exteriores,
se dissolve no tempo, perde a noção da sua própria individualidade .
51
Este tipo de poesia aponta para uma tendência bastante
forte de certa vertente da poesia moderna: o questionamento
da capacidade da linguagem de apreender o mundo de forma
clara e univoca. 0 caráter referencial, denotativo, comum a
toda a linguagem, se esfuma, se esvai, se dissolve. A linguagem poética já não se volta para realidades exteriores,
reali-
dades palpáveis do mundo. Ë ela quem vai criar suas realidades particulares, estabelecer referenciais em potencial,
truncando os sentidos e pondo em xeque toda a logicidade possível. Nesse movimento, ela vai insistir na liberdade
ta da
absolu-
criação e independência da poesia, levando o ideal do
poeta demiurgo aos limites mais distantes.
Como se observa,- os versos são livres, e a dicção
_geral do texto, a despeito das suas imagens estranhas, tem
muito de coloquial. Ë sem cerimônia, sem rebuscamento, de
forma direta e num ritmo bastante prosaico que o poeta apresenta todo o seu mundo
poético de absurdos oníricos. Assim,
se por certos recursos de expressão ele se aproxima do Modernismo inicial - verso livre, dicção coloquial, poema sem
forma fixa -, por outros - sobretudo suas imagens - ele se
afasta numa direção bastante particular. Ele aprofunda questões capitais, como a da relação entre sujeito e mundo, que
Drummond enquadra de forma bastante diversa, ou ainda a da
própria essencialidade e liberdade da linguagem poética. Não
há aqui nem humorismo ou paródia, aspectos da contestação e
da critica ao passaáo literário, nem preocupação de inventariar o Brasil, através de um descritivismo por vezes pitoresco
ou da incorporação do primitivo. Estã-se já num momento distinto do Modernismo
inicial, de amplitude bem universal.
52
Outra vertente temática da poesia do período apontada
é a da poesia de caráter religioso. 0 próprio Murilo vai enveredar por aí, publicando, em 1935, junto com Jorge de LIMA,
Tempo e eternidade, üm poema deste iivro, "Distribuição da
poesia,
de Jorge, exemplifica muito bem o espírito dessa
orientação:
DISTRIBUIÇÃO DA POESIA
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das ãguas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos : poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas .de Deus .
Os gaios não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde e a Ilha. de São Brandão? .
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ö indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das ãguas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos. 26
A presença do discurso bíblico ao longo destes versos
é clara. Já nos primeiros dois, alguns termos caros ã simbologia cristã encontram-se presentes: "mel silvestre", "sal",
"luz". O primeiro aparece nos Evangelhos como o alimento de
João Batista, juntamente aos "gafanhotos", durante suas
peregrinações no deserto. Quanto aos outros dois, são termos
53
empregados pelo Cristo ao referir-se aos seus seguidores:
"vós sois o sal da terra", "vois sois a luz do mundo". 2 7
Sem este "sal" e esta "luz", sem o que dá sabor ãs coisas e
as ilumina, a vida não tem qualquer sentido. No poema, todos
os termos
parecem simbolizar a essencialidade das coisas
extraída peio poeta, a sua própria poesia portanto, como bem
explicitam os versos 3 e 4. Ela, que lhe serve de alimento,
dã sabor ãs coisas que experimenta e o ilumina, é por ele
extraída e oferecida a Deus. Esta verdade para ele essencial,
o poeta a proclama aos outros homens, a quem chama de "irmãos",
recorrendo a tratamento bastante comum no âmbito do discurso
religioso cristão.
Partindo destas afirmações positivas, Jorde de LIMA
contrapõe, ao longo dos versos 5 e 10, a essa poesia que
extrai da essência das coisas valores que.ele insiste em
negar: a riqueza
("ouro da terra") e a exploração do homem
( "sangue de meus~ irmãos") , bem como os seus representantes
no mundo ( "estalajadeiros", "bufarinheiros" e "banqueiros"),
figuras ligadas ao comércio e ã especulação financeira, que
ele quer afastadas de si. "A vida estã malograda", diz-nos
a seguir, e por isso a única solução ë voltar-se para a fé
em Deus. Os versos.de 13 a 24 trazem todos visões plenas de
maús pressãgios, com dor, morte e perdição, e nas quais a
"escuridão" surge como símbolo central. O mundo ao redor se
apresenta em tons bastante lúgebres, reforçando assim a
necessidade de buscar algo que o transcenda.
A estas visões apocalípticas, segue uma repetição
dos jubilosos versos iniciais, revertendo esse tom de obscuridade e desesperança. Depois das visões tenebrosas, novamente
54
o "mel silvestre", o "sal" e a "luz" são resgatados. A
"poesia", que os resume a todos, ê a única coisa que o poeta
tem para distribuir. Convida, portanto, para que o ouçam:
" Abancai-vos, meus irmãos". 0 poema revela-se assim uma espécie de profissão de fé na poesia como elemento redentor e um
convite â comunhão. E através dela que o poeta se aproxima de
Deus e dos outros homens. Ë ela a sua oferta ã divindade e
aos seus semelhantes. Ë por melo dela que a falta de sentido
de um mundo que se afigura por vezes aterrador pode ser superada.
Igualmente aos poemas anteriores, a liberdade
formal
deste poema de Jorge dê Lima ê bastante grande. Os versos
são livres e nenhum padrão estrutural fixo-determina a composição "das™ partes ou do. todoí-A. dicção, -o ritmo do texto
aproximam-se-porém .do_versículo bíblico, linguagem
orientado-
ra desta poesia, o que dã o tom de prédica e profecia que
atravessa o poema. A temática religiosa que o anima, bem como
o recurso ã linguagem bíblica dão a ele contornos de ampla
universalidade, inserindo-o num tipo de literatura que trancende o local, o regional ou o nacional, perspectiva aliás
presente em boa parte da obra inicial de Jorge de Lima.
Os três poemas aqui comentados dão uma boa idéia das
tendências temáticas e de expressão do segundo momento modernista. já não se está mais diante de um desejo de ruptura
formal com o passado, quando o choque e a provocação eram
elementos obrigatórios. A liberdade expressiva e composicional são moeda corrente. A experimentação radical com as
formas já não ë mais algo que surge como um programa de escola, imposto por vezes dê fora para dentro. O humor e a paródia de certa vertente modernista ( a do "poema-piada") dão
55
lugar a uma poesia mais circunspecta. O humor anterior, conseguido com traços rápidos e superficiais,
cede lugar a uma
poesia mais densa, de maior profundidade. 0 nacionalismo
que domina boa parte da poesia do Modernismo de 22, mais ou
menos xenófobo, mais ou menos crítico, dá lugar a uma poesia
mais universalista, preocupada muito mais com o homem e suas
tensões com o mundo - que adquirem diferentemente nos vários
poetas contornos de preocupação social, política, religiosa,
metafísica - do que com o descritivismo paisagista e a investigação histórica, geográfica e antropológica, postos a serviço da construção de mitos da nacionalidade.
2. 4...- GERAÇÃO DE 4 5
2.4.1
Duas Versões Contraditórias
Se em geral é unânime a opinião da crítica acerca da
importância do Modernismo e de.autores como'Mário, Oswald,
Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e Jorge de Lima para a
evolução da poesia brasileira moderna, o mesmo não ocorre
com aqueles poetas que foram englobados sob a designação de
"Geração de 45".
A avaliação da importância da sua poesia é polêmica.
Uma idéia do problema nos ë dada por Affonso Romano de
SANT'ANNA no seu artigo "Geração 45: Um mal entendido faz
25 anos", publicado pela primeira vez em agosto de 1970 no
"Jornal do Brasil", cujo título já é bastante sugestivo da
posição do crítico frente â questão. Ele, particularmente,
acusa como problema capital a falta de um programa estético
e ideológico definido nessa geração. Sua razão de ser estaria,
56
muito mais do que numa poética coletiva, na natural oposição
dos novos poetas, todos bastante jovens então, â poesia anterior, em especial ao Modernismo de 22.
Nesse mesmo artigo, logo no seu início, a título de
instigação â polêmica, o autor arrola, na forma de epígrafes,
uma série de opiniões controvertidas a respeito do valor da
"Geração". Entre as considerações mais acidamente detratoras
contidas nessas epígrafes, encontra-se a de José Guilherme
MERQUIOR, a partir da qual se pode, com os devidos descontos,
retirar os contornos dessa poesia:
. . . a l i n g u a g e m de kS p a r e c e t e r
nasc i d o n o d i c i o n á r i o d e C â n d i d o de F i g u e i r e d o . Suas i m a g e n s são r a r a s ,
de
r a r a a n e m i a e a b s t r a ç ã o . . Seus-.me t r o s
repelem a f l e x i b i l i d a d e , p s i c o l ó g i c a
d e 2 2 . A p o e s i a p ô s g r a v a t a . Uma s e r i e d a d e d i f u s a se e s p a l h o u p e l o
verso.
E uma c o n s t r u ç ã o d e f a l s o a r
pensado;
como se e s s e s p o e t a s , n ã o t e n d o c h e g a do a m e d i t a t i v o s ,
f i c a s s e m a p e n a s meditabundos.28
MEROUIOR, em meio aos disparos de ironia, se refere
a uma oposição que serã sempre lembrada na caracterização
dessa poesia: a oposição entre 45 e o Modernismo de 22.
Frente â revolução dos demolidores modernistas, os poetas
de 45 são sempre lembrados como bem comportados, restauradores, quando não francamente reacionários, esteticamente
falando. 0 resgate das formas fixas, dos metros tradicionais,
a preferência por um léxico raro e erudito, por imagens preciosas, a oposição ao humor e ao coloquialismo anteriores,
a pretensão ã seriedade e ã profundidade, foram muitas vezes
identificados como um retrocesso poético.'
57
1
No entanto, essas mesmas opções são justificadas de
maneira muito diferente por aqueles que estavam de alguma
forma ligados ao espírito da "Geração". Péricles Eugênio da
Silva RAMOS, por exemplo, crítico de literatura, tradutor
e poeta, justifica a importância poética da sua geração nos
seguintes termos:
A s u a a t i t u d e e s t é t i c a f o i de r e a ç ã o
c o n t r a o c l i m a d e s l e i x a d o da p r i m e i ra f a s e m o d e r n i s t a ,
r e i v i n d i c a n d o uma
v o l t a ã d i s c i p l i n a e ã ordem, ã r e f l e x ã o e a o r i g o r i s m o , ã b u s c a da f o r m a
e do e q u i l í b r i o , ã c o m p r e e n s ã o , ao
h u m a n o g e r a l e a o u n i v e r s a l i s m o , a uma
v o l t a ãs r e q r a s do v e r s o , ã P o é t i c a e
ã Retórica. 9
Se entendemos a evolução da arte como um movimento
constante de oposição de novos cânones aos eânones-.estabelecidos (e o novo, para determinada época, não é necessariamente o absolutamente original), parecem bastante legítimas as
colocações do poeta.
2.4.2
A Geração de 45 como fase da Poesia Brasileira
péricles Eugênio da Silva RAMOS, no seu ensaio sobre
a poesia do Modernismo de onde foi extraída a citação acima
("0 Modernismo na Poesia"), identifica a Geração : de 45 a uma
terceira fase da poesia modernista, que seguiria as duas
fases jã anteriormente comentadas (1922: "fase de ruptura";
1930: "fase de extensão" - na expressão desse mesmo crítico),
chamando-a de "fase. esteticista". 0 termo é problemático,
pois pode dar a entender que as fases anteriores teriam dado
pouca atenção ao "estético",, o que é absolutamente falso. Na
verdade, o que parece estar implicado aí é um determinado
58
sentido dado ao termo. Ao chamar a poesia desse periodo de
"esteticista", o poeta e critico parece estar querendo chamar
a atenção para um certo tipo de artesanato verbal, para um
certo rigor, informação e erudição que ele acredita haver
na manipulação dos materiais, que os poetas anteriores, no
seu trabalho de índole mais irracionalista, espontânea e
irreverente, teriam deixado de lado. Quando se chama a essa
geração de "esteticista", "formalista", "neoparnasiana", etc.,
parece que ë esse caráter mais "artificioso" do seu fazer
poético que está sendo acentuado.
Identificar aqueles autores que ficaram conhecidos
como típicos representantes da Geração de 45 a um -terceiro
momento do Modernismo ê na verdade muito problemático, pois
a importância--destes ë pequena se comparada aos poetas anteriores ou a outros que começam a surgir por esse período,
mas que teriam seus nomes ligados ás vanguardas das décadas
de 50 e 60, ou vistos como não enquadrãveis, como ë o caso
de João Cabral de Melo Neto. A operação tem o claro objetivo
de valorizar, de ligar a uma cadeia de continuidades, um
momento da poesia que nunca foi avaliado da mesma forma que
o Modernismo.
Em todo o caso, entre o Modernismo e o ainda polêmico
e frutífero período das Vanguardas Anos 50/60, encontra-se
um momento definido da evolução da poesia brasileira que não
pode ser visto simplesmente como um retrocesso, um equívoco,
um mal-entendido, uma vez que é reflexo de todo um ambiente
cultural do país propício ao seu surgimento. 0 espírito da
poesia da Geração de 45 ë algo que extrapola os limites que
em geral lhe são atribuídos; não é algo exclusivo dos poetas
59
englobados sob esta designação. Tem-se destacado, por exemplo,
a existência de um fazer literário afim ao da Geração de 45
em vários outros países após a Segunda Guerra Mundial. 30
Estes poetas, como os brasileiros, estariam elaborando a sua
poesia sob a influência de certos autores como Valéry, T.S.
Eliot, Rilke, Pessoa, Lorca, etc., poetas em certa medida
ligados ao hermetismo e ã tradição da poesia simbolista inaugurada por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé.
Outro dado importante a se considerar ë o retorno de
muitos dos modernistas, como Drummond, Jorge de Lima e Murilo
Mendes, mestres do verso livre, ãs formas da tradição, aos
metros fixos, ã rima, ã erudição lexical, etc. em muitos de
seus "livros: do:, período.. Da mesma forma, poetas como Augusto
e. Haroldo.de Campos, Dëcio Pignatari e José Paulo Paes, que
posteriormente" iriam optar pelos- caminhos da vanguarda literária, estréiam nesse período com versos por vezes muito
próximos aos praticados pelos representantes típicos da Geração de 45. Parece haver uma tendência geral no período, para
a qual convergem os antigos modernistas e da qual partem os
vanguardistas de 50 e 60, uma espécie de momento de transição,
cujos traços mais evidentes acabaram sendo identificados somente àqueles que ficaram circunscritos ao que se passou a
chamar - a partir da designação criada por eles próprios Geração de 45.
2.4.3
A Poesia
Algumas características gerais mais explícitas da
poesia de 45 foram observadas acima. São elas: resgate da
rima e dos metros fixos; retorno ãs formas da tradição da
60
poesia, como o soneto, a elegia, a ode; preferencia por urna
dicção mais séria e solene, portanto menos coloquial e cheia
de humor, como era corrente na produção poética modernista;
utilização de um léxico raro e erudito; preferência por imagens sofisticadas, preciosas, muitas vezes sob a influência
da imaglstica do Surrealismo; exploração da sonoridade dentro
do gosto da tradição da poesia simbolista; metaforização
intensa; pretensão ã profundidade e ã seriedade no tratamento
dos temas.
Obviamente, essas características gerais vão ter nos
textos de cada poeta uma realização singular e problemática.
A inexistência de um programa poético coletivo relativiza
muito o valor de tais•generalizações e simplificações para o
entendimento pleno da poesia realizada no período.
Um primeiro exemplo do tipo de poesia praticada pode
ser observado no seguinte poema de Lêdo Ivo:
SONETO
Ä doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros
versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados jã, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.
Sôbolos-, rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer- Sião,
irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo. 31
61
Em termos exteriormente formais, chama a atenção logo
de início o resgate de uma forma da tradição literária como
o soneto, que havia sido praticamente banida da poesia brasileira, sobretudo no que diz respeito aos poetas realmente
significativos, durante os anos áureos do Modernismo. Além
de fazer uso do soneto, o poeta também resgata um metro identificado ãs composições de caráter mais clássico, o decassílabo, e um esquema rígido de rimas consoantes
(abba/abba/cdc/
bdb) .
Temáticamente, o poema traz algumas reflexões sobre a
poesia do próprio poeta, e esse seu caráter meta.lingüístico
pode relevar alguns dos princípios gerais da poética da
Geração de 45.
Seria interessante destacar alguns dos dados encontrados ao longo do texto referentes ao tipo de poesia ao qual o
poeta se inclina. Abrigado inicialmente pela poesia ("ã doce
sombra dos cancioneiros"), ele vai revelar a sua revolta
contra o "tempo" e constatar ser incapaz de elaborar versos
que transcendam esse mesmo tempo - versos que serão os "derradeiros" e que ele pretende
"cantar solenemente". Há um
desejo de resgate de um "antigo acento", característico de
"eternos cantos, nunca passageiros", ausente de sua primeira
poesia. O desejo de uma volta ao antigo,, uma vez que ela ë
garantia de uma poesia ao abrigo do tempo, ë explícito. Esse
impulso pode ser entendido como um impulso ao "clássico" ,
"àquilo que tende ã perenidade e tem na permanência exemplar
e influente a garantia de sua superioridade. Toda a terceira
estrofe, que inicia com o verso "Sôbolos rios que cantando
vão", faz referência óbvia ao poeta da língua portuguesa
clássico por excelência: Luis de Camões. E os versos da estrofe final reiteram e explicam esse impulso ã tradição como
forma de superar os impasses poéticos do presente. Resgatar
o "passado" ê resgatar as vertentes mais ricas e produtivas
da lírica, forma vislumbrada de dar continuidade ao desenvolvimento da própria poesia: "e serei, mergulhado no passado,/
cada vez mais moderno e mais antigo.".
Estes dois últimos versos do poema são um achado
metalingülstico felicíssimo para explicitar o estado de espirito de toda essa geração de poetas. 0 Modernismo de 22 foi,
pelo menos durante a fase de combate, um movimento pautado
pelo desejo de ruptura com a tradição e destruição de valores estabelecidos, influenciado pelas vanguardas européias
do inicio do século , antipassadistas- ao extremo. .-0 impulso
desenfreado ao novo como único juízo de valor artístico legitimo acaba por encontrar contestação num período posterior,
quando os valores das vanguardas do inicio do século insinuam
um esgotamento. Para muitos dos poetas da Geração de 45, uma
volta ao passado se impunha como forma de se poder continuar
criando. Esta forma encontrada foi contestada posteriormente
pela poesia brasileira quando a vanguarda ressurge revigorada
ao longo dos anos 50 e 60.
Um segundo poema, "Rosa, Floresta de Sangue", de
péricles Eugênio da Silva RA.M0S, deixa ainda mais claro o
tipo de dicção dominante no período:
63
ROSA, FLORESTA DE SANGUE
Rosa, floresta de sangue,
aurora atormentada por saber-se pura,
rosa cascata de paixão!
Um dia vem, um dia vai,
porem tu ficas, vendaval de chamas,
o rosto ensolarado, a boca sem palavras,
como um fantasma erguido sobre as proprias cinzas !
Centelha silenciosa, fogo mais que argila,
oferta rubra do Senhor das Flamas,
tu ficas! tu não mudas! tu imperas!
tu reinas para sempre, 5 cortesã da eternidade,
enquanto o sol, no espaço, despetala os seus geranios de ouro!
Tu ficas para sempre, nave em fuga! Ö nau sem âncora
que bailas sobre um mar purpúreo,
tu ficas! tu não passas! tu dominas!
Porém vermelha de horizontes, ébria de intempéries,,
tu ergues, rosa! teu.lamento nos ciclones,
se a vaga dos abismos te arrebata!
Ah! tu te queixas, barca ensangüentada! lenho funeral!
enquanto esperas a onda negra:
ah ! tu te queixas de teu rumo - certo - de gaivota,
quando és a força do pecado e a seiva da beleza.
Ah! sim, também a morte sela seu olhar,
Porém tu permaneces, coração calado!
Porque és a perfeição que desconhece o tempo,
a forma que persiste além das pétalas que tombam... 32
Diferentemente do poema anterior, este ë todo ele
constituido por versos livres, sem rimas de qualquer espécie
e estrofes de tamanho variável. Ele incorpora, portanto,
elementos que no Brasil foram introduzidos e tornados comuns
pela poesia modernista. Porém, o tom desta poesia está muito
distante do que o Modernismo produziu de mais típico.
Chama a atenção já de inicio a exuberância metafórica,
a excessiva discursividade
(alheia a qualquer princípio de
síntese), a repetição de estruturas sintáticas, o tom de
evocação afetada do poema, por exemplo, só na primeira
estrofe, o motivo "rosa" encontra os seguintes equivalentes
metafóricos, todos eles extremamente redundantes:
"floresta
64
de sangue", "aurora atormentada", "cascata de paixão",
"vendaval de chamas". No inicio da segunda estrofe, três
extensos apostos coordenados, todos substitutos metafóricos,
antecedem o sujeito do período (novamente a mesma "rosa"
implícita no pronome "tu"), que por sua vez é seguido por
quatro predicados - "ficas", "não mudas", "imperas", "reinas".
0 excesso de apostos, vocativos, exclamações, adjetivações
pomposas, etc. dão ao poema um tom de escassa modernidade,
que o aproxima muito do espirito de certa poesia romântica.
Temáticamente, o poema trata da tensão existente entre
a vida e a morte í o perene e o passageiro. A "rosa", extensamente caracterizada ao longo do texto, parece ter. seu significado ampliado, deixando de ser tão somente uma flor, para
se constituir enquanto símbolo de algo muito maior, um símbolo da vida, da permanência, da imutabilidade, da alma, da
essência, da beleza das coisas, que resiste afinal ao tempo
e â morte aparentes. A perspectiva ê, portanto, idealista,
platônica em essência, o que denuncia um olhar poético pouco
afeito â modernidade, onde a transitoriedade, a precariedade,
a materialidade, a historicidade das coisas são os aspectos
mais acentuados.
Se o poema anterior apresentava uma tensão presente
num determinado tipo de fazer poético que. resgatava formas
e dicções passadas para fazer a poesia do presente ("serei,
mergulhado
no passado, cada vez mais moderno e mais antigo") ,
este apresenta uma mesma tensão, ao trazer para o tempo
presente uma perspectiva idealista frente ã vida que contradiz
frontalmente as vertentes dominantes do pensamento moderno.
65
Essa contradição formal e temática, esboçada nestes comentários aos poemas, está presenta em boa parte da poesia de 45.
Os poetas cujos poemas serviram aqui para explicitar
um pouco da poesia da Geração de 45 são arrolados, sem qualquer contestação, entre os seus típicos representantes. Um
outro poeta, cronologicamente pertencente a essa mesma geração, mas que mantém grande independência pela sua poética
particularlssima e pela influência marcante em toda a poesia
brasileira posterior, ë João Cabral de MELO NETO. Alguns
versos seus precisam ser aqui comentados, paira se perceber
que rumos a poesia brasileira iria tomar a seguir.
PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO
VI
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos ;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola,
aranha; como o mais extremo
desse fio frágil, que se rompe
ao peso, sempre, das mãos-'
enormes.3 3
Este único fragmento de "Psicologia da composição"
basta para se entender a poética proposta por João Cabral
de METO NETO, e que teria desdobramentos posteriores em
certas vertentes da poesia de vanguarda das décadas' seguintes,
66
sobretudo no Concretismo. Nas duas primeiras estrofes, o
poeta se contrapõe a um fazer literário baseado numa certavisão de poesia, propondo nas duas seguintes o seu próprio
processo criativo.
Temos, inicialmente, a negação daquela visão segundo
a qual a poesia é algo que se manifesta ao poeta ao sabor
do acaso, de uma inspiração momentânea sem qualquer explicação racional
("em lance santo ou raro"), e que dele não exige
um maior trabalho por se encontrar jã plenamente constituida
no momento da sua manifestação. A esse fazer, o poeta vai
contrapor a construção criteriosa, o trabalho concentrado e
lento. Há aqui a defesa explícita do poeta artífice, do
poeta que se debruça sobre o -papel exclusivamente com as
armas da-razão e-da vontade construtora, do poeta plenamente
consciente do seu labor, senhor absoluto de todo o impulso
lírico.
João Cabral é o poeta mais influente surgido no
periodo. 0 seu artesanato verbal, o seu rigor construtivo
recuperam em certa medida muito de um certo "espirito clássico" de composição, ausente na poesia brasileira
(talvez a
exceção seja Guilherme de Almeida) durante os anos heróicos
do Modernismo. Nesse sentido, ele se afasta da vertente mais
espontânea da poesia modernista, o que permitiria enquadrá-lo
dentro do espirito de antagonismo frente â poesia anterior,
presente em muitos dos poetas da Geração de 45.
No entanto, Cabral, por esse mesmo rigor e artesanato,
pelo caráter radicalmente metalingülstico da sua poesia, prenuncia jã o experimentalismo rigoroso e contido das vanguardas, distante
da espontaneidade lírica e avesso aos excessos
b7
verbais e ao passadismo em que tantos poetas de 45 caíram,
como são os casos paradigmáticos dos dois poemas anteriormente comentados. Cabral, na excelência individual de sua poesia,
fica assim como uma voz um tanto quanto dissonante em meio ã
geração em que por fatalidade cronológica se encontra didaticamente compreendido.
2.5
2.5.1
VANGUARDAS ANOS 5 0/60
Uma Fase de Programas Poéticos Coletivos
Affonso Romano de SANT'ANNA arrola sob a designação
"vanguardas" uma série de movimentos poéticos surgidos no
Brasil, entre 1956 e 1968: Concretismo
(1959), Tendência
(1956), Neoconcretismo
(1957), Prãxis (1962), Violão de Rua
(1962), Poema Processo
(1967) e Tropicalismo
(1968). 34
O
enquadramento de todas essas tendências sob um único e polêmico termo é problemático e exige algumas observações.
Quem conhece a poesia praticada por cada um desses
movimentos entende logo que o termo "vanguarda" nem sempre
está sendo usado para cada caso com o mesmo sentido. Se
Violão de Rua é uma vanguarda, não o ê obviamente no mesmo
sentido que o Concretismo. Este se enquadra sem maiores
problemas no que em geral se entende por vanguarda poética:
é um movimento inovador, que rompe com as poéticas anteriores, um movimento consciente de estar inaugurando um novo
tipo de fazer literário, de grande originalidade em suas
proposições e realizações. Jã aquele, se ele se enquadra
em alguma vanguarda, não é certamente numa vanguarda "estética", mas sim "política". Sua poesia não tem maior novidade,
68
temática ou formalmente falando. Seu traço caracterizador é
algo externo à poesia: o desejo de participação poética coletiva num projeto de transformação social e política do pais.
Outro problema diz respeito ao enquadramento do
Tropicalismo entre os movimentos poéticos de vanguarda. Na
verdade, trata-se de um movimento muito mais vinculado à
música popular, ao teatro e ãs artes plásticas do que ã poesia
Se em geral se costuma citar os poetas Torquato Neto e Waly
Salomão entre os seus representantes na literatura, quando
se trata de exemplificar a produção poética tropicalista,
toma-se sempre as letras de música
ao invés dos poemas como
exemplos mais fiéis do seu espírito. No entanto, a influência
do Tropicalismo na produção literária ë significativa, e a
sua aproximação de um movimento especificamente poético como
o Concretismo, ou a observação da continuidade de alguns de
seus princípios na Poesia Marginal dos anos 70 (ambos têm
por solo comum a Contracultura) fazem dele um movimento que
pode ser englobado num panorama da poesia.
Levantadas estas questões, convém fazer ainda última
observação. A designação "Vanguardas anos 50/60" serve na
verdade muito mais para preencher uma lacuna do que para
esclarecer um tipo de fazer poético aí implicado. Se hã
alguma coisa obviamente em comum entre esses movimentos todos
que permite abordá-los conjuntamente, além da proximidade
cronológica, ê o propósito de obediência a um programa
definido encontrãvel em todos eles. Em todos, o que se
observa ê um desejo de subordinar as produções individuais
a um projeto poético elaborado coletivamente a partir das
necessidades estéticas ou políticas (ou ambas as coisas) dos
69
seus integrantes, realizado muitas vezes anteriormente ã
própria poesia. Todos os autores se mostram conscientes da
existência de uma poética grupai orientadora da sua produção,
e revelem-na não só em seus textos poéticos, mas em manifestos, artigos críticos, declarações na imprensa, etc. Uma proximidade entre este momento e o Modernismo da década de 20,
quando a militância poética e o agrupamento em torno de determinadas idéias eram bastante comuns, pode ser verificada.
Aliás, a retomada de muitas das preocupações desse mesmo Modernismo com relação ã poesia e ã cultura nacional é traço
bastante evidente nas proposições de cada um dos grupos.
-2.5.2
Em Sintonia com o seu Tempo
As vanguardas poéticas brasileiras surgidas a partir
de meados dos anos 50 são uma tentativa de responder artisticamente ãs transformações ocorridas na cultura brasileira
e no mundo a partir da segunda metade do século XX. A poesia
da Geração de 45 era uma poesia que, na média das suas realizações, não se sintonizava com as transformações espirituais
e materiais do mundo que estavam se processando depois da
Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, ela parecia reagir
a esse mundo na sua tentativa de resgate de um estado de
espirito não mais possível então. Formal e ideologicamente,
seu impulso era de reação.
Depois da Segunda Guerra Mundial, com os impasses
políticos entre os países que venceram as potências do Eixo,
o mundo vai cindir-se em dois blocos antagônicos subordinados
à influência de duas novas grandes potências militares:' Estados
Unidos e União Soviética. A Guerra Fria, com o fantasma
70
constante de uma catástrofe nuclear, bloqueia qualquer intento de maior independência por parte das.nações, justificando,
no âmbito dos dois blocos, a dominação e a repressão aos
impulsos de autonomia dos povos. 0 capitalismo, de um lado,
ancorado no liberalismo, e do outro o comunismo, patrocinado
pelo estado totalitário, formam os eixos político-ideológicos
e econômico-sociais dominantes nas décadas seguintes.
As grandes transformações culturais verificadas ao
longo dos anos 50 e 60 vão se processar dentro desse quadro.
No Ocidente, o capitalismo e o liberalismo acenam com o
paraíso material do consumo e .com a liberdade dos sujeitos .
garantida pelas constituições e regimes democráticos como os
sinais evidentes da sua superioridade, porém, as modern!ssi-r .
mas técnicas de produção-de bens do capitalismo avançado, o
desenvolvimento dos. meios de comunicação de massa, os primeiros passos em direção ã crescente informatização do planeta
revelam-se na verdade expedientes sofisticados de dominação,
e a propalada liberdade se dissolve em meio aos interesses
econômicos predatórios dos países desenvolvidos e ã dependência a que são condenados os
subdesenvolvidos. A democracia
é fato em alguns países da Europa e América do Norte, ficando
os restantes largados ao arbitrio de totalitarismos periódicos alternados a instantes de semi ou pseudo-democracia, com
os quais as grandes democracias, desde que essa situação não
contradiga seus interesses, são coniventes. O bloco comunista
acena com a solução das diferenças sociais e materiais entre
os homens, e com a propagação definitiva da justiça, requisitos básicos para o progresso definitivo da humanidade. No
entanto, o totalitarismo de estado acaba por trair a utopia
71
socialista, fazendo naufragar pouco a pouco a única posição
de firme e necessário contraponto ao capitalismo.
Países como o Brasil, deslocados dos centros de poder,
vivem mais de perto essas contradições ideológicas. O Brasil
da segunda metade dos anos 50, o Brasil de Juscelino Kubitschek,
vive a euforia da política desenvolvimentista, destinada a
colocar o pais ao lado das grandes economias capitalistas
ocidentais num curtíssimo prazo de tempo - relembre-se aqui
a famosa expressão de Juscelino "50 anos em 5". No entanto,
a abertura ao capital estrangeiro e a violenta modernização
industrial não logram resolver os graves problemas sociais
do país, acumulados ao longo de séculos de exploração e má
política. Pelo contrário, tornam-nos ainda mais graves. A
miséria e a exploração são campos férteis para a indignação
e a revolta, e o que vai surgir cada vez com mais intensidade
nesse momento é todo um pensamento revolucionãrio ancorado
nos ideais, do socialismo e do comunismo, que fermenta nos
anos 50 e surge com grande força na década de 60, pontuando
os governos de Jânio Quadros e João Goulart, até que a ditadura militar, a partir de 1964, venha estancar com violência
o seu impulso contestador. No final da década e ao longo dos
anos 70, a ortodoxia de esquerda passa a dividir seu potencial de crítica e contestação com os movimentos ligados ao
espírito da Contracultura.
Um Brasil que se embala no sonho do progresso material
na esteira do capitalismo internacional, Brasil dos grandes
centros urbanos e dos parques industriais, Brasil das elites
empresariais e políticas, Brasil das classes médias e das
profissões liberais, vive lado a lado com um Brasil arcaico,
72
primitivo, rural, atravessado pela miseria social, Brasil de
migrações do campo para a cidade e da formação de proletariados industriais e bolsões de miseria nos grandes centros
urbanos. A arte do periodo não vai se desenvolver ao largo
dessa realidade. Vai, sim, captã-la, enfocando-a de diferentes pontos de vista.
O Concretismo, por exemplo, guarda muito do desejo de
ver o Brasil despontar ao lado das grandes culturas do Ocidente. O desejo de "modernização" literária nele implícito,
de se postar na ponta da arte ocidental produzindo uma poesia
"tipo exportação", revertendo assim o trajeto usual das influências literárias, tem muito, guardadas as diferenças, do
espírito desenvolvimentista dos anos 50. Os outros movimentos
de vanguarda estética, alguns com maior relevo ao. político
jã desde a sua formulação primeira, não fojem a esse mesmo
paradigma. A arte social e politicamente engajada reflete,
por sua vez, outra perspectiva, a dos agrupamentos políticos
de esquerda, interessados em conscientizar, as populações da
exploração e da dependência, insuflando-as ã organização e
ã revolta. Procuram incorporar ã arte a linguagem dos substratos socialmente mais interiorizados, para veicular através
dela mensagens politicamente orientadas. Jã o< »Tropicalismo,
sobretudo no que concerne ã canção popular, atua nos meios
de comunicação de massa, vive a contradição do moderno/arcaico de forma muito viva na sua própria elaboração artística.
Parte para uma contestação ao sistema que jã não ê a da
esquerda ortodoxa, mais sim uma contestação inspirada agora
na Contracultura, de caráter bem mais comportamental.
73
A arte brasileira - e entre suas manifestações a
poesia - se aproxima muito do debate em torno a uma série
de questões importantes no cenário cultural do país. Ela vai
ser palco de polêmicas que se processam em relação a antagonismos da realidade nacional e que se projetam nela própria.
Os antagonismos entre arte politicamente engajada e arte de
experimentação formal, entre arte erudita e arte popular,
ou ainda entre arte erudita e arte de massa e consumo ecoam
as próprias contradições de um país que se debate entre a
industrialização e o subdesenvolvimento, entre o progresso
material concentrado e a miséria generalizada, entre o moderno e o arcaico, entre o urbano e o. rural, entre o global e o
local, entre o passado e o presente. Em cada momento
(e em
cada um dos movimentos do períddo) estas questões vão encontrar diferentes formulações e respostas. Em todo o caso, estarão sempre presentes, evidenciando a efervescência cultural
que envolve o país e que se reflete produtivamente nas suas
artes.
2.5.3
A Poesia
A poesia do período pode ser estudada, portanto, a
partir dos principais movimentos poéticos surgidos no país
entre L956 e 1968. Esse caráter coletivo da produção dã a
ela uma homogeneidade aparente, ausente das postulações
poéticas de cada vertente singular. Procurou-se englobar a
seguir os movimentos
de
consagração mais unânime, plenamente
representativos dessas diferentes linhas literárias.
74
2.5.3.1
Concretismo - Oficialmente, o Concretismo tem o sen
momento inaugural com a realização da I Exposição de Arte
Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956. No,
entanto, as idéias que iriam alimentar a sua poesia jã vinhíis
sendo expostas e discutidas na publicação de ensaios dos tres
nomes centrais do movimento, Augusto de Campos, Haroldo de
Campos e Décio Pignatari,- desde o início da década de 50. A
exposição marca o momento de amadurecimento e sistematização
da poética concretista, bem como a congregação de outros
nomes - poetas, artistas plásticos e músicos - em torno dos
seus princípios. Alguns destes nomes, acompanhando a dissidência do poeta Ferreira Gullar no anq seguinte, iriam romper
com o núcleo ortodoxo paulista- e organizarão Neoconcretismo,
cuja exposição inaugural se realizará em 1959, no Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro.
A poética do Concretismo foi (e tem sido) objeto de
muita divulgação e polêmica desde o início do movimento. Seus
principais postulados podem ser encontrados de forma dispersa
numa série de artigos teóricos publicados pelos seus integrantes desde meados dos anos 50 em revistas e suplementos literários de importantes jornais. Uma idéia geral das suas concepções fundamentais é apreendida da leitura daquele texto
que passaria a ser identificado como p principal manifesto
do Concretismo, o "Plano-Piloto para Poesia Concreta", publicado originalmente na revista "Noigandres i:4" , em 1958, e
assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de
Campos. As principais linhas do movimento encontram-se teorizadas de forma altamente condensada nesse texto capital.
75
Uma das definições-chave
apresentadas pelo
"Plano-Pilo-
to" diz o seguinte: "poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo". 3 5
A exploração dos dois pólos dessa
"tensão", a partir das próprias proposições do manifesto,
revela muito da natureza dessa nova poesia.
Vejamos primeiramente o conceito de
"espaço-tempo".
Logo no inicio do "Plano-Piloto", a Poesia Concreta se propõe
enquanto um "produto de uma evolução crítica de formas". Ela
dá por encerrado o "ciclo histórico do verso" e postula uma
nova estruturação do poema, que passa a levar em
consideração
agora o "espaço grãfico como agente estrutural". A poesia
passa a se estruturar, assim, numa dupla dimensão que engloba
espaço, e. tempo, e não mais apenas, de forma linear, como ocorria com a poesia tradicional, restrita â dimensão* temporal.
Este princípio, segundo o manifesto, jã estaria presente, por
exemplo, na concepção de Pound e Fenollosa acerca do ideograma chinês como método de cdmposição poéti-ca "baseado na justaposição direta - analógica, não lógico-discursiva - de elementos " .
0 conceito de "palavras-coisas" pode ser entendido a
partir de outra formulação do "Plano-Piloto":
"o poema con-
creto ë um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de
objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos
subjetivas".
Há nesta afirmação uma negação das funções emotiva e referencial da linguagem poética, ou seja, da poesia enquanto expressão das afeições, das emoções, das vivências interiores de
um "eu" lírico, é da poesia enquanto representação de realidades exteriores ã própria linguagem. Na Poesia Concreta vai
se dispensar uma atenção exclusiva ã concretude da palavra,
76
na sua dimensão material. A palavra - "som, forma visual, carga semântica", como define o manifesto, ampliando assim bastante o conceito de "concretude" na referência a esta terceira
dimensão - ê' o material da Poesia Concreta. Ë com essas realidades da palavra que ela opera.
A. Poesia Concreta trabalha, portanto, basicamentê com
a palavra vista enquanto um "objeto"
plorando-a
("palavras-coisas") , ex-
(a palavra impressa) na sua dimensão espacial
(a
palavra disposta no espaço da página) e na sua dimensão temporal
(que ë inerente â própria
linguagem).
A estas considerações básicas devem-se somar ainda
outras. A Poesia Concreta tende sempre â síntese. A sua oposição ao discursivo e ao ..verso, preferindo em lugar deste último a palavra como unidade poética.(e até os
segmentos meno-
res obtidos a partir, do seu fracionamento), ê índice disso.
A opção pelo método.ideogrâmico de composição, onde termos são
acoplados eliminando-se os elementos intermediários que usualmente surgiriam entre eles, reitera esse princípio. Esse impulso ã síntese, faz parte de um desejo de comunicação rápida,
adequado aos modernos meios de comunicação, com os quais namora por
vezes o Concretismo.
NO "Plano-Piloto" estão arrolados ainda aqueles auto-
res da tradição da poesia
(e os seus recursos poéticos) que
poderiam ser vistos como precursores do novo movimento:
Mallarmé e a exploração do "espaço" e de "recursos tipográficos"; Pound e seu "método ideogrâmico" de composição; Joyce
e a utilização.da
"palavra-ideograma" e da
"interpenetração
orgânica de tempo e espaço"; Cummings e a "atomização de
palavras" e valorização do espaço; Apollinaire, o Futurismo
e o Dadaísmo; e, no Brasil, a poesia sintética de Oswald de
77
Andrade e o rigor construtivo de João Cabral de Melo Neto.
Hã aí um desejo evidente de, apesar da pretensão ã novidade
absoluta e ã ruptura, situar o Concretismo dentro de uma tradição de grandes criadores.
Alguns poemas concretos podem exemplificar de forma
mais clara os princípios comentados, como é o caso de dois
textos de 1957, o poema "eixo", de Agusto de CAMPOS, que
trabalha com compostos inéditos na língua, dispostos espacialmente de forma a explorar as semelhanças sugeridas entre a
organização estrutural e a semântica do poema
(a reiteração
de elementos gráficos comuns em todos os compostos dando a
idéia de um "eixo fixo" organizador do poema), e "Coca-cola",
de Décio Pignatari, que opera-a partir da desmontagem
ideolo-
gicamente crítica de um "slogan" propagandístico:
eixoolho
polofixo
eixoflor
pesofixo
eixosolo
olhofixo 36
beba , coca cola
babe
cola
beba coca
babe cola coca
caco
cola
cloaca 3 7
Convém ressaltar que o Concretismo não se restringe
apenas ao tipo de exploração gráfica acima exemplificado.
Ele vai trabalhar também com cores, com tipos gráficos de
formas e tamanhos variados, com o desdobramento do poema ao
longo das páginas do livro, com fotomontagens, vai ultrapassar
78
os limites da bidimensionalidade da página, vai explorar os
vários recursos da propaganda, os "outdoors", o video, o
computador, etc., operando, em suma, com todo o tipo de recurso gráfico posto ã disposição do poeta.
A Poesia Concreta, nessas explorações, se aproxima
das artes plásticas, incorpora códigos não comuns ã poesia
i
tradicional. Esse seu caráter intersemiõtico faz dela uma
arte que transcende os seus limites de origem, complicando
muito sua avaliação por parte de uma critica exclusivamente
literária. 0 movimento do Poema Processo - desdobramento
radical dessa vertente visual do Concretismo - leva a delimitação do que ê ou não poesia ao seu limite ao expulsar do
texto literário os elementos- mais propriamente verbais. 0
Concretismo não chega.a esses extremos. Seu ideal de exploração conjunta do verbal, do sonoro e do visual ( expresso na
tradução de um neologismo joyceano: "verbivocovisual", muito
presente nos textos teóricos do movimento) -mantêm-no centrado
ainda sobremaneira na palavra.
2.5.3.2
Neoconcretismo - 0 Neoconcretismo vai partir de uma
dissidência com o Concretismo. Os artistas cariocas
(ou se-
diados no Rio de Janeiro) que haviam se ligado ao núcleo
paulista do Concretismo por uma série de afinidades estéticas, desligam-se por volta de 195 7 e lançam um manifesto de
fundação do novo grupo em 1959. Como aquele, trata-se de
um grupo de artistas não restrito apenas ã poesia, mas ligado
também
(e sobretudo) ãs artes plásticas. É a estas, aliás,
que o manifesto inaugural vai dedicar maior espaço.
79
Como se lê logo no início do manifesto, a arte neoconcreta se opõe "a uma perigosa exacerbação
racionalista" 3 8
que havia tomado conta da arte concreta. Parece ser esta a
tomada de posição básica desses artistas frente ao Concretismo. Eles combatem o objetivismo mecanicista que identificam
em seu trabalho.
Na poesia, as postulações do manifesto são sobretudo
de combate à consideração da palavra como um mero objeto e
da exploração do espaço e do tempo como "relações exteriores
entre palavras". "A poesia neoconcreta", segundo o manifesto,
"(...) afirma o poema como um ser temporal. No tempo e não
no espaço a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa". Isto não significa uma desconsideração do espaço,
recém-incorporado pelas-vanguardas como elemento constituinte do poema. "A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal; ë pausa, silêncio, tempo". Quanto ã
palavra, "ao contrário do concretismo racionalista, que toma
a
palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, a
poesia neoconcreta devolve-a ã sua condição de
1
verbo" , :isto
é, de modo humano de representação do real".
Apesar destas formulações que se querem de antagonismo
aos princípios concretistas do "Plano-Piloto", ë difícil a
distinção entre os poemas concretos e os neoconcretos. Afonso
Romano de SANT'ANNA, ao comentar a produção poética do grupo
carioca, faz a seguinte observação nesse sentido:
£ difícil
a e x e m p 1 i f i c a ç ã o de p o e m a s
n e o c o n c r e t o s , porque poucos
textos
r e a l m e n t e s u r g i r a m e , na p r i t i c a ,
dif í c e i s de s e r e m d i f e r e n c i a d o s
dos
t e x t o s c o n c r e t i s t a s , e m b o r a as
teorias
dos g r u p o s se d i s s e s s e m o p o s t a s .
Acresce q u e v á r i o s d e s s e s p o e m a s e r a m o b j e t o s
80
(ou ' n ã o - o b j e t o s ' ) ,
caixas
no c h i o e , p o s t e r i o r m e n t e ,
de z i n c o e de a c r f l i c o com
letra,
e m a i s no â m b i t o das
t i c a s como a l g u n s t r a b a l h o s
D i l l o n . Há c a s o s de p o e m a s serem
manipulados.39
enterradas
artefatos
uma ou o u t r a
artes
plásde O s m a r
1i v r o s
para
A poesia deixa, portanto, em muitos de seus exemplos
mais inovadores, o espaço da página e do livro.
A título de exemplificação da produção deste movimento, veja-se um primeiro poema de Ferreira GULLAR, muitíssimo
próximo dos textos concretistas:
mar azul
mar azul
marco azul
mar azul
marco azul
barco azul
mar azul
marco azul
barco azul
arco azul
mar azul
marco azul
barco azul
arco azul
ar azul"10
A exploração da visualidade num poema como este é
evidente, bem como a sua economia anti-discursiva. Cinco
diferentes blocos de segmentos sintáticos nominais recorrentes (substantivo + adjetivo) dispÕem-se em decrescendo da
esquerda para a direita. O adjetivo dos segmentos é sempre
o mesmo: "azul". Os substantivos se alteram, porém sempre a
partir de um núcleo sonoro comum: "mar", "marco", "barco",
"arco", "ar". Da compacta concretude do elemento líquido ã
rarefação do elemento opostamente disposto, percebe-se toda
uma dinâmica que a própria materialidade do poema presentifica. Nesse ínterim, elementos intermediários, e intermediários
tanto em termos vocabulares
(a progressão visual.e sonora
"mar"/"marco"/"barco"/"arco"/"ar") quanto em termos de
81
referencialidade a realidades do mundo, fazem a ligação entre
os extremos. Toda uma paisagem verbal/extra-verbal
revela-se
aí.
Mas se este primeiro poema de GULLAR muito próximo
estã das realizações do Concretismo, afinal ele e outros autores neoconcretos partiram daquele movimento para organizar o
seu, um segundo poema do autor pode exemplificar alguns caminhos mais particulares que o Neoconcretismo iria tomar. Como
se trata de experiência,
que foje completamente â palavra
impressa em livro e se aproxima do "happening", o seu relato
pelo autor, feito muito posteriormente em ensaio crítico,
surje como a única maneira de resgatar.aqui o que foi essa
experiência:
Da p a r t i c i p a ç ã o g e s t u a 1 q u e o s p o e m a s
espaciais possibilitavam,
passei ã
p a r t i c i p a ç ã o c o r p o r a l com o " p o e m a e n t e r r a d o " , q u e p e r m i t i a ao " l e i t o r "
ent r a r no p o e m a . C o n s t r u í d o n o q u i n t a l
da c a s a de H é l i o O i t i c i c a ,
na G á v e a ,
o " p o e m a e n t e r r a d o " e r a uma s a l a de
d o i s m e t r o s p o r d o i s c a v a d a no s u b s o l o e a q u e s e t i n h a a c e s s o p o r uma
e s c a d a . Ao p e n e t r a r no p o e m a , o " l e i t o r " d e p a r a v a - s e com um c u b o
vermelho
s i t u a d o no c e n t r o da p e q u e n a
sala;
e r g u e n d o - o , d e s c o b r i a um c u b o v e r d e ,
que t i n h a m e t a d e das d i m e n s õ e s do
prim e i r o c u b o ; sob o cubo v e r d e ,
estava
um c u b o b r a n c o , de 12 c e n t í m e t r o s
de
l a d o q u e , ao c o n t r á r i o d o s d o i s
outros,
e r a c o m p a c t o ; d e b a i x o d e l e , e s c r i t a no
p i s o do p o e m a , a p a l a v r a
"rejuvenesça".
0 "poéma e n t e r r a d o "
inspirou
Hélio
O i t i c i c a a c r i a r "os l a b i r i n t o s " ,
como
o
" p r o j e t o c ã o de c a ç a " e t c . F o i uma
o b r a a n t e c i p a d o r a dos " p e n e t r á v e i s " ,
que s u r g i r a m na E u r o p a e nos E s t a d o s
Unidos v á r i o s anos
depois."41
Trata-se, como se pode ver, de uma experiência bastante
radical que em muito amplia o conceito do que é poesia. A
82
referência ã influência que a obra teria exercido sobre um
artista plástico importante como Hélio Oiticica deixa claro
o seu caráter de experiência-limite.
2.5.3.3
Poesia Praxis - A Poesia Prãxis surge no ano de 1962
com a publicação de Lavra-lavra, do poeta Mário CHAMIE, livro
que trazia como posfãcio o "Manifesto Didático" com os postulados inaugurais do movimento. Da mesma forma que o.Neoconcretismo, Prãxis surge em parte sob o signo do antagonismo ao
Concretismo, cujo "formalismo mecanicista" se afigurava, na
perspectiva dos integrantes desses movimentos, demasiadamente
esterelizante para a poesia brasileira e, no caso de prãxis,
distante das questões -político-sociais do pais.
No manifesto inaugural, o-poema-prãxis é definido logo
de inicio como aquele que "organiza e monta, esteticamente,
uma realidade situada, segundo três condições de ação: a) o
ato de compor;
b) a área de levantamento da composição; c) o
ato de consumir".1'2
Partindo desta definição, CHAMIE vai
procurar caracterizar cada uma destas três "condições", vistas
como relativas aos três níveis básicos da linguagem: o sintático, o semântico e o pragmático.
0 ato de compor - o nível sintático - pressupõe três
elementos: o "espaço em preto", que é a totalidade das palarvras do poema; a "mobilidade intercomunicante das palavras",
que ê a possibilidade de as palavras num poema-prãxis se intercambiaren! em diversas direções, multiplicando assim os seus
sentidos de acordo com as novas combinações surgidas; e o
"suporte interno dos significados", que é o "núcleo de palavras, a partir do qual o texto se expande e se perfaz na sua
83
unidade rítmica e na diversidade de interpretações que a sua
linguagem articulada
provoca". 4 3
A segunda condição, a "área de levantamento" - o nível
semântico -, diz respeito â delimitação do segmento de realidade com o qual o poeta vai traualnar. A partir de uma determinada área da realidade escolhida, o poeta vai extrair toda
uma série de elementos que a compõem - e nesse processo todo
um léxico -, que passará a integrar o seu poema. Há nesse
procedimento uma evidente busca de óbjetivação, jã que ë a
própria realidade objetiva, depois de delimitada, que vai
fornecer o material básico e bruto para a poesia. O poeta
sai assim dos limites de um impulso criador subjetivo para
lançar-se em direção ao real circundante, participando, nessa
interação via palavra, ativamente- da realidade e de sua problemática. Vislumbra-se aqui toda uma intenção
"política",
que os poemas realizados pela poesia Prãxis vão evidenciar,
como aqueles que tratam do homem no campo ou nos centros industriais, em livros como Lavra-lavra e Indústria.
0 "ato de consumir" - o nível pragmático -, a terceira
condição, corresponde a uma mudança de atitude na recepção
usual da obra por parte do leitor. Este, pela própria estrutura móvel do poema-prãxis, se torna um co-autor do texto,
participando ativamente da sua construção ao manipulá-lo de
forma lúdica e criativa. Novamente a questão do
"político"
e da participação entram aqui. 0 leitor não ë um consumidor
passivo, mas sim alguém que atua sobre a
própria realidade
literária, e, por extensão, dada a relação muito próxima e
tendente ao objetivo do texto com o universo extra-literãrio,
sobre este segundo também.
84
Estas postulações certamente se tornam mais claras a
partir da observação de um poema-prãxis. "Arado", segmento
poético de Lavra-lavra, pode servir aqui como um bom exemplo:
ARADO
Ora, o início é arar o que se ara. Aspero,
a lamina faz seu corte exato. Revolve e limpa
o campo e seu lavrado. Na fome do seu. aço
faz a fome do roçado. A pedra e o barro, a arvore
e a grama, o rio e a erva, a lamina faz da terra
e sua receita : outra femea pronta para a seiva.
Não talho, o leve risco talha
a terra
e a garra vira a terra e leva
o barro
para a via, via de grama e pedra.
Nem malho, a fina serra fende
o tronco
e a foice corta o tronco e mostra
a polpa
para o dia, dia de sol e faca.
Não fundo, o raso corte•trilha
o solo
e o sulco sulca o solo e rompe
o lodo
para o rio, fio de ãgua e musgo.
Nem brando, o duro aço rasga
a carne
e o rasgo marca a face e deixa
a terra
para o cio, a cio de fêmea e seiva. 4 4
Sob o titulo do poema, observa-se uma espécie de introdução ou comentário acerca ao que se vai desenvolver a
seguir. O que se nota prontamente, em contraste com os poemas
anteriormente exemplificados do Concretismo e do Neoconcretismo, é a permanência do segmento linear como unidade poética e a manutenção de uma estruturação sintática nos moldes
da poesia pré-concreta. Naqueles movimentos, a palavra era a
estrutura fundamental. Era a partir dela
(muitas vezes a
85
partir do seu fracionamento) e das suas sugestões semânticas,
fónicas ou gráficas que o poema se estruturava. Aqui não. O
poeta faz todo um levantamento léxico de um campo da realidade por ele delimitado
(no caso o meio rural e, mais especifi-
camente, o ato de arar a terra), para então construir o seu
poema a partir desse levantamento.
Se na Poesia Concreta se valorizava em grande medida o
espaço em branco da página e a disposição das palavras nesse
espaço, no caso da Poesia Práxis esse espaço perde o seu valor (como na poesia discursiva tradicional) em função da
valorização do "espaço em preto". Este espaço tem aqui uma
função estruturante. A própria disposição cuidadamente simétrica dos segmentos lineares, e dos conjuntos por eles formados aponta para isso.-É uma disposição do "espaço - em.preto",
a partir de um "suporte interno de significados", que vai
possibilitar a "mobilidade intercomunicante das palavras".
No
poema, por exemplo, pode-se executar uma leitura trocan-
do-se o segundo verso da primeira estrofe por todos os segundos versos das. estrofes seguintes. A estruturação do "espaço
em preto sugere" essa possibilidade. Assim, teríamos as seguintes combinações: "Não talho, o leve risco talha/a terra"
- dada por uma leitura de corte tradicional do poema; "Não
talho, o leve risco talha/o tronco"; "Não talho, o leve risco
talha/o solo"; "Não talho, o leve risco talha/a carne". Essas
recombiríações são todas possíveis - expandindo-se o significado produzido - com muitas outras partes do poema de alguma
forma simétricamente
relacionadas.
Essa capacidade de recombinar os elementos, não de
forma qualquer, mas seguindo uma orientação implícita na
8b
estrutura do poema, convida o leitor a participar de forma
ativa (e lúdica) nesse processo de remontagem e multiplicação
de leituras do texto.
2.5.3.4
d
Poema Processo - O movimento do Poema Processo pode
^
ser visto como uma radicalizaçao de certos princípios da vanguarda concretista. É dela que os seus poetas partem, trilhando caminhos por vezes ainda mais polêmicos e experimentais.
No manifesto "Poema Processo", de 196 7 (ano em que o movimento vai surgir simultaneamente em Natal e no Rio de Janeiro),
assinado por dois dos membros mais importantes do grupo
- Wlademir Dias-Pino e Alvaro Sã -, lê-se ao seu final, o
que*, mais claramente do que toda-a complexa teorização e terminologia presentes ao longo do texto, parece revelar os propósitos do movimento: ")-(0 poema/processo é uma posição radical dentro da poesia de vanguarda. É preciso espantar pela
radicalidade)". 45
É radicalizando que o movimento vai imprimir sua marca
mais oirginal ã poesia brasileira. Opondo-se, como o Concretismo, ao discursivo e â utilização do versó em poesia, porém
indo além ao dispensar por vezes o próprio signo lingüístico
do texto literário, o Poema Processo se aprofunda na tendência visualizante da vanguarda. No entanto, não será apenas
a dimensão visual a que será explorada pelos seus autores.
Há um desejo de provocar a participação de todos os sentidos
do leitor na apreensão da obra, para o que são criados poemas
gustativos, olfativos, tãteis, etc. Com a realização de
"happenings", a relação tradicional entre autor, obra e
público surge renovada. Ë dentro desta tendência de.partici-
87
pação coletiva que vai se enquadrar, por exemplo, um insólito poema-passeata. As histórias em.quadrinhos, o cinema, o
desenho animado também são aproveitados como linguagens à
disposição do criador. O Poema Processo vai incorporar vários
sistemas de signos, fundindo-os todos numa arte intersemiõtica originalíssima.
0 manifesto inaugural apresenta algumas considerações
importantes para o entendimento do espírito do movimento.
Como "não se busca o definitivo", já que o "provisório" e o
"relativo" são condições inerentes a tudo o que é moderno,
vai-se valorizar o "processo", termo capital que participa
do título do próprio movimento. Algumas "definições" do termo
dadas pelo manifesto são eloquentes: -"Processo: desencadeamento crítico de estruturas sempre novas."; "Processo: descoberta da realidade."; "Processo: manipulação + desencadeamento de invenções
(sistemática do contra-estilo)".
Acen^
tua-se nessas formulações o que ë dinâmico, o que é produtivo,
a realização, o trabalho, o descobrimento, tudo sempre em
função do novo e da invenção.
Outra consideração a destacar ë a que opõe "poema" â
"poesia" no interior do movimento: "não há poesia/processo.
0 que há é poema/processo, porque o que é produto ë o poema".
Não há, portanto, algo abstrato e generalizante como o que o
termo "poesia" parece implicar. 0 que há, acentuam os autores,
são "poemas", particulares e concretos, produtos de um "processo" de construção original e reveladores desse "processo" .
Uma outra formulação do manifesto reitera esse aspecto de
inovação e desenvolvimentos constantes: "Poema/processo é
aquele que, a cada nova experiência, inaugura processos informacionais" .
88
0 manifesto é todo ele perpassado por formulações
sintéticas e tecnicistas, o que aliás se verifica em praticamente todos os manifestos das vanguardas, e se encontra
acmi de forma exacerbada- Percebe-se, por trás do próprio
hermetismo de certas formulações, o desejo de provocação e
ruptura dessas tendências, o que no Poema Processo é acentuadamente programático. Relembrando: "ê preciso espantar pela
radiealidade".
Em 19 72, um novo manifesto viria a público, um manifesto de encerramento do movimento, intitulado: "Parada
- Opção tática". No entanto, se uma participação coletiva e
militante está sendo declarada como encerrada, ao final do
texto lê-se que "o-.processo é conquista irreversível no campo
da informação: poemas/processo continuarão a ser produzidos".
Um- poema de Anchieta FERNANDES pode exemplificar de
forma mais clara algumas das realizações do Poema Processo:
89
Repare-se na utilização de formas geométricas, portanto, de recursos que extrapolam o verbal, que vão sendo
acrescentadas aos poucos na passagem de quadro para quadro,
em crescendo e em ordem usual de leitura . - isto é, da esquerda para a direita e de cima para baixo - mas que ao final, no último quadro abaixo â esquerda, resgatam o signó
lingüístico na sugestão visual da palavra "olho". Os quadrados mais exteriores que emolduram as formas geométricas interiores remetem, de maneira pouco convencional, ã linguagem
dos quadrinhos. 0 aspecto intersemiótico desse poema ë bastante marcante. A linguagem verbal entra aí como um dos ingredientes possíveis, e não o exclusivo, como na poesia tradicional, ou o principal-, como nos outros movimentos de vanguarda do período.
2.5.3.5
Violão de Rua - "Violão de Rua" é o título de uma
publicação editada entre 1962 e 1963 pela Editora Civilização
Brasileira. Saíram ao -todo três volumes, trazendo - textos de
diferentes poetas
(alguns anteriormente ligados ãs vanguardas
estéticas, como é o caso paradigmático de Ferreira Gullar),
todos eles praticando uma poesia cujo traço comum era o engajamento político-social do poeta frente aos problemas da
realidade brasileira. 0 termo "Violão de Rua" acabou identificando um fazer poético muito distinto do das vanguardas
estéticas. Muitos dos intelectuais ligados a essa concepção
de poesia (e, por conseguinte, a essa concepção de arte,
cultura, sociedade, etc.), tornaram-se ácidos críticos da
vanguarda formalista.
90
Se as primeiras vanguardas vão surgir sob o signo da
modernização
(industrial, tecnológica, econômica, etc.) pre-
tendida pelo governo Juscelino Kubitschek na segunda metade
da década de 50, os poetas de Violão de Rua se encontram jã
num momento posterior do desenvolvimento político brasileiro.
No início da década de 60, durante os governos de Jânio
Quadros e João Goulart, boa parte da intelectualidade mais
expressiva do país está se orientando pelos princípios da
esquerda política
(em grande medida de caráter marxista) . A
mobilização política simultânea de diversos estratos da sociedade - operariado rural e urbano, estudandes, intelectuais,
etc. - é inédita até então no país. As tensões políticas,
sociais e econômicas que atordoam o Brasil deslocam a atuação
cultural de muitos para esse âmbito, de preocupação.
Essa inclinação "ã esquerda" vai marcar sensivelmente
o caráter da produção cultural. A grande distância entre artistas e público que uma produção radical de vanguarda implicava vai ser foco de muita polêmica. Tida como alienada e
elitista, incapaz de atingir uma vasta parte da população,
refletir seus valores e veicular todo um plano de conscientização política, de revelação das relações de opressão num
sistema social injusto, a vanguarda estética é rejeitada como
opção artística por muitos intelectuais.
Na poesia, os problemas impostos pela necessidade de
se fazer uma arte de engajamento político vão ser resolvidos,
do ponto de vista da composição, de diversas maneiras. Em.
grande escala, o que se observa é uma valorização da poesia
de dicção mais tradicional em relação ã experimentação de
vanguarda, que tinha no verso um elemento capital. Se boa
91
parte dessa produção tem como tom principal a pregação político-social muito próxima do discurso persuasivo, o longo
verso discursivo, as repetições dos metros fixos e das rimas,
o aproveitamento de formas populares
(como a poesia de cordel,
por exemplo), a utilização de imagens e metáforas rapidamente
'decodif icãveis, etc., serão os recursos preferenciais desses
poetas. Em oposição ã exploração dos aspectos visuais do
Concretismo, volta-se a atenção para a oralidade do discurso
poético. Temáticamente, percebe-se uma preferência por assuntos do cotidiano, por aspectos da história e da política do
país, marcados sempre por um caráter de reflexão didaticamente orientada.
Acreditou-se, num dado. momento, que a poesia e a arte
em geral pudessem mover as massas em direção a um objetivo
político definido ou contribuir para tanto juntamente a outros
impulsos. Mesmo a vanguarda estética mais radical acabou,
pelas pressões do momento, incorporando temporariamente essa
preocupação. Ë isso o que explica o "salto participante" do
Concretismo no início dos anos 60, ou a passagem de poetas
ligados ao Neoconcretismo, como Ferreira Gullar e Reinaldo
Jardim, ã orientação poética típica de Violão de Rua. Um movimento de vanguarda como o da Poesia Práxis, surgido em plenos anos 60, diferentemente dos seus antecessores, nasce já
sob a necessidade de conciliar a experimentação formal ã participação política. Apesar das claras diferenças em termos
de opção poética entre todos, há uma tendência comum que só
pode ser explicada quando se tem em vista o momento de grande
mobilização pelo qual passava o país.
92
A produção dentro dos moldes de Violão de Rua, porém,
tornou-se a mais representativa do engajamento da arte nas
questões- políticas e sociais na década de 60, sobretudo por
ser esta de fato a sua tônica e o elo comum entre os vãrios
e diferentes poetas que se agruparam em torno â publicação.
O didatismo da maioria dos textos comprometeu em parte as
virtualidades poéticas do movimento. Soam . ingênuos, pobres,
fãceis e um tanto inócuos muitos dos seus poemas, que se
revelaram claramente impotentes diante da realidade que pretendiam alterar.
0 seguinte poema de Félix de ATHAYDE é bom exemplo de
temática de engajamento da produção de então. Ao enquadramento maniqueísta de um problema histórico e político complexíssimo, opõe-se convincentemente a exploração dos recursos composicionais, como por exemplo a utilização de uma sutil espacialização dos versos como forma de marcar a posição segunda e subordinada da América Latina em relação ã do Norte, ou
então a utilização reiterada de estruturas sintáticas semelhantes, breves e nominais, muito pouco comum na poesia mais
típica do movimento:
ah:
mérica
America do Norte :
America rapina.
America da morte:
América Latina.
América do Norte :
América que come.
América de carga:
América que paga.
América do Norte :
América do muito.
América do povo :
América do polvo.
93
América do Norte :
América do tudo.,
América sugada:
América do nada.
América do Norte :
América padrão.
América do pobre :
América sem pão.
America do Norte :
América patrão.
América Latina :
Começa a dizer NÃO. 4 7
Um pequeno fragmento (as estrofes finais) do longo
poema "João Boa-Morte -cabra marcado pra morrer"/ de Ferreira
GULLAR, poema inspirado nas formas populares da poesia de
cordel, é exemplo bastante típico de uma poesia direcionada
ãs classes populares, que faz uso de formas que lhe são próprias, mas que veicula conteúdos revolucionários "o.riundos de
uma reflexão cuja origem está enraizada noutro estrato sõcio-cultural. O caráter didático e persuasivo são -aqui-óbvios.
Ao longo do poema, o poeta expõe a triste e miserável saga de
João Boa-Morte, sua família e seu meio humano, ãs voltas com
a miséria e a exploração econômica de uma estrutura social
doentemente injusta, que o leva ao desespero e deste ao suicídio como solução. O final do poema não deixa dúvidas a respeito do caráter participante desse fazer poético:
E antes que Boa-Morte,
Levado pela aflição,
em seis peitos diferentes
varasse seu coração,
Chico Vaqueiro chegou:
"Compadre, não faça isso,
não mate quem é inocente.
0 inimigo da gente
- lhe disse Chico Vaqueiro não são os nossos parentes,
o inimigo da gente
é o coronel fazendeiro.
94
"O inimigo da gente
é o latifundiário
que submete nos todos
a esse cruel calvário.
Pense um pouco, meu amigo,
não vá seus filhos matar.
É contra aquele inimigo
que nós devemos lutar.
Que culpa têm os seus filhos?
Culpa de tanto penar?
Vamos mudar o sertão
pra vida deles mudar."
Enquanto Chico falava,
no rosto magro de João
uma luz nova chegava.
E jã a aurora, do chão
de Sapê, se levantava.
E assim se acaba uma parte
da história de João.
A outra parte da história
vai tendo continuação
não neste palco de rua
mas no palco do sertão.
Os personagens são muitos
e muita a sua . aflição.
Jã vão todos compreendendo,
como compreendeu João,
que o camponês vencera
pela força da união.
Que e entrando para as Ligas
que ele derrota o patrão,
que o caminho da vitoria
estã na revolução.1*8
2.5.3. '6 Tropicalismo - O problema de se arrolar o Tropicalismo entre movimentos eminentemente literários já foi comentado anteriormente. Sua influência na cultura brasileira no
momento em que surge ê muito significativa, e o que se pode
chamar de "dimensão literária" do movimento, presente em
poemas, artigos, mas com maior impacto e repercussão nas
letras de música, não pode passar em branco quando se quer
entender o desenvolvimento da poesia brasileira. Affonso
95
Romano de SANT'ANNA, em sua "Minuta didática dos principais
movimentos
poéticos
brasileiros do século X X " 4 3 , engloba-o
entre esses movimentos. Heloísa Buarque de HOLLANDA, no seu
estudo sobre a literatura
(e em especial sobre a poesia) dos
anos 60 e 70 - Impressões de Viagem 5 0
- reserva importante
espaço ãs considerações sobre o Tropicalismo. Os poetas concretos
(os primeiros a ressaltar as qualidades literárias
de muitos dos textos de música do Tropicalismo) foram entusiastas do movimento, e a aproximação por eles operada entre
Concretismo e Tropicalismo foi um momento bastante fértil da
literatura recente. Um compositor como Caetano Veloso está
incorporado em definitivo ã história literária do país. A
influência de seus textos sobre as pessoas
(e, por conseguin-
te, sobre a própria literatura) através de um meio de massa
como a música popular é muitíssimo forte, e de uma eficácia
incomparavelmente maior que a dos textos poéticos-
restritos
ao livro como meio de comunicação.
O Tropicalismo, enquanto movimento, se desenvölveu,
por volta de 196 8, em diferentes campos da arte brasileira,
como o teatro
(com a figura central de José Celso Martinez
Correia e o Grupo Oficina), as artes plásticas
(com Hélio
Oiticica em destaque), a música popular (com Caetano Veloso,
Gilberto Gil, entre outros, aliados a compositores eruditos
como Rogério Duprat e Júlio Medaglia), a poesia
Neto e Waly Salomão), o cinema
(com Torquato
(com o exemplar "Macunaíma",
de Joaquim Pedro de Andrade) .
Procurando dar resposta a uma série de impasses
estéticos e ideológicos da arte brasileira no final dos
96
anos 80, o Tropicalismo vai resgatar o princípio da devoração cultural do Movimento Antropofãgico de Oswald de Andrade.
Assim, as contradições existentes entre arte erudita e arte
de massa, arte estrangeira e arte nacional, subdesenvolvimento e desenvolvimento, nacionalismo e cosmopolitismo, primitivo e moderno são solucionadas não através da simples
opção e conseqüente exclusão de um dos elementos da dicotomía, mas através de uma síntese devoradora que incorpora os
pólos antagônicos e a tensão existente. Na mitologia tropicalista, Carmem Miranda e Beatles, guitarra elétrica e escola
de samba, bananeiras e chaminés, Carnaval e miséria, Poesia
Concreta e Chacrinha, Brasília e Floresta Amazônica convivem
de forma tensa e crítica.
A carnavalização da vida-e -.da. arte, o humor e a
paródia , a- incorporação do '-'k-i-tsch"-, a crítica-aos comportamentos
(sobretudo o sexual) como crítica social, a valo-
rização da loucura dionisíaca ao invés do equilíbrio apolíneo, a difusão sem pudores da.arte através dos meios de
comunicação de massa como o rádio, o disco e a televisão
são características gerais desse movimento, pioneiro da
Contracultura brasileira.
Um texto exemplar da poesia tropicalista é a letra
da música "Tropicãlia", de Caetano Veloso. Alguns dos elementos típicos do movimento surgem aqui de forma bastante
evidente.
97
TROPICÃLIA
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No Planalto Central do país
Viva a bossa - sa - sa
Viva a palhoça - ça - ça - ça - ça
0 monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
0 luar do sertão
0 monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente feia e morta
Estende a mão
Viva a mata - ta - ta
Viva a mulata - ta - ta - ta - ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaraliná
Coqueiro, brisa e•fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando a eterna primavera
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira
Entre os girassóis
Viva a Maria-ia-ia
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco- sangue
Mas seu coração balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores ele- põe os olhos grandes
Sobre mim
Viva Ipanema - ma - ma
Viva Iracema - ma - ma - ma - ma
Domingo é o fino da bossa
Segunda-feira esta na fossa
Terça-feira vai ã roça
Porém
0 monumento é bem moderno
Não. disse nada do modelo do meu terno
Que tudo mais vã pro inferno
Meu bem
Viva a banda - da - da
Carmem Miranda - da - da - da - da. 51
98
Todo o texto se estrutura basicamente através da
justaposição de elementos antagônicos, contrastivos, divergentes, dissonantes, tirando dal os seus efeitos mais ricos.
Um exemplo vigoroso encontra-se na seqüência de versos: "Eu organizo o movimento"; "Eu oriento o carnaval"; e
"Eu inauguro o monumento/No planalto central do pais". Temos
al a referência a um "eu", sujeito de uma série de ações
díspares e incompatíveis entre si a princípio. Se trouxermos
mais para perto o contexto do país no final da década de 60,
cada um desses elementos se reveste de nuanças muito significativas. 0 "movimento" referido pode ser o "movimento estudantil", o "movimento operário", ..o. "movimento contra a
repressão política", ou o próprio "movimento tropicalista",
algo portanto que se traduz em termos de uma organização
coletiva de caráter político, ou culturalmente ativo no plano
estético-político. Esse caráter coletivo está presente também em "carnaval", porém com direcionamento bastante diverso. 0 sentido de tensão política presente na organização de
um "movimento" em plena ditadura militar se choca com a alegria e a descontração presentes na evocação da maior festa
popular. Ambos, por sua vez, defrontam-se com a última ação
referida, a "inauguração de um monumento em Brasília". A
clandestinidade da organização de um "movimento" e ã marginalidade e ao descompromisso político de uma festa como
o "carnaval" junta-se agora a solenidade oficial do poder
político.constituído que, na capital do país, "inaugura
seus monumentos". A atribuição de ações tão diversas a um
mesmo sujeito surge aí para revelar as contradições presentes na própria realidade nacional. 0 "eu" poético transfor-
99
ma-se num sujeito abstrato que paira sobre a realidade brasileira e unifica ações divergentes. O Brasil da alegria
eufórica e dionisíaca do carnaval é também o Brasil da poli
tica oficial e da repressão, que é também o Brasil da contestação política e cultural.
Essas contraposições pontuam todo o texto. A referência a um verso de cantiga popular ("na mão direita tem
uma roseira") convive no texto com outra de uma canção de
Roberto Carlos, típica da Jovem Guarda ("que tudo mais vã
pro inferno, meu bem") . A cantiga de. origem folclórica,
popular, veiculada originalmente de forma tradicional, contrasta com a canção de um movimento musical influenciado
pelo "rock", de grande difusão- nos meios de comunicação de
massa nos anos 60. Isso se dá também em muitas outras justa
posições: "bossa" (Bossa Nova, tendência da música popular
de caráter urbano e moderno) e "palhoça" (que remete ao
rural e ao primitivo); "Iracema" (mítica personagem indígena do Romantismo brasileiro) e "Ipanema"
(termo também de
origem indígena, porém nome de uma praia de um dos maiores
centros urbanos do país); e assim por diante.
Parece haver em todo o texto da canção o desejo de
inventariar o Brasil, de descobri-lo, de entendê-lo, de
revelá-lo. O Brasil que surge daí não é porém o Brasil unidimensional do discurso nacionalista mais xenófobo, nem o
Brasil dicotomizado maniqueisticamente da esquerda ortodoxa
e sim um Brasil multifacetado, de realidade cultural múlti)
pia e cheia de contrastes.
100
2.6
PÕS-VANGUARDAS
As vanguardas poéticas surgidas entre meados dos anos
50 e final dos anos 60 tinham todas em comum a formulação
de
»
um programa poético mais ou menos definido, dependendo do
movimento em questão, seguido por seus integrantes coletivamente. No Concretismo, por exemplo, é conhecida a preocupação dos poetas que o integram de a todo momento estarem refletindo acerca da sua própria produção e do significado
dessa produção dentro do cenário da literatura brasileira e
mundial. O número de artigos críticos, depoimentos, entrevistas, polêmicas, manifestos, etc., postos em circulação, é
incrivelmente extenso. Todos os outros movimentos, com maior
ou menor freqüência, também se caracterizam por esse-tipo de
militância intelectual em defesa de seus ideais poéticos.
A partir do início dos anos 70, e chegando-se até os
dias de hoje (início dos 90), o que se percebe é uma atenuação deste tipo de atuação poética. A idéia de uma produção
de "vanguarda" torna-se anacrônica e nenhuma espécie de
"projeto poético" significativo, a ser seguido com rigorosa
ortodoxia por todo um grupo de poetas, surge no panorama
literário brasileiro. A produção que mais se aproximaria
desse tipo de atuação pela formação de grupos e publicação
de revistas - a Poesia Marginal - não se caracteriza por um
projeto poético inequivocamente definido, mas sim por uma
oposição
(maior ou menor, desejada ou não) às vanguardas es-
téticas - com a conseqüente reedição de muitos dos procedimentos que por elas haviam sido negados - e por um tipo específico de veiculação da sua poesia, marginal em relação ao
circuito editorial brasileiro. Paralelamente ã produção dos
101
chamados marginais, e em sintonia sintomática com essas
opções, a poesia brasileira vai se caracterizar pela preferência por caminhos individuais, que evidenciam, porém, muitos
traços poéticos comuns, como a recusa vital das utopias estéticas e ideológicas das décadas anteriores; a recuperação do
verso, do discursivo, da sonoridade, da oralidade como elementos essenciais da poesia; a preferência por uma dicção
mais lírica e subjetiva.
Essa rejeição de utopias coletivas encontra um paralelo interessante na própria desmobilização política da sociedade brasileira a partir de 1968, com o recrudescimento da repressão política, que iria até quase ao final da década de
70. Mesmo posteriormente,- quando- a -Ditadura Militar arrefece
o policiamento ideológico e o país vai lentamente se redemocratizando, o entusiasmo relativamente a uma redenção cultural, social e política do Brasil, que povoava o imaginário
de vasto setor da intelectualidade brasileira nos anos 50 e
60, não recupera o vigor. Ao longo da década-de 80,-quando o
poder político volta ãs mãos das lideranças civis, todos as
grandes movimentações político-sociais
(movimento "Dire-
tas- Já" , Assembléia Constituinte, planos econômicos, eleição
direta para a Presidência da República, etc.), que insinuariam alguma espécie de mudança estrutural de maior conseqüência no país, são sempre seguidas de um abrupto esfriamento.
Ceticismo, relativização radical de valores, rejeição de
engajamentos, desmobilização, individualismo - surgidos devido ãs violentas frustrações que seguiram todos os movimentos
de caráter coletivo no Brasil nos últimos tempos - são traços
culturais que vão marcar também toda a arte mais recente do
102
país. Na poesia, por exemplo, a ausencia de qualquer movimento coletivo na década passada pode ser interpretada como uma
evidência do descrédito em relação ãs utopias, sejam elas
políticas ou estéticas.
2.6.1
Poesia Marginal
(Anos 70)
A Poesia Marginal surge no Brasil em plena sintonia
com um movimento cultural de características internacionais,
e com o qual o Tropicalismo havia evidenciado já toda uma
série de afinidades: a Contracultura.
Enquanto movimento de oposição aos valores do capitalismo hegemônico, a Contracultura vai se caracterizar por um
deslocamento de perspectiva crítica em relação ã oposição
tradicionalmente realizada pela-esquerda ortodoxa. A crítica
nolítica deixa o espaço restrito da militância política para
se enraizar no âmbito mais geral de uma crítica cultural dos
comportamentos. A oposição não se dá mais apenas
(ou predomi-
nantemente) do ponto de vista conceituai, mas também do ponto
de vista de uma ação integral a nível de opções de vida. Assim,
valores aceitos sem discussão relativos a trabalho, propriedade, casamento, religião, arte, política, etc. são questionados a partir da proposição de valores alternativos, incorporados numa vivência concreta também alternativa. A vida em
comunidades que rejeitam a família como base institucional;
a opção por novas formas de alimentação e medicina
(macrobió-
tica e homeopatia, por exemplo); o uso de drogas, o misticismo e o irracionalismo como
oposição ãs religiões oficiais e ao
pensamento racionalista da sociedade industrial burguesa; a
música "rock", a "pop art" e outras manifestações artísticas
103
de caráter popular e de massa
preferencialmente
à arte dita
"culta", etc. são as manifestações culturais de todo um grupo
que acredita estar revolucionando, ã sua maneira, a sociedade.
Que tudo isto seria absorvido muito bem e lucrativamente pelo
próprio sistema que pareciam recusar, só se evidenciou a seus
seguidores posteriormente.
No Brasil, a Contracultura vai desenvolver nuanças
bastante próprias, sobretudo pela situação política do país
e pelas suas características culturais e econômicas, bastante
distintas da sociedade de bem-estar e franco consumo dos países onde o movimento contracultural surge de início
(Estados
Unidos e Europa Ocidental). Em todo o caso, o seu princípio
porteador
- encontrar alternativas de vida em todos os níveis
possíveis em-relação-ao:-padrão de vida dominante da sociedade - revela-se aqui jã. com o Tropicalismo, explodindo a seguir no significativamente chamado "desbunde", ao longo dos
anos 70.
Especificamente no âmbito da. criação literária, a
Poesia Marginal vai incorporar esse tipo de opção pelo alternativo/ e essa ampliação de toda a_ação a um nível mais geral
em termos comportamentais. Assim, poesia e experiência de
vida vão se aproximar estreitamente. Resgata-se uma relação
muitas vezes preterida pelas vanguardas: a fusão entre arte
e expressão das vivências pessoais.
Em termos da sua veiculação, a Poesia Marginal abandona (ou se poderia também dizer: é abandonada pelo) o circuito editorial tradicional. Com a dificuldade crescente de
editar seus livros, os poetas vão optar por um tipo de divulgação dos seus trabalhos inédito no país. Eles mesmos vão financiar
104
edições artesanais de seus livros e cuidar da distribuição,
feita corpo a corpo em shows
de música e bares, locais onde
usualmente circula o público visado por essa produção.
Esse caráter marginal da produção e da distribuição
vai alimentar, conseqüentemente, o próprio conteúdo dessa
poesia. Distante dos meios consagrados de legitimação cultural - as editoras, as livrarias, a Universidade, a crítica,
os meios de comunicação de massa -, essa produção mantém-se
distante também de um diálogo mais estreito com os valores
desses meios, ao contrário das vanguardas, sempre preocupadas com o amplo reconhecimento da sua produção e com a garantia da sua permanência na cultura-brasileira. A Poesia Marginal não tem esse caráter, ela não se propõe a dialogar de
forma consciente com o "sistema literário" nem agir determinantemente sobre ele. Ela não pretende a permanência, não
propõe uma poética definida e orgânica, nem procura apreender
a realidade brasileira de forma global, como ainda o Tropicalismo se propunha. A vivência do cotidiano com seus problemas e a linguagem mais imediata através da qual esses problemas são vividos é o que interessa a esses poetas. Se a sua
poesia acaba por refletir um todo mais amplo, isso não se dá
pelo desejo de assim proceder, mas pelo simples fato de todo
o fenômeno cultural trazer microscópicamente a imagem
(mais
ou menos fielmente refletida) de toda a macro-estrutura.
Em estudo básico para a compreensão da Poesia Marginal,
Retrato de Epoca, ao mesmo tempo ensaio crítico e inventário
antológica da produção, Carlos Alberto Messeder PEREIRA apresenta algumas formulações importantes sobre a poesia dos
105
chamados marginais. Referindo-se â linguagem dessa poesia,
Messeder ressalta o seguinte:
Em t e r m o s d o t i p o d e l i n g u a g e m
atualizada n e s t e s t r a b a l h o s , a v a r i e d a d e
era
extremamente g r a n d e . Reuniam desde peq u e n o s t e x t o s em p r o s a , com f o r t e
tom
i r ô n i c o , a t é o u t r o s c o n t e n d o uma p o e s i a
calcada sobre o verso, bastante
discursiva
e referencial
- a l i á s a d é c a d a de
70 v a i a s s i s t i r a um r e v i g o r a m e n t o de
uma p o e s i a m a i s d i s c u r s i v a e r e f e r e n cial
(...)
- em f r a n c a o p o s i ç ã o ã p r o dução p o é t i c a das v a n g u a r d a s , e onde
tematiza-se questões estreitamente
rel a c i o n a d a s ao c o t i d i a n o dos
produtores
e a c i m a de t u d o , num t o m b a s t a n t e
coloq u i a l , n a da acadêmico
(...).52
Ao lado desse veio dominante, Messeder ressalta no
entanto, algumas manifestações.que se aproximam de alguns
principios das vanguardas,-porém-mais precárias na exploração
dos recursos gráficos-e-menos -rigorosas e programáticas em
suas realizações. A promoção de "happenings", outro exemplo,
muito difundida pelo Poema Processo, vai se repetir na forma
de "shows" e lançamentos artísticos- entre os marginais. Em
todo o caso, a atitude dominante é de oposição ãs vanguardas,
e as eventuais incorporações deslocadas e diluidoras dos seus
princípios acentuam a diferença, alimentam esse caráter alternativo e marginal.
As características . dominantes apontadas podem ser verificadas em alguns poemas representativos dessa poesia. Num
poema breve e coloquial de CACASO, "Na corda bamba", fica
clara aquela fusão entre arte
(poesia) e vida anteriormente
acentuada, aproveitada aqui enquanto tema. Registre-se também
o seu caráter de rápido e despretensioso apontamento poético,
que tem muito da espontaneidade de certa poesia do primeiro
Modernismo, sobretudo Oswald de
Andrade.
106
NA CORDA BAMBA
p/Chico Alvim
Poes ia
eu não te escrevo
eu te
vivo
e viva nós ! 5 3
Um exemplo de registro do cotidiano numa dicção coloquial e direta, sem metáforas, próxima ao narrativo, e, portanto, ao prosaico, pode ser observado no seguinte poema de
Luís Olavo FONTES.
CENA FAMILIAR
cumprimentei a mãe o pai
com uma palavra sobre Nixon
dei um beijo na avó
que me deu um livro horrível
disse que ia 1er, agradecido
quando a mãe me pegou
a falar de I Ching
com os olhos vidrados
Ângela jã vem
está saindo do banho
(adoro Ângela de toalha)
na poltrona o pai postulando
a ordem unida idiotiza os homens
a mãe jogava moedinhas na mesa
de olhos fechados
eu pensando no último conto
respondi a todas as perguntas
enfurnado em meus personagens
levei um beijo ca:rinhosõ
Ângela de cabelo molhado
saímos para tomar um porre
depois trepar num hotel da Barra
não se preocupe, minha senhora
ãs duas estamos em casa 54
10 7
Ainda um último poema, agora do livro Passatempo, de
Francisco ALVIM, no mesmo espírito do anterior, ainda que de
caráter bem mais fragmentário:
ENTREVISTA
Mandei a carta
sem muita esperança
Não sei direito o que pedir
Ela me disse que deixasse filosofia
(minha vida estava toda errada)
Me ofereci para fazer a limpeza do Foyer
e me pegaram para organizar uma biblioteca
Ê disso que venho falar
Não da carta
que muito me surpreende tenham lido
0 que eu queria ê mais um conselho
Alguém que me ajude a sair de onde estou
A viagem foi uma boa coisa
me fez crescer tornou-me menos indeciso
Se não for possível uma bolsa em filosofia
em historia serve
Se não for possível bolsa
talvez uma outra ajuda
Preciso voltar
meus pais jã estão bastante velhos 5 5
Os poemas destacados contrastam com os poemas característicos das vanguardas estéticas. Deixam de lado a experimentação formal, o desejo programático de ruptura, o inevitável
fechamento para públicos mais amplos e menos aparelhados,
para resgatar a comunicação fácil, direta, despretensiosa,
numa linguagem que recupera a vitalidade coloquial de certa
poesia modernista. Contrastam também com a poesia de engajamento político pela ausência de uma pregação doutrinária orgânica visando um público socialmente distinto dos próprios produtores. A Poesia Marginal ë feita por jovens para um público
também jovem, num momento em que as palavras de ordem da
militância de esquerda e as pretensões culturais de uma arte
sofisticada e de elite cedem espaço â descontração, ao
108
descompromisso, ao hedonismo - enfim ao "desbunde" - de uma
geração que. cresce no sufoco da Ditadura. Aí se vislumbram os
seus limites, jã que a facilidade leva â vulgarização e ã banalização nas piores realizações, mas também sua virtude,
dado o seu extremado vitalismo, necessário para superar os impasses do experimentalismo e do engajamento político, excessivamente policiais, e portanto esterilizantes nos seus instantes de excessiva ortodoxia.
2.6.2
Poesia Anos 80
Se durante os anos 70 surgiu um tipo de poesia que, ape-
sar da ausência de um programa poético definido, pôde ser denominado genericamente de "Poesia Marginal" - o que pressupõe
a. presença de traços característicos comuns presentes na obra
dos poetas -, para a poesia dos anos 80 não surgiu ainda qualquer termo que a enquadrasse dentro dos limites unificadores
de um determinado movimento. Provavelmente isso se dê, além
da
inexistência de um necessário distanciamento histórico
com relação a essa produção mais recente, pela ausência, já ~
observada como característica da produção da década de 70,
de um programa poético coletivo, de uma utopia poética, e
pela preferência por caminhos altamente individualizados.
Durante os anos 70 não foi a Poesia Marginal, obviamente, a única novidade no âmbito da poesia. Muitos nomes novos,
bem como outros surgidos anteriormente e ligados a um daqueles
momentos da poesia brasileira já estudados aqui, vão produzir
parte substancial da sua obra nos anos posteriores ãs últimas
vanguardas. Entre eles, pode-se citar alguns bastante novos,
como por exemplo, Orides Fontela, Adêlia Prado, Duda Machado,
109
Alcides Villaça, entre outros, ou ainda alguns que estrearam
num momento anterior, como Hilda Hilst, Carlos Nejar, José
Paulo Paes, Affonso Romano de Sant'Anna, etc., todos poetas
ainda ativos durante a década de 80.
A ausência de agrupamentos, de linhas poéticas claramente delimitáveis, complica a elaboração de estudos panorâmicos, nos quais as produções individuais têm de ceder espaço
â consideração de poéticas que possam ser estendidas a todo um
período, a toda uma fase. de produção. A ausência de estudos
sistemáticos da poesia mais recente, que privilegia não autores isolados, mas linhas de força da nova poesia, faz com que
apenas hipóteses possam ser levantadas acerca das características da produção do período,, carentes ainda de evidência inequívoca. É com esses problemas em vista que se vai tentar aqui
considerar algumas das características da produção mais representativa dos anos 80.
Na revista "Leia" n9 147, de janeiro de 1991 5 5 , foi publicada uma relação dos melhores livros de poesia brasileira
postos em circulação ao longo dos anos 80. Organizada por dois
jovens e representativos críticos de literatura do país, Flora
Sussekind e Augusto Massi - este também poeta e organizador de
uma das mais bem sucedidas coleções de poesia dos últimos tempos, a Coleção Claro Enigma, e de um importante encontro de
poetas realizado no MASP de São Paulo entre os dias 15 e 19 de
maio de 1990 -, a relação traz desde poetas presentes no cenário literário do país há muito tempo, como Drummond e João
Cabral de Melo Neto, até nomes surgidos ao longo da última
década. Esta relação, no que diz respeito aos nomes mais recentes, pode servir como um bom ponto de partida para a consideração da produção poética brasileira dos últimos anos.
110
Entre alguns dos poetas que começaram a adquirir maior
significação a nível nacional na passagem dos anos 70 para os
80, podem ser citados os seguintes nomes, contidos na relação:
Rubens Rodrigues Torres Filho, Regis Bonvicino, Paulo Henriques
Brito, João Moura Júnior, Age de Carvalho e Paulo Leminski,
este último com uma produção significativa publicada jã anteriormente, bastante elogiada pela crítica ligada ao movimento
concretista.
Em geral, o que se percebe na produção desses poetas ê
já um crescente afastamento, em maior ou menor grau, daquele
caráter mais despreocupado e despretensioso da Poesia Marginal.
Percebe-se um distanciamento crescente do ar "pop", "underground",
"alternativo"., que, naquela geração, pelos vínculos com todo o
espírito da Gontracultura, -era um dos seus- dados-paradoxalmente mais férteis e mais-esterilizantês: férteis, pela novidade,
pelo frescor, pela contestação a uma poesia de vanguarda
que
punha em perigo a capacidade de comunicação espontânea da palavra poética; esterilizantes.,- pelo descuido e-descaso dessa
poesia para com o trabalho de criação, pela facilidade e banalização do fazer literário, pelo amaneiramento que tomou conta
de boa parte da produção. O registro relaxado das vivências
cotidianas pessoais vai ceder espaço a uma poesia, em média,
bem mais preocupada com a elaboração i.formal rigorosa do poema.
Alguns textos podem servir de exemplo para o que se está
dizendo aqui. Entre os novos poetas citados pela relação da
revista "Leia",, encontra-se Paulo Henriques BRITO, com seu
Mínima lírica, livro que engloba sua produção entre os anos de
1982 e 1989. A seguir, o primeiro dos quatro sonetos que
compõem "Mínima poética":
1
111
MÍNIMA POETICA
I
Poesia como forma de dizer
o que de outras formas e omitido não de calar o que se vive e vê
e sente por vergonha do sentido.
Poesia como discurso completo,,
ao mesmo tempo trama de fonemas,
artesanato de éter, e projeto
sobre a coisa que transborda o poema
(se bem que dele próprio projetada).
Palavra como lâmina só gume
que pelo que recorta é recortada,
cinzel de mármore, obra e tapume:
a fala - esquiva, oblíqua,, angulosa do que resiste ã retidão da prosa. 57
Chama primeiramente a atenção a forma poética escolhida,
um soneto, composto todo ele em versos decassílabos e com rimas, algumas- delas toantes, mas sobretudo consoantes—A-utilização de uma forma da tradição poética sem a busca.de qualquer
efeito - parodístico revela já uma postura bastante distinta da
dos marginais com relação ao trabalho poético e ã tradição da
poesia. Ë evidente aqui o artefato, o rigor e o cuidado na composição. Hã nele, entretanto,- uma crítica semelhante.:à implícita na Poesia Marginal com relação a um fazer poético que se
afasta da experiência do sujeito, corrente no período das vanguardas estéticas: "poesia como forma (....)/não de calar o que
se vive e vê/e sente por vergonha do sentido". A restrição da
palavra poética a uma única de suas dimensões - a que se vinj
cuia
a
chamada "função poética" da linguagem - deixando-se de
lado outras de capital importância, outra quimera vanguardista,
encontra crítica muitíssimo bem formulada numa passagem como
a que segue : . "Poesia como discurso completo/ao mesmo tempo
trama de fonemas/ artesanato de éter, e projeto/ sobre a coisa
que transborda o poema" (se bem que dele proprio projetada) ."
112
Na poética em questão, faz-se referência a uma valorização da
palavra integral, ao mesmo tempo material
e transcendente
("trama de fonemas")
("artesanato de éter"), voltada não exclusiva-
mente sobre si mesma, mas sobre coisas que, dela mesma se projetando, a ultrapassam.
Uma poesia bastante distinta desta, tendente a um maior
truncamento dos sentidos, porém da mesma forma muito distante
da espontaneidade coloquial dos marginais, é a de Age de CARVALHO, cujo Ror, contendo a produção que vai de 1980 a 1990,
também foi destacado pela "relação"
dos mais representativos
da década de 80. Um poema,. "A João Cabral de Melo Neto"-,pela
evidenciação das diferenças entre a poética-do. novo poeta e
aquela que é uma das mais importantes e paradigmáticas da
poesia brasileira. da, segunda metade do século (boa parte da
vanguarda estética se pauta.por ela), pode servir aqui como
boa ilustração:
A JOÃO CABRAL DE MELO NETO
s5 dizer
o que sei
e duvido saber,
o sal
pela mão
do rio-sem
resposta um luxuoso dizer, de vagar sem onda
e vaga, fluvial, não aliterado;
»
um dizer repetido na diferença,
barrento, semi-dito, em Não fechado;
ou o não-dito, rios sem discurso,
nome.por dizer ou dizer empedrado;
dizer sim o raro e claro do poema,
dizer difícil e atravessado, com margem
de erro 5 8
113
Ä clareza, às regularidades e simetrias, ao equilíbrio
formal de João Cabral contrapõe-se-
aqui "um luxuoso dizer",
"barrento", "difícil e atravessado" e "com. margem de erro".
Contrariando a precisão e- limpidez da poesia de Cabral, Age de
Carvalho insiste barrocamente nos parodoxos: sõ dizer/ o que
sei/ e duvido saber"; "dizer sim o raro e claro do poema, /
dizer difícil e atravessado,
(...)". Sua dicção é complicada
e preciosa, desdobrando-se luxuriosamente pelos versos de metros e ritmos vãrios deste poema. Nada da espontaneidade coloquial dos poetas marginais, nem da geometria verbal das vanguardas.
Ainda um poema de cunho metalingüístico, agora de Paulo
LEMINSKI, do livro Distraídos vence remos', pode- servir como um
último exemplo da poesia da década de 80. Leminski, tendo-namorado com a Poesia Concreta•e- com a reconstituição da tradição
da poesia por ela operada, e, ao mesmo tempo, estando muito
próximo da. Contracultura, por afinidade e geração, conseguiu em
sua obra uma"interessante fusão e superação dessas-vertentes.
0 título do. seu livro destacado pela "relação" - Caprichos e
relaxos, de 1983 - é índice da fusão de duas perspectivas poétiticas: a do rigor formal ("caprichos") e a da despreocupação lúdica e espontânea
("relaxos").
DESENCONTRÂRIOS
Mandei a palavra rimar,,
ela não me obedeceu.
Falou em mar, em céu, em.rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
114
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto. 5 9
Os dois primeiros versos curiosamente põem em questão
o total domínio intelectual do criador sobre o seu material,
prescrito pelo construtivismo da vanguarda seguindo as pegadas
do mestre João Cabral: "Mandei a palavra rimar, / ela não me obedeceu." A palavra rebela-se contra o poeta, afirma a sua independência, escapa, ã sua manipulação, indo desregradamente
("Pa-
recia fora de si") falar dos. mais díspares assuntos e maneiras: "Falou em mar, em céu, em rosa, / e m
grego, em silêncio,
em prosa". No entanto, contrariando o que no nível semântico
vai sendo dito, a palavra rima sim no poema:
"rimar"/"amar"
(rima interna); "rosa"/"prosa"/"silenciosa", ou seja, encontra-se sob o controle do poeta-artífice. Leminski joga com esse
descompasso, contradiz na forma o que explicita no plano dos
conteúdos, justamente para demonstrar o caráter problemático
e complexo do fazer poético como algo que está e não está totalmente sob o controle do criador. Os belos versos finais da
segunda estrofe reafirmam esse caráter de desencontro
(lem-
bre -se o próprio título da composição "Desencontrários", num
neologismo bem típico do autor - "desencontro" + "contrários").
"Dar ordens a um exército" implica em organização, ordem,
disciplina, controle - e m outras palavras, naquilo tudo que
se faz indispensável para um artesão da palavra. Porém todo
esse aparato vai em direção a um objetivo quimérico, essencialmente contraditório e problemático: "conquistar um império
extinto".
115
Os exemplos dados são poucos para se poder fazer generalizações mais amplas acerca da produção de todo um período
ainda mal estudado pela crítica nas suas vertentes dominantes.
De um modo geral, os livros dos poetas mais recentes que a
"relação" da revista "Leia" apresenta, trazem, poemas bastante
distintos da Poesia Marginal dos anos 70. Hã uma preferência
por uma dicção menos leve, espontânea, cotidiana, quase prosaica, corrente na poesia dos marginais, e o resgate de um trabalho literário bem mais cuidado e culto do ponto de vista poético, plenamente. consciente de toda uma tradição da poesia que
lhé ê anterior. Porém, ela também não se aproxima em demasia
da poesia das ; vanguardas, estéticas, pois-é muito forte nela a
idéia de uma exaustão da vanguarda, da procura
do novo pelo
novo,, do original e inédito a- todo-o-preço. Preferindo o verso
discursivo ao desmembramento, da palavra, p-referindo o oral ao
visual, o lírico subjetivo ã coisificação do verbo literário
e o objetivismo, formalista,, a realização individual., ao programa
coletivo,- essa poesia vai apontar outros caminhos: para os impasses poéticos do experimentalismo. Num certo sentido pode-se
dizer que a poesia dos anos 80 incorpora e supera, â sua maneira, os momentos anteriores. É refinada e culta como a vanguarda estética, porém predominantemente verbal, subjetiva e discursiva como a Poesia Marginal.
116
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LAFETÂ, J o i o L u i z .
P a u l o : Duas C i d a d e s ,
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MARTINS,.
20
BOS I .
21
RAM0S.
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A B l B L I A de J e r u s a l e m .
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3 0
31
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33
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A p r e s e n t e t r a n s c r i ç ã o de. " T r o p i c ã 1 i a " t e m c o m o b a s e o
t e x t o c o n t i d o n o CD ( C o m p a c t d i s c ) " C a e t a n o Ve 1 os o " .
R i o de
Janeiro : Polygram,
1990, o r i g i n a l m e n t e
l a n ç a d o em d i s c o LP
(long-playing)
n o anio de 1 9 6 8 . Como a v e r s ã o e s c r i t a
apresenta
a 1 g u m a s ' d i f e r e n ç a s em r e l a ç ã o a m ú s i c a c a n t a d a , p r o c u r o u - s e
co
t e j a r o t e x t o d o CD com o u t r a s t r a n s c r i ç õ e s
da c a n ç ã o , c o m o as
c o n t i d a s em: SANT'ANNA.
op . c i t . p . 1 6 4 - 6 4 e VELOSO,
Caetano.
C a e t a n o Ve 1 os o - • 1 i t e r a t u r a i come n t a d a .
org. Paulo Franchetti e
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j)istraídos
São
venceremos.
Paulo
Sio
:
Duas
Paulo
:
Ci-
3
A POESIA
3.1
3.1.1
O ALUNO
DE J O S É
PAULO
PAES
(1947)
Introdução
O primeiro livro de poesia de José Paulo Paes, 0 aluno,
vem... a. público no ano de 194 7, contemporáneamente, portanto, ä
chamada..Geração de 45.
Como se frisou em outra parte deste estudo, trata-se de
um momento um tanto quanto polêmico, no que diz respeito ã sua
avaliação pela crítica, do desenvolvimento da poesia brasileira. Alguns autores o vêem enquanto uma reação necessária a um
certo esgotamento da poesia mais tipicamente modernista; outros,
enquanto um retrocesso poético, finalmente superado pelas vanguardas das décadas seguintes, que resgatam, dentro de novo
contexto, a agitação do Modernismo inicial.
Muito mais do que a presença de um programa poético definido, o que parece unificar a produção dos autores mais diretamente ligados ã "Geração", como Péricles Eugênio da Silva
Ramos, Lêdo Ivo, Domingos Carvalho da Silva, Afonso Félix de
Sousa, entre outros, é justamente a sua atitude fundamental
de oposição ao Modernismo, sobretudo ao Modernismo da década
de 20, iconoclasta e experimental em essência. Os poetas da
Geração de 4 5 vão optar por uma postura mais circunspecta e
121
mais reverente diante do labor literário e da tradição, resgatando formas poéticas e modos de compor que o Modernismo,
no seu antipassadismo radical, havia deixado de lado. Daí o
caráter tradicionalizante, poeticamente reacionário, portanto,
e por vezes formalista da produção de muitos autores.
A Geração de 45, em certa medida, pode ser vista como
um instante de cristalização de um ambiente poético mais geral
que tomava conta do Brasil no período, ao qual modernistas importantes do porte de um Drummond, de um Murilo Mendes, de um
Jorge de Lima não ficaram infensos. Da mesma maneira, poetas
que posteriormente iriam se destacar como importantes nomes
vinculados ã-produção experimental dos anos 50/60, como Augusto
e Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, ou outros que estiveram muito perto.das vanguardas, porém marcando-posição-mais
independente, como Ferreira Gullar e. Mário Faustino, fazem
então uma poesia de perspectiva não muito distante da dos autores ligados ã "Geração".
É dentro desse ambiente, portanto, e revelando afinidades semelhantes com a poesia mais típica de então, que Paes
vai estrear.
3.1.2
Análise
Com o Modernismo, como foi dito, as formas tradicionais
da poesia haviam sido deixadas de lado. No seu impulso de ruptura com a tradição e de afirmação de novos valores literários,
os poetas do movimento.fizeram do verso polimétrico e do poema
sem extensão ou.forma pré-fixados o seu meio ideal de expressão.
Com raras exceções, e entre elas um Guilherme de Almeida ou
uma Cecília Meireles, nenhum poeta brasileiro de real importância
122
que publicou nas décadas de 20 ou 30, escreveu,a não ser de
forma bastante marginal em sua obra, poesia significativa
dentro dos moldes mais tradicionais do fazer literário.
Ao longo da década de 40, porém, a situação se altera
sensivelmente, e novamente as formas da tradição - reabilitadas agora, passado o período mais radical da militância modernista - fazem-se presentes. Esta presença pode ser verificada
não somente na produção dos poetas mais jovens que começam a
publicar então, mas também na de importantes nomes do Modernismo. Assim, mestres do verso Livre como Drummond. e Jorge de
Lima, por exemplo, exercitam-se, sobretudo a partir dos respectivos Claro enigma (19 51) e Livro dos sonetos
(19 49), de
modo superior numa forma, clássica como o soneto, exaustivamente vulgarizada por parnasianos e simbolistas, e, por esse
motivo, propositalmente esquecida durante a fase mais ortodoxa
do movimento renovador.
Em 0 aluno, ao lado de poemas que formalmente podem
ser filiados ã produção mais tipicamente modernista, encontram-se alguns poemas dentro de moldes explicitamente mais
tradiconais, como é o caso de "Canção do afogado", "Balada"
e "0 aluno", este último um soneto.
"Canção do afogado" é o primeiro poema do livro:
CANÇÃO DO AFOGADO
Esta corda de ferro
me aperta a cabeça,
não deixa meus braços
se erguerem no ar.
E o mar me rodeia,
afoga meus.olhos.
Maninha me salve
não posso chorar'.
123
Minha mão esta presa
na corda de ferro
e os dedos não tocam
a rosa que desce,
que afunda sorrindo
nas ãguas do mar.
Maninha me salve
não posso nadar!
Algas flutuam
por entre os cabelos,
meus lábios de sangue
palpitam na sombra
e a voz esmagada
não pode fugir.
Maninha me salve
não posso falar'.
E a rosa liberta,
a inefável rosa,
vai longe, vai longe.
Um gesto ë inútil,
meu grito e meu pranto
inúteis também...
Maninha me salve
que eu vou naufragar!
O termo "canção" tem servido para designar uma gama
bastante ampla de composições poéticas, composições ora em
indissociável ligação com a música - vinculação primordial
que o próprio termo explicita -, ora de cunho mais ou exclusivamente literário; ora de origem popular, folclórica, ora de
procedência erudita; ora de caráter lírico - caráter, aliás,
dominante nas canções -, ora épico - de que é exemplo a canção de gesta medieval. No âmbito da tradição literária erudita e entre as várias possibilidades do lírico, a canção - diferentemente .do soneto, por exemplo, que designa uma forma
lírica que obedece a um. padrão estrutural claramente identificável - não se caracteriza por uma estrutura composicional
fixa, mantida sem transformações ao longo de todo o seu
124
desenvolvimento. Do ponto de vista temático, a despeito de
ser o amor um dos seus temas dominantes, a canção também não
tem sua abrangência restrita a campos muito específicos.
A canção floreste na lírica trovadoresca - "cansó"
entre os provençais, "cantiga" entre os galego-portugueses - ;
encontra, posteriormente, importantes representantes em Dante
e Petrarca, responsáveis pela fixação da canção
("canzone")
dentro de moldes bastante precisos - a canção clássica, cultivada por exemplo por Camões -; difunde-se, por influência
desses autores, por toda a lírica européia entre os séculos
XV e XVIII, sobretudo na Península Ibérica e na Itália; é
revitalizada mais tarde por românticos, resgatada também em
suas vertentes mais primitivas, populares, folclóricas; chegando ã poesia moderna já com muitas transformações e incorporando uma liberdade formal bastante ampla.
"Canção do afogado",atualiza, portanto, uma forma de
longa tradição na lírica ocidental. E é com feições mais tradicionalizantes, e não porventura modernamente inovadoras,
que se apresenta esta canção do primeiro Paes.
Formalmente, o poema ê todo ele regularmente composto,
o que já o afasta de início da irregularidade proposital das
composições poéticas típicas do Modernismo: quatro estâncias
maiores, todas elas com versos de cinco sílabas - excetuando-se os primeiros versos das três primeiras estâncias, de
seis ou quatro sílabas -, seguidas de dístico de metro idêntico ã guisa de estribilho. Com exceção dos mesmos primeiros
versos das três primeiras estâncias maiores e do segundo verso
da última estância maior, todos os outros têm acentuadas as
mesmas segundas e quintas sílabas. Todos os versos do poema
são brancos.
125
A predominancia quase absoluta das redondilhas menores, a repetição de um mesmo padrão de acentuação do verso
.(-/--/)
e a presença do estribilho - a despeito da inexis-
tência de rimas -, dão ao poema um tom repetitivo, circular,
cíclico, que o aproxima bastante do padrão formal das canções
de origem popular, onde a recorrência de formas ê pré-requisito para um casamento ideal com a música. Hã uma musicalidade implícita na repetitividade observada no poema de Paes,
que o caracteriza enquanto canção, onde a música, de forma
real ou então virtual, insinua sempre sua presença.
A circularidade configurada pela repetição destes padrões estruturais encontra-se também em sintonia com o tom
lamentoso, choroso, funéreo, angustiante que se.: apareende na
voz: do, poeta. A música nesta-canção é música em tonalidade
menor.
Ao longo do poema, um "eu" lírico central descreve, em
lento crescendo, o seu "afogamento". A ambientação sugere a
princípio uma situação concreta: o poeta-encontra-se mergulhado has ãguas do mar, uma corda de ferro envolve seu corpo,
prende seus movimentos, leva-o, com seu peso, em meios ãs
algas, em direção ãs sombras e ao fundo. Enquanto vai se afogando, o poeta avista uma rosa que também afunda, cada vez,
porém, mais longe de si. Durante a descrição deste processo,
feita ao longo das estâncias maiores, o poeta, em contraponto,
nos dísticos, dirige-se a uma figura feminina ("Maninha me
salve") a quem pede insistentemente por socorro.
A inconsistência objetiva do quadro descrito imediata»
mente abre a composição para os seus segundos sentidos. Assim,
todos os elementos adquirem uma dimensão simbólica. A "corda
126
de ferro" que "aperta a cabeça", não deixando os "braços se
erguerem no ar", evoca a angústia (lat. "angustus" = "estreito", "apertado") que domina o sujeito poético. O seu afogamento, o seu mergulho nas sombras do mar ("meus lábios de san- ¡
gue / palpitam na sombra"), revelam a sua penetração, cada vez
mais profunda, no problema.que o envolve e atormenta. Dal a
sensação de paralisação, de imobilidade, de fechamento e silêncio recorrentemente evocada: "minha mão está presa", "e a
voz esmagada / não pode fugir", "não posso chorar!", "não
posso nadar!", "não posso falar!", etc. Daí também a sensação
de proximidade da morte: "Maninha me salve / que vou naufragar!"
A decodificação mais ou menos fácil destas"imagens,
destes elementos metafóricos, cede espaço a uma aproximação
um pouco mais ambígua de outros. A "rosa", por exemplo, é
motivo um pouco mais problemático em suas sugestões semânticas do que os vistos acima. Enquanto se afoga, o "eu" poético
avista diante de si uma "rosa que desce / que afunda sorrindo", cada vez mais longe, cada vez mais distante. O afundar
da rosa - "rosa liberta", "inefável rosa" - tem caracterização oposta ao afundar do poeta: este se imobiliza em sua
angústia, enreda-se, vai para o fundo, para as sombras, para
a morte; aquela "afunda sorrindo", liberta-se. O que é, portanto, a "rosa"? Um elemento vital - um sentimento, um ideal,
a própria alma - que se desprende do . "eu" lírico no seu processo de "afogamento", de angústia, de aniquilação? Ou, de
forma menos fugidia e mais precisa, em ressonância com a presença da figura feminina cujo auxílio é constantemente invocado, e
-não negando a interpretação anterior, o amor em
127
dissolução? A maneira como as imagens se encontram dispostas,
sua caracterização, suas relações entre si, não permitem um
fechamento para a questão.
Também a figura feminina do poema é algo problemático,
uma vez que a referência a ela é feita somente ao longo dos
dísticos e de forma muito pouco precisa. O poeta chama-a "maninha" e invoca o seu auxílio, auxílio cuja natureza nunca é
explicitada. 0 termo afetivo e fraterno "maninha" atenua a
possibilidade de constituir ela a figura de uma possível amada,
cujo amor o poeta estaria com sofrimento perdendo. Esta figura
feminina acentuadamente abstrata, na verdade, parece servir
mais como contraponto dramático para um extravasamento emocional do poeta.
A despeito destas ambigüidades, que, ao final das
contas, apontam sempre para uma mesma direção (a idéia de
"afogamento" do "eu" poético, com as conotações referidas),
o poema é todo ele bastante simples. A repetição das formas,
dos metros, do padrão de acentuação, entra em sintonia com o
tom insistente,.repetitivo, de angustiado lamento que se
apreende na voz do poeta.
Um'segundo poema que, por suas caracrerísticas composicionais e pela referência explícita do próprio título, se
vincula a uma perspectiva poética de caráter mais tradicional
é o poema "Balada":
BALADA
Folha enrugada,
poeira nos livros.
A pena se arrasta
no esforço inútil
de libertação.
Nenhuma . vontade,
nem mesmo desejo
na tarde cinzenta.
A árvore seca
esperando seiva
não tem paisagem .
Na frente ë o deserto
coberto de pedras.
Nem sombra de oásis.
Pobre árvore seca
na tarde cinzenta!
Se houvesse um castelo
com torres e dama
de loiros cabelos,
talvez eu fizesse
algum madrigal.
Mas a dama morreu,
os castelos' se. foram
na tarde cinzenta!
0 caminho se alonga
por entre montanhas,
por campos e vales.
Talvez me conduza
ao roteiro perdido
no fundo do mar.
Mas estou tão cansado
na tarde cinzenta!
Não sou lobo da estepe
amo a todos os homens
e suporto as mulheres.
Contudo não posso
falar com os lábios,
amar com o sexo,
porque sinto a tortura
da tarde cinzenta!
Só me restam os livros
Vou ficar com eles
esperando que chegue
do fundo da noite,
das sombras do tempo,
oh! imenso mar,
vem me libertar
da tarde cinzenta!
129
A "balada", em suas origens, é um tipo de composição
de caráter popular, folclórico, coletivo, acompanhado de canto
e dança (Baixo Latim "bailare": "dançar"), de espirito predominantemente narrativo, ao qual se mesclam, porém, elementos líricos e dramáticos. De grande difusão sobretudo entre os povos
germânicos ao longo da Idade Média - seu equivalente ibérico
são os chamados "romances" ou "rimances" -, a balada folclórica foi eclipsada por outras formas composicionais durante os
períodos de maior influxo do classicismo entre as literaturas
européias, para ser resgatada ao longo dos déculos XVIII e XIX
(Pré-Romantismo e Romantismo) tanto através de compilações dos
seus exemplares mais antigos quanto enquanto modelo de novas
composições literárias.
Na Erança, desde o see. XIV e f-ixando-se no see. XV,
desenvolveu-se, no âmbito da literatura erudita, um tipo de
balada - a chamada "balada francesa" - com formas rigorosamente determinadas: composições com três estrofes isométricas,
oitavas ou décimas, com estrutura-rímica, respectivamente, segundo o padrão ababbcbc e ababbccdcd, finalizadas por uma meia
estrofe - "envoi", em português "ofertorio" - com rimas segundo
a disposição bebe (oitava) ou ccdcd (décima), sendo o último
verso de cada uma das estrofes sempre o mesmo.
Mais. modernamente, como costuma acontecer com as formas tradicionais,.a balada desenvolveu-se: assumiu, em muitos
casos, um caráter mais evidentemente lírico e desprendeu-se
do maior ou menor rigor formal em que era composta anteriormente. Segundo Amorim de CARVALHO, no seu Tratado de Versificação
portuguesa, "modernamente, a designação de 'balada' ou 'balata*
tem sido dada a diferentes composições líricas com um 'leitmotiv'
130
verbal e de pensamento". 1
É entre as composições aí subenten-
didas que se encaixa a "Balada" de José Paulo Paes.
"Balada" compõe-se de seis oitavas, com versos geralmente pentassilãbicos, cuja acentuação recai, com muito pouces
exceções, nas segundas e quintas sílabas. Os versos são todos
brancos, e ao final de cada estrofe um mesmo verso ë repetido,
com uma pequena alteração na preposição inicial nas duas últimas estrofes ("na..."/"da tarde cinzenta"). Como em "Canção do
afogado", a regularidade formal, a insistência nas redondilhas
menores com um mesmo padrão de acentuação e a presença do mesmo verso final a cada estrofe dão ao poema uma cadência repeti'
tiva. Mais uma vez, forma e tom do poema casam-se bem. A
melancolia angustiada--que atravessa a composição, o tom de
desesperança, cansaço, . exaustão que exala das- imagens e dos
impulsos confessionais nela contidos~- cor o que, no final da
última estrofe, o poeta ensaia romper - materlam no mesmo compasso monótono das sonoridades, dos padrões estruturais reiterativos.
Na primeira estrofe, o poeta como que procura se situar naquilo que se pode chamar seu ambiente de trabalho. No
entanto, não se tem aí propriamente uma descrição objetivante
desse ambiente: "folha enrugada" e "poeira nos livros" funcionam mais como explicitadores de um estado exterior em sintonia com o estado de alma do "eu" poético. Algumas revelações
importantes são feitas: primeiro, a da perspectiva pessimista
que o poeta guarda frente ao seu próprio trabalho literário
("A pena se arrasta / no esforço inútil / de libertação.");
em seguida, e em sintonia com isto, a revelação da impotência
geral que o parece dominar ("Nenhuma vontade / nem mesmo desejo") .
131
Na segunda estrofe, depara-se jã com um outro contexto, um espaço exterior onde uma "árvore seca" é focada com
destaque. A paisagem que circunda é estéril, inóspita ("Na
frente ë o deserto / coberto de pedras."). Arvore e espaço
em que esta se insere funcionam como metáforas óbvias do poeta
e de sua situação.
Se da primeira para a segunda estrofe tem-se um desdobramento espacial - diferentes espaços evocando um sentido
poético semelhante -, a terceira.estrofe sugere ainda um outro
espaço, agora projetado para um tempo passado. "Um castelo
com torres e dama" é evocado - elementos caracterizadores de
uma evasão com sabor convencionalmente romântico -, mas logo
desfazem-se no choque com a realidade presente.
A quarta estrofe resgata um contexto próximo ao da
segunda, um espaço exterior em meio â natureza, sem caracterização precisa, funcionando exclusivamente numa dimensão simbólica: iam "caminho" entre "montanhas", "campos" e "vales",
cujo destino ë motivo de indagação. "Talvez me conduza / ao
roteiro perdido / no fundo do mar." - diz o poeta, evocando,
com esta imagem - "fundo do mar" -, um destino próximo ao '
anteriormente delineado em "Canção do afogado".
A quinta estrofe cede espaço ã nova confissão. Não se
tem mais a construção/evocação de espaços vagos sugerindo um
estado de espirito, mas a explicitação deste estado de espírito pelo sujeito poético. Assim, em período cuja coordenação
de orações não deixa de ser curiosa, ele confessa: "amo a todos os homens / e suporto as mulheres". Porém, este impulso
é bloqueado pela mesma dor e impotência jã referidos, sintetizados na imagem reincidente da "tarde cinzenta". Nesta quinta
132
estrofe, chama a atenção a presença de uma quebra prolongada
do metro dominante. Os três primeiros versos são hexassílabos
com um mesmo padrão de acentuação
( - - / - - / ) .
Os três se
guintes resgatam a redondilha menor com a acentuação, predominan
te ( - / - - / ) .
Esta quebra tão evidente
(já que a interca-
lação de versos tetrassilãbicos e hexassilábicos aos pentassi
lábicos até então não havia.excedido a um ou, num único caso,
a dois versos) se mostra significativa do ponto de vista semântico: a negação que abre o primeiro verso e as afirmações
a seguir compõem uma espécie de restrição ao que vinha sendo
exposto, como se o poeta estivesse procurando ressaltar algumas características suas que poderiam ser. vistas como positivas. Neste instante,-tem-se os hexassílabos. O "contudo" que
abre o quarto--verso, -verso que- retoma.-o.. padrão métrico- anterior, desfaz, porém, este abreviado paréntesis, devolve ao
poeta a impotência que o caracteriza.
A sexta estrofe inicia com mais uma importante confissão ("Só me restam os livros.").e logo salta novamente
para a evocação de imagens, espaços, ambientes abstratamente
simbólicos: "fundo da noite", "sombras do tempo", "imenso
mar", "tarde cinzenta". Da mesma forma que a quebra do padrão
métrico e o retorno a este padrão na estrofe anterior pode
ser vista como significativa, a quebra do encadeamento sintático normal no último período tem um efeito inusitado que
valoriza a resolução do poema: a exclamação - "oh!" - que
abre o sexto
verso, ruptura, sintática do período, revela a
tensão emocional que. envolve o "eu" poético no seu impulso
de romper com a situação geral configurada nas estrofes anteriores. Nos três versos finais, a contraposição de "imenso
133
mar" ã "tarde cinzenta" ("ohl imenso mar / vem me liber^.
tar / da tarde cinzenta") tensiona os significados. No que
consistiria essa liberdade através do "mar"? No poema anteriormente analisado, o "mar" que circundava "o afogado" tinha
valor negativo. A mudança de sentido aqui - o "mar" como libertação - torna esta imagem bastante problemática: uma insinuação de um desejo de. auto-aniquilação - saída possível
para a situação de angústia insuportável - pode ser aqui descortinado.
As seis estrofes do poema, guardando todas - em termos
de uma unidade semântica - um certo grau de independência entre si, são explicitações, a partir de ângulos distintos, do
mesmo-estado emocional do "eu" poético .— Glosam todas um mesmo
mote ..Explicitando a união interior, entre elas, como um fio .
costurando o trançado, está o verso final de cada esfrofe
"na/da tarde, cinzenta". Este verso, tomado em seus sentidos
segundos, resume bem toda a matéria. "Tarde" ê o período do
declínio do sol no curso do dia, após- atingido o ápice. "Tarde"
evoca o fechamento de um ciclo vital iniciado com a "manhã",
presentifica a idéia de "envelhecimento". "Tarde" prenuncia, a
"noite", imagem possível da "morte", do "aniquilamento", da
"imobilidade", do "retorno a um estado de origem". 0 adjetivo
"cinzenta" proposto ã "tarde" esvazia esta imagem de um possível sentido positivo, onde o fechamento do ciclo seria encarado como
necessário a todo um processo de desenvolvimento e maturação.
"Cinzenta" evoca também a idéia de envelhecimento
(cabelos,
barba grisalhos como índices da velhice no homem). Na "tarde
cinzenta" - com a presença de nuvens, neblina - perde-se a
perspectiva do infinito implicada na visão do céu azul; o
134
que se tem é um estreitamento dessa visão, seu amesquinhamento através da imposição de um limite. Barra-se também a presença da "luz" e do "sol", elementos visceralmente ligados â
vida e ao impulso criador.
As sugestões implícitas no verso, e mais largamente
desenvolvidas no próprio poema, dão-nos um retrato sombrio
do estado emocional do jovem poeta, muito afim ao delineado em "Canção do afogado": angústia, imobilidade, apatia, exaustão, presença da morte. Porém, além de apresentar elementos
caracterizadores de um estado emocional, "Balada" traz alguns
dados de caráter metalingüístico importantes para a compreensão da postura do poeta frente ã literatura.
Na primeira estrofe, o-seu impulso ã produção, literária é-visto como um "esforço inútil de libertação".- O seu estado emocional geral compromete a atividade criativa no que
ela ainda poderia ter de libertadora. Porém, a literatura
não está toda ela comprometida por isso. Na sexta estrofe,
a confissão contida no primeiro verso ("Só me restam os livros.") é muito significativa da possibilidade de uma-abertura para a questão. Na desolação geral que o rodeia, o poeta
ainda consegue encontrar algum abrigo nos "livros". Os livros
são o seu refúgio diante- da inevitabilidade da "tarde cinzenta ".
Um terceiro poema que retoma uma forma da.tradição
poética é "0 aluno", um soneto, com título idêntico ao do
próprio livro:
135
O ALUNO
São meus todos os versos jã cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
0 líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.
Intacto me revejo nos mil lados
De um s5 poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
de palavras, de gestos isolados.
São meus também os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.
Drummond me empresta sempre o seu bigode.
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.
0 soneto, com origens remotas supostamente na poesia
provençal, fixa-se enquanto forma- entre os., líricos italianos
«
em fin:s da Idade~ Média, ë cultivado - superiormente por Dante
e Petrarca, a partir dos quais difunde-se pela poesia dos.
vários países europeus ao longo dos séculos seguintes. Na
literatura em língua portuguesa foi introduzido durante o
Renascimento por Sã de Miranda, •encontrando desde então até
hoje expressão entre os melhores.autores. Entre as formas
poéticas de caráter clássico, ë das que mais resistiram a
inovações formais.
O chamado soneto italiano ou petrarquiano, o que
passou para a tradição lírica luso-brasileira
(há variações
»
do soneto em outras tradições literárias, como o "soneto
inglês" ou "shakespeariano", o. "soneto spenserista", etc.) ,
é composto por quatorze versos •.dispostos em dois quartetos
e dois tercetos. A disposição, das rimas obedece a um parâmetro relativamente rígido: nos quartetos, duas soluções rímicas, rimas cruzadas ou emparelhadas - abba ou abab, em geral
136
transpostas do primeiro ao segundo quarteto; nos tercetos,
de duas a três, com várias combinações possíveis entre si ccd/ccd, cdc/dcd/, cde/cde, etc. O verso do soneto clássico
era predominantemente decassilábico. Com o desenvolvimento
das formas poéticas passou-se a compor também
sonetos com
versos brancos e metros distintos do decassílabo. Inovações
ainda mais radicais tentadas modernamente - de sentido paródico ou meramente destrutivo - esbarram nos limites da própria forma: muito mais do que uma espécie de "espírito" inerente ãs possibilidades formais, como na balada, na canção, no
epigrama, na ode, é a forma ( no sentido mesmo de fôrma) , dentro de limites bastante
precisos, o que parece caracterizar
o soneto. Mesmo o -caráter conceptual., que anima o-soneto clássico -. exposição de tese e explanação nos quartetos, exposição de uma antítese ou confirmação da tese e conclusão, nos
tercetos, com apresentação de uma síntese conceituai de toda
a composição de forma impactante no último verso: o "fecho de
ouro" -, não é elemento indispensável, sendo minimizado em
seus rigores ou simplesmente abandonado em composições fora
dos períodos de hegemonia do classicismo literário.
"O aluno", último poema do livro, ë um soneto dentro
dos moldes do soneto italiano apresentados: tem-se aí os
quatorze versos, todos decassilãbicos, dispostos em dois
quartetos e dois tercetos e rimas obedecendo ã estruturação
abab, abba,. ccd, eed. Em seu desenvolvimento, o poema segue,
mais ou menos, o desenvolvimento conceituai típico do soneto
clássico, a despeito da ausência de.um "fecho de ouro" no
último verso que retome sintéticamente o que foi exposto nas
estâncias anteriores.
137
O primeiro verso da primeira estrofe contém uma proposição
inicial básica
("são meus todos os versos já canta-
dos") , proposição de teor generalizante, a qual seguem arrolados - como que a restringindo, como que especificando melhor
que "versos" são esses - alguns motivos, algumas imagens bastante correntes na poesia: "a flor", "a rua", "as músicas da
infância", "o liquido .momento", "os horizontes perdidos na
distância". A proposição inicial, de caráter sintético, concentra-se no espaço de um. único verso. A enumeração detalhadora que a segue estende-se pelos três versos seguintes como que
num crescendo: segmentos curtos, de número silãbico reduzido,
como "a flor" e "a rua", são seguidos por segmentos maiores,
até o último e bastante extenso, que tem no recurso formal do
"erij'ambement", na passagem do terceiro para o "quarto verso, como que uma reiteração das . suas-próprias possibilidades...semânticas - o último: segmento sintático ("os azulados horizontes
perdidos na distância"), transbordando os limites do verso,
acentua a idéia de espraiamento-em si implicitamente contida.
Na segunda estrofe, observa-se um certo deslocamento
de foco: se na primeira a multiplicidade
da poesia convergia .para
o poeta enquanto um ponto de síntese
("são meus todos os ver-
sos jã cantados"), agora, na segunda, o poeta considera um
único- poema na sua dimensão múltipla.("mil lados de um só
poema"). Na plurivocidade de um único poema, o poeta encontra
refletida a sua imagem integral: "Intacto me revejo nos mil
lados / De. um sõ poema.
(...)". A poesia, nessa perspectiva,
mesmo em dimensões muito restritas
("um só poema"), seria um
meio propicio de resgate da identidade do sujeito que sobre ela
138
se debruça. Nas partes que compõem o poema ("nas lâminas da
estância") - numa leitura possível do segundo período da estrofe -, encontram-se os fragmentos desse sujeito ("as memórias e a substância de palavras, de gestos isolados").
Nos dois tercetos finais, a proposição primeira do
poema é retomada. Novamente o poeta vai restringir a sua ampla
abrangência, agora citando especificamente determinados poetas,
como Rimbaud, Bandeira, Drummond e Neruda, e insinuando, na
incorporação a si próprio dos elementos díspares que a eles vê
ligados ("líricos sapatos de Rimbaud", "doçura triste de Bandeira", "bigode" de Drummond, "pobre verso" que "explode" e
"borboletas" que "dançam na algibeira", de Neruda) , serem seus
também os versos desses autores.
Relacionando o destaque a poetas específicos com o título do poema, muito mais do que apenas ocasional referência
a figuras importantes da lírica moderna, alçam-se eles, na
verdade, para o poeta iniciante, ã categoria de "mestres de
poesia". Mas por que justamente estes poetas e não outros,
como seria possível solicitar da própria proposição inicial do
soneto ("são meus todos os versos jã cantados"), são os nomeados pelo poeta?
Com relação a Drummond e a Bandeira, a sua importância
na formação poética do jovem José Paulo Paes é destacada por
ele mesmo com muito detalhe e reverência em depoimento sobre
seu trajeto literário. A nova poesia dos dois poetas modernistas chocava-se frontalmente com o modelo de poesia adquirido
por Faes no contato com a produção dos poetas anteriores ao
Modernismo. Foi difícil, a princípio, entender as intenções
dessa poesia, mas a descoberta veio repentinamente e de forma
139
marcante: "Em pouco mais de uma hora de sôfrega leitura,
compreendi verso por verso, metáfora por metáfora, alusão por
alusão, o que se escondia por detrás daquela dicção deliberadamente simplória, avessa a qualquer forma de eloqüência e que
buscava, nas coisas mais simples, o significado do mundo". 2
Para além do registro autobiográfico, ê importante destacar
que Drummond e Bandeira são dois dos mais cultuados mestres
do Modernismo brasileiro, e o reconhecimento, pelas gerações
subseqüentes, da sua importância para o desenvolvimento
da própria poesia moderna do pals é quase unânime. Ao citá-los
como "mestres de poesia", Paes como que se filia, na condição
de "aluno", a uma das linhas de evolução mais ricas da poesia
nacional.
Rimbaud e Neruda, por outro lado, são, cada qual ã
sua maneira, nomes importantes dentro do panorama mundial da
poesia moderna. Rimbaud, na esteira de Baudelaire, e ao lado
de Mallarmé, encontra-se, com a potência subversora de sua
poesia, na raiz da própria modernidade poética no que ela tem
de mais chocante e experimental. Neruda, aliando ã excelência
formal o engajamento social e político, é paradigma de outra
vertente importante da produção poética moderna. A menção destes autores estrangeiros ê índice de uma visão literária não
restrita aos modelos nacionais, aberta, portanto, para o que
de m e l h o r s e faz em termos universais. Curioso, no entanto, é
notar que o louvor a poetas modernos seja feito através de
uma forma tão tradicional como o soneto.
O poema "O aluno", todo ele marcadamente metalingüístico, é revelador de algumas atitudes poéticas de Paes neste
instante inicial da sua produção. Considerando serem seus
140
"todos os versos já cantados", Paes como que se confessa
proprietário de uma perspectiva amorosa e ecumênica diante
da poesia. Seria importante resgatar aqui aquela confissão
que o poeta faz em "Balada": "só me restam os livros". O contato com a literatura, pelo que se depreende, destas expressões
tão categóricas, revela-se vital para o poeta. Paralelamente a
isto, autodenominando-se
"aluno" e fazendo referência especí-
fica a determinados nomes da poesia moderna, Paes os eleva,
com muita reverência, ã categoria de "mestres de poesia", são
modelos, portanto, a serem seguidos, o que implica, por parte
de Paes, a assunção de uma perspectiva que o aproxima de uma
postura de caráter que se pode dizer "clássico" 3 diante do
labor criativo. Esta postura é traço que pode ser
aproximado
do próprio ambiente literário, dominado pela classicizante
Geração de 45, em que Paes estreia como poeta. Para os modernistas de 22, a noção de ruptura com o passado literário, a
perspectiva iconoclasta frente ao panteão dos poetas-herõis
reconhecidos eram pontos de partida para a proposição de novos
valores poéticos. Agora, já num momento posterior
(sobretudo
a partir da década de 40), esta perspectiva se altera sensivelmente. No caso específico de Paes, não se parte mais da
negação da geração anterior, mas sim,.ao contrário, toma-se
essa geração como um modelo literário a ser seguido.
Os três poemas abordados até agora são todos poemas
compostos dentro de moldes mais tradicionais do fazer poético.
O poeta volta-se para algumas formas da tradição e, através
delas, busca expressar-se. Este mesmo movimento repete-se nos
outros poemas, já agora dentro de uma concepção formal mais
próxima das postas em voga pelos autores modernistas: o poeta
141
volta-se para uma tradição mais recente da poesia - a da
poesia modernista -, e, através de procedimentos e do aproveitamento de motivos e temas de alguns dos seus poetas mais importantes, busca uma forma de expressão
individual.
Um primeiro poema característico desta perspectiva é
o curto
"Muriliana":
MURILIANA
Corto a cidade, as máquinas e o sonho
Do jornaleiro preso no crepúsculo.
Guardo as amadas no bolso do casaco.
Almoço bem pertinho do arco-íris,
Planto violetas na face do operário.
Conversando com anjos e demônios,
É o meu anúncio quem dirige as nuvens..
Dos sete versos do poema, cinco são decassílabos e
dois endecassílabos, dispostos com visível simetria, em sua
alternância: primeiro e segundo versos - decassílabos; terceiro - endecassílabo; quarto - decassílabo; quinto - endecassílabo; sexto e sétimo - decassílabos. Dos cinco decassílabos, os quatro primeiros são heróicos
(6-10)
e o último,
sáfico (4 - 8 - 10). Os endecassílabos têm o mesmo padrão de
acentuação
(4 - 7 - 11). Esquematizando visualmente estas
informações, tem-se a seguinte
estrutura:
/ /
- - - - - / - - - /
/
/ - - - /
- - - - - / - - - /
/
/
/
- - / - - - /
/
_ / _ /
10
10
11
10
11
10
io
sílabas
sílabas
sílabas
sílabas
sílabas
sílabas
sílabas
A simetria na disposição dos versos e a reiteraçao de
padrões de acentuação
(a exceção é o decassílabo sáfico), que
142
dão ao poema um caráter de construção pensada
e equilibrada,
entram em ressonância com uma certa simetria também verificável a nível sintático. 0 primeiro e o segundo versos encerram
um único e mais extenso segmento sintático. 0 sexto e o sétimo também. Os três versos intermediários, cada qual, encerram
um segmento sintático mais curto. Pode-se destacar também um
paralelismo sintático entre estes três versos
intermediários,
paralelismo que também pode ser estendido ao segmento presente
nos versos um e dois. Ficaria fora deste paralelismo
o segmen-
to presente nos versos seis e sete, exceção aliás que coincide
com a exceção do padrão de acentuação apontada
referentemente
ao decassílabo sáfico do sétimo verso. As exceções, portanto,
coincidem, o que implica uma nova simetria.
Estese-paralelismos e simetrias,. esta reiteração^ de
padrões de acentuação - este equilíbrio arquitetônico,, portanto, que aponta numa direção de racionalidade composicional, entra porém em choque com a dimensão semântica do poema.
Neste nível, chama a atenção o caráter desconcertante e absurdo das imagens, relacionadas de forma ilógica entre si, sem a
presença de quaisquer elementos de coesão textual. Tem-se aí
um arrolar de ações díspares e estranhas, de difícil interpretação . A dimensão referencial comum a toda a linguagem encontra-se aí como que suspensa, ou melhor, como que subvertida
na sua orientação original. A linguagem neste poema não está
a serviço de uma apreensão do mundo concreto, ou da proposição de um mundo reconhecível. Pelo contrário, a linguagem
propõe um mundo, dá vida a um mundo mais ou menos autônomo,
sem relação imediata ou transparente com o mundo conhecido da
experiência - função, aliás, que pode ser tida como presente
14 3
sempre em algum grau em toda linguagem poética, porém levada
aqui ã sua radicalidade.
Um "eu" poético apresentando-se em primeira pessoa é o
sujeito de uma série de ações de caráter surpreendente, absurdo, onírico. Centrando-se a atenção exclusivamente no verbo
de cada período, verifica-se que seu sentido é, a princípio,
plenamente aplicável, do ponto de vista da exigência de uma
verossimilhança, ao homem enquanto sujeito. "Corto" (no sentido de "atravessar", "cruzar"), "guardo",
"almoço", "danço"
representam ações humanas claramente identificáveis. 0 que
vai dar o caráter de algo inusitado são os complementos pospostos aos verbos. A título de exemplo, observem-se as ações
contidas no terceiro, quarto e quinto versos: "guardo as amadas no bolso do casaco"; "almoço bem pertinho do arco-íris";
"planto violetas na face do operário". Do ponto de vista sintático, todas as três orações são orações perfeitamente bem
construídas: no primeiro e no terceiro exemplos, tem-se verbos transitivos diretos, seguidos de objetos diretos e adjuntos adverbiais de lugar; no segundo exemplo, tem-se um verbo
empregado intransitivamente, seguido de adjunto adverbial
também de lugar. Nada de anômalo, portanto. Do ponto de vista
semântico, porém, todas as orações apresentam uma determinada
tensão nos significados, pela inadequação evidente - novamente aqui considerando-se a partir de uma exigência de verossimilhança - entre os termos.
As imagens dão corpo a um mundo bastante estranho, que
porém não deixa totalmente de guardar alguns laços com o mundo
mais objetivamente reconhecível. Nos dois primeiros versos,
observa-se uma graduação da ação apresentada do verossímil em
144
direção ao absurdo em evidente crescendo: "corto a cidade",
"corto
(...) as máquinas",
"corto
(...) o sonho do jornalei-
ro preso no crepúsculo". O espaço da "cidade" é evocado aí a
p r i n c í p i o , e alguns elementos são nele localizados:
"máqui-
nas", "jornaleiro", "crepúsculo", e implicitamente o próprio
poeta. Este espaço, uma vez evocado, permanece enquanto cenário em que vão se encaixar as demais ações e imagens. A tensão
verificada entre verossímil e absurdo nestes versos estende-se
aos demais versos. Assim, guardar alguma coisa "no bolso do
casaco", almoçar, plantar - violetas - proposições verossímeis -,
tensionam-se em seus desdobramentos: guardar "as amadas no
bolso do casado"; almoçar "bem pertinho do horizonte";
plantar
"violetas na face do operário". Nos dois últimos versos, complicando o inusitado das imagens, tem-se ainda uma problemática ambigüidade: ê o poeta ou o seu "anúncio" quem está "conversando com anjos e demônios"? Um mesmo problema de determinação semântica pode ser verificado nesse enigmático "é o meu
anúncio quem dirige as nuvens".
"Muriliana" pretende resgatar um modo de compor que se
quer característico de Murilo Mendes. 0 poema é todo ele formado por imagens estranhas, sem ligações semânticas evidentes
entre si, próximas ãs da poesia surrealista, dispostas, no
entanto, ao longo de versos que, pela sua coloquialidade, pela sua sem-cerimônia, pela não ruptura a nível sintático,
fluem com uma naturalidade surpreendente. O "surrealismo"
presente aí, na verdade, é mais de caráter imagético do que
propriamente composicional: a "escrita automática", proposta
por André Breton, uma das figuras máximas do Surrealismo na
literatura, não está no impulso que dá gênese ao texto. A
145
sintaxe tradicional não é rompida, não há relações sintático-semânticas que violentem incisivamente os nexos entre os
termos, não há neologismos, nem procedimentos de fragmentação
vocabular. Um fragmento da poesia do próprio Murilo indica
que a lição do "mestre" neste caso parece ter sido estudada
com afinco: "A noite curva... /Seios pendurados nas janelas
da terra. / Uma larga mão vermelha / me chama em alguma parte. / Mensagem do tacto dum espírito do ar, / c h e i r o das namoradas, noite curva.
Outro poema em que, como "Muriliana", os procedimentos
característicos de um poeta do Modernismo são retomados por
Paes é o também curto
"Drummondiana":
DRUMMONDIANA
Quando as amantes e o amigo
te transformarem num trapo,
faça um poema,
faça um poema, Joaquim!
O poema tem apenas quatro versos, um tetrassílabo e
três redondilhas maiores, estas com acentos na quarta e na
sétima sílabas. Do ponto de vista das sonoridades, a insistente repetição de padrões sonoros, formando como que ecos
no interior do texto, chama a atenção; no primeiro verso "quando"/"amantes",
"amantes"/"amigo"; no segundo verso —
"te"/"transformarem"/"trapo",
"transformarem"/"trapo";
do
terceiro para o quarto a repetição de todo um mesmo segmento
sintático - "faça um poema"/"faça um poema"; na quarta estrofe: "um"/"Joaquim"; e, ao longo de todos os versos a predominância de sonoridades nasais - "quando"/"amantes"/
"amigo"/"trans fo rmarem"/"num"/"um"/"poema"/"Joaquim".
146
Novamente aqui neste poema, percebe-se a presença da
metalinguagem, da reflexão acerca da poesia e do trabalho
poético. 0.impulso ã criação aparece aqui vinculado diretamente a determinados fatores circunscritos ao âmbito da experiência afetiva do indivíduo. Fazer um poema surge como uma espécie de remédio para as frustrações no amor e na amizade, portanto, como uma espécie de compensação para o sujeito. Mas
estas formulações não se encontram isentas de uma certa ironia por parte do poeta, uma vez que esta perspectiva diante
do labor literário parece remeter mais aos estereótipos de
um certo romantismo menor do que a uma postura moderna diante
da poesia. Também o emprego de certas palavras como "trapo"
e como o vocativo "Joaquim" reiteram esta possibilidade.'
Este, pequeno_poema atualiza alguns elementos composicionais típicos de certa poesia de Drummond. Tem-se aí um
poema bastante -curto, mais ou menos dentro dos moldes do
"poema-piada" de sabor irônico do Drummond modernista de
Alguma poesia. O terceiro e o quarto versos repetem uma mesma
estrutura - "faça um poema" -, procedimento estilístico recorrente no poeta mineiro. 0 vocativo presente., no último verso
ecoa outro recurso drummondiano: tem-se aí um nome próprio
bastante comum, designando uma espécie de "personagem" com
quem o "eu" poético dialoga, ou a quem ele se dirige, que,
na maioria das vezes, funciona como um "alter ego" do próprio
poeta. "Carlos"., em "Poema de sete.faces", e "José", em poema
de mesmo nome, são exemplos deste recurso. "Joaquim", aliãs,
resgata inclusive sonoramente este último.
Mas a presença de Drummond neste primeiro livro de
José Paulo Paes não se restringe apenas a este "exercício
14 7
composicional" que leva o nome do poeta. Encontra-se também,
de forma muito evidente, em poemas como "0 homem no quarto"
e "0 poeta e seu mestre".
Em "0 poeta e seu mestre", Paes faz referência a uma
personagem já clássica da cultura moderna, aquele mesmo
Carlito de "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin", poema do
fundamental Rosa do povo, de Drummond. Como no poema de
Drummond, Carlitos aqui ë saudado como figura positiva, artista capaz de realizações revolucionárias
("Sua bengalinha /
queima ditadores, / destrõi as muralhas / Libertando os anjos"). Há um sentimento de euforia esperançosa, de possibilidade de redenção que contrasta (o soneto "0 aluno" é -também
exceção) com o tom amargurado e angustiante verificado na
maioria dos poemas deste primeiro livro: "Teu bigode é a ponte / que nos liga ao sonho / e ao jardim tão perto." Drummónd
- não citado de maneira explícita no corpo do texto - acaba
aparecendo refletido inevitavelmente neste Carlitos: o "mestre" a que se refere o título é ambiguamente Chaplin e
Drummond. Alfredo BOSI jã notara,.aliás, esta proximidade entre as personagens: "Iconicamente: em ambos ressalta o detalhe do bigode, risco fino e imóvel que sombreia o riso e sublinha a careta, traço capilar de uma era que já se finava (...)". 5
Os dois poemas r - porém, a despeito dos paralelos evidentes, contrastam violentamente em certos aspectos. "Canto
ao homem do povo Charlie Chaplin" é um poema caudaloso,
de
amplo fôlego poético, em longos versos polimétricos, carregado
de imagens e intenções, peça central na poética drummondiana.
"0 poeta e seu mestre" é já uma composição bem mais humilde-
148
mente singela: quatro quadras, um verso isolado e um terceto,
versos brancos predominantemente pentàssilábicos, sugestões
poéticas bastante simples, conceitos imediatamente inteligíveis. Não hã nada aqui que ecoe a potência poética do "mestre".
0 que é de se destacar, porém, no contraste com um poeta referido como modelar, é a preferência de Paes pela simplicidade
e pelas formas breves, é o controle insistente que a razão
parece exercer sobre o material poético, não deixando que ele
se espraie com grande efusão.
Ainda outro poema em que se pode rastrear a presença
evidente de Drummond ê "0 homem no quarto". Neste poema
faz-se presente uma personagem a quem o poeta se dirige diretamente fazendo uso da segunda pessoa verbal, mas que não tem
voz própria, não se manifesta, não responde ao seu interlocutor. Sua identidade, sua realidade apresentam-se exclusivamente através da palavra desse "eu" poético central. A circunstância, que poderia insinuar um contraponto, dramático, na
verdade é dominada por um impulso lírico individualíssimo: o
poeta dirige-se a um segundo, mas um segundo que é muito mais
um espelho seu do que um ser independente; em outras palavras,
este outro encontra-se aí na
condição de."alter ego" do pró-
prio poeta.
Na poesia brasileira, este recurso foi muito utilizado
por Drummond, como no caso paradigmático de "José", poema,
aliás, que parece servir de modelo a este "0 homem no quarto",
tanto no que diz respeito â utilização de certos recursos
formais, quanto na própria temática e tom que alimentam o
poema. Uma rápida comparação de fragmentos de cada um dos
149
textos revela imediatamente o parentesco:
E agora, Jose?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência
seu odio - e agora?
(Drummond)
Teu protesto inútil
tuas flores murchas,
teu violino fácil,
tua vontade escassa,
São frutos humildes,
são folhas perdidas
que um sapato esmaga
nascendo da sombra.
( J.P.. Paes)
Um primeiro paralelo evidente pode ser apreendido a
partir da consideração do metro de cada fragmento de poema.
Em Drummond, alternam-se pentassílabos e hexassílabos. Numa
outra possibilidade de leitura - ditongando "sua" - vemos
emergir exclusivamente os pentassílabos. Nesta leitura, verica-se um tipo predominante de acentuação silábica ( t/ - - / ) .
Em Paes predominam com quase exclusividade os pentassílabos - as exceções ficam por conta dos versos dois e quatro
da primeira estrofe: ditongando o pronome possessivo, o segundo verso apresenta quatro sílabas e o quarto cinco; não ditongando, aquele apresenta cinco sílabas e este seis. 0 padrão de acentuação, diferentemente de Drummond, ê mais vari ado.
150
Ainda outra aproximação possível a nível formal verifica-se no paralelismo sintático: em quase todos os versos
da estrofe de Drummond observa-se a estrutura "pronome possessivo" + "substantivo(s)" com "adjetivo" ou "preposição"
+ "substantivo". Nos quatro versos da primeira estrofe do
poema de Paes, a mesma estrutura sintática faz-se presente.
0 título "0 homem no quarto" evoca certos títulos pouco
especificantes dados a composições pictóricas de caráter descritivo.. Como numa pintura figurativa, o que se poderia ter
aí, a partir da sugestão imediata do título, seria a descrição, em traços objetivantes, de um homem dentro do espaço
fechado de—um-quarto. Na-verdade , ao invés-da descrição objetiva, o poeta opta pelo delineamento do perfil interior desse
- homem,-e que" poderia ser, na possibilidade de leitura já sugerida, o delineamento do seu próprio perfil projetado num
"outro".
Esse homem evocado ao longo do. poema é alguém que se
encontra fechado em seu próprio isolamento, com-seus escassos
valores, desejos, impulsos esmagados por uma causa cuja origem não sabe especificar, sem rumo. a dar ã sua vida ("Caminhas sem rumo / por todas as ruas"), indeciso ou mesmo indiferente a qualquer decisão ("não rasgas um livro,/ nem matas
a amante") e sempre sob ameaça de uma auto-aniquilação
("pren-
de a tua mão / antes que ela entorne / a copa de sangue"); é
um homem absolutamente apartado daqueles que, fora, no espaço
exterior-, ainda ensaiam alguma construção ("Teus irmãos constroem / (...) um berço pouco a pouco."); alguém a quem resta
apenas esperar, inerte, que um gesto exterior, partindo de
outros sujeitos, altere alguma coisa. Este último ponto,
151
aliás, tematizado nas estrofes finais, tem um tratamento complexo e ambíguo, numa solução interessante que tensiona os
sentidos do fim do poema e o redimensiona problemáticamente.
Novamente aqui a referência a poetas, livros, poesia - relembre-se aqui.o verso de "Balada": "Só me restam os livros." recorrente nos poemas, elementos positivos no universo negativo em que se encontra submerso o sujeito:
Ate que outros braços
redentoras asas ,.
venham colocar
um lírio muito branco
Na página e no verso
do teu melhor poeta...
0 tom dominantemente- acinzentado do.poema é.afim ao
dos poemas "Canção- do afogado", e ."Balada" : há aí a sensação
de um emparedamento angustiante envolvendo o sujeito, de uma
inércia interior insuperável, de uma impossibilidade de encontrar as razões fundamentais da sua própria situação problemática, de-um mal-estar, que-parece ser essencial ao próprio
homem e do qual não há-escapatória possível - Esta perspectiva - ressaltando aqui ainda outra vez a presença de Drummond encontra larga expressão na poesia drummondiana de raiz - pode-se dizer - "existencialista".
Na linha temática relacionada com a "angústia existencial",
que em Paes, a despeito de poder ser focada como pro-
pensão natural do poeta, se pode avaliar também como influência de Drummond, um poema se destaca entre os jã abordados
deste primeiro
livro pela qualidade das soluções poéticas en-
contradas: "Poema descontínuo".
152
O poema subdivide-se em quatro partes, com certa autonomia entre si, o que lhe confere um caráter acentuadamente
fragmentário, caráter aliás sugerido pelo próprio titulo.
Tem-se ao todo quatro momentos mais ou menos desenvolvidos,
cujo liame encontra-se no tom poético comum entre as partes.
Considerando os aspectos exteriormente formais, não hã nenhuma estrutura rígida comum entre elas: cada parte tem número
de versos e estrofes muito variáveis, os versos são brancos
e polimétricos e o ritmo segue a irregularidade global da composição.
A fragmentariedade, encontrada na estrutura.global do
poema, estende-se também ãs partes. Uma análise mais detalhada da primeira-parte explicita esse caráter:
I
A mão descobre
volumes incompletos.
No vidro encerrada
a violeta não tem
perfume.
Ai, carne e sentimento
.se acreditais
em fútil guarda-chuva
para o vosso medo!
Hã uma goteira
sobre minha poltrona.
0 fragmento compõe-se de onze versos ao todo, nove no
corpo de uma primeira estrofe e dois no de uma segunda e última. . Na primeira, encontramos, ao longo dos versos, três períodos completos, cujas ligações semânticas entre si mostram-se
problemáticas na medida em que os nexos não são explicitados
de forma clara. Na segunda, estrofe, tem-se mais um outro perlo
do, e a relação deste com os anteriores ë igualmente problemática. Os vários períodos encontram-se justapostos, sem que
153
nenhum elo sintático estabeleça uma ligação óbvia entre eles.
Esta relação, na verdade, acaba tendo de ser buscada nas sugestões implicadas nas imagens contidas em cada período. Há
um sensível grau de abertura, portanto, nessa operação, um
grau de uma relativa livre manipulação de sentidos durante a
le i tu ra.
As imagens do primeiro e do segundo períodos
(entre
os cinco primeiros versos) evocam idéias afins: incompletude,
falta, carência - "volumes incompletos", "a violeta não tem
perfume"; isolamento, fechamento, emparedamento - "a violeta"
"no vidro encerrada". Tem-se aí formulado um problema, que
pode ecoar naquele "medo" contido no terceiro período. Diante
da incompletude e do emparedamento ê "fútil" querer encontrar
qualquer espécie de proteção, dc defesa, de reação
(sugerido
pelo levemente irônico "guarda-chuva" do verso oito). Estabelece-se assim um nexo possível entre as partes da estrofe,
que vai agora contrapor-se ãs idéias contidas na segunda. A
imagem do "guarda-chuva" como proteção liga-se com a "goteira"
do primeiro verso da segunda estrofe. 0 "eu" poético, depois
de insinuar-se na interjeição exclamativa e no apelo do terceiro período, manifesta a sua presença agora de maneira bastante explícita no pronome possessivo ("minha cadeira"). As
idéias de emparedamento e de incompletude extraídas das imagens da primeira estrofe constituem um problema que se enconI
tra circunscrito ao séu ser. A imagem - não isenta de uma
certa ironia - da "goteira" dá ainda a toda a situação um
caráter de insistência, incômodo e monotonia.
Voltando-se, a partir destas considerações, para as
demais partes do poema, percebe-se que, por trás da aparente
154
e superficial "incontinuidade", faz-se presente uma continuidade interior e profunda. Imagens evocando idéias como as
de isolamento, incompletude, angústia, exaustão, nãusea,
cansaço, apatia, etc., distribuem-se por toda a composição:
"a lei e o trilho levaram a dança"; "um cigarro triste me
brotou dos dedos"; "agora sem crença, procuro
(...)"; "jardim
inútil"; "órbitas vazias"; "rosas que nascem de gravatas rotas"; "a angústia do 'blues'"; "as -rosas e a música que bóiam
no vômito dos adolescentes", etc.
Dentro de todo este clima emocional tremendamente
ne-
gativo-, vem a indagação final, no curioso último fragmento,
sem que qualquer resposta seja por ele.sugerida:
IV
Quem bate na porta?
Corvo de verdade,
quinta sinfonia
ou apenas vento?
Ainda um poema não abordado entre os poemas deste primeiro livro precisa ser comentado: "0 engenheiro". Pelo título e por um possível caráter metalingüístico - a despeito das
diferenças poéticas existentes entre ambos e de o paralelo ter
sido ou não intencional por parte de Paes - o poema pode ser
aproximado do famoso "O engenheiro", de João Cabral de Melo
Neto, publicado em livro homônimo em 1945.
155
O ENGENHEIRO
O homem trabalha
entre a rosa e o trânsito.
Ondas contínuas no seu dorso
de pedra e nuvem.
Martelos.
No papel intacto- hã linhas,
fundamentos de aurora, estrutura
de um mundo pressentido, linhas.
As rosas se dividem
por canteiros iguais
e um pássaro
pousou no arranha-céu.
Quando o engenheiro terminar
o sentimento e" a planta,
mãos frescas como folhas virão sobre o meu corpo.
0 poema é composto por três estrofes, a primeira delas
com oito versos e. as outras duas com: quatro- versosr cada uma.
Não há rimas e os versos têm metros variados, de duas até nove
sílabas. A primeira estrofe é a que apresenta a maior incidência de metros distintos. Acompanhando-se a seqüência dos versos, tem-se: pentassílabo, pentassílabo, octossílabo, tetrassílabo, dissílabo, heptassílabo, eneassílabo e octossílabo.
As únicas repetições do número de sílabas se dão entre os versos primeiro e segundo, e terceiro e oitavo. Nas outras duas
estrofes, no entanto, predominam os hexassílabos. Na segunda,
três hexassílabos para um dissílabo, e, na terceira, três
hexassílabos para um octossílabo.
A grande irregularidade métrica observada na primeira
estrofe seguida por uma maior regularidade nas estrofes seguintes pode encontrar um esboço de explicação quando se atenta para o conteúdo das estrofes. Na primeira está presente a
idéia de projeto ("no papel intacto hã linhas", "fundamentos
156
de aurora", "estrutura de um mundo pressentido") e de trabalho
("o homem trabalha", "martelos") e movimento ("ondas contínuas
no seu dorso") , também implícito na idéia de. trabalho. Está-se
portanto, diante de algo em processo, algo que se faz, se cons
trõi a partir de uma idéia de origem. A incompletude aí implicada, a idéia de uma construção ainda inacabada, está presente'
na própria irregularidade métrica da estrofe. Falta ainda uma
maior harmonia apreensível a partir da completude do todo, que
a própria estruturação poética deixa evidente.. Também a irregularidade sintática - segmentos extensos
(sexto, sétimo e
oitavo verso, por exemplo) contrastando com segmentos brevíssimos (quinto verso), períodos completos com sujeito/predicado (versos um - e- dois, por exemplo) contrastando com períodos
elípticos
(versos três e quatro) —, aliada ãs .presenças de um
"enjambement" bastante tenso como: o .do sétimo para o oitavo,
verso, com a não coincidência entre pausa sintática e a pausa
de fim de verso, e, em contraste, de pausas sintáticas no interior dos versos sétimo e oitavo - contribui para acentuar a
irregularidade, o desequilíbrio, a desarmonia, o movimento,
a incompletude presentes, como se está querendo ver, na "obra"
ainda em andamento.
Na segunda e terceira estrofes pode-se verificar
atenuação destes contrastes formais. Um padrão métrico
predo-
mina - o hexassílabo -, e já não há mais contrastes sintáticos
daquela qualidade. Na segunda
tem-se um único período com
duas orações coordenadas; na terceira,
também um único perío-
do, agora com orações ligadas por subordinação. A atenuação
dos contrastes presentifica um maior equilíbrio, como se a
14
"obra" estivesse chegando ao seu termo. Na segunda
3
estrofe,
os versos "As rosas se dividem / por canteiros iguais" ressalta esta idéia de harmonia e completude, rompida brevemente
pela presença do "pássaro" (justamente no. verso que constitui
exceção métrica nesta estrofe), mas retomada no quarto verso.
Na terceira estrofe, a perspectiva
do fim da construção
("Quando
o engenheiro terminar / o sentimento e a planta") aponta para
igual direção. Os três últimos versos têm um mesmo metro; os
dois últimos, ainda um mesmo padrão de acentuação. O conteúdo
dos versos conclusivos "mãos frescas como folhas / virão sobre
o meu corpo" ressalta a idéia de.apaziguamento final, portanto,
de encerramento harmonioso.
Uma aproximação com o poema "0 engenheiro", de João
Cabral de Melo Neto, pode ser tentada. Nesse seu famoso poema,
projetando-se na figura do engenheiro, Cabral delineia o seu
ideal poético: a produção de uma poesia clara, precisa, racionalmente projetada, calculada, que, em suas ressonâncias éticas, é.também expressão de um certo ideal de raiz iluminista - "0 lápis, o esquadro, o papel; / o desenho, o projeto, o
número: / o engenheiro pensa o mundo justo,/mundo que nenhum
véu encobre." 7
(o adjetivo "justo" pode ter aí um duplo senti-
do, de. "justeza" e de "justiça") .
A idéia de projeto e cálculo surge também em "0 engenheiro" de Paes: "No papel intacto há linhas, / fundamentos de
aurora, estrutura / de um mundo pressentido.". E ainda: "As
rosas se dividem / por canteiros iguais (...)". Porém, a figura
do engenheiro, diferentemente do engenheiro de Cabral, recebe uma
caracterização que revela uma certa tensão problemática: "0
homem trabalha / entre a rosa e o trânsito"." ; "Ondas contínuas
158
no seu dorso / de pedra e nuvem.". A utilização de imagens que
remetem a campos semânticos em oposição — "rosa" x "trânsito",
"pedra" x "nuvem" - caracterizadoras, respectivamente, do ambiente onde trabalha e do próprio engenheiro, escapa ã claridade inequívoca sempre presente nas imagens definidoras da
poética de Cabral, para sugerir uma tensão entre claro e escuro, tensão de raiz mais drummondiana. Na estrofe final, insinua-se, ainda, uma dupla atividade implicada no trabalho do.
engenheiro: "terminar o sentimento e a planta". O "engenheiro"
de Paes t r a b a l h a
como uira dimensão altamente subjetiva com
"sentimento", ausente, a nível de proposição, do trabalho racional do "engenheiro" -de _-: Cab ral... No - final da execução do trabalho, uma sensação- de alívio-, satisfação-, é entrevista pelo
:
"eu" poético"" ( "mãos frescas como- folhas / virão sobre meu corpo") , um "eu" explicitado muito
pouco cabralinamente neste
poema. Ainda a irregularidade da composição - versos polimêtricos e estrofes de número de versos variáveis - acentua a
distância em relação â poesia"" do mestre pernambucano.
3.1.3
Conclusão
0 Aluno, primeiro livro de poesia
de José Paulo Paes,
traz explicitado, jã em seu próprio título, muito do espírito
que o parece animar. Ao longo de seus nove poemas, observa-se
um poeta confessadamente iniciante, exercitando-se em diferentes direções da poesia, ora enveredando por algumas das formas
mais tradicionais do fazer literário, ora optando pela maior
liberdade formal das composições em versos livres, que o legado
recente do Modernismo brasileiro havia tornado corrente. Ao
longo de todo o livro, de forma mais ou menos explícita, o
159
poeta manifesta uma aguda consciência desta sua condição de
"aluno" de poesia.
As duas epígrafes que abrem o livro, fragmentos de
Bocage e Camões, são indícios desse carãter. Em primeiro lugar,
são os dois autores lusos dois clássicos insuspeitados da tradição da poesia em língua portuguesa. Recolher em sua produção
versos para usá-los em epígrafe ê reverenciá-los de forma bastante óbvia. Assim, as homenagens feitas ao longo do livro restritamente a poetas importantes da modernidade literária brasileira e ocidental ampliam-se aqui. São também "mestres" de
poesia para o "aluno" Paes dois nomes colhidos ao rol dos mais
característicos representantes do espírito clássico da tradição literária. Em -segundo, lugar (e sobretudo) , o conteúdo das
epígrafes é revelador. "Incultas produções., da mocidade / Exponho a vossos olhos, oh leitores!" (Bocage, "Soneto I")- - remete
ao carãter juvenil, inicial, discente, imaturo (e aqui mais
retoricamente do que de fato) do primeiro trabalho (em 1947,
Paes tinha 21 anos de idade) . 0 lirismo subjetivo que perpassa
os poemas do livro, o dilaceramento interior a que se encontra
»
subordinado o sujeito poético e que.lhe escapa ao controle
ficam por conta da segunda epígrafe: "Ah, vãs memórias, onde
me levais /O débil coração, que inda não posso / Domar bem
este vão desejo vosso?" (Camões:, "Canção XIII") . As epígrafes
seguem os poemas, e são eles que acabam orientando mais claramente os sentidos nelas latentes.
No soneto "0 aluno", Paes revela uma disposição bastante
amorosa de acolhimento e abertura frente a poesia como um todo, que o verso inicial do poema, aliás, deixa transparecer
muito bem: "São meus todos os versos já cantados". Ainda neste
160
poema de caráter metalingiiístico, a poesia é vista como meio
de resgate da identidade do sujeito: "Intacto me revejo nos
mil lados de um só poema". Alguns "mestres" são reverenciados
com destaque. Paes cita diretamente certos autores, entre estrangeiros e nacionais, de grande relevo dentro.da poesia moderna: Rimbaud, Bandeira, Drummond e Neruda.
A referência a autores espraia-se pelos poemas dos livros . Era "Muriliana", procedimentos composicionais característicos de Murilo Mendes são utilizados. De forma semelhante,
Carlos Drummond de Andrade surge atualizado em "Drummondiana".
Outro poeta fundamental para a poesia brasileira moderna, João
Cabral de Melo Neto, aparece inevitavelmente em perspectiva
no poema de Paes intitulado "O engenheiro".
Drummond,- porém-,- constitui-.-a. inf luência mais.- marcante
na produção inicial de Paes. Além da referência explícita em
"Drummondiana", sua poesia ecoa de forma clara em "O homem no
quarto", poema em que o poeta se dirige a uma segunda pessoa
que funciona como uma espécie de "alter ego" seu, como no
"José", de Drummond, e em "O poeta e seu mestre", onde o mesmo
Chaplin do drummondiano "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin"
é resgatado. De forma menos óbvia, Drummond está presente também em "Poema descontínuo", poema em que se percebe a presença
de uma certa temática da angústica, do mal-estar, do emparedamento do sujeito, de raiz drummondiana e existencialista.
Esta temática, aliás, ê muito forte entre, os poemas do
livro: além deste "Poema descontínuo", "Canção do afogado",
"Balada" e o já
citado "O homem no quarto" enquadram-se aí.
Esta insistência temática, além da destacada influência de
Drummond, sintoniza-se com o ambiente espiritual dominante
161
na época em que a poesia de 0 aluno vem a público, comentado
com precisão por PAES no seu depoimento:
A p e s a r do o t i m i s m o d o i m e d i a t o
pós-guerra, ( . . . )
uma a n g ú s t i a i n d e f i n i d a n o s
r o f a p o r d e n t r o , r e f l e t i n d o - s e no que
t e n t á v a m o s e s c r e v e r . Uma a n g ú s t i a
hist ó r i c a que e n c o n t r o u sua e x p r e s s ã o
fil o s ó f i c a no e x i s t e n c i a l i s m o ,
particularm e n t e o de S a r t r e , p e l o q u a l
fomos
todos i n f l u e n c i a d o s ,
(...)
a p e s a r de n o s s a s t i n t a s de. m a r x i s m o e d o n o s s o c o m 8
promet i mentó
politico.
Esmiuçando mais detalhadamente os móveis dessa angústia,
Alfredo BOSI, em ensaio sobre a poesia de José Paulo Paes - "O
livro do alquimista" -, vai dizer: "José Paulo Paes entrava na
poesia contemporânea pela estrada real da angústia, do mal-estar que ö escritor sensívei e-diferenciado sente e ressente ao
tomar consciência da sua posição de excluído, de "inútil", de
esquerdo
(...)."9
0 carãter de aprendizagem do "poeta-aluno", evidente
nas citações a autores e no aproveitamento de procedimentos,
motivos e temas seus, também está presente nos exercícios com
formas da tradição da poesia, como a canção, em "Canção do
afogado", a balada, em "Balada", e o soneto, em "0 aluno".
A poesia, de Jósé Paulo Paes, neste seu primeiro livro,
revela-se, portanto, uma poesia em diálogo com a tradição da
literatura. Não se trata, porém, tão somente daquele diálogo
óbvio que todo o texto literário necessariamente mantém com
textos que o. antecede ram no tempo ou que lhe são contemporâneos, mas de um diálogo que se revela consciente da sua própria natureza., e que acaba trazendo essa "consciência" para
dentro do próprio texto. Se este diálogo, nas composições
162
poéticas deste primeiro livro, se traduz, muitas vezes, numa
ausência de maior originalidade poética, revela, no entanto,
um fazer literário que se pauta pela produção de poetas e por
vertentes poéticas de densa significação para o desenvolvimento da própria poesia. Há aí, por trás da imaturidade de um
autor estreante em busca de uma dicção própria em meio ãs de
outros poetas, uma maturidade evidente no conhecimento da tradição literária. Por trás do jovem poeta vislumbra-se um leitor atento e, por que não, um crítico de poesia. Um verso como
"Só me restam os livros", juntamente a tantas referências a
poetas e ã. poesia feitas ao longo dos poemas, aponta nessa
direção.
Comentando este seu primeiro trabalho-no depoimento
acerca-da sua trajetória de escritor,- Paes - traz .^informações
sugestivas- e reveladoras— a respeito da sua recepção. 0 livro
foi elogiado por Sérgio Milliet, na ocasião da sua publicação,
em crítica veiculada em "0 Estado de S. Paulo". Um fragmento
desta crítica de Milliet é transcrito.por Paes no depoimento:
"A originalidade dessa poesia- de angústia,: de inquietação,
está no contraste de sua forma muito pura, muito sóbria, que
assimilou lições nacionais e estrangeiras sem perda para o
poeta de uma personalidade bem distinta da de seus mestres." 10
Nesta crítica marcadamente positiva, o carãter de aprendizagem poética presente no livro não passou.desapercebido. No
entanto, Paes faz referência ainda a uma carta recebida de
Drummond também na ocasião, portadora de uma avaliação sensivelmente distinta: "Embora me reconhecesse algum desembaraço
no manejo do verso livre," - confessa Paes - "Drummond não
deixava de me censurar por eu estar me procurando através dos
163
outros, quando era dentro de mim mesmo que devia me encontrar. " 1 1 Esta procura "através dos outros", e entre todos sobretudo através do próprio Drummond - provavelmente um dos móveis da redação da carta -, ë reveladora da situação inicial
do poeta. A observação insinua uma sutil acusação lançada ao estreante, que ainda precisaria, para atingir sua maturidade,
descobrir dicção poética própria e original. 0 poeta estaria
ainda na condição de aprendiz, excessivamente preso â influência dos mestres eleitos.
As duas críticas dimensionam perspectivas distintas a
partir das quais a poesia.de Paes pode ser avaliada. De um lado, pode-se perceber um poeta consciente da sua condição de
"aluno", seguindo os modelos seguros de seus mestres e da tradição, da. poesia, procurando, -através do aprendizado que isto
lhe possibilita, atingir uma dicção própria. Neste sentido,
surge resgatado por Paes um certo ideal de imitação dos "mestres" eleitos e de reverência ã tradição, postura de caráter
que se pode chamar "clássico", muito distante da iconoclastia
característica, de muitos poetas modernos, e próxima da postura
dos poetas da Geração de 45. Curiosamente, porém, os "mestres"
encontram-se todos circunscritos aos limites da poesia moderna. De outro, tem-se, no entanto, um poeta que se mostra ainda
pouco maduro no exercício de uma poesia sua, original, inovadora, e que, por.isso, na tentativa de emular com os poetas
que admira,- acaba ficando aquém dos seus modelos.
164
3.2
3.2.1
CÚMPLICES
(1951)
Introdução
0 ambiente literário brasileiro em que vem a público
Cúmplices, de 1951, segundo volume de poesias de José Paulo
Paes, é basicamente o mesmo de 1947, ano em que havia sido
publicado o livro de estréia O.aluno. Está-se ainda dentro do
âmbito de
abrangência daquele momento da poesia brasileira
que ficou conhecido pela designação Geração de 45. As chamadas
vanguardas literárias só iriam começar a atuar alguns anos
mais tarde, mais para meados da década de 50. Por enquanto,
estão valendo ainda, no que diz -respeito ã poesia brasileira
vista a p a r t i r d e perspectiva generalizante,
aquelas.mesmas
observações- feitas introdutoriamente ã análise do livro de
estréia de Paes.
3.2.2
Análise
Da mesma forma que no livro de estréia O aluno, em
Cúmplices encontram-se, lado a lado, poemas de corte mais tradicional, atualizando
determinadas formas líricas como o soneto,
o madrigal, a canção, a ode e o epigrama; poemas sem obediência a uma forma tradicional específica, porém marcados por
uma dicção que se pode dizer tradicionalizante; e alguns poucos
poemas em versos livres e sem forma pré-determinada, mais próximos do fazer, literário modernista.
Um. soneto, dentro dos moldes do soneto clássico italiano, semelhantemente a "O aluno", poema final dò. livro anterior,
165
abre este novo livro de José Paulo Paes:
SONETO QUIXOTESCO
Uma espada qualquer, de qualquer aço,
Um cavalo de flanco palpitante,
Fortuna incerta, divagar constante,
Sereno o rosto, sempre altivo o braço.
No. coração, em mui secreto espaço,
A figura de Dora, tão distante,
Mas tão perto, contudo, e tão reinante,
Que a ela se dedique o menor passo.
Desfeito o agravo,, conjurado o mal,
Novo caminho, que neste exercício
Nenhum descanso cabe. E que afinal,
Por luta valerosa ou alto feito,
Eu ganhe reino e Dora, mas no peito
Morem saudades do passado ofício.
O soneto--encontra-se^composto dentro - dos-moldes do
soneto d tali ano-tradicional:, quatroze.versos-decas silábicos ,
distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Os decassílabos são, no que diz respeito aos acentos mais evidentes,
basicamente heróicos
(oito ao todo) e sãficos (estes em nú-
mero de cinco) , com exceção do segundo verso., do primeiro terceto, um decassílabo provençal
(acentuação na quarta, sétima
e décima sílabas), decassílabo menos comum na tradição do
soneto em língua portuguesa: "Novo caminho, que neste exercício" ( / - - / - - /
—
/ ) • O padrão rímico segue a estru-
tura abba, abba, cdc, eed. As rimas alternam sonoridades marcadamente distintas.
Seria produtivo explorar aqui um pouco mais detalhadamente as sonoridades do poema, dada a sua riqueza característica. Nos quartetos, a rima de tipo "a" ("aço"/"braço"/
"espaço"/"passo"), com tônica na vogai oral aberta seguida
de consoante sibilante surda, contrasta com a vogai nasal
166
mais fechada seguida de consoante oclusiva da rima de tipo
"b" ("palpitante"/"constante"/"distante"/"reinante").
Nos
tercetos, novos contrastes podem ser observados: no primeiro,
tem-se um ditongo oral decrescente partindo de uma vogai média aberta para uma semivogal posterior fechada - rima de
tipo "c" ("mal"/"afinal") - que se contrapõe ã rima de tipo
"d" ("exerclcio"/"ofleio"), com tônica na vogai oral anterior
fechada, seguida por consoante sibilante surda e ditongo. oral
crescente partindo de semivogal igualmente anterior fechada
para uma vogai posterior fechada; no segundo terceto, esta
rima de tipo "d" contrapõe-se agora à de tipo "e" ("feito"/
"peito"), com tônica no ditongo. o ral--decres.cente com. vogai
anterior fechada e. semivogal. anterior-ainda, mais fechada, ditongo seguido—de consoante oclusiva-surda. Percebe-se-um mesmo contraste, portanto, que se repete nas duas primeiras estrofes e na última no que diz respeito aos sons consonantais:
a sibilante surda alternando-se com a oclusiva surda. Quanto
aos sons vocálicos, tem-se, nos quartetos, basicamente a alternância entre sons vocálicos mais abertos e mais fechados.
Contrastes sonoros, como os observados na composição
das rimas, estão presentes ao longo de todo o soneto. Atentando-se primeiramente para os sons vocálicos, percebe-se que
as modulações são bastante intensas. Nos versos três e quatro
da primeira estrofe, que podem ser tomados como um exemplo
- um segmento relativamente curto -, observa-se uma gama bastante variada de padrões: "Fortuna incerta, divagar constante , / Sereno o rosto, sempre altivo o braço.". Tem-se aí
i
vogais orais - "divagar", "rosto", por exemplo - e nasais "fortuna" (por contaminação da oclusiva línguo-dental nasal
167
/n/) , "incerta", "sempre " ; vogais mais abertas - "incerta",
"divagar" - e mais fechadas "sereno", "rosto"; vogais anteriores - "sereno", "altivo" -, médias - "divagar", "constante" - e posteriores - "fortuna", "braço". Na disposição dos
sons vocálicos ao longo destes dois versos, observa-se uma
flagrante alternância de sons, também apreensível nos demais
versos. Uma transcrição fonética aproximada dos padrões vocá
lieos revela melhor essa ondulação que pode ser observada:
For-tun-na in-rcer-ta, di-va- gar cons-tan-te,
/o/ /ü/ /ay/ /é/ /a/ /!/ /a/ /á/ /õ/ /ã/ /!/
.
Se-ren-no-o ros-to, sem-pre al-ti-vo o bra-ço.
/e/Vê/- /u/ /o/ /u/- /ê/
/yaw/ /i/ /u/ /ã/ /u/
Da mesma forma que os sons.vocálicos, os sons consonantais são também muito variados, e a sua alternância é também evocadora de uma mesma sensação de movimento constante.
Quase todos os sons consonantais mais característicos da língua portuguesa - considerando-se, como no caso dos; .sons vocálicos, a partir de uma fonética articulatoria - encontram-se
distribuídos no curto espaço deste soneto. Alguns exemplos:
/p/ "espada", /b/ "braço", /m/ "mui", /t/ "fortuna", /tj/
"altivo",./d/ "Dora", /dj" "divagar", /n/ "sereno", /k/ "cora
ção", /g/ /figura", /f/ "desfeito", /v/ "altivo", /s/ "desean
so", /z/ "exercício", /j/ "qonjura<±>", /l/
"luta", /nhi/ "ganhe
/r/ "valerosa", /R/ "reino" - exceções: /lh/ /ç/. A título
de exemplo, observem-se os versos um e dois do primeiro terceto: "Desfeito o agravo, conjurado o mal, / Novo caminho,
14 3
que neste exercício / (...)". São muito os diferentes sons
consonantais contidos neste breve segmento - podem-se distinguir pelo menos treze sons fundamentais diferentes -, e pouco
repetidos. Num único fragmento, por exemplo, "desfeito o agravo, conjurado" observam-se uma série de alternâncias e oposições de tipo surdo x sonoro: /t/ /d/ "desfeito", /f/ /v/ "desfeito o agravo", /k/ /g/ "agravo, conjurado". Este tipo de
consideração pode ser estendido a segmentos outros do mesmo
poema, chegando-se a conclusões semelhantes quanto ã sua riqueza sonora. As modulações variadas e os contrastes mais ou
menos marcantes imprimem ao poema uma dinâmica que chama a
atenção.
Esta dinâmica constatada no âmbito das sonoridades- pode
- ser—aproximada - do tom- dominante: que perpassa o próprio, texto.
Percebe-se na voz do poeta todo um carãter positivo e afirma^tivo, jã bastante distante daquele tom de angústia, náusea,
emparedamento e desespero que marcava boa parte dos poemas
de. 0 aluno. Lá, em poemas, como - "Canção do afogado" e "Balada",
procurou-se aproximar o tom menor característico destes textos
da lamentosa litania observada nas reiterações de padrões métricos curtos (predominantemente redondilhas menores) e de
acentuação. Há aqui, porém, algo de exultante, de radiante na
dinâmica dos sons que se casa bastante bem com a imagem do
cavaleiro andante, belicoso e apaixonado,.evocada pelo poeta
na sua autocaracterização. A figura quixotesca marchando sobre o "cavalo de flanco palpitante" em direção ã conquista
do "réino e Dora" exige uma sonoridade mais festiva, de maior
exaltação. A dinâmica apontada nos contrastes dos sons, na
riqueza das variações, evocadora de toda uma sensação de
169
movimento, sintoniza-se bem com a dinâmica da própria cavalgada deste
"Quixote"
Numa análise mais detalhada do desenvolvimento interior do soneto, pode-se observar melhor a caracterização do
sujeito poético aí intentada.
No primeiro quarteto, através da coordenação de curtos
segmentos sintáticos sem verbo, observa-se um primeiro detalhamento da figura que está sendo evocada. Alguns elementos
mais objetivamente apreensíveis, em que a percepção visual
tem peso dominante, porém marcados, em maior ou menor grau,
por uma perspectiva acentuadamente avaliativa que ressalta
os traços caracterizado res da. situação emocional do sujeito
são apresentados: "uma espada-qualquer, de qualquer aço",
"um cavalo-de.flaneo palpitante ",,.. "sereno o. rosto", "sempre
altivo o braço". Na apresentação de outros elementos
caracter
rizadores, a objetividade sai de cena para dar espaço a um
delineamento mais exclusivamente interior do sujeito: "fortuna incerta", "divagar constante".
Algumas observações interessantes podem ser feitas a
partir da consideração de certas tensões configuradas no
acúmulo destes vários elementos. No primeiro verso, chama a
atenção a.insistência no uso do adjetivo "qualquer", aplicado primeiramente a "espada" e depois também a "aço", o material de que é feita essa "espada". 0 que se observa aí é uma
certa depreciação do valor substantivo desse objeto
"espada",
como se sua importância estivesse restrita ao que ele possa
sugerir de ornamental ou simbólico. Na aproximação com a
expressão "sempre altivo o braço", percebe-se que a valorização vai recair justamente no "braço" e não na "espada
170
qualquer", já que aquele ê por si só "altivo", independente
da qualidade da "espada". Valoriza-se, portanto, o sujeito
no que ele possa ter de essencial e não os aspectos mais
eminentemente circunstanciais que o envolvem. Outra tensão
ainda pode ser observada na aproximação de expressões como
"fortuna incerta" e "divagar constante" a "sereno o rosto".
A idéia de "incerteza" ligada ao destino do sujeito poderia
gerar nesse mesmo sujeito uma sensação próxima àquela de
angústia e sofrimento observada em muitos, dos poemas de O
aluno. Aqui, porém, a esta idéia contrapõe-se a "serenidade"
do sujeito. Novamente, valoriza-se o sujeito em seus.aspectos
essenciais em contraponto a outros e que lhe são mais exteriores que lhe poderiam ser adversos. A caracterização desta
figura: quixotesca-nesta..primeira, estrofe é, portanto,- bastante positiva.
Na segunda estrofe, após esta caracterização objetiva/subjetiva do sujeito poético na condição de "cavaleiro
andante", surge evocada afigura da amada - "Dora". Se o poeta
aproxima sua pessoa da do Quixote, sua amada automática e
inevitavelmente acaba sendo aproximada da de Dulcinéia de
Toboso. A maneira como Dora surge evocada não esconde uma
perspectiva que, em termos de uma apreensão lírica da figura
feminina, tem muito de tradicionalizante. O liame entre ela
e o poeta se dã exclusivamente via sentimentos - "coração".
É no "coração", num espaço exclusivo e fechado do sujeito "em mui secreto espaço" - que ela se encontra. Dora é ainda
uma figura, "tão distante", expressão que denuncia a tradicional idealização, do feminino muito comum na lírica amorosa.
A restrição deste sentido insinuada a seguir pela oração
171
introduzida pela conjunção adversativa "mas" não interfere
essencialmente nesta perspectiva. 0 "perto", oposto ao "distante" dos versos anteriores, não dã concreção â figura feminina. Ela estã "perto" e "reinante" por encontrar-se presente
exclusivamente no sentimento do sujeito.
No primeiro quarteto, o sujeito poético é apresentado
como um belicoso e quixotesco cavaleiro andante. No segundo,
surge a figura feminina dé Dora, amada do cavaleiro, pintada
com cores que fazem dela figura próxima das amadas tradicionais. Nos dois. tercetos seguintes, este quadro inicialmente
apresentado é desenvolvido.
No primeiro terceto, as potencialidades guerreiras
implícitas na figura-delineada no~ primeiro^ quarteto ( "sempre
altivo-ò... braço " ) se realizam: "desfeito- o agravo" ,.-"conjurado
o mal"v Após estes feitos, o cavaleiro toma= "novo caminho"
("novo caminho, que neste exercício nenhum descanso cabe"),
seguindo, portanto, a idéia inicial da presença de uma "fortuna incerta", de um "divagar constante" a distingui-lo. No segundo terceto,
cuja ligação com este primeiro
acentuada
pelo desenvolvimento s-intãtico iniciado ao final desta estrofe, interrompido pelo espaçamento entre as estrofes, e continuado na estrofe a seguir, surge com destaque a idéia do duplo
prêmio por suas realizações ("Por luta valerosa ou alto feito / E u ganho reino e Dora, (...)"). No entanto, a este que
seria o ideal característico do cavaleiro andante - bater-se
com seus inimigos, em defesa de uma certa justiça, e insinuar-se, assim, através de seus feitos, a uma suposta amada acrescenta-se novo dado: ao desejo das conquistas e da obtenção
do amor é necessário somar-se o desejo de ter sempre consigo
172
a memória dessas realizações: "que (...) 110 peito morem saudades do passado ofício". Valoriza-se, assim, não exclusivamente o objetivo atingido, mas todo o processo que antecede o
atingimento do objetivo. Verifica-se, portanto, para além de
uma perspectiva que poderia revelar-se restritamente saudosista, a valorização daquilo que, num tempo passado, constituiu
um "fazer-se" - o "passado ofício".
Nesta retomada de uma personagem da tradição literária, novamente se pode observar aqui aquele "poeta dos livros",
de que se falou na abordagem de 0 aluno por ocasião da consideração do verso "Só me restam os livros.". É sugestivo, qua,
ao procurar caracterizar-se, o- poeta o faça através de um
"outro" jã conhecido, e pertencente ao rol dos arquétipos literários. Pode-se ver nisto um paralelo com a assunção da identidade
do "aluno de poesia", que através., da palavra dos "mes-
tres" - portando de um "outro" também - busca sua própria palavra.
Ao assumir a identidade do Quixote, ou melhor — salientarído-se aqui o adjetivo "quixotesco" do título -, ao assumir
a identidade de uma figura que se aproxima do Quixote, o poeta,
nesta sua autocaracterização, situa-se numa posição problemática: ao resgatar, o Quixote, com toda a inevitável carga de
pateticidade e melancolia que cerca este visionário predestinado ao fracasso, resgata-se a reboque também a perspectiva
crítica, irônica, distanciada de Cervantes, que pode, talvez,
ser lida no avesso do poema. Assim, identificando-se com o
idealizado cavaleiro andante em constante pugna pelo "Reino e
Dora" e, conquistados estes, saudoso da antiga luta, Paes - nos
labirintos semânticos que vão surgindo aí - identifica-se com
173
perspectiva que traz consigo sua própria antítese, sua própria negação. Que retrato do poeta fica valendo afinal? Surgem aqui tensões indissolúveis que impedem uma leitura de
carãter fechadamente conclusivo para o poema em foco.
Um segundo poema de Cúmplices dentro dos moldes de uma
forma lírica tradicional, e que pode ser visto em contraste
com o "Soneto quixotesco", é "Ode pacífica":
ODE PACÍFICA
Levei comigo um punhal,
Com mãos firmes, cautelosas,
Como se leva um segredo,
Como se leva' uma rosa.
Assim armado, enfrentei
As. emboscadas e os crimes .
Nos corredores do ódio,
Combati,, gritei, perdi-me.
0- punhal me dominava,
Fascinava-me a revolta.
(Vivemos presos ã chave
Qué em sigilo nos solta).
Mas um dia uma verdade
Que nega todo o punhal,
Pôs brisas na minha face,
Furtou-me ãs vozes do mal.
Agora, Dora, a teu lado,
Estou sempre a recompor
Essa verdade tão simples,
De que me torno senhor.
Simples verdade de amor.
A "ode"
(do grego "odes", 'canto', pelo latim "ode")
tem origem remota na Grécia Antiga e originariamente designava uma espécie de composição poética destinada ao canto e
acompanhamento instrumental, semelhantemente ã "canção". Ao
L
longo do seu desenvolvimento histórico, a ode se transforma
muito no que diz respeito aos temas e formas. 0 crítico
Massaud M0ISËS, em sumário quadro didático classificatório 12 ,
174
faz algumas distinções entre os tipos mais característicos de
odes. Quanto ã matéria tratada, podem-se arrolar: "ode heróica" ou "pindárica", cujo modelo de realização encontra-se no
poeta clássico grego Píndaro, composição em que se procura
louvar aqueles aspectos ligados ã vida heróica - vitórias em
guerras, jogos esportivos, grandes realizações individuais e
coletivas; "ode filosófica e moral" ou "sãfica", em que o
poeta clássico latino H o r ã c i o s e g u i n d o as pegadas dos gregos
Safo e Alceu, é representante característico; a "ode amorosa",
"pastoril", "báquica" ou "anacreóntica", que encontra na poesia
mais remota grega de poetas como Safo, Alceu e Anacreonte os
representantes paradigmáticos; e ainda a "ode sacra", de temática religiosa-, surgida mais - recentemente a partir da Idade
Média. Quando ã forma, ainda, segundo o crítico, podem-se distinguir três tipos de ode : a "ode tripartite" ou "pindárica",
forma característica da "ode heróica" ou "pindárica", seguindo
uma estruturação em três partes - com um encômio inicial e final ãs celebridades, e uma narração central de episódios -, com
estâncias apresentando número variado de segmentos e versos;
a "ode homostrõfica" ou "horaciana", composta por uma série
de estâncias iguais - e entre as várias possibilidades ressaltando-se as estrofes de quatro versos, com os dois ou três
primeiros versos com metro e acentuação sempre iguais e o(s)
seguinte(s) com alguma espécie de variação; e "ode irregular"
ou "livre", sem qualquer forma específica, como as observadas
entre os poetas modernos - por exemplo, :um Fernando Pessoa da
"Ode trinfal" e da "Ode marítima". Aqui, mais importante do
que considerar tais. classificações apresentadas pelo crítico,
é de ressaltar, de forma mais produtiva a variedade temático-
175
-formal no enquadramento de uma forma lírica como a "ode"; por
trás dessa variedade, porém, surge, enquanto caracterizador
do "espírito" que preenche a forma "ode" enquanto possibilidade do lírico, um talhe dominante: o "tema" e o "'tonus' elevado", a "atmosfera grave, solene, próxima do drama e da poesia
épica". 13
Do ponto de vista formal, "Ode pacífica pode ser aproximada daquele tipo de ode comentada composta por estâncias
iguais, especificamente por estâncias com quatro versos: a
"ode homostrõfica" ou "horaciana". Pela matéria versada, uma
aproximação possível pode ser tentada com a "ode filosófica"
ou " m o r a l d a d o o carãter de .reflexão que a distingue, e também com a "ode - amorosa", visto encaminhar-se toda a matéria
cantada em direção-a uma; louvação. final do amor. Porém, curiosa aproximação também pode ser feita quando se tem em perspectiva a "ode heróica" ou "pindárica"; a ode de Paes, a partir
já do próprio título, seria uma espécie de antítese desse tipo
de ode, ao negar aquilo que há de guerreiro, combativo, violento - aspectos postos em evidência na louvação dos heróis e afirmar o amor enquanto um supremo valor.
"Ode pacífica" é composta de cinco estâncias de quatro
versos e um verso final conclusivo. Observa-se.a presença de
rimas entre os versos dois e quatro de cada estrofe, rima que
se estende, na última estrofe, também ao verso final: estrofe
1 - "cautelosas"/"rosas"; estrofe 2 - "crimes"/"perdi-me";
estrofe 3 - "revolta"/"solta"; estrofe 4 - "punhal"/"mal";
estrofe 5 e verso final - "recorapor"/"senhor"/"amor". Nás
t
estâncias 1 e 2 as rimas são imperfeitas; o primeiro elemento
do par tem um som consonantal
(um "s") a mais. Ê de se destacar,
176
quanto ãs rimas, a presença bastante intensa de rimas ricas,
classificadas enquanto tal de um ponto de vista gramatical e
não fónico. Com exceção da estrofe 4, em todas as outras
tem-se a presença de rima rica: estrofe 1 - adjetivo/substantivo; estrofe 2 - substantivo/verbo-pronome
(e é de se desta- -
car o achado - "crimes"/"perdi-me"); estrofe 3 - substantivo/verbo; estrofe 5 - verbo/substantivo. Este tipo de cuidado
com as rimas (a preferência por rimas ricas em detrimento das
mais facilmente achãveis rimas pobres) revela um apuro artesanal bastante aguçado por parte do poeta.
Quanto ao metro., os versos são todos
heptassilábicos
com certo problema no que diz respeito ao verso quarto da terceira -estância ( "que- em sigilo nos-solta. ) " ,.. cuja escansão
habitual aponta para um hexassílabo, mas que uma leitura que
evite a crase entre os "e" de--"que" e "em" pode também comportar um heptassí labo.. Quanto ã acentuação, é ela bastante variada; não se observam mais de dois versos seguidos com um mesmo
padrão de acentuação silábica, o que dinamiza o. movimento sonoro dos versos.
Do ponto de vista da estruturação conceptual dó poema,
observa-se que ele ë composto a partir de um esquema "tese"
x "antítese". Nas três primeiras estâncias, o poeta procura
caracterizar uma determinada situação inicial que deverá ser
negada, contraditada, posta em xeque nas estâncias seguintes,
a partir de uma espécie de "revelação", que só no verso conclusivo - um tipo de "fecho de ouro" dado o seu. caráter de
achado e de síntese - é especificada precisamente.
A situação inicial em que se encontra circunscrito o
"eu" poético encontra na imagem do "punhal", presente jã no
177
primeiro verso, uma imagem-slntese. O "punhal", no desenvolvimento do poema, pouco a pouco vai deixando aquela sua dimensão mais imediata e objetiva - o punhal enquanto um objeto
concreto e definido - para adquirir a dimensão de um símbolo
que traduz toda uma circunstância "espiritual"
(psicológica,
emocional, afetiva, etc.) concernente ao sujeito.
Na primeira estrofe, tem-se o "punhal" primeiramente
focado enquanto um objeto concreto, singular, específico, objeto de uma ação determinada de forma precisa num dado instante
do "continuum" temporal, que a utilização do pretérito perfeito
ressalta: "levei comigo um punhal". Hã um detalhamento mais
demorado desta ação de carregã-lo: as "mãos" que o carregam
são "firmes" e "cautelosas"; e a ação em si ë objeto de duas
comparações sugestivas - "como se leva um segredo" e "como se
leva uma rosa". "Segredo" e "rosa", postos paralelamente a
"punhal", funcionam como caracterizadores deste. Os dois paralelos estabelecem certa tensão comparativa, uma vez que os
elementos relacionados entre si se aproximam e se afastam uns
dos outros. 0 paralelo "segredo"/"punhal" acentua, de forma consonante, as idéias de segredo, cuidado, cautela. Pode-se, no
entanto,.destacar também uma certa oposição entre os termos,
na medida em que "punhal" diz respeito a um objeto concreto,
em que se destacam certos traços, como rigidez, solidez, resistência, e "segredo"
refere-se a matéria mais abstrata, em que
idéias como fragilidade, delicadeza e preciosidade encontram-se
sugeridas. O outro paralelo - "rosa"/"punhal" -, a despeito
das sugestões de cuidado, cautela, que. podem ser estendidas de
forma comum ãs duas ações (ã ação de levar um punhal e â ação
de levar uma rosa), é também problemático, jâ que, a partir de
178
certa perspectiva, "rosa" e "punhal" podem ser encarados como
elementos pertencentes a campos semânticos marcadamente anta- ,,
gônicos. Há uma tensão, portanto, nestes paralelos: talvez
mais do que caracterizando o termo "punhal" (ou, mais precisamente, caracterizando a
ação de levã-lo), os termos para-
lelos "segredo" e "rosa" como que insinuam jã, antecipadamente, a existência potencial daquela.realidade que se vai configurar de forma mais clara somente na segunda parte do poema.
Na estrofe seguinte, mantém-se o mesmo tempo verbal.
Após o detalhamento inicial, novas ações são evocadas. O "punhal" configura-se enquanto um "meio" (enquanto uma "arma")
para ações do sujeito: "Assim armado, enfrentei / As emboscadas e os crimes.". Estas ações centrais desdobram-se; os verbos enumerados na quarta estrofe são ricos de nuanças: "combater" retoma a idéia jã exposta na ação de "enfrentar" "as emboscadas e os crimes"; "gritar" funciona como elemento de ligação entre esta idéia e a seguinte
(a de "perder-se") - li-
ga-se ao espírito belicoso da ação anterior de forma afirmativa ("gritar" como manifestação da energia combativa, da raiva
que remete ã luta), mas também aponta para a dor e o sofrimento que levam ã ação de "perder-se"; esta última surge como
resultado final de toda a circunstância armada até aí, apontando assim para as suas limitações, seus problemas, suas carências. Toda a circunstância inieial apresentada recebe avaliação negativa (e aqui a expressão "nos corredores, do ódio" precisa ser destacada) .
A terceira estrofe sintetiza e complementa as anteriores, preparando jã a contraposição que serã desenvolvida a
seguir. Hã uma mudança no tempo verbal: ao invés do pretérito
179
perfeito, tem-se agora o imperfeito - "O punhal me dominava, / Fascinava-me a revolta.". A presença do "punhal" para
o sujeito, que nas primeiras estrofes poderia ser vista como
circunstancial, circunscrita a um instante determinado no tempo, tem aqui seu sentido ampliado. O "punhal" agora aqui, de
forma mais evidente que nos versos precedentes, adquire uma
dimensão simbólica para o sujeito poético. Ele não é apenas
uma arma, mas um símbolo da "revolta", da luta, do combate,
do espírito guerreiro. Hã, por parte do sujeito, uma dupla relação de submissão ("o punhal me dominava") e fascínio
("fas-
cinava-me a revolta") em relação a essas idéias. Esta submissão é ainda destacada nos versos três e quatro da. estrofe:
"(Vivemos presos â chave / Que-em sigilo nos solta.)". 0 sentido destes versos em relação ao todo do poema revela-se bastante problemático. Aqui tem.o "punhal", e tudo aquilo que
ele ecoa, uma avaliação positiva, na medida em que ele ë visto
como "chave" que."em sigilo" liberta. Esta perspectiva entra
em tensão com o desenvolvimento do poema, uma vez que a condução argumentativa tende a desvalorizar o "punhal" e aquilo que
ele representa, para colocar como fundamental ura princípio que
lhe é. antagônico,. É isto o que ê apresentado na estrofe quatro
a seguir.
A conjunção adversativa "mas" colocada logo no início
da estrofe apresenta jã a idéia de uma ruptura com o que estava sendo exposto até então. Uma nova idéia vai ser aqui contraposta ao que anteriormente se desenvolveu. Ao "punhal" vai se
opor "uma verdade" subitamente revelada. Esta verdade surge
como negação do "punhal", e como tal configura-se enquanto um
alívio para o sujeito poético ("pôs brisas na minha face"),
180
enquanto algo que o subtrai ao "mal" ("às vozes do mal") ao
qual
se encontrava subordinado. Ë esta aproximação do "punhal"
ã idéia., de "mal" que torna problemática a anterior aproximação do "punhal" ã. idéia de libertação - versos três e quatro
da terceira estrofe.
A quarta estrofe cria uma expectativa que se acentua
na quinta e que só vai ser resolvida no verso final conclusivo. Nesta quinta, a "verdade" a que se fez referência na estrofe anterior não é ainda explicitada, mas é jã adiantada na referência feita ã figura feminina de "Dora". Ë ao lado de Dora
que o poeta vai estar "sempre a recompor essa verdade tão. simples", tornando-se . dela. "senhor" . Tornar-se "senhor" desta
nova verdade ë expressão forte que precisa ser. ressaltada e
contraposta com a maneira pela qual o poeta se relacionava
com "punhal" e suas "verdades". Com relação
a este, o sujeito
poético se encontrava numa posição de submissão, de subordinação ("o punhal, me dominava") . Agora, o sujeito é senhor. Esta verdade - a "simples verdade de amor" explicitada no verso
final - é meio de emancipação do sujeito. 0 "amor" é visto
aqui de forma tremendamente positiva. Não se tem aqui sombra
daquela perspectiva que o apresenta enquanto, motivo de dor,
angustia, desespero, submissão, aniquilamento. 0 "amor" é uma
"simples" verdade, descoberta e rede s coberta recorrentemente
ao lado da pessoa amada, um motivo de afirmação do homem e
de suas potencialidades.
Da, mesma forma que no poema "Soneto quixotesco", surgem aqui nesta "Ode pacífica", lado a lado, as idéias de
"luta" e de "amor". Se lá conquistar "Reino e Dora", mas sobretudo conservar a memória dos antigos feitos, eram desejos
181
centrais, aqui o "amor" sobrepuja a "luta" nas intenções do
"eu" poético. Ë ele o valor supremo a ser resgatado.
Outro poema ainda dentro de moldes tradicionalizantes^
que se pode abordar agora aqui de forma mais abreviada, ë "Canção sensata". Esta pequena canção tem quatro estrofes de seis
versos cada, versos que são predominantemente
redondilhas
menores. Como nos anteriores, novamente surge aqui a figura
feminina de "Dora", figura a quem o poeta se dirige no início
das três primeiras estâncias
("Dora, que importa") e no verso
final da última ("Dora, isso importa") . Aqui seria interessante, a nível de contraste, resgatar aquela figura feminina da
canção do livro anterior, "Canção do afogado", a quem o poeta
se dirigia ém demanda de auxílio" - "Maninha me salve"
figu- -.
ra sem realidade, sem substância, funcionando apenas como con-,
traponto para o extravasamento emotivo do sujeito, diferentemente de Dora, figura que constitui um "outro" importante em
relação ao poeta, em relação ao qual este intenta pautar comportamentos e sentimentos.
As três primeiras estrofes encontram-se estruturadas
de maneira similar. O poeta dirige-se interpelativamente a
Dora, contrapondo, de maneira conflitiva, determinada visão
da realidade em que sobressaem formas estereotipadamente sensatas e seguras de se relacionar com o mundo (uma perspectiva
que se pode dizer "burguesa") ã visão mais atirada com que os
amantes preferem se comportar. Assim, ã exemplaridade moral
("o juiz que escreve exemplos na areia"), â estabilidade material ("a herança do avô") e ã aparente segurança do recolhimento ("esse frágil muro que defende os cautos") o poeta vai
contrapor outros valores, em que a liberdade, a fantasia, a
182
loucura sao a tônica. A estrofe quatro, de carãter conclusivo , deixa óbvio o pólo a que preferem tender os amantes:
De maior beleza
pois, nada prever
E ã fina incerteza
De amor ou viagem
Abrir nossa porta.
Dora, isso importa.
0 título "Canção sensata" adquire assim um carãter de
ironia, examinado o conteúdo do poema. Sensata, para o poeta,
não vai ser a maneira de se relacionar com o mundo usualmente tido como tal. Vai-se valorizar aqui uma abertura pára o
mundo sem prevenções, sem armas, sem resguardos. E o amor e
a disponibilidade surgem, nesse contexto, enquanto elementos
fundamentais.
Dois poemas, a partir de seus títulos, e tendo em comum serem poemas marcadamente curtos, fazem referência ainda
a formas líricas tradicionais: "Madrigal" e "Epigrama".
MADRIGAL
Meu amor ê simples, Dora,
Como a ãgua e o pão.
Como o ciu refletido
Nas pupilas de um cão.
O "madrigal" surge na Itália por volta do see. XIV,
estreitamente vinculado ã música, e tem seu apogeu no séc.
XVI, difundindo-se pelo resto da Europa então. Por esta época,
introduz-se na lírica portuguesa, onde vai encontrar expressão até fins do séc. XVIII, quando o classicismo árcade começa
a perder terreno para as tendências que prenunciam o Romantismo. Durante o séc. XIX, permanece fora da circulação literária,
183
para ser retomado, jã num sentido de maior liberdade formal,
por um e outro poeta moderno. No que diz respeito à forma,
o madrigal, até o séc. XV, possuía forma fixa. Posteriormente,
passou a ter uma estrutura mais livre quanto ao metro, ás rimas e ao número de versos. Segundo Massaud MOISÉS,
"vingou,
porém, a tendência para resumir-se numa única estrofe de cerca de dez versos, em que alternam o decassílabo e o hexassílabo".llf Este. caráter de brevidade no tocante ã forma ë ainda
ressaltado por Wolfgang KAYSER na aproximação generalizante
que faz ao madrigal: "Ë um grupo de 3 até cerca de 20 versos,
sendo estes de tamanho diverso e construção diferente. Na posição da rima reina também liberdade completa; era costume
incluir versos sem rima, enquanto que, no final, era usada,
na maioria das-vezes.,, uma pare lha" . 15
Do ponto de vista- temá-
tico, dominantes,. no madrigal, são os temas amorosos, tratados
engenhosamente, de forma fina e espirituosa.
O "Madrigal" de José Paulo Paes enquadra-se dentro
das características, gerais a p o n t a d a s p e l a temática amorosa,
pelo seu evidente caráter de concisão, a que parece tender a
própria forma, e pelo caráter engenhoso e-delicado da compo- .
sição, que faz dela uma espécie de vislumbre poético altamente condensado. Nestes dois últimos aspectos, pode o poema ser
aproximado de outra forma tradicional de grande difusão contemporáneamente na poesia brasileira, provinda de uma tradição literária distante da tradição ocidental: o haicai japonês.
"Madrigal" apresenta apenas quatro versos, dispostos
em dois dísticos. No primeiro dístico, os versos têm sete e
seis sílabas; no segundo, seis - metro portanto, como o poema,
184
também de pequenas proporções. Nos segundos versos de cada
dístico, observa-se a presença de uma rima: "pão"/"cão", rima
que, neste poema tão curto, é responsável em muito pelo efe.ii': v.
poético obtido. A recorrência dos sons dá ã composição um caráter de fechamento, de acabamento, que casa muito bem com o
seu tom sentencioso.
Novamente aqui neste "Madrigal", surge a figura feminina de "Dora", a amada com quem o poeta vai dialogar. A ela
ele vai se dirigir explicitando o caráter do seu amor: "Meu
amor ê simples, Dora". A simplicidade referida é posta pelo
poeta em paralelo com outros elementos; ã afirmação inicial,
seguem-se, portanto, duas comparações : o amor do poeta é simples "como a água e o~pão"; é simples "como" o céu refletido
nas pupilas de um cão" . 0 primeiro-paralelo não foge propriamente ãs expectativas implícitas no adjetivo "simples" com
que o poeta caracteriza inicialmente o seu amor. A "água" e
o "pão" são tradicionalmente elementos ligados ã simplicidade,
a frugalidade alimentar, àquilo que ê básico e mínimo para o
sustento do homem. 0 segundo paralelo, porém, ê já mais surpreendente, e este carãter é ressaltado pela sua disposição
numa segunda estância, separado, portanto, dos enunciados anteriores. Comparar a simplicidade : do amor ã simplicidade do
"céu refletido nas pupilas de um. cão" tem muito de inusitado,
de original. 0 adjetivo "simples" pode ser estendido sem problemas a "céu", dado do ambiente, do espaço circundante em que
se encontra inserido o homem, e cuja experiência lhe é imediata e constante; e a "cão", animal que convive com o homem,
despido de qualquer exotismo ou estranhamento que poderia ser
visto em relação a outros animais. O "céu" e o cão" podem ser
185
"simples". Surpreendente, porém, e como que intraduzível em
termos de uma abordagem analítica, é a conjunção destes na
imagem escolhida pelo poeta: "o céu refletido nas pupilas de
um cão". Com seus sentidos restritos a princípio somente aos
aspectos mais destacadamente físicos, do ponto de vista da sua
plasticidade, portanto, a imagem é de uma beleza singular. A
infinitude, a incomensurabilidade do céu é apreendida indiretamente através do seu reflexo nos olhos do cão, portanto,
através de um meio infinitamente menor que o original, fisicamente restrito, plenamente comensurãvel. Esta perspectiva
encaminha a leitura jã para uma dimensão mais simbólica da
imagem. 0 infinitamente grande apreendido através do restritamente-pequeno, é paralelo., possível para o entendimento de
certa visão do amor aí implícita. O amor do poeta tem esta
capacidade de trazer para um plano mais. restrito aquilo que
idealmente diz respeito a planos
infinitos. Nisto estaria a
sua simplicidade, na medida em que reduz ao compreensível e
ao realizável, a uma medida mais imediatamente humana, o que
poderia restringir-se, dada a sua grandeza ideal e potencial,
a um plano supra-humano.
A idéia de "simplicidade" aplicada ao amor, presente
neste poema, surge também, como se viu, em "Ode pacífica", em
seu verso conclusivo: "Simples verdade de amor.". 0 amor,
visto enquanto coisa "simples", recebe, por parte do poeta,
portanto, uma avaliação que se pode dizer positiva. Há uma
aceitação do estado amoroso sem ressalvas, uma. vez que ele é
visto não enquanto um problema, enquanto um tormento ou uma
dor, mas enquanto algo que contribui para a própria afirmação do sujeito. Em todos os poemas abordados até agora, esta
186
avaliação positiva parece ser uma constante. "Epigrama", porém, vai ressaltar um outro aspecto do estado amoroso.
EPIGRAMA
Entre sonho e lucidez, as incertezas.
Entre delírio e dever, as tempestades.
Ai, para sempre serei teu prisioneiro
Neste patíbulo amargo de saudades...
0 "epigrama" ( de "epi",
'sobre' + "gramma",
'escrito')
tem origem remota entre os gregos, servindo, primeiramente,
para designar as inscrições - em monumentos, obras de arte e
túmulos - ce leb ra do ras e perpetuado ras do nome de determinada
personagem ou de dado acontecimento. Usualmente feito em versos, o epigrama deixou então este seu sentido pragmático inicial e passou para a tradição da poesia grega enquanto uma
forma lírica. Nesta, tradição, o epigrama vai encontrar num ver
so como o dístico elegíaco, formado de um hexámetro e de um
pentámetro, os dois com andamento dáctilo (verso de seis e
de cinco pés, contendo o pé- de tipo dáctilo - uma sílaba longa e duas breves) , o metro mais importante. Segundo o próprio
José Paulo Paes, em ensaio sobre o poeta Paladas de Alexandria
(do século 4 d.C.) e a tradição do epigrama, este verso "como
que impunha ao poeta um tipo de expressão a um só: tempo sentenciosa e econômica, afinada pois com o espírito
do epigrama,
que se caracteriza por sua brevidade, de par com o torneio
mais ou menos.engenhoso por que nele é expresso um pensamento"
Estão aí, nestas palavras, sintetizadas as principais características da forma. Afastando-se. do seu emprego primèiro, o
epigrama, pouco a pouco, alarga suas possibilidades temáticas,
até se tornar, ainda segundo Paes, "a modalidade mais popular
187
lírica grega" . "Passa ele a servir de versátil instrumento
para o epitáfio e a dedicatoria, a lisonja aos poderosos e
a censura dos costumes, a sátira e o humor, o louvor e a crítica literária, a confissão amorosa e erótica, a lição de moral
e a exaltação do prazer". 1 6
Da tradição da poesia grega
o epigrama passa para a literatura latina, entra em desuso
durante a Idade Média, até vir a ser resgatado pelo Renascimento e pelas tendências classicizantes subseqüentes. . Moderna
mente, com a brevidade, a concisão, a síntese constituindo va
lores poéticos essenciais, o espírito do epigrama parece animar muito da poesia que se está a fazer.
O "Epigrama" de José Paulo Paes enquadra-se bastante
bem dentro do-espírito geral da tradição do epigrama. Nele
vamos encontrar a expressão "sentenciosa e econômica", a "bre
vidade", "o torneio mais ou menos engenhoso por que nele é
expresso um pensamento", características referidas pelo próprio Paes em suas reflexões críticas acerca desta forma lírica.
"Epigrama" ê um poema bastante curto: quatro versos
no corpo de uma única estância. Os versos são todos endecassílabos, o metro mais extenso utilizado por Paes até aqui em
poemas metrificados. Com relação ã acentuação dos endecassílabos, recai ela sobre a primeira, a terceira, a sétima e a
décima primeira sílabas no primeiro verso, e sobre a primeira
a quarta, a sétima e- a décima primeira nos versos seguintes.
Observa-se, portanto, um padrão mais ou menos uniforme de
acentuação.
Nos dois versos iniciais, versos com estruturação
sintática idêntica, são mencionados termos cuja semântica os
188
configura enquanto pólos em oposição: "sonho" x "lucidez",
"delírio" x "dever". Entremeando essas tensões básicas em. que
se encontra imerso o sujeito poético estão, na primeira, "as
incertezas" e, na segunda, "as tempestades". Pelo próprio conteúdo semântico destes últimos termos, verifica-se que a oposição, longe de gerar equilíbrio
(pólos opostos compondo al-
guma espécie de mútua compensação), gera na verdade toda uma
dinâmica de dilaceramento do "eu" poético. Daí o desabafo em
tom exclamativo dos versos finais, apresentada esta situação
emocional inicial: a interjeição "ai" que abre o terceiro verso é índice do caráter que o anima. 0 "eu" poético vê-se na
situação de "prisioneiro" condenado a alguma espécie de "morte"
(ressalte-se aqui a beleza do último verso, que sugere
esta possível "morte": "Neste patíbulo amargo de saudades"),
"morte" a que está sujeito pela ausência do- objeto de seus
afetos - daí a presença da "saudade" enquanto tormento e não
enquanto possível compensação. 0 advérbio "sempre" dá ao sentimento geral que se está aí intentando, expressar um carãter
de permanência; assim, a sugerida "execução" que se verificaria sobre o "patíbulo amargo de saudades" adquire a dimensão
de uma ação não mais limitada no tempo.
Os poemas amorosos anteriormente abordados tinham todos em comum uma visão positiva do amor. Em todos eles a pessoa amada - Dora - ou era uma espécie de ideal a ser conquistado ("Soneto quixotesco"), ou uma figura de fato presente,
a quem o poeta se dirige - e aí a presença do vocativo, em
que o nome. da amada é mencionado, ê dado a se destacar
c
("Madrigal", "Canção sensata", "Ode pacífica"). Neste
"Epi-
grama", surge jã uma outra perspectiva em relação ao amor.
189
Aqui a ausência ê o tema central e ela vai ser geradora de
um certo sofrimento.
Os cinco poemas analisados com maior ou menor detalhe
até aqui têm em comum atualizarem todos determinadas formas
imediatamente verificáveis da tradição da poesia lírica. Ao
lado destes poemas, outros já fora de certos padrões de forma
ou conteúdo pré-fixados pela tradição, a despeito do talhe
tradicionalizante de quase todos eles, encontram-se também
presentes neste segundo livro de Paes. Entre eles, seria de
se destacar com maior cuidado a princípio o poema "Cúmplices",
que leva o mesmo nome do livro.
CÚMPLICES
Quebrei minhas algemas contra o espelho
E a teus olhos tracei-me nova imagem,
Sem cõlera, sem armas, sem viagem.
Agora sou apenas teu reflexo,
Um fantasma sem brilho e sem escadas.
0 que fui pouco importa. É quase nada.
Desprezei os ardis, a ironia,
As mentiras de bronze, as vozes fãtuas,
• 0 fascínio enganoso das estátuas.
Ergo-me pobre e nu. contra o horizonte.
Nenhum crepúsculo turva minha fronte. '
Sob um cipreste enterrei os meus defuntos.
Atrás de mim ficou o espelho fútil.
Alem de mim descubro céus inúteis.
Mas que importa o caminho? Estamos juntos.
Os quinze versos deste "Cúmplices", dispostos três a
três ao longo de cinco estâncias, são todos decassílabos heróicos, com exceção dos versos segundo e terceiro da quarta
estrofe, versos endecassilábicos com acentuação na quarta,
sétima e décima primeira sílabas. Pode-se dizer, portanto,
190
que se trata de um poema metrificado, o que imediatamente o
insere dentro de um espirito tradicionalizante do labor composicional. A isto, some-se ainda a presença de rimas em final de verso: nas três primeiras estâncias, rimas no segundo e terceiro versos - "imagem"/"viagem",
"escadas/nada"
(rima imperfeita), "fátuas"/"estátuas"; nas estâncias quatro
e cinco, rimas no primeiro e segundo verso - "horizonte"/
"fronte", "fútil"/"inúteis"
(rima toante) - e entre os ter-
ceiros versos das duas estâncias - "defuntos"/"juntos".
Novamente neste poema, depara-se com uma segunda pessoa a quem o poeta está se dirigindo, segunda pessoa independente do sujeito, diferentemente do que se percebeu em relação a- alguns poemas do livro anterior 0 aluno/ em que a segunda- pessoa, : dinimmondianamente,-—compunha uma espécie de .
"alter ego" do próprio "eu" poético. Observa-se, portanto, a
presença de um "outro" em relação ao sujeito, que não é ape-1
nas um contraponto dialogal para o extravasamento emocional,
afetivo, deste, sujeito (conferir o que se discorreu a esse
respeito em poemas como "Canção do afogado" e "0 homem no
quarto", por exemplo, do livro anterior), mas -que. ê sim pre-:
sença importante a determinar a própria maneira de ser, a própria essencialidade deste sujeito. Neste segundo livro Cúmplices, essa segunda pessoa, como se está vendo, é preeenchida
sempre por uma figura feminina, ãs vezes denominada Dora (nome
da própria esposa do homem José Paulos Paes), âs vezes sem
qualquer denominação, como no próprio poema "Cúmplices".
Estas considerações são importantes para uma aborda5.
gem deste poema (e para a compreensão do próprio livro que
leva mesmo nome) , como se percebe jã a partir da observação
191
da primeira estrofe. No primeiro verso, pöde-se encontrar
algumas referências ao estado do "eu" poético anteriormente
ao encontro com esta segunda pessoa. O termo "algemas" explicita a idéia de prisão e de imobilidade, situação em que se
encontrava o sujeito até decidir-se a quebrar essas "algemas"
"contra o espelho". A forma que o sujeito encontra para se
libertar das "algemas" é justamente voltar-se contra o "espelho", responsável pelo reflexo da sua própria imagem. 0 sujeito poético volta-se, portanto, contra si mesmo nesse ato, volta-se contra o circuito fechado do auto-espelhamento, do debruçar-se exclusivo sobre si mesmo. Quebradas as "algemas",
e com elas o "espelho", o "eu" poético vai espelhar-se então
- em ura: "outro"
em uma segunda pessoa, para at ravés . dela., recom-
por sua imagem: "E a teus olhos tracei-me nova -imagem".. As _
expressões do terceiro verso - "sem cólera, sem a m a s , sem
viagem" - podem ser vistas tanto como caracterizadoras deste
novo ato (incidindo sobre o verbo "tracei-me"), como caracterizadoras da nova condição do sujeito (referindo-se, aqui, ã
"nova imagem"). "Cólera" e "armas" - termos que se auto-alimentam - têm sentido óbvio; "viagem", porém, é já termo de
sentido menos imediato no contexto. A expressão "sem viagem",
numa possibilidade de leitura, pode sintonizar com as anteriores no que. diz respeito ã referência a um estado de repouso, inércia, passividade, apaziguamento - e também, já agora
em sentido exclusivo, a uma situação de enraizamento, de mergulho ou fixação num espaço e tempo presentes.
A primeira estrofe faz referência, portanto, a uma
mudança que se opera no sujeito, mudança que pode ser aproximada ã mudança observada também em "Ode pacífica". Lá, em
192
contato com Dora e com a revelação da "simples verdade de
amor", o sujeito deixa para trás um seu estado inicial, marcado por toda uma condição de beligerância e, por isso, de
sofrimento e perdição, situação vista pelo próprio poeta enquanto um "mal". Aqui em "Cúmplices", no contato com a figura feminina, o sujeito também se transforma: rompe com uma
sua imagem inicial, imagem em que o sentir-se preso era determinante, para refazê-la, já agora aos olhos de uma segunda"
pessoa.
Este movimento do sair de si mesmo em direção a um
outro vai, na segunda estrofe, atingir graus de intensa radicalidade: "Agora sou apenas teu reflexo, / Um fantasma sem
brilho e • sem escadas. " . Este despir-se de si mesmo, _ da imagem
obtida pelo reflexo do "espelho", é levado ãs últimas conseqüências. O sujeito deixa sua própria individualidade para
querer tornar-se o "outro", porém não logra ser o "outro" em
sua essência, tarefa. impossível., mas apenas um "reflexo" desse
"outro". Perde portanto a concretude, a carnalidade- conferida
pela sua própria identidade neste movimento em direção ã segunda pessoa, para tornar-se um "fantasma". Esta nova condição, que poderia ser experimentada como acentuadamente:.negativa, não o é, no entanto, pelo sujeito, já que o estado inicial é por ele avaliado de forma muito severa: "O que fui
pouco importa. Ê quase nada.".
No processo de voltar-se para o "outro", outra ação
encontra-se ainda implicada. Na sua explicitação, na terceira
estrofe, novas.referências ã condição original do sujeito são
feitas. Ao quebrar "as algemas contra o espelho" e traçar
frente ao outro "nova imagem", o sujeito vai "desprezar" uma
193
série de elementos que se encontravam circunscritos ao seu
universo anterior. Nesse sentido, tem-se aqui uma espécie de
desenvolvimento, de explicação daquele "o que fui" "é quase
nada" do final da estrofe segunda. "Ardis", "ironia", "mentiras de bronze", "vozes fátuas", "fascínio enganoso das estátuas" (e repare-se sobretudo na caracterização destas três
últimas expressões, em que a idéia de falsidade é reiterada
insistentemente), agora desprezados, constituíam uma condição
experimentada como negativa, a que a nova condição de "fantasma" ou mero "reflexo" da outra pessoa sucede positivamente.
É liberto disso tudo que o "eu" poético vai se encontrar agora. 0- desnudamento a que todo o processo o obriga tem
referência explícita na-quarta estrofe : - "Ergo-me. pobre e nu
contra o horizonte."-. A liberdade a que isso-o-leva é ainda
reiterada: "Nenhum crepúsculo turva a minha fronte.". Ressaltem-se aqui as implicações semânticas de uma metáfora como
"crepúsculo", no sentido de "ocaso", e a sua proximidade em
relação ã expressão metafórica "na/da tarde cinzenta", do
poema "Balada", do primeiro livro de Paes, comentada anteriormente com relativa minúcia. "Crepúsculo", no ciclo do dia, é
o instante em que a luz do sol. vai cedendo espaço ã escuridão
da noite, portanto ã passagem do claro ao escuro. Simbolicamente, são múltiplas as referências aí contidas: envelhecimento, morte, loucura, dor, angústia, tristeza, etc. Nada disso
agora "turva" (e o verbo reitera esses sentidos negativos destacados) a "fronte" do sujeito. 0 terceiro verso da estrofe
insiste ainda na idéia de libertação em relação ao passado e
seus pertences: "Sob um cipreste enterrei os meus defuntos.".
Ë curiosa nas expressões metafóricas desta estrofe a insistên-
19 4
cia em dados ligados ã natureza, a um espaço mais ampliado "horizonte", "crepúsculo", "cipreste". O "erguer-se contra o
horizonte", imagem central aí, reitera bastante bem a idéia
de libertação desenvolvida em todo o poema, de saída de um
espaço mais restrito para um espaço mais vasto. A construção
de metáforas com elementos da natureza acentua os sentidos
poéticos desenvolvidos nessa imagem.
A última estrofe resgata de forma conclusiva algumas
das imagens que foram sendo semeadas nas demais estrofes do
poema. Recupera-se o "espelho" da primeira ("Atrás de mim
ficou o espelho fútil."), agora aqui com um adjetivo importante - "fútil" -, que ressalta bem aqueles sentidos jã expostos acerca do—"espelho"- e-do que ele - significa, em termos
da situação primeira do poeta e seu caráter problemático. O
"horizonte" evocado na estrofe quatro ecoa aqui no verso segundo: "Além de mim descubro céus inúteis.". Assim, o "atrás"
e o "além" (com sentidos no plano espacial projetando-se sobre o temporal, e assim referindo-se também ao "passado" e
ao "futuro") surgem, nos adjetivos "fútil" e "inúteis", recobertos de avaliação negativa. Em.contraposição, valori- .
za-se, por exclusão, o espaço imediato e o tempo presente.
Na indagação final "mas que importa o caminho?"pode-se apreender uma referência dúplice â espacialidade e ã tempo rali da de.
Tempo e espaço são dimensões que se interpenetram. O "caminho" aqui (e aqui o problemático termo "viagem" da primeira
estrofe pode encontrar sentidos mais claramente definidos)
refere-se a todo o trajeto existencial do sujeito. CJma preocupação com os limites desse trajeto perde a importância na
medida em que a outra pessoa encontra-se presente: "Mas que
importa o caminho? Estamos juntos.".
195
O poema é todo ele urna especie de louvação, de exaltação do outro,
um outro que, pelo que se depreende dos de-
mais poemas do livro, não ê ninguém senão a pessoa amada, a
"Dora" nomeada em várias ocasiões. Através desta segunda pessoa é que o "eu" poético se liberta de uma situação inicial
negativa e vai recompor sua imagem. Ao fazê-lo, nada mais importa senão o fato de se enoontrar . junto a este "outro". 0 amor
surge aqui
não como carência, mas sim como plenitude. Nada
além da pessoa amada é ainda necessário para o sujeito. Esta
cumplicidade amorosa, aspecto central desta e de outras composições, ê ressaltada pelo termo "cúmplices" que dá titulo
ao poema e também ao. livro.
Outro poema que ,- como - Cúmplices"-, não se enquadra propriamente dent.ro.. de..alguma forma composicional típica da tradição da poesia, mas que revela uma certa maneira tradicinalizante de compor é "Pequeno Retrato". No poema, com quatro
estrofes de quatro, seis, seis e três versos, observa-se a
presença dominante das redondilhas menores, entremeadas de
alguns poucos versos de quatro, seis e sete sílabas, e a presença de rimas em fim de verso dispostas sem qualquer padrão
definido para cada uma das estrofes. Trata-se, portanto, de
uma composição metrificada - e aqui é de se destacar novamente a presença de metros curtos, medida dominante na poesia
inicial de Paes - e rimada. Neste poema, novamente vai surgir
a figura de "Dora" como interlocutora do "eu" poético. O tema
da união amorosa surge também aí como central. A ligação com
a figura feminina ê motivo de uma mudança do sujeito, da assunção de um comportamento que foge aos padrões estabelecidos
pelo bom senso. Assim, vai-se valorizar aqui a preocupação
196
exclusiva com o presente, momento em que a união se verifica,
em detrimento de qualquer preocupação com o que está por
vir - "Nunca vislumbrei / No momento exiguo, / No dia contigo/O
dia contíguo.". Da mesma forma, valoriza-se a fruição
e o prazer em detrimento dás cautelas e dos cuidados - "Como
submeter / 0 desejo ao fado, / Se todo prazer / Ri da cautela, / R i do cuidado, / Oue o quer prender?" A estrofe final,
explicitado o "pequeno retrato" do sujeito poético em situação amorosa, apela para uma resolução de tipo impactante: "Vou
despreocupado, / Dora, tão despreocupado, / Que nem sei morrer.". Pode-se aproximar este poema, pela perspectiva a s s u m i —
da, de "Canção sensata"-.--Ambos vão defender o-amor enquanto
atitude de confronto com o que hã de mais. convencionalmente
"burguês" em termos de postura frente ao mundo (valorização da
segurança material, da racionalidade subordinando o sentimento, do controle sobre o prazer, da praticidade das ações e
decisões, etc.) .
Dois poemas-ainda- integram Cúmplices : "Carta de guia"
e "Poema circense". 0 primeiro, deles é um poema de carãter
mais fragmentário, composto em versos polimêtricos, o que jã
de imediato o distingue da maior parte dos poemas do livro,
poemas metrificados e rimados. 0 segundo ë basicamente um
poema em prosa, e, por esse seu caráter, chama em muito a
atenção quando lido em confronto com os demais.
"Carta de guia" ë poema que, pela sua estrutura, lembra um pouco "Poema descontínuo" do livro iniciai de Paes O
aluno. 0 poema, todo ele em versos livres e sem qualquer regularidade estrófica, encontra-se subdividido em cinco partes,
cada parte compondo uma espécie de mosaico, uma espécie de
197
aproximação singular do tema comum a todas as partes. A temática da ligação amorosa
(e novamente tem-se aí nomeada a Dora
de tantos poemas) e da afirmação do par amoroso e de seus valores frente ao mundo recebe novos desenvolvimentos neste texto.
0 título ë bastante problemático. 0 dicionário dá o
seguinte significado ã expressão "carta de guia": "Jur. Documento assinado pelo juiz encaminhando o reu à prisão, em
cumprimento de sentença". 17
No entanto, uma vez que um tal
sentido não se ajusta ao conteúdo do poema, talvez seja mais
produtivo ver aqui referência a conhecido texto da tradição
da literatura portuguesa, a "Carta de guia de casados", de
D. Francisco Manuel de Melo, cuja primeira edição data de
1651. Trata-se de escrito de conteúdo moralizante a respeito
da vida conjugal. A perspectiva assumida pelo autor pode ser
depreendida de alguns comentários ao texto feitos pelos historiadores literários portugueses Antônio José 'FARAIVA e
öscar LOPES:
Todas as a v e n t u r a s amorosas dos
jovens f i d a l g o s
solteiros
s i o para
ele
n a t u r a i s , , como q u e f a z e m p a r t e do s e u
d e c o r o . I a s a m u l h e r p a s s a da
tutela
dos pais para a t u t e l a a i n d a
mais
cauta e suspicaz
do m a r i d o , que
pode
ser b a s t a n t e mais v e l h o , para a educ a r c o m o s e g u n d o p a i ; d e v e v i v e r em
reclusio completa,
inclusivamente
c o m ' a c a p e l a em c a s a , s e
possível,
sem c o n f i d e n t e s ,
sem c r i a d a g e m da
sua c o n f i a n ç a p e s s o a l ,
vigiada
estreitamente
nas suas
relações e desp e s a s , sem c u l t u r a
l i t e r á r i a ou art í s t i c a , e m b o r a D. F r a n c i s c o a n ã o
j u l g u e m u i t o m e n o s d o t a d a de
espírit o q u e o homem ( o u a t é p o r i s s o
mesmo).18
198
"Carta de guia" pode ser lida como urna, especie de contrapartida moderna ã culturalmente arcaica "Carta de guia de
casados". Nela, uma postura muito diferente da ligação conjugal ë desenvolvida. Esta ligação, com o amor necessário aí
implícito, ë vista como algo visceralmente ligado ã vida em
constante processo: "Nossa vida / Construímos / A cada passo, / A
cada minuto, / A cada esquina, / De mãos unidas."
(fragmento I). Essa perspectiva de construção conjunta, da
ligação conjugal como um processo de construção dos sujeitos
nela envolvidos, é ressaltada ainda no fragmento V final:
"Vivemos, Dora, na certeza / De sermos amanhã / O que ontem
não fomos.". O confronto
inevitável com o mundo, salientado
em outros poemas deste--livro,- é- também repisado : "(...J
Con-
tra as colunas da; lei, -/ Sobre o corpo do soldado, / com o
estandarte rasgado / D e qualquer revolução." (fragmento IV).
0 amor assume assim todo um sentido político, na medida em
que ele deixa o âmbito da vida privada, o âmbito dos valores
morais, e se espande afirmativamente pelo mundo, opondo-se
ãs "colunas da lei" e passando "sobre o corpo do soldado". A
expressão "qualquer -revolução", porém, vai deixar claro que
esta dimensão política assumida não tem orientação definida.
Destaca-se aqui a ligação amorosa enquanto algo em processo,
que não busca um objetivo, um fim claramente definido fora
dos limites em que se encontram unidos os sujeitos amorosos.
O único fim vislumbrado ë aquele, jã referido: a certeza "de
sermos amanhã
o que ontem não fomos".
Um último poema ainda a ser abordado, "Poema circense", é texto que foge bastante ao padrão composicional dos
demais.
199
POEMA CIRCENSE
Atirei meu coração ãs areias do circo como se atira ao
mar uma âncora aflita.
Ninguém bateu palmas. 0
trapezista sorriu, o leão farejou-me
desdenhosamente, o palhaço zombou de minha sombra fatídica.
So a. pequena bailarina compreendeu. Em suas mãos
de opala, meu coração refletia as nuvens de outono,
os jogos de infância, as vozes populares.
Depois .'de muitas quedas, aprendi. Sei agora vestir,
com razoável destreza, os risos da hiena, a fragil polide z dos elefantes, a elegância marinha dos corcéis.
Todavia, quando as luzes se apagam, readquiro antigos poderes de vôo. Vôo para um mundo sem espelhos
falsos, onde o sol devolve a cada coisa a sombra natural e onde não hã aplausos, porque tudo é justo, porque tudo é bom.
Como se_pode- observar, o-poema põe em- xeque os limites
formais -usualmente-identificáveis entre prosa, e poesia. Não se
tem aqui.a habituai disposição em versos característica do
texto poético
- e na qual o próprio Paes, nestes seus dois
primeiros livros, compõem, com exceção deste, a totalidade de
seus poemas - nem a presença de outros elementos exteriormente
identificáveis como pertencentes ã poesia, como rima, aliterações , assonãncias,. recursos de ritmo, etc. Pode-se lembrar
aqui dos "poemas em prosa", de
Baudelaire, ou então, voltan-
do-se ã literatura brasileira, de alguns poemas de Manuel
Bandeira como "Lenda brasileira", "Noturno da rua da Lapa",
de Libertinagem (19 30) , ou "O desmemoriado de vigário geral"
e "Tragédia brasileira", de Estrela da manhã
(1936), poemas
em que a crônica invade embaraçantemente a poesia.
Pode-se distinguir no poema quatro estâncias - ou,
pensando-se em termos de prosa, quatro parágrafos -, em todo
o caso, quatro unidades maiores. No tocante â composição
200
dessas unidades maiores, não se pode falar aí em versos, jã
que a segmentação ao final
de cada linha se dã em função da
margem estabelecida, e não em função de qualquer idéia de
segmentação rítmica, ou sintática, ou ainda semântica. Neste
mesmo "Poema circense", porém na edição de Poemas reunidos,
publicado em 1961, livro que reúne os três primeiros livros
de poesia de José Paulo Paes, a disposição das linhas não
corresponde ã da presente edição.
Cada uma dessas unidades maiores vai encerrar uma totalidade semântica. Na primeira, tem-se a exposição de uma
situação inicial. Na segunda, faz-se uma restrição .ãs. realidades apresentadas, com a exposição de uma circunstância de
exceção. Na- terceira, tem-se um salto temporal em relação ã
situação inicial; esta.,, anteriormente singular," ê generalizada, e nova circunstância singular é"apresentada. - Na quarta,
novamente uma restrição â realidade agora apresentada é feita,
através da revelação de nova circunstância de exceção. Tem-se,
portanto, do ponto de vista conceptual e internamente ao poema, um desenvolvimento de tipo dialético claramente estruturado .
Ná primeira estância vai-se ter, portanto, a apresentação da circunstância inicial. Hã algo de estranho, absurdo
e contundente nas imagens que surgem aí. de início: "Atirei
meu coração âs areias do circo como se atira ao mar uma âncora aflita.". "Coração" é lido imediatamente em seus sentidos
segundos: sentimento, afetividade, amor, alma, etc. - aquilo
que ê interior ao sujeito. "Atirar o coração ãs areias do
circo" pode ser visto como um processo de exposição pública
(a arena do circo ressalta essa idéia de espaço público) a
201
que o "eu" poético se está sujeitando, exposição, em suma,
daquilo que ë interior e essencial a esse mesmo sujeito. A
comparação desta ação com o ato de atirar "ao mar uma âncora
aflita" vai insistir na. necessidade interior desse ato. 0
adjetivo "aflita" que determina o substantivo "âncora", por
uma questão de inadequação objetiva, acaba contaminando com
seus sentidos toda a ação em si e inclusive o sujeito. Assim,
esse "aflita", passando do substantivo imediato â toda ação. e
desta ao paralelo comparativo, vai referir-se também ao "eu"
que está a se expor. 0 "circo" evocado, que, como se inisinuou, pode funcionar como uma espécie de metáfora de um espaço público, ,vai_ adquirindo dimensões maiores no- desenvolvimento da estrofe-e do'poema. Elementos a ele ligados-são. referidos: "trapezista",
leão." ,„_"palhaço" , _o público
("ninguém ba-
teu palmas"). A esta auto-exposição por parte do sujeito poético não corresponde qualquer reação positiva por parte das
demais "personagens" : todas respondem distanciada__e friamente
ao apelo contido em sua ação.
Apresentada esta circunstância inicial, vai-se fazer
referência a uma exceção em relação a essa resposta negativa
coletivamente dada ao ato do sujeito: "Só a pequena bailarina compreendeu". Somente a única figura feminina diretamente
mencionada - o público surge como massa compacta indistinta - ê capaz de entender o impulso do "eu" poético. Se se relacionar este passo aos demais poemas do livro, em que a presença do feminino e da ligação amorosa é temática central,
esta "pequena bailarina" vai assumir proporções outras a que
parece estar restrita numa leitura exclusiva deste texto. É
possível ver atrás dela indícios daquela mesma Dora dos outros
202
poemas. A figura feminina ë a única a dar resposta positiva.
"Em suas mãos de opala, meu coração refletia as nuvens de
outono,
os jogos de infância, as vozes populares.". Em sua
presença, portanto, aquilo que é interior ao sujeito adquire
nova vida.
Nä
terceira estância, tem-se, abruptamente, um distan-
ciamento temporal em relação ao exposto: "Depois de muitas
quedas aprendi.". A expressão vai se seguir a revelação da
natureza desse "aprendizado": o sujeito declara ter aprendido
a identificar-se aos demais "personagens", a disfarçar-se para viver entre eles - "Sei agora vestir, com razoável destreza, os risos da hiena, a frágil polidez dos elefantes, a elegância marinha dos: corcéis . " . O sujeito- poético - encontra-se
plenamente integrado ao espetáculo do "circo". A figura da
"pequena bailarina"- some - de cena e, contrariamente a certas
expectativas criadas a partir das idéias da segunda estância,
a reação negativa das demais figuras explicitada na primeira
é que vai determinar o-comportamento do poeta.
No entanto, a esta nova circunstância vai se opor nova
exceção. Na quarta estrofe, a possibilidade de fuga-dessa situação ë insinuada. Apagadas as luzes da arena, em pleno escuro, o sujeito vài encontrar uma possibilidade de distanciamento: "Todavia, quando as luzes se apagam, readquiro antigos
poderes e vôo.". Este distanciamento vai se dar em direção a
um espaço avaliado pelo sujeito como superior ao espaço em que
se encontra inserido - "um mundo sem espelhos falsos, onde o
sol devolve a cada coisa a sombra natural e onde não hâ aplausos, porque tudo ë justo, porque tudo ê bom.". As expressões
dão a esse mundo contornos ideais, fazem desse espaço um espaço
203
utópico entrevisto apenas em sonho, ou no total isolamento do
indivíduo - por isso a idéia de poder chegar a ele somente
"quando as luzes se apagam".
"Poema circense" pode ser visto como uma espécie de
pequena alegoria da situação do sujeito no mundo. Os elementos
circenses, que dão ao poema contornos de magia, fantasia, sonho, se esvaem nessa possibilidade de leitura. O mundo ë um
espetáculo e nele o sujeito sente-se como que em situação de
picadeiro, exposto aos olhos de todos, não compreendido em
sua essência por ninguém (com exceção de uma possível figura
feminina), obrigado a assumir determinados papéis para poder
sobreviver. Em meio a esse mundo, apenas no isolamento ê pos,sível encontrar um espaço ideal -de abrigo-. Dos vários, poemas,
do livro, apesar da presença feminina da "pequena bailarina",
este é o único poema onde a temática do amor não ê a central.
"Poema circense" problematiza também os limites formais entre poesia e prosa, uma vez que a linguagem aí empregada exita entre essas duas possibilidades do discurso literário. Num certo sentido, o poema vai apontar para a tenuidade, em casos extremos como o presente, destes limites, vai
evidenciar que a poesia, numa perspectiva moderna do problema,
não se encontra necessariamente delimitada por certas balizas
formalmente exteriores e imediatamente identificáveis
(como a
rima, o verso, os recursos rítmicos, etc.) . Em "Poema circense", a "poesia" vai se encontrar em parte na linguagem extremamente metaforizada do texto, na qual os segundos sentidos
possíveis jã de imediato se impõem enquanto sentidos dominantes; mas, sobretudo, vai se encontrar na dicção extremamente
singularizante, subjetiva, que faz das personagens rapidamente
204
esboçadas, do tempo e do espaço referidos, elementos sem
qualquer autonomia, elementos de explicitação de um pequeno
drama interior do poeta onde nada adquire vida autônoma fora
deste mesmo sujeito.
3.2.3
Conclusão
Os poemas reunidos neste Cúmplices encontram-se, de
forma tensa, em. relação de proximidade e afastamento daqueles
contidos no livro inaugural de José Paulo Paes. Da mesma forma
que em 0 aluno, em Cúmplices ë dominante a poesia de carãter
subjetivo, de expressão de sentimentos e aspirações do "eu"
poético. A presença de um "eu", quase sem exceção, em todos
os poemas destes dois primeiros livros, ë característica da
opção exclusiva do poeta pelo lirismo-subjetivo. Também a presença de poemas que remetem a determinadas formas tradicionais da poesia lírica, mesclados a poemas sem forma tradicional específica mas de dicção tradicionalizante, e alguns poemas sem. forma pré-fixada e com versos polimétricos de vertente modernista fazem destes; livros expressões de uma perspectiva poética muito próxima.
No entanto, são as diferenças o que precisa ser aqui
destacado, pois são elas que de fato vão apontar para a singularidade de cada um dos livros. Em Cúmplices, muito distintamente de O aluno, ë o amor, a união com a mulher amada
(no-
meadamente "Dora" em boa parte dos poemas) e o significado
marcadamente positivo disso para o sujeito poético a temática
central, muito distintamente do livro anterior, onde o lirismo
amoroso não encontra qualquer espaço. Naquele, como se viu, é
a própria poesia a preocupação fundamental do sujeito: confes-
205
sando "só' restarem-lhe os livros", assumindo o papel de "aluno" de poesia, reverenciando aqueles poetas que eleva ã categoria de "mestres", imitando-lhes temas, motivos, procedimentos, exercitando-se com um mesmo empenho nas formas que tanto
o lirismo mais tradicional como o lirismo de veio modernista
lhe punham ã disposição - Paes vai revelar o quanto a preocupação com a própria poesia, o mergulhar no seu amplo universo de possibilidades e a sua afirmação enquanto poeta dominam
a sua estréia literária. A "angústia existencial" e outras
questões de detalhe igualmente subjetivista, porém sem tônica
semelhante àquela, que surgem aí neste primeiro livro, encontram-se na verdade subordinadas a essa preocupação fundamental^-- sobretudo quando- se- apreende o livro no se.u_"todo".
Em Cúmplices é, portanto, o lirismo amoroso a questão
central. A própria epígrafe do livro - "Love is not a goal;
it is only a travelling." D. H. LAWRENCE,
Essay on Love - jã
adianta este carãter quando se vai iniciar sua leitura. O -¡.
amor não ë ura objetivo a ser alcançado, um ponto vislumbrado
adiante e que precisa ser atingido. O amor ë um trajeto, um
percurso, um processo, e, nesse sentido, -não é algo que jã está pronto, que tem uma essência "a priori" definida, mas sim
algo que se constrói ao longo do caminho, uma vez que se confunde com esse próprio caminho.
A visão que o poeta tem do amor, delineada em alguns
de seus contornos já na expressão emprestada de outro e que
lhe serve
de epígrafe ao livro, precisa ser examinada um
pouco mais detalhadamente ã luz de sua própria poesia. De um
modo geral, pode-se dizer que o amor ë sempre avaliado de
forma positiva.pelo sujeito poético. O amor enquanto motivo
206
de dor, de sofrimento, de coita
(para usar aqui um termo ca-
ro ãs primeiras manifestações líricas em
língua portuguesa),
de desagregação do sujeito, devidos ã distância ou à ausência
do objeto amado, ou a uma sua recusa de correspondência de
sentimentos, tônica do lirismo amoroso desde a poesia trovadoresca medieval ã poesia romântica e com ecos na poesia moderna, estã ausente da lírica amorosa de Paes, com exceção daquele "Epigrama" jã apontado, em que a ausência da pessoa amada gera a saudade e esta é motivo de dor para o sujeito
("Ai,
para sempre sèrei teu prisioneiro / Neste patíbulo amargo de
saudades...") . Predominantemente, o amor, a união amorosa com
a pessoa amada têm .resultado positivo sobre o sujeito, são
meio de afirmação e~não de.negação do que nele hã de vital.
O amor ê. sempre numa presença, algo que se realiza em plenitude.
Em algumas passagens o amor é visto como coisa simples:
"Meu amor ê simples, Dora"
amor"
("Madrigal"); "Simples verdade de
("Ode pacífica"). Ressaltar sua simplicidade significa
ressaltar
a sua naturalidade enquanto dimensão própria ao
humano. Deixa o amor de constituir qualquer excepcionalidade
para se integrar de forma mais harmônica no universo afetivo
dos sujeitos. Assim, não é ele obstáculo, mas sim peça importante no próprio processo de construção daqueles: "Nossa vi- .
da / Construímos / A cada passo, / A cada minuto, / A cada
esquina, / De mãos unidas."
("-Carta de guia") . Estes versos
ecoam de forma bastante explicita a epígrafe tomada a D.H.
Lawrence.
Neste mesmo sentido afirmativo, ê preciso destacar o
que o amor vai significar para o sujeito enquanto meio de
207
libertaçao, enquanto forma de se passar de um estado inicial
tido como problemático
para um estado em que o amor dá à in-
dividualidade um novo sentido existencial. No poema "Cúmplices", o amor ( e destacando-se áqui sobretudo a ligação com a
pessoa amada) é meio de ruptura do sujeito com uma sua identidade anterior, em que o centramento sobre si mesmo era dominante, e reconstrução de uma nova identidade a partir da relação com o "outro". Em "Ode pacífica", o dilaceramento interior em que se encontrava o sujeito, em constante estado de
luta, de beligerancia, visto por ele próprio enquanto um mal,
vai ceder ã súbita revelação do amor, descoberto e redescoberto ao lado de "Dora". Em "Soneto quixotesco", porém, a oposição. entre
-amor" e-"luta", configurada de forma-como que mu-
tuamente excludente naquele último poema, cede espaço a uma
perspectiva em que os dois pólos se encontram lado a lado.
Assim, o poeta, travestido em cavaleiro andante, tem em seu
horizonte um desejo de dupla conquista: "Reino e Dora", a que
deve juntar-se, porém, a lembrança do próprio caminho percorrido: "(...) mas no meu peito / Morem saudades do passado ofício. " .
Em alguns destes poemas encontram-se sempre presentes
as idéias de "processo", de "construção", de "transformação",
em que o transcurso do tempo surge como elemento importante.
Há poemas, porém, em que o que vai ser valorizado é justamente a fruição do momento presente
("Nunca vislumbrei / No mo-
mento exíguo, / No dia contigo,'/ O dia contíguo." - "Pequeno retrato"), em total entrega, sem cuidados, sem recatos, sem
prevenções
("De maior beleza / Ë, pois, nada prever / E ã fina
19 4
incerteza / De amor ou viagem / Abrir nossa porta" - "Canção
sensata"). A respeito da postura diante da vida encontrada em
tais poemas, Alfredo BOSI fala em "carpe diem". 19
Hã na ver-
dade aí, neste amor que ë todo entrega ao outro e fruição
descuidada do instante presente, uma visão do amor que se
opõe radicalmente ao regramento, ã contenção, ã eterna busca
.
de estabilidade, certezas, seguranças de uma concepção "burguesa" das coisas. Vislumbra-se, portanto, um amor que, em :.
sua afirmação, entra em oposição a uma visão do mundo que é
dominante. Implicitamente a essa adoção de uma postura dissonante, revela-se a assunção de uma perspectiva crítica em
relação a valores.
- A figura feminina-es-tã- sempre presente nos poemas de
Cúmplices. Em. seis dos nove poemas - ë-. nome adámente Dora quem
toma--a cena e vai:servir de .ponto referencial ã expansão do
"eu" poético. Apenas "Poema circense" revela constituir exceção; aqui, é a tensão do sujeito com o mundo, a necessidade
do uso de "máscaras" para - viver entre os -homens, e o vislumbre, em espaços reservados do próprio "eu", de um mundo ideal o
que "compõe o cerne do poema. . A figura-,feminina surge apenas
na "bailarina", que, entre as várias "personagens" arroladas,
ë a única que compreende o poeta.
Os móveis biográficos para a presença dominante da mulher e do amor neste segundo livro de Paes. podem ser produtivamente conferidos no seu "depoimento": "Nesse mesmo ano I refere-se ao ano de 1952) , saí ra. publicada a minha segunda plaquete de poemas, "Cúmplices", todos eles inspirados por Dora,
noiva, logo em seguida esposa, e desde então minha musa e
muleta permanente". 20 Dora não á, portanto, um nome qualquer
209
entre outros nomes de mulher possíveis de figurar na poesia
de Paes; tem um referente concreto no mundo, diz respeito a
uma figura muito cara ao homem que constitui o poeta. A cumplicidade amorosa
(termo sugerido pelo próprio título do li-
vro) verificada entre o poeta e a mulher presentes nos poemas
tem um paralelo, a alimentã-la e como que a despi-la dos excessivos artifícios que em geral permeiam toda a poesia amorosa, numa cumplicidade afetiva efetiva..A vida imiscui-se
no universo da arte, e isto é dado importante a ser registrado para uma melhor compreensão da disposição poética de José
Paulo Paes.
3.3.. NOVAS CARTAS CHILENAS - (1954 )
3.3.1
Introdução
0 terceiro livro de poemas de José Paulo Paes, Novas
cartas chilenas, recebe, em Poemas reunidos, de 1961, e em
Um por todos, de 19 86, a indicação do ano de 195 4 como data
referencial. Os poemas contidos em Novas cartas chilenas,
juntamente aos do livro seguinte do poeta, Epigramas, só
sairiam publicados em livro em Poemas reunidos, em 1961, portanto alguns anos após aquela data. No entanto,
anteriormen-
te a esta edição em livro, Novas cartas chilenas havia sido
publicado num dos primeiros números da "Revista Brasiliense",
sob pseudônimo, com texto de apresentação de Sérgio Buarque
de Holanda. No. que se refere ã segunda data, 1961, data da
publicação em livro, estã-se jã plenamente dentro do período
de abrangência daquele momento da poesia brasileira moderna
210
designada no panorama introdutório como Vanguardas Anos
50/60.
Já desde o inicio dos anos 50, porém de forma mais
definida a partir de meados do decênio, começam a surgir no
país as primeiras manifestações de movimentos literários,
com enraizamentos e desdobramentos em outros campos da produção artística, postulando uma renovação radical da literatura,
em especial da poesia. Ao primeiro deles, o Concretismo
(19 56), o primeiro e provavelmente o mais influente dada a
militância expressiva de seus integrantes, iriam se seguir
rapidamente outros movimentos, de maior ou menor repercussão,
como o Neoconcretismo
(1959), a Poesia Prãxis (1962) e o
Poema Processo (1967), todos característicamente movimentos
de renovação radical e polêmica no âmbito da linguagem. Paralelamente a estas vanguardas, onde - pode-se dizer - o engajamento estético ê o dominante, uma outra espécie de militância artística se observa no mesmo período de orientação
muito distinta: a poesia participante, de engajamento político-social, que iria encontrar na publicação "Violão de
Rua", entre os anos de 1962 e 1963, um momento de cristalização. Percebe-se, portanto, uma polarização que iria marcar
a produção cultural de então: de um lado, a opção pela vanguarda estética; de outro, a opção pela vanguarda política.
As orientações, porém, nunca se mantiveram estanques:
o Concretismo, a partir de 1961, fala em "salto participante"; Ferreira Gullar desloca-se do Neoconcretismo para o engajamento político explícito, numa alteração desconcertante de
rumos dentro da sua poesia; a Poesia Práxis, na figura de seu
principal representante e teórico, Mário Chamie, sempre pôs
211
em perspectiva o problema da atuação política; o Tropicalismo
(1968), um movimento não eminentemente
literário como os ante-
riores, mas com desdobramentos importantes no âmbito da literatura, mescla os dados da arte de elite ã arte popular e ã
de massa, fazendo das contradições e tensões que daí surgem o
cerne mais vital do seu próprio discurso artístico. A consideração de dois pólos, de alguma forma legitimada pelas polêmicas travadas no período
(cf. as intermináveis querelas en-
tre Gullar e os concretos 2 1 ), funciona mais como expediente
para uma orientação dentro da produção cultural desse momento. Além do mais, opor "estética" ã "política" é procedimento
muito problemático. 2 2
0 terceiro- livro de Paes é escrito dentro de, um con-,
texto de. grande efervescência- cultural no país, - de renovação
e polêmicas no âmbito das artes, de questionamento do. papel
do artista e do intelectual na sociedade brasileira, de cobrança constante de uma participação política mais imediata nas
questões nacionais. É esse também o período em que uma nova
visão do Brasil, que se está configurando já desde a década
de 30, vai se impor. Antonio CANDIDO, na esteira de Mário
Vieira de Melo, vai falar em surgimento de uma "consciência
do subdesenvolvimento", da visão do Brasil enquanto um "país
subdesenvolvido", em franca oposição ã visão anterior do país
enquanto "país novo", pleno de potencialidades que necessariamente iriam conduzir, no futuro, à edificação de uma grande
e importante
sociedade. 2 3
A consciência do nosso atraso cultural e material, da
nossa dependência e subserviência em relação âs potências
estrangeiras manifesta-se de forma muito aguda nesse instante.
212
Os principais movimentos literários de então são como que tentativas de dar resposta, de maneiras distintas, ã questão do
subdesenvolvimento. 0 Concretismo sobretudo
(mas tal perspec-.;
tiva não está ausente nos movimentos subseqüentes de perspectiva similar), na sua radicalidade experimental, procura situar-se numa posição de ponta no cenário das letras mundiais.
Arroga-se herdeiro de uma tradição de grandes mestres literários da modernidade
(Mallarmé, Joyce, Pound, Cummings) e pos-
tulador e realizador de uma produção poética absolutamente original e nova, a ser irradiada para os demais países
(dando
continuidade ao projeto de Oswald de Andrade de produzir uma
poesia "tipo exportação"), invertendo assim o usual trajeto
das idéias do centro para-a periferia (da matriz para a colônia, dos países desenvolvidos para. os subdesenvolvidos) .• Verifica-se aí uma tentativa de, pelo menos no âmbito da arte,
superar o problema do subdesenvolvimento. Os artistas que
optam pelo engajamento político-social mais explícito
(dentro
de uma linha de esquerda) procuram resolver a questão do subdesenvolvimento instrumentalizando a arte de forma a utilizá-la como meio de acesso ãs camadas socialmente exploradas
da população e como meio de conscientizã-las politicamente.
Não logram, porém, ir muito além do nível das intenções.
0 momento político-cultural é fértil em debates e as
respostas que a poesia vai dar ãs questões que se vão colocando então é igualmente fértil. Da poesia experimental mais
radical, onde até mesmo o signo lingüístico vai se encontrar
abolido, ao aproveitamento da poesia de cordel, agora impregnada de conteúdos políticos, o espectro das opções poéticas
possíveis talvez nunca tenha sido tão vasto.
213
3.3.2
Análise
Em Novas cartas chilenas, já a partir do próprio títu-
lo escolhido, pode-se perceber a nova orientação que Paes vai
dar ã sua poesia.
A obra tomada como referência, as Cartas chilenas cuja autoria mais provável, depois de largo tempo de polêmicas, tem sido atribuída ao poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga
(Porto, 1744 - Moçambique, 1810?), que viveu parte de sua vida em Vila Rica, Minas Gerais, envolvendo-se na Inconfidência
Mineira - é um panfleto satírico contra os desmandos do Governador Luís da Cunha Pacheco e Menezes, desafeto político
do poeta, que governou Minas de 1783 a 1788. Para além das
desavenças meramente pessoais, é-de sç destacar o significado
político das: Cartas.- Antonio CANDIDO insiste neste ponto:
"0 fato, porém, ê que a sátira do bem-pensante e honrado
Critilo (pseudônimo do autor das Cartas) desnudava, através
da atuação de um régulo, as iniqüidades potenciais do sistema: daí o seu significado político e o valor de índice duma
época". 2 4
"Sátira" e "crítica política", elementos componentes
do texto do árcade setecentista, são os dois termos-chave para a compreensão da nova atitude poética de José Paulos Paes.
Ë através da intenção satírica e da crítica político-social
que o poeta vai revisitar agora a história do Brasil nestas
Novas cartas chilenas, destacando do "continuum" temporal certos momentos tidos como importantes, do Descobrimento ao Movimento dos Tenentes, resgatados cronologicamente, e investigando o significado político-social desses momentos ã luz de
214
um engajamento que, pela crítica corrosiva a varias figuras
representativas
das classes dominantes e pela identificação
com as lutas e revoltas dos social, econômica e politicals-t te oprimidos, revela uma postura visivelmente de esquerda c
A epígrafe que abre Novas cartas chilenas de Paes é
transcrita do prólogo de Cartas chilenas: "Dois são os meios
por que nos instruímos: um quando vemos ações gloriosas, que
nos despertam o desejo de imitação; outro, quan:do vemos ações
indignas, que nos excitam o seu aborrecimento". Esses dois
meios aí explicitados de se aprender com as ações humanas
encontram paralelo possível nas duas atitudes fundamentais do
poeta em relação aos fatos da história do Brasil em Novas
cartas chilenas: de um lado, diante dos poderosos e de suas
"ações indignas", é visível a intenção satirizante do poeta
- o recurso ao humor, ã mordacidade, ã ironia, o uso recorrente da paródia de textos célebres como Os Lusíadas, de Camões,
a "Carta" de Caminha, a oração "Pai Nosso", etc. -; de outro
lado, diante dos perdedores, diante dos mártires da história,
daqueles que se engajaram na luta frente ã exploração econômica e à miséria social, responsáveis, portanto, pelas referidas "ações gloriosas", a atitude do poeta é de plena simpatia e envolvimento, de absoluta identificação, e, conseqüentemente, de expressão, via poesia, de uma indignação comovente em face da derrocada de cada um desses empreendimentos
plenos de um real heroísmo. Distanciamento corrosivo diante
dos poderosos, e identificação emotiva em relação , aos oprimidos e aos que se revoltam são as disposições básicas do poeta
diante do farto material que a história põe ã disposição de
sua poesia.
215
Ä primeira atitude destacada pode ser conferida de forma exemplar no poema "Os navegantes":
OS NAVEGANTES
Tenham sanhas, querelas, tempestades,
Os mares nunca dantes navegados.
No rude mais se alimpa e mais se apura
A estirpe dos barões assinalados.
Cante o vento na rede das enxãrcias.
A.fane-se o marujo na partida.
Impe o veíame inquieto, corte a proa
0 infinito das ãguas repetidas.
Ande a estrela cativa do astrolãbio.
Mostre a bússola valido caminho.
Nas cartas se escriture todo achado
e Fama nos vira em tempo asinho.
Achar ë nossa lida mais constante
E lucro nosso empenho mais vezeiro:
Hemos a gula vil. do- mercador
Num coração febril de marinheiros.
Pene- o mouro na gleba, que buscamos
Não colheitas de terra, mas navais.
No comércio marítimo fundamos
Opulencia, destino, capitais.
Almejamos Cipangos.misteriosas,
Fabulosas Catais, índias lendárias.
As latitudes são-nos desafio,
Sendo as ondas do mar nossa alimãria.
Diga o zarolho, pois, da grã porfía
da Lusitana grei contra o oceano,
Recorde embora o Velhò do Restelo
Da fama e da ambição o ledo engano.
Um dia, nos brasis, de boa aguada,.
Havemos nosso ocaso de encontrar.
E, algemado ã conquista, hã de morrer
Aquele Império que nasceu do mar.
0 poema "Os navegantes" remete jã de imediato a um
outro texto da tradição da literatura: Os Lusíadas, de Luís
de Camões. Versos intèiros, a seleção lexical, recursos estilísticos, a métrica, referência direta a episódios do poema
216
épico e ao próprio autor lusitano sobejam no poema de Paes.
A intenção, portanto, de estabelecer uma espécie de diálogo
com o texto camoniano é óbvia. No entanto, diferentemente do
que se observou com relação a certos poemas do primeiro livro
de Paes, como V. Drummondiana" e " Mu ri li ana" , entre outros, a
intenção do poeta não é a de, através de uma apropriação dos
recursos composicionais de um outro poeta, aproximar-se de
uma perspectiva ideológica similar â sua, mas sim de, através
desses recursos, afastar-se de forma mais ou menos radical da
sua intenção original. Conceitos importantes da teoria literária precisam ser verificados aqui: a "intertextualidade" e a
oposição "paródia" x "paráfrase".
0 problema da interrelação dos enunciados lingüísticos
é complexo e objeto de diferentes abordagens. Todo discurso
estabelece sempre algum tipo de relação com os outros discursos possíveis. 0 russo Mikhail BAKHTIN, entre os teóricos da
linguagem e da literatura, é um dos autores que insistem na
natureza social e dialõgica de toda a linguagem. 25
No âmbito
da literatura, essa realidade tem sido apontada como essencial â própria natureza do discurso literário. Entre os autores que sobre ela se debruçaram, Julia KRISTEVA, partindo de
muitas das considerações de Bakhtin, porém in corpo ran do-as ã
perspectiva da semiótica, é nome referencial:
0 significado poético
remete a o u t r o s
significados
discursivos,
de m o d o a
serem l e g í v e i s ,
no e n u n c i a d o
poético,
vários outros
discursos.
Cria-se,
assim,
e m t o r n o d o s i g n i ficado
poético,
um e s paço textual
múltiplo,
cujos
elementos
são s u s c e t í v e i s
de a p l i c a ç ã o n o
texto
poético concreto.
Denominaremos
este
e s p a ç o de i n t e r t e x t u a 1 . 2 6
217
Um texto é, na verdade,.o cruzamento de vários textos:
"Nesta perspectiva, claro é que o significado poético não pode ser considerado como dependente de um único código. Ele é
ponto de cruzamento de vários códigos
(pelo menos dois)>
se encontram em relação de negação um com os outros". 2 7
que
Esta
última passagem recebe formulação complementar mais clara a
seguir: "o texto poético é produzido no movimento complexo
de uma afirmação e de uma negação simultâneas de um outro
texto". 2 8
A "intertextualidade", vista assim enquanto algo que é
essencial ao próprio discurso literário ;( KRISTEVA: "o espaço
intertextual
(...) é o lugar de nascimento da p o e s i a " 2 9 ) , por-
tanto algo que é comum e necessário a qualquer texto literário, adquire também o estatuto de procedimento composicional
na medida em que o diálogo ê buscado propositalmente pelo autor. Ë o caso de "Os navegantes", por exemplo, em que a referência ao texto camoniano não surge por acaso, mas sim de
forma intencional. Aqui, os conceitos de "paródia" e "paráfrase" , conceitos tradicionais da retórica e da poética, porém também objetos de reflexão teórica mais recente, exigem
consideração.
Affonso Romano de SANT'ANNA trata destas questões em
um estudo bastante suscinto e didatizado: Paródia, paráfrase
e cia. Neste trabalho, o autor propõe alguns diferentes
delos" envolvendo os conceitos citados,
"mo-
interrelacionando-os,
em alguns casos, a outros conceitos como os de "estilização"
e de "apropriação". Entre estes "modelos", o mais simples,
aquele que opõe exclusivamente "paráfrase" a "paródia", e que
o crítico vai tornando mais complexo ao longo do seu estudo
218
através da apresentação de outros modelos, é o que se afigura
o mais produtivo para a presente análise literária.
Segundo SANT'ANNA, "falar de paródia é falar de "intertextualidade das diferenças'"; "falar de paráfrase é falar de
' intertextualidade das semelhanças'". 30
A "paródia" parte de
um determinado discurso para deformar seu sentido original,
impondo assim a diferença. A "paráfrase" reforça os sentidos
do discurso de partida; ressalta a semelhança. 0 crítico, não
muito distante de certas noções da lingüística estrutural,
vai dizer que a "paródia" e a "paráfrase" compõem dois eixos:
um "eixo parafrãsico" e um eixo "parodístico". Desta forma,
"a paródia, por estar do lado do novo e do diferennte, é sempre inauguradora de um novo.paradigma. De avanço em avanço,
ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmáticamente". Em contraste a isto, "a paráfrase, repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo jã estabelecido, de um
velho paradigma". 31 Ideologicamente, as duas operações têm
ressonâncias importantes: "Do lado da ideologia dominante,
a paráfrase ê uma continuidade. Do lado da contra-ideologia,
a paródia é uma descontinuidade". E ainda: "Na paráfrase
alguém está abrindo mão de sua voz para deixar falar a voz do
outro. Na verdade, essas duas vozes, por identificação, situam-se na área do 'mesmo'. Na paródia busca-se a fala recalcada do 'outro'". 32
A luz dessas noções, seria interessante investigar o
tipo de diálogo in.fcertextual que o poema transcrito de Paes
vai estabelecer com Camões, indagando mais detalhadamente
dos sentidos possíveis dessa operação.
219
O poema "Os navegantes" tem ao todo oito estancias, sendo
cada uma delas composta por quatro versos decassilábicos. Os
decassílabos são todos eles heróicos (acentuação principal na
sexta e na décima sílabas), com exceção do último verso do poema, um decassílabo sãfico (acentuação principal na quarta, na
oitava e na décima sílabas). Quanto ãs rimas, são observadas entre Q segundo :e o quarto de cada estancia, excetuando—se a de numero cinco, com rimas também entre os versos primeiro e terceiro. Os padrões fónicos entre os pares de rimas são bastante
variados, não havendo qualquer repetição entre as estâncias:
estrofe 1 ("-ados"); 2 ( "tida ( s) " ) ; 3("inho"); 4 ( "-eiro ( s) " ) ;
5("-amos"),
(-"ais"); 6 ("-ãria(s"); 7 ("-ano"); 8 ("-ar"). -
Ouanto aos aspectos^formais mais exteriores, predomina neste
-poema,--portantOr,-~_uma--regularidade - bastante evidente .
; Um-a-pr-imeira^ aproximação com a poesia de Os - Lu siadaspode ser tentada aqui neste nível. Em Camões, a regularidade
formal é evidente e característica do classicismo que anima
a sua poesia: todas as estâncias de seu longo poema épico são
oitavas compostas por decassílabos heróicos mesclados a decassílabos sãficos. Todas as oitavas do poema .obedecem a um mesmo
padrão rímico: abababcc. Este tipo de rigor composicional, esta
obediência estrita a um padrão formal pré-fixado, típica de
lima postura classicizante diante da poesia, é resgatada em
certa medida no poema de Paes, como se apontou acima. Mas, aqui
neste nível de abordagem, o uso do decassílabo, e em especial
do decassílabo heróico, é que vai remeter, de forma mais explícita, o texto de Paes ao de Camões. 0 decassílabo ê metro que
se introduz na poesia em língua portuguesa no Renascimento, a
partir da influência italiana. Ë o metro único da poesia épica
220
de Camões, resgatada aqui referencialmente, e dos seus sonetos, alternando com o hexassilabo nas demais formas líricas
italianizantes (ou classicizantes: a canção, a ode, a elegia,
a écloga, etc.) cultivadas pelo poeta.
Mas estes paralelos apontados seriam frãgeis demais se
não houvesse elementos mais característicos manifestando o
dialogo entre os textos. No emprego de certas palavras, na
adoção de uma dicção poética que soa a Camões, na citação de
versos, na abordagem de uma mesma temática
(a da expansão ul-
tramarina lusitana), na referência explicita ao poeta ("o
zarolho"), verifica-se de forma clara o propósito de retomar
o clássico português.
üma rãpida abordagem da ...primeira estrofe ë jã bastante
-reveladora. Pelo menos dois dos:: versos são-_-re tirado s de Os .
Lusíadas.,, e logo da conhecidlssima proposição inicial do
poema, nas primeiras
estrofes do primeiro canto: Camões -
"Por mares nunca dantes navegados"; Paes - "Os mares nunca
dantes navegados"; Camões - "As armas e os barões assinalados"; Paes --"A estirpe dos barões assinalados". 0 curioso
modo verbal, o imperativo, presente nesta primeira estância
do poema de Paes ("Tenham sanhas, querelas, tempestades, /
Os mares nunca dantes navegados."), mas também nas estâncias
seguintes (p.ex.: "Cante o vento na rede das enxãrcias"; "Mostre a bússola válido caminho"; "Pene o mouro na gleba"; etc.)
ecoa bastante próximamente os versos da terceira estrofe do
mesmo primeiro canto do poema épico: "Cessem do sãbio Grego
e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; /Cale-se
de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; /
Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / (...)".
221
Referência explicita ainda a Camões ë feita na estrofe
sétima em pelo menos duas passagens. Primeiro: "Diga o zarolho, pois, da grã porfia / Da lusitana grei contra o oceano".
"Zarolho" ê epíteto que alude ã deficiência visual do poeta
portugués. A "grã porfia" diz respeito a todo o processo de
conquista marítima lusitana (nomeadamente a viagem de Vasco da
Gama ãs índias), matéria central da epopéia de Camões, cuja
composição ("Diga o zarolho (...)") ë aqui referida diretamente. Segundo: "Recorde embora o Velho do Restelo / Da fama
e da ambição o ledo engano.".
A passagem evoca famoso episó-
dio de Os Lusíadas, quando a armada portuguesa encontra-se em
preparo e prestes a partir, e na praia, onde todo o movimento
se" verifica, um " homem velho (o "Velho do Restelo") advertede forma arrebatada contra.os perigos morais da conquista ultramarina, condenando aquele que para ele é seu verdadeiro
móvel, a cobiça, escondida por trãs do nobre ideal de expansão da "Fé" e do "Império". 0 episódio do Velho Restelo ë um
dos momentos de contra-ideologia dentro do texto=de Camões,
reservado, em sua maior parte, sem restrições, ã louvação entusiasmada dos heróis portugueses e de seus feitos.
O léxico escolhido por Paes e ainda alguns detalhes de
sintaxe ressaltam a intenção de resgatar o texto clássico. 0
uso do imperativo, que forja paralelo evidente, jã foi apontado. Ainda a nível de sintaxe ë de se destacar o emprego de
uma figura com
o hipérbato, muitíssimo comum no texto camo-
niano, e que trai a intenção do autor português de se aproximar de uma dicçãó latinizante: Paes - "Da fama e da ambição
o ledo engano", ao invés da ordem natural, "o ledo engano da
fama e da ambição"; em Camões e na poesia de carãter clássico,
222
esse.
tipo de inversão é muito comum - "E vós, ó bem nascida
segurança / Da Lusitana antiga liberdade", ao invés de "da antiga liberdade Lusitana". A nível lexical as aproximações são
muitas. A utilização de um adjetivo como "asinho"
("E fama nos
virã em tempo asinho"), ou de formas verbais como "alimpa" ("No
rude mais se alimpa (...)") e "hemos"
("Hemos a gula vil do
mercador") apontam para uma intenção arcaizante óbvia no texto
do poeta moderno. Termos relacionados ao universo da marinhagem,
e aqui tipicamente da marinhagem ã vêla, são outro Índice de
paralelo: "enxãrcias",
"veíame", "astrolãbio"; : e ainda certas
expressões verbais: "afane-se o marujo na partida", "impe o
veíame inquieto". Ë ainda termos de um registro evidentemente
bastante elevadoy erudito, pouco correntes, apontam para a
intenção de revestir o-poema de Paes de uma-ãuiea de classicismo:
"sanhas", "querelas",
"lida", "vezeiro", "alimãria",
"porfia",
"grei", "Cipangos", por exemplo.
Essas observações acabam por evidenciar o grande cuidado
artesanal e apuro formal do poeta moderno ao procurar resgatar
a dicção do poeta quinhentista português. .Um cuidadoso leitor
da poesia clássica em língua portuguesa surge- al. Novamente pode-se falar aqui daquele Paes "poeta dos livros", autor de uma
poesia que se alimenta da própria poesia. A aproximação ao texto de Camões revela-se de tal forma."amorosa" por parte de Paes
que a intenção critica em relação
ã perspectiva ideológica que
a alimenta como que se atenua. Diferentemente de um outro poema
desta mesma série, como "A cristandade", em que um texto ê retomado paródicamente com intenção satírica muitíssimo contundente
(nesse caso, como se verá, a oração cristã "Pai Nosso"),
e onde uma apropriação carregadamente distorcedora se verifica,
223
a apropriação aqui de Camões é bem mais delicada, como se o
poeta criticasse sua valoração do ideal da expansão maritima,
mas ao mesmo tempo quisesse prestar homenagem ã sua poesia. Seria produtivo mergulhar então no texto de Paes para ver de que
forma a critica é exercitada.
Nas ,três primeiras estrofes de "Os navegantes", a perspectiva enobrecedora que anima boa parte de Os Lusíadas é resgatada sem dissensões. Por trás desses versos evidencia-se jã
um sujeito poético que não é mais imediatamente o próprio poeta, como se verificou na totalidade.dos poemas dos livros anteriores de Paes, mas sim um "outro". 0 poeta vai atribuir esses
enunciados a outros, aqui no caso aos próprios navegantes. São
eles q u e s u p o s t a m e n t e ,
em tom-exaltado e confiante, proferem
de maneira imperativa - o que al se lê. Na primeira estrofe, as
"sanhas", "querelas" e "tempestades" dos. mares que eles estão
a singrar, longe de serem motivo de adversidade e desânimo,
são maneira de mantê-los em forma, de melhor- prepará-los: "No
rude mais se alimpa e mais se apura / A estirpe dos barões
assinalados.". A autocaracterização
"barões assinalados"
(os
varões que se distinguem dos demais), originalmente da pena
de Camões, revela uma auto-estima apurada, uma consciência do
próprio valor, um en.obrecimento e uma heroicização patentes.
Repare-se nas sugestivas sonoridades da primeira estrofe, no seu revigoramento dos sentidos al embutidos. Os dois
primeiros versos alternam vogais médias e anteriores nasais e
orais, âs vezes um pouco menos, às vezes mais abertas. Nas
sílabas tônicas, as de maior destaque, predominam os "ee" e
"aa" orais e nasais:
224
(verso 1)
Tenham sanhas, querelas, tempestades
/ë//ã/ /ã//a/
/ê//ë//a/
/ë//ê//a//i/
(verso 2)
Os
mares
nunca
/u/ /a//i/ /ü//a/
dantes
navegados.
/ã//i/ /a//e//a//u/
As vogais mais abertas orais intercaladas ãs um pouco
mais fechadas nasais corresponde a evocação da amplidão e do
movimento do mar imenso.
Compondo um certo contraste, no terceiro verso, vogais
mais.-f echadas—anteriores e posteriores ("alimpa"; "rude" e
"apura") predominam nas sílabas tônicas. A sonoridade de um
vocábulo como "rude", colocado no inicio do verso,-ë importante : a própria idéia de "rudeza" como que está contida no forte e vibrante /R/ inicial, seguido pelo fechado e posterior
/u/ e -pelo oclusivo /d/. A vibração rasgante do ar na garganta no fonema inicial, o fechamento da boca no som vocálico e a
explosão do ar na oclusiva final acentuam a sensação de obstáculo, de dificuldade, de estreitamento que está sendo evocada.
A conjunção de som e sentido al como que contamina todo o verso. A maior abertura dos sons vocálicos dos versos iniciais
sucede um maior fechamento: "rude", "alimpa", "fip.ura". Esses
sons vocálicos evocam os ângulos agudos, os afunilamentos, que
tão bem ressaltam a idéia de um aprimoramento via
provações,
de refinamento, enfim, al referida.
Em todos os versos da estrofe abundam os sons consonantais oclusivos: verso 1 - "tenham","querelas", "tempestades";
225
verso 2 (oclusivas orais mescladas ãs nasais) - "mares", "nunca", "dantes", "navegados"; verso 3 - "rude", "alimpa", "apura";
verso 4 - "estirpe", "dos", "barões", "assinalados". A agitação dos mares tempestuosos e a provação dos navegantes têm
inte-
ressante correspondente sonoro na turbulência e dureza das oclusivas orais e no envolvimento volumoso das oclusivas nasais.
Na segunda.e na terceira estrofe, o tom desta primeira
tem continuidade. É com uma mesma predisposição imperativa que
os navegantes, depois de se terem dirigido ao mar ("Tenham sanhas, querelas, tempestades / Os mares nunca dantes navega-, •.
dos."), dirigem-se agora a outras realidades do universo da
expansão marítima., Sintaticamente,, as estruturas , são recorrentes, o que acentua, o parentesco , entre as partes, e da a idéia
de uma.unidade inicial entre estas-primeiras estrofes.
No início da segunda estrofe, uma primeira atenção recai sobre o "vento": "cante o vento na rede das enxãrcias".
Repare-se nos contrastes sonoros do verso: na primeira parte,
a concreção do vento no som cheio dos .fonemas vocálicos nasais
e no fricativo velar /v/ do próprio termo "vento"; no final,
o contraste_:de novo.s._ padrões sonoros , sobretudo era- "das-enxãrcias" , onde fonemas vocálicos orais abertos ocupam as sílabas
tônicas e fonemas consonantais fricativos alveolares e palatais surdos se alternam -.aqui tem-se sugerido o vento em chapa a atritar-se
(ressalte-se a .importância das fricativas pa-
ra essa sensação) com as redes que pendem dos mastros. Do vento, o foco passa para os marujos, destes para o veíame e daí
para a proa cortando o mar. Hâ algo de cinematográfico nessa
captação de detalhes em progressão de elementos e realidades
da caravela, dispostos coordenadamente como numa montagem,
226
que pouco a pouco vão dando as dimensões e os sentidos do todo.
Destaque-se o belo verso final da segunda estrofe: "(...) corte
a proa / O infinito das ãguas repetidas", onde a imensidão do
mar ë reiterada pela relativa redundância semântica
("infini-
to", "ãguas repetidas").
Na estrofe terceira, o processo verificado na anterior
se repete, agora jã não mais destacando-se. elementos visivelmente concretos ligados â embarcação e. ao movimento em sua superfície, mas sim exclusivamente â atividade marinheira mais
interna: a preocupação com a direção - "astrolãbio" e "bússola" - e com o registro dos achados'- "Nas cartas se escriture
todo o achado". 0 verso final da terceira estrofe ê como que o
ponto de convergência de toda a agitação e atividade- que-_.vinham
séndo mencionadas"" desde--o primeiro verso;- ë como-que um ponto
de chegada , a-razão ..final de-todas, aquelas-ações
Ressalte-se
aqui o seu significado em termos de uma visão de mundo que se
estã querendo explicitar: "E fama nos virã em.tempo asinho.".
É importante destacar a natureza dessa "fama", no texto camoniano envolta obviamente de valoração positiva
(não se esqueça
aqui o ideal da expansão da "<F.ê" e do "Império" que alimenta a
voz dominante do poema), mas que aqui vai receber um outro direcionamento por parte de Paes.
A estrofe quatro representa uma espécie de viragem em
termos de expectativas, tendo-se em vista, obviamente, uma
leitura que acentue a consonância inicial de "Os navegantes"
com o espirito que anima o poema épico luso. Aqui, a natureza
da "fama" mencionada anteriormente começa a ser explicitada.
Na autocaracterização dos navegantes que domina os quatro versos desta estrofe, nada remete àquele ideal cruzado e aristo-^
227
crático de expansão da "Eê" e do "Império". Também a autocaracterização dos navegantes feita no inicio deste poema ë posta em xeque em seus sentidos mais elevados, mais ideais ("No
rude mais se alimpa e mais se apura / A. estirpe dos barões
assinalados."). O significado mais eminentemente material das
navegações e descobertas ë acentuado: "Achar ë nossa lida mais
constante / E lucro o nosso empenho mais vezeiro: / ( -. . . ) ".
Surge aqui uma tensão ideológica evidente na voz que profere
estas palavras, que faz desmoronar aquela atribuição de enunciados feita pelo poeta aos marinheiros. Aqui ë naturalmente
o critico moderno que toma a cena e corrói por dentro, de forma nada sutil, o discurso. Paes sugere atribuir inicialmente
aos navegantes um discurso independente, assentado-naqueles
valores defendidos pela visão ideal do poeta de Os Lusíadas.
0 paralelo quase parafrástico com o poema épico, somado ao tom
positivo e empreendedor dos navegantes e mais a referência ao
refinamento da "estirpe dos barões assinalados", autocaracterização idealizante, e enobrecedora, como que autorizam essa
leitura. A confissão " e lucro nosso empenho mais vezeiro"
destrõi a independência do discurso, pois não são os navegantes que falam por ela, tão pouco os seus ideólogos mais idealizadores e exaltados
(entre eles Camões), mas sim o poeta
moderno, situado em posição deslocada, distante rio tempo, no
espaço, e no universo desvalores referenciais. Instaura-se
aqui, portanto, a paródia: retoma-se a palavra de um "outro"
para alterar-lhe os sentidos originais. Ideologicamente, o
significado desta operação jã foi apontado: a paródia está "do
lado da contra-ideologia"; ela "ê uma descontinuidade", uma
"deformação"; seu efeito ë de
"deslocamento" em relação aos
228
sentidos originais ' (ÍBANT'ANNA) . como tal, ela opera uma critica por dentro do próprio discurso.
A operação executada por Paes ê complicada por certos
detalhes do texto: ele sugere destruir a imagem ideal inicial
dos navegantes revelando sua suposta imagem real (de "barões
assinalados" passam a mercadores empenhados exclusivamente no
"lucro"). Porém os versos finais da quarta estrofe problematizam um pouco essa nova avaliação: "Hemos
a gula vil do merca-
dor / Num coração febril de marinheiros."
0 desnudamento, a critica contundente ficam por conta
do primeiro destes versos: "Hemos a gula vil do mercador".
"Gula", por si só, é jã termo de conotação negativa; acrescido
do adjetivo "vil", tem redobrado este seu sentido. "Mercador"
recebe secularmente avaliações muito pouco entusiasmadas: a
expansão da atividade mercantil está no cerne do surgimento
do mundo moderno, da economia de carãter capitalista, da visão
liberal do mundo; tanto para uma cosmovisão.religiosa e aristocrática, como a medieval . (na qual ainda está muito mergulhado o Camões épico, a despeito do seu vinculo com o Renascimento e o Humanismo), quanto para uma visão moderna assentada
nos ideais do socialismo, de critica política e social
(a vi-
são de Paes neste instante de sua poesia), o que.o "mercador"
representa não tem nada de positivo.
Diferentemente, o verso seguinte
("Num coração febril
de marinheiros") não pode ser visto no mesmo nivel daquele.
Sintaticamente, os dois versos têm muitos paralelos, acentuados
ainda pela disposição visual dada pela estruturação do poema:
"gula"/"coração", "vil"/"febril", "do mercador"/"de marinheiros". Porém, "coração", poeticamente a sede dos sentimentos,
229
da alma, do que ë interior e essencial ao homem, afasta-se em
seus sentidos de "gula", que remete a atividade humana bem menos "nobre". Em oposição ao sempre idealizado "coração", muito
bem abrigado na caixa torãxica, evoca-se aqui a atividade digestiva de estômago e intestinos, situados no mais vulnerável
ventre, órgãos tão associados ã carnalidade, à materialidade
imediata do humano. Também "febril" não pode ser posto no mesmo nivel de "vil". O sentido negativo deste último ë óbvio. Jã
"febril" reveste-se de outras nuanças. 0 dicionário dã alguns
outros termos no plano dos sentidos figurados: "exaltado",
"apaixonado'-V, "febricitante". 33 A exaltação al referida encontra consonância no tom animado e vibrante geral, das estrofes.
Tem muito de febril a voz que se exprime neste poema. Ä frieza
e ao cálculo do comerciante
(do "mercador") opõe-se aqui o ca-
lor, a vibração, o entusiasmo, enfim a "febre" do "marinheiro".
"Marinheiro", apesar de poder confundir-se com o "mercador",
é
também personagem objeto de visões mais idealizadas, pelo
seu vinculo com a aventura, pelo seu contato com o novo, com o
desconhecido. Constitui
figura que pode se^ heroicizada, ao con-
trário da outra. Resumindo: a caracterização do navegante, a
despeito do desmascaramento central operado pelo poeta, resvala ainda no que sobra de uma valorização positiva. Assim,
não temos o navegante trasladado maniquelstica e taxativamente
do rol dos "heróis" ao rol dos "vilões", de forma excessivamente redutora, mas sim entrevisto de modo um pouco mais tenso e
intrincado.
Mas a realidade material do móvel da conquista ultramarina estã revelada, e ë ela que dã a tônica do poema. A estrofe número cinco ressalta esta perspectiva. No primeiro verso
230
repete-se o recurso ao imperativo, dominante nas três primeiras estrofes, e responsável pelo carãter de exaltação, de ânimo e disposição positivos verificados. Lã, porém, não havia
qualquer dissonância interna ao enunciado, como ocorre aqui.
A escravização do inimigo secular
(o "mouro") para substituir,
nos trabalhos internos na lavoura, a escassa população portuguesa, agora engajada na colonização ultramarina, ë problema
de dimensões sociais ausente das primeiras estrofes: "Pene o
mouro na gleba, que buscamos / Não colheitas de terra, mas navais.". Lã era a visão grandiosa do mar, a sensação de enobrecimento daqueles que se lançam aos seus trabalhos, o movimento nas embarcações como que cinematográficamente captado, a
referência ao trabalho marinheiro o que ganhava a cena. Aqui,
após a viragem critica apontada.na estrofe anterior, são os
bastidores miseráveis da exploração marítima que vão surgindo
aos olhos. A este cenário opõe-se, em evidente contraste, a
exuberância dos ganhos comerciais:."No comércio marítimo fundamos / Opulência, destino, capitais.". Repare-se na sugestiva
enumeração deste último verso. A certeza das conquistas materiais e do poder que isso acaba por significar ë tamanha, que
uma idéia abstrata, transcendente, superior ao humano como a
de "destino", surge aqui nomeada entremeadamente a "opulência"
e "capitais", envolvida, cercada, subordinada, portanto, ao
humano e ao material. "Fundar o próprio destino" significa negar o transcendente e afirmar as potencialidades do humano
numa dimensão exclusivamente material, operação que está na
gênese da modernidade.
Na sexta estrofe, alguns objetivos das viagens marítimas são enumerados. A pluralização dos nomes próprios ( -"Cipangos",
231
"Catais", "índias") dá a estas referências um certo ar de indeterminaçáo geográfica, transporta-as para um plano mèio mágico, meio mítico, que a adjetivação ajuda a ressaltar: "Cipangos misteriosas", "fabulosas Catais", "índias lendárias". É
mistério, fábula e lenda o que cerca essas regiões desconhecidas do homem europeu. Há um certo fascínio nestas evocações,
que a sonoridade dos versos de.Paes deixa transparecer: "Almejamos Cipangos misteriosas, / Fabulosas Catais, índias lendárias.". Observe-se primeiramente.os "ss" finais de todas as
palavras, e no interior de algumas delas ("Cipangos", "misteriosas") , funcionando como um liame sonoro seguró entre elas,
prolongando sua extensão quando se as pronuncia
- qualidade das
fricativas -, reverberando, em síntese,.no interior dos versos.
Repare-se nos ecos internos, ligando os segmentos sintáticos:
do verbo ao primeiro objeto enumerado: "almejamos", "Cipangos"
- o /ã/ nasal e fechado nas sílabas tônicas; do primeiro ao
segundo, e aqui fazendo a ligação entre os versos: "mister
4
riosas", "fabulosas" - todo uma rima interna pode ser escutada
ai; e do segundo ao terceiro: "Catais",, "lendárias" - o /a/
aberto e as oclusivas llnguo-dentais surda /t/ e sonora /d/
nas sílabas tônicas -, e a inversão dos ditongos: "Catais" /ay/
para "índias" /ya/ e "lendárias" /ya/. Nos versos três e quatro da estrofe resgata-se uma certa dimensão heróica da conquista, que havia sido posta em questão, como se destacou. As
dificuldades das navegações são reiteradas: "As latitudes
são-nos desafio". As ondas do mar recebem evocação sugestiva:
"Sendo as ondas do mar nossa alimãria". Os barcos sobre o,mar
são postos em paralelo com os cavaleiros sobre os seus cavalos.
Implicitamente, ressoa aí.o ideal da cruzada: os navegantes
232
não são meramente comerciantes, são também heróicos cavaleiros. Novamente, vê-se oscilar aí a perspectiva ideológica dominante do poema. Esta estrofe, diferentemente das duas anteriores e em consonância com as primeiras, como que se desloca
para o pólo da paráfrase.
A sétima estrofe, como jã se destacou, traz referências
diretas a Camões (o "zarolho") e Os Lusíadas. .A matéria central do poema épico é.destacada: a "grã porfia da Lusitana
grei contra o oceano"; esta matéria, que pela voz central do
poema recebe tratamento entusiasmado e positivo, é porém vista
em certos segmentos do texto de forma bastante crítica, como é
o caso do episódio do Velho do Restelo, aqui também resgatado:
"Recorde embora, o-Velho.-do.. Res te lo-/ Da fama-e-da .ambição o
ledo engano."v Assim,"nesta estrofe tem-se - referidas duas diferentes avaliações da expansão ultramarina, retiradas ambas
do próprio texto camoniano: positivamente avaliada, a expansão
é "a grã porfia da lusitana grei contra o oceano"; no outro
pólo, ela é, porém, "o ledo engano da fama e da ambição". Pode-se dizer que a crítica paesiana via paródia aqui neste poema em muito se aproxima desta.última perspectiva. É o que vai
ficar claro na última estrofe.
Aqui, o fruto do ideal da conquista ultramarina (os
"brasis de boa aguada") é visto como o próprio fim do impulso
que lhe deu origem ("E, algemado ã conquista, hã de morrer /
Aquele Impériój que nasceu do mar.") . Repare-se na pluralização do nome próprio "Brasil" e na sua grafia em letra minúscula, o que respectivamente o aproxima e o afasta de mesmo recurso usado na estrofe sexta do poema em relação a outros
233
topónimos. O termo "brasis" possui um alto grau de indeterminação, muito ao contrário de "Brasil". No plural, como que se dilui a sua identidade, uma sua possível unidade. Esta é a visão
do colonizador, que não pode olhar para o Brasil.enquanto algo
singular e estando num mesmo nível - dai o plural e a grafia
com letra minúscula da letra inicial. Contraste-se isso com
"Cipangos", "Catais", "índias": al o plural idefinidor, diluidor de uma identidade especifica, é o mesmo, porém a distância
ideal em que esses nomes como que. mágicos se encontram do universo português no início do processo da conquista ( o que pode
ser "lido" na maiusculização da primeira, letra) está bastante
distante da subordinação futura, referida nesta.última estrofe,
em que se.encontra o Brasil colônia em relação â matriz. índice
desta .mesma idéia ê o. uso dos., adjetivos : â idealização de . termos como "misteriosas", "fabulosas", "lendárias", opõe-se um
termo de referencial bastante concreto e pragmático como "de
boa aguada" ("brasis de boa aguada").
O poema "Os navegantes" exemplifica, portanto, a primeira atitude : mencionada de Paes diante da sua matéria, a
história do país. 0 recurso à. paródia deixa entrever certas
intenções satíricas, de visível carãter crítico. Os "navegantes" não são vistos numa dimensão idealizante, como dominantemente em Os Lusíadas, executores daquele duplo ideal da expansão da "Fé" e do "Império", "cruzados" que após as conquistas
em terra partem agora para o mar, mas sim. dentro de uma perspectiva bem menos ideal, como, aliás, jã vislumbrara o próprio
Velho do Restelo camoniano.. Os móveis materiais, econômicos,
da conquista é que são na verdade destacados, e ao invés de
234
"barões assinalados", tornam-se eles "mercadores" de "gula
vil" é preocupados sobretudo com o "lucro".
Porém, esta operação realizada por Paes tem momentos de
tensões internas, como se destacou. O texto do poeta moderno,
apesar da inequívoca intenção parodística, resvala ãs vezes numa perspectiva que se pode dizer parafrástica; a. voz atribuída
aos navegantes está em constante combate com a voz do próprio
poeta; ora são os "barões assinalados"
(na visão camoniana)
quem fala, ora o "mercador" de "gula vil". Essa tensão encontra-se bastante bem delineada, como já se destacou, nos versos
três e quatro da quarta estrofe
("Hemos a gula vil do merca-
dor / Num coração febril de marinheiros.").. Também na comentada estrofe de número.sete ; esta mesma tensão encontra-se referida nas- -mençõe-S-a-Camões (aqui enquanto configurador de um
"eu" poético, que unifica uma certa._.visão positiva e "ideal da
expansão) e ao Velho do Restelo ( voz que
configura uma con-
tra-ideologia internamente ao próprio poema camoniano). Também
a tensão- referida da critica ideológica paesiana mesclada ã
reverência literária frente :ao poeta Camões corrobora o que
aqui se está pretendendo ver enquanto um problema.
A intenção satírica se espraia ainda por vários outros
poemas de Novas cartas chilenas. O recurso ã paródia, o humor,
a ironia - elementos possibilitadores de um distanciamento
critico diante da matéria abordada - são sempre mobilizados
no sentido de desmascarar os poderosos e as visões idealizantes que se constróem ao redor deles. As vezes a corrosão crítica ê extremamente contundente, como se pode reparar no
poema "A cristandade", em que se parodia a oração "Pai Nosso".
235
A primeira estrofe é jã bastante reveladora:
-Padre açúcar,
Que estais no céu
Da monocultura,
Santificado
Seja o nosso lucro,
Venha a nos o vosso reino
De lúbricas mulatas
E lídimas patacas,
Seja feita
A vossa vontade,
Assim na casa-grande
Como na senzala.
A ironia aí, como se pode ver, é violenta. Em meio â
principal oração católica se vão misturando as implacáveis e
pouco religiosas intenções dos grandes senhores da colônia.
_Criti.ca-se a estes, mas-também a religião, sempre em conluio,
e . portanto complacente, com o poderle.a exploração. Porém, a
sãtira-se reveste-ãs—vezes, de um humor menos virulento, como
ë o caso do anedõtico "L'affaire Sardinha":
L'AFFAIRE- SARDINHA
0 bispo ensinou ao bugre
Que pão não ë pão, mas Deus
Presente em eucaristia.
E como um dia faltasse
Pão ao bugre, ele comeu
0 bispo, eucaristicamente.
O recurso ao diálogo intertextual crítico e revelador,
como se destacou, é recorrente. A "Carta" de Caminha, surge
retomada no poema "A carta". Os decretos reais, índices de um
governo autoritário, centralizador, arbitrário, que concede
benefícios a partir.de seus interesses exclusivos e mais imediatos e daqueles que orbitam ao redor do poder real, são parodiados em "A partilha". Os testamentos que asseguram a posse
236
da propriedade dentro do âmbito das famílias mais abastadas
são também parodiados em "O testamento", agora aqui na perspectiva de uma "herança espiritual" e "material" deixada dos
"altivos" bandeirantes ã sua descendência: bacharéis, latifundiários, financistas.
A sátira predomina naqueles poemas que tratam da história do Brasil enfocando as figuras pertencentes ãs classes
dominantes. Em quase todos esses poemas, a voz que fala ë
atribuída pelo poeta a seus vários representantes
(os nave-
gantes, o emissário real, o rei de Portugal, os grandes proprietários colonizadores, os bandeirantes, D. João VI fugitivo de Napoleão, D. Pedro I, D. Pedro II, os republicanos,
os tenentes revoltosos em 20, etc.),-porém-ê
imediatamente
corroída pelo discurso.crítico do:próprio poeta
(via paródia,
humor, ironia). Este procedimento só cede espaço a outro quando a atenção se volta para aqueles episódios históricos imbuídos de um heroísmo revolucionário esmagado em suas intenções pelas forças do poder dominante. AÍ a voz do poeta não
é mais marcada por um distanciamento em relação ã sua matéria: agora o humor, a ironia, a paródia cedem lugar a uma
efusão apaixonada de revolta e indignação.
Representante desta segunda postura é, por exemplo,
o poema "Palmares", cuja segunda parte se reproduz aqui:
237
PALMARES
II
Negra cidade
Da liberdade
Forjada na sombra
Da senzala, no medo
Da floresta, no sal
Do tronco, no verde
Cáustico da cana, nas rodas
Da moenda.
Sonhada no banzo,
Dançada no bumba,
Rezada na macumba.
Negra cidade
Da felicidade,
Onde a chaga se cura,
0 grilhão se. parte,
0 pao se reparte
E o reino de Ogun,
Sango, Olorun,
Instala-se na terra
E o negro sem dono,
0 negro sem feitor,
Semeia seu-milho,
Espreme sua cana,
Ensina seu filho
A olhar para o céu
Sem odio ou temor.
Negra cidade
Dos negros, obstinada
Em sua força de tigre,
Em seu orgulho de puma,
Em sua paz de ovelha.
Negra cidade
Dos negros, castigada
Sobre a pedra rude
E elementar e amarga.
Negra cidade
Do velho enforcado,
Da virgem violada,
Do infante queimado,
De Zumbi traído.
Negra cidade
Dos túmulos, Palmares.
Os quarenta e dois versos encontram-se todos no corpo
de uma única
estância. Os versos têm metros predominantemen-
te curtos: mesclam-se sobretudo versos de quatro, cinco e seis
sílabas, a que ocorrências únicas de versos de três, sete e
oito sílabas vêm se somar. Dos versos, um deles surge de forma
recorrente
(ao todo seis vezes) ao longo do poema: "Negra
19 4
cidade". A recorrência deste verso permite segmentar o poema,
para a análise, em unidades menores, das quais ele seria o
introdutor.
Assim, um primeiro segmento se encontra entre os versos um e onze (de "Negra cidade" até "rezada na macumba"). Nos
dois primeiros versos, observam-se certas recorrências rítmicas: "Negra cidade / Da liberdade". Ambos são versos de quatro sílabas, com acento principal na quarta. A presença de
rima no final dos versos acentua esta proximidade. Ao parentesco no plano das sonoridades, vem juntar-se a ligação sintática entre os segmentos contidos nos versos: "da liberdade" é
adjunto adnominal de "negra cidade". Isso tudo acentua a íntima relação semântica ..entre os-termos, como se "negra cidade" .,
é ""liberdade" estivessem" ligados "necessária e indissociavelmente. Casam-se sintaticamente, pela própria estruturação da
oração, mas este casamento ë ressaltado pelas formas harmoniosas no plano das sonoridades.
A estës dois versos, que constituem o- sujeito de uma
oração cujo predicado vai se desdobrar ao longo dos próximos,
seguem-se outros que rompem com o padrão métrico e rímico aí
verificado. 0 terceiro verso, por exemplo ("Forjada na sombra"), tem cinco
.sílabas, com acentuação na segunda e na
quinta, sem relação rímica com os anteriores. Os outros versos afastam-se ainda mais dos primeiros. Repare-se na tensão
rítmica provocada pelos "enjambements" em que as pausas de
fim de verso não correspondem ãs pausas sintáticas, deslocadas agora para o meio dos versos: p. ex. "(...) no medo / Da
floresta, no sal / Do tronco, no verde /cáustico da cana, (...)".
A irregularidade métrica dos versos que compõem o predicado
239
dessa Trimeira oração
(respectivamente versos de cinco,
seis, seis, cinco, oito e três sílabas), a inexistência de
rimas ou outros recursos fónicos que estabeleçam qualquer
tipo de consonância sonora entre as partes, a tensão rítmica
dos "enjambements", a justaposição de segmentos com uma mesma
função sintática
(os vários adjuntos adverbiais) alongando
indefinidamente a resolução do período funcionam como motivações, no nível dos recursos formais, para os conteúdos aí verificados. Os desequilíbrios, as irregularidades, as tensões
- sonoros e sintáticos - ao longo dos versos que compõem o
predicado da oração ressaltam justamente as possibilidades semânticas aí presentes: os locais destacados (cf. os vários
adjuntos.adverbiais) pelo poeta como lugares em que o quilombo (a "negra cidade-da liberdade") vai surgindo a nível de
desejo e opção de liberdade pelo.escravo negro são todos locais de dor, sofrimento, angústia, desesperação, que as formas tensas e tortuosas dos versos muito bem ressaltam. Ë a
"senzala", são os trabalhos na fazenda
("verde cáustico das
canas", "roda das moendas") , os castigos" ("sal do tronco") e
as opções de fuga
("medo da floresta").
Os três versos seguintes, compondo um período de três
orações coordenadas, cada uma delas no espaço de um verso,
também referem-se a certos "espaços" em que a "negra cidade"
vai se elaborando a nível de desejo. No entanto, agora são
elementos exclusivamente do universo do negro e que a própria seleção de vocábulos de origem africana vai acentuar,
"espaços" próprios não determinados pelo senhor branco, os
que surgem aí: o "Banzo", a nostalgia mortal da África, sofrida no íntimo pelo indivíduo desenraizado, morte que implica
240
também uma libertação em relação ã situação servil presente;
o "bumba", o espaço da dança e da festa; a "macumba", o espaço do contato com o sagrado, em oposição ã religião católica
oficial dos senhores - elementos, em resumo, de afirmação de
uma cultura, potencialmente subversivos em relação ã cultura
originariamente branca.As' recorrências formais observadas nos
versos - estrutura sintática idêntica; orações dentro, dos limites do verso, portanto coincidência de pausas sintáticas e
pausas de fim de verso; metro e acentuação iguais entre os dois
primeiros
("Sonhada no banzo / Dançada na macumba"); rima en-
tre o segundo e o terceiro ("Dançada no bumba / Rezada na macumba") ; recorrência de padrões fónicos ( rimas internas em
"sonhada", "dançada", "rezada" e fonemas consonantais oclusivos bilabiais o_rais e nasais e- fonemas: vocálicos- nasais em
"banzo", "bumba", "macumba" ) - essas, recorrências dão ao conjunto uma harmonia ausente nos versos anteriores. Assim, aqueles espaços que são impostos pelo senhor branco áo escravo
negro (a senzala, os locais de trabalho e tortura, a fuga desesperada) são caracterizados de forma bastante contrastiva
em relação àqueles espaços que são exclusivos do negro: os primeiros, como se acentuou, surgem evocados através de versos tensos e tortuosos; os segundos, através de versos em que a harmonia é claramente sensível.
Uma segunda unidade pode ser observada entre os versos
doze ("Negra cidade") e vinte e seis
("Sem ódio ou temor") .
Aqui, aquela "negra cidade" que vai surgindo potencialmente
no espaço do engenho (segmento anterior) encontra sua concreta
e plena realização. Um único longo período, composto por orações e vãrios segmentos sintãticos dispostos todos sobretudo
coordenadamente, preenche o corpo dos versos.
241
Alguns elementos estruturais são índices de uma caracterização positiva desse espaço feita pelo poeta. A idéia de
uma harmonia de conjunto encontra-se na recorrência predominante de um certo padrão métrico: dos quinze versos, onze são
redondilhas menores; destes onze, oito têm um mesmo padrão de
acentuação
( - / - - / ). Repare-se também na presença de ri-
mas entre muitos dos versos, o que novamente sugere uma certa
consonância, uma certa harmonia: "cidade"/"felicidade",
"par-
te"/"reparte" , "OgunV'Olorun" , "feitor"/"temor" , "milho"/"f ilho" .
Entre os dois primeiros versos do segmento, recurso
semelhantemente usado no início do segmento anterior pode ser
observado. Como lã ("Negra cidade"/ Da liberdade"), aqui sintática e sonoramente, "negra cidade" vai ligar-se de forma
bastante estreita a um termo caracterizador: "felicidade".
Enquanto algo ainda não concretizado, enquanto um ideal, o
quilombo surgia para o negro cativo como uma possibilidade
de libertação; agora o quilombo, efetivado, é para ele a própria felicidade. Seguidamente a esta referência introdutória,
o poeta caracteriza mais singularmente este novo espaço. Os
contrastes com o engenho são evidentes na perspectiva assumida.
Observe-se os três versos que seguem aos dois primeiros: "Onde a chaga se cura, / O grilhão se parte, / o pão
se reparte". Todos eles podem ser lidos a princípio no seu
sentido mais imediato, mais concreto e palpável, mas são os
sentidos mais gerais que os versos propõem os mais sugestivos, os que vão melhor
caracterizar o novo espaço. Assim, a
"chaga" que é curada não diz respeito somente ã "chaga" causada
242
pelo trabalho exaustivo e pelas punições, mas também a todo o
mal "moral" e "social" da escravidão; o "grilhão" que se parte é o "grilhão" concreto do negro acorrentado e também símbolo da escravidão como um todo, subordinação "física" e "espiritual" do homem ao homem; o "pão" que se reparte é o alimento concreto e indispensável, ato, porém, que acaba alçado ã
condição de um ato ritual e simbólico, a explicitar a natureza da própria sociedade que se está a fundar, fraterna e igualitária.
Se no espaço do engenho a religiosidade negra surgia
de forma marginalizada, aqui ela encontra espaço central: "E'
o reino de Ogun / Sangô, Olorun, / Instala-se na terra". Além
de sugerir que a religião, a espiritualidade, o sagrado não
são coisas^desvinculadas da vivência imediata do homem, estes
versos ressaltam a caracterização positiva do quilombo enquanto realização de coisas ideais: tem-se aí a idéia do "paraíso
na terra", perspectiva comum ã todo o processo de concretização do transcendente, de introjeção de elementos humanizados
(valores políticos e sociais) no âmbito do divino.
Como se pode ver, o quilombo é apresentado de forma
bastante idealizada: espaço da liberdade, da felicidade, sociedade^ fraterna e igualitária, "paraíso na terra". 0 tipo
de vida que vai se estabelecer aí tem contornos de igual idealização. 0 negro, livre de dono ou feitor, dá ao seu : trabalho
um novo sentido: "Semeia seu milho, / Espreme sua cana". O
pronone possessivo nos dois versos ressalta essa idéia de liberdade e construção de um universo próprio, além de apontar
para uma sensível modificação da finalidade do trabalho, voltado aqui exclusivamente para o sustento do homem. O resultado
243
"moral" dessa nova sociedade ressoa em direção ao futuro: "Ensina seu filho / A olhar para o céu / Sem ódio ou temor.". A
herança que o negro liberto pode deixar para o filho ë muito
diversa da herança do escravo. "Olhar para o céu" é ato de
sentido vãrio: olhar para cima, ou seja, não mais como escravo
submisso; olhar em direção a valores que estão no "alto", portanto valores de evidente superioridade - sociais, morais, religiosos, etc. "Sem ódio ou temor" dã a esta nova atitude um
carãter de superioridade evidente: nem o "temor" frente â
opressão branca, nem o "ódio", sua contrapartida afirmativa,
porém geradora de um processo circular sem saídas a vista
(opo-
sição "branco" x "negro" a gerar situação de permanente conflito) . A nova herança, o ensinamento ao filho, tem muito de
um orgulho positivo, resgate de uma dignidade obscurecida pela opressão.
Novo segmento pode ser apontado entre os versos que
vão de "Negra cidade"
(verso vinte e sete) a "Em sua paz de
ovelha" (verso trinta e um). Se no segmento anterior o espaço
do quilombo recebeu uma caracterização geral idealizadamente
positiva em oposição ao espaço do engenho, aqui esta caracterização prossegue, através de paralelos metafóricos muito sugestivos. A "negra cidade" - realidade cuja singularidade é
reafirmada aqui através da redundância "negra cidade dos negros" - ê marcada por uma obstinação cujo vigor é ressaltado
pelos paralelos escolhidos pelo poeta: "obstinada" "em sua
força de tigre", "em seu orgulho de puma", "em sua paz de ovelha". A caracterização e bastante matizada, indo de um extremo ("força de tigre": agressividade, violência, beligerância,
prontidão para o ataque e a defesa), passando por um posto
244
intermédio
("orgulho de puma": altivez moral, auto-estima, su- ,.
perioridade), chegando a outro extremo ("paz de ovelha": coletividade, fraternidade, pacificação). O quilombo não ë visto,
portanto, pelo poeta de forma unívoca, apesar de não haver em
suas avaliações a mínima restrição, a mínima desconfiança diante de uma organicidade tão ideal.
O segmento seguinte
(entre os versos trinta e dois e
trinta e cinco; de "Negra cidade" atéc;"Elementar e amarga")
cria uma certa expectativa no que diz. respeito ao destino do
quilombo. Recupera-se a princípio a redundância: "negra cidade dos negros", como que numa insistência exasperada dessa
sua realidade. Porém algo perturba agora a ordem ideal anteriormente vislumbrada. "Castigada sobre, a pedra rude. e elementar e. amarga" ë expressão de tensos sentidos¡, O- seu desdobrar-se em "enjambements" pelos versos ("(...).castigada /
Sobre a pedra rude / E elementar e amarga.") somado a repetição da conjunção cooraenativa " e " e dos diferentes adjetivos
para um mesmo substantivo dispostos.em gradação ressalta o
tom dolorido que se apreende na voz. do poeta: os "enjanbements"
tensionam o ritmo; as repetições e gradaçoes. prolongam a efu —
são afetiva do sujeito que enuncia, como se, na sua incoformação com o ocorrido, ele buscasse sempre ainda um novo termo
que melhor explicitasse o que ele está .a. sentir e a dizer. Mas
a real dimensão do que aí se encontra, apesar do termo "castigada" deixar claro que algo de negativo acontece â comunidade negra, sõ se compreende de fato nos versos seguintes, quando a realidade do ataque branco ao quilombo e sua destruição
vão se evidenciar.
245
Novo curto segmento encontra-se entre "Negra cidade" e
"De Zumbi traído" (versos trinta e seis e quarenta). Após o
recorrente verso "Negra cidade" observa-se uma série de quatro adjuntos adnominais dispostos cada um deles em cada um
dos versos seguintes. Verso por verso, uma visão macabra começa a desenrolar-se diante dos olhos, morte e destruição daquilo que fora pintado de forma tão ideal: "velho enforcado",
"virgem violada", "infante queimado", "Zumbi traído". Cada
expressão dã conta de um determinado grupo de pessoas
("velho",
"virgem", "infante"), até chegar a Zumbi, chefe do quilombo,
e representante de todos os guerreiros. O adjetivo posposto a
cada substantivo dá as dimensões da violência imposta ao quilombo, num crescendo de aviltamentos que vai culminar com o
"Zumbi traído", e aqui a traição surge.alçada ã categoria do
pior dos suplícios.
O curto segmento final ë violentamente sintético: "Negra cidade / Dos túmulos, palmares.,". Só aqui o quilombo é
nomeado, como se o seu nome devesse ficar ligado definitiva
e exemplarmente ao crepúsculo doloroso que lhe foi reservado. 0 .adjunto, adnominal posposto aqui ã "negra cidade" - "dos
túmulos" - precisa ser visto no lugar que ocupa na totalidade
do poema. Como se destacou, o conjunto, que.não tem estrofes
interiores, pode ser visto, porém, enquanto composto por diferentes segmentos menores, introduzidos cada um pelo recorrente verso "Negra cidade". Cada vez que surge este verso,
observa-se uma complementação do seu sentido via acréscimo de
um adjunto. Na visão da alteração que vai. sofrendo ao longo
do poema, tem-se delineado o percurso do.próprio quilombo:
"negra cidade da liberdade", quando o quilombo se vai forjando a nível de possibilidade ainda nos limites do engenho;
246
"negra cidade da felicidade", quando ele se encontra plenamente realizado; "negra cidade dos negros" (duas vezes), quando
a ameaça ã sua organização começa a ser pressentida e sua
realidade precisa ser reafirmada; "negra cidade do velho enforcado, da virgem violada, do infante queimado, de Zumbi
traído", quando a destruição trágica se verifica e a fragmentação daquilo que era orgânico encontra-se.ressaltada pela enumeração dos diferentes grupos etários; e finalmente "negra
cidade dos túmulos", quando o circuito se encerra.
A perspectiva que o poeta assume neste, poema diante
dos acontecimentos da história é bastante diversa da perspectiva vislumbrada em "Os navegantes". Aqui hã uma plena identificação emotiva do poeta com aquilo que ele apresenta. Ele
toma, no tom geral,do poema, um partido claro, o dos negros,
idealizando sem reservas a organização social, que eles vêm a
empreender no quilombo. Vibra com suas alegrias e sofre com as
suas derrotas. Não há aqui o distanciamento crítico da ironia,
do humor e da paródia.-'A. crítica ã dominação exerce-se agora
de forma apaixonada, a partir da adoção de uma perspectiva clara: a comunhão com os socialmente.oprimidos e com os que se
revoltam..
Este procedimento repete-se na abordagem de outras passagens da história, como no caso da Incofidência Mineira. Repare-se como Tiradentes surge de forma heroicizada em versos
como os seguintes, retirados da parte VII do poema "Os inconfidentes" .
Mas reparai, cavalheiros
Da Igreja como do Estado,
Que um herói ficou de fora,
Embora fosse enterrado.
24 7
Tiradentes se recusa
Ao vosso fácil museu,
Panteón de compromissos,
Olimpo de camafeus.
Prefere a praça plebéia
Ao pé das bibliotecas
Onde, a soldo, vosso escriba
Faz da verdade peteca.
Visão similar encontra-se também em "Calendário", onde
revoltas e figuras históricas que se insurgem contra a opressão do poder centralizado são lembradas. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte segmento:
1848
A areia do tempo
Nada guarda. 0 vento
'. Logo - apaga- o equívoco
De oprimidos e opressores.
Mas, Conciliadores,
Lembrai-vos que os -vivos
Não enterram mortos
Como Pedro Ivo.
Voltando-se agora por fim para a história mais recente, o episódio.da revolta dos tenentes na década de 20, ë
numa perspectiva idêntica de exaltação idealizada que o então
revoltoso e. posteriormente líder comunista Prestes ë evocado.
A última estrofe do.poema "Os tenentes" ë bastante eloqüente:
Eram tantos '. Um apenas
Ficou (resgate de todos)
íntegro, lúcido, humano.
Sozinho vale por todos.
Saudai-o, pois, sob o sol
Que prestes serã de todos.
A perspectiva ideológica do poeta embutida nestes poemas como que complementa a anteriormente destacada. Naquela,
o distanciamento crítico corrosivo .em relação aos poderosos
via ironia, paródia, humor poderia simplesmente apontar para
24 7
uma perspectiva independente, distanciada igualmente de tudo,
marcada por um ceticismo vigoroso. A identificação emotiva
com oprimidos e revoltosos redimensiona o distanciamento, visto reservar-se ele apenas para certos estratos do todo social.
Hã ai, na postura global do poeta, um engajamento polltico-social evidente e, na opção que ele faz pelos "párias" da história, vislumbra-se de forma inconteste o intelectual de esquerda.
3.3.3
Conclusão
No contraste de Novas cartas chilenas (1954) com.os li-
vros anteriores de José Paulo Paes., O aluno (194 7) e Cúmplices
(1951)
a-despeito das-mudánças-evidentes., alguns traços co-
muns permanecem, estabelecendo-j-assim-um possível—1-iame entre
eles. A respeito dos-trabalhos anteriores, destacou-se jã o
Paes "poeta dos livros", leitor cuidadoso de poesia, capaz
de expressar-se com grande habilidade tanto nas formas mais
tradicionais (soneto, canção, ode, balada, madrigal, epigrama; decassílabos e redondilnas) quanto nas formas mais livres
que surgem na poesia brasileira a partir do Modernismo, resgatando muitas vezes inclusivamente a maneira de compor de outros poetas. 0 Paes "poeta dos.livros" encontra-se.neste Novas
cartas chilenas também.
Na ocasião da análise de poemas deste, último trabalho
de.Paes, introduziram-se aqui alguns conceitos da teoria literária, como os de "intertextualidade",.e .de "paródia" e
"paráfrase", modos do processo intertextual. A relação de um
te.xto com outros textos, segundo KRIS TE VA, é própria da natureza do discurso literário. Um texto se faz na "negação" e na
249
"afirmação" de outros textos anteriores, ou seja, no espaço
tenso das diferenças e das semelhanças. Um soneto de Paes,
como o "Soneto quixotexto",
de Cúmplices, por exemplo, atua-
liza as próprias possibilidades da forma, "afirma", portanto,
um certo modelo. Ao mesmo tempo, porém, ele "nega" as outras
possibilidades do lírico, como a canção, a ode, a elegia,
etc. Este mesmo soneto "nega" ainda todos os outros sonetos,
de Camões aos da tradição posterior, e outros possíveis do
próprio Paes, na medida em que ele se constitui enquanto peça
individual. Mas a intertextualidade pode ser vista também enquanto um procedimento composicional, enquanto uma opção intencional do próprio poeta. Aqui entram em pauta conceitos
como os de "paródia" e "paráfrase ",. abordados anteriormente a
partir das considerações de-Affonso Romano de-SANT'ANNA. No
primeiro-caso, tem-se um deslocamento em relação a um possível texto de partida, a instauração de uma diferença crítica;
no segundo caso, a afirmação de um texto primeiro, a reiteração das suas possibilidades.
A intertextualidade enquanto procedimento composicional é aspecto recorrente nos livros de. Paes. Se a sua consideração só entrou em perspectiva.no estudo.do presente livro,
ela pode porém ser estendida aos anteriores. A expressão
"poeta dos livros", retirada do sugestivo verso "Só me restam os livros", do poema "Balada", de O aluno, é índice desse
carãter. Ë sobre os livros, sobre os "textos" dos outros,
portanto, que Paes vai se debruçar para extrair sua poesia.
Esse caráter foi muito ressaltado no que diz respeito ao espírito do primeiro livro - O aluno -, em que Paes retoma o modo
de compor de outros poetas ("mestres" potenciais desse "ãluno"
250
de poesia) e também formas da tradição, para através deles
exercitar-se e, no exercício, intentar atingir uma dicção
mais pessoal. Estã presente, de forma mais atenuada no que
diz respeito a uma intenção patente, em Cúmplices, reunião
exclusiva de uma lírica amorosa, em que novamente algumas
formas cristalizadas da tradição literária recebem atualizações próprias por parte do autor.
Mas em Novas cartas chilenas a.intenção .intertextual
expande-e em vários níveis, desde o titulo, retomada das Cartas chilenas de Tomás Antônio Gonzaga, passando pelo aproveitamento parodístico de textos bastante específicos e localizãveis, como Os Lusíadas de Camões,-..a "Carta" de ..Caminha, a
oração "Pai Nosso",-chegando ao "texto" mais.geral ( somatória
destes" e de vários"outros "textos")" da própria história. Que
a história surge enquanto um texto em relação ao qual se estabelece Q diálogo essencial de Novas cartas chilenas, fica claro a partir de uma declaração do próprio poeta: "Nos. poemas
escritos depois de 'Cúmplices 1 , aproveitei reminiscencias de
leituras de história social do 'Brasil, a que me dedicara duran-,
te meses, para compor um friso histórico, da carta de Vaz de
Caminha ao põs-tenentismo
(...)". 34 A história ë recebida via
leitura, enquanto texto, portanto.
Alargando ainda o vasto horizonte intertextual de
Novas cartas' chilenas, a influência de obras de. Oswald de
Andrade e de Murilo Mendes precisa ainda ser registrada. É o
próprio Paes quem reconhece a influência, restringindo porém
seu significado: "Se bem se fizesse sentir (...) algum influxo
de Oswald de 'Pau-Brasil' e do Murilo Mendes de 'História do
Brasil', também se fazia sentir o esforço do seu, autor. ( -. . . )
251
no sentido de chegar a uma dicção pessoal". 35 A referência a
uma '"dicção pessoal" surge somente agora, quando se inaugura
o veio humorístico e de engajamento crítico do poeta
(pensan-
do-se aqui em termos de crítica política, social, cultural,
uma vez que o crítico de literatura jã se insinua no "poeta
dos livros" e no "aluno de poesia"). Aliãs, são justamente estes aspectos os que marcam a diferença entre este e os trabalhos anteriores, e que merecem ser observados agora com maior
detalhe.
Em 0 aluno (1947) e em Cúmplices. (1951) era o lirismo
subjetivo o. que compunha a tônica da poesia paesiana; agora
o raio das preocupações se amplia, extravasa os limites mais
restritos do sujeito, e ë um poeta voltado para o coletivo,
para o social, para a. totalidae dos sujeitos, em suma, quem
vai surgir aqui revisitando a.história e fazendo dela a matéria propícia para uma crítica político-social contundente.
Paes revela, assim, estar em plena sintonia com o momento cultural em que se encontra inserido. 0 engajamento político-social, como se acentuou, ë uma das. vertentes dominantes da produção artística: desses anos 50/60.
Diferentemente dos livros anteriores, observa-se agora
na poesia de Paes uma intenção satírica ..bastante evidente. 0
humor, a ironia, o sarcasmo, a paródia, elementos ausentes
dos primeiros livros, alimentam esta intenção, recorrente em
vãrios poemas de Novas cartas chilenas. A. respeito deste carãter, são reveladoras
as palavras de Paes: "O certo, porém,
ë que o problema da participação via poesia só se resolveria,
no meu caso, sob o signo do humor.. Um típico signo oswaldiano,
mas que conheci inicialmente na sua vertente drummondiana". 36
252
O humor paesiano, que se inaugura com este livro, surge motivado pela intenção de participação, de engajamento, de critica.
Novas cartas chilenas e, portanto, poesia de engajamento politico-social. Os poemas al contidos - aproveitando
aqui uma observação de Alfredo.BOSI - "reescrevem a história
dos colonizadores, mas com os olhos postos nas vexações sofridas pelos colonizados". 37
Nesse processo, como se pro-
curou evidenciar na análise dos poemas (e.sobretudo na análise mais minuciosa de "Os navegantes" e da segunda parte de
"palmares"), observam-se duas orientações fundamentais: ao
tratar dos colonizadores, a intenção predominante é a de sátira. corrosiva,-e-para - ela-contribuem. os-recursos por natureza críticos -da paródia,- do-humor, da—ironia-;:- quando o foco
recai sobre os colonizados/: e sobretudo sobre aqueles que se
insurgem contra a dominação, a intenção ê de comunhão còm a
sua causa e com o seu destino. Nesse duplo movimento de distanciamento e identificação oscila a poesia de Novas cartas
chilena^. Na critica impiedosa aos colonizadores
(leia-se
aqui também^ opressores) , no questionamento e na. rejeição da
sua "palavra"
(e para tanto ê fundamental o recorrente uso
da paródia, que mina por dentre o discurso), e na identificação com os colonizados
(os oprimidos, os "párias" da his-
tória) , numa profunda empatia com a sua visão das coisas,
surge al. o paradigmático intelectual de esquerda, fazendo sua
opção de engajamento num momento em que todos são chamados ã
participação nas questões centrais do pais.
253
3.4
3.4.1
EPIGRAFIAS (1958)
Introdução
Epigramas, assim como o anterior Novas cartas chilenas,
foi publicado pela primeira vez em livro em poemas reunidos
no ano de 1961. Nesta reunião da produção poética de Paes até
então, bem como em Um por todos, reunião mais recente, publicada
em 1986, Epigramas recebe a indicação, do ano de 1958 como ano
referencial de composição e reunião dos ponemas nele contidos.
As datas de provável composição e reunião
(1958) e de publi-
cação em livro (1961) são datas muito próximas e situam este
trabalho de Paes dentro do mesmo ambiente.literário já consirado na introdução ã análise do livro anterior.
No âmbito da poesia brasileira, o fim da década de 50
é marcado por uma polarização estético-política bastante polêmica, e que iria alimentar o debate.cultural do país durante a.década seguinte. De um lado .tem-se os primeiros movimentos de vanguarda, o Concretismo, de meados da década, e o
Neoconcretismo,dissidência carioca.do núcleo paulista daquele
primeiro. 0 experimentalismo radical com.a linguagem e o desejo de produzir uma poesia.de ponta em termos universais
orientam a produção da vanguarda brasileira..Este desejo de
modernização al. implicado encontra-se em sintonia com todo o
ideal desenvolvimentista e modernizador do.próprio governo
Juscelino Kubitschek, que marca ideologicamente, o país nessa
segunda metade da década de 50. Em oposição a esta postura,
surge no ambiente da poesia uma outra orientação, de veio
nacional-popular, e que contesta a suposta alienação da vanguarda poética em relação aos problemas políticos e sõcio-cul-
254
turáis do pais. Advogando o engajamento politico-social a fim
de conscientizar as massas populares, e.para tanto optando por
uma linguagem de franca comunicação com o público, essa vertente irá crescer ao longo dos anos, contaminando toda a produção cultural brasileira, inclusivamente a própria vanguarda
estética. As tensões durante os governos, de Jânio Quadros e
João Goulart no inicio dos 60 e que se intensificam a
partir do
golpe de 1954 são o solo fértil em que se enraiza essa produção. É em diálogo com esse ambiente, explicitando as opções
estéticas e políticas de seu autor, que vem a público a poesia
de Epigramas.
3.4.2
Análise
Epigramas inicia com um poema que, jã pelo próprio ti-
tulo, "Poética", e pela posição estratégica que ocupa como
primeira peça de um novo livro, chama a atenção pelo que pode
significar em termos de uma explicitação da postura do poeta
José Paulo Paes frente â sua matéria neste instante do seu
trajeto de escritor:
POÉTICA
Mão sei palavras dúbias. Meu sermão
Chama ao lobo verdugo, e ao cordeiro irmão.
Com duas mãos fraternas,, cumplicio
A ilha prometida ã. proa do navio.
A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão se dividido.
Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.
0 titulo dado por. Paes é muito importante para a compreensão do próprio poema e do seu significado enquanto com-
255
posição reveladora das
intenções
poéticas gerais do autor. 0
termo "poética", a despeito da ausência de um significado univoco ao longo da tradição da literatura e dos estudos literarios, é sempre indicador de uma preocupação com o proprio fazer literário. Aristóteles, por exemplo, chama de "Poética"
aquela parte da sua produção
filosófica dedicada ãs reflexões,
em parte de caráter descritivo, em parte prescritivo, sobre a
literatura. Na esteira de Aristóteles, outros autores clássicos, agora também poetas, como é o caso de Horãcio, Longino,
Quintiliano, ou neoclãssicos, como Boileau, e no corpo de composições poéticas, fazem o mesmo tipo de reflexão; os textos
deste gênero do primeiro e do último, autor, por exemplo, receberam inclusivamente o nome de-"Arte poética". A teoria literária moderna abandona a postura normativa para.assumir uma
perspectiva mais exclusivamente analítico-descritiva. O termo,
"poética" encontra-se aplicado tanto aqueles estudos de caráter geral sobre o fazer literário, que trabalham com conceitos abstratos, generalizantes, quanto .àqueles.que se. debruçam
sobre os textos literários de determinado autor ou determinada época a fim de averiguar os princípios composicionais que
norteiam a confecção desses textos. Ecoando obviamente textos
como os de Horãcio, Boileau, etc.. r é também comum, modernamente, o surgimento de composições literárias, em. geral poemas,
intitulados "Poética" ou "Arte poética", em que o autor procura deixar evidente a sua perspectiva diante da poesia. Um
caso paradigmático é o da "Arte poética", de Verlaine, verdadeiro manifesto, do Simbolismo francês. Em nossa literatura,
é famosa a "Poética", de Manuel Bandeira, peça básica para a
compreensão da poesia do autor e da própria poesia modernista
256
brasileira. Porém, nem sempre a explicitação de uma "arte
poética" se dá através de poemas com estes títulos tão óbvios.
"Psicologia da composição" e "Antiode", entre tantos de João
Cabral de Melo Neto, são poemas explicitadores da visão da
poesia, do espírito composicional - d a "poética", em suma do
seu autor.
Ë nesta categoria de textos - a de textos literários
em que o autor procura explicitar o seu credo poético, as
suas intenções de artista, a sua visão do fenômeno literário
- que se enquadra a "Poética" de Paes. Trata-se, portanto,
no seu evidente carãter de reflexão e de crítica, de um texto
em que a "metalinguagem" tem papel: preponderante. Além do carãter "metalingüístico" do texto, fica evidente também a sua
intenção "intertextual". Novamente.aqui, Paes estabelece um
diálogo bastante explícito e estreito com outros textos. A
escolha do título remete, como se viu, .a uma série de textos
muitíssimo revelantes da tradição da literatura.
"Intertextualidade" e "metalinguagem" são, portanto,
conceitos básicos implicados neste "Poética" de Paes. O primeiro recebeu consideração mais detalhada na abordagem do.livro anterior do autor. Cabe introduzir e aprofundar agora um
pouco o segundo conceito, e para ..tanto dois teóricos da linguagem podem ser destacados pelas suas importantes considerações acerca do assunto: Hjelmslev e Roman Jakobson.
Nas suas reflexões acerca do signo e da significação,
HJELMSLEV distingue em todo sistema de signos ( em toda linguagem, portanto) dois planos interdependentes, o "plano do conteúdo" e o "plano da expressão", "grandezas" entre as quais
se situa aquilo que ele chama de "função semiótica". Nenhum
257
desses planos tem qualquer autonomia e só podem ser entendidos como partes de um todo : "A função semiótica é, em si mesma,
uma solidariedade: expressão e conteúdo são solidários e um
pressupõe necessariamente o outro. Uma expressão só ë expressão porque ê a expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é
conteúdo porque ë conteúdo de uma expressão". 38
Na medida em que em nenhum destes "planos"
("do conteú-
do" e "da expressão") ë formado por. algum outro sistema de
signos, tem-se configurado aquilo que HJELMSLEV chama de "semióticas denotativas", na sua definição "semióticas das quais
nenhum dos planos é uma semiótica". A lingua "natural", no sentido de sistema abstrato como.a entende Saussure com o termo
"langue", seria um exemplo de "semiótica denotativa". Partindo da complexificação do modelo,. HJELMSLEV distingue outras
semióticas, como as "semióticas conotativas" e as "metassemiõticas": as primeiras seriam "semióticas cujo plano da expressão ë uma semiótica"; as segundas., "semióticas cujo plano do
conteúdo ê uma semiótica". 39
A Literatura seria um exemplo
característico de "sêmiótica conotativa". 40
O seu plano da
expressão ë constituido pelos planos do conteúdo e da expressão defuma "semiótica denotativa": a própria língua natural
humana. Quanto â "metassemiõtica", um exemplo característico
seria o da lingüística. Nas palavras, de HJELMSLEV: "Foi a isso
que se denominou metalinguagem ( diríamos nós "metassemiõtica"),
isto é, uma semiótica que trata de uma semiótica; em nossa terminologia, isso deve significar uma semiótica cujo conteúdo ë
uma semiótica. A própria lingüística deve ser uma metassemiõtica" . 41
Segundo HJELMSLEV, portanto, a "metalinguagem" ë uma
semiótica que tem no plano do conteúdo uma outra semiótica.
25 8
Noutros termos, procurando-se fazer uma ponte a fim de se
aproximar das considerações de Jakobson, a "metalinguagem" ë
uma linguagem que tem como objeto uma outra linguagem.
Roman JAKOBSON, ampliando o modelo triádico do processo, comunicacional apresentado por Karl Bühler
("destinador",
"destinatário", "contexto") ao propor outros fatores dentro
desse modelo
("referente", "emissor", "receptor", "canal",
"mensagem", "código"), formulou toda uma teorização a respeito das várias funções da linguagem a partir da ênfase dada
pela própria linguagem a cada um desses fatores. Assim, para
cada fator do processo comunicacional uma determinada função
predominante da linguagem encontra correspondência: "referente" - "função referencial"; "emissor" - "f. emotiva"; "receptor" - "f. conativa" ; '''canal" - "f. fática" ; "mensagem" - "f.
poética"; "código" - "f. metalingülstica". 42
No caso do texto literário, a ênfase dada pela linguagem recai sobre a própria mensagem; a função predominante, na
terminologia jakobsoniana, ê a função poética. Verifica-se
assim uma espécie de circularidade, com a linguagem voltando-se sobre si mesma, ao invés de orientar-se por algum dos
fatores mais exteriores do processo da comunicação. Assim, ê
a própria concretude da mensagem que é enfocada nos textos onde a função poética predomina. Samira CHALHUB, na esteira das
formulações de Jakobson, diz o seguinte: "Sabemos que uma das
atualizações discursivas da linguagem é a sua
'configuração
poética', quando o fator predominante é a 'mensagem', como um
modo muito peculiar de mostrar-se.. O que primeiramente se 'mostra, p.Qdeirios dizer assim, ë a realidade da palavra no que ela
tem de concreto". 4 3 Nos textos em que a função poética pre-
259
domina - os textos literários, portanto -, ë a realidade concreta e sensível da palavra o que vem à tona.
JAKOBSON complementa sua conceituação da função poética com outra formulação. Diz ele: "A função poética projeta o
principio de equivalencia do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação".
44
Nos termos da lingüística estrutural al evoca-
dos, a linguagem poética projeta portanto o paradigma no sintagma, faz com que o princípio de seleção que rege o primeiro
oriente o comportamento combinatorio do. segundo.. Mais uma vez
a circularidade, a linguagem debruçando-se sobre si mesma ( aqui
especificamente o eixo paradigmático sobre o sintagmático),
surge como princípio essencial do poético. Circularidade, fechamento, completude, auto-suficiência são as características
da linguagem poética dedutíveis'destas formulações.
No entanto, nos textos literários, não é exclusivamente a função poética a.que se encontra presente. Na teorização
de Jakobson, nenhum tipo discursivo se encontra sob a regência
de uma única função. Outras funções, portanto., surgem sempre
subordinadas à função poética nos textos literários, e ê isso
o que vai evidenciar o caráter múltiplo, dos textos. Num poema
lírico subjetivo, a "fünção emotiva" sobressai juntamente com
a função poética, uma vez que o "emissor" tem aí papel central.
Dentro da estética realista, a "função, referencial" se destaca; na ânsia de trazer a realidade em sua objetividade para
dentro do texto,, o "referente" é que vai ser valorizado. Na
literatura moderna, a "função metalingüística" costuma ter um
papel fundamental.
No esquema de Jakobson, a "função metalingüística" corresponde ao debruçar-se da linguagem sobre o próprio código,
260
principio que está por trás, por exemplo, dos estudos lingüísticos (como destaca jã Hjelmslev), dos estudos que têm a linguagem como objeto. Se para Jakobson, função poética e função
metalingülstica são funções em tensão, que dificilmente coexistem, nas considerações de outros autores que partem das formulações de Jakobson, essa oposição deixa de existir, e a coexistência das funções num mesmo tipo discursivo passa a configurar uma das características básicas de.certas vertentes da literatura moderna. 45
0 papel da função metalingülstica nas pro-
duções modernas recebe, por exemplo, a seguinte formulação
do critico e poeta Haroldo de CAMPOS:
Na p o e s i a de v a n g u a r d a , e n t ã o , o p o e t a ,
a l é m . de e x e r c i t a r a q u e l a , " f u n ç ã o
poética" por d e f i n i ç ã o v o l t a d a para a e s t r u t u r a mesma da mensa.gem, é a i n d a m o t i v a do a p o e t a r p e l o p r ó p r i o a t o de p o e t a r ,
i s t o ê, m a i s do que p o r uma r e f e r e n c i a l
o u o u t r a , e l e é comp 1 e men t a r me n t e m o v i do p o r uma " f u n ç ã o
metalingüística":
e s c r e v e poemas c r í t i c o s ,
poemas.sobre
o p r ó p r i o poema o u . s o b r e o o f í c i o do
p o e t a . 1,6
Samira CHALHUB diz ainda o seguinte a respeito do papel da metalinguagem na poesia:
Uma p o e s i a q u e f a l a do a t o c r i a t i v o ,
da
d i f i c u l d a d e de. s e u . m a t e r i a l - p a l a v r a - ,
do c o n f l i t o p e d r e g o s o . d i a n t e da f o l h a
b r a n c a como " u m a p e d r a n o m e i o da c a m i n h o " ( D r u m m o n d ) , da d i f i c u l d a d e
desconf i a d a do a t o de, p o e t a r , d a p a l a v r a q u e
é u s o de t o d o s e q u e , n o p o e m a , n e c e s s i t a s e r s i n g u l a r e . e xa t a p a r a bem d i z e r - s e d i z e n d o sua n a t u r e z a : são " t e m a s
m e t a l i n g ü í s t i c o s " n a ó r b i t a do c r i a dor- e m i s s o r . 4 7
A despeito das várias críticas recebidas pelas formulações teóricas de Jakobson e dos seus desdobramentos nas
261
considerações de outros autores 4 8 , a distinção de diferentes
funções da linguagem, a consideração de uma função poética
especifica entre outras funções, e portanto de algo que na
própria natureza da linguagem determina o ser específico do
discurso poético, do discurso literário, bem como a valorização do papel da metalinguagem na poesia e na literatura modernas - são considerações muito correntes da crítica e da teoria
literária que não podem ser ignoradas.
Voltando-se ao texto de Paes, ë pois dentro desta tendência da poesia moderna de falar da própria poesia, do ato
criativo, do papel do poeta, etc. que ele vai se enquadrar. É
um texto, portanto, onde a "metalinguagem" tem papel de evidente importância. Mas o que diz, afinal, o texto de Paes a
respeito da poesia? Qual é a sua intenção metalingülstica?
"Poética" compõe-se de quatro estrofes, cada uma delas
formada por um dístico. Os versos têm entre nove
(se se fizer
a crase dos "ee" da palavra "compreendo" no verso sexto) e
treze sílabas. A despeito dos acentos secundários internos de
cada verso, hã uma acentuação predominante que recai sempre
nas sextas e nas últimas sílabas dos versos; a exceção fica
novamente a cargo do verso sexto, devido â sua ambígua divisão silábica - considerado um decassílabo, o verso não foge
a este esquema geral. Todos os dísticos apresentam rimas de
final de verso: "sermão"/"irmão"; "cumplicio"/"navio"; "sentido" /. "divididD" ; "réu"/"céu" .
Cada pequena estrofe abarca uma unidade semântica com
certa auto-suficiência. Em cada uma delas.observam-se declarações categóricas, afirmativas ou negativas, em todo caso
declarações de contundência e despidas de dúvidas ou ambigüi-
24 7
dades. Cada estrofe apresenta um "principio" básico desta verdadeira "carta de intenções poéticas" apresentada pelo poeta.
Jã no início da primeira estrofe, faz ele referência
imediata ã sua própria palavra - a palavra poética: "Não sei
palavras dúbias". Chama a atenção uma declaração de tal natureza, uma vez que o poético, o literário, ê justamente o espaço dos muitos sentidos, das variadas possibilidades de leitura,
da plurivocidade, das ambigüidades, das tensões de significado.
Ao contradizer de forma tão contundente este carãter do discurso poético, o poeta como que cria um certo mal-estar, uma
certa expectativa que só será resolvida após a leitura do restante da estrofe.
" (...) Meu sermão / Chama ao. lobo verdugo, e _ao-_cordeiro irmão." - diz ele-a seguir .—Se-no período anterior, a palavra, do poeta - a palavra poética -.recebia uma caracterização
relativamente neutra
("palavras"), agora,-, ao caracterizã-la
também como um "sermão",; a natureza da declaração anterior
("Não sei i.palavras dúbias" ) como que vai se evidenciando. Neste momento, a poesia é para ele-também um sermão: uma prédica,
uma pregação, uma admoestação moralizadora, uma repreensão.. Ao
utilizar tal termo, ê inevitável a alusão, a um certo discurso
religioso - justamente o de natureza mais dogmática, mais fechada, voltado ao convencimento, ã conversão, discurso que
exclui a contestação e acredita veicular a "Verdade". Nesse
discurso não se permitem "palavras dúbias". Assim, o "lobo"
é inequivocamente o "verdugo", e o "cordeiro", por sua vez, o
"irmão". Não há possibilidade de uma relativização dessas caracterizações.
263
Repare-se nas metáforas utilizadas pelo poeta na estrofe. Novamente nesse aspecto a aproximação com o.discurso
religioso
(em especial o discurso bíblico cristão) se faz evi-
dente. Se não se tem agora o "pastor" - o Deus, o Cristo, na
simbologia cristã -, tem-se porém o "cordeiro", que remete ao
"rebanho"
(os homens de uma comunidade espiritual), e o "lobo",
força que constantemente ameaça o "cordeiro". No universo simbólico cristão, tais termos têm um referencial bastante claro: o "cordeiro" ê o homem que faz parte do "povo. de Deus";
o "lobo" ê o próprio demônio, ou o homem que se encontra sob o
seu influxo. Por isso, o primeiro ë o "irmão" daquele que prega, e o segundo, sempre ameaçador, ë o "verdugo". No universo
simbólico do poeta,.decalcado do anterior, o referencial de
"cordeiro" e "verdugo" precisa ser compreendido dentro de um
novo espaço: o político.
Na abordagem do livro anterior de Paes, Novas cartas
chilenas, o engajamento político-social é que dava o tom a
todas as composições aí incluídas. 0 poeta, assumindo uma posição de alinhamento com os historicamente, oprimidos, com os
párias da história, com os revolucionários sufocados
em suas
tentativas de insurreição, e automaticamente assumindo uma
posição de franco antagonismo em relação a todas as figuras
ligadas ao poder, deixava clara a sua postura política - a do
paradigmático intelectual de esquerda dos anos 50/60. Nesta
definição política encontra-se a chave para a compreensão
deste "Poética", como também de todo o livro Epigramas. As metáforas "cordei ro" e "lobo", e seus termos
caracterizadores,
"irmão", e "verdugo" , têm de ser entendidos ã luz das opções
políticas vislumbradas pelo poeta. No "cordeiro" - que o poeta
24 7
vai chamar com profundo envolvimento afetivo de "irmão", o
que o faz automaticamente situar-se no mesmo grupo al implicado - estão compreendidos os social e politicamente explorados, os oprimidos pela dominação secular. "Lobo" remete, por
sua vez, aos poderosos, aos opressores, aos que compõem as
classes dominantes - "verdugos" em relação aqueles outros.
Os termos metafóricos guardam sentidos importantes que precisam ser explicitados: o "cordeiro" é pacífico, fraterno, gregario; o "lobo" é voraz, feroz, predador, solitário. O segundo ameaça a "ordem natural" a que tende o primeiro - à ordem
pacífica do rebanho; o segundo é motivo de desequilíbrio num
universo que prescinde da sua existência.
Ao utilizar uma metaforização. dessa natureza, com paralelos evidentes com a simbologia religiosa cristã, o poeta
cria um universo de proporções claramente definidas. Ao opor
categoricamente ( -"Não sei palavras dúbias.") "cordeiro" e "lobo", com todas as implicações simbólicas dos termos quer no
originário universo simbólico cristão, quer no imaginário político de que se serve o poeta, acaba-se por fazer uma separação igualmente categórica entre aquilo que ..remete ao que pode
ser considerado como "bom" e aquilo que remete, por sua vez.,
ao que antagónicamente pode ser visto.como."mau". 0 poeta, ao
cindir o social em "cordeiro irmão" e "lobo verdugo", sem espaço para posições intermediárias, assume uma postura política e também ética r'adical.
Esta primeira estrofe, portanto, revela jã muito da
orientação que a palavra poética de Paes toma neste Epigramas.
Ela vai revestir-se de intenções éticas e políticas bastante
precisas, marcadas por uma opção evidente: fazer a crítica aos
265
poderosos
explorados
(chamar ao "lobo" "verdugo") e tomar o partido dos
(chamar ao "cordeiro" "irmão). Uma questão se pode
colocar a esta altura: por acaso o discurso poético (ou o dis- ,
curso literário, de uma forma geral), em que as tensões semânticas têm papel fundamental, formado, portanto, por natureza
de "palavras dübias", por acaso este discurso não se encontra
comprometido no que diz respeito ã sua vitalidade quando posto
a serviço do "sermão" politico e moralizante? Ou ainda: como
conciliar "poesia" e "sermão"?
De alguma forma estes problemas estão latentes neste
"Poética". 0 próprio titulo do poema é bastante claro: não
se trata apenas do credo politico de Paes, mas da própria atitude sua diante da poesia. Ao invés da.louvação da palavra
pela palavra
(e aqui convém lembrar que as vanguardas formalis-
tas, valorizadoras da poesia pura, da poesia pela poesia, estavam em pleno auge no ano de 195 8), Paes vai falar de política
justamente no espaço reservado às reflexões sobre o poético justamente no espaço de um poema significativamente intitulado "Pôêtica". Isto de alguma forma dã algum tipo de resposta
ãs questões colocadas: "poesia" e "sermão", na visão do próprio poeta neste instante, não se opõem, não se contradizem
frontalmente, a despeito dás tensões provenientes desta difícil convivência. A tarefa que ele coloca à sua "poesia" neste
momento é justamente a de incorporar o "sermão"; ê a de fundir
a palavra poética à palavra política e. eticamente engajada.
Uma tal proposição não ê opção exclusiva da poesia paesiana
do final dos anos 50 e inicio dos anos 60. Ë, como jã se comentou nas observações acerca do ambiente poético do período, posicionamente de amplo setor de intelectualidade brasileira.
266
A primeira estrofe do poema, apesar dos seus escassos
dois versos, contêm, como se está a ver, farto material de base para o entendimento da "poética" do poeta nesse
instante.
As demais estrofes complementam esta compreensão.
A segunda estrofe é formada por um único período. Na
anteposição do adjunto adverbial ao predicado, dá-se um certo
destaque àquele segmento sintático ( ^'com duas mãos fraternas").
As sugestões implícitas nos vocábulos "cordeiro" e sobretudo
"irmão", da primeira estância, são resgatadas neste "duas mãos
fraternas". Na seqüência do período, o verbo espacial e rítmicamente separado do restante do predicado em virtude do "enjambement", encontra-se sob certa tensão, a que vem colaborar
o seu uso em contexto semântico pouco comum. "Cumpliciar", que
o dicionário apresenta como verbo transitivo direto e tendo o
significado de "tornar cúmplice" 49 , exigiria, a princípio, de
um ponto de vista semântico, um objeto direto animado, preferencialmente uma pessoa. Não é o caso: o que o sujeito poético
"cumplida"
(portanto, "torna cúmplice") ë a "ilha prometida".
Este emprego gera um certo estranhamento, com a conseqüente vitalização do segmento em questão, que acaba revelando uma relativa elasticidade quanto â sua irradiação semântica. "Cumpliciar" , nesse emprego estranho, acaba envolvendo com seus sentidos possíveis também o sujeito da oração (o sujeito poético),
além, naturalmente, do objeto. 0 poeta encontra-se também en- :
volvido nessa "cumplicidade" que está al sendo referida, "cumplicidade" afim â própria idéia de "fraternidade" contida no
segmento inicial do verso ( -'com mãos fraternas") .
Mas ë o segundo verso, carregado de intenções
ricas, que vai "resolver" melhor
metafó-
o. sentido de toda a estância.
267
"A ilha prometida à proa do navio" é verso que deve ser lido
imediatamente em seus segundos sentidos. A expressão "ilha prometida" resgata novamente um certo referencial bíblico: a "Terra Prometida" - o ponto de chegada dos judeus após a fuga do
Egito e da longa peregrinação pelo deserto, espaço portanto concreto, real; mas também o Paraíso, o Céu onde se encontra o próprio Deus, espaço transcendente,
portanto. Os conteúdos sote-
riológicos que impregnam a expressão bíblica insinuam-se também
na expressão utilizada pelo poeta. No imaginário político da
esquerda, a luta política tem entre seus objetivos resgatar a
maioria dos homens da situação de miséria moral e material em
que se encontram mergulhados. Hã, por trás.do seu ideário, um
semelhante princípio de "salvação" a nortear os. movimentos daqueles que o professam. "A ilha prometida" refere-se a esse espaço simbólico da redenção social; o ponto de chegada da revolução popular, para os radicais, ou das mais graduais e menos
sangrentas transformações de estrutura, .para os menos; a Cuba
utópica — pode-se dizer - de tantos intelectuais ao longo dos anos
60 e 70. Encontrar-se situada "ã proa do navio" nada mais quer
significar do que estar-se jã na rota que fatalmente deverá
conduzir a esse objetivo.
A terceira estância compõe-se.de dois períodos, cada
um deles no corpo de um verso do dístico. São novamente colocações diretas, declarações de intenção, que acompanham o tom
geral do poema. Cada uma delas complementa o significado da outra. No primeiro verso, acentuam-se aspectos jã intuídos, a
partir das estrofes anteriores, acerca da visão ética e política do sujeito poético: o poeta nega a "posse", portanto a luta
pela propriedade, a intenção de segmentar aquilo que diz respeito
268
ao coletivo incorporando-o ao individual. A "posse" - e aqui
convém ressaltar o emprego do termo sem qualquer complementação, como se tratasse de uma espécie de principio abstrato potencialmente realizável em qualquer direção - material, moral,
etc. - a "posse" é vista como "aventura sem sentido", ação vazia de significados, inútil, portanto, ao humano. 0 verso seguinte da estância reitera a afirmação: sõ faz sentido, só é
pleno de significado, aquilo que ë dividido - e aqui o objeto
da divisão referido ê justamente o que simbolicamente remete
ao que hã de mais básico e primordial para o homem: o "pão".
Mais uma vez o poeta traz do discurso bíblico, do registro religioso, elementos para sua profissão de fé política e moral.
A idéia da divisão do pão, que resgata a "fraternidade" pisada
e repisada no poema
(meu sermão (
) chama ao cordeiro irmão";
"com duas mãos fraternas"), é tema evangélico dos mais básicos.
No entanto, como ocorreu anteriormente, o poeta esvazia o "conceito bíblico" dos seus significados transcendentes, tendentes ao
divino, limitando-o estritamente ao que diz respeito ao humano.
Se o pão no Evangelho é o "Corpo de Cristo", aqui o pão remete
ao pão concreto mesmo, metáfora geral do alimento material do
homem.
Na quarta e última estrofe, o poeta vai encerrar a
explicitação do seu ideário. Aqui.ele vai trabalhar com conceitos, ou idéias, a princípio situados em pólos em oposição. No
primeiro verso: "juiz" x "réu"; no segundo: "inferno" x "céu".
Se na primeira estância, como se observou, a oposição "cordeiro" x "lobo" era categórica, como se uma linha delimitando
claramente os dois campos se
insinuasse no fundo da visão ideo-
lógica do poeta, aqui a visão é relativamente diferente. Se lá
269
o poeta lançava um olhar para o exterior, para os "outros", sentindo a necessidade urgente de tomar uma posição clara frente
ãs questões político-sociais - dal a radicalidade da disposição
de chamar sem senões relativizantes ao "lobo" "verdugo" e ao
"cordeiro" "irmão" -, aqui o que se vai ter é jã uma referência
a si próprio, e nessa avaliação de si próprio realiza-se uma
certa diluição das oposições categóricas.
Numa certa possibilidade de leitura do verso, o poeta
rejeita para si as condições tanto.de "juiz" como de "réu":
"Não brinco de juiz, não me disfarço eim réu" . Nem a posição daquele que julga, portanto daquele que teria condição de discernir com certa clareza os condicionamentos de dada questão, nem
tampouco a posição daquele que é julgado são por ele assumidas.
Esta declaração entra em relativa rota de, colisão com a primeira estância. La,,-através do seu "sermão" ( e aquele que prega a
principio considera-se capaz de fazê-lo com o "discernimento"
necessário a fim de bem julgar entre aquilo que é melhor ou
pior para os seus destinatários), o poeta propõe-se uma espécie
de julgamento: hã um juízo de valor inequívoco a operar por
trás da cisão "lobo" x "cordeiro" e da caracterização destes,
respectivamente "vprdugo" e "irmão". Porém lã, como jã se disse , tratava-se de tomar um partido claro diante de uma realidade problemática que pede respostas. A postura radical do poeta
quanto aos âmbitos do ético e do político justifica-se por
isso. Aqui, o poeta procura situar-se, e por isso a rejeição de
posições estanques surge como opção.
No entanto, o verso destacado não ê tão unívoco assim
em seus sentidos, e uma outra orientação de leitura pode ser
sugerida também. Ao dizer "não brinco de juiz", o poeta pode
270
estar querendo dizer "assumo seriamente o papel de juiz". Da
mesma forma, ao declarar "não me disfarço em réu", pode estar
querendo significar com isso "sei que sou réu". Ao invés de rejeitar esses papéis, ele na verdade os estaria assumindo convictamente. Quer a primeira leitura se mostre mais sedutora,
quer a segunda, em todo o caso, recusando assumir os papéis de
"juiz" e "réu", ou assumindo-os ambos ao mesmo tempo, o poeta
acaba por situar-se numa posição intermediária entre os pólos,
caràcterizando-se em ambas as possibilidades de forma tensa e
problemática..
No último verso ( -'Aceito meu inferno, mas falo de meu
céu."), ainda mais uma vez o poeta vai buscar termos muito correntes no universo cristão ( e religioso de um modo geral) para
referir-se a um contexto diverso: "inferno" x "céu". "Inferno"
surge como caracterizador da realidade concreta presente. 0 que
no universo religioso diz respeito ao "reino do mal" é vivenciado pelo poeta como o mundo real imediato. .. Esse "mal" essencial e transcendente que anima o "inferno" religioso transforma-se noutra categoria de "mal" no universo, humano: é o "mal"
social, político, moral, que envolve, o sujeito. Se ele o aceita
como realidade inconteste, no entanto evita a resignação ao vislumbrar no horizonte do possível uma outra ordem de coisas,
chamando-a, inclusivamente, para o imediato através da sua
própria palavra, da sua poesia. Ë este o conteúdo do segmento
final "mas falo de meu céu". "Céu", como "ilha prometida", revela muito de uma certa perspectiva ideológica desse instante,
da qual Paes comunga firmemente. A transformação político-social da sociedade
(mergulhada no "inferno" presente), finalidade
da militância política a serviço da qual Paes engaja também a
271
sua própria palavra poética, é condição para o surgimento, de
um novo homem. Esta humanidade futura surge alçada ã condição
de '^paraíso" ( sentido implícito no termo "cêu')_ , o que trai o
muito da utopia e da idealização que alimentam esta visão.
"Poética", como se estã a ver, ê um poema de sentidos
transparentes. A metaforização a que recorre o poeta - que resgata muito do discurso religioso ( e não é ã toa que o poeta diz
"o meu sermão"), deslocando-o, porém, para uma outra chave - é
bastante simples e facilmente decodificãcel. "Lobo", "cordeiro",
"ilha prometida", "pão", "céu", "inferno", entre os termos metafóricos aí presentes, remetem a realidades.rapidamente compreendidas pelo leitor uma vez percebidos os posicionamentos
ético-políticos do autor. Essa transparência de significados revela o desejo do poeta de se fazer compreender, de comunicar-se
com certa facilidade. A afirmação "não sei palavras dúbias" pode ser vista, nesta linha de consideração,, como afirmação desse
desejo de comunicação.
Esse desejo central de comunicar-se com o leitor pode
ser visto como decisivo para a convencionalidade do discurso
poético de Paes neste poema. Nada aí parece lembrar o experimentalismo literário que toma conta de boa parte da poesia brasileira mais importante a partir de meados dos anos 50. Pelo
contrário, parece haver aliás a intenção explícita do poeta de
se afastar dessa poesia no que ela tem de radical a nível de
experimentação com a linguagem e, conseqüentemente, de difícil
para a compreensão mediana. Daí se compreende melhor as opções
do poeta a nível de procedimentos composicionais. De mãos dadas
com a simplicidade- e univocidade no plano semântico, encontram-se
os outros
níveis de linguagem desse poema: ausência de expio-
272
rações sonoras mais arrojadas; ausência de exploração de recursos visuais, tão valorizados pela vanguarda; ausência de complexidades léxicas ou sintáticas, ou de utilizações inusitadas
destes aspectos; esquematização global do poema bastante simples: quatro dísticos de metro muito próximo, com paralelismos
rímicos.
Esta opção pela simplicidade
(a que a relativa conven-
cionalidade poética se encontra ligada - relativa por só fazer
sentido quando surpreendida a partir de uma postura que valorize o experimentalismo e a busca a todo custo do,novo como juízos exclusivos ou precipuos de valorização estética) está de
acordo com os posicionamentos ideológicos que se percebe no interior do próprio poema em questão • "Poética" apresenta - pelo
que diz, mas talvez sobretudo pelo. que não diz - a visão que o
poeta tem da própria poesia nesse instante do seu trajeto poéti-i
co. No interior de um poema em que,pelo. seu título, se esperaria uma discussão mais exclusiva do labor literário e da palavra poética, Paes apresenta também o seu ideário, de homem ética
e politicamente situado e preocupado com uma atuação orientada
a partir dos valores assumidos ( distinção entre opressores/oprimidos, questionamento da injustiça social, crença na possibilidade de se revolver o quadro presente, etc.). Para ele, na verdade, a palavra poética e a palavra ética e policamente engajada
fundem-se numa coisa só. Falar de uma ê falar automaticamente
da outra. Daí a opção pela comunicação com o leitor, requisito
básico do engajamento do criador em níveis., mais amplos.
A partir da consideração de "Poética" pode-se distinguir, numa esquematização didatica para a abordagem de outros
poemas, duas linhas que se entrecruzam constantemente ao longo
273
do livro: de um lado a presença constante da "metalinguagem" e
da "intertextualidade", nas referências contínuas a outros poetas, ã poesia e ao papel do poeta e da poesia no interior do
corpo social; de outro, as críticas corrosivas de caráter político, moral, social - cultural de um.modo geral - ãs instituições e grupos sociais.
A oposição entre o "lobo" e o "cordeiro", traçada paradigmáticamente em "Poética" ( "meu sermão chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão"), ë retomada em alguns poemas nas
mesmas metáforas aí presentes, e atualizada em suas possibilidades de formas diversas em muitas outras composições do livro.
Por exemplo, quanto ã reiteração das metáforas: em "II poverello"
- "o lobo comeu a ovelha" ; em "Cena legislativa" - "o rio dos
lobos corre para cima"; em "Ode" - "onde o lobo jã não uive",
fazendo-re referência aqui a um espaço ideal onde a "paz" predomine .
Esta oposição delimita claramente dois grupos sociais
em constante e radical contradição. A compreensão desta cisão
do social é fundamental para a compreensão da. própria crítica
social paesíana. O poema "Ressalva" explicita de forma inêquívoca
os pólos desse antagonismo:
RESSALVA
Fácil riqueza de poucos.
A luva antes do crime,
0 pão sem mérito algum,
0 rosto, mármore falso,
Os pés no barro comum.
Árdua pobreza'de muitos.
274
A injustiça da cruz,
A pressa das alegrias,
A demora dos augurios,
As penas da rebeldia'.
Mas um diamante - o orgulho.
A oposição básica aqui se fundamenta toda ela numa
oposição de ordem econômica e, conseqüentemente, também social.
Esta cisão do mundo entre ricos e pobres ("fãcil riqueza de
poucos" x "ãrdua pobreza de muitos") ë estrategicamente inevitável na perspectiva política assumida pelo poeta. A relativização do problema, neste momento, significa diluir o poder de
ataque da critica. Daí este esboço simplificador das contradições sociais.
Na caracterização das elites econômicas, ao longo da
estância que segue o verso "Fãcil riqueza de poucos.",, a crítica do poeta ê bastante dura, e nada perdoa. A expressão "fácil riqueza" jã denuncia a origem dos. privilégios, sobretudo
quando contraposta à expressão "ãrdua pobreza". A exploração do
trabalho de muitos por alguns poucos ë o que estã na gênese do
problema. A atividade desses "poucos" ë caracterizada como um
"crime" que não deixa vestígios ( -'a luva antes do crime") . 0
seu "pão", metáfora de "alimento", mas.que aqui pode ser estendida também . aos bens materiais em geral, não tem "mérito",
pois não advêm do trabalho, do esforço, mas sim da exploração
do trabalho e do esforço de outros. A oposição nos versos três
e quatro da estância entre "rosto" e "pés" e respectivamente
"mármore falso" e "barro comum" dá bem a medida desse grupo.
"Mármore" ë material nobre, distinto das demais pedras; opõe-se,
por sua beleza, consistência e raridade, ao "barro comum". Porém esta oposição no contexto em questão ê aparente, pois o
2 75
"mármore" é "falso" e caracteriza um ser que em essência não
se distingue dos demais: está igualmente ligado ao "barro comum" .
Em oposição ã "fãcil riqueza" das elites encontra-se
a "ãrdua pobreza" da grande massa da população. A ela está ligada a "injustiça
da cruz", e "cruz" aqui não tem evidentemen-
te o carãter positivo que recebe no âmbito do universo cristão - sofrimento, provação necessários para a salvação final.
Num universo sem transcendência, a "cruz" ê símbolo de uma dor
vivida em vão. As "alegrias" são fugazes, os "augurios"
(suben-
tendendo-se aqui tratar-se de bons "augurios") demoram a cumprir-se. A "rebeldia", contestação possível, ë devidamente castigada. Porém o poeta vislumbra aqui algo que permanece como
jóia intocada, pedra incorruptível: "Mas um diamante - o orgulho". Repare-se aqui na oposição proposital entre o "imãrmote
falso", ligado ao "barro comum", das elites, e este "diamante"
puro que compõem, apesar da dor e da privação, o cerne deste
segundo grupo. O "orgulho", "um diamante", na sugestiva metáfora do poeta, é força positiva que resiste em meio â miséria
da exploração do homem pelo homem, força.a ser acionada no movimento geral das transformações.
A sociedade encontra-se cindida entre ricos e pobres,
exploradores e explorados, poderosos e oprimidos, ou, nas metáforas fundamentais do livro, "lobos" e "cordeiros". Em muitos
dos poemas de Epigramas o que Paes vai fazer ê esmiuçar melhor
esta cisão, abordando subgrupos específicos dentro desses grupos maiores.
Em "Bucólica", por exemplo, o poeta detém-se um pouco
na consideração de um grupo social específico, o trabalhador rural:
2 76
BUCOLICA
O camponês sem terra
Detern a charrúa
E pensa em colheitas
Que nunca serão suas.
jã no titulo encontra-se embutida a critica social. 0
termo "bucólica", na tradição da literatura, remete a todo um
tipo de poesia largamente produzido na Antigüidade Clássica
greco-latina e, posteriormente, nas retomadas classicizantes
dessa Antigüidade durante o Renascismento e o Neoclassicismo
setecentista. A poesia bucólica gravita toda. ela ao redor de
temas campestres e pastoris, apresentados de forma, altamente
idealizada. Os poetas e suas amadas encontram-se travestidos
em amorosos pastores, gozando as alegrias festivas de uma cândida vida campestre, sem turbulências, a.não ser as. amorosas,
geralmente passageiras,.e sem privações materiais. Lembre-se o
bucolismo presente na bela poesia de um ãrcade luso-brasileiro
como Tomãs Antônio Gonzaga e o que ele tem de distanciamento
em relação ã realidade concreta e presente. Gonzaga, vivendo
em meio a uma sociedade que explora impiedosamente o trabalho
negro no campo, não pode deixar de render-se absolutamente ãs
convenções do classicismo a que se encontra espiritualmente ligado. Apesar da visão imediata de uma vida rural miserável, sua
poesia ë quase totalmente cega a essa realidade, e plana leve
numa atmosfera luminosa de idealizações e estilizações.
Quando Paes dã o titulo "Bucólica" a um poema que justamente focaliza o trabalhador rural dentro de um
quadro so-
cial problemático, ele estã estabelecendo um diálogo intertextual critico em relação à própria literatura e sua vinculação
com a realidade dos homens. A ironia é evidente. A condição de
277
vida do homem do campo não tem nada dos componentes usuais do
bucolismo tradicional que o classicismo convencional idealiza.
0 "camponês" do poema de Paes não é' o pastor abstrato da convenção literária. Ê ( a despeito de um outro tipo de idealização possível, a das convenções do ideário da esquerda - e "camponês" não ê termo neutro como "lavrador", ou "trabalhador rural", mas termo corrente no discurso socialmente engajado de
então) um homem concreto, social e historicamente localizado,
privado de propriedade
("o camponês sem terra") e privado do
fruto do próprio trabalho
("colheitas que nunca serão suas").
0 poeta, aliãs, no quadro que pinta, fazr questão de apreendê-lo
justamente no momento do trabalho, atrelado â charrua, como a
indicar sua condição fundamental. A breve pausa e rãpido vislumbre da sua própria -condição-e de sua imutabilidade ( "pensa
em colheitas que nunca serão suas") dão os contornos cinzas e
amargos desta incisiva miniatura poética.
A exploração violenta do trabalho é tratada ainda em
"Baladilha". Neste poema, a condição do homem escravizado pelo
trabalho numa sociedade de profundas injustiças' ê posta paralelamente à condição de certos animais, como o "boi", o "cão"
e o "pássaro", e ao carãter da função de cada um desses na sua
submissão ao homem: a paciência do trabalho bovino, a fidelidade do cão, o embalar do canto.do pássaro prisioneiro - recompensados todos com a morte ou a indiferença. O poema contém
uma exortação final, em forma de "envoy", comum na forma poética a que o título faz menção, a "balada", aqui em uso diminutivo ( aliãs, como no poema anterior, repare-se neste novo diálogo intertextual crítico como uma das formas da tradição):
278
Envoy
Homem, não sejas
Pássaro nostálgico,
Cão ou boi servil.
Levanta o fuzil
Contra o outro homem
Que te quer escravo.
Só depois disso, morre .
A incitação, neste poema, a uma revolta que faça uso
da violência ë Índice evidente do posicionamento politico do
poeta. Não ë apenas o homem de esquerda progressista que fala
aqui, engajado num processo de mudança, mas sim o revolucionário radical, que prega o recurso ao "fuzil" como salda possível ã inércia geral. Há um apelo patético na voz do poeta, que
trai uma indignação das mais vivas.
Se ao tratar -das classes- oprimidas- pela exploração social ë visível a rsimpatia do poeta- e a intenção- de engajar-se
a si próprio e ã sua poesia numa causa que vise a mudança desse
quadro, na focalização de outros estratos sociais a antipatia
ë evidente e o tratamento crítico implacável.
Em "Ivan Ilitch, 1958"
(cujo título remete a conhecida
narrativa de Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch, que.descreve a
vida de um funcionário bem sucedido que., após sofrer, um acidente incurável, começa, confinado em sua cama, a pôr em xeque sua
vida anterior e os valores sobre os quais ela se assentava) o
poeta exercita uma critica ampla de comportamentos, atingindo
aqui sobretudo a classe mëdia em seus automatismos. A primeira
estrofe exemplifica bem os recursos formais utilizados e o
quanto têm de significativos:
279
Trrrim, bocejo,
Roupão, chinelos,
Gilete, escova,
Água, sabão,
Café com pão,
Chapéu, gravata,
Beijo, automóvel,
Adeus, adeus.
0 poema é todo ele um grande inventário dos elementos
componentes do dia-a-dia rotineiro do homem mediano. Cada estrofe dã conta de uma segmentação desse dia: na primeira, transcrita acima, do despartar matutino ã ida para o trabalho; na
segunda, o dia no escritório; na terceira, o lazer no clube
no final do expediente; na quarta, o retorno â casa e a noite
com a família; na quinta, a intimidade do. casal; e na ultima
estrofe, a ampliação do- quadro, projetando-se a rotina- do dia
num esquema mais amplo que envolve, toda a. vida. do homem até o
momento de sua morte, como que' reduzindo-a toda, portanto, â
banalidade geral do dia comum.
0 recurso de linguagem utilizado pelo poeta é muito revelador. Não hã orações e não se observa o emprego de um único
verbo, a não ser no último verso da última estrofe, uma tentativa vã de romper com o esquema geral apresentado, através de
uma indagação metafísica que se desfaz, porém, num trocadilho
que mais acentua a banalização geral a que >se encontra reduzida
a vida: "Hã Deus? adeus.". No mais, somente substantivos, que
vão sendo coordenados exaustivamente.. Na nominalização da linguagem, explicita-se a coisificação geral do mundo, a transformação da dinâmica da vida em objetos apropriãveis. Todas as
ações humanas transformam-se em rituais vazios de sentidos,
congelados e banalizados em nomes sem cor específica.. Não hã
qualquer individualização no quadro todo ; tudo estã reduzido a
280
um grande esquema geral, uma estrutura arquetlpica que tudo
aprisiona e da qual não se sai.
Se aqui a crítica dirige-se ao comportamento geral do
homem de extração social média, em outros poemas o alvo é bastante específico, como ë o caso da classe política em "A uns
políticos":
A UNS POLÍTICOS
Depois de nós, o dilúvio.
Entrementes, de Javé
Poupada,.fulge Sodoma,
Capital da nossa fé.
Mas se.a chuva acontecer
(Ha tempo de sobra até),
Adeus, que somos marujos
Da equipagem de Noé.
Paes utiliza aqui um recurso que se verifica com certa
freqúência-em--vários—poemas do -livro anterior Novas cartas chilenas
r
apontado com maior detalhe na análise do poema "Os na-
vegantes" , daquele livro. 0 poeta atribui uma fala específica
a determinada personagem ou grupo de pessoas, fala esta que,
verossimilmente, jamais poderia ser proferida pelos sujeitos
em questão, dado o carãter de autocrítica, de auto-exposição,
de auto-ironia explícita nela contido. Esse discurso atribuído encontra-se sobrecarregado do.prõrio discurso crítico do
autor. Observa-se, portanto, uma tensão no interior desse discurso, responsável pelo distanciamento que se verifica entre
)
aquele que supostamente estaria falando e aquilo que se fala.
Aqui, neste caso, a fala ê atribuída "a uns políticos",
que estariam atrás desse "nós" aí presente. Mas o que é dito
por eles contradiz sumariamente o habitual discurso político,
conciliador, diplomático, muito pouco revelador das reais iinten-
281
ções de seus sujeitos, antes, na verdade, camuflador de realidades. Aqui, numa fala impregnada de irrisão, os políticos estão a expor-se. Os referenciais bíblicos acentuam esse carãter.
Uma possível autoridade patriarcal,:profética, visionária, que
o discurso embebido desses referenciais poderia significar,
vem abaixo de imediato. "Sodoma", a cidade do Antigo Testamento destruída juntamente com Gomorra pelas suas violentas transgressões das prescrições divinas, é. declarada a "capital" da
"fé" dos "políticos". Se o presente ë marcado pela corrupção,
pela degeneração dos costumes("Sodoma, capital, da nossa fé"),
o futuro, que na purificação via dilúvio poderia configurar-se
de nova maneira, estã jã comprometido: "somos marujos da equipagem de Noé" - dizem esses mesmos políticos, anunciando sua
Intima relação com aquilo que poderia significar a mudança;
anunciando, portanto, sua permanência apôs as possíveis convulsões.
A critica aos políticos - ou melhor, "a uns políticos",
na expressão que dã titulo ao poema e que evita a generalização sumária - é, como se pode ver, violenta. O "dilúvio", que
na perspectiva bíblica é responsável pela. morte de uma humanidade perdida e pelo
nascimento de uma nova humanidade, con-
servada pela salvação de uns poucos que se mantiveram ainda
puros, perde seu efeito na medida em que essa humanidade ante-rior conserva os germes da sua corrupção durante o processo de
morte/renascimento. Como jã se destacou anteriormente no poema "Poética", a utilização de termos oriundos do.discurso bíblico pelo poeta abriga uma sua atualização dentro de uma
perspectiva agora ético-política. "Dilúvio", enquanto metáfora,
pode estar no lugar de qualquer processo de mudança radical
282
- uma revolução social, por exemplo -, entrevista, aliãs, de
forma apocalíptica pelos próprios políticos. A certeza da ineficiência do processo em termos de mudança bem como a certeza
de permanência contidas na fala destes revela muito da sua descrença com as possibilidades de renovação, defendidas e vislumbradas pelo poeta.
Se a classe política ë drasticamente visada pela ãcida
crítica paesiana (e além deste "A uns. políticos" , o poema "Cena legislativa" trata de questões muito próximas), da mesma
forma aqueles grupos que de tempos em tempos arrogam-se uma
função saneadora, salvadora no âmbito do politico-social também não são perdoados. Em "Volta ã legalidade", o problema das
revoltas, dos golpes-militares encontra-se tematizado.
Como em "A uns políticos", o poeta atribui neste "Volta
à legalidade" uma determinada fala a.um grupo de sujeitos, agora aos comandados co-responsáveis por um golpe militar cujas
circunstâncias históricas ou geográficas não são referidas com
precisão. A n ã o contextualização da>situação.permite entendê-la
como acontecimento arquetípico, potencialmente presente nas
repúblicas semi ou pseudo-democrãticas da América Latina (ou
mesmo de outros países do chamado Terceiro Mundo) na época em.
que o poeta escreve estes versos. A história iria provar que a
insinuação de Paes não dizia respeito a um.tempo jã passado:
os golpes militares em países latino-americanos de certa estatura como o Brasil, o Chile, o Uruguai e a Argentina, ao longo
dos anos 60 e 70, ou mesmo a revolução popular cubana em fins
da década de 50, que acabou resvalando para o autoritarismo de
um único grupo agarrado ao poder, são significativos das premo-
283
nições do poeta - lembre-se aqui que o poema, assim como o livro, data de 19 58.
Diferentemente do poema anterior, não hã neste "Volta
ã legalidade" um mesmo tom irônico ou satírico perpassando o
texto. 0 dramático e o sombrio, aliãs, ê que predominam, como
se pode ver jã na primeira estrofe:
Decretamos silêncio, mas alguns
Murmuravam ainda. Decepamos
A língua obstinada.
O poema vai assim, desde a sua primeira estância, arrolando as várias medidas violentas tomadas pelos opressores para impor a nova ordem â sociedade, que por sua vez., em meio ao
silêncio e ao terror, resiste. A-violência acumula-se em visível crescendo:. .."decepamos a língua obstinada" ; "trespassamos
o olho indagador" ^"inauguramos a. fase dos reféns"-;.-"então usamos a parede e o fuzil". Porém, tudo mostra-se em vão. Uma
ameaça crescente, não explicitada exatamente,
assola a tropa, e
o tom de contido desespero na fala do soldado que está a. relatar os acontecimentos ao superior
denuncia o fracasso- da em-
preitada:
Eis a última mensagem,: Comandante :
A ordem foi mantida.. • Agora ê tarde.
Deus nos guarde.
O título "Volta â legalidade" tem duplo sentido de leitura. Pode significar o retorno â legalidade democrática que
surge a» cada fim de golpe, mas pode:, era contraposição, significar - ironicamente, ê claro - a normalidade desses golpes;
a "legalidade" seria portanto o regime de exceção, cuja freqüência e rotina
exceção.
fazem da ideal "legalidade" a verdadeira
284
Mas os políticos que chafurdam na corrupção do poder e
os militares que saem periodicamente das casernas para substituí-los em igual tarefa não são os únicos visados pela crítica
político-social de Paes. Também o alheamento da religião em
relação ãs questões medulares da sociedade ë visada pela palavra do poeta.
A passividade da religião ë atacada em alguns poemas,
dentre os quais se pode destacar "Primeiro tema bíblico". Esse
carãter se evidencia ja a partir do quadro sugerido pela primeira estrofe:
Dorme o profeta
De mãos cruzadas
Sob a folhagem
Grave das barbas.
A venerãvel. figura do "profeta" religioso, ë sutilmente
posta em xeque nesta estância. A despeito dos dois belos versos
três e quatro ("Sob a folhagem / Grave das. barbas"), que retêm
muito dessa aura de figura venerãvel - a "barba" é índice do
ancião respeitável e experiente; sua aproximação plástica com
a "folhagem grave" acentua este aspecto, em. primeiro lugar pelo
próprio sentido do adjetivo "grave", em segundo pela sugerida
metamorfose do homem em ser vegetal, enraizado ao chão, ligado
a uma vitalidade e a uma sacralidade telúricas que lhe revigoram a santidade da própria função (lembre-se aqui o "carvalho"
como árvore sagrada e.a sua aproximação com a própria imagem
do sacerdote ou do profeta ancião) - a despeito desses versos,
há algo aí que não condiz com a figura usual do profeta. A verticalidade do homem que pela palavra prenunciadora e vigorosa
encontra-se em constante estado de ação e combate, admoestando
os contemporâneos e sendo por eles admoestado (admoestação que
285
tantas vezes chega ao martírio e â morte), destoa da horizontalidade passiva e um tanto singela do homem dormindo. Some-se a
isto a imagem das "mãos cruzadas" , que inevitavelmente ecoa a
passividade e a indiferença dos "braços cruzados". O profeta
iracundo, de voz tenebrosa,.de lances entre insanos e visionários, se dilui neste quase simpático velhinho embalado por
Morfeu. Esta perspectiva acaba contaminando toda a estância, e
a imagem que aproxima o.homem do ser vegetal
acaba em verdade
frisando bem a estaticidade, o congelamento geral do quadro. O
profeta é figura representativa do homem religioso. As cores
do quadro estendem-se também â própria vida religiosa.
Ao longo das estâncias seguintes, a figura passiva do
profeta - a expressão "dorme o profeta" repete-se nos primeiros versos de cinco das seis estrofes da composição - vai sendo contraposta ãs duras realidades sociais do mundo. Enquanto
ele dorme, "a lei irmana vítima e carrasco", "um rato devora a
colheita", "um inseto corrompe o vinho", "um verdugo enumera
as forcas". Atente-se para os amargos e desoladores sentidos
de destruição e morte contidos em todas estas expressões metafóricas: do trabalho ao próprio homem, tudo encontra-se sob o
constante perigo de uma predação aniquiladora. Diante do quadro
terrível, a imagem do profeta em sono absoluto, em total alienação, não se modifica:
Dorme o profeta, dorme
E não acorda, nuvem
Perdida no-sopro
Dos clarins celestes.
0 tema da alienação da religião diante dos problemas do
mundo ê recorrente em "Epigramas". No poema "Segundo t e m a b í blico" ele aparece novamente. Aqui o quadro da paixão e crucifi-
286
cação de Jesus Cristo é apresentado a partir da fala de alguns
dos personagens que o integram, como Maria e o próprio Cristo.
O sofrimento da mãe e do filho, a entrega passiva aos algozes
como fundamento de um ritual sacrificai, é resgatado na sua integridade pelo discurso das próprias personagens. A tensão crítica só vai ser introduzida pelo poeta em breve estância entre
parênteses colocada ao final de todo o poema, restrição geral
ao sentido místico-religioso do episódio bíblico - portanto,
incompreensão fundamental e rejeição, de um princípio basilar
do Cristianismo: "(Embora o cordeiro / Seja uma iguaria / Grata
ao inimigo.)".
A passividade religiosa, o voltar-se somente para as
questões do espírito, para o~"outro mundo", essenciais no Cristianismo, e- que deixa campo aberto para o exercício da injustiça dos poderosos, - constitui o objeto- básico das. censuras do
poeta. O engajamento ético-político a que ele.submete a sua
palavra de criador, o.desejo de, através da ação, transformar
a ordem injusta do mundo (e o mundo aqui ë o mundo real, concreto, presente, humano, único mundo no seu horizonte ideológico) , são incompatíveis com essa passividade. No poema "Il
poverello", numa possível referência ao despojadissimo S. Francisco ou a algum ermitão do gênero,, vivendo em inocência e em
perfeita comunhão com a natureza, essa perspectiva encontra
formulação' similar ãs anteriores aqui destacadas. Após a descrição paradisíaca do religioso em harmonia com o meio natural,
a última estância da composição apresenta violenta restrição
ao quadro :
Mas a floresta esqueceu, no outro dia,
0 bíblico sermão.e, novamente,
0 lobo comeu a ovelha, a ãguia comeu a pomba,
Como se nunca houvera santos nem sermões.
287
O poeta chama constantemente a atenção para uma realidade que corre paralelamente aos ideais religiosos, uma realidade que ignora o sono do profeta, o sacrifício do Cristo ou a
inocência do asceta, uma realidade onde, apesar dessas pretensas "suspensões" da ordem do mundo, o antagonismo
fundamental
entre "lobos" e "cordeiros", entre opressores e oprimidos, dã
a verdadeira e dura cor da humanidade.
Na crítica geral que faz ã sociedade nas suas
clas-
ses, grupos e instituições, também a figura do poeta ( e do artista, implicitamente) e o seu papel social são questionados
por Paes. Aliãs, jã em "Poética", o poeta toca nessa questão,
ao expor o seu ideário simultaneamente poético, ético e político,- e ao pretender, engajar-se no processo de transformação da
sociedade comprometendo..nisso sua própria poesia. São vários os
outros poemas de Epigrama^ que abordam diretamente a criação
literária e o seu papel na sociedade. Esses poemas compõem
aquele veio metalingülstico, apontado como central no livro em
questão. São índices também da intertextualidade como procedimento poético a que Paes recorre com maestria.
As referências intertextuais. a nomes da.literatura e
textos literários são recorrentes em Epigramas. Por exemplo,
três poemas são dedicados no próprio título a autores: "A Arthur
Rimbaud" (com epígrafe de Aragon), "A Edgar Allan Poe", "A
Nazin Hikmet". A epígrafe que abre o livro é tirada de Ronsard.
"Nova ode ao burguês" dialoga com a "Ode ao burguês", de Mário
de Andrade. "Novo soneto quixotesco" dialoga com "Soneto quixotesco", do próprio Paes, além, obviamente, de referir-se ã
clássica personagem de Cervantes. "Ivan Ilitch 1958" remete a
texto de Tolstoi. "Primeiro tema bíblico" e "Segundo tema bí-
25
8
blico" (este dedicado a Oswald de Andrade Filho, mencionando,
mesmo que indiretamente, o famoso modernista) dialogam com
outro texto fundamental: a Bíblia, documento não somente religioso ou histórico, mas também literário,fundamental para a literatura ocidental. "Gottschalk revisitado" é uma paródia do
"Hino nacional do Brasil". "Bucólica" e "Baladilna", além de
outras formas tradicionais, como "Ode" e "Novo soneto quixotesco", atualizam formas clássicas numa temática moderna e critica, como já se destacou. Paes costura sua poesia, portanto,
bem próximamente a textos, formas e autores importantes da
literatura geral.
Nessa profusão de poemas de carãter metalingüistico e
intertextual, dois merecem um maior detalhamento aqui pelo que
apresentam" de revelador a respeito da visão, que - Paes tem do
poeta no amplo plano da sociedade neste livro: "Do mecenato"
e "A pequena revolução de Jacques Prêvert".
"Do mecenato" ë um poema em versos livres que inicia
com uma comparação curiosa: "Ele vive / C o m o um leão de circo". A partir desta chave, o poeta estabelece um paralelo entre
a vida de um leão de circo e a vida do artista, que vai sendo
exposto ao longo das estrofes seguintes. O artista, apesar da
ferocidade que a comparação sugere, vive submisso a um domador
implacável que o alimenta e o mantêm sob, o controle do chicote.
Sob o seu comando, o artista/leão expõe-se ao público. Seus
rugidos, Índices de sua independência e realeza, são aparentes. O domador detém o controle absoluto do espetáculo.
Em meio a esse
quadro, hã um espaço de idealização e
consolo para o leão/artista, projetado na ampla tela de sua
imaginação: "(...) / Nesse instante, ele pensa /( Breve espaço
289
sem grades) / Um mundo mais justo, / Onde o pão não custe /
Essa cabeça baixa, (...)". A justiça e a independência material surgem a nivel de desejo, porém desejo que não se realiza.
No final, um único consolo:
1
De noite, ele volta
A rua de sempre,
A lua de sempre,
Ao sono de sempre
Sob cobertores
E dorme, no consolo
De que, neste mundo,
Apesar de tudo,
Ha sempre mais leões
Do que domadores.
A visão final da submissão do artista
àqueles que o
mantêm materialmente ë bastante amarga. O consolo apresentado
é um tanto suspeito, jã que a superioridade do número de
leões/artistas diante do número de domadores/mecenas é incapaz de reverter o quadro. Um domador tem o controle total
sobre um bom número de animais. Diante desta realidade, qual
a possibilidade efetiva da arte e. do artista contestarem o
poder em seu espectro vãrio? Como podem eles enga.jar-se num
projeto amplo de transformação social? Como conseguir "um
mundo mais justo onde o pão não custe essa cabeça baixa"?
A despeito do quadro um tanto pessimista de "Do mecenato", Paes dã respostas positivas a essa questão, "poética",
por exemplo, não admite a passividade e a resignação. Em
"Baladilha" jã se destacou a voz que exorta o escravo a lançar
mão do "fuzil" para reverter o quadro social.
"A pequena revolução de Jacques Prévert"
(cujo titulo
faz referência ao poeta, francês Jacques Prévert, autor influenciado pelo movimento surrealista no uso de imagens e situações
insólitas, associadas porém a uma linguagem irreverente e de fun-
290
do popular) é outra resposta de orientação positiva a esta
questão fundamental da participação do artista. Este longo
poema de sessenta e três versos encontra-se todo ele no corpo
de uma única e compacta estrofe e compõe uma pequena narrativa de intenção alegórica.
Os dois primeiros versos fazem jã de início menção a
um poeta e ã situação singular em que se encontra: "Hã um
poeta imóvel / No. meio da rua.". Estar, no meio da rua e não
confinado em algum espaço fechado qualquer ( um quarto, um escritório, uma biblioteca, uma "torre de marfim", ou uma "jaula", como o leão/artista de "Do mecenato") ë muito significativo. A "rua" diz respeito a um espaço público, coletivo, espaço da agitação popular, das convulsões sociais, das revoluções políticas. Estar "no meio da rua" ê estar num espaço propício ao engajamento. Estar "imóvel", como. diz o primeiro verso, poderia ser índice de uma situação de passividade, de estaticidade. O desenvolvimento do poema desfaz, no entanto, esta
possibilidade.
Era. meio â agitação da cidade, o poeta permanece imóvel
em seu lugar. Algumas figuras sociais representativas das vãrias faixas do poder opõem-se ao poeta imóvel, cada qual com
seus instrumentos discursivos e de pressão característicos.
Por exemplo:
Diz um padre : - "É pecador.
Blasfemou, praticou
Fornicação, assalto.
Por castigo ficou
Atado ao asfalto."
Seguindo o padre, "um rico" o acusa de "anarquista",
"um soldado"
vê nele perigoso "agente de potência estrangeira",
291
e "um doutor" acredita tratar-se de alguma "vitima de mal perigoso". O poder religioso, o poder financeiro, o poder político-militar, o poder cientifico, todos têm seus argumentos
próprios para acusar o poeta imóvel no meio da rua. Sua presença, independentemente de qualquer ação efetiva, significa uma
ameaça ao podêr, ameaça contraditória e um tanto fugidia, porém bastante concreta para os que têm sempre algo a temer do
inusitado.
Com a presença'do poeta imóvel no meio da rua e ãs reações a ele, a estabilidade do poder ê posta em xeque:
Ante notícias
Tão contraditórias,
Hã queda'na Bolsa,.
Pânico na Sé,
Cai o Ministério,
E foge o doutor,
0 padre, o soldado,
0 rico, o ministro,
0 governador.
0 poder ê abalado pelo imóvel poeta, e com o abalo todas
as figuras representativas a ele ligadas debandam. 0 resultado da fuga ë curioso:
Sem donos, o povo
Livra-se de•impostos ;
Sem padres, o povo
Livra-se da missa;
Sem doutores, o•povo
Livra-se da. morte.
As ruas se animam
De vozes, de cores,
De passos, pregões,
Abraços, canções.
Com a fuga dos poderosos, a festa geral de um povo liberto da opressão e feliz toma conta das. ruas. O .poeta, enfim,
cumpriu sua missão: "E, no meio da rua, / ( . . . ) / o poeta sorri, /Completo, / Feliz.".
292
Esta insólita narrativa em forma de poesia é muito eloqüente. O poeta surge aí como figura central da revolução social. Ë ele o responsável direto pelo abalo do poder e pela
redenção popular-. A sua simples e obstinada presença em meio
ao coletivo ë responsável pelo desconcerto do poder e pelo pânico que o abate mortalmente. Hã aí uma fé inequívoca no potencial revolucionário da arte. Não hã menção a ações efetivas por parte do poeta, nem ao caráter da sua poesia; aliás,
nem se fala explicitamente na poesia desse poeta-herõi. Tudo
se passa como se a arte (na figura mesma do homem que a produz) , e qualquer arte em verdade, ao ocupar um espaço público,
tivesse esse poder essencial de revolver as coisas. Implicitamente, toda. a arte seria revolucionária, desde que exposta
a- espaços-mais amplos, e. radicada numa . imperturbabiliidade vigorosa com respeito ao seu valor no. âmbito, dos valores- humanos.
3.4.3
Conclusão
O. título do livro de Paes, Epigramas, remete a uma
forma poética da tradição literária. 49
Segundo o próprio Paes,
em formulações acerca do "epigrama", este se caracteriza pela
sua "expressão a um só tempo sentenciosa e econômica", pela
sua "brevidade, de par com o torneio mais ou menos engenhoso
por que nele ë expresso um pensamento". Ainda segundo o poeta,
o "epigrama" serve como "versátil instrumento para o epitãfio
e a dedicatória, a lisonja aos poderosos e a censura dos costumes, a sátira e o humor, o louvor e a.crítica literária, a
confissão amorosa e erótica, a lição de moral e a exaltação
do prazer". 50
A concisão e a brevidade, ou pelo menos a ten-
dência a elas, estão presentes em vários dos poemas de Epigra-
24 7
mas. Muitas das possibilidades de intenção arroladas acima
também se fazem notar. "Sátira", "humor", "critica literária",
"dedicatória", "lição moral", "censura dos costumes" são alguns dos elementos apontados facilmente encontrãveis no livro
do poeta.
José Paulo Paes havia enveredado pelo terreno da critica política e social jã no trabalho' anterior, Novas cartas
chilenas, de 1954, que só seria publicado em livro juntamente
a Epigramas, de 1958, em Poemas reunidos em 1961. Se naquele
trabalho, o poeta se debruçava sobre o farto texto da história
nacional para exercitar a sua crítica de sarcasmo agudo aos
poderosos, através da ironia, do humor e. da paródia de textos
conhecidos, bem como alinhar-se solidário ao lado dos oprimidos em poemas por sua vez de tom de indignação, sofrimento e
revolta, agora em Epigramas a perspectiva. critica.permanece,
jã não mais voltada para as figuras representativas da história, mas para os diferentes grupos sociais, e instituições do
presente. A contundência da crítica,aos poderosos é a mesma,
como também é a mesma a sua identificação com os que sofrem
sob o jugo desses.
A epígrafe que abre o livro, tirada de Les Hymnes, do poeta quinhentista clássico francês Ronsard,introduz o leitor,
como acontece nos livros anteriores, no espírito geral do livro: "Ainsi pleurait Justice, et d'une robe blanche / Se
voilant tout le chef jusqu'au bas de la hanche, / Avec ses
autres soeurs, quittant ce val mondain, / Au ciel s'en retourna
d'un vol prompt et soudain". A figura alegórica da Justiça
chorando, cobrindo-se toda com uma.toga branca, e deixando este vale mundano, junto ã.suas irmãs, num vôo pronto e súbito
294
em direção ao céu, dã bem a dimensão da realidade social brasileira com a qual o poeta se depara. É diante dessa desolação, que faz a Justiça chorar e fugir, que o poeta se vê inclinado a agir, e sua ação vai se dar da forma que se lhe afigura a mais produtiva na sua coiidição de escritor: através do
engajamento da sua palavra poética.
"Poética", como se viu, tematiza . justamente esse engajamento: a palavra poética funde-se. â palavra ética e politicamente engajada. A poesia torna-se espaço fértil.para a crítica
política, social, ou cultural de um modo geral. A classe política ("A uns políticos", "Cena legislativa"), a religião
meiro" e "Segundo Tema Bíblico", "II
("Pri-
Poverello"), os milita-
res ("Volta â legalidade"), os poderosos do capital
("Ressal-
va"), a classe média C!'Ivan Ilitch, 1958"),, todos são alvo da
palavra corrosiva de Paes. A miséria social é apontada, como
são apontados os que ganham e os que.perdem com ela. Na oposição metafórica fundamental do livro, "lobos" e "cordeiros" encontram-se em constante confronto. 0 poeta, não se exime de dar
a eles seus verdadeiros nomes: opressores e oprimidos cindem o
corpo social na visão política do autor, e a solução viãvel é
a supressão dos-primeiros ( "Baladilha": "Homem
(...) / Levanta
o fuzil / Contra o outro homem / Que te.quer escravo"). Nessa
luta, o poeta, e por extensão toda a classe artística, tem papel importante. Se em "Do mecenato"
a visão da subordinação
do artista àquele que o mantém tem muito.de amargo quanto ã
avaliação da sua efetiva capacidade de ação e transformação do
quadro social geral, em "A pequena revolução de Jacques Prêvert"
surge categórico o otimismo do poeta frente às potencialidades do homem das artes. O poeta encarna, em sua ingenuidade,
295
toda a utopia de uma época: o artista no meio da rua funcionando como a mola mestra da queda dos poderosos e da final e
festiva redenção da sociedade.
O questionamento da posição social do artista, as reflexões acerca da poesia, as referencias a outros poetas e a
outros textos, compõem um tópico igualmente fundamental de.
Epigramas.
"Metalinguagem" e "intertextualidade" são dois
conceitos-chave para se entender o espirito da poesia paesiana
contida aí. O diãlogo critico com outros textos, aliãs, verifica-se jã desde O aluno e Cúmplices, na utilização de formas
tradicionais e formas características
de outros poetas, pas-
sando por Novas cartas chilenas, no diálogo vivo com os vários
textos da historia, .até desembocar neste Epigramas.
Em Epigramas, a "intertextualidade" e a "metalinguagem"
estão presentes jã.no primeiro poema, "Poética", texto básico
para a compreensão das intenções poético-pollticas de Paes.
Esta orientação se espraia por vários, outros poemas. Poe e
Rimbaud, poetas importantes para o desenvolvimento da poesia
moderna
(o primeiro pela defesa do absoluto controle da razão
no processo de elaboração poética
(cf.. "Filosofia da composi-
ção") , desbancando assim a figura iluminada e possessa do poeta romântico, inaugurando, a linha de tradição Poe - Baudelaire Simbolistas franceses - Poesia moderna; o segundo pela explosão genial e iluminada de sua poesia, paradigma da independência e auto-suficiência crescentes do signo poético em relação
â realidade referencial) recebem poemas dedicados especialmente
a eles por Paes. Outros ainda, modernos,.recebem igual homenagem, como o poeta turco Nazim Hikmet, ligado ã esquerda marxista, e o surrealista francês Jacques Prevért. A intertextuali-
296
dade e a critica metalingülstica estão ainda presentes nas
referências â ;Bíblia e â linguagem bíblica
(cf. a metaforiza-—
cão de extração.cristã de tantas passagens de crítica
de valo-
res nos poemas de Paes), bem como a personagens do Cristianismo: Jesus, Maria, S. Francisco de Assis). Estão presentes
no aproveitamento crítico de formas poéticas clássicas, de que
são exemplo poemas como "Baladinha" é "Bucólica"; e na referência a outros textos literários, como. a "Nova ode ao burguês", que faz menção ã "Ode ao burguês", de Mário de Andrade,
e o "Novo soneto quixotesco", que por sua vez faz menção ao
"Soneto quixotesco" do próprio Paes. Em suma, encontram-se nas
referências mais ou menos explicitas, a exigir maior ou menor
erudição, que se vão acumulando nos meandros dessa poesia.
Por um lado, portanto, a poesia de Paes em Epigramas
aproxima-se da vertente que opta pelo engajamento político-social mais explícito, a vertente nacional-popular cepecista.
São reveladoras, por exemplo, as palavras de Alfredo BOSI:
(...)
e s t e l i v r o t ã o s e c o na sua
dicçio
c o i n c i d e com um d o s m o m e n t o s de m a i s
a f i a d a g a r r a p o l í t i c a do n o s s o p o e t a . E
o p e r í o d o , d e c i s i v o p a r a t a n t o s de n ó s ,
q u e se a d e n s o u e n t r e o s f i n s d o s a n o s
50 e o c o m e ç o d o s 6 0 . T e m p o da s é r i e
" V i o l ã o de R u a " p a r a a q u a l J o s é P a u l o
P a e s c o l a b o r o u c o m uma. f á b u l a
ardida,
" C e n a Leg i s 1 a t i v a " . 5 1
Na medida em que o faz, afasta-se da vanguarda estética , o outro pólo da polarização ideológica que cinde o ambiente literário de então. Nessa perspectiva, compreende-se as
opções poéticas do autor, a utilização que ele faz de uma linguagem de fãcil comunicação com o leitor, a relativa convencionalidade de sua poesia em confronto com a produção da van-
24 7
guarda: a manutenção do verso como unidade poética fundamenral; a metaforização carregada, posto que de fãcil decodificação; a utilização de rima e outros esquemas tradicionais,
como formas clãssicas cristalizadas
opção
(soneto, balada, ode)• a
por uma linguagem que, mesmo revelando uma certa con-
cisão, ê ainda muito discursiva, fazendo uso predominante das
unidades gramaticais superiores ã palavra; o não recurso a
neologismos e ã cisão de vocábulos; e a não utilização do espaço da página como elemento composicional - estes últimos
itens, componentes fundamentais .da poética concretista.
No entanto, por outro lado, a poesia de Paes, na sua
aparente simplicidade, na sua intenção, "metalingülstica" e
na utilização da "intertextualidade" como procedimento composicional, estã em . sintonia com um dos veios fundamentais da
poesia moderna, que faz desses elementos dados centrais da
sua produção. O poeta que deixa transparecerão perfil evidente do intelectual de esquerda engajado nas.questões fundamentais do seu pais., que busca uma linguagem de fácil comunicação com o leitor, convive sem atritos com o poeta refinado que,
na profusão de referências que semeia em seu texto, revela
passear tranqüilo pela multiplicidade dos textos que compõem
a tradição literária. Novamente o Paes "poeta dos livros",
"aluno" e, a cada novo trabalho, cada vez mais "mestre de
poesia", se vai revelarído.
25 8
3.5
ANATOMIAS
3.5.1
(1967)
Introdução
0 quinto trabalho poético de Paes, Anatomias, foi pu-
blicado em 196 7, num instante politico-cultural critico e de
grande efervescência no pais.
0 golpe militar de 1964, com a deposição de João Goulart, havia posto fim ãs aspirações verdadeiramente democráticas do Brasil. Diante da instabilidade e agitação políticas
e do agravamento do quadro econômico ao longo dos conturbados governos de Jânio Quadros e Goulart no início dos anos 60,
o medo da rebelião popular e do comunismo tomou conta de amplos setores da classe : média e da elite brasileiras.A propanda anti-comunista e a pressão norte-americana eram intensas
então, sobretudo com o acirramento da Guerra Fria apôs a Revolução Cubana e os progressivos desentendimentos estratégico-militares
entre. .. Estados Unidos e Cuba, esta com o apoio da
aliada União Soviética. As organizações políticas de intensa
militância, como os partidos políticos, os sindicatos e as
organizações estudantis, que se opuseram francamente ao golpe,
sofreram violenta perseguição e censura. No entanto, a produção cultural continuou se movimentando dentro de um espaço
ainda relativamente livre, organizando nesse espaço o que ainda era possível em termos de uma resistência â ditadura militar. Em dezembro de 1-96 8, portanto quatro anos apôs o levante
inicial, com a edição do AI-5, a repressão recrudesceu, censurando jornais, músicas, peças de teatro, livros, filmes,
perseguindo, torturando, banindo-do
país, calando a melhor,,
parte de seus intelectuais e artistas.
299
Nos quatro anos que formam esse breve intervalo que
vai do golpe de 64 ã edição do AI-5 em 1968 e o recrudescimento da repressão, o "golpe dentro.do golpe", a produção
cultural brasileira dã continuidade ãs tendências que haviam
surgido ao longo da segunda metade da década de 50 e inicio
dos 60, radicalizando, no entanto, no seu evidente impulso de
reação ao golpe, no sentido da contestação política e, posteriormente, também comportamental.
Na literatura, e em especial na poesia, os movimentos
de vanguarda haviam incendiado o cenário com a radicalidade
de suas propostas a partir de meados aos anos 50. Movimentos
radicais são seguidos e contestados por dissidências de radicalidade similar, como ocorre por. exemplo.com o Concretismo
e o Neoconcretismo. As carências estéticas e políticas de um
movimento são questionadas com o surgimento de outros grupos.
A Poesia Práxis
(1962) contesta as limitações políticas do
Concretismo, sem abrir mão da pesquisa formal radical. 0 Poema
Processo (1967) acaba por levar certas tendências do Concretismo ãs suas últimas conseqüências. Outras tendências rejeitam a vanguarda estética como opção.
Aproximam-se do nacional
e do popular, advogam uma poesia vincada pelo engajamento político-social mais explícito, uma poesia em que a comunicação
com as clasees populares visando sua conscientização revolucionária surge como elemento norteador das opções estéticas.
As publicações de poesia
(bem como outros eventos culturais)
organizadas- pelos CPCs ( Centros Populares de Cultura) da UNE
são exemplos característicos dessa vertente.
Estas polarizações de natureza estética, e no fundo
também política, e as tentativas de superá-las espraiam-se por
300
outros setores da produção cultural. A música popular, cujo
impacto sobre a sociedade em muito ultrapassa o de qualquer
o
u
t
E
a
produção, está cheia de tensões e contradições. A Bossa
Nova surge no final da década de 50 mais ou menos dentro do
mesmo espirito modernizador, guardadas obviamente as grandes
diferenças, que estã por trás dos movimentos poéticos de vanguarda. Restrita' ã.principio, nos temas das. letras de música
que louvam a paisagem e o amor, aos referenciais poéticos dos
garotos de classe média da Zona Sul carioca, pouco a pouco,
na pessoa de alguns de seus membros, vai se orientando em direção ao engajmento político, aproximando-se da perspectiva
cultural cepecista, engrossando o veio ..da música de protesto
que iria--tomar; conta da música popular brasileira ao longo dos
anos 60. Paralelamente--a esses movimentos-, outra-corrente da
música popular, a'"Jovem Guarda,, toma conta do cenário, agora
sob a influência do rock, com suas letras pueris e sem a sofisticação musical..da. Bossa Nova ou a consciência política da
música de protesto. Mais ao fim da década,, o Tropicalismo surge como forma de ultrapassar os impasses políticos e estéticos
da poesia engajada, e da música de protesto, lançando num mesmo
caldeirão as mais tensas informações, do veio modernizador
original da Bossa Nova a outros terrenos menos assépticos e
refinados da música popular e de massa, namorando com o Modernismo brasileiro em sua vertente oswáldiana, „com as figuras
centrais do Concretismo e outras da arte de elite, ao mesmo
tempo em que bebe na Contracultura o que hã al de vitalismo,
irracionalidade e contestação em termos de comportamento, buscando apreender assim o país no amplo quadro de suas contradições .
301
Nos outros meios artísticos a efervescencia se repete.
No cinema, o Cinema Novo de Glauber Rocha e tantos outros cria
o filme de autor e surge como alternativa altamente intelectualizada â insipiencia critica das chanchadas cinematográficas. Nas artes plásticas, da Vanguarda anos 50 á nova antropofagia do Tropicalismo, as opções seguem muito de perto o próprio desenvolvimento da arte literária. No teatro, os grupos
ligados ao Teatro de Arena e ao Teatro Oficina percorrem as
possibilidades do teatro politicamente engajado de orientação
nacional-popular â critica de comportamentos de raiz irracionalista, sob a influencia da Contracultura, jã na boca dos
anos 70.
Até a ressaca cultural que- vai gradualmente tomando
conta dos anos 70 ,-fruto do recrudescimento- da. repressão do
Regime Militar e do massacre cultural crescente dos meios de
massa, sobretudo da televisão, frente aos outros meios de divulgação cultural, o pals vive um dos seus..momento s político-culturáis mais vibrantes da história recente. Ë com esse
ambiente que está, de forma mais ou menos explicita, dialogando a poesia de Paes de então, acompanhando muito de perto todas as suas tensões e transformações.
3.5.2
Análise
0 titulo do livro anterior de Paes., Epigramas, faz
menção a uma determinada forma poética, a um determinado tipo
de poesia, em que a. brevidade, a concisão, a contençãç das
formas são os meios para a expressão de.um pensamento engenhoso, agudo, sintético e tantas vezes critico e ferino.
24 7
A poesia paesi.ana, já desde o primeiro livro, prefere
optar, mesmo nos momentos de maior angústia do sujeito, ou
de intensa efusão de lirismo amoroso, ou ainda nos momentos
de violenta irrisão diante dos poderosos ou indignação com as
injustiças sociais e os sofrimentos dos oprimidos, por uma certa contenção. Não hã longos versos derramados, acúmulos de
metáforas difíceis, de adjetivos enxundiosos ou de interjeições e reticências nos poemas de Paes. Hã poemas extensos,
como em Novas cartas chilenas, onde aliãs uma dicção de sabor,
pode-se dizer, épico, jã pela própria matéria.tratada, invade
tantas composições, mas a regra são poemas de poucas estrofes,
de versos curtos, e expressão, enxuta. Hã. inclusive poemas muito curtos., como" "Drummondiana" ( O aluno) , "Epigrama" e "Madrigal"-
(Cúmplices)"", "L-1affaire" Sardinha"
(Novas cartas chile-
nas) e "Bucólica" ( Epigramas) , entre outros..
A opção do poeta pelo humor, pela tirada espirituosa,
pela ironia, ou mesmo pelo franco sarcasmo- a. forma encontrada, segundo o próprio poeta, de resolver "o.problema da participação via poesia" 5 3 , presente sobretudo em Novas cartas
chilenas, mas latente tambán en Epigramas, livros em .que o. problema
do engajamento político-social surge como central para o
autor - casa-se bem com o veio epigramático que se vai evidenciando em sua produção.
Essa tendência ã brevidade, ã contenção formal, a
opção pelo artefato engenhoso e pelo humor, como exercício de
crítica surgem ã consciência do próprio poeta a ponto de ele
denominar Epigramas todo um conjunto de poemas seus. O poeta
parece manifestar assim uma aguda consciência literária em
relação ã sua produção e aos caminhos que ela vai tomando, de
303
forma até visionaria, pois essas características, na passagem
para este novo livro, tornam-se ainda mais presentes. O veio
epigramático vislumbrado em 1958, ainda.um tanto tímido no
próprio Epigramas, vai se manifestar de. forma radical e convicta agora em 196 7 neste Anatomias.
Um primeiro exemplo em que a contenção e o rigor formal, aliados ã mais intensa expressividade, podem ser experimentados ë este brilhante "Epitalâmio":
EPITALAMIO
uvá
pensa da
concha oclusa
entre.coxas abruptas
teu
vinho sabe
ã tinta espessa
de polvos noturnos
(falo
da noite
primeva nas águas
do amor da morte)
Alguns aspectos formais chamam a atenção logo de inicio.
Em primeiro lugar, a disposição visual do poema: três blocos,
cada qual formado por quatro linhas, dispostas num crescendo,
em termos de extensão, da primeira â última, centradas numa
espécie de eixo interno ao invés ; dé
partirem todas de uma mesma
margem ã esquerda, cujo resultado visual é a
formação de três
triângulos semelhantes. Hã um aproveitamento, portanto, do
espaço como: elemento constituinte do próprio poema. Este recurso ê novo na poesia de Paes, que até o livro anterior preferia manter-se dentro dos padrões convencionais de utilização
e disposição dos versos, alinhados sempre a partir da margem
304
esquerda e sera intenção de extrair do contraste branco/preto
das palavras em relação ã página qualquer significado.
Em segundo lugar, observa-se a ausênciavde pontuação
(excetuando-se os parênteses do último bloco) e de letras
maiúsculas. Estas características são também novas na poesia
de Paes, até então atenta ao maior rigor normativo no uso da
pontuação, não .dispensando nunca, no inicio das frases, o
uso das maiúsculas, que, aliãs, com exceção de alguns poemas
de O aluno, podem ser observadas também a cada todo novo inicio de verso. A abolição da pontuação convencional tem como
resultado um maior.relaxamento da própria sintaxe e do movimento expressivo do fluxo poético. As palavras ganham uma
maior autonomia com i s s o t e n d e n d o assim a tornarem-se as
"unidades - gramaticais básicas dos-poemas. ..A ausência de maiúsculas contribui para tanto, jã que as maiúsculas marcam sempre com bastante evidência cada novo inicio de segmentação
sintãtica. As „.maiúsculas, deixando. de . ser compulsórias, tornam-se expressivas quando delas por acaso.se faz uso. É mais
ou menos o que ocorre com o uso dos parênteses no terceiro
bloco, que o destaca dos demais pela presença desse recurso
gráfico.
Essas características formais observadas neste "Epitalamio", novas no
âmbito da poesia paesiana, não são caracte-
rísticas meramente exteriores, de presença mais ou menos gratuita, que por acaso poderiam ser dispensadas sem que isso
afetasse em muito as potencialidades expressivas do poema. A
valorização do espaço e as opções gráficas precisam, ser vistas em tensão com os demais aspectos do texto, para daí se
poder aferir melhor o seu significado composicional.
305
O termo "epitalamio" - do grego "epithalámion"• "epi",
sobre, "thálamos", câmara nupcial 5 4
- designa um tipo de poe-
ma ou canto de conteúdo laudatorio dedicado àqueles que contraem núpcias. Trata-se, portanto, de uma celebração da união
conjugal entre homem e mulher.
Com a chave semântica que o titulo propicia, pode-se
partir para a consideração do primeiro bloco. Do ponto de
vista da sintaxe, observa-se que não.hã ai.propriamente uma
oração. O que se tem ê basicamente um segmento sintático nominal de certa extensão, formado por substantivos e adjetivos pospostos ( "'uva pensa", "concha oclusa" , "coxas abruptas"), ligados entre si por preposições (.-"da" , "entre"), que
se expande pelas quatro linhas do-bloco. Esse estilo nominalizante sintoniza-se bem com o objeto que o olhar poético está focando, procurando captã-lo em toda a sua plasticidade e
estaticidade.
Chama a atenção a linguagem carregadamende figurada al
presente e o que ela tem de enigmático numa.primeira leitura.
"Uva" e "concha" são certamente metáforas. "Coxas" está empregado em seu sentido literal, pelo menos um elemento concreto
e explícito pode ser deparado aí, referência importante para
o entendimento das metáforas. Mas as tensões semânticas convidam aos vôos da imaginação interpretativa.
"Uva" remete imediatamente a idéia de "fruta", algo
que pelo seu sabor, pelo. seu frescor, pela sua doçura atrai
muito o paladar do homem; algo bom de ser. provado, bom de
ser saboreado. "Uva", enquanto uma "fruta", pode ser vista
como um objeto caro ao prazer humano., portanto algo que surge
enquanto um objeto do desejo do homem. No.contexto do poema
306
- afinal trata-se de um "epitalamio", um canto de celebração
da união homem/mulher - esse desejo pela "uva pensa" reveste-se de contornos de evidente erotismo. Saborear a "uva" ë
saborear os prazeres do corpo e da sexualidade humana. Nessa
linha de leitura, outros elementos sugestivos depreendidos do
termo "uva", sobretudo pela sua plasticidade,.tornam-se muito
significativos. A coloração avermelhada da "uva", bem como a
sua própria umidade e textura, podem evocar a coloração e materialidade do sexo feminino. Pela sua cor e pela forma, um
cacho de uvas lembra muito bem o formato e. a coloração ensombrecida de um
púbis. A própria forma triangular dos blocos
na espacialização do poema na. página remetem ao cacho, de uvas
e ao púbis da mulher.
"Concha" é metáfora que pode ser lida nessa mesma direção. A "concha oclusa" guarda inevitavelmente, um mistério interior, algo que estã. fechado para o mundo, algo que se abriga dessa visão que vem de fora e que ameaça profanã-la. A
"noiva" se guarda de. forma similar para o "noivo", quer se
olhe pela perspectiva dos afetos, quer se carregue nas cores
da sexualidade. Nesta segunda direção,.obviamente
estreita-
mente ligada ã outra., convém lembrar que o termo "concha" ë
sinônimo no dicionário para "vulva". 55
Visualmente, os dois
objetos podem ser postos em estreito paralelo. Também a forma
triangular de certas conchas encontra realização gráfica na
sugestiva construção visual do poema.
Lembre-se aqui,, num curioso paréntesis comparativo, de
uma das estrofes do belíssimo "Ãgua-forte" 56 , de Manuel Bandeira, onde "concha" surge em contexto muito similar ao do
poema de Paes, com nítida intenção de acentuar os aspectos
307
plásticos do corpo e sexo femininos (intenção aliãs presente
no próprio titulo "Ãgua-forte"): "Em meio do pente, / A concha bivalve / Num mar de escarlata. / Concha, rosa ou támara?"
Repare-se nos vários paralelos possíveis: "pente"/cacho de
"uva" - púbis; "conha bivalve"/"concha oclusa" - vulva; "mar
de escarlata"/cor da "uva" - coloração do sexo feminino; "rosa"/"uva" - nova sugestão de cor; "támara"/"uva" - a.fruta como metáfora.
Finalmente o termo "coxas" desfaz qualquer interpretação que se poderia julgar fantasiosa no tocante aos demais.
O corpo feminino é aqui diretamente nomeado. "Coxas" é o pano
de fundo para "concha" e "uva". E as "coxas" são "abruptas",
adjetivação" inusitada è expressiva.,, que confere ao substantivo nuanças curiosas,., como se o corpo feminimo, até.então.um
tanto quanto velado,. escondido por'.-detrás das " metáforas" anteriores, surgisse revelado aqui. sem qualquer pudor ou encobrimento, numa espécie de susto palpitante, e súbito. A visão do
sexo feminino na sua materialidade vibra, nas fortes imagens
do poema. Juntamente ao plástico, as metáforas evocam outros
sentidos, mais afetivos, como se procurou mostrar.
As sonoridades al presentes são também muito sugestivas. Repare-se no "u" que ecoa através de alguns vocábulos:
"uva", "oclusa", "abruptas". 0 arredondamento dos lábios para a formação dessa vogai fechada posterior remete ã circularidade do bago da "uva"; o "fechamento" necessário para a
formação do som, com a língua restringindo a caixa de ressoa
nância formada na. boca, evoca também a "concha oclusa"; e
ainda, acentuando ainda mais o erotismo latente no poema,
esse mesmo formato da boca para a produção do som pode ser
308
posto em paralelo com o sexo feminino. Outras reiterações sonoras, responsáveis por aliterações salientes, chamam também a
atenção: a fricativa palatal - "concha", "coxas"; a oclusiva
velar - "concha", "oclusa", "coxas"; os sons vocálicos nasais
que dominara os. inicios de verso - "pensa" , "concha", "entre".
E repare-se ainda na sugestiva sonoridade do. adjetivo "abruptas": a própria semântica do termo parece estar sintetizada
em certos encontros consonantais, como /br/, mas sobretudo
/pt/; os bloqueios postos â passagem do... ar para a formação do
som e a sua transposição aparentemente difícil e cheia de tropeços dão a sensação de algo que se revela ao final de forma
repentina e "abrupta".
O segundo bloco difere sintaticamente do. anterior pela
presença de uma oração~completa : que se desdobra---ao~ longo das
linhas. A linguagem aí presente, como no trecho anterior, ë
carregadamente figurada.
0 sujeito da oração "teu vinho" traz outros elementos
importantes para a interpretação., 0 possessivo "teu" presentifica uma espécie de interlocutor, potencial, do sujeito poético. No contexto do poema, o sujeito ë certamente, o "noivo" e
a interlocutora. potencial a "noiva"., "Vinho" estabelece uma
relação semântica imediata com a "uva" do primeiro bloco. Se
lã o apelo sexual da "noiva" tomava a.forma de um fruto que
se oferece para o desfrute do "noivo", aqui essa "uva" fermenta, e a doçura e o frescor originais tomam, outro sentido ao se
potencializarem na embriagues do "vinho". Percebe-se um crescendo na passagem do primeiro para o segundo bloco: de uma
certa doçura presente ainda na "uva", passa-se para um ambiente de quase luxuria presentifiçado no "vinho".
309
"Sabe" ë forma conjugada do verbo "saber" no sentido
de "saber a", ou seja, "ter o sabor de". Se no primeiro bloco o quadro tinha muito de estático, como se o sujeito poético simplesmente visualizasse.de certa distância o seu objeto,
destacando assim os seus contornos plásticos, aqui a relação
entre os dois se dinamiza. 0 "noivo" efetivamente "prova" da
"noiva", ou seja, o ato se realiza. E o sabor desse "vinho" ë
curios!ssimo: ele "sabe ã tinta espessa de polvos noturnos".
0 movimento sinestësico de todo o bloco é precioso. Do
paladar passa-se ã. visão,.através de um movimento interior de
sutillssimas ligações: "vinho" relaciona-se ã "tinta" pela co
loração - há também ecos possíveis da expressão "vinho tinto"
como ' se ela tivesse sido- aqui desmembrada-; "tinta- espessa"
liga-se a "polvos", animal que, quando em perigo solta uma
-tintura de coloração .escura, para se..proteger; a "tinta espessa", de coloração escura como o "vinho", secretada pelo animal, reverbera no adjetivo "notuamos", posposto a "polvos".
Repare-se, portanto, na ligação engenhosa dos vários elementos, extraídos de universos tão dispares.
Repare-se também nas possibilidades de sentido ai presentes. 0 "noivo" prova, do "vinho" da "noiva"; assim, aquele
belo e estático quadro inicial se rompe, e o que se tem agora
ë a dinâmica dos amantes em conjunção amorosa. O "vinho" remete â embriagués do ato, ao envolvimento inebriante dos sentidos. O "vinho" é escuro como "tinta", como, escura ë a noite, escuro é o ambiente do quarto, e escuro o mergulho do
casal no envolvimento,total dos corpos. A "tinta" ë a "tinta
espessa de polvos noturnos", pense-se aqui no movimento convulso dos varios membros do "polvo" e o que há
nisso de
310
raimético em relação ao movimento emuriagado dos membros dos
corpos dos amantes. Pense-se também na forma como o animal
ataca suas vitimas, literalmente sugando-as através dos vários orifícios espalhados pelos seus membros, e o paralelo
que a partir dal se pode estabelecer com as caricias mais ou
menos violentas do par amoroso. A imagem de "polvos" se enrodilhando em meio ãs suas secreções escuras como "tinta espessa" sugere muito bera.a imagem noturna
(referência explici-
tamente presente em "polvos noturnos") da união amorosa dos
"noivos".
Aqui também.alguns aspectos relativos ã sonoridade podem ser destacados. Alguns ecos sonoros internos amalgamam
muito bem as palavras num todo fónicamente-necessário-e coeso: oclusivas llnguo-dentais - "teu", "tinta"v" "noturnos";
oclusivas bilabiais - "sabe",, "espessa", "polvos"; fricativas
alveolares - "sabe", "espessa"; vogais posteriores fechadas,
em forte recorrência na expressão. - "polvos noturnos".
O terceiro bloco ë também, como o segundo, composto por
uma oração completa, se se interpreta o termo inicial "falo"
como forma conjugada do verbo "falar"..É também possível entendê-lo enquanto substantivo, no sentido de órgão sexual
masculino, apesar desta leitura soar um pouco mais forçada;
a seqüência semântico-sintática não a desabona, no entanto.
Neste segundo caso, não se teria propriamente uma oração,
mas sim um segmento., sintático nominal como ocorre no primeiro
bloco do poema.
Orientando a leitura para a consideração do primeiro
termo como forma conjugada do verbo "falar" ( se bem que a
outra possibilidade conduz a conclusões similares ãs que se
311
vai chegar), novamente ressalta-se a presença do sujeito
poético, que assume explicitamente, por trás da primeira pessoa do verbo, as enunciações al presentes. Após o desenvolvimento dos blocos anteriores, o sujeito surge agora como se
fosse necessário uma espécie de intervenção a fim de "explicar" o sentido das enunciações precedentes, de "corrigir" o
seu sentido de leitura, de redirecioná-lo para extrair delas
um sentido de simbolismo muito mais amplo. A presença dos parênteses no inicio e no fim do bloco ressalta essa perspectiva, insiste em que se trata ai de um segmento que recebe uma
marca distinta dos demais, que portanto tem um peso diferente
e como tal tem de ser lido.
No primeiro bloco, .um, olhar poético exterior procura
captar a plasticidade estática de um determinado objeto. 0
sujeito poético, "o"r"noivo" do"^"epitalamio", centra a sua -atenção no corpo da "noiva", nomeadamente no sexo desta,descrevendo-o com uma linguagem intensamente. figurada. No segundo,
a distância inicial entre sujeito e objeto, intermediada pelo
olhar descritivo do primeiro, é quebrada. O que poeticamente
se descreve de forma muito sugestiva agora ê a união carnal
dos dois na franca realização do ato. No terceiro, este desenvolvimento como que se expande de forma violenta. O sujeito intervém, como se estivesse fazendo reparos e quisesse
extrair da conjunção amorosa outros sentidos. 0 ato jã não
vale mais enquanto ato individual, particular, localizado no
tempo e no espaço, ato simplesmente carnal, mas enquanto uma
comunhão de vasto significado simbólico.
Como entre o primeiro e o segundo, são várias as pontes possíveis entre o segundo e o terceiro blocos. "Noite"
312
liga-se ã "tinta espessa" e "polvos noturnos". "Ãguas" ecoa
em "polvos", visto ser este o seu "habitat". A expressão
"ãguas do amor da morte" estabelece ainda várias relações com
"polvos". Jã se destacou que o entrelaçamento amoroso do casal pode lembrar a imagem de "polvos" entrelaçados. Mas o
polvo ê animal predador, e o seu "abraço" . significa também a
"morte" daquele que ele abraça.
No terceiro bloco do poema, a primeira noite do casal
assume dimensões de simbolismo arquetlpico. "Noite primeva"
não ë simplesmente a "primeira, noite",.mas uma noite que
remonta a algo de primitivo e primordial. A noite amorosa
singular vivida pelos amantes atualiza.um ritual fundamental
de união experimentado desde a origem, da. humanidade. O termo
"ãguas", contexto.simbólico, em_que a "noite" é experimentada,
ressalta esse sentido. As. "ãguas" estão ligadas à própria origem dos seres e ã sua manutenção, são fonte de vida, de purificação e de regeneração. Mas as águas são também símbolo de
destruição, de aniquilação, de morte. 5 2 "Ãguas do amor da morte" reitera esse simbolismo jã contido em "águas". A união
amorosa aponta para a permanência da vida, mas ao mesmo tempo para a fragilidade da própria vida e. a sua condenção ã
inevitável aniquilação final. O próprio prazer do ato traz
embutida essa dupla orientação. É vivenciado enquanto "amor"
durante a realização, mas também enquanto uma espécie de
"morte" quando atingido o fim.
A expressão, final "do amor da morte" é muito sugestiva, e merece maior detalhamento descritivo. A ausência de
pontuação, por exemplo de uma vírgula, que acaso distinguisse
dois segmentos "do amor"/"da morte", acentua a estreita rela-
313
ção entre eles, como se fizessem parte de um todo, sentido
aliãs jã presente no termo "ãguas" enquanto meio comum a ambos. Somando-se à ausência de pontuação, estão também as similaridades sonoras entre "amor" e "morte". Ambos tem uma sílaba similar "mor" , a despeito da vogai, ser mais fechada num
caso e mais aberta no outro. Curiosamente, em "amor" observa-se uma sílaba anterior, ao passo que em "morte" o que se
tem é uma posterior. Hã.uma espécie de simetria nisso: a partir da sílaba comum, num caso hã um prolongamento em.direção
a uma anterioridade
("amor" enquanto algo que estã na "origem"
das coisas) e no outro um prolongamento em direção a uma posterioridade ("morte" enquanto algo que estã no "fim" de tudo).
Aspectos sutis que não deixam de chamar a atenção
e
ser muito
significativos •poeticamente.
Como.se pode ver, o poema " E p i t a l a m i o n a
sua conten-
ção de linguagem, na sua expressão altamente.condensada, dã
margem a muitas considerações. A forma ë sintética, mas as potencialidades que ela abriga são muito vastas. Os três blocos
estruturam-se num crescendo, que vai da apreensão da materialidade do corpo feminino, passa.pela realização singular do
ato dos amantes e chega a experimentação do ato. em seus sentidos simbólicos mais vitais, nas suas relações com os princípios fundamentais do "amor" e da "morte".
A espacialização dos blocos pode ser vista assim em
novos sentidos. Se anteriormente chamou-se a atenção para as
similitudes entre o triângulo, forma assumida pelo contraste
'•preto das palavras" / "branco da página", e o formato de
um cacho de uvas, de uma concha e de um púbis feminino, a
espacialização pode ser vista também de forma menos óbvia
314
nas suas intenções miméticas. Assim, o triângulo, da forma
como está disposto, partindo de um ponto situado ao topo até
a base mais ampla situada abaixo, representa o próprio movimento em crescendo dos sentidos presentes nos blocos. No primeiro, da "uva" inicial ao contexto concreto mais amplo em
que ela se localiza: "coxas". No segundo, do "teu" referindo-se a um dos amantes exclusivamente a. principio, aliás
àquele que recebe, destaque na primeira estrofe, até a conjunção amorosa do casal, sentido possível relativamente a "polvos noturnos". No terceiro, finalmente, do verbo inicial "falo", que abarca o que foi dito até então, até a expressão final que amplia vastamente o sentido da relação amorosa,, projetando-a no amplo painel da própria vida.enquantoJ"princlpio" e "fim", "amor" e "morte"... Esse. movimento, que vai de
algo menor em direção a algo maior (do vértice do triângulo
â sua base) pode ser" visto também em:relação â totalidade do
poema: da visão do corpo feminino, passando pela conjunção
amorosa, até o amplo sentido simbólico e .vital disso. 0 movimento é ternario, como são também três.os blocos, em sintonia com os três lados dos triângulos.
Este belo poema de Paes prima, portanto, pela rica
concentração expressiva que apresenta. As. linhas que formam
os blocos são muito breves, formadas, até por uma única palavra, como é o caso das primeiras de cada bloco ; estes são
construídos com concisão geométrica; a utilização do espaço
em branco da página ê muito.sugestiva, e ecoa o próprio movimento poético do todo; a concatenação dos elementos metafóricos ê belíssima e densa de sentidos; o desenvolvimento do
poema num crescendo em três tempos ë preciso.
315
A concentração verbal rigorosa al presente pode ser
conferida em outros poemas do. livro.. A concisão vai se revelando uma palavra-chave para o entendimento da poética paesiana. Extrair de um mínimo de elementos a máxima densidade poética possível ê, afinal, a arte do poeta epigramático.
Alguns poemas têm forma muito concisa, como ë o caso
da seguinte composição:
A MODA DA CASA
feijoada
marmelada,
goleada
quartelada
0 poema compõem-se de somente quatro palavras, cada
uma delas- no corpo de uma- linha. Diferentemente de.. "Epitalamio " , em que predominam unidades sintáticas superiores ã palavra, aqui são elas o centro de todo o poema. Todas as quatro palavras aí presentes têm em comum.determinadas características sonoras e morfológicas. Todos os termos são substantivos com um mesmo tipo de sufixação. Todos são paroxítonos
e têm quatro sílabas ao todo. 0 sufixo comum "-ada" estabelece airida uma espécie de rima, um paralelismo sonoro marcante
entre eles.
0 título "Ã moda da casa" ê fundamental para o entendimento do todo, pois ê ele que estabelece um contexto semântico comum para as várias palavras, orientando assim a própria leitura do poema. "A moda da casa" é expressão extraída
do universo da gastronomia. Um prato "â moda da casa" é um
prato elaborado de forma especial por um determinado estabelecimento gastronômico, de receita exclusiva, em geral não
316
encontrável em outros lugares nas suas particularidades. No
contexto do poema, esse conceito extrapola os limites da culinária e "ã moda da casa" passa a referir-se. a determinados elementos, a determinadas realidades típicas da sociedade e da
cultura brasileira, que constituiriam assim as suas "especialidades" .
0 primeiro substantivo que segue o titulo, "feijoada",
diz respeito a esse universo gastronômico de onde a expressão
"ã moda da casa" foi retirada. Trata-se de um prato típico da
culinária brasileira, originário, segundo o senso comum, da
alimentação dos escravos negros> que acabou conquistando a casa-grande. Portanto, num certo sentido,. para além. da referência a um prato típico, e-popular, . pode ser. visto também como um
emblema da nossa própria formação cultural.
0 substantivo seguinte, "marmelada", no sentido primeiro de "doce de marmelo", ë termo que remete também ao universo
da culinária. No entanto, este não ê seu único sentido. "Marmelada", segundo o dicionário, tem também outros significados,
aliás até mais fortes que o primeiro: "negócio desonesto, mamata"; "conluio entre os participantes de um jogo ou competição,
a fim de que o resultado seja favorável ãquele a quem convém
sair vencedor". 58
Assim, "ã moda da casa" não seria somente
o doce, mas, e sobretudo, a tendência ã trapaça, à picaretagem,
ã desonestidade, ã malandragem, o desejo de passar os outros
para trás através de expedientes escusos. No contexto do poema, estaria se referindo também a um traço marcante do homem
brasileiro, ou de "certos" homens brasileiros.
0 terceiro substantivo na seqüência, "goleada", diferentemente dos anteriores, não tem qualquer relação com o
317
universo culinario do qual se extraiu o título do poema. "Goleada" remete a um contexto característico da cultura brasileira, o futebol. Liga-se, por este caminho, à.\"feijoada" , no
que tem de típico, emblemático e positivo, por volta de 196 7,
quando vem
a público Anatomias, o Brasil já era bicampeão
mundial e estava a caminho do tricampeonato rio Méxcio. 0 futebol era um orgulho nacional, e a "goleada" assinalava a superioridade característica do nosso futebol, forma compensatória
de marcar, pelo menos am alguma via, a superioridade do homem
e da cultura brasileiros frente aos outros países.
"Quartelada", o último termo, porém, descamba para um pólo
oposto a este. Liga-se de alguma forma ã. "marmelada" , no que este termo tem de negativo. 0- sentido é~ pejorativo e diz .respeito, genericamente, ãs rebeliões intentadas por militares a fim
de tomar o.poder. No caso concreto do contexto político de então, a referência aponta para o golpe militar de 1964. Chamar
a "gloriosa" revolução de "quartelada" revela a postura de
sátira e sarcasmo tomada pelo poeta frente à questão. Situã-la
neste rol de coisas características do país retira dela toda a
sua singularidade, toda a aura postitiva que pudesse encobrir
o seu real sentido político. Como."marmelada", situa-se apenas
como mais um dos "vícios" da realidade brasileira.
A intenção satírica do poema ê evidente. Na dialética
de aspectos supostamente positivos "versus" aspectos certamente negativos
("feijoada" x "marmelada" x "goleada" x "quarte-
lada") projeta-se um quadro corrosivo e crítico da realidade
nacional." Os aspectos supostamente positivos recobrem áreas
como alimentação
("feijoada") e esporte
("goleada"), ficando
os negativos como caracterizadores dos aspectos morais
("marme-
318
lada") e políticos ("quartelada"). 0 peso dos segundos na formação do perfil cultural de um povo ê muito mais decisivo do
que o dos primeiros. Por isso, no cómputo geral, o que se tem
na verdade ê um quadro do país agudamente crítico e negativo.
As supostas virtudes ( ^"feijoada" e "goleada") acentuam, por
contraste, ainda mais os nossos vícios (:"marmelada" e "quartelada") .
"Ä moda da casa" é um exemplo muito feliz de concisão
e contundência satírica. Com pouquíssimos elementos o poeta,
consegue traçar todo um quadro crítico da realidade nacional.
Com quatro substantivos com estreitas relações morfológicas e
sonoras entre si, o que do ponto de vista formal estabelece
um alto. grau de. coesão— entre as partes, numa.seqüência inteligentemente pro jetada,--dentro : de _.um_. contexto . semântico cuja
unidade ë garantida pelo título, o poeta compõe iam poema incisivo e muito eloqüente.
Igualmente incisivo e eloqüente ë outro poema muito
breve e satírico de Paes, "Epitãfio para um banqueiro":
EPITÃFIO PARA UM BANQUEIRO
negócio
ego
ócio
cio
0
0 termo "epitãfio" (grego "epitãphion", "epi", sobre,
"tãphos", túmulo) 59 . designa, originariamente, um certo tipo
de inscrição colocada sobre as lápides tumulares. Esta prática
acabou, porém, por desenvolver-se com certa autonomia atë
adquirir estatuto de poesia. 0 termo passou a< designar uma
forma poética circunstancial, de intenção oscilante entre o
319
laudatorio e circunspecto e o jocoso ou ainda o satírico. Ë
na qualidade de composição satírica que se realiza o presente
"Epitãfio" de Paes.
Como no poema anterior, o poeta atém-se à palavra como
elemento básico sobre o qual se dá o trabalho poético. Aqui,
porém, ao invés da seqüência de diferentes palavras a partir
de um mesmo modelo paradigmático, o poeta trabalha com um vocábulo básico, "negócio", fragmentando-o e extraindo do seu
interior novos vocábulos significativos: "ego", "ócio", "cio"
e um algarismo: "0", este obtido a partir de sua semelhança
com a letra "o".
Da própria forma.da palavra - sobretudo das próprias
letras, mas por extensão também dos sons que a compõem -, o
poeta extrai outros vocábulos, sem que para...tanto.. se-ja-.necessãrio embaralhar sílabas, ou redistribuir as letras. Tudo se
dã como se estas outras palavras fossem extraídas "naturalmente" de dentro da palavra-matriz, sem maiores artifícios, sem
truques. A própria disposição dos vocábulos no poema acentua
este aspecto. Todos têm suas letras ligadas a um mesmo eixo.
Em certa palavra algumas letras se atualizam, se realizam, e
outras não,.como se permanecessem encobertas. Noutra palavra, a
concretização é diferente.
Douimesmo modo como as palavras, do ponto de vista da
forma, encontram-se potencialmente n!o interior, da palavra-matriz, também o.significado destas pode ser visto como presente na composição do significado do termo maior. É esta correspondência, aliás, entre forma e sentido o que mais chama a
atenção no poema.
"Negócio" ê a atividade básica do "banqueiro".."Ego",
termo latino que significa "eu", remete a certo aspecto dessa
320
atividade, que visa o beneficio precipuo quando não explicitamente único do próprio banqueiro, portanto do "eu", do "sujeito" que estã por trãs dela. O termo "ócio", por sua vez, é
outro termo que remete a determinado.aspecto do "negócio", da
atividade do "banqueiro". O acúmulo e a manipulação do capital podem ser vistos como atividades."ociosas" em relação ao
trabalho produtivo, por exèmplo, de operários e lavradores.
"Cio", segundo o dicionário, "período de desejo sexual intenso dos animais", e, por extensão, "o apetite sexual das pessoas" 60 , pode ser estendido, na expressão satírica do poeta,
ao "desejo", "apetite financeiro" intenso do banqueiro, sempre pronto para "multiplicar" seu capital, da mesma forma como
os animais, -quando no "cio"; encontram-se. inclinados a multiplicar a própria espécie. O algarismo .final "0" pode- dizer respeito- ao resultado -final" do "negócio" do "banqueiro" ;em-termos
sociais ou morais, por sua natureza egoísta (.-"ego"), improdutiva ("ócio") e predadora
("cio"). Pode dizer respeito também
ao próprio destino do "banqueiro", que, como todos os outros
seres, apesar das pretensões, estã condenado ã aniquilação.
Este segundo sentido reverbera também o título do poema, "Epitãfio para um banqueiro".
Como no poema anterior, estã-se diante de um poeta que
faz de sua expressão violentamente incisiva uma arma de crítica em relação ã sociedade, seja em seus aspectos mais globais, como em "Ã moda da casa", seja ela orientada para determinado grupo ou instituição social, como neste "Epitãfio para
um banqueiro". Esta.crítica recai também sobre a civilização
como um todo, como neste curioso "Cronologia":
321
CRONOLOGIA
A.C.
D.C-.
W . C.
Se nos poemas anteriores ë a palavra o elemento básico
com o qual o poeta trabalha, aqui ele. escolhe elementos ainda
menores: as abreviaturas. Dispostas assim em seqüência, as
abreviaturas sugerem, em sintonia com o titulo, uma curiosa
cronologia. "A.C.",
antes de Cristo , e "D.C.", depois de
Cristo, são abreviaturas de expressões que se referem a períodos de tempo que tomam como base o nascimento de Cristo. Trata-se de uma convenção na segmentação do tempo consagrada no
mundo ocidental, que acabou-^, pela-própria expansão política e
econômica de alguns- paises que-dele—-fazem .parte , se estendendo
ao mundo como um todo. "W.C. " e abreviatura da. expressão inglesa "water closet", que significa simplesmente "banheiro".
Formalmente, "W.C." segue o paradigma proposto pelas abreviaturas anteriores'; tem, como elas, duas letras maiúsculas seguidas de ponto, sendo a segunda aquele mesmo "c" que nas anteriores ë o termo comum "Cristo". No entanto, estabelece um
estranhamento bãsico, jã que o seu sentido original nada tem
a ver com divisões cronológicas.-
No contexto do poema, satí-
ricamente, impregna-se deste novo sentido, passando a refer- .
rir-se a um tempo fantasiosamente posterior ao anterior "D.C.",
um tempo presente ou ainda .futuro, em. que o mundo, dado o seu ...
desenvolvimento predatório em relação ao meio ambiente, dados
os incríveis índices de poluição da. civilização industrial,
assemelha-se. a um "banheiro".
O poeta trabalha com determinadas expressões comuns e
correntes no universo da linguagem, no caso em suas formas
322
abreviadas, extraindo delas relações e sentidos ainda não
obtidos de visível intenção crítica. Em outro poema, "Anatomia
do monólogo", o poeta novamente vai recorrer a uma expressão
corrente e conhecida, para a partir dela obter, resultados poéticos e críticos imprevistos:
ANATOMIA DO MONÓLOGO
ser ou não ser?
er ou não er?
r ou não
r?
ou não?
. onã?
O poeta resgata a princípio parte.de uma dás mais conhecidas expressões do Hamlet, de- Shakespeare., na igualmente conhecida-versão em português "ser ou não ser" ("Ser ou não ser,
eis a questão'!") 5 1 , expressão 'retirada alias justamente de famoso monólogo da personagem no início do.terceiro ato da peça.
No contexto em questão, o príncipe Hamlet, atormentado pela dúvida acerca do assassinato de seu.pai e da identidade do assassino, desenvolve um relativamente extenso. monólogo a respeito
da morte e das dilacerações do-indivíduo, frente ãs opções de
enfrentar bravamente a fortuna, submetendo-a, ou sucumbir aos
seus desígnios. O trecho todo ê bastante patético,e revela muito bem o emaranhamento do indivíduo na.dúvida e na especulação,
que intensificam a sua hesitação e insegurança, impedindo-o de
agir de forma decidida e precisa.
No poema, a partir do segmento "ser ou não ser", disposto na primeira linha, Paes opera sucessivos cortes de letras, ã sua direita e.ã sua esquerda, ao longo das linhas dois,
três e quatro. Nas linhas dois. e três, o que sobra da expressão
original não tem propriamente sentido; na quarta, tem-se uma
323
expressão com significado possível, "ou não?", a partir da
qual é formada a linha seguinte, "onã?", sonoramente próxima
â anterior.
Da indagação maior â palavra única, tudo se passa como
se o monólogo fosse encolhendo., tornando-se cada vez menor,
despido de sentidos, nas linhas dois e três, ou marcado pela
negatividade, na linha quatro. Como resultado dessa intensificação, dessa exasperação do monólogo, cada vez mais reduzido
em sua abrangência, cada vez mais centrado no próprio sujeito,
restaria
ao final apenas a auto-satisfação estéril do próprio
monologante. "Onã", o, termo final., diz respeito a uma personagem bíblica, cujo pecado, devidamente punido por Deus, deu
origem a expressão "onanismo"., sinônimo de "mastürbação". O
monólogo, no seu limite, nada mais seria.do que uma "mastürbação" do sujeito, que prescinde do. outro para a_comunicação,
da mesma forma que o sujeito que se masturba prescinde do parceiro para a: satisfação sexual. Como resultado, tem-se um ato
estéril, improdutivo, não fecundante, carente de frutos.
No contexto literário de onde a expressão é retirada,
Hamlet, a despeito de toda a sua angústia, como que se satisfaz com a sua própria palavra, ao fazer dela, nesse instante,
um sucedâneo impotente da ação. Hamlet, assim, "masturba-se"
(expressão sugerida pelo poema) ao emaranhar-se em. seu próprio
discurso, ao voltar-se cada vez mais sobre si mesmo no movimento incessantemente indagador e paralisante da sua consciência.
Os segmentos finais do monólogo são eloqüentes: "Assim a consciência faz cobardes de nós todos, e assim o primeiro impulso
da resolução esfuma-se no. pensamento, e as tentativas de força
e energia, perante este iaciocinio, mudam o seu curso e perdem
©
nome de ação..." 62
324
Novamente o veio satírico de Paes se manifesta corn,
contundência. Novamente a perfeita integração forma/conteúdo
pode ser aqui verificada. É da própria manipulação do material
verbal que Paes extrai os seus sentidos. "Onã?" encontra-se
sonora e visualmente no interior de "ser ou não ser?", da mesma forma que o seu sentido critico pode ser encontrado no interior da expressão. Tudo se dã como se o poeta simplesmente
revelasse, através de certos procedimentos, as virtualidades
poéticas e satíricas de certas palavras e expressões.
Convém assinalar aqui novamente o trabalho intertextual
do poeta na referência a texto e autor da tradição literária.
Também o veio metalingülstico de Paes encontra-se presente no
poema-com a critica, feita ao "monólogo" enquanto possibilida- .
de do discurso.
Outro poema que se constrói a partir de uma expressão
consagrada no universo da: cultura, que.... faz portanto recurso â
intertextualidade como procedimento composicional, é "O suicida ou Descartes ãs avessas":
0 SUICIDA OU DESCARTES AS AVESSAS,
cogito
ergo
pum'.
A expressão de partida ê a famosa "penso, logo existo",
de Descartes, aqui na sua versão original latina "cogito ergo
sum". Expressão síntese do racionalismo filosófico, neste poema de Paes ela ê retomada paródicamente. Primeiramente, o
autor recontextualiza. a expressão a partir de um titulo bastante
325
sugestivo, que faz referencia explicita ao suicídio ( ^'o suicida") e a Descartes ("Descartes äs avessas"), o que jã sugere
inclusive a própria natureza do novo texto: o que ê a paródia
senão uma inversão do sentido de um texto anterior? Além disso, o autor altera uma de suas palavras: ao invés da original
forma conjugada "sum", tem-se a sonoramente semelhante "pum",
onomatopéia que imitia o disparo de uma arma de fogo. E finalmente, ele dispõe visualmente a expressão sobre o branco da
página, obtendo um desenvolvimento espãcio-temporal em ritmo
ternãrio que acentua o movimento conceituai interno da expressão. Como resultado, tem-se uma nova. frase que, num movimento
semelhante, acaba por expressar, satíricamente, justamente o
contrário da anterior. Se aquela era uma afirmação vigorosa e~
positiva da_ existência a. partir, da constatação da capacidade
humana de pensar, de "cogitar", esta ê justamente o contrário,
pois aqui o "cogitar" ê que surge como um problema para o
sujeito, algo que se lhe afigura absurdo e que o leva ao impulso ao suicídio. Ao invés da afirmação positiva da vida,
tem-se o desejo da aniquilação. Assim, ao.invés do "cogito
ergo sum", tem-se um "cogito ergo non sum" ou simplesmente
"pumi" na expressão cômica mas também amarga do poeta.
Este recurso ã espacialização do poema na página,
que passa a ser um dos elementos novos :com que Paes começa a
trabalhar neste Anatomias, encontra expressão radical no
curiosíssimo "Anatomia da musa":
326
ANATOMIA DA MUSA
capitis diminutio:
area non aedificandi
abusus non tollit usum:
ad u s u m delphini
m u l t u m in parvo:
in hoc s i g n o v i n c e s
mutatis mutandis:
m o d u s in rebus!
all
rights
reserved
Neste "Anatomia da musa", o poeta não estã mais trabalhando somente com o signo verbal, como ocorria nos poemas
anteriores. Hã aqui o uso da palavra, nas várias citações latinas e na expressão em inglês "all rigths reserved", mas o
código verbal é posto lado a lado com um outro código: o das
327
artes visuais. Um desenho de um corpo feminino que lembra
muito a forma de um manequim, porém sem membros superiores e
com uma espécie de cabeça de tamanho muito desproporcional ao
corpo, faz as vezes de uma "musa", como o titulo sugere, porém
acentuadamente insólita, marcada pelo sarcasmo e a irrisão
mais penetrantes. Acentuando estes aspectos do desenho, encontram-se as citações latinas, frases feitas combinadas entre
si e recontextualizadas, postas em ligação, pela disposição
visual, com determinada parte da "anatomia da musa".
A titulo de exemplo, convém conferir uma das combinações. As frases sobrepostas â "cabeça" da. musa - "capitis
diminutio: / area non aedificandi" - são ambas expressões
dicionarizadas. "A primeira delas.é expressão jurídica, originária do direito romano, -e significa- "diminuição-ou perda de
autoridade, em geral humilhante ou vexatória". 63
Resgatando-se
seu sentido mais literal., significa "diminuição da capacidade"
ou ainda "diminuição da cabeça" (lat. "caput", "capitis": "cabeça") . A segunda expressão é também uma expressão feita e
significa "espaço onde não é permitido construir" . 6 **
Justa-
posta ã anterior e confrontada com o desenho, reveste-se de
todo um sentido bastante satírico.
0 poeta joga com os sentidos das frases e com o desenho. Neste, a cabeça da insólita "musa" é de fato reduzida,
e muito, em relação ãs proporções do corpo. A "cabeça", convém ressaltar, é a sede da razão,, e as suas reduzidas proporções remetem, por conseguinte, a uma limitação da inteligência, da racionalidade. Nesse sentido, a poesia - simbolizada pela "musa" - estaria sendo acusada de possuir uma inteligência um tanto quanto parca em relação ao tamanho do seu
328
corpo, de formas proeminentes, razão, portanto, de uma possível "diminuição" ou "perda" da sua "autoridade". Nessas condições, nessa "ãrea" - aproveitando-se aqui a segunda citação não se pode "edificar" nada.
Hã ai uma critica, por parte de Paes, ã poesia que abre
mão da razão como elemento fundamental do ato criativo. Uma
poesia assim destaca-se pelo excesso, pelas formas proeminentes e enxudiosas, responsáveis por um desequilíbrio, por uma
desproporção um tanto quanto grotesca das partes, como bem o
traduz o corpo da "musa" e a desproporção das formas aí existentes.
A poesia de Paes afasta-se dessa poesia e assume uma
postura francamente crítica em relação a ela. O poeta epigramático prima pela engenhosi-dade e pela concisão, portanto., por
um impulso poético que passa inevitavelmente pelo filtro da razão. 0 poeta epigramático encontra-se ligado, por esse motivo, a uma das linhas fundamentais da poesia, moderna, justamente aquela que passa por Poe, pelo Simbolismo francês, sobretudo na figura de Mallarmé, e deságua, nas vertentes mais rigorosas da poesia do séc. XX, de que João Cabral, de Melo Neto e o
Concretismo, por exemplo, são expressões capitais na poesia
brasileira. Poesia inteligente, de construção precisa e rigorosa, de emoção sempre subordinada ã razão, poesia crítica e
sempre muito consciente do ato criativo.
As demais combinações, nesse mesmo poema, de expressões latinas espacializadas na página de forma a sugerir sempre uma ligação a determinada parte do corpo da "musa" revelam carãter e orientação semelhante: misturam ironia e "nonsense" numa química de muito sacarsmo e iconoclastia. O resultado
ë um dos poemas mais irreverentes e curiosos de todo o livro.
329
No poema "Anatomia da musa", observa-se uma radicalização do recurso ã visualidade como elemento composicional, recurso que aliãs se depreende, em menor ou maior grau, de outros poemas deste mesmo Anatomias, como jã se evidenciou. A
tendência geral de extrapolar os limites tradicionais da linguagem verbal incorporando recursos de um outro código, como
o das artes visuais, ë uma tendência nova na poesia de Paes e
chama a atenção pela insistência em que aparece. Importante
destacar que a distribuição visual do poema na página não ê
ato gratuito, desprovido de um sentido.que se encontre ligado
ao próprio sentido global do poema. Pelo contrário, as opções
visuais do poeta para cada poema, revelam a existência de uma
motivação que parte.das outras potencialidades estruturais e
semânticas da composição.
. .
- Seria- interessante introduzir- aqui alguns -conceitos e
formulações da Semiótica no âmbito da criação literaria, até
para entender melhor estas opções poéticas de Paes, uma vez
que elas jã não se restringem somente ao código verbal. A Semiótica, enquanto teoria geral dos signos, portanto enquanto
perspectiva que- não se limita a somente um determinado sistema de signos, pode fornecer algumas, reflexões importantes
acerca de uma poesia que se movimenta, agora num espaço explicitamente
intersemiótico.
Décio Pignatari, um dos três principais nomes da Poesia Concreta, propositor, inclusive, jã nos desdobramentos do
movimento, de uma "poesia semiótica", ê um dos pioneiros na
divulgação da Semiótica no Brasil e um dos seus principais
teorizadores no âmbito da literatura. Suas considerações, que
partem fundamentalmente das idéias de Peirce, o pai da matéria, mas
330
que se
mesclam a certas reflexões üãsicas do estruturalismo
de Saussure e seguidores, bem como a certas concepções de Roman
Jakobson, tomam caminhos muitas vezes próprios e polêmicos,
porém sempre bastante produtivos para o entendimento da linguagem poética. A partir da sua apresentação da Semiótica,
visto o seu foco privilegiar o universo literário, algumas reflexões podem ser desenvolvidas.
peirce não era lingüista mas sim um filósofo e sobretudo um lõgico-matemãtico. Portanto, a abordagem da linguagem
que ele desenvolve na sua Semiótica não se encontra dentro dos
moldes tradicionais da lingüística mas sim da lógica. Sua lógica, além do mais, segue a lógica dialética de Hegel e não a
lógica formal de Aristóteles. 0 carãter ternãrio da lógica
de Hegel é fundamental nas suas formulações^ estando presente
naquilo que se pode chamar de visão "pragmática" do. mundo em
Peirce - e "pragmatismo" é expressão por ele cunhada. Segundo
Peirce, todas as coisas enquadram-se em três categorias: "Primeiro", "Segundo" e "Terceiro".
PIGNATARI sintetiza bem esses
conceitos: "A "primeiridade" implica as noções de. possibilidade
e de qualidade; a "secundidade", as noções de choque e
reação, de aqui^e-agora, de incompletude; a "terceiridade" as
noções de generalização, norma e lei". 6 5 Essa tripartição
fundamental, ligada ao próprio" carãter ternãrio da lógica hegeliana, atravessa todo o pensamento semiõtico de Peirce.
Por exemplo, o "signo" para Peirce, superando
a oposi-
ção "significante" x "significado" presente na visão do "signo"
em Saussure, tem de ser entendido numa tripolarização: "signo"
ou "representame" /"objeto" ou. "referente" / "interpretante".
Nas palavras do próprio PEIRCE:
""Signo" ou "Representame" é
331
um Primeiro que está em tal genuína relação com um Segundo,
chamado seu "Objeto", de forma a ser capaz de determinar que
um Terceiro, chamado seu "Interpretante", assuma a mesma relação triãdica (com o Objeto) que ele, signo, mantém em relação
ao mesmo Objeto". 56
Segundo PIGNATARI, "Peirce cria um tercei-
ro vértice, chamado interpretante, que é o signo de um signo,
(...) cujo Objeto não ë o mesmo do signo primeiro, pois que
engloba não somente Objeto e Signo, como a. ele próprio, num
contínuo jogo de espelhos". Assim, "o significado de um signo
é sempre outro signo
(...) ; portanto, o significado ë um pro-
cesso significante que se desenvolve por relações triãdicas
- e o Interpretante ë o signo-resultádo contínuo que resulta
desse processo". 67
De acordo com cada um dos. vértices do signo, Peirce
distingue diferentes tricotomías. Convém destacar aqui a que
diz respeito ao "vértice-do-objeto", ou melhor, aquela relativa ã ligação signo/objeto: "ícone", "índice" e "símbolo".
PIGNATARI tem a seguinte formulação sintética para o entendimento dessa nova tripartição: o "Ícone"
1
(primeiridade)
"mantêm uma relação de.analogia com seu-objeto
desenho, um som)"; o "índice"
ção direta com seu objeto
(um. objeto, um
(secundidade) "mantêm uma rela-
(pegadas na areia, perfuração de
bala)"; e o "símbolo" (terceiridade), "uma relação convencional com o objeto ou referente
(as palavras em geral)". 68 Obvia-
mente, a tripartição ê instrumental; trata-se de sobrepor
categorias ao que. ê, na realidade, um "continuum" , a fim de
melhor compreendê-lo. Nessa relação do signo com o seu referente, com o seu objeto, o que se tem ê um crescendo que vai
de um pólo em que o signo mantém estreitas relações de analogia,
332
portanto de semelhança
com o seu objeto ("Indice"), até um
pólo oposto, em que as relações signo/objeto são meramente
convencionais
("símbolo").
A partir desses conceitos, Pignatari desenvolve algumas reflexões interessantes, opondo com certa sistematicidade
"ícone" e "símbolo", e reiacionando-os a certos conceitos tirados da lingüística estrutural. Segundo PIGNATARI,"(... ) os
ícones se organizam por similaridade e por coordenação, enquanto os signos se organizam por contigüidade
(proximidade)
e subordinação, funcionando os índices como pontes. 0 ícone
ë o signo da arte; o símbolo, o signo da ciência e da lógica (,..)". 59 Nessa mesma linha de consideração, relacionando
o signo com as articulações sintáticas próprias,-da organização
verbal, o "ícone" =.tende ãs estruturações por coordena-
ção ( paratãticas), ao passo que o "símbolo" tende às estruturações por subordinação
(hipotãticas). Assim, "do lado do íco-
ne e da parataxe ficam também o paradigma,..os processos analógicos em geral, a sincronia e a simultaneidade - o que aproxima essa estrutura da estrutura
das línguas isolantes, parti-
cularmente na sua expressão escrita - o ideograma". Do.outro
lado, "do lado do símbolo e da parataxe, ficam o sintagma, a
hierarquização dos componentes frásicos, os processos digitais
em geral, a diacronia e a linearidade -
características das
línguas não isolantes, vale dizer, da lógica inerente às línguas ocidentais". 70
Resgatando aqui a definição jakobsoniana da "função
poética" da linguagem - a projeção do eixo paradigmático sobre
o sintagmático -, seria possível, segundo PIGNATARI, a partir
dos paralelos traçados, concluir-se que a "função poética"
333
"implica (...) a iconização do símbolo, a analogização do digital, a neutralização da hipotaxe pela parataxe, a sincronização da diacronia, a simultaneização da linearidade - enfim,
a qualitatização da quantidade e a "primeirização" da terceridade". 71
Na poesia, e esta ê talvez a conclusão mais produ-
tiva que se pode tirar dessas considerações, o signo quer ser
"Ícone", ou seja, a linguagem quer se aproximar do seu objeto,
criar relações de analogia, de semelhança com ele.
A linguagem humana encontra-se englobada naquilo que
Peirce chama de"símbolo", dada a relação fundamentalmente
convencional que se observa entre o signo lingüístico e o seu
referente. A poesia surge, enquanto um esforço de. abolir a convencionalidade dessa relação, portanto de se aproximar do referente , -estabelecendo algum tipo de relação de semelhança,
de analogia com ele. Ela tende, na terminologia peirceana, ao
"Ícone".
Quando Paes extrapola em sua poesia
os limites da
linguagem verbal para incorporar recursos de um outro código,
ë nesse sentido de "iconização do símbolo" que se orienta a
sua produção. No poema "Epitalâmio", a forma triangular tomada pelas estrofes na espacialização do poema na pãgina é
sintoma explicito dessa "iconização". Ao tomar a forma de um
triângulo, os blocos sugerem uma aproximação com certos referentes potenciais do poema: o cacho de uvas, a concha, o
púbis, ou, numa perspectiva mais sutil e menos , figurativa, o
desenvolvimento ternãrio e em crescendo do próprio .texto.
Num poema como "Anatomia do monólogo", a espacialização do
texto ha pãgina, com os seguidos cortes â direita e à esquerda
da expressão da primeira linha até reduzi-la a uma única e
334
sugestiva palavra, segue a própria intenção básica do poema
de revelar a essência do "monólogo", monólogo que, no seu limite, transforma a questão fundamental contida na expressão
shakespereana "ser ou não ser?" num ato de "masturbação" '.do
sujeito, sintetizado na expressão final "onã?". No poema "Epitãfio para um banqueiro", ao desentranhar da palavra "negócio"
outras palavras como "ego", "ócio", "cio" e o algarismo "0",
destacando essa operação a partir da própria disposição visual
dos termos, Paes sugere que as realidades, que. esses termos evocam encontram-se inseridas, da mesma forma que eles próprios
materialmente
(grafica e sonoramente) na.palavra-matriz, no
universo do "negócio". De forma semelhante, a espacialização
dos versos nos outros"poemas, como se destacou quando da sua
análise, revela sempre uma: mesma exploração significativa desses. recursos visuais," e sempre no "sentido de. uma aproximação
em termos de analogia ou similaridade com a matéria central
do poema. 0 poeta busca recorrentemente. alguma espécie de correspondência entre o verbal e o não-verbal; e, paralelamente,
entre a matéria, o assunto dos poemas e.os recursos formais
que estão â sua disposição.
A abordagem de alguns dos poemas que compõem. Anatomias revela, portanto, que Paes não se manteve infenso à influência
da vanguarda literária, sobretudo do Movimento Concretista.
Pelo contrário, incorporou muitos de seus recursos formais,
utilizando-os com grande maestria. A abolição da pontuação e
das letras maiúsculas ou o -seu uso não-automãtico e expressivo; a palavra enquanto unidade poética básica, aLçada ã condição de paradigma produtivo a orientar toda a elaboração do
poema; os trocadilhos, os jogos com palavras e frases feitas;
335
a insistência na intertextualidade e na metalinguagem; a expressão concentrada, sintética; a valorização do espaço em
branco da pãgina e a exploração das potencialidades visuais da
distribuição do poema nesse espaço - recursos utilizados por
Paes nos poemas abordados, remetem, inequivocamente ao Concretismo e ãs suas contribuições formais à poesia brasileira.
Ainda, com relação ã utilização do espaço como elemento da composição, convém acentuar que a aproximação de Paes com o Concretismo se dã justamente muito mais pelo aproveitamento do
espaço em termos de uma "sintaxe espacial", como querem os
concretos, do que pelas suas virtualidades figurativas. Ou seja, num poema como "Epitalamio", por exemplo, a forma triangular que os blocos-adquirem no espaço da
pãgina é valorizada,
na perspectiva de uma poética concretista, muito mais-pela sugestão do próprio movimento: ternãrio- do poema, do que'" pela
sua representação de um cacho de uvas, ..de uma concha ou de um
púbis. 0 figurativismo na poesia visual foi condenado com certa sistematicidade pelos concretos pelas suas limitações formais, dada a pobreza e obviedade dos procedimentos, responsáveis por uma evidente redundância dos sentidos poéticos.
Essa dívida de Paes para com a Poesia Concreta se traduz, em Anatomias, num poema em que- os. poetas concretos são
homenageados explicitamente: "Os lanceiros".
OS LANCEIROS
para augusto haroldo décio
em malarmado
lance o dado
caiu'no poço
do espaço em branco
336
azar: que ponto
marcava? acaso
um alto ponto?
um desaponto?
eis logo em campo
dois espeleólogos
vão ver e desce
o 'tertio' três
demoram voltam
participando :
A THING OF.BEAUTY
IS A JOYCE FOREVER
A homenagem inicia-se jã na dedicatoria do poema: Augusto de Campos, Haroldo.de Campos e Décio Pignatari são os
três nomes principais do Movimento, da Poesia Concreta. O titulo "Os laneeiros". pode -referir-se . â, idéia de. "lançar os dados", contida na primeira estrofe, que.por sua vez remete a
um poema- de-.-Mailarmé .muito, citado, pelos concretos pela sua importância para a poesia, moderna, "Un coup de dés"
(literalmen-
te "um lance de dados"), mas pode também fazer referência a
certa característica da poesia Concreta, em parte fundamental
para a sua divulgação e afirmação no cenário .das-letras brasileiras e universais: o carãter militante dos seus participantes, que, como "lanceiros", agora aqui no sentido de soldado
armado de lança, combatem firmemente, para impor suas idéias
e sua poesia.
O texto de Paes dialoga o tempo todo com outros textos
e referenciais poéticos. O "Un coup de dés", de Mallarmé,
surge como texto referencial central. Trata-se de um texto radical de um poeta fundamental para a poesia moderna, poeta
que compõe, juntamente a.outros escritores como Joyce, pound
e Cummings, aquilo que os concretos, na esteira de pound,
chamam de "paideuma" do seu movimento. O "Un coup de dés",
337
reconhecidamente, adianta jã alguns recursos da Poesia Concreta: emprego de diferentes caracteres tipográficos; disposição
inovadora das linhas; utilização do espaço em branco da pãgina como elemento da composição.
0 motivo principal do poema de Mallarmé, "un coup de
dés jamais n'abolira le hasard" (lit.: "um lance de dados jamais abolirá o acaso"), ë o ponto de partida para o poema de
Paes. Em "Os lanceiros", hã menção explicita a essa expressão
(verso dois da primeira estrofe: "lance o dado"; verso dois
da segurída estrofe: "acaso") , bem como, de forma jocosa e ambigua, ao próprio autor
("malarmado").
Paes homenageia, brincando, o poema de Mallarmé. No
jogo de acasos próprio do desenvolvimento da poesia, o "dado"
-lançado por Mallarmé no
seu. original "Un coup de dés" "caiu
no^ poço do espaço em branco". Mallarmé apontou para as virtualidades do espaço enquanto dimensão a ser explorada pela
poesia, virtualidades que teriam permanecido no entanto encobertas, escondidas no "poço" da própria radicalidade do "lance",
por isso a indagação da segunda estrofe a respeito do resultado desse "lance"'genial: é ele de fato "Um alto ponto?" ou
apenas um"desaponto?"
(repare-se o jogo com o termo "ponto":
"ponto" do dado, "alto ponto" e "desaponto"). Para sé saber ë
necessário que alguém desça pelo "poço".e resgate o "dado", e
esse alguém são os "espeleólogos"
(aqueles que se dedicam ao
estudo e exploração das cavidades naturais do solo) da poesia
Concreta,: Augusto e Haroldo de Campos ("em campo
dois espe-
leólogos" - subl.inhe-se aqui o jogo com a palavra "campo") e
Décio Pignatari ("e desce o 'tertio' três" - o nome próprio
"Décio" encontra-se sonoramente no cruzamente das palavras
338
"desce" e "tertio") . Os três exploradores descera o "poço" da
radicalidade do "lance" de Mallarmé, "demoram" e "voltam" com
o "dado" resgatado, "participando" a descoberta. Os últimos
versos, jogando com o nome de Joyce e com um verso famoso do
romântico inglês Keats ("a thing of. beauty is a joy forever"),
poeta traduzido e citado com certa freqüência pelos concretos ("Joyce"/"joy"), compõem o achado: "A THING OF BEAUTY / IS A
JOYCE FOREVER" (no jogo de palavras: "uma coisa bela ê um
Joyce/uma alegria para sempre").
No ludismo intenso que caracteriza o poema (os vários
jogos de palavras e referências intertextuais ao longo das estrofes), retira-se muito da seriedade âs.vezes um tanto quanto
rançosa que costuma estar presente em poemas de sabor laudatorio muito evidente.-Ê com,graça e leveza que Paes homenageia
os concretos, num exercício bem-humorado e inspirado de intertextualidade e metalinguagem, elementos estes tão recorrentes
em sua poesia.
Mas se a vanguarda literária recebe aqui reverência
inconteste,
em outro poema de perspectiva metalingülstica,
"Trova do poeta de vanguarda ou the medium is the massage", as
intenções do poeta são um pouco mais ambiguas:
TROVA DO POETA DE VANGUARDA .
OU
THE MEDIUM IS THE MASSAGE
se me dêcifrarem
recifro
se me desrecifrarem
rerrecifro
se me desrrerrecifrarem
então
meus correrrerrecifradores
s erão
339
O veio satírico e crítico de Paes está presente novamente aí. A primeira parte do título apresenta algumas questões interessantes. O termo "trova", num de seus sentidos possíveis, designa certas pequenas composições líricas de sabor
popular - as quadras ou quadrinhas -, de caráter lúdico e muito despretensioso. A poesia de vanguarda, por definição, encontra-se muito distante.de uma tal poesia, que ê popular,
tradicional e muito simples. Nesse sentido, conjugar numa expressão os termos "trova", e "poeta de vanguarda" ê pôr em confronto duas perspectivas poéticas antagônicas e.irreconciliáveis. Mas "trova" remete também a um tipo de poesia muito engenhosa e refinada realizada, no. final: da Idade Média, a poesia
dos trovadores provençais, sobretudo de "certos" trovadores,
dentre os quais destaca-se.o sofisticado Arnaut Daniel, por
exemplo, reverenciado por Dante e mais modernamente por pound
e pela poesia Concreta, esta responsável por brilhantes traduções do poeta para o português. A segunda parte do título do
poema ë retirada do título de um livro do polêmico teórico da
comunicação americano Marshall McLuhan, apologista excessivamente entusiasmado das transformações, tecnológicas e do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. No limite das
suas previsões, McLuhan anteviu a "extinção" do livro como
meio de comunicação., suplantado por outros modernamente mais
eficazes.
0 poema joga basicamente'com a palavra/raiz "cifra", de
onde vem o verbo "cifrar", empregado no texto sempre com a
anteposição de um ou mais prefixos. Dois dos sentidos que o dicionário apresenta para o termo encontram-se formulados da seguinte maneira: "explicação ou chave duma escrita enigmática
340
ou secreta; essa escrita". 7 2
"Cifrar", portanto, é escrever
em "cifras", escrever numa linguagem: secreta, enigmática. O
"poeta de vanguarda", pela radicalidade da sua experimentação
poética, opera nesse nivel - produz "cifras" que são difíceis
enigmas para os que não têm a chave do seu entendimento.
Na sátira de Paes, o "poeta de vanguarda" surge como
alguém que parece responder sempre à atividade de um leitor,
procurando estar um passo ã frente dele num processo crescentemente complexo de "cifragem"/"decifragem". A radicalidade
da experimentação, e o seu resultado - uma poesia difícil,
enigmática, inacessível, - surgem como um desejo do "poeta de
vanguarda" de provocar.o seu possível leitor. Essa provocação
parece oscilar entre o desejo um tanto- narcísico e deliberado
do "poêta de vanguarda" de afirmar a. sua superioridade e inacessibilidade frente ao leitor (daí a sua teimosia, patente
no poema pela reiteração das orações condicionais na primeira
estrofe) e as exigências da própria poesia de manter-se viva
e instigante. Hã, em ambos os casos, um convite ao jogo, com
o poeta propondo enigmas crescentemente difíceis para um leitor crescentemente arguto no processo de. desveridã-los. Esse
ludismo remete a. um dos sentidos próprios do. termo "trova".
Da forma como Paes estrutura o poema, tudo se dá de uma
maneira cómicamente automática, a que a criação de neologismos através da reiteração, da saturação, do acúmulo de prefixos vem colaborar: "se me decifrarem / recifro / se me desrecifrarem / rerrecifro". O prefixo "de-"/"des-" apresenta o
sentido de "ação contrária", "negação" 73 ; por sua.vez; "re-"
tem o sentido .de "repetição" . 7 **
Repare-se como a dialética
do processo encontra-se toda ela no próprio acúmulo dos prefixos nas palavras.
341
Porém o processo tem um limite: "se me desrrerrecifrarem / então / meus correrrerrecifradores / serão". O prefixo
"co-", presente por exemplo em "cooperar", "colaborar", "coautor", tem o sentido de "contigüidade", "companhia". 75
A
certa altura da medição de forças entre poeta e leitor, o primeiro acaba por reconhecer no outro ura companheiro definitivo
de jogo, alguém que estã a sua altura. Se o reconhecimento poderia significar uma vitória do leitor, afinal ele se dã após
um deslocamento do pêndulo para o.pólo da decifragem, o grau '
de complexidade a que o jogo poético chegou na verdade acentua
as intenções originais do poeta. Ao tornar-se um "correrrerrecifrador" o leitor jã não é mais o leitor original ; ele amadureceu e passou para.o lado em que se encontra o próprio "poeta
de vanguarda".
As intenções definitivas do. poema são um tanto ambíguas. Se por ura lado pode-se vislumbrar, na sátira evidente,
um posicionamente crítico do poeta frente á poesia de vanguarda no que ela poderia ter de excessivamente automático na assunção de uma complexidade, de um hermetismo tantas vezes intransponível para o leitor, por outro, o poeta poderia estar
aplaudindo o jogo proposto pelo "poeta de vanguarda" no que
este jogo tem de instigante e. até pedagógico para a sofisticação da criação e sua fruição. Independentemente das intenções
que se possa
valorativamente
acentuar, o.que se tem aí é uma
tentativa, com algumas pinceladas de. humor, de expor o mecanismo que estã por trás da dialética autor x
leitor em certos
veios da poesia de experimentação mais radical. Aliãs, a Poesia Concreta, homenageada, no poema anterior e na própria
absorção por parte de Paes de muitos de seus recursos neste
342
Anatomias, é exemplo dos mais característicos da poesia de que
se está
3.5.3
falando aqui.
Conclusão
Anatomias dã continuidade ã poesia contida em Epigramas
no que ela tem de critica incisiva, aos valores sociais, políticos, culturais da sociedade brasileira. No entanto, Anatomias
radicaliza a vertente epigramática dos poemas do livro anterior, vislumbrada pelo próprio poeta já na escolha do título
daquele trabalho. Os poemas de Anatomias
são ainda mais concisos,
contundentes, enxutos e francamente satíricos.
0 patético e o emotivo deixam espaço aqui para o franco
distanciamento do poeta em relação a tudo e.a todos, jã não
hã mais
de—forma explícita e .como que dominante
aquela fé na
futura redenção social do país, utopia comum de toda uma intelectualidade de esquerda que se havia engajado apaixonadamente nas lutas políticas e sociais. . As simpatias declaradas traduzem-se agora nas homenagens, nos louvores endereçados a alguns poucos poetas - os poetas concretos em "Os lanceiros",
Maiacõvski em "A Maiacõvski". Excetuando-se, juntamente com
estes, o belo "Epitalâmio", tudo o mais é sátira, sarcasmo,
irrisão. Nada escapa ao verbo cáustico, do poeta.
A epígrafe que abre o livro, uma citação de. Roland
BARTHES, explicita essa . intenção : "je réclame de vivre..pleinement la contradiction de mon temps, qui peut faire d'un
sarcasme la condition.de la. vérité". O sarcasmo como condição
da verdade, contradição destes tempos,, surge como recurso vital para um poeta crítico e participante que não abre mão de
buscar a verdade, ou alguma possibilidade de verdade, no exercício de sua poesia.
343
O caráter incisivo da poesia de Paes neste Anatomias ë
evocado pelo próprio titulo do livro. O termo "anatomia" vem
do gre:go "anatomé", que significa originariamente
"incisão",
"dissecação". Ë como uma espécie de poeta-cirurgião que Paes
se debruça sobre certas realidades do corpo da sociedade e
da cultura, fazendo da palavra um instrumento afiadlsssimo e
preciso de corte. O termo surge ainda em dois poemas do livro,
"Anatomia do monólogo" e "Anatomia da musa".
Para esse exercício de "incisão", de "dissecação", em
muito contribuem as opções formais de Paes neste livro. Tudo
aqui revela-se o avesso da verborragia
da .metaforização gordu-
rosa, das interjeições e reticências excessivas do estilo efusivo, do -lirismo exarcebado, ou ainda da retórica participante.
0 poeta ë contido e conciso e prefere trabalhar com-elementos
poéticos mínimos. Os versos são sempre muito.curtos. Percebe-se muitas vezes a recorrência de unidades sintáticas pequenas, com modulações mínimas no desenvolvimento do poema. A
sintaxe encolhe, até chegar em algumas composições ã palavra
(cf. "Epitãfio para um banqueiro", "Exercício ortográfico",
"Ã moda da casa", entre outros) ou ainda até ã abreviatura
("Cronologia"). O recurso ao ludismo verbal
("Exercício orto-
gráfico" , p. ex.) , ã paródia ("Anatomia do monólogo, "De-scartes
ãs avessas") , aos neologismos, vocabulares
("Trova do poeta de
vanguarda"), ã disposição espacial dos versos ( p. ex. "Epitalamio", entre tantos outros) ou ainda a outros códigos, como o
das artes gráficas ("Anatomia da musa"), pululam. São índices
também da disposição do poeta de procurar estar atento ãs inovações poéticas que estão no ar nesse instante de sua poesia,
344
pois muitos desses recursos formais são dividas reconhecidas
pelo próprio poeta
à vanguarda literária.
Se no livro anterior havia um distanciamento bastante
marcado entre a poesia de Paes e o experimentalismo de vanguarda - lembre-se que Paes se aproxima muito da produção nacional-popular cepecista naquele livro, um.pólo antagônico
em relação ã vanguarda experimental -, agora um franco e produtivo diálogo vai se estabelecer entre Paes e a vanguarda
concreta, aproximação não apenas poética, como fica evidente
em Anatomias, mas também pessoal, como confessa o próprio Paes:
"Quando eu ainda trabalhava na editora, um dos.seus editados,
Cassiano Ricardo, me aproximou do grupo dos fundadores da poesia concreta, Augusto e Haroldo. de Campos e Décio Pignatari.
Trocamos livros e logo se patentearam afinidádes". 76
Apesar
de não ter enveredado pelo experimentalismo, a poesia de Paes
havia optado por uma contenção formal muito próxima de certas
postulações dos concretos. É ainda o próprio. Paes quem deixa
claras essas afinidades: "A preocupação anti-retórica dos concretos, sua ênfase na medula ideogrâmica das palavras vinha ao
encontro da concisão epigramática que eu cultivava". Concisão
esta, segundo o próprio Paes, que era uma reação consciente
"a certo metaforismo ornamental em voga entre os da minha geração e seus continuadores; nessa reação não tive medo de ir
até o poema-piada de 22, tão abominado por eles". 0 humor, a
paródia, a sátira são expedientes fortes.da iconoclastia do
primeiro Modernismo, sobretudo de Oswald.de Andrade, outro
elo entre Paes e o Concretismo. Porém Paes mantém relativa
distância em relação ã ortodoxia concretista:
345
N i o c h e g u e i a s e r um p o e t a c o n c r e t o em
sentido e s t r i t o ;
faltavam-me
raízes
p o u n d i an a s o u ma 1 1 a r m a i c a s .
Outrossim,
m a i s do que o p r o j e t o t e ó r i c o ,
interessou-me s o b r e t u d o a p r á t i c a p o é t i c a dos
c o n c r e t o s . U t i 1 i z e i - 1 he s a l g u n s
dos
p r o c e d i m e n t o s n i o p o r amor do e x p e r i m e n t o v e r b a l em s i , mas n a m e d i d a em
que pudessem r a d i c a l i z a r o v i é s
epig r a m á t i c o da m i n h a , d i c ç i o .
Nap há portanto uma adesão total por parte de Paes ao
Concretismo. O que lhe interessa nesse, movimento, obviamente
não enquanto apreciador de poesia, mas sim enquanto realizador, ë aquilo que pode contribuir para radicalizar a sua própria dicção, que, como Paes acentua, estã imersa na intenção
epigramática, termo que, como se pode ver,, vai se tornando
preferencial por parte do poeta na caracterização da sua própria- produção poética. O experimentalismo, e, a...teorização não
lhe dizem respeito. Como em Epigramas, é ainda muito forte em
Anatomias a intenção de Paes de se comunicar com facilidade
com o leitor, o que o experimentalismo ou a subordinação da
produção poética aos princípios de uma.tëoria como que esotêria poderia impedir.
A aproximação e as afinidaldes de Paes com os concretos
são reconhecidas também por um de seus principais nomes, Augusto de CAMPOS, autor do texto de apresentação que preenche
as orelhas da primeira edição de Anatomias. Augusto ressalta
o veio epigramático da poesia paesiana, coloca-o em paralelo
com a poesia de Oswald de.Andrade, também marcada pela concisão e o humor, e.sublinha da seguinte maneira as afinidades
de Paes com o Concretismo:
A poesia concreta, particularmente a
da f a s e do " s a l t o p a r t i c i p a n t e " - a
356
q u e de m a i s de p e r t o i n t e r e s s o u a J o s é
Paulo - ,
r e s t a b e l e c e n d o em t e r m o s
drást i c o s o d i á l o g o com 22 e r e p u d i a n d o a
retórica liriferanté'
em v o g a , a b r i u o
caminho p a r a que o p o e t a p u d e s s e ,
liv r e de p r e s s õ e s a r c a i z a n t e s ,
desenvolv e r sem pe i a s a s u a p o e s i a - mi n u t o ,
proj e t a n d o - a n o m u n d o d a v i s u a l i d a d e moderna.
0 e p i g r a m a e o i d e o g r a m a se d e r a m as
m i o s . E v i e r a m o s p o e m a s de A n a t o m i a s ,
v á r i o s dos q u a i s d i v u l g a d o s p e l a
prim e i r a vez nas p á g i n a s da r e v i s t a
Inv e n ç ã o . Sem e s t a r p r e s o ã o r t o d o x i a
c o n c r e t a , José Paulo p r o d u z i u nessa
fase poemas que podem s e r
considerados,
p e l o seu r a d i c a l i s m o , c o n c r e t o s , e d i v e r s o s d e l e s , como t a i s , t ê m
figurado
em p u b l i c a ç õ e s e e x p o s i ç õ e s
estrangeiras. 7 7
As observações de Augusto estão muito próximas das de
Paes a respeito da ligação deste com os concretos, excetuando-se talvez uma certa filiação ao movimento que o primeiro
quer acentuar. Paes encontra-se em sintonia com dois dos prin
cipais movimentos poéticos da poesia brasileira moderna, o Mo
dernismo, agora sobretudo na sua vertente oswaldiana, e o Con
eretismo de Décio, Augusto e Haroldo, mantendo, no entanto, •>.
uma independência importante, que o impede, de ser confundido
com esses movimentos.
Paes, em Anatomias t como se pode ressaltar, estã atento ã realidade do pais nas suas varias dimensões. Sua poesia
ê participante, na medida, em que critica os valores políticos
e morais de uma sociedade socialmente problemática que se encontra sob o tacão da ditadura, e na medida em que se comunica
sem emperramentos com o leitor, sem perder, porém, o refinamento formal., a. erudição,
o jogo intertextual inteligente e a
lucidez critica, de que o peculiar diálogo com o Concretismo
ê índice bastante evidente.
347
3.6
3.6.1
MEIA PALAVRA (1973)
Introdução
Meia palavra vem a público em 19 73, num instante de
grande tensão no pais. A produção cultural mais critica encontra-se sob a mira da repressão e da censura. Os meios de comunicação de massa, em especial a televisão, cooptados e patrocinados pelo poder, tornam-se culturalmente hegemônicos e
muito influentes. 0 Brasil, ingressa na era do consumo a todo
o custo; estã-se no auge do "milagre econômico".
Na poesia, vive-se um instante de esgotamento das postulações da vanguarda e do engajemtno político de ecos cepecistas. Além das vozes jã consagradas da poesia brasileira e
de outras independentes que vão se afirmando, de significativo em termos geracionais começa a surgir nesse instante a chamada Poesia Marginal. Sem a erudição das vanguardas, sem o compromisso da poesia política, a Poesia Marginal., na. sua espontaneidade, na sua despretensão, na sua independência em relação aos meios tradicionais de produção e circulação do produto
cultural, e de mãos dadas com a Contracultura e.o "Dêsbunde",
torna-se uma expressão típica de uma geração de jovens que
não se orienta mais pelos referenciais das gerações anteriores. Em muitos dos seus autores, não hã vínculos.evidentes
com a tradição literária, nem proposição. de ruptura. Obser-,
va^-se simplesmente o desejo.de registrar a vivência do cotidiano, numa' linguagem coloquial, direta, . franca, muito próxima ã própria fala corrente. A poesia sai da academia, da universidade, dos círculos mais restritos de uma certa elite cultural e vai definitivamente para á rua, para o bar, para
348
o show de música. Ë nesses novos espaços que ela se movimenta, -espaços que imprimem o seu caráter afinal "alternativo" e "marginal" .
Paes encontra-se um tanto afastado dessa produção, afinal trata-se de um poeta que estréia no ambiente da Geração de
45, passa pelo engajamento político-social de um dos veios dominantes da poesia dos anos 50 e 60, dialoga com a vanguarda ,
sobretudo o Concretismo, mantendo, no entanto, sempre uma visível independência em relação a todos esses momentos da poesua brasileira. Em 19 73, Paes é um poeta maduro, que conquistou uma voz própria. Sua poesia, depois de tantas buscas e experiências, depois de manter um estreito diálogo com várias
vertentes que lhe são contemporâneas e ao mesmo tempo com a
própria" tradição da poesia, chega-a um momento, de estabilização. A erudição latente em sua produção, a consciência crítica
aguçada em relação ã tradição literária, o refinamento formal
a que sua expressão chegou não se casam muito bem com a espontaneidade
juvenil
da
nova poesia, a despeito do humor e da
paródia, da tendência ã brevidade, do resgate de uma certa
dicção do Modernismo, sobretudo o s w a l d i a n o s e r e m elementos
que possam ser avaliados como possíveis elos de ligação.
3.8.2
Análise
Meia palavra tem um
subtítulo
que pode orientar o agru-
pamento temático dos poemas do livro: "cívicas, eróticas e metafísicas". É nessa ordem, ainda, que as composições vão surgindo ã léitura: em primeiro lugar, aquelas de visível crítica
política
-
as "cívicas"; a. seguir, as composições de te-
mática amorosa
-
as "eróticas"; e, finalmente, aquelas que
349
tratam das questões existenciais que afligem o ser - as "metafísicas" .
0 primeiro poema do livro, "Sick transit", que faz uso
de recuros visuais, é um primeiro exemplo do grupo temático
das "cívicas":
Uma foto de uma placa de trânsito ocupa.quase todo o
corpo da página. No alto da placa, lêem-se, uma embaixo da
outra, as palavras LIBERDADE INTERDITADA. A seguir, no meio da
350
placa, vê-se uma seta apontada para a direita, sob a qual está
escrita a palavra DETRAN, em caracteres menores. Na parte inferior, novas palavras são lidas, também uma embaixo da outra
e do mesmo tamanho das primeiras: PARAÍSO V.MARIANA.
Uma primeira
leitura, que ressalte os sentidos mais
imediatos aí presentes, pode ser tentada.
As palavras da placa
referem-se a alguns bairros da cidade de São Paulo: Liberdade,
Paraíso e Vila Mariana. A passagem para o primeiro bairro estã interditada. A seta que aponta para a direita indica o caminho a seguir para se chegar aos outros dois.. O termo DETRAN
sob a placa ê a sigla de "Departamento, de Trânsito", órgão
responsável pela organização do trânsito da.cidade. A palavra
- "trânsito", aliãs, remete de alguma forma ao título - do. poema,
"Sick transit".
Essa leitura mais ingênua.cede imediatamente âs intenções de crítica do poeta. Estã-se em 19 73, num período de intensa repressão política, no país. Após a promulgação do AI-5,
em dezembro de 196 8, a perseguição âs manifestações de crítica
e de oposição ao regime autoritário,. sejam elas explícitas ou
estejam embutidas na produção
cultural, recrudesce. Censura,
prisão, tortura, exílio, desaparecimento são realidades que
passam a compor o cotidiano de terror vivido em todo o Brasil,
camuflado, porém, para vastos setores da população, pelo relativo e temporário êxito do "milagre econômico" e pelo otimismo ufanista propagado pelos órgãos oficiais e pelos meios
de comunicação de ampla difusão, como a televisão, o rádio e
mesmo vasto setor da imprensa escrita.. Esta situação perdura
até depois de meados da década, quando o regime militar, diante
do crescente fracasso econômico que segue a crise mundial
351
do petróleo de 1973 e pressionado pelas crescentes tensões político-sociais, inicia o lento processo de "abertura", cujo
ápice, em meados da década seguinte, inaugura nova fase política no pals, com crescente liberdade democrática, a despeito
do acirramento dos problemas econômicos e sociais. Ë em confronto
com o problemático quadro político de então que o poe-
ma precisa ser lido.
Com esse quadro em vista, os elementos que compõem o
poema têm seus sentidos transformados.. A expressão LIBERDADE
INTERDITADA passa a referir-se ã situação de exceção vivida
então
quando a liberdade de expressão se encontra sob a.
mira da censura e envolta no medo geral da perseguição, da
tortura e da morte. A sete apontada para a direita indica a
orientação política dos que então detêm o poder e o caminho
imposto ao pais. O regime ditatorial é, afinal, um regime de
"direita", para usar uma terminologia nesse instante dominante
e ainda hoje muito presente no discurso, político. O carãter
autoritário e conservador,
marcadamente antidemocrático, apro-
xima-o de regimes tipicamente direitistas, como o de alguns
países europeus - Itália e Alemanha entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, Portugal e Espanha desde então até mais
recentemente -, a despeito das grandes diferenças em termos
de enraizamento social e objetivos entre esses' regimes e os
que surgem na América Latina. A seta aponta para a direita, indicando o caminho que conduz ao PARAÍSO e à V.MARIANA. Ë obviamente irônico o sentido do primeiro termo quando não tomado
como nome próprio. Para o discurso oficial, as opções poli-.
ticas estariam indicando para o país o caminho de um possível
"paraíso" econômico e social; a expressão "milagre econômico"
352
remete, aliãs, a esse contexto 4 No entanto, esse "paraíso" acabou por se revelar na verdade um grande "inferno", seja ele
político e cultural, vivenciado jã nesse instante, seja ele econômico e social, como o demonstra a crise que assolou o Brasil
nos anos seguintes e que permanece irredutível e crescentemente perigosa até os dias de hoje.
A intenção satírica do poeta é, portanto,, evidente, a
que também se soma o próprio título da composição. Este, "Sick
transit", estabelece um jogo verbal entre a expressão latina
"sic transit gloria mundi", que significa "assim passa a glória do mundo", referência ã transitoriedade das coisas que compõem este mundo, e um possível composto
adjetivo-substantivo
em língua inglesa, que, traduzido., significa "trânsito doente",
apesar do termo inglês "transit" não corresponder
propriamente
ao termo português no contexto em questão ( tráfego, trânsito
de veículos). O trocadilho se faz pela identidade sonora entre
"sic"
(lat. 'assim'\.) e "sick"
(ingl. 'doente.'). Interditar as
vias que levam â LIBERDADE é estabelecer, um circuito
"doente";
a repressão e a censura do regime autoritário são afinal doentias. Mas compõem realidades passageiras, "glórias transitórias", como alude ironicamente a referência ao ditado latino.
Formalmente, observem-se alguns aspectos bastante
inte-
ressantes nessa composição. De início, um leve paradoxo chama
a atenção. Paes lança mão de uma fotografia para compor o seu
poema, o que a princípio poderia constituir recurso a um código não-verbal por excelência. No entanto, trata-se da fotografia de uma placa de trânsito, onde o signo verbal ocupa lugar
privilegiado. Apesar do ensaio experimental intersemiótico, a
"palavra" ainda compõe o cerne deste poema de Paes. Em segundo
353
lugar, o•que transforma essa simples foto, num poema não são
propriamente
(ou somente) os elementos intrínsecos que a cons-
tituem, sejam eles verbais ou visuais. O que faz da foto um
poema é a sua contextualização num livro de poesia, o que imediatamente transforma e amplia seus sentidos; a atribuição de
um titulo especifico, em tensão com o qual ela passa a ser lida; e os sentidos poéticos críticos ( via
sátira,
via paródia,
via ironia) que dela se extraem a partir do confronto com o
contexto político do momento em que o livro é publicado e do
confronto com Os recorrentes posicionamentos críticos do próprio poeta em relação a esse contexto.
Temáticamente, "Sick transit" enquadra-se, de forma
irônica como ainda outras, entre as composições "cívicas" de
Meia palavra. Paes permanece, de trabalho para trabalho, um
crítico ferrenho do "sistema".
Ë nessa mesma perspectiva que se pode 1er ainda outros
textos, como por exemplo "Olímpica":
OLÍMPICA
• ufa
por
ufa
ufa
ufa
no
ufa
ufa
ufa
ís
ufa
ufa
que
ufa
ufa
ufa
do
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
me
ufa
ufa
ufa
meu
ufa
uff
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
ufa
pa
fff
Num primeiro e rápido olhar globalizante, o que se tem
pela frente ë um.bloco compacto de caracteres gráficos, compondo forma retangular. Dez linhas.horizontais e quatro colunas verticais podem ser distinguidas no corpo desse bloco. Em
354
cada linha lêem-se quatro palavras ou fragmentos de palavra
(ou sílabas), formados por apenas duas ou, sobretudo, três letras. Tomando-se as colunas em perspectiva, o número de palavras ou fragmentos no corpo de cada uma delas ê dez. pode-se
falar aqui também em exploração do espaço, na medida em que
hã uma preocupação deliberada na formação de um bloco retangular com lados e ângulos em plena simetria, porém exploração
que se dã através de recursos muito diferentes dos do poema
anterior. No entanto, é a partir de uma. leitura linear, que
parta do primeiro termo da margem esquerda da primeira linha
e vã até o último da margem direita da última linha, como se
faz numa leitura convencional de textos, e não de uma leitura
instantânea e globalizante, que os sentidos do poema se revelam.
Uma palavra básica encontra-se presente ao longo de
todo o poema, a interjeição
"ufa", que cede, porém, aqui e
ali, espaço para outras palavras ou sílabas, em intervalos
nem sempre muito regulares. Essas.outras palavras pu fragmentos de palavras que surgem intercaladamente vão aglutinando-se
para compor, até o final do poema, um segmento sintático, maior,
a expressão "por que me ufano.de meu país". Na última linha,
a interjeição básica dã espaço ainda a duas outras, também de
origem onomatopaica como aquela: "uff",. "fff"..
É novamente no registro da sãtita e da crítica que o
poema deve ser lido. Um primeiro confronto com o seu próprio
título, "Olímpica", faz-se necessário. A.partir dele, pode-se
extrair um contexto inicial: o dos "jogos", das "competições",
dos "esportes olímpicos". Com esse contexto em vista, a reiteração das interjeições reveste-se de um sentido especifico. Na
355
repetição dos termos nas linhas e de linha para linha, pode-se
perceber o próprio movimento compassado de um atleta olímpico,
possivelmente um corredor que a cada passo, no esforço extenuante da competição, inspira e expira o ar, produzindo um som
similar ao que é expresso pela interjeição "ufa" , interjeição
de sabor onomatopaico, que aliãs, entre outras possibilidades
semânticas dicionarizadas, é expressão de "cansaço" 78 , sentido
este plenamente em sintonia com o quadro geral. Pontuando o movimento dos passos e da respiração do "atleta olímpico", palavras e fragmentos de palavras vão. sendo semeados, como se, lentamente, a expressão maior que eles articulam fosse surgindo â
consciência do "corredor" durante a corrida.
Um recurso paronomãstico faz a ponte entre a repetida
interjeição e a expressão "por que me ufano de meu país", que
se lê na aglutinação dos fragmentos. A palavra "ufano" tem no
seu interior a interjeição básica do poema "ufa" .. No corpo do
próprio texto, essa relação faz-se mais evidente, uma vez que
a palavra "ufano" surge fragmentada nas suas sílabas "ufa" e
"no", o que faz com que a primeira sílaba e a interjeição se
confundam quando da leitura
(cf. linhas .5 e 6) .
Com a expressão "por que me ufano de. meu país" em vista, o contexto primeiro de "esporte", "jogo", "competição" se
amplia, toma novos sentidos. Pode-se.imaginar o atleta olímpico, na dor do cansaço da competição, no limite do seu esforço, questionando, o papel de representante do seu país ali no
contexto de uma Olimpíada, porém essa expressão específica que
fragmentariamente lhe vem à boca é por demais marcada na cultura brasileira para que um sentido assim neutro se sustente.
É óbvio que não se trata mais aí da descrição de um "corredor
356
esportivo" qualquer. 0 "corredor" e a sua "olimpiada" precisam
ser lidos na sua condição de metáforas.
Convém lembrar que a expressão "por que me ufano de meu
pals" ë título de um livro de. teor patriótico de Afonso Celso,
intelectual e poeta do final do séc. XIX, ligado.ãs vertentes
pós-românticas da poesia brasileira e de expressão participante que se puseram contra a monarquia e em defesa dos ideais
republicanos. 79 A expressão que dã título ao livro tornou-se
famosa e passou a ser empregada, âs vezes de forma paródica,
em outros contextos. Alfredo
BOSI, por exemplo,
referindo-se
a certa produção de carãter fartamente patriótico do poeta
parnasiano brasileiro Olavo Bilac, faz uso.do neologismo
"meufanismo" 80 para caracterizá-la.
Resgatando agora, o contexto político da época em que
Meia palavra vem a publico e confrontando com o contexto em
que o termo surge originalmente, esses aspectos que estão
por trás da expressão e da sua autoria ..saltam aos olhos. A
Proclamação da República, com maior ou menor amparo social,
foi em essência um levante militar contra a Casa Real. Foram
militares, alojados no topo. de uma ditadura temporária, os
primeiros presidentes republicanos brasileiros. Na retórica
ideológica de então, o nacionalismo era ingrediente muito presente. percebem-se paralelos evidentes entre esse instante e
o contexto brasileiro põs-6 4 e sobretudo pós-68. Vive-se igualmente um momento de ditadura militar e de intensa propaganda
nacionalista, o momento do "ame-o ou'deixe-o"
(com os prono-
mes referindo-sé ao Brasil, mas, por extensão, também ao regime) , que faz com que qualquer
crítica
ao governo militar
seja interpretada como crítica ao próprio país. É, portanto,
357
um momento de "meufanismo" compulsório, estabelecido com o
violento patrocínio dos militares.
A intenção paródica do poema de Paes-é patente, jã que
ele resgata a expressão de Afonso Celso, invertendo a sua intenção original a partir de uma sarcástica
recontextualiza-
ção. O "atleta".exausto, a correr pela pista, em "Olímpica",
pode ser visto como uma representação.^ do homem brasileiro, e
a prova que ele enfrenta, a própria situação política e social
em que se encontra. Enquanto corre, enquanto sofre a.sua realidade, ele se questiona a respeito da sua. relação com o próprio
país, e é nesse momento que. a expressão ê -resgatada. 0 humor,
advindo do contexto insolito e da fala fragmentada, corroi
com. violência o seu sentido original. As interjeiçóes finais
do poema, "uff" e "fff", construidas a partir da matriz "ufa",
revelam o limite do cansaço -a que-chegou o "corredor"/" homem
brasileiro". "Fff" presentifica a expiração total do ar por
alguém que estã absolutamente
extenuado.
Ressaltem-se aqui ainda dois aspectos interessantes. Em
primeiro lugar, o esporte, sobretudo da forma violenta e mecânica como é praticado, é atividade cara â ideologia militar.
Requer treino, disciplina, condicionamento, físico, subordinação total â voz de comando. As Olimpíadas
(a que o título faz
referência) privilegiam essa visão do esporte, são uma espécie
de coroamento absoluto.desse tipo de condicionamento
físico.
São ainda um momento, !da mesma forma que a Copa do Mundo, em
que o nacionalismo, o patriotismo, o "meufanismo" menos críticos tomam conta das pessoas de forma como que inconsciente.
Todos, ou quase todos, capitulam frente aos apelos como que
xenófobos desses eventos. 0 país deixa de ser visto em seus
358
seríssimos problemas, em suas contradições, na sua miséria geral, para ser louvado com euforia.
Novamente, como no caso de "Sick transit", o poema
"Olímpica" sõ revela seus sentidos de crítica política quando
compreendido dentro de um contexto global que extrapola os
limites mais imediatos do próprio poema. Ë no confronto com
uma realidade extraliterãria independente que a sátira se potencializa. Sem essa operação, ë impossível passar-se dos primeiros e óbvios sentidos aos sentidos críticos de fato pretendidos pelo poeta..
Um outro poema, "Canção do exílio facilitada", pode ser
ainda arrolado entre as "cívicas". Aqui, novamente o jogo inter/textual vivo e inteligente se faz presente. Novamente o
poeta opta pela paródia de textos da tradição literária, agora
especificamente a tão retomada ."Canção,do. exílio", de Gonçalves
Dias, para o seu exercício de crítica de ideologias.
CANÇÃO DO EXÍLIO
FACILITADA
lã?
ah i
sabiá...
papá...
maná...
sofá...
s inhã...
cã?
bah!
A "Canção do exílio", do poeta romântico Gonçalves
Dias, tornou-se, na literatura brasileira, um paradigma da
expressão da saudade e do amor ã. terra.natal pelo homem exilado em pais distante. O poeta, na Europa 8 1 , suspira de saudades
pela terra, num impulso aliãs bem romântico, marcado pela
359
sentimentalidade e por rastros de nacionalismo. No confronto
das coisas de seu pais com as do pals estrangeiro, tudo neste
se lhe afigura inferior, tudo desperta as saudades da terra de
origem.
0 mesmo poema foi resgatado posteriormente por vários
poetas modernos, como por exemplo Oswald de Andrade, Murilo
Mendes
e Drummond, ãs vezes de forma paródica, como em Oswald
e em Murilo, ãs vezes numa alteração mais sensível de sentidos
como em Drummond, quando o exílio é visto muito mais como condição existencial do homem, e não mera circunstância
geográfi-
ca ou imposição política.
Em Paes, a retomada da "Canção do exílio" é curiosa.
0 derramamento típico da expressão romântica é enxugado de for
ma intensa aqui. As cinco estrofes do poema original, as três
primeiras com quatro e as duas últimas com seis versos cada,
dão lugar a três estrofes, a primeira e a terceira com dois
versos e a segunda com cinco. Os versos, que em Gonçalves Dias
são heptassilãbicos, têm no poema de Paes entre uma e três sílabas. A expressão paesiana tipicamente epigramática manifesta-se aqui com bastante evidência.
Alguns dos termos do poema de Paes são retirados do
texto de Gonçalves Dias. Os advérbios "cá" e "lã", que estabelecem uma tensão que perpassa todo o texto do romântico e estã presente também no do autor moderno, são termos comuns aos
dois textos. O substantivo
"sabiá", por sua vez, também se en-
contra nos dois. No rol das coisas que na terra natal são superiores ou inexistentes na terra.estrangeira,
"sabiá" é um
dos termos de ¡.ligação mais evidente entre os textos. Todos os
outros escolhidos por Paes para compor o seu poema, a partir
360
da ponte possibilitada pelo primeiro, instauram o movimento
paródico pretendido pelo poeta.
Repare-se na rapidez como o poema se desenvolve. A
primeira estrofe e a última têm estrutura idêntica. Na primeira, um advérbio seguido de ponto de interrogação instaura a
dúvida evocativa: "Lã?". Considerando que, como no poema de
Gonçalves Dias, o sujeito poético, no contexto sugerido, se
encontra no exilio, a referência diz respeito ao pals de. origem, ao Brasil.no caso. A essa interrogação segue-se a expressão de saudades do sujeito, condensada na interjeição seguida
de ponto de exclamação: "ahí".
Na estrofe seguinte, a partir da chave dada na primeira, o "eu" poético passa a arrolar uma série de.realidades
que estabelecem um elo afetivo entre ele e o seu país, ressaltado formalmente no poema pelas reticências que seguem cada
termo, e que suspendem numa pausa emotiva muito significativa
a enunciação dessas realidades.,0 primeiro elemento, jã destacado, ê "sabiã", pássaro de canto muito bonito e bastante comum na paisagem brasileira, uma das evocações
centrais da
"Canção do exílio" original: "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiã". 82
A partir de " sabiã",.. tudo é humor, tudo
ressalta a intenção paródica de Paes.
"Papã", segundo o dicionário, significa "papai,, na linguagem das criancinhas que principiam a falar". 83 Mas pode remeter também ao termo "papar", que significa "comer" 84 - "papã",
na grafia de uma pronúncia infantil, ou popular do verbo, ou
ainda jã uma.possível forma substantivada desse mesmo verbo.
Quer se ressalte o primeiro, quer o segundo sentido, a irrisão
ai é evidente. No primeiro caso, a falta do pai ê assinalada
361
a partir de uma perspectiva infantilizante, que acentua a fragilidade dos afetos do sujeito e o expõe a um certo ridículo.
No segundo, a terra natal ë lembrada a partir de uma motivação bastante pragmática, a carência do alimento. Ressalte-se
que nenhuma dessas referências, nem possíveis paralelos, se
encontram ho poema de Gonçalves Dias. Lã, tudo ou quase tudo
ë exaltação das virtudes da natureza da pãtria.
"Manã" tem sentidos que precisam ser comentados: no Antigo Testamento, é o alimento mandado por Deus, em forma de
chuva, ao povo de Israel durante.a sua peregrinação no deserto,
entre a saída do Egito e a conquista de.Canaã, a Terra Prometida. Pode corresponder, em termos concretos, a uma espécie de
"liquen" "ainda hoje comum na mesma região, e que, transportado
pelo vento, cai ã maneira de "chuva" e ë usado como alimento". 8 5
0 dicionário registra ainda outras significações derivadas dal,
e
que seria conveniente registrar: "alimento delicioso; ambro-
sia"; "coisa excelente, vantajosa, deliciosa". Refere-se, portanto, enquanto alimento ou enquanto realidade
genericamente
experimentada como. muito boa, a algo positivo de que <se carece
no ambiente estrangeiro. Acentue-se novamente o vínculo bastante concreto aí predominante, a orientar , o sentimento do sujeito
em relação ã terra.
"Sofã" não traz qualquer problema de significação. No
contexto do,poema, remete ã idéia de descanso, ócio, inatividade. Mais outro elemento, que ressalta, a idéia de prazer e
gozo como vínculos do sujeito com relação ao seu país.
0 último elemento, "sinhã", permite algumas considerações interessantes. " S i n h ã " f o r m a d o
a partir de "sinhõ", al-
teração de "senhor" - era termo utilizado no "tratamento dado
362
pelos escravos a sua senhora" 8 6
cravidão vigorou no Brasil. A
durante o período em que a es-
referência
a tal realidade, a
despeito da comicidade da evocação, ê reveladora de uma realidade social problemática, com a qual o sujeito poético parece
ser conivente na sua inusitada, expressão de saudade. "Sinhã" é
provavelmente a figura feminina correspondente ao sujeito em
exílio, por sua vez um "sinhô", alguém que se encontra numa situação de privilégio,
portanto.
Os vínculos com o seu país, anteriormente
destacados,
são índices dessa condição social. O ócio, a inatividade presentes em "sofã"; a fruição de coisas boas, de boa comida em
"manã"; a carência do pai, do meio patriarcal, em "papã"; a
visão idealizada, romantizada da natureza em "sabiã" - tudo
contribui para compor o perfil do "sinhô", ou do
"sinhozinho"
que se esconde por trãs do "eu" poético . romântico
ironizado.
Na última estrofe, resgata-se em paralelo a primeira.
Novamente um advérbio seguido de ponto de interrogação, agora
em referência questionadora ao local em que se encontra o sujeito, "cã?", é seguido por interjeição e ponto de exclamação,
"bahl", agora a expressar, também lacónicamente, a repulsa pelo país, pela terra em que se encontra, após a evocação das
"virtudes" natais.
Repare-se que para a concisão e concentração do texto,
muito contribuem certos recursos de sonoridade. A vogai oral
aberta /a/ estã presente em todas as sílabas tônicas das palavras, compõe uma espécie de eixo sonoro que atravessa o poema de cima abaixo,
ressaltando
aliãs a própria verticalidade
da disposição dos termos na pãgina. Contribui também para o
efeito cômico pretendido.
Percebe-se novamente neste poema o recurso â paródia
de textos de tradição literária, portanto do jogo intertextual
363
proposital. O título da composição, "Canção do exílio facilitada", poderia sugerir tratar-se de uma paráfrase do poema de
Gonçalves Dias, uma tradução, em termos modernos, do poema romântico. No entanto, Paes enxerta intenções não presentes naquele texto, problematiza, com humor, a identidade social do
sujeito poético, e, por extensão, a identidade social do poeta
romântico brasileiro. A saudade, o amor â pãtria não são vistos aqui nos seus ingredientes de nativismo, de exaltação da
paisagem e da natureza, de evocação de realidades afetivas
mais ou menos indefinlveis como no poeta romântico, mas a partir de elementos bastante concretos, prosaicos até (nada "poéticos", numa acepção "romântica" do termo) e socialmente significativos e reveladores .
Como os poemas anteriores, este também pode ser projetado sobre o quadro político-social do país.na época da publicação do livro. Como se salientou, vive-se um momento de ufanismo oficial, insuflado pela ideologia militar dominante, e
propagado pelas instituições ligadas ao poder e pelos veículos
de massa. 0 romantismo de Gonçalves Dias,.no seu louvor das
virtudes natais, a despeito do carãter muito mais subjetivamente afetivo da sua expressão do que propriamente patriõtico-militante, casa-se bem com a ideologia do "ame-o ou deixe-o".
No entanto, e aqui entra o virtuosismo satírico de Paes, aqueles que tiveram de.buscar o exílio para fugir ao massacre político e cultural do regime não poderiam jamais assumir a perspectiva ideológica que estã por detrás da voz do sujeito poético do poema de Gonçalves Dias ou da sua versão paesiana "facilitada". Surge aqui uma tensão entre a voz. poética do pões
ma - a do "exilado" que na saudade é todo louvor para o seu
364
país - e a realidade exterior - a realidade opressiva vivida
em sua terra e que. o impeliu ao exílio. Nesse intervalo, a
ironia vem ã tona e com ela todo o seu potencial critico e
contestatorio.
Os três poemas abordados são bons exemplos de um dos
veios temáticos dominante em Meia palavra, veios que encontram
expressão no subtítulo "cívicas, eróticas e metafísicas". Os
três podem ser englobados entre as composições "cívicas", onde o carãter de crítica política se faz evidente. Vive-se um
momento politicamente problemático com o recrudescimento da
repressão e a constatação de que o regime militar não seria
golpe passageiro, rapidamente superado a partir da organização de uma resistência e de um contra-golpe político. Paes,
que desde" meados dos anos cinqüenta vinha-.deixando . largo espaço em sua poesia para o engajamento político-social, não poderia ausentar-se nesse instante. Sob o.signo do humor, da sátira, da ironia, do sarcasmo, Paes organiza uma "resistência
poética" muito pessoal ãs realidades políticas vividas. Faz
uso da única arma própria e efetiva do poeta, a despeito das
suas limitações objetivas: a sua palavra.
Um segundo grupo temático que se pode distinguir em
Meia palavra
a partir do subtítulo.do.livro, é o das "eróti-
cas", dos poemas em que o amor e a ligação amorosa entre os
sexos é matéria para a palavra crítica e corrosiva do poeta.
Como um primeiro exemplo desse segundo grupo, pode ser abordada outra composição de experimentação visual, um curiossímo "Epitalamio":
3 5
Uma foto em negativo deixa ver duas escovas de dentes
enfiadas num copo, diagonalmente.dispostas, a menor delas com
a parte superior apoiada na boca do copo, com as cerdas, voltadas para cima, e a maior sobre a menor, em disposição paralela,
porém com as cerdas voltadas para.aquela, o que faz com que se
toquem e se interpenetrem.
366
O poema precisa ser lido a partir das sugestões do
título. "Epitalamio", como jã se observou anteriormente, designa uma especie de composição poética dedicada àqueles que
contraem nupcias. Trata-se, portanto, de um canto de louva-,
ção da união entre um casal de noivos.
Com esta chave, não fica difícil desvendar as sugestões observáveis na foto. As escovas, metonimica e metaforicamente, presentificam o casal de noivos. A maior remete ao
homem, e a menor ã mulher. Ambas estão entrelaçadas, em evidente abraço. A maior estã sobre a menor, sugerindo a posição
bãsica e convencional do ato amoroso humano. 0 quadro ë metonímico, na medida em que as escovas podem ser vistas como um
prolongamento dos sujeitos a que pertencem. E metafórico, na
medida em que reproduzem iconicamente o ato sexual, substituindo o par.
Mas ë claro que a foto não ë uma representação neutra
da conjunção corporal dos noivos. Hã uma "despoetização" evidente da união amorosa na representação de Paes. As escovas de
dentes remetem ao universo da higiene íntima cotidiana, a um
ato realizado todos os dias, vãrias vezes ao dia, aliãs. As
escovas dentro do copo, no seu devido lugar no banheiro, deixam transparecer a organização e a rotinização da vida doméstica do casal. A união dos noivos ë projetada assim numa ordem
que não ê aquela dos recém-casados em suas mútuas e intempestivas descobertas f1sico-afetivas, mas sim numa ordem futura,
que os aguarda quando o intervalo meio mãgico dos primeiros
conhecimentos passar e a vida conjugai mergulhar na rotina e
na normalização. As escovas reproduzindo uma posição sexual
emblemática, sem poderem sair dos limites circulares do copo,
36 7
apesar da transparência que permite vislumbrar espaços mais
vastos, compõem a imagem-síntese de uma vida conjugai devidamente regularizada, posta dentro de conformes sociais claramente delimitados.
Pode-se comparar este segundo com o primeiro "Epitalamio " , o do livro anterior Anatomias. Lã, numa linguagem poética carregadamente metafórica, num encadeamento muito bonito de
imagens, Paes projeta a comunhão fxsico-afetiva do casal num
quadro de sentidos muito mais amplos. Partindo da descrição do
corpo feminino, passando pela evocação.do ato amoroso singular
do casal e resgatando esse ato no que tem de primordial e arquetlpico, Paes reveste a união amorosa de valores que não se
encontram
neste segundo "Epitalamio ".. Neste sentido, este po-
de ser visto como uma verdadeira antítese daquele. Em primeiro
lugar, pela própria linguagem utilizada pelo poeta, linguagem
que dispensa o verbal, excetuando-se no que concerne ao titulo, tão importante para uma orientação da leitura. Em segundo,
pela visão da união amorosa, reduzida aqui, na imagem do poema,
à sua realidade material mais imediata e concreta,.e, nas ressonâncias da imagem,: a uma normalização, . a uma estabilização
dentro de limites socialmente bem definidos., o amor torna-se
minúsculo, mero ato cotidiano como o de escovar os dentes todos os dias e impreterivelmente após cada refeição.
Outro poema em que o amor e a união amorosa são problematizados é "Camassutra", poema que também explora recursos visuais, porém sem expulsar o verbal para fora dos seus
limites:
368
CAMASSUTRA
ele
ela
ele
ela
ela
ele
ele
ela
Bp
ap
_rt
JU
ele
ela
elela
1
O titulo "Camassutra" faz referência a um tratado tradicional hindu sobre o amor. Diversas posições para o ato amoroso encontram-se nele fartamente ilustradas e comentadas. Ë
a partir, portanto, destes dados do titulo, que remetem ao
universo de uma mútua e múltipla exploração amorosa por parte
do casal, que o poema precisa ser lido.
Pode-se distinguir no texto, de cima até embaixo, diferentes "segmentos", ao todo sete, formados por uma ou mais
369
linhas, que correspondem ao desenvolvimento em etapas da própria composição. Não cabe muito bem aqui falar em versos ou
estrofes, tratando-se de um poema que explora a visualidade e
faz da palavra e sua fragmentação o núcleo da expressão, portanto o termo "segmento" surge como alternativa para a designação das unidades menores.
Num primeiro segmento do poema, encontram-se os dois
elementos básicos - os pronomes "ele" e "ela" - a partir dos
quais se desenvolve toda a composição. Repare-se no que hã
de esquemático e impessoal na escolha desses elementos. Dois
pronomes, que por definição remetem a outros referentes, porém não nomeados anterior ou posteriormente no contexto do
poema, encontram-se al, quase despidos de sentidos, não fosse
o seu sentido -morfológico mínimo, a evocar as idéias de. "masculino" e "feminino" , e, por~extensão, as de "homem" e "mulher" .
No segundo segmento, a partir de uma leitura vertical,
a mais produtiva, "ele" e "ela", mais ã esquerda, e "ela" e
"ele", mais ã direita, encontram-se um sobre o outro. A troca
de lugares não implica a princípio qualquer alteração de substância. "Ele" e "ela" são elementos intercambiãveis, um pode
assumir a posição do outro sem que disso decorra qualquer modificação essencial. Esta realidade, a:liãs, repete-se ao longo do poema. Nesse sentido, a despeito da oposição "masculino" x "feminino", são elementos como que idênticos. Na seqüência dos segmentos, ao isolamento em que os pronomes se encontram no primeiro, segue-se aqui um primeiro contato entre eles,
um primeiro "conhecimento". "Ele" estã sobre "ela" e, mais ao
3 70
lado, "ela" está sobre "ele", como a sugerir algumas primeiras
"posições" entre as possivelmente arroladas no "Camassutra".
No terceiro, o poeta inverte; gráficamente na pãgina os
pronomes da segunda linha do segmento. Mais ã esquerda tem-se,
portanto, "ele" em disposição gráfica convencional e "ela",
logo abaixo, em disposição invertida. Mais ã direita as posições são trocadas: "ela" fica em disposição normal, agora em
cima, e "ele" invertidamente. A sugestão al é. óbvia: ambos estão frontalmente voltados um para o outro, um sobre o outro,
em franco abraço amoroso.
No quarto segmento, hã nova modificação da disposição
das palavras. Mais ã esquerda, tem-se o termo "ele" disposto
na horizontal, e a sílaba "la", do segundo termo "ela", disposta -na vertical-,-- logo—acima- da primeira sílaba do primeiro
termo, como que aproveitando essa primeira sílaba como complementação da sílaba que ali falta. Mais ã.esquerda, segundo a
regra geral, inverte-se a disposição dos termos : "ela" encontra-se na horizontal e "le" na vertical. A está nova disposição visual dos pronomes corresponde nova posição sexual do par
amoroso.
No segmento cinco, diferentemente, do que se vinha
observando nos anteriores, abandona-se a polarização da disposição dos termos dois a dois ã esquerda e,..de forma invertida, à direita,, e, numa disposição mais centralizada, observa-se uma verdadeira fusão.dos pronomes, originando o termo
composto "elela". Pode-se ter aí a sugestão de mais uma nova
posição do ato amoroso, na seqüência das anteriores. No entanto, dada a visível diferença deste segmento em relação àqueles,
uma outra realidade pode estar sendo presentifiçada. Depois da
371
troca constante, da reiterada experimentação entre as várias
possibilidades, o casal finalmente chega a um ponto ideal. Na
interpenetração dos pronomes estã representada a interpenetração dos corpos
dos.amantes, finalmente unidos numa só carne.
Se contrastarmos este segmento com o primeiro, fica visível o
trajeto percorrido pelo par, saindo do isolamento inicial,
passando pela procura constante, e chegando ã desejada fusão
corporal.
No penúltimo segmento, apenas uma única letra faz-se
visível, a letra "1", tão rica em sugestões. Aqui, a fusão
do par amoroso chega ao seu momento, de maior intensidade. Não
hã diferença qualquer entre eles, pois a diferença, presentificada pelas vogais finais dos pronomes, não se deixa mais
ver. SÓ o que se tem é o "1" central dos termos, elemento comum entre eles. Reforça-se agora a fusão do par numa unidade
total, que a semelhança da letra com o, algarismo "1" acentua
ainda mais. No movimento geral do poema, estã-se no momento de
gozo do ato amoroso, concentrado na verticalidade da letra,
elemento fãlico evidente, apontado, para o .alto, como que remetendo ã explosão ascensional do clímax.
No segmento final, a unidade se desfaz, e o que se tem
agora são dois "1" caídos, cada um para um lado, horizontais,
exaustos, esvaídos. Estã-se no momento posterior ao clímax.
Os elementos estão novamente separados, como de início, porém
de maneira diferente. Estão menores, mais vazios, pois só o
"1" central dos pronomes permanece.. Além disso, e por esse motivo, não se distinguem mais em suas diferenças,, pois a oposição bãsica "masculino" x "feminino", evidente na oposição das
letras e vogais "o" x "a", não se deixa mais ver.
3 72
i
Apesar do humor e da intenção satirica presentes na
composição, não ë tão simples e óbvio assim apreender as intenções definitivas do poeta em "Camassutra". Pode tratar-se
de um simples brinquedo, de um jogo inteligente e sugestivo
com as formas, de uma experimentação formal na linha da poesia
de vanguarda. A esse respeito, acentue-se mais uma vez, porém,
que no Concretismo, tendência com a qual Paes conscientemente
dialoga desde o livro anterior Anatomias, esse tipo de exploração figurativa utilizada aqui por Paes,com a expressão verbal concretizando visual e mimeticamente uma realidade exterior, ë por vezes condenada. Porém, pode tratar-se também,
lembrando-se ser este um poema, de um poeta sempre tão crítico
em relação ã sociedade e aos seus valores, como o ë Paes, de
algo mais que um jogo, ou.melhor, de um. jogo que na aparente
facilidade, no aparente descompromisso, fere agudamente, enquanto se concentra em riso, algum aspecto da realidade.
Orientando-se por esta segunda possibilidade, pode-se
chegar a uma perspectiva bastante critica em relação ao tema
tratado.
Subtraído ao universo moral e religioso de que faz parte, o livro "Camassutra" torna-se, para.um ocidental moderno,
unit mero rol de inúmeras posições para o ato amoroso, devidamente detalhadas e comentadas. Ë essa busca de diferentes posições para o prazer e o que ela pode ter de automático e vazio
o que pode estar na mira da palavra critica de Paes. Assim,
a escolha dos pronomes "ele" e "ela", muito mais do que uma
opção pela rapidez da expressão, pela brevidade, pela síntese,
ê forma de marcar a redução dos seres concretos, plenos de cor,
distinção e afetos, a meros esquemas, como que incógnitas de
373
uma expressão algébrica, de uma fórmula matemática, a serem
preenchidas por quaisquer outros elementos. "Ele" e "ela" são
índices de uma masculinidade e de uma feminilidade abstratas,
peças num jogo que, a despeito de uma possível singularidade
dos sujeitos, remete ãs mesmas possibilidades de movimento,
aos mesmos esquemas de solução. A disposição visual dos pronomes ao longo do texto, numa procura desajeitada de um perfeito
encaixe, reveste-se de um humor francamente melancólico. Quan^
do finalmente se chega a uma fusão, com os dois elementos a
princípio separados fundindo-se numa unidade, esse instante
revela-se fugaz e o que resta ê nova separação, porém com marcas distintas da separação original dos amantes. Os dois "1"
caldos,, cada qual. para um lado, são índices de uma perda evidente. Após o ato, os sujeitos estão ainda mais vazios e esquemáticos do que no inicio,.quando ainda guardavam uma mínima diferença entre si.
Ainda um poema deste segundo grupo temático, o das "eróticas" , agora evidenciando mais uma vez o recurso ã intertextualidade e acentuando1 os pendores epigramáticos de Paes, é
esta brevíssima "Minicantiga d'amigo":
MINICANTIGA D'AMIGO
coyta
coyto
As "cantigas de amigo" datam, de fins da Idade Wédia e
estão entre as formas líricas mais antigas e primitivas da
literatura em língua portuguesa.
Diferentemente das suas con-
temporâneas "cantigas de amor", estas sob a influência da
374
poesia lírica provençal, mais aristocrática e refinada, as
"cantigas de amigo" são peças líricas de expressão muito simples, restritas
a esquemas formais básicos, como o paralelismo
e a presença de refrão, e a um universo léxico bastante restrito. Nas "cantigas de amigo", o poeta, assumindo a perspectiva feminina, canta as saudades pela ausência do namorado ou a
alegria do encontro entre os amantes, através de confidências
feitas pela mulher ã mãe ou ãs amigas. Palavra-chave para o
entendimento do -sentimento central dessas canções é "coita",
termo arcaico que significa "pena, dor, aflição, desgraça; necessidade, precisão". 8 7
A "coita" é sentimento vivido pela
mulher na ausência do seu namorado, sentimento de nuanças afetivas que facilmente sugerem outras, de teor. mais físico, mais
corporal. É esse intervalo semântico, o que pode- estar escondido por trás da carência afetiva, o que se explora jocosamente na "Minicantiga".
Paes brinca, com um certo sarcasmo, com essa "dor", com
essa "precisão" da mulher que lamenta a ausência do "amigo".
Sugere
tratar-se, sob a máscara da sentimentalidade, de uma
"precisão" sexual, que o termo "coito",, sem pudores ou melindres, contundentemente explicita. Com uma grafia
arcaizante,
ele põe paralelamente os termos "coyta" e "coyto", o que poeticamente os torna termos complementares. Repare-se que a vogai
final do primeiro termo remete â desinência própria do feminino "a", ao passo que a do segundo remete ã do masculino "o".
A "coyta", a partir dessa sugestão, seria um sentimento eminentemente feminino., a que corresponderia o "coyto", para o
qual o homem surge como elemento ativo e indispensável.
375
A expressão em "Minicantiga d'amigo"
ë extremamente
sintética, prima por uma brevidade-limite, que lembra a de
um outro poema, o poema "amor", de Oswald de Andrade, a cujo
título segue unicamente o termo "humor". Trata-se de um dos
poemas mais curtos da língua, num certo sentido uma verdadeira poética da poesia oswaldiana, a que Paes é confessadamente
devedor. Em "Minicantiga d'amigo", seguindo o exemplo do "mestre", Paes leva a poética da brevidade, ingrediente básico do
poeta epigramático, a níveis bastante radicais.
Nos três poemas comentados., o amor e a ligação amorosa
são objetos de jogo verbal, crítica e humor.. 0 poeta deixa de
lado a perspectiva sentimental e melancólica, subjetiva e lírica, através da qual tantas vezes o tema é abordado poeticamente, e prefere tratá-lo de forma mais seca e ferina, expondo-o a uma maior ou menor irrisão.
Hã, nos dois primeiros poe-
mas, além da jocosidade evidente, uma possível crítica ideológica
de valores: em "Epitalâmio", pelo carãter previsível,
regularizado, cotidianizado, banalizado do amor, com cada membro do par assumindo seu devido lugar na posição emblemática
do ato amoroso; em "Camassutra", pelo erotismo esquemático e
automático, numa busca frenética de diferentes posições, como
se o contorcionismo virtuosistico do par fosse o requisito básico para a qualidade e plenitude do amor. No terceiro poema,
no brinquedo intertextual, o poeta, como que despretensiosamente, revela os expedientes de que a expressão poética lança
mão para velar certos impulsos inconfessos do desejo amoroso.
O terceiro núcleo temático do livro é o das "metafísicas", a que Paes dedica igualmente diversos poemas. Entre
eles, pode-se destacar a princípio "Saldo":
3 76
SALDO
a torneira seca
(mas pior: a falta
de sede)
a luz apagada
(mas pior: o. gosto
do escuro)
a porta fechada
(mas pior: a chave
por dentro)
A estrutura de todo o poema obedece a um paralelismo
rigoroso: três estrofes, cada, uma com três versos, os dois
primeiros de cada estrofe pentassilãbicos e o terceiro dissilábico ; um primeiro verso formado por um segmento sintático
com artigo + substantivo + adjetivo, sem qualquer pontuação
ou sinal gráfico distintivo; um segundo.verso com abertura de
parênteses, uma expressão que se repete nas três estâncias,
"mas pior", seguida de dois.pontos e de outro segmento sintático .'(artigo
+ substantivo) , interrompido e , continuado no
verso seguinte, num "enjanbement"; e terceiro verso, com a
complementação do segmento anterior (preposição
+ substanti-
vo/advérbio na terceira estrofe) e o fechamento dos parênteses.
Do ponto de vista semântico, o paralelismo se repete.
A uma realidade enunciada no primeiro verso, realidade marcada sempre por uma negatividade, corresponde, nos versos seguintes, uma observação entre parênteses de.caráter a principio restritivo, que acentua, porém,,na aparente restrição,
essa negatividade, na medida em que apresenta uma realidade
mais radical, que parece prescindir da realidade anterior e
tornar sem efeito as suas conseqüências possíveis. Tem-se assim
377
um mergulho agudo numa situação problemática, uma vez que
aquilo que poderia se afigurar a principio como tal, não o é
tão intensamente, jã que a raiz
do problema encontra-se em
ponto ainda mais-profundo.
Em "Saldo", observa-se uma alteração evidente de tom.
Não hã propriamente crítica a uma realidade social, política
ou cultural exterior, mergulhada em sãtira, humor, ironia. 0
sujeito poético fala de si próprio agora, projeta o olhar para dentro de si próprio, explicitando o seu estado de espírito, a sua condição - pode-se dizer - existencial. No balanço
de sua existência, ele avalia o que lhe resta, apresenta o
"saldo" da sua vida, e revela que, se as condições exteriores
tantas vezes se afiguram extremamente problemáticas, na verdade isso ainda não é o pior, pois é dentro, do-próprio sujeito que toda uma problemática muito mais complexa está radicalmente fundada.
Repare-se na negatividade presente nas condições exteriores ao sujeito, concentradas em três expressões metafóricas - "a torneira seca", "a luz apagada", "a porta fechada".
Tudo aponta para uma falta, para uma carência, para uma limitação, para um "não", enfim. A "torneira", por onde a ãgua poderia correr a fim de matar a sede do sujeito, está "seca". A
"luz", que lhe poderia permitir uma visão mais clara e nítida
da realidade .circunstante,
estã "apagada". A "porta", limite
entre ele e o mundo, possibilidade de passagem e contato com
o exterior, estã "fechada". As três realidades remetem a um
condicionamento que parece surgir a despeito da vontade do
sujeito, um condicionamento que lhe ê imposto de fora, contra
o qual, para não sofrê-lo, ele precisaria reagir.
3 78
E aqui surge a radicalização do problema e o mergulho
na própria negatividade..Não hã disposição de reação, e a cada
um dos problemas o su jeito ..responde com um novo, agora vislumbrado em seu próprio interior. "A.torneira seca", "a luz apagada", "a porta fechada" chocam-se com uma amarga revelação.
No contexto metafórico do poema: de que. adiantaria a ãgua, se
o que marca o sujeito ë "a falta de sede"; ou a luz, se o que
lhe apraz é "o gosto do escuro"• ou a possibilidade de abrir
e passar pela porta, se na verdade estã "a chave por dentro"?
Assim, as três circunstâncias iniciais esvaziam-se enquanto
problemas, tornam-se falsos ou aparentes problemas, jã que hã
algo mais fundo no. próprio sujeito e independente da realidade
exterior que se lhe evidencia como problemático. A expressão
de ligação "mas pior:" faz a ponte entre essas realidades exteriores e interiores, hierarquizando-as, enfim.
0 "saldo" computado pelo sujeito poético deste poema ê
bastante negativo. Kã amargura, porém não. uma amargura angustiada que se debate numa procura de possíveis soluções. Por
trãs de todo o sentimento aí apreensível, hã aceitação e resignação.
De forma semelhante, o "saldo" final no cómputo dos
próprios "bens" por um outro sujeito poético, agora o do poema
"Declaração de bens", não tem teor muito diverso, a despeito
da diferença entre os textos, evidente na intenção mais satírica deste segundo:
379
DECLARAÇÃO DE BENS
meu deus;
minha pátria
minha família
minha casa
meu clube
meu carro
minha mulher
minha escova de dentes
meus calos
minha vida
meu câncer
meus vermes
Neste poema, novamente se observa uma estruturação de
carãter paralelístico: quatro estrofes, cada uma delas com
três versos, cada verso.com estrutura idêntica - pronome possessivo de primeira pessoa, seguido de substantivo.
Importante porém é perceber a seqüência das expressões
na estrofe e entre as estrofes, do início do poema até o fim,
jã que está aí o segredo do poder de crítica, da violência
amarga e negativa deste poema, violência que se esconde, reiteradamente, por trás do humor que surge dos contrastes do
texto.
Na primeira estrofe, o "eu" poético arrola os três
primeiros elementos da sua "declaração de bens": "meu deus",
"minha pátria", "minha família". Percebe-se uma hierarquização na apresentação dessas realidades. Em primeiro lugar,
faz-se menção a aJ_go que a princípio diz respeito â religiosidade, â espiritualidade, ao sagrado, â transcendência. "Deus"
- na perspectiva do sujeito - é o "bem" maior que um homem
pode possuir, estã acima de tudo, estã acima de todos os valores, e
por esse motivo é o primeiro "bem" que deve ser citado.
380
A seguir vem "pátria", um bem que já não diz mais respeito ã
dimensão do sagrado e do transcendente, a despeito da coloração de tal teor
de que por vezes o termo se encontra reves-
tido. "Pátria" delimita já um espaço especifico na dimensão
do humano, espaço de uma coletividade, porém de uma coletividade que se individualiza na medida em que se opõem a outras.
Repare-se que o teaomo "pátria" ë termo carregado de sentidos
afetivos ideologicamente muito marcados. Remete a uma geografia afetiva bastante problemática. A preferência neste poema
por um termo assim, ao invés, por exemplo, de "país" ou "nação", termos mais "neutros", é significativa e precisa ainda
ser comentada. Finalmente, "família" diz respeiro a um recorte menor do espaço afetivo implicado no termo anterior, delimitando um núcleo.básico e mínimo, do qual o sujeito poético
revela-se elemento central. Trata-se de um núcleo organizacional, de uma instituição básica dentro do universo social,
abaixo da qual.jã se chega ao espaço da individualidade, ao
espaço do sujeito, mínimo denominador desse complexo.
É preciso ressaltar a intenção crítica evidente jã perceptível no espaço dessa primeira estrofe. Em primeiro lugar,
arrolar essas três realidadés sob a designação "declaração de
bens" é bastante problemático. A expressão remete a um contexto juridico-financeiro bastante preciso, diz respeito a arrolagem de bens móveis e imóveis de determinada pessoa física
ou jurídica a fim de se determinar o pagamento devido de impostos ao Estado. "Deus", "pátria" e "família", apesar da
maior concretude dos dois últimos, e sobretudo do terceiro,
não dizem respeito a .realidades materiais e econômicas que se
encontrem sob a posse de determinado sujeito e que possam ser
381
financeiramente avaliadas. Surge assim uma dissonância entre
a expressão do título do poema e os primeiros "bens" arrolados, que acaba incidindo criticamente sobre o sujeito e a
perspectiva ideológica que o anima, denunciando a apropriação
e a "coisificação" dessas realidades por ele realizadas. A
idéia de "posse" surge ai com vigor, fazendo com que tudo, para ser entendido como pertencente a alguém, tenha que passar
por esse crivo.
Porém, a expressão "declaração de bens" pode ser entendida em sentido mais amplo, como dizendo respeito aos "bens"
gerais do sujeito, sejam eles materiais, sejam de. outra natureza, como os que são arrolados na primeira estância. Aqui,
uma segunda observação precisa ser feita. A despeito dos valores positivos implicados nos termos "deus", "pátria" e "família" , na verdade são os seus sentidos mais negativos e problemáticos os que vêm a primeiro plano, sobretudo num texto
de poeta tão agudamente crítico quanto Paes. Os três "bens"
em questão remetem a um discurso ideológico marcadamente reacionário. São três bandeiras perigosas levantadas pelo pensa«
mente de direita recorrentemente nos seus momentos de afirmação e de combate. São as palavras de ordem do Fascismo, quer
nas suas versões mais cruentas na.Europa, dos anos trinta e
quarenta - Alemanha e Itália -, quer nos seus ecos no Brasil,
como no Integralismo. São as bandeiras que bom setor da classe
média brasileira levantou na eminência do golpe de ."6 4 e que
lhe deu sustentação. E aqui cabe ressaltar os contornos implícitos no termo "pátria", tão marcado no quadro da ditadura
militar. Teria sido pela "pátria" que os militares cometeram
sua aventura política, para salvá-la do caos social e da ameaça
382
comunista, ameaça potente, na fantasmagoría de então, a essa
realidade tão cara, e a outras afins, como "deus" e "familia".
Na estância segunda, mais três elementos são arrolados,
agora de abrangência mais reduzida, realidades circunscritas
mais próximamente ao sujeito: "minha casa", "meu clube", "meu
carro". A primeira e a terceira são realidades
materiais evi-
dentes. . A segunda também remete a uma certa materialidade,
jã que fazer parte de um "clube", mesmo considerando a realidade mais abstrata que se encontra sob esta designação, ë também poder usufruir dos bens materiais que ele põe a disposição
dos associados. Os três elementos são ainda símbolos do "status"
social do sujeito, apontam para o lugar que ele ocupa na hierarquia social, lugar de relativo destaque quando se considerada a totalidade do corpo da- sociedade brasileira. 0 sujeito ë
proprietário de uma "casa", o que, numa sociedade onde a propriedade é valor básico e a maior parte dos indivíduos se
encontra privada dessa realidade, é.traço de evidente distinção. 0 sujeito não se encontra na situação subalterna
de lo-
catário de um imóvel.,, .a depender do aval de outros proprietários para poder alugar um espaço para si, afirmando ainda mais
o princípio da propriedade ao colocar sua carência em benefício econômico de quem jã tem. O indivíduo ê também proprietário de um "carro", portanto pode prescindir do transporte coletivo, que nos grandes centros urbanos.ë realidade.massacrante e niveladora; portanto subtrai-se ao contato com a massa,
distingue-se dela por poder deslocar-se no trânsito de forma
independente, dentro de um espaço só seu. O sujeito pertence
a um "clube", faz parte de uma coletividade bastante restrita
e selecionada, outro traço a distingui-lo da maioria, condenada
a usufruir dos precários espaços públicos de lazer.
383
Na terceira estrofe, mais três "bens" do sujeito são
arrolados, criando agora, de forma contundente, um primeiro
maior estranhamento no texto: "minha mulher", "minha escova
de dentes", "meus calos". Se nas duas estrofes anteriores, os
elementos arrolados em cada uma delas diziam respeito a um
universo relativamente homogêneo - na primeira, o universo de
bens afetivos, religiosos, morais, políticos; na segunda, de
bens materiais, sociais -, chama a atenção agora a heterogeneidade dos elementos, que, no entanto, na perspectiva do sujeito poético, acaba sendo reduzida a. uma homogeneidade problemática. "Minha escova de dentes" e "meus.calos" remetem ao cotidiano mais mesquinho do sujeito. "Minha mulher", primeiro
elemento citado na estância, acaba sendo tragado por esse contexto. É como se a."mulher" fosse relegada a esse universo das
picuinhas cotidianas, osciliando.entre a "escova de dentes",
ritual diário da higiene íntima,e os "calos", o sofrimento
inflingido ã carne pela opressão dos sapatos. A "mulher" transforma-se assim num misto de hábito diário.de higiene e incômodo carnal para o sujeito. Além disso, repare-se que na hierarquização dos elementos ao longo do poema, a-'."mulher" fica abaixo da "casa", do "clube" e do "carro", portanto ê propriedade
de menor valor entre os "bens" do homem. Há.um sarcasmo evidente na construção poética pela qual o poeta optou aqui.
Na estância final, os três últimos "bers " são apresentados: "minha vida", "meu câncer", "meus vermes". "Minha vida"
comporta de alguma, forma
tudo o que foi citado anteriormente,
todos os "bens" do s u j e i t o - afinal são eles; elementos basilares para a "vida" desse sujeito -, incluindo-o também finalmente, enquanto ser vivente, enquanto sujeito específico,
entre esses "bens". Porém, a isso que poderia ser uma afirma-
384
ção da vitalidade do ser, segue ura elemento antagônico, "meu
câncer", como que neutralizando essa afirmação positiva. 0
"câncer" rói a vida por dentro, mina as bases biológicas vitais do sujeito, projetando-o lenta e agonizantemente no espaço da morte. E aqui entra o último elemento, "meus vermes",
forma cheia de sarcasmo e amargura de se referir à própria mor
te. O ultimo bem são os "vermes", os operários intra-tumulares
que finalmente se encarregarão de "limpar" o que resta da "vida" desse sujeito.
A partir da luz que a última estrofe projeta sobre as
demais, tudo o que ali surge mencionado, se na sua convenciona
lidade e estreiteza poderia ter algum carãter de afirmação positiva da vida, perde seu efeito, tudo se torna um
.inútil ;
prólogo da doença e da morte. A visão final.ë amarga. Do-"deus
inicialmente citado, passando-se por uma arrolagem marcadamente problemática, cheia de convencionalidades ( primeira e segun
da estrofe) e distorções ( terceira), chega-se ao último "bem",
ao oposto definitivo do primeiro, "bem" final q.aie subordina
todos os outros â sua realidade absorvente.
0 poeta exercita aqui uma contundente crítica ideológica. Denuncia a perspectiva do homem que arrola as realidades
mais díspares da vida como elementos de sua. propriedade particular, que não consegue lidar com os valores mais diversificados, com os seres semelhantes e com os objetos concretos de
forma diferenciada, tudo absorvendo.através do crivo da posse,
tão evidente, no texto, na reiteração cansativa dos pronomes
possessivos. Denuncia o que hã de convencional, reacionário ebanal no credo ético, politico e religioso desse homem. Denuncia os estereótipos da sociedade burguesa e de consumo, os
385
seus fetiches, a sua busca de distinção, de "status" social.
Denuncia a distorção de valores dessa sociedade, que subordina o ser humano aos objetos materiais, e que vê a mulher dentro
de um espaço de realidades cotidianas das mais mesquinhas. Enfim, destaca a nulidade de tudo isso, observando esse complexo
a partir do prisma da precariedade da vida e da sua inevitável
condenação ã morte. Não é a utopia de uma outra ordem social
o que põe em xeque a ordem presente. Ë a própria perspectiva
da morte, problema "metafísico" por excelência, o que o faz.
3.6.3
Conclusão
Logo no início de.Meia palavra, lê-se uma formulação
de Dèmõcrito, trazida como epígrafe por Paes: "a palavra
so(m)bra da ação". No postulado teórico de Dèmõcrito.a respeito da natureza da linguagem, vista como natureza segunda e residual de uma realidade primeira, a da "ação", ecoa a possibilidade de uma redenção dessa realidade. Num momento político
em que a "ação" encontra-se restrita em seus movimentos pela
repressão do regime autoritário, a "palavra", na sua condição
de "sombra", portanto de algo que não pode ser interceptado
pelo gesto violento e aprisionador, ê o que "sobra" como espaço e resgate possível dessa mesma "ação". Por esse motivo, o engajamento crítico do poeta, através da."palavra", não pode ser
minimizado, tido como infrutífero, sem conseqüência. A "palavra" movimenta-se num espaço em que a "xação" , reprimida, não
pode se movimentar. Ela surge como um sucedâneo necessário,
que presentifica a "ação" no momento da sua provisória impossibilidade .
386
É ainda a partir do problemático contexto político da
época em que vem a público Meia palavra, que se pode buscar
orientação para uma primeira interpretação do título do livro.
"Para bom entendedor, meia palavra basta", diz um ditado corrente. Num momento em que a palavra franca, direta, explícita
se encontra interdita,
sugerir,insinuar, contornar via metáfo-
ras e alegorias torna-se expediente comum da arte produzida no
período mais violento da censura e da repressão. Se a "palavra"
se encontra sob o foco da censura, é com "meia palavra" que o
poeta vai trabalhar, procurando escapar assim ã interdição,
contando com o despreparo da censura para lidar com os registros mais sutis da linguagem, como é afinal o registro poético. Também o público receptor desse, instante, consciente da
censura, está preparado para 1er nas entrelinhas de todo o-discurso artístico, por vezes radicalmente elíptico, os. sentidos
críticos que ele possa estar querendo veicular. Para esses
"bons entendedores" , "meia palavra basta"'.
Mas a expressão
"meia palavra" pode trascender essa
explicação politicamente determinada, passando a referir-se,
sim, ã própria poética paesiana no seu momento de maior maturidade. O poeta epigramático, na sua.busca de uma expressão
cada vez mais enxuta, de uma poesia cada vez mais concisa e
concentrada, porém com forte poder de comunicação, de impacto,
de contundência,, de informação,, opta por trabalhar com elementos cada vez mais mínimos da linguagem. Se a "palavra" é a
matéria comum de todo o poeta, "meia palavra" é a matéria suficiente para um epigramático radical como Paes.
Meia palavra dá continuidade aos livros anteriores de
Paes no que têm de. crítica incisiva às realidades políticas,
387
sociais e culturais do país. Para tanto, a paródia, a sátira,
a ironia continuam os dados fundamentais dessa poesia de Índole contestadora. Em relação a Anatomias, o livro anterior de
1?67, Meia palavra insiste na incorporação de certos recursos
tornados correntes pela vanguarda poética, filtrados no entanto pela necessidade de crítica e comunicação do poeta. Paes
aproveita da vanguarda aquilo que se coaduna com as tendências
de contenção e incisão que a sua poesia vinha manifestando já
anteriormente.
A experimentação visual numa linha de continuidade em
relação aos experimentos . concretistas e da vanguarda em geral,
acentuadamente do Poema Processo, e também em relação ao próprio Paes de Anatomias, quando este procedimento se inaugura
em sua poesia, está -fortemente., presente em Meia.palavra; . O recurso ã fotografia, onde a tensão código visual x
G
Õ
d
i
g
o
ver-
bal (através do título ou de palavras no espaço do visual) ê
dado muito importante, encontra-se em três poemas: nos abordados "Sick transit" r e "Epitalâmio" e ainda em "0 espaço é
curvo", poema em que o poeta lança mão da fotografia de placas de trânsito para compor o texto, como no primeiro destes
exemplos. A exploração visual estã
presente ainda em "pascal
prêt-ã-porter e/ou le tombeau de mallarmë", em que citações
em francês se encontram ao pé de uma.pãgina e de seu verso,
sendo a primeira totalmente preta e a segunda branca, com os
caracteres de cada citação nas cores respectivamente contrastantes. Em.poemas como o abordado "Camassutra",a exploração
visual se dã através.do jogo na disposição das letras na pãgina.
388
Também se observa com muita evidência a reiteradamente
constatada intenção intertextual e paródica de Paes. Exemplo
evidente disso é a "Canção do exílio facilitada",a que se pode somar também "Olímpica" e "Minicantiga d'amigo". No espaço
da intertextualidade e da paródia evidencia-se também o veio
metalingüístico do poeta, poeta consciente do seu labor e que
a todo o momento, de forma mais ou menos evidente, constrói
todo um discurso de crítica literária em seus textos. Os poemas
citados são também exemplo de exercício de crítica, a que se
pode juntar um outro, "Metasson.eto ou o computador irritado",
em que Paes faz um soneto somente com as letras normalmente
utilizadas para explicitar o esquema rímico de uma composição.
0 jogo com frases feitas, com ditados, com citações latinas,
disseminado em vários poemas, é também meio de crítica e re-:
curso à intertextualidade.
A concisão encontra realização radical em um poema como
"Minicantiga d'amigo", ou ainda em "0 .vagido da sociedade de
consumo", a cujo título segue somente a expressão "consummatum
estj". Fica explicitada também em "Canção do exílio facilitada", sobretudo quando se compara, este com o poema d© partida
de Gonçalves
Dias. Ã expressão mais derramada do poema român-
tico original sucede aqui a contenção do poema moderno, que
traduz paródicamente o primeiro através de advérbios, interjeições e substantivos, todos muito curtos, sem articular nenhum período e sem fazer uso de adjetivos, expediente estranho ã poesia romântica.
Mas o verso e a expressão, mais carregadamente metafórica estão presentes também em Meia palavra. O estudado "Saldo"
é um primeiro exemplo disso, a que se somam também poemas como
389
"Post prandium", "Entropia", "Extemporânea", entre outros. Se
o poeta chega a uma certa radicalidade ao trabalhar com a palavra e sua fragmentação em muitos poemas, ou só com abreviaturas, como em "Cronologia", do livro anterior, ou ainda de
aboli-la ou quase fazê-lo em outros de experimentação visual,
esses expedientes não põem em desuso automático o verso e a
expressão mais metafórica e simbólica tão caros â poesia e à
sua tradição, como a vanguarda, num momento afirmativo e iconoclasta, chegou a postular. As unidades mais extensas, a despeito da sua evidente contenção na poesia paesiana deste momento,
encontram franca expressão nestes poemas de.Meia palavra.
Temáticamente, Meia palavra ë somatória de várias tendências evidenciadas.em livros anteriores. A critica política
e social, exercitada,em todos os-livros de Paes desde Novas
cartas chilenas, tem aqui largo-espaço. A poesia amorosa, tão
líricamente presente em Cúmplice s, retorna, aqui, após um ou
outro poema em livros anteriores, como o belo "Epitalâmio" de
Anatomias, agora porém sob a mira ferina.e sarcástica da palavra crítica do poeta. Não é o amor como plenitude e realização, como naquele livro, o que é cantado aqui, mas sim o amor
em suas distorções, no seu esquematismo, no seu ridículo, inevitáveis numa sociedade alienante como a que o poeta se propõe a combater. A expressão angustiada e-amarga.do sujeito,
presente em alguns dos primeiros trabalhos de Paes, como os de
0 aluno, e de forma dispersa nos livros seguintes, retorna
aqui.com toda a força. "Saldo" ë exemplo evidente dessa intenção, e outros poemas enfeixádos nas "metafísicas" corroboram
a visão aí presente. Em.i-.meio ao riso que a crítica satírica
põe em curso em boa parte das composições, surge aqui e ali
expressões mais tensas e amarguradas dos becos sem saída em
390
que se encontra por vezes o sujeito. Mas, lado a lado com
esses veios temáticos, o poeta que gosta de falar de poesia,
remetendo com freqüência a este ou àquele autor através de citações, paródias, alusões - o poeta conhecedor da tradição de
literatura -, permeia todo o livro.
Meia palavra é um trabalho em que estão presentes todas as conquistas formais e temáticas que.se vinham delineando nos livros anteriores de Paes. Ë um momento de estabilização poética, em que o poeta atinge uma.dicção própria e madura. Ê o próprio Paes quem reconhece isto quando se refere a
este livro e aos imediatamente anterior e posterior:
Sem ¡ m o d é s t i a , a c r e d i t o t e r
conseguido
nos l i v r o s dessa f a s e "Anatomias",
de
1 9 6 7 , "Me i a . P a i a v r a " , ,de- 19 73 , e " R e s í d u o " , de 1 9 8 0 - a p e s s o a l i d a d e q ue b u s - c a v a ao c o m b i n a r o i n t u i t o de s á t i r a e
paródia
i d e o l o g i c a m e n t e o r i e n t a d o com
r e c u r s o s de e x p r e s s ã o q u e i a m do t r o c a d i l h o ã a l u s i o , da m o n t a g e m v i s u a l ã
p a l a v r a em 1 i b e r d a d e . , da f r a t u r a
semânt i c a ã f a l s a e t i m o l o g i a . T u d o i s s o em
p r o l de uma c r í t i c a ã f ú r i a de p o s s e d a
s o c i e d a d e de c o n s u m o na s u a
pervertida
v e r s ã o b r a s i 1 e i r a p ó s - 6 4 . E com as
ilações c í v i c a s , e r ó t i c a s e m e t a f í s i c a s
que
dos seus r i d í c u l o s s e . p u d e s s e m
tirar,
c o n f o r m e p r o p u n h a o s u b t í t u l o de " M e i a
Palavra".89
Interessante destacar aqui como. Paes, nestas suas palavras, acaba por pôr as suas conquistas formais, o seu amadurec
cimento poético, em função de uma crítica â sociedade e seus
valores. 0 engajamento crítico do., poeta através da sua palavras encontra-se aqui reafirmado..Se em alguns livros ele
via se manifestado, de forma mais dogmática, dentro- ide um
hacor-
po político-ideológico. definido,. como nos textos publicados
em fins dos anos 50 e começo dos anos 60, e talvez por esse
391
motivo mais facilmente passível de contestação e envelhecimento, agora, na postura francamente independente do poeta,
jã sem o pano de fundo de.uma utopia político-social orientadora, o engajamento critico adquire outros contornos, orienta-se em muitas direções, jã não ë simplesmente uma critica
aos "poderosos" em defesa dos "oprimidos", mas uma critica ã
"sociedade de consumo" de um modo geral, e, por extensão, a
todos os que afirmam ativa ou passivamente os valores dessa
sociedade.
3.7
3.7.1
RESÍDUO
(1980)
Introdução
Resíduo foi publicado em 1980,. ano derradeiro de uma
década marcada pelo autoritarismo, pela perseguição política
e pela censura à produção cultural. Nesse, instante, o país
estã atravessando um momento de. transição, com a lenta abertura política promovida no final do governo Geisel e ao longo
do governo Figueiredo., tendo como conseqüência, uma suavização
da censura e a anistia aos' exilados políticos, que retornam
então ao país. Todavia a "Abertura" não é dãdiva do governo
militar, mas sim ;sinal do., seu esgotamento e. das pressões da
sociedade. Some-se a isso o fracasso dos projetos econômicos,
com o endividamento absoluto do pals e a radicalização dos problemas sociais que se vinham avolumando, hã tanto tempo.
Na poesia brasileira, o quadro geral não se apresenta
muito distinto do instante em que o livro anterior de Paes,
Meia palavra, 1973, havia sido publicado. Além de nomes jã
392
consagrados anteriormente, e de outros independentes que vão
surgindo, não se vislumbra nenhuma tendência coletiva nova na
poesia brasileira, com exceção da Poesia Marginal, que vai se
configurando em meados da década, e nesse instante apresenta
sinais de esgotamento quanto ao potencial anteriormente apresentado de renovação significativa. Os agrupamentos poéticos,
uma das marcas do Modernismo inicial, presentes também num
instante de difícil avaliação, como a Geração de 45, resgatados com vigor pelas vanguardas estéticas e políticas dos anos
50/60, e bastante evidente ainda na Poesia Marginal, deixam de
marcar presença a partir de agora. Os projetos poéticos coletivos cedem espaço ãs poéticas individuais. Nenhum termo conceituai globalizante se definiu ainda caracterizando o período. Pode-se supor que uma possível falta de distanciamento impeça a visão que dissolva os traços particulares de cada poeta
num todo donde se extraiam traços epocais característicos. No
entanto, talvez a impossibilidade esteja simplesmente no fato
de as poéticas de ruptura, ou mais amplamente de contestação
de tendências precedentes, responsáveis pela polarização estética e pela conseqüente definição de grupos, se terem esgotado. Cada novo poeta se vê diante de uma gama muito vasta de
possibilidades de expressão. Não hã uma linha hegemônica na
poesia, e portanto a necessidade de se enquadrar ou de se rebelar.
Curioso notar que com esse instante em que as poéticas
individuais predominam sobre as coletivas coincide justamente
o momento em que Paes atinge uma grande pessoalidade em sua
poesia. Se antes o diálogo com as tendências contemporâneas de
livro para livro era muito intenso, resultando''daí uma sempre
393
visível impregnação dessas tendêmcias em sua própria produção,
agora isso se atenua. Após o contato com o Concretismo, devidamente absorvido e subordinado ao veio central da sua poesia,
Paes limita-se agora a repisar afirmativamente as suas conquistas .
3.7.2
Análise
Em Resíduo, temas e procedimentos formais dos livros
imediatamente anteriores de Paes encontram-se novamente presentes. Não há propriamente aqui algum dado novo e, por conseguinte, contrastante que o destaque de modo evidente dos anteriores. Como jã se acentuou em termos parcialmente conclusivos a respeito do trabalho precedente Meia palavra, o poeta
parece ter-chegado a uma..fase .de amadurecimento criativo e,
portanto, de estabilização em sua poesia. 0 humor, a sátira,
a ironia, com o distanciamento crítico que permitem; a crítica
incisiva voltada ao social, ao político, ao cultural; as reflexões por vezes amargas sobre o ser e a existência; a opção
pela contenção, pela brevidade, pelo epigrama; o jogo com as
formas, a partir de palavras e frases feitas; a intertextualidade e a metalinguagem como exercícios de crítica no interior
da própria poesia; o recurso ã experimentação visual, posto
que neste trabalho ele se limite a dois únicos poemas - são
aspectos fortemente presentes em Anatomias e Meia palavra,
anunciados jã em livros ainda anteriores, e què se encontram
reiterados neste breve Resíduo.
0 ludismo verbal cheio de humor e crítica está presente em diversos poemas. "Lembrete cívico", que abre o livro,
pode ser um primeiro exemplo:
394
LEMBRETE CÍVICO
homem público
mulher publica
"Lembrete" ë um apontamento bastante rápido, que se faz
numa folha ou pedaço de papel, para que uma observação, um recado, um dado qualquer que ocorra ã mente não se perca nas limitações da memória. A brevidade, a rapidez, a despretensão do
registro são elementos próprios do "lembrete". O adjetivo "cívico", posposto ao termo no título do poema, tem ressonâncias
irônicas, uma vez contrastado.- ao texto que segue. Remete ainda
ã tripartição temática contida no subtítulo de Meia palavra,
"cívicas, eróticas e metafísicas".
0 poema é bastante simples. 0 poeta lança mão de duas
expressões .correntes, com. sentidos, a princípio bastante precisos e distintos: "homem público" é o homem que.se dedica ã vida pública, o político portanto; "mulher pública", por sua vez,
é a prostituta. Porém, essas diferenças de sentido das expressões chamam a atenção, sobretudo quando, a partir de uma leitura vertical do poema de Paes, percebe-se que-os termos em confronto "homem"/"mulher" e "público"/"pública", assim isolados,
são termos masculinos e femininos equivalentes do ponto de vista gramatical. Essa "neutralidade"
primeira, essa equivalência
dos termos se perde nas expressões. No uso corrente, uma não
corresponde ã outra, uma não ë a contrapartida da outra em
termos semânticos como o paralelismo gramatical poderia fazer
supor.
395
Postas em confronto, como ocorre no poema, as duas
expressões entram em tensão. Os seus sentidos são mutuamente
questionados, as nuanças semânticas de uma contaminam, pela
proximidade, a outra. A partir da disposição contrastiva das
expressões realizada pelo poeta, duas operações podem ser destacadas. Em primeiro lugar, um questionamento dessas diferenças. Em segundo, uma tentativa de resgatar, satíricamente, possíveis equivalencias entre as expressões.
As diferenças de sentido entre as expressões revelam
muito da própria condição sõcio-cultural do homem e da mulher
no Brasil, ou pelo menos do que foi essa condição ao longo do
tempo em que as expressões se foram cunhando. O "homem público" e a "mulher pública" são ambos aqueles que deixam o espaço privado para ingressar ativamente, no espaço do que é público. A oposição "casa" x "rua" pode ser aqui utilizada para caracterizar o antagonismo desses espaços sõcio-culturais. 0
homem que sai de "casa" para ocupar o espaço da "rua" é o cidadão, o homem civicamente ativo, que no limite transforma-se
no "homem público", no político. A expressão, a princípio, não
tem qualquer sentido negativo, ao contrário do que ocorre com
a outra. A mulher que deixa o espaço da "casa" para lançar-se
â "rua" é, ao contrário, a mulher de vida fácil, a prostituta,
a "mulher pública" enfim, e não a cidadão ativa, ou a política.
A não equivalência das expressões no nível' da linguagem, mesmo
que meramente casual, traduz bastante bem a não equivalência
das condições entre homens e mulheres. Nos valores que as expressões carregam consigo transparece sem dúvida um certo
ideal cultural, que destina ao homem o espaço da "rua" e ã
mulher o espaço da "casa". Quando se subverte essa relação, a
36
7
própria linguagem trata de marcar negativamente, de estigmatizar a subversão.
Se num primeiro instante a proximidade das expressões
"homem público"/"mulher pública", pela não equivalência semân
tica, torna patente a diferença sõcio-cultural dos sexos, pode-se vislumbrar aí também um intuito de sátira por parte do
poeta, jã que a proximidade implica também em semelhanças, para além, obviamente, dos paralelos morfológicos entre os termos. Aceitando-se o caráter negativo da segunda.expressão, esse
caráter acaba por contaminar também a primeira. Tem-se assim
uma ridicularização que também ê um questionamento do "homem
público". Como a prostituta, que vende seu corpo, seu único
bem, no violento mercado da sexualidade mais predadora, o
"homem público", o político, também se vende. Vende aquilo que
tem, a função que lhe foi delegada por uma certa coletividade
a fim de representá-la e defender seus interesses, no mercado
mesquinho dos interesses próprios. A expressão
"prostituir-se",
a despeito de toda a compreensão que se possa ter pela condição da prostituta, ê termo muito negativo, que se aplica extensivamente quando se quer referir ao indivíduo que trai seus
ideais ou função em troca de uma recompensa qualquer em conflito direto com esses ideais ou função.
0 que poderia parecer ã primeira vista um mero jogo
com expressões correntes acaba por ecoar uma série de considerações. O lúdico e o satírico em Paes revestem-se reiteradamente de uma função crítica de gume muito aguçado.
Outros exemplos de jogo com as palavras e síntese
expressiva são ainda "0 libertador" e "A evolução dos estilos":
397
O LIBERTADOR
frei
id
freiid
freud
A EVOLUÇÃO DOS ESTILOS
.barroco
barrococo
rococo
Verifica-se nestes dois poemas um semelhante processo
de composição. O poema nasce de um jogo de descoberta com as
possibilidades da palavra. O poeta explora as virtualidades
de dado vocãbulo para extrair dele o próprio texto. O poema
está contido no próprio vocábulo e ao poeta cabe revelá-lo.
Assim, sopesando com cuidado as palavras, remoendo os seus
sons e os seus sentidos, fragmentando sílabas, recombinando-as,
buscando associações possíveis, ele vai revelando a poesia que
nelas está latente.
Em "0 libertador", parte-se das palavras "frei", que
em alemão quer dizer "livre", e do termo "id", que na psicanálise freudiana designa "a parte mais profunda..da psique, receptáculo dos impulsos instintivos, dominados pelo princípio
8 9
do prazer e pelo desejo impulsivo"
, para se chegar ao nome pro-
prio "freud". 0 poeta aproxima inicialmente os dois primeiros
vçcãbulos ("frei id"), funde-os a seguir numa única e estranha
palavra ("freiid"), e, convertendo os dois "ii" em "u" a partir de uma possível semelhança visual entre as duas primeiras
vogais lado a lado e a segunda, ou ainda simplesmente a partir
da possível oposição fonológica entre os termos, chega ao termo
final "freud". No interior, portanto, do nome do pai da psica-
398
nãlise, o poeta descobre referências à sua própria teoria (o
vocábulo "id" diz respeito a conceito capital na psicanálise
freudiana) e ao significado dela para o homem contemporâneo,
afinal Freud, estudando profundamente o comportamento humano
a partir de novas, polêmicas e inusitadas bases, acabou por
contribuir para uma melhor compreensão de aspectos profundos
da mente humana, relegados anteriormente para segundos planos,
para espaços marginais, compreensão esta que afinal implica
também numa libertação do próprio homem
(retome-se aqui o ter-
mo alemão "frei" e o título do próprio poema).
No segundo poema, "A evolução dos estilos">
o poeta par-
te do termo "barroco", duplica a seguir a última sílaba do vocábulo
("barrococo") , compondo novamente uma palavra interme-
diária estranha e inexistente no universo* :corrrente da linguagem, para eliminar ao final a sílaba inicial do vocábulo e
chegar a novo termo - "rococó". "Barroco" e "Rococó" são ambos vocábulos que designam estilos de época definidos da história da arte. 0 primeiro compreende certa tendência da arte
da Europa Ocidental e colônias'ultramarinas durante o séc. XVII
e, em alguns países, até a primeira metade do séc. XVIII. 0
"Rococó" é estilo posterior, originado no início do séc. XVIII,
situado entre o Barroco e o Neoclassicismo, comungando de certa forma de ambos os estilos. 0 Barroco é caracterizado pelo
exagero, pela exuberância das formas, pelas violentas contraposições. No limite da saturação do estilo, o. "barroco", na
expressão do poema, transforma-se num "barrococo", em algo
que excede limites, que incha, que engorda, o que estã t presentifiçado na própria duplicação da sílaba, excedendo os limites
originais da palavra, comprometendo o seu sentido original.
399
Daí para o "rococó", ponte para o equilíbrio e contenção próprios do Neoclassicismo, verifica-se uma certa suavização das
tensões, uma contenção dos excessos. No poema de Paes, isso
se concretiza através do corte da sílaba inicial de "barrococo",
enxugamento necessário paira o delineamento de novo estilo.
Na simplicidade aparente dos poemas, descobre-se o artesão das palavras, que sabe extrair poesia de um material lingüístico mínimo, com inteligência fina, humor e graça. Uma poesia muito despretensiosa se deixa ver aí, que beira a gratuidade lúdica.
Mas nem tudo é brevidade e síntese radical em Resíduo.
Poemas mais extensos, de versos relativamente mais longos, também encontram-se presentes. "Do novíssimo testamento" é um primeiro exemplo de poema que extrapola os limites da palavra e
projeta-se para adiante do jogo verbal mais restrito dos dois
poemas acima:
DO NOVÍSSIMO TESTAMENTO
e levaram-no maniatado
e despindo-o o cobriram com uma capa de
escarlata
e tecendo uma cora d'espinhos puseram-lha na
cabeça e em sua mão direita uma cana e
ajoelhando diante dele o escarneciam
e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe
com ela na cabeça
e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe
a capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram
a crucificar
o secretario da'segurança admitiu os excessos
dos policiais e afirmou que jã mandara abrir
inquérito para punir os responsáveis
400
O poema compõe-se de seis estrofes, cada uma delas com
um número diferente de versos, variando entre um, dois e três.
O ritmo dos versos, dada a ausencia de metrificação, de paralelos rímicos, de um padrão definido de acentuação, aproxima-se muito .do ritmo da prosa. A presença de seguidos "enjambements", cindindo os versos em diferentes pontos da estrutura sintática dos períodos, acentua esse aspecto. Os segmentos
são cortados na margem direita para continuarem na linha seguinte a partir da margem esquerda mais ou menos como na prosa. O criI
tério da cisão parece ser simplesmente a ausência de espaço para continuar o verso ã direita sem que o vocábulo seja fragmentado. Do ponto de vista da sintaxe, chama a atenção o caráter paratático da construção do todo. Cada uma das estrofes,
com exceção da última, que instaura dessa.forma uma ruptura
em relação ãs anteriores, inicia-se - com a conjunção coordenativa "e", o que confere acentuada unidade ao texto. Cada estrofe abriga no seu corpo um único período; o fim de um período
e início de outro implica a formação de uma nova estrofe. Em
cada uma das estrofes, as partes menores de uma narrativa
maior vão sendo apresentadas, pouco a pouco, evocando um quadro muitíssimo conhecido, mas que, no final, com a brusca quebra instaurada pela estrofe última, tem seus sentidos transformados .
O título do poema faz menção imediata ao universo da
Bíblia, porém com um dado que gera estranhamento: o adjetivo
"novíssimo", anteposto ao substantivo. "Velho" e "Novo Testamento" são as duas partes básicas em que se encontra subdividida a Bíblia cristã. No "Velho Testamento" arrolam-se os diversos livros da tradição hebraica, desde os que compõem o
401
"Pentateuco", que tratam da origem mítica da humanidade, da
origem nômade do povo hebreu, das primeiras alianças com Deus,
da revelação da Lei; passando
pelos "Livros Históricos", que
tratam da conquista de Canaã por Israel, da fixação do povo
nessa nova terra, e da sua constituição em Estado em constante confronto com impérios vizinhos; pelos "Livros Poéticos e
Sapienciais"; até os "Livros Proféticos", textos de combate e
admoestação, de carãter interligadamente. moral, político e
teológico, em muitos dos quais se prenuncia a vinda futura de
um Messias redentor. No "Novo Testamento" estão o, livros que
compõem o cerne da doutrina cristã, escritos a partir da vinda de Cristo: os quatro "Evangelhos" sobre a sua vida e seus
ensinamentos; os "Atos dos Apóstolos", sobre a atividade apostólica dos seus discípulos; as "Epístolas" de Paulo e outros
difundindo a doutrina; até o "Apocalipse" de João, a grande
profecia acerca do fim dos tempos. Não hã, na Bíblia, um "Novíssimo Testamento". O" sentido do título, .fazendo-lhe referência, extrapola porém o contexto bíblico.
Se o título faz uma primeira alusão ã Bíblia, a leitura
do texto revela que a alusão não se restringe ao título. O
conteúdo de cada uma das primeiras cinco estrofes vai compondo lentamente um quadro que evoca o conhecidissimo quadro da
paixão de Cristo.. À seleção lexical e a sintaxe evocam
imedia-
tamente o léxico e a sintaxe do texto bíblico, predominantemente paratãtica. O ritmo solene com que se desenvolve
inicial-
mente o texto lembra muito a circunspecção solene do texto religioso. No confronto direto do poema com este, as semelhanças
são tantas que se pode falar numa apropriação, por parte do
poeta, de segmentos do texto bíblico com- os quais ele organiza
402
o seu. A tradução de que dispunha Paes não é conhecida, porém
o confronto com pelo menos duas
pe.Matos
(a tradução da "Vulgata" pelo
Soares e a tradução da Biblia de Jerusalém 9 6 ) é es-
clarecedor. Os "Evangelhos Segundo Mateus" e "Segundo Marcos"
são os que maiores coincidências apresentam. Em passagem
do
depoimento acerca de sua poesia, em que comenta exatamente este poema, Paes refere-se ao primeiro como texto de partida, e
é com esse que se vai cotejar o texto do poeta aqui.
Primeira estrofe: "E maniatado o levaram e entregaram
ao governador pôncio pilatos."
(Mt 27,2 - trad. "Vulgata")
Segunda estrofe: "(...) e, despindo-o lançaram sobre
ele um manto carmesim."
(Mt 27, 28 - trad. "Vulgata") - "Des-
piram-no e puseram-lhe uma capa, escaríate."
(Mt 27, 28 - trad.
"Biblia de Jerusalém").
Terceira estrofe: "Depois, tecendo uma cora de espinhos,
puseram-lha sobre a cabeça, e na mão direita uma. cana. E, dobrando o joelho diante dele, o.escarneciam, dizendo: Salve, õ
rei dos judeus." (Mt 27, 29 - trad. "Vulgata")
Quarta estrofe: "E, cuspindo-lhe tomavam a cana, e batiam-lhe na cabeça."
(Mt 27, 30 - t r a d .
"Vulgata").
Quinta estrofe: "Depois que o escarneceram, tiraram-lhe
o manto, revestiram-no com os seus vestidos e levaram-no para
o crucificarem."
(Mt 27, 3 1 - trad. "Vulgata") - "Depois de
caçoarem dele, despiram-lhe a capa escaríate e tornaram a vesti-lo com as suas próprias vestes, e levaram-no para crucificar." ( Mt 21, 31 - trad. "Bíblia de Jerusalém")
Como se pode ver, Paes se apropria do texto do "Evangelho", retira em alguns casos alguns dos elementos dos versículos, no caso da primeira e da terceira estrofe, e, no
403
caso ainda da primeira estrofe em relação ãs seguintes,
põe o texto de um versículo anterior
justa-
(Mt 27, 2) a versículos
posteriores; as. estrofes dois, três, quatro e cinco compõem-se
de quatro versículos seguidos (Mt 27, 28 - 31). Evoca assim,
rapidamente, os elementos capitais do quadro do martirio de
Cristo pelos soldados romanos antes do seu envio ã crucificação.
Porém, esse quadro inicial modifica-se de repente com
a súbita mudança de registro verificada na última estrofe. O
texto bíblico cede espaço então ao texto jornalístico, ao texto informativo, que introduz subitamente termos, referenciais,
situações, personagens a princípio aparentemente estranhos aos
do universo bíblico. Expressões como "secretário da segurança",
"excessos dos policiais", "abrir inquérito", "punir... os responsáveis" evocam o contexto moderno dos meios policial è judicial. Tõ.do o segmento faz referência a uma situação típica do
atroz ambiente policial brasileiro, com suas violências praticadas contra presos, quer sejam presos políticos, como nos tempos da Ditadura, quer sejam presos comuns sem.recursos ou influência, em todos os tempos. Refere-se também ao característico discurso, burocrático dos homens dos altos escalões da hierarquia policial e jurídica, prometendo apurar fatos e punir responsáveis, sem que ao discurso siga uma prática efetiva.
Postos os dois contextos lado a lado, uma dupla operação se verifica. O.quadro bíblico se atuáliza,.o martítio e a
morte de Cristo encontram paralelo moderno no martírio e morte
de homens igualmente marginalizados como ele e seus seguidores,
oriundos de:estratos sociais inferiores e/ou responsáveis por
uma pregação de carãter subversivo em relação à ordem dominante.
36 7
Essa passagem da vida de Cristo despe-se assim dos seus sentidos religiosos, para ter seus sentidos sociais e políticos
acentuados. Cristo humaniza-se e a sua experiência projeta-se
no quadro diário da experiência concreta de tantos outros homens. Por outro lado, o quadro moderno ê alçado a uma condição
de paradigma, perde seus contornos imediatos para presentificar uma situação de violência e.injustiça que se repete milenarmente. Projetado em direção ao contexto bíblico, o contexto
moderno acaba comungando de. muitos dos sentidos simbólicos ali
presentes. O homem comum que padece a tortura e até a morte nos
cárceres policiais reveste-se dos contornos de heroísmo e de
divinização do próprio Cristo. Como ele, torna-se um mártir,
um símbolo de uma causa reprimida, causa porém que tende, a
partir de sua imolação exemplar,, a, tomar força e se expandir.
O sentido do título,"Do Novíssimo Testamento",
esclarece-se
plenamente então.
A respeito deste texto, o próprio poeta faz considerações revelantes no seu depoimento, e que complementam a análise do poema:
N e l e (em " D o N o v í s s i m o T e s t a m e n t o " ) ,
a
a t u a l i d a d e de uma p a s s a g e m . d o
Evange1 i sta
Fateus acerca das
preliminares
d a c r u c i f i x ã o :é p o s t a em r e l e v o
pela
contiguidade
d e uma n o t í c i a d e
jornal
em t o r n o d o s e x c e s s o s d a r e p r e s s ã o
policial.
A contaminação de.sentidos
típ i c a da c o l a g e m f a z o v e r s í c u l o
virar
n o t í c i a de j o r n a l
e essa virar
versículo.91
O poeta fala aqui. em colagem, termo corrente no universo das artes plásticas, que designa o processo composicional
que combina, numa mesma obra, materiais heterogêneos, de diferentes origens, apropriados pelo artista. A citação, a
405
referência intertextual, a paródia chegam assim a seu limite.
O artista exercita seu poder de criação na simples seleção e
combinação de um.material preexistente, no caso do poema de
Paes, de fragmentos do texto bíblico e da notícia de jornal.
Na poesia brasileira, cabe mencionar, a "Poesia Pau-Brasil",
de Oswald de Andrade, poeta de reconhecida influência sobre
Paes, pelo que hã nela de inaugural nas letras brasileiras
nesse aspecto. No segmento do livro intitulado "História do
Brasil", Oswald aproveita fragmentos de textos dos principais
cronistas da época do descobrimento e primeiros instantes da
colonização do país para montar seus poemas.
Jã se acentuou anteriormente quando se tratava do livro Epigramas, de 1958, da utilização em muitos poemas de termos do universo ¡Lingüístico bíblico reorientados porém para
uma critica de intenção política e social. Lembre-se por exemplo de "Poética" e suas referências a "lobo" e "cordeiro" como
elementos de uma.polarização ética, política e social
("(...)
Meu sermão / Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão"); da
sua referência nesse poema ã. fraternidade
ternas
(...)") e ã divisão do pão
("Com duas mãos fra-
("Só compreendo o pão se di-
vidido."), conceitos capitais .da ética cristã; da perspectiva
de uma "ilha prometida", um Paraíso terrestre na utopia socialista, contrapartida do paraíso divino da Bíblia
("A ilha pro-
metida â proa do navio"); da tensão entre "inferno" e "céu"
como dados da condição humana
("Aceito meu inferno, mas falo
de meu céu."); do poeta assumindo a identidade do pregador na
fusão da palavra poética com a palavra ética e politicamente
engajada
("Meu sermão
(...)"). Aqui esse paralelo como que se
repete. No entanto, o recurso composicional de Paes em "Do
406
Novíssimo testamento" possibilita um certo distanciamento do
poeta em relação ã matéria, tratada, distanciamento
presente
com vigor nessa fase da sua poesia que vem desde Anatomias
(a
despeito da sua presença menos compacta em instantes anteriores) , em que o humor, a paródia e a ironia são signos centrais,
diferentemente do envolvimento mais emocional dos poemas políticos de Epigramas^
Como se pode verificar pelos poemas abordados, uma
certa temática e um modo de compor recorrentes desde; livros
anteriores fazem-se presentes.também neste Resíduo. "Lembrete
cívico", "O Libertador" e "A evolução dos estilos" são graciosos brinquedos, onde a propensão característica do poeta ao
epigrama se deixa ver num instante de radicalidade. Ludismo,
engenhosidade,
síntese, humor, sátira,. crítica de costumes,
referência a personagens e realidades do universo da poesia
e da cultura são os ingredientes básicos desses textos a princípio tão simples na sua realização. "Do.Novíssimo Testamento"
reitera a intenção de crítica política e social, do poeta, agora com recurso ao processo da colagem, que leva o jogo intertextual a seus extremos. Fechando esse círculo temático e composicional, ainda um poema pode ser comentado, "Grafito", peça
de implicações paródicas, em que o veio.de: reflexão existencial com contornos.amargos característico
de certas composi-
ções de Paes surge mesclado a um tom de sarcasmo e irrisão
geral:
407
GRAFITO
neste lugar solitario
o homem toda a manhã
tem o porte estatuario
de um pensador de rodin
neste lugar solitário
extravasa sem sursis
como num confessionário
o mais íntimo de si
neste lugar solitário
arúspice desentranha
o aflito vocabulário
de suas proprias entranhas
neste lugar solitário
faz a conta mais doída:
em lançamentos, diarios
a soma de sua vida
Chamam.a atenção logo de início certos aspectos exteriormente formais deste poema que o aproximam de um tipo de
poesia composta dentro dos moldes da metrificação tradicional:
quatro estrofes, cada uma delas com quatro versos heptassilãbicos, com rimas consoantes.e cruzadas em fim.de verso - "quadrinhas" , portanto, ..com características redondilhas maiores e
rimas regulares, com alguns achados rímicos porém inusitados,
como as rimas entre palavras de língua portuguesa e de origem
estrangeira ("manhã"/"rodin", "sursis"/"de s i " ) . Ã regularidade formal e â estrutura paralelística.do todo soma-se ainda a
presença de um verso recorrente no início, de cada uma das estrofes - "neste lugar solitário" -, que.faz com que o paralelismo incida também sobre o próprio conteúdo do poema.
No entanto, as consonâncias possíveis com uma poesia de
sabor mais tradicional aí presentes abrem-se na verdade para
uma dissonância paródica mais ampla.
Paes, em "Grafito", está parodiando um tipo de texto
corrente em certos espaços não consagrados enquanto espaços de
408
veiculação do texto literãtio - espaços "marginais", portanto. "Grafito", modernamente, designa o texto escrito em paredes, portas, muros., ou outros espaços de exposição pública
privilegiados, de caráter muitas vezes lúdico, ou crítico-contestatõrio, ou francamente escatolõgico e pornográfico, ou
ainda ingenuamente sentimental. Cabe lembrar aqui que ao longo dos anos 70 desenvolve-se no Brasil a chamada Poesia Marginal, reportando-se a designação justamente ao diferenciado
circuito literário percorrido pelas obras, no qual o "grafito",
ou ainda "grafite", a que faz referência o título do poema,
tem papel de destaque.
O texto de Paes remete a ura. contexto específico, äs
inscrições escatolõgico-satíricas das portas e paredes dos banheiros públicos. 0 verso primeiro de cada uma das estrofes ê
retirado literalmente desse contexto e transposto para o contexto de uma poesia mais sofisticada, que no aparentemente
despretensioso jogo paródico, veicula sentidos de problemática existencial contundente. As "quadrinhas", os batidíssimos
heptassílab.os e as rimas, ingredientes convencionais do que o
senso comum admite como poesia, dão o caráter gracioso e popularesco do texto, fazendo, assim a ponte.entre a forma banal
e corrente e o conteúdo violento e distinto da visão de mundo
paesiana disseminado através dela.
0 primeiro verso.do poema, que se repete a cada novo
início de estrofe, constrói um espaço específico: o "lugar
solitário" a. que ele se refere é o "banheiro". Além do espaço,
o poeta informa-nos também do tempo em que se realiza a ação
paradigmática que ele está a descrever: "toda manhã". Na primeira estrofe, a "clássica" posição do homem sentado no vaso
409
sanitário é evocada por uma comparação carregada de irrisão:
a imaginação vai buscar na figura não menos "clássica" do
"pensador" esculpido por Rodin, sentado nu com o queixo apoiado nos dedos da mão fechada e o cotovelo do mesmo braço
sobre
a coxa, numa expressão circunspecta e reflexiva, o paralelo
para o homem no banheiro. Apesar das semelhanças plásticas entre as duas situações, há um lapso radical entre o prosaísmo
meio grotesco de uma e a sublimidade estética da outra,
que a aproximação tende a suprimir, o que dã o choque
lapso
satíri-
co do paralelo.
Ao quadro estático evocado na primeira estrofe,
segue
uma primeira movimentação nesta segunda. Pelo menos dois termos dão margem a uma acentuada dissonância nos novos paralelos
estabelecidos agora. "Sursis" ë termo do vocabulário
que significa "suspensão: condicional da pena". 9 2
jurídico
"Confessioná-
rio" remete a um espaço e, por conseguinte, a um sacramento
(o da confissão) característicos do universo religioso.
"Direi-
to" e "religião", realidades envoltas em respeito e sacralidade, são, a partir da evocação de alguns termos do seu universo,
trazidas para um novo contexto que acaba por minar essa circunstância original. O homem no banheiro, "condenado" pela
sua própria condição biológica, sem direito a uma
suspensão
dessa "pena", "extravasa" "o mais intimo de si". E ele o faz
como se estivesse num "confessionário", retirando do íntimo
uma culpa que precisa ser revelada. 0 paralelo com a situação
da confissão ë violento: "o mais íntimo de si" que ë posto para fora não remete a qualquer natureza psicológica, espiritual
ou metafísica desse homem; "o mais íntimo de si" são os excrementos que ele
lança
no vaso como se confessasse um pecado.
410
Os indices mais evidentes da sua materialidade e da sua precariedade são o conteúdo interior mais íntimo desse homem. 0 gro
tesco escatolõgico da circunstância, para além do sarcasmo
evidente, revela uma visão bastante crua da condição humana.
A terceira estrofe acentua os sentidos da segunda. Se
na anterior o homem assume a condição de um condenado sem
"sursis", de um pecador a se confessar, agora ele ê um. "arüspice", um sacerdote a prever o futuro, porém não a partir do
exame das entranhas de alguma vítima qualquer como na tradição
mas das suas próprias. Resgata-se novo contexto religioso, impregnado de paganismo, para repisar a condição básica desse
homem. Se as entranhas de um .animal são o meio material perecível que o sacerdote utiliza para. buscar o entendimento de
realidades que transcendem-em muito a-ordem material dos fenômenos, no poema, "o aflito vocabulário de suas próprias entranhas" fala de uma realidade que não. se inscreve numa ordem
outra, transcendente ou superior. As "entranhas" que o homem
examina revelam a sua condição.não-transcendente, a sua natureza material e provisória. O futuro que elas deixam 1er é a
natureza da própria desagregação material do homem que elas
presentificam - portanto, a da sua própria morte.
E a quarta estrofe põe
em evidência este aspecto. Os
excrementos lançados no vaso, conteúdo das entranhas que o
"arúspice" examina, são "a soma de sua vida". A expressão reveste-se de sentidos que se desdobram. A materialidade, a
precariedade, a desagregação do todo contida na separação
"homem"/"excrementos" , ritual matinal diário, chamam atenção para
a
condição básica desse homem. Compõem "a soma de sua vida"
na medida, em que são reveladoras da materialidade, da preca-
411
riedade, da desagregação
física do homem. Mas hã al implícito
um outro sentido quase perverso. Dizer que os excrementos extravasados matinalmente compõem "a soma de sua vida" é também
reduzir a sua vida â realidade desses excrementos. Uma expressão corrente bastante crua poderia ser lembrada aqui.
Através da irrisão e do sarcasmo, uma visão pouco piedosa da condição do homem surge revelada. Ao invés de restringir-se ao bestiãrio escatolõgico típico dos textos que ilustram portas e paredes das dependências sanitárias públicas,
Paes parte dessa escatologia
(aqui entendida enquanto, na ex-
pressão do dicionário, "tratado acerca dos excrementos") para
orientar seu texto em direção a uma outra escatologia afinal
(agora enquanto, também pelo dicionário, "tratado sobre os
fins últimos do homem"). 9 3
Os poemas abordados dão uma idéia geral da poesia contida em Resíduos. Seria importante registrar que a experimentação visual encontra aqui ainda um exemplo. Trata-se do poema "projeto de mausoléu civilista e/ou foetus intelectualis
brasiliensis", foto sem qualquer conteúdo verbal, em que uma
pequena reprodução de Rui Barbosa sentado numa poltrona com
um livro aberto no colo se encontra dentro de um recipiente
de vidro. O veio irônico é violento. A este poema segue ainda
"Epitãfio para Rui", que diz: "... e tenho dito / bravosj /
(mas o que foi mesmo que ele disse?)". Rui Barbosa, na sua
sabida empolação bacharelesca, na gordura do seu discurso tipicamente acadêmico, situa-se num pólo expressivo antagônico
em relação a Paes. Na crítica a esse paradigma de certa tendência intelectual brasileira, Paes marca a sua diferença, repisa,
por subtração, a sua própria poética.
412
3.7.3
Conclusão
Residuo, de 1980, não foge ao padrão temático e compo-
sicional de livros anteriores como Anatomias, de 196 7, e Meia
palavra, de 1973, padrão ligado â conquista de uma dicção madura e própria. Estrutura-se dentro de uma mesma poética, que
faz da brevidade e do ludismo - características do epigrama -,
da sátira e do humor, do jogo intertextual nas suas diferentes
possibilidades, da experimentação com as formas sem o comprometimento da clareza da comunicação os meios ideais para uma
poesia de encorpada critica política, social, cultural, a partir de uma perspectiva de distanciamento garantida pelos próprios recursos utilizados pelo poeta. O próprio Paes admite a
unidade que liga estes livros e o significado deles no seu desenvolvimento poético. Repita-se_ aqui passagem.-jã. transcrita:
"Sem imodéstia, acredito ter conseguido nos livros dessa fase - "Anatomias", de 1967, "Meia Palavra", de 1973, e "Resíduo", de 1980 , a pessoaiidade que buscava
(...) ." 94 Os livros
anteriores são ainda uma busca constante disso que ele mesmo
chama de "pessoalidade", busca evidente nas.visíveis mudanças,
de trabalho para trabalho, das preocupações temáticas e dás
realizações expressivas alcançadas. Como já se acentuou, estes três últimos livros significam uma fase de- maior estabi-'
lização em sua poesia, uma. vez alcançada essa "pessoalidade"
poética buscada. Noutros termos, o poeta conquistou uma dicção
própria que o. distingue dos demais poetas.
A constatação da unidade destas três últimas obras
ressoa de alguma-forma no próprio título do último livro, a
partir de pelo menos duas leituras. "Resíduo", tomando-se um
dos sentidos possíveis do termo, seria uma espécie de "resto",
413
de "sobra" dos anteriores, dado o seu carãter de repetição de
procedimentos e tendências temáticas, dada também a sua brevíssima extensão. Porém, tal interpretação, que poderia ter ecos
pejorativos - se bem que não se pode esquecer que a critica
aguda do poeta pode manifestar-se sem pejo também enquanto
auto-crltica, auto-ironia -, esbarra noutra interpretação do
termo "resíduo", a partir do seu sentido figurado estabelecido pelo dicionário-
"o fundo, o âmago, a raiz". 9 5
Nesta linha
interpretativa, o termo reitera a intenção paesiana de, através de uma expressão enxutíssima, chegar a uma poesia essencial. Compare-se esse sentido com os títulos, jã comentados,
de Anatomias
(gr. "anabomé",
'incisão',
'dissecação') e de
Meia palavra
("para bom entendedor meia palavra basta"). Reite-
tera também as considerações a respeito da posição do livro
juntamente aos anteriores no desenvolvimento do poeta, que
teria atingido então a "pessoalidade" poética .- portanto, o
"fundo", o "âmago", a "raiz" do seu. potencial de criador.
Cabe ainda mencionar e comentar rapidamente a epígrafe
inscrita no início do livro, retirada de O castelo, de Franz
KAFKA: "contra piadas não hã argumentos" .. A piada, nas suas
virtualidades criticas, não se deixa enquadrar por esquemas
inquiridores muito restritos. Na violência que.lhe ê própria,
ela revela abruptamente os tabus, os preconceitos, aquilo que
se esconde nas dobras de uma expressão atenuadora e que por
vezes beira o silêncio, os podres moral e social. No mãximo,
a resistência ã piada é o não-riso, portanto a não-participação no espaço do jogo por ela instaurado. Por isso o humor é
arma forte em momentos-limite, como os de repressão política,
ou dissolução moral e social. Rir de uma realidade problemática,
414
pelo próprio distanciamento da operação, pelo não envolvimento emocional do sujeito - na medida em que o sujeito pode isolar-se assim dessa realidade, possibilidade nem sempre presente - , preserva a sua lucidez e a sua saúde critica. A opção
de Paes pelo humor encontra-se ligada a essa relativa liberdade garantida ao sujeito para pensar criticamente a sua realidade. O humorista tem uma independência que o militante ortodoxo, que o partidário, atados a uma perspectiva ideológica
por demais esquemática ou às designações de todo um grupo ou
de suas lideranças, não. tem. Isso lhe garante uma respeitabilidade, uma insenção, que o.tornam uma das vozes mais críticas
e lúcidas das causas, das lutas.libertadoras do seu tempo. E
é como uma tal voz referencial que Paes, através da sua poesia,
pode ser compreendido afinal.
3.8
3.8.1
CALENDÁRIO PERPLEXO
(1983)
Introdução
Calendário perplexo ê trabalho.de 198 3 mas que só se-~
ria publicado em. 1986, em Um por todos, reunião das obras do
poeta editadas em livro até então.
Ambas as datas, a data referencial, de composição dos
poemas e a data da sua publicação efetiva, delimitam um momento político de grande transformação no país. Com as pressões econômicas, políticas e sociais, o regime militar se
dissolve. O movimento.das "Diretas-Jã" sacode o país e, mesmo
sem conseguir o seu objetivo principal, o da realização de
eleições diretas para a presidência da República naquele
415
instante, influencia na escolha do novo presidente, que mesmo
sem assumir, colhido pela morte como foi, projetou no seu
substituto muito dos compromissos assumidos. 0 pais retornou
ã
ordem democrática e, a despeito das agruras econômicas pe-
las quais passou nesse periodo e que vieram desembocar no trágico momento presente, ela foi e vem sendo garantida. 0 ambiente ë de ampla liberdade, condição básica para a produção cultural, livre agora da censura e do terror político das décadas
anteriores.
Na poesia o momento ë bastante adverso aos agrupamentos,
ãs orientações poéticas dogmáticas e coletivas. A Poesia Marginal foi a última tendência grupai classificada pela critica
enquanto tal. Nos anos 80 predominam as posturas poéticas independentes, afastadas igualmente do.experimentalismo de vanguarda, do engajamento político-social, da dicção relaxada e
pouco culta dos marginais. Um poeta como Paulo Leminski, por
exemplo, surgido.anteriormente mas que alcançou projeção nacional na década de 80, faz nesse período uma poesia bastante
própria, em parte centrada na palavra, em parte centrada nas
experiências do sujeito, a partir de heranças bastante dispares, como a da experimentação concretista e a da produção marginal banhada em Contracultura. Adélia Prado, que surge na
década de 70 e que.ganha destaque a seguir, ê outro nome importante e independente. A partir de certa poesia drummondiana,
ela vai elaborar uma produção também muito própria, centrada
numa experiência de vida feminina com a linguagem, com o homem e o amor, com o cotidiano familiar, com a memória, com a
religião, etc., de grande refinamento e impacto comunicacional,
longe das correntes dominantes da poesia brasileira, sobretudo
416
das vanguardas. Igualmente, o que se tem em varios poetas ë
um abandono do experimentalismo radical, um retorno ao verso
e a um certo subjetivismo lírico, mantendo porém um nível de
realização muito mais sofisticado e "culto" do que o da produção marginal, também refrataria ã ortodoxia das vanguardas.
A poesia de Paes, poeta independente, sintoniza-se bem
com essa tendência geral. Em Calendário perplexo não se encontram mais as experimentações verbais e visuais de livros anteriores. 0 verso - e não a.palavra ou o segmento sintático de
reduzidas proporções - ê agora, a despeito da brevidade que
ainda o caracteriza, novamente elemento importante. O poeta
realiza uma poesia impregnada de humor e crítica, de grande poder de comunicação, mas ao mesmo tempo refinada e.culta. Está
longe agora da experimentação, mas sem abrir mão de certa sofisticação formal, o que a distancia também das produções marginais e de seus desdobramentos.
3.8.2
Análise
Calendário perplexo é livro de.acentuada unidade estru-
tural. Cada um dos poemas nele. presentes remete temáticamente
a uma determinada data. do ano. Entre duas balizas temporais,
19 de janeiro e 25 de dezembro, vão se situando, em progressão
cronológica, várias outras datas de.significação variada. Algumas dizem respeito a datas comemorativas tradicionais, como
o Ano Novo e o.Natal - o s . dois limites temporais do livro -, o
dia do trabalho
(19 de:maio), o dia das mães, o dia dos namora-
dos . (-12 de junho), o dia de São João (24 de junho), o dia dos
pais, finados (2 de novembro). Outras dizem respeito a acontecimentos históricos, como 31 de março/19 de abril
(Revolução
417
de 64), 13 de maio
(Libertação dos Escravos), 15 de novembro
(Proclamação da República). Outras ainda, de significado mui- ¡
to mais restrito, homenageiam certos segmentos sociais, como
19 de abril
(dia do Índio), 20 de abril
20 de outubro
(dia do diplomata),
(dia do poeta), 21 de outubro
(dia do contato).
E outras dizem respeito ao próprio poeta, como 16 de abril
(dia de bodas) e 22 de julho ( aniversário) , ou ainda a datas
históricas ou celebrações ligadas estritamente ã poesia, e
portanto também vinculadas imediatamente ã sua
teresses, como o 14 de março
órbita de in-
(dia da poesia), 6 de julho
te de Castro Alves) , 13 de outubro
(mor-
(morte de Manuel Bandeira) .
Como se pode perceber, as datas lembradas, vão das mais
tradicional e/ou nacionalmente significativas, como o Natal,
por exemplo, âs mais obscuras e restritas, como o dia do diplomata, e ainda àquelas que só ao poeta, e ao seu circulo afetivo interessam, como a do
seu próprio aniversário. A dispa-
ridade das datas que compõem este "calendário" provoca uma evidente perplexidade, como sugere o título do trabalho. Na seleção de marcos temporais tão heterogêneos, atualizados sempre
muito criticamente pelos poemas ao longo do livro
(como se ve-
rá) , a intenção satírica característica da poesia madura de
Paes mais uma vez se manifesta. Percebe-se jã.na
própria es-
truturação do todo uma crítica evidente ã maneira como segmentamos o tempo e atribuímos sentidos a certas datas. A análise
de poemas relativos a algumas delas só vai reiterar essa impressão.
0 primeiro poema do livro, "Brinde", diz respeito ãs
comemorações de Ano Novo:
418
1? de janeiro
BRINDE
ano novo: vida
nova
dívidas novas
dúvidas novas
ab ovo outra
vez : do revês
ao talvez (ou
ao tanto faz como fez)
hora zero: soma
do velho?
idade do novo?
o nada: um ovo
salve(-se) o ano novo!
0 brinde tradicionalmente
amigos na passagem
feito em família ou entre
do velho para o novo ano encontra-se
usual-
mente envolvido por uma atmosfera.de alegria e esperança, por
vezes verdadeira, por vezes meramente convencional.
Celebra-se
um instante simbólico, impregnado de.consciência temporal. O
tempo passado surge, ã mente como um bloco mais ou menos coeso
do qual se tenta extrair algum sentido definido. Seus sucessos
e reveses, suas dores e alegrias são,pesados nesse instante e
projetados em direção ao tempo futuro. Celebra-se o ano que
virá como a vitória ideal do pólo positivo dessas tensões sobre a sua
contrapartida negativa.. O brinde reveste-se de
princípios como que mágicos - a capacidade de orientar o sentido do tempo, dominar a irracionalidade do acaso, fazer os
desejos e os projetos pessoais se concretizarem. Há muita euforia e necessidade de consolo nisso tudo.
O "Brinde" de Paes despe-se dessa alegria euforizante,
dessa esperança fácil. Ao contrário dos habituais votos de
sucesso, felicidade, de "muito dinheiro no bolso", e "saúde
419
pra dar e vender"
ocasião)>
(nos termos da canção
tão repetida nessa
o que emerge do texto ê uma visão bem mais distan-
ciada, ë uma consciência temporal cheia de dúvidas, que se recusa a mergulhar totalmente na ilusão cativante e anestésica
da festa.
O poema inicia, em sua primeira estância, com a r e c u p e ração de uma expressão feita, bastante banalizada pelo uso recorrente: "ano novo: vida nova". 0 poeta dispõe a expressão
nos dois primeiros versos de forma propositalmente
desequili-
brada: ao invés de fazer cada um dos segmentos que a compõem,
ocupar um verso especlfico (ano novo: / vida nova) , ou ainda
fazê-los ambos ocupar um único ver so ' (ano. novo : . vida nova),
o poeta
prefere cindir a expressão no meio de ura dos seus
segmentos formadores
(vida / nova) , lançando* o. vocábulo, final
para o verso seguinte em explícito "enjambement". O que se
tem como resultado, é um desequilíbrio rítmico e também- visual
(agora que as lições do Concretismo nos.forçam a ver qualquer
poema nesta dimensão também) que questiona de imediato a expressão-matriz:. A equivalência semântica
(ano novo = vida no-
va) e formal'(paralelismo morfo-sintãtico, equivalência do
padrão de acentuação silábica) das partes ê formalmente problematizada pelo "enjambement". Nesse simples recurso, o poeta
marca jã uma clara distância em relação ao uso corrente da
expressão.
Os versos seguintes da estância são extraídos do material sonoro dos primeiros versos: a palavra "dívidas" encontra-se potencialmente presente na palavra "vida";
"dúvidas"
forma-se obviamente a partir da sua oposição fonológica com
"dívidas"; "novas" reitera o emprego masculino e feminino
420
anterior do mesmo adjetivo, bem como ecoa a combinação de fonemas dos dois substantivos
("ano", "vida"). O trocadilho res-
ponsável pelo paralelismo dos versos três e quatro tem algo de
singelo na sua constituição, porém os sentidos presentes nas
expressões questionam agudamente a frase feita. As afirmações
esperançosas de um ano melhor contidas na troca de votos são
postas em xeque: ao invés de. certezas de melhora, o que se tem
são "dúvidas novas"; ao invés de "muito dinheiro no bolso",
como reza a canção, "dividas novas" é o que se entrevê. O poeta
inverte o sentido positivo sempre presente nas.expressões ligadas ao Ano Novo, joga água fria na idealização do porvir, vê
o tempo futuro como reiteração do.tempo pretérito e não um
salto em direção ao absolutamente novo. As."dúvidas" e as "dívidas" do passado - problemas intelectuais e.materiais do sujeito -, se renovam, e a consciência desse fato não se oblitera com a euforia das festas.
No início da segunda estância, o "novo" - quatro vezes
reiterado em diferentes atualizações morfológicas na.primeira - ecoa no "ovo" da expressão.latina
"ab ovo", literalmente
"desde o ovo", que o.dicionário ainda traduz como "desde o começo; retornando ã origem". 9 6 A consciência da repetição, do
caráter cíclico do tempo está aí presente: "ab ovo outra
vez" - diz o poeta, anulando a seguir, no entanto, o que de
excessivamente.positivo, poderia se encontrar nesse
nesse "renascimento": "do revés ao talvez
"recomeço",
(ou ao tanto faz
como fez)".
Pela força com que se mostram presentes, é necessário
destacar a reiteração dos "enjambements" nessa estrofe bem como
as recorrências sonoras que ressoam de palavra para palavra.
421
Os primeiros estão presentes, nessa segunda estância,
em todas as passagens de fim de verso para inicio de verso seguinte, sem descanso, deslocando acentos, cindindo o que comporia um todo, torcendo conseqüentmente o ritmo, a fluencia
de leitura do texto. Pode-se atribuir um sentido a esse uso
excessivo, justamente o de concretizar no ritmo as tensões do
conteúdo. A visão positiva de um recomeço, como se ele por si
só bastasse para eliminar o que hã de negativo no passado, está ausente da visão do poeta em relação a esse processo. O passado, visto como "revés", portanto como algo negativo, não se
projeta em .direção a um correspondente pólo positivo. 0 que se
tem é mais uma vez a perspectiva da "dúvida", do "talvez", que
oscila entre os pólos. O futuro encontra-se aqui em aberto,
sem.um sentido definido, ao contrário do que se preferiria desejar. Aliás, pelo que se encontra expresso entre os parênteses dos versos três e quatro, percebe-se uma marcada indiferença do sujeito com relação a esse sentido. 0 que virá
"tanto
faz", assim como o que foi "tanto fez". Por trás da resignação
e da passividade pode estar uma visão distanciada que transcende
a visão humana e teleolõgica ligada ao tempo, apreendendo-o
justamente na sua imcompreensibilidade.
Mas se os "enjambements" tensionam o ritmo de forma, a
nele concretizar as tensões dos conteúdos, as recorrências
sonoras reequilibram o todo da segunda estância. Sons semelhantes ecoam nas sílabas de diferentes vocábulos. Um som é matriz para outros, e o que se tem afinal é um todo bem amalgamado. Repare-se em algumas recorrências: a fricativa
labioden-
tal da expressão latina "ab ovo", na sua forma surda ou sonora,
ë recuperada numa série progressiva de vocábulos:
"vez"/
422
"revés 1 , /"talvez"/"faz"/ n fez" ; destaque-se ainda a rima interna
"vez"/"talvez", a que se pode somar a forma surda "fez"; e,
noutros padrões de sonoridade, as aliterações
"ao"/"aó",
"ovo"/"outra",
"talvez"/"tanto". Em suma, a segunda estância acen-
tua a insistência nas sonoridades jã reparada na. estância
an-
terior. A partir de certos sons da frase feita - a exclamação
da primeira ou a locução latina da segunda estância -, o poeta
vai extraindo outros vocábulos, num evidente ludismo
sonoro.
Na terceira estância, esse ludismo também se faz presente. Ressalte-se a título de exemplo: a vibrante
/r/ em "hora"/"zero"; a fricativa labiodental em
alveolar
"velho"/"no-
vo"/"ovo", recuperando padrão dominante na estância anterior;
a oclusiva linguodental oral sonora "d" em
"do"/"idade"/"do"/
"nada"; a oclusiva linguodental nasal ./n/ em "novo"/"nada"; os
ecos vocálicos em palavras em posição de equivalência
"velho",
"idade"/"nada",
"zero"/
"soma"/"novo"/"ovo"; e ainda a rima
final "novo"/"ovo", que ressurge em relação ao vocábulo
do verso seguinte
"novo"
final.
Na estância terceira, chama a atenção ainda,
permeando
e reforçando os sentidos, a presença de uma imagem bem
carac-
terística, atualizada em diferentes níveis: a ovalidade ou a
circularidade,
verso
sugerida na estância já a partir do primeiro
("hora zero" - hora simbólica do "brinde") através da
visualidade do algarismo "0", e reafirmada pelo verso final
da estância
("o nada: um ovo"), onde "nada" remete
semántica-
mente ao mesmo "zero", e. "ovo" ã mesma concretização
visual.
Repare-se também nas sugestões icônicas da letra "o", visualização possível do "ovo" e do "zero", e de que forma ela se repete exaustivamente nos vocábulos do poema. Encontra-se,
por
423
exemplo, na locução que abre e fecha a composição, "ano novo",
e ainda na própria palavra "ovo", aliás significativamente
de-
sentranhada da anterior. Tem-se assim um motivo visual e sonoro
(pelas recorrências da vogai /o/ e da consoante /v/) cen-
tral, condensado na palavra "ovo", que perpassa todo o texto.
O "ano novo" ê como um 'tovò", que remete ao "zero", portanto
início e fim, ponto de partida e de chegada, síntese afinal
das indagações do poeta presentes nesta estância
("soma do
velho?", "idade do novo?"), imagem que presentifica a própria
circularidade do tempo e a sua falta de sentido - o "nada" que
ele parece implicar.
E o último verso, após os volteios poético-filosofantes
das estâncias anteriores, . contêm afinal a fórmula lingüística
que acompanha o "brinde", anunciado no título, que a despeito
de tudo é pronunciado.- Porém não é sem ironia e distanciamento que o poeta o faz. 0 pronome entre parênteses mina por dentro a obviedade da expressão, problematiza o chavão, e o apelo - "salve(-se) o ano novo" - não soa sem certíssima irrisão.
Por este primeiro poema de Paes, jã se pode perceber
um tipo de operação que ele realiza ao abordar certas datas
comemorativas. Ao invés de compartilhar da visão ou do espírito geral que acompanha usualmente cada data.específica, ele
prefere se postar criticamente em relação ao senso comum,
acentuando as dissonâncias ora amargas, ora sarcásticas, ora
irônicas, ora tudo misturadamente, da sua própria visão de
mundo.
Nem uma data como a do seu próprio
uma dessas intenções:
aniversário foge a
424
2 2 de julho
'ANIVERSÁRIO
amigos abraços
velas acesas
velas apagadas
obrigado adeus :
ensaio de outra festa
(próxima? distante?)
também com amigos
com velas com adeuses
sobretudo adeuses
A primeira estrofe, em rapidíssimas pinceladas,
descre-
ve toda uma cena. Com simples substantivos, alguns acompanhados de adjetivos, tem-se.concretizada
- acentue-se que de for-
ma bastante esquemática - toda a ação ritual de uma festa de
aniversário: a chegada dos amigos e as correspondentes saudações, no primeiro verso;, o núcleo simbólico da festa, com toda
a encenação que o envolve, nos versos dois e três; os agradecimentos e despedidas, no verso quatro. Repare-se ainda no desenvolvimento em onda do acontecimento: a chegada dos amigos
com a alegria que isso implica culmina nas velas acesas sobre
o bolo - tem-se al uma linha ascendente em direção a um clímax;
depois de apagadas as velas, caminha-se para as despedidas, para as separações - após o climax, o sentido da onda torna-se
descendente.
Os dois pontos situados ao final da primeira estrofe
ligam-na de forma especial ã segunda. Após a sintética e rapidíssima descrição anterior da festa, marcada por uma relativa objetividade, tem lugar agora a glosa reflexiva do sujeito poético, que procura extrair sentidos abrangentes do acontecimento e projetá-los adiante. Assim, a festa descrita surge para ele como um "ensaio de outra festa", uma preparação para
425
algo mais definitivo que está por vir. O "aniversário", com a
presença de pessoas queridas, o ritual das velas acesas e apagadas
(com a sua dialética simbólica de vida e morte) • e as
posteriores despedidas encenam a "festa derradeira", a da própria morte, cujo tempo de realização surge envolto em dúvidas - "(próxima? distante?)". Corn a primeira, tem a segunda
em comum diversos de seus ingredientes: "também com amigos /
com velas com adeuses". No entanto, como acentua o verso final
do poema, um dos elementos predomina, justamente aquele que
marca o ponto descendente do circuito: "sobretudo adeuses".
O "aniversário" não é visto por Paes como uma festa
de celebração da vida, da permanência teimosa do sujeito através do tempo e contra o tempo,, mas como um anúncio, uma preparação, ou nas palavras do. próprio texto, um "ensaio" para a
morte. Paes desloca o sentido da festa para um outro pólo, presente no próprio simbolismo das velas.acesas que se apagam
(a
chama da vida extinta pelo sopro do tempo), porém recalcado
pela celebração festiva. Ao invés da celebração significar uma
soma - justamente a soma dos anos vividos pelo sujeito, como
se isso pudesse representar um acúmulo, um ganho -, ela passa
a ser percebida enquanto subtração. 0 sujeito percebe que os
anós vividos lhe vão sendo subtraídos da cota total que lhe
diz respeito.
Nesse sentido, "Aniversário" se aproxima bastante de
"Brinde". Em ambas as festas - uma de dimensões particulares,
a outra de dimensões, mais amplas, em todo o caso ambas enraizadas na maneira tradicional de se segmentar e atribuir sentido ao tempo - o poeta distancia-se do sentido comum a elas
usualmente vinculado para desentranhar os seus avessos. Por
426
trás do acento amargo, vislumbra-se uma lucidez que não se
permite embalar por consolações fáceis e ilusórias.
Os dois poemas comentados dizem respeito a uma problemática que se pode dizer "metafísica", no sentido que este termo tem por exemplo na expressão "cívicas, eróticas e metafísicas", subtítulo de Meia palavra, isto é, enquanto veio temático que abarca certas preocupações do poeta, como. o tempo, a
morte, o sujeito no mundo, a angústia da existência, etc. Outros poemas enveredam pelo politico-social, aumentando o leque
temático do livro, e reiterando certa propensão critico-participativa do poeta, presente desde cedo em sua oüra. Um primeiro exemplo, enveredando.pelo humor, ë o brevíssimo "Dúvida
revolucionária"':
31 de março/19 de abril
DÜVIDA REVOLUCIONÁRIA
ontem foi hoje?
ou hoje ê que ê ontem?
Para a cronologia oficial, o. golpe militar de 1964 foi
deflagrado no dia 31 de março daquele ano. Porém, anedõtica e
extra-oficialmente, pairam dúvidas acerca da. precisão desta
data, e o dia seguinte surge também como o dia em que os acontecimentos se definiram e atingiram de fato o país como um todo. Esta "dúvida", ë prato cheio para o escárnio, já que o primeiro dia de abril não é data neutra e sim tido como o dia da
mentira. São comuns as brincadeiras, os trotes feitos nessa
ocasião, espalhados e logo em seguida desmentidos. O golpe de
64 surge envolto nessa circunstância anedõtica, e ë disso que
Paes tira partido neste poema. Além disso, a "dúvida revolucio-
427
nãria", que surge formulada em relação ã oscilação "31 de março/19 de abril", projeta-se também noutra perspectiva tempo- .
ral. 0 "ontem" pode dizer respeito ao passado, quando a ditadura militar instalou-se no pals, e o "hoje" ao momento presente - no casó por volta de 1983, data de confecção do livro -, quando o governo Figueiredo acenava com. a possibilidade
de uma lenta redemocratização do pais, deixando para trãs o
terror politico do fim dos anos 60 e 70. A "dúvida", nessa
circunstância, ao pôr em questão a realidade, do lapso temporal, estaria pondo em xeque a realidade dessa redemocratização, acentuando a permanência de um mesmo tipo de regime, por
tras de todo o discurso amenizador em.contrário. Na formulação da dúvida, o "ontem" se iguala ao "hoje", e assim, ao anular-se o lapso temporal, anulam-se também as mudanças.
"Dúvida revolucionária" aproxima-se. da anedota. Formulação satírica de evidente simplicidade e despretensão, renova
a disposição de Paes.de cutucar o "status quo".politico. Assim,
não ë â toa que, no seu "calendário", uma data que nos
calen-
dários oficiais de então era superestimada como instante de
ruptura política e renovação surja comentada de forma tão ridicularizadora e no espaço de um poema tão despido de virtudes poéticas.
Nessa mesma linha de crítica político-social, o dia do
trabalho não poderia deixar de ser celebrado como momento importante, como o faz "Etimologia", poema dedicado â data. Se
a data anterior encontra-se envolta em escárnio, o tom que
celebra esta outra ê bastante distinto, jã aí pode-se aferir
o posicionamento ideológico do autor.
428
19 de maio
ETIMOLOGIA
no suor do rosto
o gosto
do nosso pão diãrio
sal: salãrio
Etimológicamente, a palavra "salãrio"
(do lat.
'salariu',
soldo) deriva da palavra "sal". Segundo Antenor NASCENTES/'primitivamente era a quantidade de sal que se dava como pagamento;
depois ficou sendo o soldo dado ãs tropas para comprar o sal".
Ao invés desta etimologia historicamente situada, Paes contrapõe uma
outra, fictícia, de acentos poéticos e políticos mui-
to evidenciados.
O poema ê novamente bastante breve:, três versos curtos
no corpo de uma estrofe e um verso isolado final igualmente
curto. Ao longo da estrofe, em rápido desenvolvimento, delineiam-se os aspectos que vão informar a nova etimologia. 0
"suor do rosto" remete ã idéia de trabalho,. central no poema.
"No suor do rosto", no trabalho, encontra-se o "gosto" do "pão
diãrio", a recompensa final pelo esforço, dispendido. No verso
final - "sal: salãrio" -, explicitação da relação etimológica
entre os termos, ecoa o desenvolvimento anterior. Repare-se
nas ressonâncias rímicas, que paralelamente ao desenvolvimento semântico do texto, encaminham o poema para o seu termo:
"rosto"/"gosto", "diãrio"/salãrio". O "suor do rosto" - o
"gosto" do pão - é o "sal"; o "pão diãrio", o "salãrio" recebido. Dessa forma, "sal" encontra-se duplamente na origem de
"salãrio": enquanto raiz etimológica presente na própria concreção dos
vocábulos
("sal"/"sal-ãrio") e, poeticamente, pela
429
relação entre o trabalho - nas imagens do poema "suor do rosto" e "sal" - e esse mesmo "salário".
Repare-se que o "sal" deixa de ser aqui o meio monetário intermediário entre o trabalho e o seu produto, como na
etimologia real, para ser o próprio trabalho em si. 0 "suor do
rosto" do trabalhador é. o "sal" que impregna o seu ganho, o
seu "pão diário" - em suma, o "salário". Mas é também, na bela
sugestão poética implícita no texto, o tempero desse mesmo pão
o que lhe dá o "gosto" afinal. Repare-se
ainda que o poeta
sugere incluir-se entre os trabalhadores na formulação do possessivo na primeira pessoa do plural - "nosso pão diário". Há
um sujeito poético múltiplo que fala aí, a classe trabalhadora ou
os assalariados, que,, ao manifestar-se, assume uma iden
tidade coletiva.
O último verso,^equação final do poema, pode ser visto
também como o ponto de partida, para a sua elaboração. O recurso paesiano de extrair poesia das próprias potencialidades da
palavra surge aí bastante claramente. Há muito de artesanato
verbal nesse jogo com os termos., de luaismo explícito, porém,
acentue-se que esse ludismo em Paes
raramente é ingenuamente
gratuito ou restritamente experimental. Como no poema, o ludismo vocabular encontra-se impregnado de nuanças ideológicas
assumidamente críticas em relação.a problemas, a questões da
realidade.
Nessa linha de jogo com as palavras, um poema em especial precisa ser estudado, ainda pelo que hã nele de metalingüístico, outro veio dominante em Paes: "Dicionário de rimas",
homenagem ao dia da poesia, dia 14 de março.
430
O poema tem ao todo vinte e três estâncias, cada uma
delas obedecendo a uma mesma estrutura. A transcrição da primeira estância exemplifica melhor como se apresenta essa estruturação:
A de amar :
no lar
como no lupanar
Cada estância compõe-se de três versos, obedientes a
um mesmo padrão rlmico e alinhados em relação a uma margem â
direita, ao contrário do. alinhamento a partir de margem ã esquerda, mais usual em poesia e predominante em Paes. Esse recurso, com a sobreposição.dos segmentos, finais ,de cada verso,
destaca os paralelos rimicos, o que sintoniza bem com a intenção embutida no titulo do poema: "Dicionário de rimas". O primeiro verso da estância tem estrutura que se repete nas seguintes: letra do alfabeto + preposição "de" + palavra que se
inicia com igual letra + dois pontos. De estrofe para estrofe,
vão se substituindo as diversas letras do alfabeto, obedecendo
ã ordenação tradicional: A, B,. C, D, etc. até Z. Os dois versos
seguintes, formados cada um predominantemente por um único termo, ligado ou não por preposição, ou ainda, mais raramente,
por expressão concentrada, procuram, de forma sintética, apresentar uma definição, uma conceituação do termo central do
primeiro verso.
Paes, como se pode ver, estã a pard.diar os dicionários
de rimas que se encontram comumente por al. Ao lembrar o dia
da poesia com a elaboração de um tal dicionário, fica evidente a sãtira do poeta a uma certa concepção, tradicional, corrente e leiga, que vê a poesia meramente enquanto texto rimado.
431
A posse de certos chavões rimicos, de que um dicionário de
rimas ë exemplo dos mais completos, seria, segundo essa concepção que associa, automaticamente "poesia"/"rima", um pré-requisito básico para lançar-se ao trabalho poético. Paes mergulha nesse ponto de vista e o critica por dentro. Ele elabora um dicionário diferenciado, em que, partindo do recurso
ingênuo de arrolar palavras com idêntica terminação, acaba,
através do humor, da ironia, do distanciamento, do ludismo
verbal, do achado inusitado e expressivo, formulando conceitos
interessantemente críticos e sintéticamente precisos para diversos vocábulos, alguns deles aliás bastante batidos.
Na primeira estância, "amar", vocábulo usado â exaustão
em poesia, rima igualmente com termos, que se referem a universos sociais-em certo sentido opostos:"lar" x "lupanar". Há
duas visões do amor problematizadas e postas em confronto aí.
Em primeiro lugar, o amor ligado â esfera doméstica, familiar,
o amor regularizado e socialmente aceito sem estigmas. Em segundo lugar, o amor ligado ã esfera do espaço público, o amor
proibido, restrito ã sexualidade, marcado negativamente. O
poeta investe nessa tensão, afirma o amor como algo pertencente igualmente a essas duas esferas., e nesse sentido, põe em
xeque as delimitações. "Amar" está, semântica e formalmente,
igualmente em "lar" e em "lupanar". Da mesma forma, obedecendo ã mesma sugestão, "lar" e "lupanar" se inteirpenetram, interpenetração ressaltada pela mesma.rima e por outras reiterações sonoras: "l-ar"/"l-upana-ar". O aparentemente singelo
brinquedo reveste-se, como se vê, de outras intenções.
Se a primeira estância
envereda
pela critica de.cos-
tumes, a segunda, no inusitado da aproximação dos termos, compõe
432
uma bela definição poética para uma questão de ordem estética.
Da primeira para a segunda estância, o lapso temático revela-se bastante acentuado, aspecto recorrente no poema:
B de beleza:
frieza
acesa
O paradoxo dos versos dois e três tem algo de artificio poético maneirista ou ainda barroco
(frio x calor, som-
bra x luz, estaticidade x dinamicidade), porém o resultado final talvez seja o da apreensão.de uma "beleza" mais puramente clássica. Ao contrário do desequilíbrio dinâmico que o oxímoro poderia suscitar, tem-se aí um delineamento bem equilibrado e contido. Não é a "beleza" violenta.das tensões insoluveis a que se apresenta aí, mas uma "beleza" precisa que absorve e dissolve no seu bojo as tensões. Em todo o caso, independentemente das sugestões que a estância possa fazer reverberar
numa sensibilidade singular, fica evidente o carãter de "achado poético" de contornos indefinidos, e a abertura interpretativa que isso tende a provocar.
Menos intrincados em seus sentidos revelam-se os enquadramentos de outras estrofes. As esperanças políticas vibram em reticências nos ecos rímicos da estância a seguir:
L de liberdade :
hã-de
hã-de
0 humor se acentua ainda em outras, como no trocadilho
intercalado ã frase feita:
M de mulher:
a que der
e vier
433
Ou ainda na insólita imagem desta outra estância:
S de sorte :
um pouco de esporte
antes da morte
A identidade do poeta é também tematizada em estância
especifica, em termos de dúvida, com a apresentação de dois
pólos antagônicos entre os quais oscila o pêndulo da resposta:
P de poeta:
profeta?
pateta?
Entre uma avaliação extremamente positiva, que vê o
"poeta" enquanto um "vate", designação tradicional que moder-namente pode-encontran-tradução na expressão poundiana "antena da raça", e a avaliação depreciativa, que minimiza ridicularizadoramente a sua tantas vezes arrogada importância,
indefine-se a visão do próprio Paes. A equação não se resolve e o "poeta" estã livre para tocar alternadamente ambos os
pólos.
E ainda na esfera da criação, agora no âmbito da tradução poética, confira-se a bela e engenhosa réplica que Paes,
ele mesmo conceituado tradutor, dã ao famoso ditado italiano
"tradutore, traditore"
(tradutor, traidor), repetidamente lem-
brado quando se quer tecer ressalvas â dificuldade ou mesmo
â impossibilidade do trabalho de tradução:
T de tradutor:
traidor
por amor
434
Finalizando, ainda duas estâncias que revelam
muito
acerca do. próprio posicionamento ideológico de Paes. A estância a seguir explicita-se em defesa das posições independentes:
H de heresia:
não â miopia
da ortodoxia
Os versos têm ares de franco protesto. A defesa das
posições que põem em xeque a estreiteza das ortodoxias liga-se
ao próprio trajeto intelectual de Paes, que sempre preferiu
manter-se criticamente distanciado das diversas ortodoxias literárias ou políticas que marcaram o panorama cultural brasileiro nos últimos decênios. Estreando literariamente no âmbito
da Geração de 45, enveredando pela poesia política de. contornos
cepecistas nos anos 50 e inicio dos 60, dialogando muito próximamente com a vanguarda poética, radicalizando o veio oswaldiano do humor, da paródia e da brevidade, como o fizeram, em
direções muito próprias,.certos tropicalistas e marginais,
porém nem sempre com o mesmo requinte de erudição e sofisticação, Paes preservou sempre uma grande, autonomia em relação ao
núcleo diretivo dessas tendências
Marcou .,. portanto , uma posi-
ção "herética", em certo sentido., O mesmo se observa no campo
mais geral das idéias políticas. Envolto a princípio pelo clima sartreanamente existencialista que marcou o pós-guerra,
passando pelo engajamento político-social mais explícito e em
direto contato com o pensamento de esquerda, Paes acabou assumindo posição mais distanciada a seguir, optando por uma irreverência e ieonoclastia radicais e, portanto, um tanto avessas
âs definições ideológicas excessivamente precisas e aos arrebanhamentos partidários.
435
Indice ainda dessa sua posição "descentrada" e da
consciência dessa posição encontra-se no pequeno texto "sobre
o autor" que preenche uma das orelhas da edição original de
Resíduo, livro de 1980. Paes faz questão de mostrar-se muito
distanciado das vãrias versões típicas de intelectual presentes na sociedade brasileira: "Não cursou universidade. Nunca
ensinou literatura. Não pertence a nenhuma academia de letras.
Jamais recebeu um prêmio literário.. Não.possui quaisquer títulos honoríficos, medalhas, crachas, lãuieas. Nunca viajou ao
estrangeiro em missão cultural, com despesas pagas". 9 8
Hã muita
ironia por trãs desse breve avesso de nota biográfica.
E a última estrofe, finalmente, dã- bem a medida de certa visão da existência pelo poeta:
Z de zero:
o número mais fero
e mais vero
A letra final do alfabeto ê um Z de zero, número fero,
que atemoriza o sujeito, mas que constitui afinal., segundo o
poeta, a sua maior verdade. Ecoam aqui versos do primeiro poema abordado, "Brinde", com sua referência ao Ano Novo: "hora
zero: soma / do velho? / idade do novo? / o nada: um ovo". Origem e fim, "alfa" e "ômega", igualam-se assim na sua mesma radicação na nulidade.
Antes de encerrar este tópico, convém introduzir e comentar ainda um conceito teórico.bastante presente nas reflexões literárias que se vão desenvolvendo atualmente, conceito
não exclusivamente relativo aos estudos literários, mas ligado
ã toda uma reflexão mais ampla acerca da produção cultural.
Ao longo da década de 1980, começam a chegar ao Brasil,
com cada vez mais intensidade, os ecos das discussões feitas
436
acirradamente no estrangeiro com respeito ã noção de "põs-modernismo" como novo conceito de periodização da cultura. A
polêmica em torno do assunto tem sido cerrada, com defensores
e detratores entusiasmados. As produtivas discussões entre
dois dos filósofos mais importantes da atualidade, o alemão
Jürgen Habermas e o francês Jean-François. Lyotard, são um par
radigma vivo e significativo dessa polêmica. A existência de
algo que se possa chamar de pós-modernismo predominando no cenário cultural atual, a sua delimitação,.o seu caráter de
ruptura ou de continuidade em relação ao Modernismo, as suas
características básicas, o seu enraizamento na esfera econômica, política e social, o seu caráter ideológico
reacionário
ou progressista, etc. , são questões em aberto e que têm
tado diferentes respostas. Em todo o caso,
susci-
independentemente
do partido que se possa tomar, a polêmica existe, e a sua existência garante jã de imediato importância cultural a essa nova
i>oção.
Com isso em perspectiva, não se poderia deixar de perguntar, a esta altura do estudo da poesia de José Paulo Paes,
se a sua obra não se encontraria dentro do âmbito daquilo que
se poderia compreender como "pós-modernismo" em literatura. Uma.
resposta precisa e um pouco mais, definitiva a essa questão demandaria um estudo aprofundado e bastante especifico, o que
não ê o que se pretende aqui. Em todo o caso, à.luz de certas
características genéricas que vêm sendo arroladas como definidoras de uma literatura põs-moderna, algumas, conclusões podem
ser tiradas.
Linda HUTCHEON, em relativamente recente e bastante
im-
portante estudo acerca do assunto - Poética do pós-modernismo 9 9 -,
437
originalmente publicado em 1987, aborda com detalhe a questão
no âmbito da História,, da Teoria e da Ficção. No caso da literatura, e especificamente do romance, gênero de eleição do
Pós-modemismo literário, utiliza.ela a expressão
"metaficção
historiográfica" para caracterizar uma série.de obras surgidas
ultimamente, como por exemplo 0 nome da rosa, de Umberto Eco,
Ragtime, de Doctorow, Os filhos da meia-noite, de Salman Rushdie,
entre outros, muitas delas obras de valor literário que obtiveram grande sucesso no mercado editorial, índice inicial das
contradições características do pós-moderno. Diferentemente das
produções mais representativas do. Modernismo - elitistas, herméticas, alheias aos meios de massa -, as produções pós-modernas circulam por esses meios, atingem um-público mais vasto
através da retomada de certas .convenções literárias que permi- : .
tem uma franca comunicação c o m o público, sem no entanto perderem - acentua a autora - em termos de. crítica, garantida fundamentalmente pelo recurso ã paródia.
A mencionada designação "metaficção historiográfica"
aplica-se, por um lado, a romances em que o fazer literário
vai sendo explicitado ao longo do texto : o autor situa a si
próprio e ao leitor no espaço da escritura; acentua o caráter
ficcional do seu trabalho e. as convenções que estão por trás
dele; aceita as convenções dos gêneros e das formas, num primeiro instante, para logo em seguida frustrá-las..Trata-se, em
suma, da utilização, em proporções bastante acentuadas, do que
na teoria literária se designa por "procedimentos, metalingüísticos". Por outro lado, são obras que, diferentemente dos textos modernistas, onde esses procedimentos também estão tantas
vezes presentes, contestam o fechamento da obra enquanto objeto
438
autônomo, abrem-se crítica e problemáticamente para a realidade e para a história - em direção ao "extra-literãrio", portanto.
A autora insiste no paradoxo da expressão, jã que "metaficção" implica na linguagem debruçando-se sobre a linguagem,
no ficcional voltando-se para o próprio ficcional, em claro
fechamento e circularidade intra-textual, e "historiogrãfica"
implica num projetar-se para fora do espaço e do tempo da obra,
em direção â realidade exterior. Porém, como essa realidadé
exterior só existe "textualizada" para o homem, essa projeção
converte-se em "intertextualidade". Ao abordar o tempo passado,
essas obras vão .dialogar com os: textos que presentificam esse
passado, os textos da história, e não com os acontecimentos em.
si, inalcançãveis agora fora desses textos. No entanto, esse
diálogo intertextuál, não é ingênuo ou inocente, mas sim crítico, problematizante, autoconsciente, descentrado em relação ãs
formulações totalizantes, ãs compreensões unívocas da realidade. E aqui a "paródia" como procedimento- intertextual tem papel
de relevo, por permitir, como acentua a autora,.uma "indicação
irônica da diferença ño próprio âmago da semelhança". 100
Não
é de forma acrítica que os textos , da história e as formas textuais do passado são retomadas, mas sim a partir de. uma perspectiva problematizante, garantida pela paródia.
"Metalinguagem", "intertextualidade", "paródia" são,
portanto, conceitos básicos que ecoam aí e estão presentes na
caracterização do."põs-moderno" literário. Domício
PROENCA
FILHO, em pôs-modernismo e literatura. - estudo bastante sumário sobre o problema, que tem, no entanto, a virtude de enfocar
a literatura brasileira no âmbito do Pós-modernismo internacio-
439
nal -, ao resumir as
idéias de estudiosos como Charles
Altieri, lhab Hassan, John Barth, Craig Owens, Andreas Huyssen,
Robert Alter, e dos brasileiros Sérgio Paulo Rouanet e Carlos
Guilherme Merquior acerca do.assunto, reitera, em certa medida, as reflexões .de Linda Hutcheon. Algumas das características da literatura pós-moderna por ele apresentadas recebem a
seguinte formulação sintética: "intensificação do ludismo na
criação literária"; "tendência â utilização deliberada da intertextualidade ";"ecletismo estilístico"; "exercício da metalinguagem"; "figuração alegórica de tipo hier-real e metonimico"; "fragmentarismo textual". 1 0 1
Além desses seis..tópicos, que ele mesmo condensa na forma acima transcrita, o crítico apresenta ainda outros dois, em
que arrola características específicas da narrativa e da poesia.
No caso da narrativa, repetem-se basicamente os aspectos jã
observados acima, somados, a alguns aspectos de carãter polêmico, como, por exemplo, destacar o que seria.a "pouca popularidade da narrativa pós-moderna fora dos. círculos
intelectuais
ou dos programas universitários" 1 0 2 , afirmação em franca contradição com o sucesso de público de um romance como 0 nome da
rosa e tantos outros, e com: as observações de Linda Hutcheon
sobre a recuperação da comunicação com um público mais amplo
que o Modernismo havia perdido. Com relação ã poesia, baseia-se
ele nas observações de Charles
Altieri eselusivamente sobre
a poesia norte-americana, levantando aspectos um tanto quanto
problemáticos e contraditórios se aplicados sem observação ã
poesia brasileira. Diz ele a. respeito:
Na p o e s i a , ã l u z
fundamentalmente
das
i n d i c a ç õ e s de C h a r l e s A l t i e r i , q u e a s
d e p r e e n d e b a s i c a m e n t e de m a n i f e s t a ç õ e s
440
da l i t e r a t u r a a m e r i c a n a , a s s i na 1 a m - s e ,
entre outros traços: três
posicionam e n t o s q u e se s u p e r p õ e m : uma p o e s i a
confessional
altamente
personalizada,
uma p o e s i a b a s e a d a .em c o m p o n e n t e s
objet i v o s e uma p o e s i a d a i m a g e m p r o f u n d a ,
q u e u t i l i z a de m a n e i r a c o n t r o l a d a uma
poética surrealista;
uma p r e f e r ê n c i a
de e l e m e n t o s de c a r á t e r p e s s o a l , s o c i a l e a n t i f o r m a l , em o p o s i ç ã o
imediat a a o M o d e r n i s m o , n o q u e e s t e t e m de
ê n f a s e ao c o m p l e x o , a o p a r a d o x a l ,
ao
f o r m a l i s mo, ã t r a d i ç ã o l i t e r á r i a e ao
h i s t o r i c i s mo ; f i n a l m e n t e ,
efetiva-se
uma t e n t a t i v a de o r a l i z a ç ã o do p o e m a ,
com f o r t e p r e o c u p a ç ã o com a c o m u n i c a ção ã c o m u n i d a d e .
Convém destacar que. Domicio Proença Filho, na periodização de um possível Pós-modernismo literário no Brasil, engloba
no seu arco de abrangência a literatura brasileira surgida a
partir dos anos 50 , acentuando tratar-se de. "um pós-modernismo peculiar, que só • em certa medida concretiza dimensões próprias do Pós-modernismo caracterizado nos Estados Unidos da
América e na Europa".101* Só assim as características apresentadas com relação â poesia podem, fazer algum sentido na literatura brasileira, já que as vanguardas .estéticas radicais dos
anos 50/60, por.exemplo, dificilmente poderiam se reconhecer
nessa formulação.
Com base nesses dados, pode-se tentar uma aproximação
da poesia de Paes ao. põs-modernismo na literatura. De fato,
a poesia paesiana parece.enquadrar-se bastante bem em alguns
desses tópicos. "Metalinguagem","intertextualidade",
"paró-
dia", "ludismo verbal", um certo "ecletismo estilístico", aspectos tão salientados, atravessam o estudo aqui. feito sobre
a sua poesia. Ao contrário da perspectiva de.ruptura com o
passado tipicamente modernista - sobretudo do Modernismo inicial -, há em Paes um desejo de revisitar o passado. Daí as
441
retomadas de formas poéticas tradicionais, a principio parafrásticas, como nos dois primeiros livros do autor, a partir
de certo ponto porém predominantemente paródicas. Daí a reverencia a certos "mestres de poesia" ou a irreverência diante
de outros autores. Dal o constante diálogo intertextual com
textos de autores brasileiros e estrangeiros, modernos ou antigos, textos restritamente literários ou não.
No entanto, essas características, apontadas como
pós-modernas, pelo menos em termos de literatura brasileira revelam-se um tanto problemáticas. "Metalinguagem",
"intertextua-
lidade", "paródia", "ludismo verbal" são aspectos.presentes na
poesia de modernistas brasileiros paradigmáticos, como Mário
de Andrade e sobretudo Oswald. Poesia pau-brasil ë texto radical do segundo, em que todos esses aspectos encontram realizações de grande importâncià, subvalorizadas pela poesia imediatamente posterior, mas que iriam impregnar a poesia brasileira
a partir dos anos 50, tornando-se denominador comum de tendências tão diversas como o Concretismo, o Tropicalismo, a Poesia
Marginal, e outras tendências poéticas independentes, como a
do próprio Paes. São aspectos presentes na obra de grandes poetas, como Drummond e Manuel Bandeira, que vão do verso livre
modernista e do exercício com formas novas as formas mais tradicionais, retomadas em sentido parafrãsico ou paródico, portanto em termos de imitação de tipo classicizante
(bem menos
comum) ou distanciamento crítico tipicamente moderno.
A poesia de Paes parece filiar-se, portanto, ao que de
melhor o Modernismo
brasileiro produziu, e é daí que ela re-
tira muito da sua vitalidade criadora. As suas formas sintéticas e criticas, cheias de sátira, humor, ironia, estão em
442
Oswald e Drummond. A habilidade artesanal com as formas poéticas da tradição a braços dados com o experimentalismo, com a
inovação, estão em Drummond e Bandeira. Paes radicaliza essas
potencialidades, enxuga mais a forma, investe na sãrira como
meio de crítica cultural'ampla, sem deixar de dialogar com as
tendências que lhe são contemporâneas, absorvendo e subordinando as conquistas dessas tendências ã sua própria expressão.
Assim, o que.em Paes poderia se afigurar como temperamento poético tipicamente põs-moderno é mais propriamente herança modernista levada adiante. Somente se se considerar o põs-modernismo como uma continuidade de certas tendências- do Modernismo,
talvez até em direção ã exacerbação.- muito mais do que uma
ruptura inovadora, a instauração de um novo paradigma criativo -, ê que faz sentido aproximar Paes e outros, autores brasileiros do que.vem sendo tomado como expressão característica do Pós-modernismo literário no estrangeiro.
3.8.3
Conclusão
A epígrafe latina que antecede os poemas de Calendário
perplexo, cuja autoria é atribuída ao Arquipoeta de Colônia
(sêx. XII), resgata, na sua referência ao tempo,, matéria central deste livro de Paes, traços dominantes da poética paesiana: "Omnia tempus habent, et ego breve postulo tempus, ut
possim paucos praesens tibi, reddere versus". O poeta diz que
todas as coisas têm o seu tempo, e que precisa de um tempo breve
para, presente, poder recitar alguns poucos versos
(no caso es-
pecificamente ao interlocutor, como quer o vocábulo lat. "tibi",
"a ti"). O adjetivo "praesens", além. do. sentido temporal "presente", pode significar também "denodado", "resoluto",
"decidido".
443
Estão aqui presentes referências â poética da brevidade, da
concisão, ã poesia incisiva, ferina de Paes.
Calendário perplexo tem como temática o tempo, pondo-o
em foco através da problematização da sua segmentação em datas
referenciais que. celebram acontecimentos, pessoas, realidades,
tentativa característicamente humana de domar esse tempo, atribuir-lhe sentidos, aprisionã-lo numa circularidade, num ciclo
de recorrências que minimize a angústia do homem diante do
acaso, do desconhecido, do imprevisível. Paes põe em xeque os
sentimentos comuns, as perspectivas usuais ligados a certas datas, subvertendo o.reconhecimento fãcil, expondo os avessos
das celebrações. Ao invés de compartilhar da celebração eufórica e esperançosa do Ano Anovo, prefere manter-se distanciado e
questionador-. A alegria do aniversário é-minimizada pela consciência da aproximação'da morte. As comemorações oficiais são
vistas com certa irrisão, como é o caso do 31 de março, data
simbólica para: o regime militar. Jã as comemorações ligadas às
classes "subalternas", como.o 1? de maio, dia do trabalho,merecem especial carinho e consideração.. E assim se dá com tantas outras datas. Além disso, olhando-se agora .para a estrutura maior de Calendário perplexo, o poeta traz para o corpo de
um mesmo livro datas tradicionais como o Natal, Finados, o
dia do trabalho, ao lado de outras como o dia do contato, o
dia do diplomata, de importância bem mais restrita, e nessa
justaposição estranha de elementos de importância heterogênea
percebe-se a intenção proposital de relativizar as importâncias e questionar as convenções..
As preocupações temáticas mescladas ao tema maior.são
basicamente as mesmas observadas em trabalhos anteriores. Os
444
problemas políticos e sociais - presentes em poemas como "Dúvida revolucionaria",
"Etimologia", estudados anteriormente,
e ainda, por exemplo, "Dia do indio"-e "Almas brancas", abordando respectivamente a questão do índio e do negro - encontram-se lado a lado com poemas de caráter "metafísico", no sentido jã comentado anteriormente, como os.também já abordados
"Brinde" e "Aniversário". A preocupação de falar da própria
poesia, referindo-se a autores, parodiando.textos - a intenção
metalingüística e intertextual fundamental na poesia moderna e
fundamentei em Paes - revela-se em poemas como "Dicionário de
rimas", também estudado, "Recado tardio"
Alves), "Epitãfio"
(referência a Castro
(referência e reverência a Manuel Bandeira)
ou ainda "Metamorfose dois", sobre o dia dos pais
(chamando
ã cena o famoso texto de Kafka). Da mesma forma, os recursos
expressionais são fundamentalmente os mesmos de livros anteriores, acentuando^-se porém aqui uma volta definitiva ao verso
e a ausência de experimentação visual, presente ainda no trabalho imediatamente anterior. 0 caráter epigramático da poesia
paesiana permanece. Brevidade, contenção formai, mergulho nos
cernes da palavra poética, ludismo vocabular e intertextual,
humor, ironia, etc. estão novamente, aqui com toda a sua força
expressiva. Paes parece levar ao.limite os recursos de que se
tornou um verdadeiro mestre ao longo do seu trajeto de poeta.
445
NOTAS DE REFERÊNCIA
CARVALHO, Amorim de.
T r a t a d o de v e r s i f î c a ç i o
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sa.
Z
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Depoimento.
L e t r a s . 29 de s e t e m b r o de 1 9 . 9 0 .
derno
Fo1 h a d e S i o
pT 4 - 5 . ^
portugue-
Paulo.
~
Ca-
3
V Í t o r M a n u e l de A g u i a r e S i I v a d e s e n v o l v e
importantes
r e f l e x õ e s a c e r c a d o " c l as s i c i s m o " e d a p o s t u r a " c l á s s i c a "
diant e da l i t e r a t u r a ,
a b o r d a n d o e s t e s t e r m o s em s e u s v á r i o s
sentid o s , bem c o m o o i d e a l c l á s s i c o d a " i m i t a ç ã o d o s m e s t r e s " .
Cf.
AGUIAR E S I L V A , V í t o r M a n u e l d e .
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4
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Poemas
T 9 tf tf .
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Rio
Rio
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M E L 0 NETO, J o ã o C a b r a l d e .
J a n e i r o : José O l y m p i o ,
19
de
de
0
PAES .
op.
cit.
9
BOS 1 .
op.
cit.
10
PAES .
op.
cit.
1 1
op.
ci t
op.
11 o p .
15
rária .
16
Fo1 h a
de
Ja-
n o ta
Nova r e u n i ã o .
v . T^ p~ TÕ2 .
A n t o l o g i a poé t i c a .
p~! 1 9 5 - 6 .
3.ed.
7.ed.
2.
•
M 0 I S É S , Mas s a ud
Paulo : C u l t r i x ,
19
13
Rio
l i v r o do a l q u i m i s t a
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I n : PAES, J o São P a u l o : B r a s i l i e n s e ,
1986.
p . 13
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nota
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Frates chi
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aponta a Lit e r a t u r a como e x e m p l o c a r a c t e r í s t i c o
d e , na s u a
terminologia,
"sistema
conotado".
4 1
HJELMSLEV.
op.
cit.
p.
126.
4 2
Para detalhes acerca destas
formulações,
consultar
JAKOBSON, Roman.
Lingüística e poética.
In:
.
Lingüíst i c a e comunicação.
Trad.
Izidoro Blikstein
e Jose Paulo
Paes.
S ã o P a u l o i Cu 1 t r i x ,
1969.
C f . t a m b é m : CHALUB, S a m i r a .
Fun ç õ e s da l i n g u a g e m .
São P a u l o : A t i c a ,
1987.
4 3
CHALUB.
op.
^ 4 JAKOBSON.
c i t.
op.
p .
cit.
32 .
p.
130.
45
A r e s p e i t o das f o r m u l a ç õ e s
c o n t i d a s n e s t e p a r á g r a f o e no
anterior,
cf.
CAMPOS, H a r o l d o d e .
A p o é t i c a da v a n g u a r d a .
In:
A a r t e no h o r i z o n t e
do p r o v á v e l .
São P a u l o : P e r s p e c - - t i va,
19 7 7 - C f .
t a m b é m CHA LH ÜB . o p . c i t . , em e s p e c i a l o c a p í t u lo s é t i m o , s o b r e a f u n ç ã o meta 1i n g ü í s t i ca.
4 6
4 7
CAMP O S .
op.
cit.
p.
I52-3.
CHALUB.
op.
cit.
p.
49.
l f 8
C f . AGUIAR e S I L V A .
op. c i t .
p . 63 e
e n c o n t r a s u b c a p í t u l o ( i n t i t u l a d o " R e f u t a ç ã o da
na da f u n ç ã o p o é t i c a da
linguagem".
4 9
FE RREI RA.
p ! i c i a r " n a p . 3'35 0
Cf.
dedicadas,
ces .
neiro
op.
cit.
p.
410.
Cf.
a
palavra
"acum-
a b o r d a g e m m a i s d e t a l h a d a do " e p i g r a m a " n a s
páginas
n o p r e s e n t e e s t u d o , a o s e g u n d o l i v r o de Paes, C ú m p l i -
5 1
PAES.
op .
cit.
nota l6.
5 2
BOS 1 .
op .
cit.
p.
5 3
PAES .
op .
ci t .
5 4
MO 1 S E S
•
op.
18.
nota 2.
cit.
p.
19^-5.
5 5
F E R R E I RA .
5 6
BANDE 1 RA, M a n u e l .
E s t r e l a da
José Olympio,
1966~
162.
:
também
s s . , em q u e s e
teoria
jakobsonia-
op.
ci t .
p.
359.
vida
inteira.
"
~
Rio
de
Ja-
448
5 7
C H E VA L I E R , J e a n ; GHE ERB R A N T , A l a i n .
bolos.
T r a d . V e r a da C o s t a e S i l v a e t a l i i .
Jose Olymp i o,
1977.
p.
15-22.
5 8
FE RREI RA.
5 9
MO I S £ S .
5 0
FE RREI R A .
6 1
SHAKESPEARE, W i l l i a m .
Hamlet.
: Ve r b o ,
1972.
p.
91.
Lisboa
6 2
op.
6 3
op.
op.
cit.
op.
p.
p.
cit.
cit.
p.
p.
PEIRCE
67
PIGNATAR I .
apud
op.
cit.
p•
11.
6 9
op.
cit.
p•
11.
7 0
op .
cit.
p•
7 1
op .
cit.
p•
7 2
FERREIRA.
7 3
op.
ci t .
71+
op.
ci t .
p.
120 1 .
7 5
op.
cit.
p.
338.
7 5
PAES.
CAMP0S,
ma.
I n : PAES,
1967.
Orelhas
7 8
Alberti.
op.
p.
cit.
p.
2. e d. t r e v i s p.
11.
27.
2?.
00
I^J
op .
77
Semiótica e Literatura.
1 Co r t e z e Mo r a e s ,
19 79 .
cit.
6 8
op.
op.
Ricardo
277.
PiGNATARI.
p.
Trad.
129.
P I GN A T A R I , D ê c i o .
ampliada.
São P a u l o
66
329.
00
e
194.
p.
6 5
ta
898.
92.
op.
cit.
p.
cit.
op.
FE RREI RA.
Bh
cit.
j ) i c i o n i r.i o de s f m R i o de J a n e i r o
:
cit.
423
e
326.
438.
cit.
Augusto de.
José Paulo.
do
livro.
FERREI RA.
op.
B0 S I .
op.
cit.
BOS I .
op.
ci t .
ci t .
Anatomias:
An a t o m i a s .
p.
do e p i g r a m a a o
ideograSão P a u l o :
Cultirx,
1436.
7 9
8 0
81
p.
p.
244
e
FERREIRA,
op.
cit.
p.
1436.
256.
DIAS, Gonçalves.
Poesia.
ö r g . Manuel B a n d e i r a .
Rio
de J a n e i r o : A g i r ,
1965.
Co 1 . N o s s o s . C l á s s i c o s .
p. 1 1 - 2 .
Cf.,
ao f i n a l
do t e x t o ,
r e f e r ê n c i a a l o c a l e d a t a da r e d a ç ã o do
poema .
449
2
op .
8 3
FE R R E I R A .
1+
op .
5
6
7
8
c ¡ t
op.
cit.
c it.
10 3 7 .
op .
c it.
p•
880 .
op.
c i t.
p•
1316.
op .
c it.
p-
344 .
op.
c i t .
"FERREIRA.
op.
PAES
p.
nota
cit.
1 0 36 .
2
p.
7^3 .
9 0
C f . " E v a n g é l h o s e g u n d o S. M a t e u s " .
In:
Jesuralëm.
4? i m p r e s s ã o .
São P a u l o : E d i ç õ e s
e BÍBLIA Sagrada.
32. ed.
revista.
São P a u l o
linas,
1 9 7^ 91
PAES..
op.
cit.
92
FERREIRA.
op.
9 3
op.
cit.
p.
PAES.
9 5
FE RE I RA.
op.
9 6
op.
p.
ci t .
p.
cit.
cit.
123^-
10 .
97
NASCENTES, A n t e n o r .
portuguesa.
R-ro de J a n e i r o
98
Orelhas
PAES, José
do
livro.
99
HUTCHE0N,
Cruz.
Rio
cardo
1 0 0
op.
cit.
Paulo.
Dicionário
1 Livraria
Res í d u o .
p.
1 0 2
op.
cit.
p.
42 .
10 3
op.
cit.
p.
42 .
cit.
p.
op.
Paulo
:
Cultrix,
Trad.
1980.
Ri-
42-59.
P ROEN ÇA F I L H O , D o m í c i o .
Paul o : At i c a ,
1988.
10k
São
e t i m o l ó g i c o da
língu^
Acadêmica,
1955.
v~! 1 .
Linda.
P o é t i c a do p ó s - m o d e r n i s m o .
de J a n e i T o i I m a g o ,
1991.
1 0 1
São
1352.
556.
94
op.
cit.
A B Í B L I A de
Paulinas,
1989
: Edições
Pau-
44-45-
Pós-modernismo
e
literatura.
4
CONCLUSÃO
Quando se acompanha o trajeto individual do poeta José
Paulo Paes, percebe-se que esse trajeto se desenvolve muito
próximamente ao da poesia brasileira que lhe é contemporânea. .
Desde o seu livro de estréia no final da década de 40, a obra
do poeta estabelece um estreito diálogo com as principais tendências poéticas que vão surgindo no país ao longo da segunda
metade do século. O poeta não. ,' se mostra alheio ã produção a
sua volta, pelo contrário,
absorve muitos de seus aspectos do-•
minantes, incorporan do-os, de forma ãs vezes mais' ãs vezes menos individualizada, ã sua poesia. Essa constante tensão com
as poéticas suas contemporâneas, e,.ressalte-se, com as anteriores que ainda as impregnam de alguma maneira, como é o caso fundamental do Modernismo, perpassa todo o percurso de Paes.
A sua voz individual vai se construindo de livro para livro
numa dialética muito produtiva, de aproximação e afastamento
em relação ã poesia dominante em cada momento do trajeto.
A estréia literária de José Paulo Paes em livro se dá
no ano de 194 7, num instante em que está surgindo no país uma
geração de novos poetas - a chamada Geração de 45 - que, programáticamente, qüer postar-se de forma polêmica frente ao
Modernismo brasileiro, sobretudo na sua vertente primeira,
irreverente e revolucionária.
451
O Modernismo inicial dos anos 20 havia rompido com
grande estardalhaço, sob o estimulo das vanguardas européias
do começo do século, com o passado literario brasileiro imediatamente anterior, tido então como estagnado e preso a valores que não correspondiam mais ãs transformações que se estavam operando em todo o mundo e no Brasil. Sob as bandeiras
do antipassadismo e da liberdade incondicional de expressão,
o Modernismo da Semana de 2 2 saiu a campo para renovar a arte
nacional. No seu famoso balanço de 1942, Mário de ANDRADE sintetizou bastante bem as conquistas do movimento: "o direito
permanente ã pesquisa estética; a atualização da inteligência
artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional". Na poesia, a renovação traduziu-se, em traços gerais, na superação das formas poéticas pré-fixadas; na
incorporação
definitiva do verso livre, na libertação da lingua-
gem em relação ã camisa de força da estruturação sintática
tradicional, na utilização de uma dicção mais coloquial, mais
aproximada da fala cotidiana; no uso de um léxico sem restrições que, no limite, vai ã invenção de neologismos; na consagração do "poema-piada", com seu recurso ao humor e ã paródia,
como exercício de crítica e modo de minar o conceito tradicional do que é poesia; na ampliação do espectro temático, sobretudo através do mapeamento das várias realidades históricas,
geográficas, culturais que compõem o país, dos centros urbano-indus triais, cada vez mais vincados pelo moderno, dinâmicos'
e cosmopolitas em essência, ao meio rural mais afastado, marcado pelo arcaico, pelo primitivo.
Os desdobramentos do movimento nas décadas de 30 e 40
iriam significar um amadurecimento das conquistas esboçadas,
452
e o que havia de mais superficialmente panfletário e agitador
no instante de afirmação inicial vai cedendo espaço a um maior
aprofundamento em termos ideológicos e artísticos. O descritivismo excessivo e pitoresco a que o mapeamento do Brasil por
vezes chegou, o nacionalismo e a mitificação do homem, da paisagem, do passado brasileiros por alguns grupos de criadores,
com o seu muito de retrógrado e xenófobo, cedem espaço a uma
preocupação mais. unlversalizante com o que é humano. Problemas
mais amplamente sociais, políticos, existenciais, religiosos
passam a fazer parte da temática dos herdeiros imediatos do
movimento inicial. As conquistas formais são levadas adiante,
agora numa perspectiva menos coletivamente programática e mais
individualizada. A busca de uma linguagem própria e essencial
substitui a experimentação polêmica.
É sobretudo com o rosto agitador, anárquico e histriônico do Modernismo que a Geração de 45 vai polemizar. Numa certa perspectiva, trata-se de um movimento esteticamente
retró-
grado, desejoso de resgatar o tom de circunspecção elevada,
tradicionalmente atribuído ao poético, que o movimento de 20
havia corroído. O "poema-piada", instrumento por excelência
dessa corrosão, torna-se o alvo central da abominação dos novos poetas. 0 coloquialismo, aspecto central da linguagem anti-tradicional modernista, passa a ser evitado. Em oposição,
prega-se o retorno a uma dicção mais culta e séria e, em muitos autores, âs formas e metros da tradição da poesia. O nacionalismo literário e a preocupação político-social cedem
espaço a um centramento maior no sujeito, que se extravasa
preferencialmente através de uma expressão carregadamente
figurada, ou ainda na própria linguagem, de que o formalismo
3 70
e o rebuscamento de tantos textos são marcas evidentes. Há
muito de neo-romântico, neo-parnasiano e neo-simbolista na
poesia que se faz então, multiplicidade e contradição aparentes quando.se percebe o traço comum - o anti-modernismo - que
caracteriza essa poesia. Estes alguns dos traços de uma geração que procurou., se definir muito mais pela postura de oposição a um instante literário anterior do que pelo investimento
em programas poéticos claramente
delineãveis.
O momento da Geração de 4 5 precisa também ser visto enquanto um momento de transição que transcende a produção 'dos
poetas que a ele mais exclusivamente
ficaram
circunscritos.
Poetas surgidos no momento modernista e poetas que virão a se
destacar nas décadas de 50 e 60 pela sua atuação nas vanguardas estéticas e políticas realizam uma poesia que por vezes sê
identifica bastante com a produção mais típica desse instante.
Parece haver al todo um ambiente poético, aliás comum â arte
ocidental do pós-Guerra, que unifica a poesia desses anos, cristalizando-se porém na poesia dos nomes que ficaram definitivamente ligados â "Geração".
É nesse contexto, portanto, que vem a público o primeiro
livro de José Paulo Paes, O aluno, de 1947. A poesia aí contida,
toda ela de contornos lírico-subjetivos, oscila entre a herança recente do Modernismo e o apego a um labor poético de caráter tradicionalizante. poemas metrificados fazem par com outtos em
versos polimétricos ;
formas tradicionais, como a canção, a ba-
lada, o soneto, dividem espaço com composições, de estruturação
mais livre. Permeando tudo, a influência - aliás confessada de importantes modernistas. O poeta estreante, nesse breve
trabalho inicial, parece experimentar com as possibilidades
454
que a tradição até então ; acumulada - incluindo nela o próprio
Modernismo - lhe põe ã disposição.
E este é provavelmente o ponto de entrada para a compreensão do "espírito" geral deste primeiro livro de Paes. 0
poeta assume a identidade de um "aluno" de poesia e, como tal,
põe-se a exercitar nas possibilidades poéticas que se encontram ao seu alcance. Nessa condição, ele elege alguns
"mestres"
cuja lição pretende seguir mais próximamente. São vãrios os
poetas explicitamente citados nos poemas e que podem potencialmente preencher esse papel: Rimbaud, Neruda, Bandeira, Murilo,
Drummond. Murilo Mendes e Drummond, aliãs, são homenageados
com especial atenção em poemas feitos à sua "maneira". Mas vem
de Drummond a influência central sobre o novo poeta, e ë ele
quem vai ser alçado ã posição de "mestre" maior. Ecos da sua
poesia podem ser. ouvidos na maior parte dos poemas - o desejo
de diálogo, com o grande poeta é inconteste. Até o tom de amargura, de negatividade, de. angústia existencial que perpassa
boa parte das composições, se de um lado é característica do
momento cultural, comum a tantos autores, por outro compõe dívida a um certo modo. drummondiano de sentir.
Hã traços de uma.postura que se pode dizer "classicizante" atravessando o livro de estréia de Paes. É claro nele
o intuito de. "imitação" de modelos, o que imediatamente remete
a certos postulados da poética clássica, modelos no entanto
curiosamente buscados entre alguns mestres do Modernismo brasileiro e da poesia moderna ocidental. Some-se a isso a inexistência, por parte do poeta, do desejo de romper com o passaído
ou experimentar com formas absolutamente novas, como aliãs o
fizeram em certa medida alguns desses autores. 0 arrojo expe-
455
rimental, a irreverência, a iconoclastia deles não são resgatados pelo "aluno". Assim, este acaba mantendo uma posição um
tanto ambígua frente aos "mestres". No final dos anos 40, o Modernismo é jã matéria da tradição da poesia brasileira, como o
são as formas poéticas do passado que o poeta utiliza em algumas composições. Por este aspecto., apesar da ausência de um
anti-modernismo de superfície em sua poesia, percebido em tantos nomes desse momento, Paes encontra-se.bastante
vinculado
ao espírito da geração em que estréia.
A partir do entendimento dessa condição de "aluno" de
poesia assumida pelo próprio Paes, pode-se chegar a um outro
aspecto importante da poesia do primeiro livro e que vai ecoar
como aspecto determinante da poética paesiana ao longo do seu
trajeto de escritor. Enquanto "aluno", Paes é sobretudo um
"poeta dos livros". Lembre-se aqui do verso " s ó m e restam os
livros", de um dos poemas de angústia do autor, que nos sugere a expressão. O caráter propositadamente intertextual do primeiro livro é muito forte, a que se deve somar a intenção metalingüística de.um poeta que desde cedo se põe .a refletir sobre o fazer literário. Paes dialoga intensivamente com textos
e autores: cita nomes, retoma motivos seus, refere-se a poemas
específicos, parafraseia modos de compor. E nesse diálogo entrevê-se, inevitável, também o crítico de poesia. A consciência do labor.literário vem.para primeiro plano, ladeando com o
lirismo subjetivo patente dos textos. Não se trata exclusivamente de uma poesia de expressão de sentimentos, centrada fundamentalmente no sujeito. Essa perspectiva partilha espaço com
um centramento na própria poesia enquanto problema de poesia.
Ou ainda, conciliando os aspectos: um centramento num sujeito
3
56
poético que quer afirmar-se enquanto autor entre autores. Se
há extravasamento emocional nos poemas de angústia de 0 aluno,
há também desejo de afirmação poética de um poeta que se debruça sobre os livros dos "mestres" para buscar, no exercício
árduo da poesia, os.caminhos de uma dicção mais pessoal e madura .
0 segundo livro, Cúmplices, de 1951, enquadra-se igualmente dentro do ambiente poético da Geração de 45, aliãs de
forma até mais integrada que o livro anterior. Nele os poemas
de corte tradicional predominam. Metrificação, padrões rimicos
recorrentes, formas poéticas tradicionais
(soneto, madrigal,
canção, ode, epigrama), metaforização, imagens e outros aspectos de composição informam um tom geral que se pode dizer tradicionalizante., e que se sobrepõem aos modos mais livres de
compor herdados.ao. Modernismo. A presença marcante da poesia e
de poetas modernistas em 0 aluno, que dava ao primeiro livro
um carãter de. maior tensão em relação ã poética dominante do
período, atenua-se aqui.
A preocupação obsedante. do estreante em pautar a sua
produção por modelos eleitos deixa.de ser o aspecto temático
central. 0 lirismo subjetivo permanece., porém, desloca sua direção. Não é mais um "eu" poético que, no contraponto amoroso
com vozes poéticas consagradas, busca construir a sua voz individualizada o que vinca o livro, mas sim um "eu" em diferente estado amoroso, que se volta agora para a figura da mulher
a fim de, neste novo contraponto, afirmar outro aspecto de
sua personalidade.
A cumplicidade não se estabelece mais entre o poeta e
seus autores queridos, entre o "aluno" e seus "mestres", mas
457
sim entre o "homem" e a "mulher", entre o poeta e Dora. Dora
é a figura feminina que atravessa, nomeada ou não, quase todos
os poemas na condição de uma segunda pessoa com quem dialoga
o sujeito. É também, o que a distancia de Natércias, Lidias,
Clões e outras mulheres da convenção do lirismo amoroso, mulher concreta, real, de carne e osso, noiva e depois esposa do
homem José Paulo Paes. Esse amor por Dora, um amor positivo,
afirmativo, todo ele construção e libertação, ë a matéria central de Cúmplices.
Se a intertextualidade enquanto procedimento poético e
a intenção metalingülstica vão estar um tanto quanto eclipsadas neste segundo trabalho, estes aspectos voltam com toda a
carga em Novas cartas chilenas, de.1954. No terceiro livro de
Paes, quase tudo ë desejo de diálogo com outros textos.
O próprio título remete jã de início a texto de referência, as Cartas chilenas, atribuído hoje com certa segurança
ao ãrcade mineiro Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de um poema
de intenção satírica.em que o poeta ataca desafetos seus através de um ponto de vista moralizante, que não deixa de ecoar
também toda uma problemática de ordem política. Deste texto,
Paes resgata justamente o intuito satírico, acentuando sobremaneira a crítica, política conseqüente, de ampla, abrangência,
somando a ela também a. perspectiva social. Com a arma afiada
dessa crítica satírica, Paes volta-se para o painel da história pátria, apreendido na sua condição de grande texto.
A crítica político-social permitida pela sátira vai se
estabelecer fundamentalmente na tensão, dos poemas que compõem
o livro de Paes com textos como Os Lusíadas, a oração "pai
Nosso", a "Carta" de Caminha, as "crônicas" do descobrimento
458
e da colonização, os vários outros relatos da história nacional. Ë na problematização da visão ideológica desses textos,
feita em muitos casos via paródia explícita, carregada de humor, ironia, sarcasmo, irrisão, que Paes vai tecendo a sua cri
tica, toda ela voltada contra os poderosos que presidem a história e a sua textualização e em defesa dos que
secularmente
sofrem,, neste país, sob o tacão daqueles, sem espaço para fazer ecoar a sua voz. Cada poema vai, cronologicamente,
dando
conta de determinado instante dessa história, do descobrimento
ao movimento dos tenentes na década de 30, enfocando a opressão, a miséria moral, social e material, o sufocamento das
insurreições, a arrogância dos que estão e permanecem no poder
fazendo falar aquilo que não foi dito. Nesse trajeto, Paes vai
deixando clara a sua posição de homem politicamente
crítico
situado,
em relação ao. passado, portanto crítico em relação a
um presente que não revela configuração social e política muito distinta.
Ë a partir de Novas cartas chilenas que Paes começa a
usar uma arma.de que se tornará mestre em próximos trabalhos:
o humor. Ë sob o signo do humor, como revela o próprio autor
no seu depoimento, que ele envereda pela crítica política e
social, crítica que futuramente receberá contornos mais amplos
voltando-se para os aspectos mais gerais da cultura. Num certo
sentido, Paes é discípulo dos mais habilidosos de Oswald e
Drummond e também de certo Murilo Mendes inicial, que no momento modernista deixaram vários exemplos incisivos daquilo
que se chamou "poema-piada". Em meio aos finos exercícios paródicos do terceiro livro, o humor surge com muito impacto
critico, misturando-se â ironia e ao sarcasmo mais aberto.
459
Porém nem tudo ë absolutamente impregnado de humor em
Novas cartas chilenas. Este serve para ridicularizar os poderosos e seus expedientes, mas não constitui modo ideal de abordar a dor dos que são condenados.a serem simples objetos da
história de injustiça e exploração que ê afinal a nossa própria. Hã um tom de amargura dolorosa e revolta em muitos poemas,
compondo curioso contraponto em relação àquele outro tom.
As Novas cartas chilenas. refazem, num certo sentido, o
caminho percorrido por textos poéticos modernistas de certo
fôlego como Pau Brasil, de Oswald de Andrade, e História do
Brasil, de Murilo Mendes. Como neles, hã no texto de Paes um
desejo de abarcar a história nacional através da poesia, inventariar de alguma forma o passado do país, transformando-o
em matéria literária. No entanto, a consciência política e social de Paes é mais aguçada, sua visão, por trás do humor e da
paródia, ë bastante mais corrosiva diante do problema da opressão. Oswald e Murilo estão circunscritos ainda a um instante de
valorização - o que não quer.dizer que não sejam críticos
diante das questões do país, pelo contrário - do nacional e do
primitivo. Em Paes parece estar mais presente aquela "consciência do subdesenvolvimento". de que fala Antonio CANDIDO, referindo-se ã mudança operada na intelectualidade brasileira
diante da realidade nacional a partir de meados do século.
Novas cartas chilenas marca o ingresso do poeta na poesia de engajamento político que vai marcar a produção de boa
parte da arte brasileira nas próximas décadas. Significa, por-^
tanto, um grande afastamento diante da poesia da chamada Geração de 45, com a qual Paes, aliás, apesar da cronologia, sempre
esteve em relativa tensão. O poeta lírico dos livros iniciais,
460
reverente ä tradição, cede espaço ao poeta satírico e paródico, preocupado em sair do âmbito mais restrito do sujeito em
direção ao coletivo.
Os anos 50/60 são anos permeados por uma certa polarização artística feita em termos da oposição entre arte social
e politicamente engajada e arte de experimentação formal. Neste instante, Paes, que irá fundir ambas as possibilidades em
obras futuras de reconhecida maturidade, parece
pender para
o primeiro pólo, a despeito da sua vinculação com.certa herança do Modernismo, experimental ã. sua maneira. A poesia de Novas
cartas chilenas estã muito longe da poesia de experimentação
formal que Mário Faustino, Ferreira Gullar.e os poetas que depois teriam seus nomes definitivamente ligados, ao Concretismo,
Haroldo e Augusto de Campos e Décio pignatari, estão ensaiando
desde o início da década. O primeiro movimento de vanguarda,
o Concretismo, vai estourar enquanto tal pouco tempo depois,
no ano de 1956, abrindo caminho a outros:que irão povoar a arte
nacional nos anos seguintes, como o Neoconcretismo, a Poesia
praxis, o poema Processo. Mas os seus reflexos concretos na
arte paesiana só .se farão sentir bem posteriormente. É a perspectiva de participação política, na linha da que foi reunida
depois no início dos 60 na publicação "Violão de Rua" e herdou
seu nome, a que atrai o autor agora, e que vincará profundamente também o livro seguinte.
Epigramas, de 1958, vem a público, somente em 1961, incorporado ao livro poemas reunidos. Trata-se um livro de assíduo engajamento político-social, no qual o poeta vai deixar
ainda mais clara as suas opções ideológicas.
Se no trabalho anterior o problema da opressão e da
injustiça eram vistos na sua permanência ao longo da história,
461
agora é para o presente que o autor vai se voltar. A sociedade, nas metáforas centrais dos poemas.de engajamento, encon:-tra-se dividida entre "lobos" e "cordeiros", entre opressores
e oprimidos, em outras palavras. O poeta.toma, obviamente, o
partido dos segundos, como jã o fizera explicitamente em Novas
cartas chilenas, atacando agora todos os representantes possíveis do poder: políticos, militares, grandes capitalistas, a
religião, a pequena-burguesia, etc. Ele transforma a sua palavra poética em palavra política, faz do poema um modo de pregação ideologicamente orientada - u m "sermão", nos termos de um
dos textos do livro. O intelectual de esquerda, que em momentos limites chega inclusive a pregar a luta armada como modo
revolucionário, vem para o primeiro plano agora, comungando de
uma postura que ë comum a tantos intelectuais de importância
nesse momento da história brasileira.
A passagem dos anos 50 para os 60 é instante de acirramento das lutas políticas e sociais no pais. Até antes do golpe de 64 tinha-se como muito provável, em muitos segmentos da
inteligência brasileira, uma revolução social de amplo fôlego
no Brasil. Depois de 64 a luta seria mais de resistência, mas
agora urgia conscientizar as classes populares, buscar um modo
de comunicar a elas contéúdos politicamente orientados, e a
arte surgia para muitos como um instrumento possível para esse
fim. Os Centros Populares de Cultura
com a colaboração
(os CPCs) da. UNE contaram
de importantes nomes nesse intuito de ins-
trumentalizar a arte. José Paulo Paes estã entre eles nesse instante:. O espirito de engajamento que perpassa todo este Epigramas precisa ser entendido no confronto com esse pano de fundo.
0 humor e a paródia, instrumentos centrais da critica
de Novas cartas chilenas, abrandam-se aqui. 0 tom dominante agora
462
é de circunspecção, como se a miseria social e a luta política
fossem questões tão presentes e dolorosas na consciência do
artista que o riso se revelaria um expediente como que escuso
e indigno da causa em questão. Estes aspectos da poética paesiana, que voltarão com grande ímpeto nos livros futuros, limitam-se a poucos dos poemas de Epigramas.
No entanto, a preocupação com o fazer literãrio e o
jogo com outros textos - aspectos que vão se revelando centrais
na poesia de Paes - permanecem. Ha um questionamento
constante,
neste momento de luta, do papel do poeta e da poesia
(e por
extensão do artista e da arte) na mudança da sociedade. Äs vezes a visão cerca-se de pouco otimismo, como se o artista estivesse subordinado aos poderes que mantêm o "status quo". No en.—
tanto, o que predomina, pela própria orientação
do poeta e seu
desejo de empenho,.,ê a crença no papel reformador da arte no.
processo amplo das reformas
sociais.
A intertextualidade permeia vãrios textos, sendo que em
alguns deles o engajamento- politico-social deixa de ser a tônica para que a própria poesia surja como tema. Poe, Baudelaire,
Nazim Hikmet, Jacques Prevért, Tolstoi, entre outros, são nomes que recebem referência. 0 mesmo acontece com a Biblia,
aliãs, rica fonte de metáforas e outros recursos de linguagem,
que o poeta porém desloca do teológico para o plano político.
O "poeta dos livros" faz-se presente também num instante onde
a tônica poderia recair exclusiva sobre o intuito de participação. A poesia e a literatura são sempre matéria de poesia em
Paes.
Os procedimennos literários encontrados em Epigramas são
os mais diversos, porém longe estão dos caminhos da experimenta-
463
ção formal que outros estão preferindo trilhar nesse instante do desenvolvimento da poesia brasileira. O verso, livre ou
metrificado, é unidade poética central da poesia de Paes. Como
nos livros anteriores, Paes é artesão nas formas e metros tradicionais (soneto, balada, ode; redondilhas, decassílabos; padrões estróficos e rimicos) e nas possibilidades mais livres
da poesia.que o Modernismo e desdobramentos difundiram. No con^
traste com as opções da vanguarda estética, hã muito de convencional, retórico e de discursivo em Epigramas - talvez típicos
de uma arte que busca comunicar conteúdos claros a fim de conscientizar -, sem que no entanto a expressão se espraie necessariamente flãcida e excessiva. O poeta visceralmente epigramático de livros futuros - atente-se porém ao título do livro presente - ensaia alguns passos jã aqui.
Porém é em Anatomias, de 1967, que o veio epigramático
de Paes vai se manifestar com maior vigor. Síntese, enxugamento das formas, experimentação devidamente dosada e fundida ao
intuito de crítica e comunicação clara com o leitor - portanto
distância do experimentalismo mais hermético -, humor, paródia,
ironia, jogo verbal são elementos que compõem este livro, passo
definitivo em direção a uma dicção madura e muito pessoal que
deverá alimentar também os livros posteriores do autor. Hã muito de artesanato e despojamento nessa poesia, a serviço de uma
crítica demolidora, voltada com igual vigor para a política,
para a sociedade, para a cultura - em suma, para o homem e
seus problemas. O entusiasmo mais apaixonado e por vezes ingênuo do poeta engajado, nas simplificações dos problemas que estrategicamente opera, cede lugar a uma perspectiva mais distanciada e menos afetivamente envolvida, sem que o caráter de par-
464
ticipação se perca, pelo contrário, conseguindo inclusive que
ele se potencialize.
A influência do Concretismo
(que. poema dedicado aos
poetas concretos somente confirma), devidamente absorvida e
subordinada ãs intenções de Paes, é aspecto central nesse novo
livro, e que sõ acentua a dimensão dialõgica do seu trabalho:
experimentações visuais; centiramento na palavra como elemento
poético fundamental; ludismo verbal que se manifesta nos trocadilhos e jogos com frases feitas, na fragmentação de vocábulos, na criação de neologismos; intertextualidade e metalinguagem insistentes. Se o verso encontra-se presente ainda em
alguns poemas, trata-se de um verso muito pouco
enxuto ao máximo. Tudo é síntese, condénsação
economia de meios em
discursivo,
expressiva,
Anatomias.
O humor e a paródia retornam com.muito vigor. O enxugamento formal ê todo ele dirigido para a contundência critica
via riso. 0 "poema-piada" modernista, que Paes recuperara jã
em poemas de Novas cartas chilenas, tem em Anatomias exemplos
dos mais felizes. Oswald de Andrade surge aqui como referência
básica, curiosamente também apontada pela Poesia Concreta. Assinale-se ainda que igualmente para o Tropicalismo desse final
de década e para tantos poetas da chamada Poesia Marginal que
irá surgir mais para a frente, ê Oswald recuperado, de diferentes maneiras, como criador paradigmático.
Com o "poema-piada" reciclado através dos novos meios
expressivos conquistados pela vanguarda estética, Paes têm
em suas mãos um instrumento ideal para o exercício de uma critica participativa incisiva. Relembre-se: "anatomê"
significa
originariamente fim grego "incisão", "dissecação". Portanto, ê
como um "dissecador" que tem em mãos
o gume de um verbo afia-
465
dissimo que o poeta se debruça sobre o corpo da sociedade e
da cultura, da arte e da existencia, fazendd ver, com golpes
"incisivos", a materia interna de que são feitos.
Os caminhos abertos em Anatomias.recebem continuação
em Meia palavra,.de. .1973. A síntese ideal entre poesia de experimentação e participativa encontrada no trabalho anterior revigora-se aqui. Preocupações temáticas e recursos expressivos
evidentès naquele livro reiteram-se de forma madura neste.
0 titulo do trabalho é igualmente significativo em termos das perspectivas poéticas assumidas pelo autor, sobretudo
num momento em que a
repressão política e a censura ã impren-
sa e ãs artes, apôs a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968,
o chamado golpe dentro do golpe, são
devastadoras. Neste con-
texto político-cultural, "meia palavra" basta para os bons entendédores, e ë "meia palavra" o que o poeta vai dar, tanto no
plano da expressão, econômica, sintética, como no dos conteúdos.
0 subtítulo do livro, "cívicas, eróticas e metafísicas",
aponta para os veios temáticos centrais do trabalho: os problemas políticos e sociais, que preocupam o autor desde Novas cartas chilenas, a partir de meados dos anos 50; o amor, não mais
nas cores positivas do lirismo amoroso do . segundo livro Cúmplices; e as questões existenciais, presentes jã na poesia inicial de O aluno, e de forma difusa ao longo dos outros trabalhos, como a morte, o tempo, as angústias do homem, etc. E, entremeando os poemas assim temáticamente tripartidos, a poesia
enquanto tema, que não deixa de ir pontuandó: sempre tudo.
Os recursos expressivos são similares aos de Anatomias.
Todas as possibilidades lã presentes encontram-se aqui também,
acentüando-se porém jã um retorno a procedimentos e modos ante-
466
riormente presentes na poesia do autor: da experimentação visual e do trabalho centrado na palavra ao poema em versos, estrofes.e com rimas; do humor rasgado, da paródia intertextual
e da ironia aos poemas de„sabor mais circunspecto e amargo.
Unificando tudo, a expressão enxuta, epigramática - enfim, a
"media palavra" .
Resíduo, de 1980, nada acrescenta em termos de novidade
aos dois trabalhos anteriores. O poeta, naqueles livros, parece ter chegado a um patamar definido, atingido, portanto,, a
sua dicção poética mais própria e madura. Resíduo ë mais uma peça desse ciclo.
O titulo,•aliãs, parece insistir nisso. Num dos sentidos dicionarizados, "resíduo" ë o "fundo", o "âmago", a "raiz";
o modo expressivo mais essencial ao poeta foi enfim atingido.
Mas "resíduo" é também "sobra", "resto", como se na..oficina
que produzira Anatomias e Meia palavra ainda restasse algo que
agora enfim viesse a público. 0 termo define bem esse carãter
do livro, que reitera por um lado as conquistas temáticas e
formais da maturidade poética do autor, mas por outro nada parece acrescentar ao que jã fez naqueles livros. Percebe-se uma
estabilização no trajeto do poeta, com o que ela significa de
positivo ao apontar para uma maturidade atingida e para conquistas que se cristalizam, e de mènes .positivo, pela definição de uma "maneira" que em desdobramentos menos vigorosos pode-se tornar
"amaneiramento".
A Resíduo segue Calendário perplexo, de 1983, livro
em que todos os poemas se encontram subordinados a um núcleo
temático central, no caso, ã questão do tempo segmentado em
datas significativas. A várias das datas do calendário, datas
467
de significado
mais ou menos ; restrito em termos pessoais ou
coletivos, o autor dedica um poema, poemas que vão compondo
verdadeiras dissonâncias em relação ao espirito que convenciot
nalmente cerca as datas a que se referem.
Calendário perplexo significa uma volta ao verso como
unidade poética central, que nunca esteve ausente dos trabalhos
anteriores, mesmo no momento mais radical de Anatomias, e um
afastamento da exploração de recursos visuais. Tudo aquilo que
nos livros anteriores poderia significar uma' divida clara aos
recursos concretistas,, mesmo que devidamente absorvidos pelo
poeta epigramático, está ausente neste trabalho. A expressão
poética, depois dos exercícios com recursos não verbais e com
outros que reduziam o verbal ãs suas formas mínimas, resgata
o verso mais dicur.sivo sem abrir mão do enxugamento e da contenção.
Np mais, a perspectiva é a mesma daqueles trabalhos:
humor, ironia, artesanato verbal, ludismo, intertextualidade,
metalinguagem. Tudo sob medida para os contornos precisos de
uma palavra poética sempre muito critica e comunicativa.
Os anos 70 e 80 compõem, na poesia brasileira, um momento que diluição e termo
das utopias políticas e estéticas
que dominaram a produção literária das duas décadas anteriores.
Se aqueles vários movimentos que pipocaram ao longo dos anos
50 e 60 - tão diferentes entre si, sublinhe-se - tinham em comum afinal a crença numa produção poética de abrangência coletiva, militantemente^agressiva e polêmica, esse tipo de atuação
cultural, que em certo instante dos 70 airida fervilha a seu
modo na Poesia Marginal, sõ que jã sem o caráter programático
e orientado das décadas anteriores, perde
o fôlego de vez, pas-
468
sando a poesia a manifestar-se novamente agora sobretudo em
termos de poéticas individuais, mais abertas ãs influências
acumuladas, sem a necessidade de inovar a todo o custo e experimentar, e tão pouco de subordinar a criação a uma instrumentalização política por vezes castrante e excessiva.
A produção mais madura de José Paulo Paes sintoniza-se
bem com esse ambiente poético. Tendo absorvido, â sua maneira,
os problemas colocados pelas tendências de experimentação formal e de engajamento político-social, e dando respostas poéticas bastante próprias a eles, ela vai afirmar-se justamente na
sua independência-em relação aos núcleos mais dogmáticos dessas tendências. Define, portanto, um caminho pessoal e cada
vez mais distante de possíveis ortodoxias.
As conclüsões apresentadas até o momento permitem perceber a trajetória-poética de Paes integradamente ao desenvolvimento da aqui chamada moderna poesia brasileira. Como se foi
observando, trata-se de uma obra que se constrói ao longo do
tempo, conquistando pouco a.pouco, a partir de aproximações e
afastamentos sucessivos em relação ãs tendências dominantes em
cada instante do percurso, a sua expressão mais individualizada. Seria agora a ocasião de procurar apreender esta poesia em
alguns de seus traços dominantes, de seus aspectos mais essenciais, procurando-se manter uma maior distância frente ao enfoque mais estritamente, cronológico, que preserva as características próprias de cada um dos livros. .
A poesia de Paes é fundamentalmente uma poesia que se
faz num processo de constante diálogo com a própria poesia.
Esse diãlogo, como se acentuou sobremaneira ao longo de todo
este estudo, se estabelece em relação ãs tendências modernamente
469
dominantes da produção poética brasileira. Mas se define também a partir de outros ângulos que o próprio espaço intertextual estabelecido continuamente pela palavra de Paes permite
vislumbrar. Paes ê, como se formulou anteriormente, .um "poeta
dos livros". Basta conferior a quantidade de referências a textos, a autores, a procedimentos, a formas poéticas - e não só
de fontes brasileiras - para se constatar a
.afirmação. Paes é
um finíssimo leitor, e traz para dentro do seu texto, de forma
explicita, o produto da sua leitura. A poesia, a literatura,
a própria textualização da realidade em suas vãrias possibilidades, como é o caso do texto, da história, da crônica político-social, etc. , são sempre matéria de poesia em Paes.
Situando-se de modo agudamente consciente em relação a
esses aspectos, refletindo sobre o labor composicional, sobre
o papel do poeta e da literatura
(e, por extensão, do artista
e da arte), explicitando os processos de construção.do próprio
autor, suas opções poéticas, seus posicionamentos ideológicos,
sua poesia revela ainda o carãter marcadamente metalingüístico
que a impregna. Metalinguagem e intertextualidade.são palavras-chave, portanto, para o enquadramento da produção poética
de Paes. Se são insuficientes para defini-la distintamente em
relação ã produção de outros autores, jã que boa parte da melhor
poesia moderna se faz pautando-se de forma programática por
essas preocupações e intenções, fazem de Paes um poeta em franca
sintonia com algumas . propensões fundamentais da poesia do seu
tempo.
Mas esse diálogo apontado de Paes com textos e autores
precisa ser visto nos modos que ele vai assumir - e ai o carácter mais próprio da sua obra pode ser melhor conferido. No
3
70
instante inicial da sua produção literária, o diálogo desloca-se para o eixo das semelhanças. 0 Paes inicial assume-se
enquanto um "aluno" de poesia que vai procurar a sua expressão a
partir da imitação de alguns "mestres" eleitos e do resgate
de formas e procedimentos da tradição. 0 "aluno" começa a deixar essa sua condição primeira, a definir-se gradualmente cada
vez mais um "mestre", somente quando essa orientação começa a
se alterar: do eixo das semelhanças, o pêndulo desloca-se para
o das diferenças. E a diferença, em Paes, vai dimensionar os
aspectos mais vitais da sua dicção da madureza - a dissonância,
o distanciamento, a critica ai entranhados, manifestados através do humor, do sarcasmo, da ironia, da intenção satírica e
paródica, dos lances mais cinzentos de amargura
circunspecta
e por vezes quase .niilista, e expressos através de formas extre
mámente enxutas e concisas. Ë somente quando se liberta do lirismo-subjetivo inicial, realizado â sombra de outros autores
e da tradição, e do engajamento apaixonado e otimista de certos
instantes da sua poesia política, com o
seu muito de retórico
e discursivo, que Paes.vai definir a sua produção mais vigorosa
Os aspectos apontados
concementemente
ao poeta parecem ca
sar-se bem com as outras facetas da sua personalidade
literá-
ria. 0 desejo de diálogo com outros autores e textos, estabelecido de forma distanciadamente critica, é comum também ao ensaísta e ao tradutor. Ambos aproximam-se de textos alheios para, a partir deles, através do filtro duplo da razão e da sensibilidade, estabelecerem novo texto.
Finalmente, se fôssemos situar Paes em relação â poetas
e tendências da poesia brasileira - se fôssemos definir o lugar de Paes na poesia do pais -, teríamos de vê-lo como um
471
autor q u e se e n c o n t r a n u m p o n t o de c o n f l u ê n c i a d e a l g u m a s d a s
perspectivas mais . significativas dessa
poesia.
Num certo sentido, Paes é herdeiro d i r e t o do
Modernismo
combativo, polêmico, irreverente, agitador, experimentador
O s w a l d de A n d r a d e e d o D r u m m o n d i n i c i a l . A s f e l i z e s
de
atualiza-
ç õ e s que e l e faz do " p o e m a - p i a d a " m o d e r n i s t a , c o m o o seu m u i t o
de humor, p a r o d i a , distanciamento c r i t i c o , forma.de que os dois
a u t o r e s f o r a m p o e t a s e x i m i o s , é um p r i m e i r o í n d i c e d i s t o . Some-se ainda a esse aspecto a tendência ã consião, ã
síntese,
ao c o n d e n s a m e n t o da e x p r e s s ã o , t ã o f o r t e s , n a p o e s i a de P a e s ,
e q u e t i v e r a m em O s w a l d um a u t o r p a r a d i g m á t i c o e i n a u g u r a l n a s
l e t r a s b r a s i l e i r a s . O s w a l d é um m e s t r e no u s o de f o r m a s e m e t r o s c u r t o s , ideais p a r a o s seus i l u m i n a d o s i n s t a n t â n e o s p o é t i c o s . D r u m m o n d , i g u a l m e n t e , se e x p r e s s a a p r i n c i p i o p o r m e i o de
formas m a i s b r e v e s . . O s d o i s a u t o r e s são a i n d a m e s t r e s do despoj a m e n t o v e r b a l e da i n c o r p o r a ç ã o d o c o l o q u i a l , q u e em P a e s tom a f o r m a s m u i t o p r ó p r i a s . D r u m m o n d e n t r a a i n d a com a a t i t u d e
" g a u c h e " , d i s t a n c i a d a e i r ô n i c a , q u e n o l i m i t e se t i n g e de c o r e s m a i s a m a r g a s de a n g ú s t i a , c e t i c i s m o , n e g a t i v i d a d e .
tem m u i t o d e s s a a t i t u d e n o s e u m o m e n t o m a i s v i g o r o s o
Paes
como
criador.
Num certo sentido herdeiro de Oswald e Drummond quanto
â c o n c i s ã o , ao d i s t a n c i a m e n t o i r ô n i c o e a o d e s p o j a m e n t o
poéti-
c o , P a e s , n o e n t a n t o , v a i a t u a l i z a r e s s e s a s p e c t o s e m nova
c h a v e . A s s o l i c i t a ç õ e s d e e n g a j a m e n t o c r í t i c o de seu t e m p o , a
que o p o e t a se r e v e l a m u i t í s s i m o
sensível, vão orientar esses
e l e m e n t o s em d i r e ç ã o a u m a a t u a ç ã o s a t í r i c a s i s t e m á t i c a , cond e n s a d a m e n t e v i o l e n t a em a l g u m a s d e suas f o r m u l a ç õ e s . E o m e lhor d e s s a e x p r e s s ã o v a i se o r g a n i z a r m a i s
distanciadamente
4 72
do "pathos" r e v o l u c i o n a r i o q u e c a r a c t e r i z a c e r t a f a i x a da p o e sia b r a s i l e i r a d o s a n o s 50 e 6 0 , c o m o seu t o m
excessivamente
retórico e i m p u l s i v o . A t e n d ê n c i a à c o n c i s ã o e p i g r a m á t i c a e a
postura i r ô n i c a v ã o m o d u l a r o d e s e j o de c r i t i c a e
engajamento,
dando a e l e o r i e n t a ç õ e s m a i s a m p l a s e f o r m u l a ç õ e s
poeticamente
mais c o n s i s t e n t e s . A a p r o x i m a ç ã o da v a n g u a r d a c o n c r e t i s t a
em
certo m o m e n t o v a i r e v e l a r a P a e s i n s t r u m e n t o s i m p o r t a n t e s
para
o a g u ç a m e n t o d o s e u v e i o e p i g r a m á t i c o o r i g i n a l . L u d i s m o e experimentação v e r b a i s , deslocados do enfoque m a i s hermético
do pela v a n g u a r d a p u r a , p o t e n c i a l i z a m - n o
da-
sobremaneira. A poesia
de P a e s , h e r d e i r a d e u m d o s v e i o s m a i s v i t a i s d a p o e s i a m o d e r /
n i s t a , d e f i n e - s e t a m b é m c o m o p o n t o de c o n t a t o e t e n t a t i v a
de
s u p e r a ç ã o d i a l é t i c a de t e n d ê n c i a s q u e , em d a d o i n s t a n t e , se
confrontaram bastante
acirradamente.
Estas considerações, somadas a todo o estudo mais minucioso da p o e s i a de P a e s , p e r m i t e m v ê - l o , c r e m o s , c o m o um p o e t a
consistente
e r e l e v a n t e da p o e s i a b r a s i l e i r a r e c e n t e , a r t i s t a
que,
p a u t a n d o - s e p o r v e r t e n t e s i m p o r t a n t e s da p o e s i a n a c i o n a l , p l e namente e n g a j a d o n a s q u e s t õ e s d o ..seu t e m p o , i m p ô s - s e ,
te'/ como v o z d i s t i n t a e p e s s o a l .
finalmen-
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Poesia de José Paulo Paes