MARCELO CORRÊA S A N D M A N N Poesia de José Paulo Paes Dissertação apresentada ao Curso de PósGraduação em Letras, área de concentração em Literatura Brasileira, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, para a obtenção do grau de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Édison José da Costa CURITIBA 1992 A S¿Zv¿a. A me.u-6 pa^ii . A todo¿ oò me.u¿ am¿go¿. ii AGRADECIMENTOS Ao P r o f . Édison J o s é da C o s t a , pela o r i e n t a ç a o deste trabalho. Ao CNPq, gral ao curso de por me t e r p o s s i b i l i t a d o uma dedicação pós-graduação. A Leociléa Aparecida V i e i r a , i i i pela datilografia. inte- R esum o 0 tica do presente escritor no ano de de 198 6 , 1947 , data sua- p o e s i a balhos tas al brasileira até foca com publicaçao em 0 (1953), de cada A construindo go de ao as Paes as poéticas quista de uma voz em m e i o ao nindo a sua. seu deiro das vertentes em sintonia crítico, de caráter a e a ao 8 (1951), data (1967 ) , a tra- Novas da car- Meia poesia o estudo poético publicaçao final, de citada o contexto de desses em c a p i t u l o mais. orgânica mais ano toda os capitulo, poesia características o c o n t i d o s , na fundo da todo panorama Paes de.maneira formais acaba do é mais revelar-se numa de Paes os ao con- de- longo especificamente que com lhe com as partir iv vozes o sempre que Paes poeta seguir, dos se de- anos A con- esse diá- vai defi- se m o s t r a do de a vai diálo- contemporâneas. engajamento de que 50, her- Modernismo político-social a que estreito solicitações cultural a de e combativas acentuadamente brasileira obra permeia maduro, polêmicas agora sao que outras mais uma operaçao projeto momento amplamente poesia por tempo contato inicial, sensível de estréia, p e r p l e x o , (1983 ) . segund_o de poé- desdero. Modernismo "panorama" . A o pessoal é mais pano dominantes logo: também livros articular longo No t r a ç a d o , um contemporâneo pelo Sao de Anatomias momentos sua reunião Cúmp 1 i c e s num a obra especificamente e Calendário é como desde todos , entao. da poesia. com mas um d o s Paes (1958), seguir, temáticos dessa obra A por (1947 ) , (1980) sempre e destacar finidoras aluno 80. fornecidos senvolvimentos Um até principais procura-se tempo de Epigrama s histérico-cultural do recente, nos tendo-se clusivo, mais capitulo,, detalhe trabalhos Paulo primeiro seus o desenvolvimento José livro Residuo a década reunião, e da momento contidos: Num 22 até (1973), aborda brasileiro publicada chilenas palavra estudo início, se e revela atento ãs experimentações destas nia, das um ao pendor certo formas, gredientes da vanguarda, combativo travo intenção amargo, de subordinando sua concisão intertextual fundamentais da poesia. .sua Sátira, conquistas humor, epigramática, mais madura iro- enxugamento e m e ta 1 i n g i V l s t i c a dicção V certas e sao os in- pessoal. Zu samm e n f a s su ng Diese Werkes ginn, des im Arbeit beschäftigt brasilianischen Jahre 1947 , zu por todos, von öffentlichten Gedichte. (1947), gramas Cúmplices (1958 ), (1 98 0 ) und Im tigsten nismus 1922 Im oben hat kulturellen die cartas (1967 ) , Meia der zitierten Werke man den Kontext in in 1 986, aller es acht vom Datum bis palavra Be- der dann Werke: chilenas des ver- 0 aluno (1954), (1 9 7 3 ) , Ver- Epi- Residuo (1983). eine de f/ber s i c h t 1922) bis werden von zum dann Paes jedem Sicht. einer Paes, tfber die wich- b r a s i l i a n i s c h e n ^ D i c h t u n g - vom Kapitel immer sind Entwicklung Paulo Zeit, Novas wird der Sammlung ganzen (Modernismo zweiten versucht, formalen und Kapitel mit José neuerer perplexo Zeitabschnitte Analyse lich A n a tom i a s ersten vorgelegt. Im (1951), Calendario von zelnen Um Dichters bis öffentlichung sich Jahrzehnt mit Details untersucht. einzelnen Werke letzten Kapitel Im organischen Entwicklungen der Dichtung Eigenschaften, die diese Weise, von die Paes Dichtung Bei Moder198 0, die ein- dieser entsprechenden wird schliess- thematischen im Laufe der kennzeichnen, und Zeit zu artikulieren. Das sich im tigsten Das Laufe in sich der nahe Paes Strömungen Abstimmung mit stehen. Zu Beginn soziale Fragen, den als ein Werk, engen Dialog mit den "wich- Ziel, durch den Kontakt frühen der im In das Modernismus, des mit die und bei kritischen besonders kulturelle, diesem anderen reifsten polemischsten Mittelpunkt starker seiner das herausbildet. ein eigene. Erbe Strömungen ist Aufforderungen stehen spá'ter Schluss Stimme liegt: als des zum poetischen seine Dichter sich einem eigenen sehr bestimmt rischsten in Zeit einer stá'ndig Stimmen zeigt der zeigt zeitgenössischen Erlangen Dialog Paes1 Werk denen Phase kämpfe- ihm aber Engagements politischgegenüber sich die brasilianische Dichtung ist dann die bestimmte ner ihrer Dichtung bitterer men, offen fii'r 1 950 Experimente Er r u ng e n sc hf t e n ausdrucken. Nachgeschmack, i n t er t ex tu e 11 e u n d wichtigsten ab Bestandteile als Satire, sehr der sensibel Avantgarde, kämpferische Humor, epigrammatische Ironie, Kiïr z e , m e ta 1 i n g u i s t i sc h e seiner reiferen d r u c k s we i se . V i i zeigt, und indem Neigung ein er sich in sei- gewisser KiYrzung Absicht und sind der For- die persönlichen Au s- S U M Ä R I O RESUMO . iv ZUSAMMENFASSUNG vi 1 INTRODUÇÃO 2 PANORAMA DA MODERNA POESIA BRASILEIRA 2.1 2.1.1 1 13 DUAS CONSIDERAÇÕES 13 O que se e s t á entendendo p o r moderna poesia brasileira 2.1.2 13 A moderna p o e s i a - b r a s i l e i r a e -seus. momentos . - .. 2.1.2.1 Observações 2.1.2.2 Propostas 2.1.2.3 Reconhecendo momentos da moderna poesia iniciais 15 destacadas 16 19 brasileira 2.2 MODERNISMO: 15 FASE (19-22-19 30) 21 2.2.1 Um momento de renovação 21 2.2.2 O Modernismo 24 2.2.3 A poesia 2.3 MODERNISMO: de 19 22 25 2^. FASE (1930-1945) 2.3.1 Da ruptura ã c o n s o l i d a ç ã o 2.3.2 A poesia 2.4 40 . 40 42 GERAÇÃO DE 45 55 2.4.1 Duas versões c o n t r a d i t ó r i a s 2.4.2 A Geração de 45 como f a s e da p o e s i a leira 55 brasi57 V i i i 2.4.3 2.5 A poesia 59 VANGUARDAS ANOS 5 0 / 6 0 2.5.1 Uma f a s e 2.5.2 Em s i n t o n i a 2.5.3 A poesia 67 de programas p o é t i c o s coletivos com o seu tempo ... 67 69 73 2.5.3.1 Concretismo 74 2.5.3.2 Neoconcretismo 78 2.5.3.3 Poesia Práxis 82 2.5.3.4 Poema P r o c e s s o 86 2.5.3.5 Violão 89 2.5.3.6 Tropicalismo 2.6 de Rua PÕS-VANGUARDAS 2.6.1 Poesia Marginal 2.6.2 Poesia- anos 80 3 - 3.1 94 100 (anos 70) ... 108 A P O E S I A DE JOSË - PAULO- PAES. O ALUNO 102 (1947) ... 120 120 3.1.1 Introdução 120 3.1.2 Análise 121 3.1.3 Conclusão 158 3.2 COMPLICES (1951) 164 3.2.1 Introdução 164 3.2.2 Análise 164 3.2.3 Conclusão 204 3.3 NOVAS CARTAS CHILENAS (1954) 209 3.3.1 Introdução 209 3.3.2 Análise 213 3.3.3 Conclusão 24 8 3.4 3.4.1 EPIGRAMAS (1958) 253 Introdução 253 IX 3.4.2 Análise 254 3.4.3 Conclusão 29 2 3.5 ANATOMIAS (1967) 298 3.5.1 Introdução 29 8 3.5.2 Análise 301 3.5.3 Conclusão 342 3.6 MEIA PALAVRA (1973) 347 3.6.1 Introdução 34 7 3.6.2 Análise 348 3.6.3 Conclusão 385 3.7 RESÍDUO (1980) 391 3.7.1 Introdução 3.7.2 Análise 393 3.7.3 Conclusão 412 3.8 CALENDÁRIO- PERPLEXO . 391 (1983) 414 3.8.1 Introdução 414 3.8.2 Análise 416 3.8.3 Conclusão 442 4 CONCLUSÃO . ... REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS X 450 473 1 INTRODUÇÃO Entre as possibilidades do discurso literário, a poesia parece ocupar um lugar bastante peculiar. Há uma certa unanimidade com relação à sua importância e uma reverência acentuada frente â posição medular que ela ocupa entre os demais gêneros, como se a própria essencialidade do literário nela se realizasse de maneira privilegiada. Ela é sempre identificada como a melhor"expressão do trabalho criativo com a palavra. No entanto, ao que - tudo indica,1 o texto poético é muito^ pouco freqüentado- pelo jã-escasso -público leitor. Prefere-se em geral a prosa de ficção, normalmente mais acessível, e, talvez por isso, mais sedutora. Basta entrar numa livraria ou mesmo numa biblioteca e constatar: o espaço físico reservado à poesia é relativamente muitíssimo mais singelo. Confiram-se ainda os títulos de literatura publicados pelas.editoras e uma mesma conclusão se insinuará. Os leitores comuns fogem do texto poético, situação por vezes não muito distinta da de' -outros leitores, supostamente mais sofisticados, situados em posição de privilégio - alunos de Universidade, professores, críticos, etc. Ou a poesia torna-se objeto de culto de uns poucos produtores e receptores, que por sua vez não se incomodam muito em alimentar a súa inacessibilidade; ou ela é simplesmente deixada de lado, julgada muito difícil e excessivamente distante do universo imediato 2 das pessoas. Mistificação e despreparo vão se revelando assim os pólos extremos entre os quais oscila o pêndulo da leitura do texto poético, pólos perigosos, que falseiam a natureza viva e humana desse mesmo texto. 0 presente trabalho ê uma tentativa de aproximação amorosa do universo da1 poesia por alguém que num.determinado ins- tante já se sentiu um pouco intimidado em fazê-lo, talvez jus- tamente por acreditar tratar-se de um universo impenetrável para o comum das pessoas. 0 despreparo inicial revelou-se, ao longo do tempo, aspecto muito mais circunstancial, do que essencial, carência de explicação menos misteriosa, enraizada em todo um contexto cultural, e educacional especifico, que não se importa em--massacrar no_: indivíduo-os_ seus impulsos vitais em direção ao-artístico. Aprende-se a 1er e a gostar, de poesia como se aprende qualquer outra coisa. A sua possível ê a complexidade complexidade do próprio homem, portanto algo que está ple- namente ao seu alcance. Esse desejo de aproximação do universo da poesia - aqui concretamente através de uma elaboração textual analitico-interpretativa - encontrou num autor especifico uma boa via inicial de acesso. José Paulo Paes, entre outros possíveis autores brasileiros, revelou-se um. poeta ideal., justamente por certas qualidades imediatamente sedutoras de sua poesia - acessível, ágil, lúdica, de franca e rápida comunicação com o leitor, ao mesmo tempo que refinada, culta, critica, inteligente. Sua obra permite ainda um passeio revelador pela produção poética brasileira das últimas décadas, dado o estreito diálogo que ela estabelece com as tendências poéticas que lhe são contemporâneas, e com os problemas políticos, sociais, culturais 3 do pals que ecoam afinal no cerne dessas tendências. Ao desejo inicial de se mergulhar um pouco mais a fundo no universo do texto poético vem se somar a possibilidade de um conhecimento melhor da realidade cultural brasileira contemporânea através de um de seus poetas. 0 engajamento intelectual nas coisas do pais, a que tanto se é solicitado, realiza-se de alguma forma aí. Além destes pontos de justificativa pessoal de escolha, convém destacar, tendo em vista o circuito eminentemente acadêmico ao qual este trabalho se encontra destinado, que Paes, pelo que a bibliografia presentemente acessível indica, não foi objeto ainda de estudo de mais vasto fôlego. Por ser um intelectual importante da-s-letras- brasileiras da atualidade, ativo não apenas como poeta, mas também como ensaísta e tradutor - e a importância do poeta deverá ser mais. incisivamente assinalada no corpo deste trabalho -, justifica-se assim a dedicação de tempo, recursos e esforços pessoais e institucionais ao estudo da sua poesia. José Paulo Paes nasceu em Taquaritinga, no interior do estado de São Paulo, em 1926. Seus contatos iniciais mais vitais com o universo da poesia se dão já em sua juventude. Augusto dos Anjos, com o seu Eu e outras poesias, é o autor de primeiro impacto sobre a sensibilidade Mas é com Bandeira e Drummond do futuro poeta. que um certo conceito de poesia enquanto linguagem ornamentada e .pomposa, necessariamente metrificada e rimada, ainda presente em Augusto dos Anjos, vem abaixo e. o poeta descobre o veio da poesia moderna. Entre 1946 e 1949, Paes se estabelece em Curitiba para estudar química industrial no Instituto de Química do Paraná. 4 Aqui, juntamente a Armando Ribeiro Pinto, Glauco Flores de Sá Brito e Samuel. Guimarães da Costa, organiza a revista "Idéia" e colabora no "Joaquim", de Dalton Trevisan. Nessas duas publicações saem os seus primeiros poemas. Ainda em Curitiba, em 1947, viria a público O aluno, seu primeiro livro de poesia. Depois dessa sua significativa permanência por aqui, Paes vai para São Paulo a fim de trabalhar numa empresa farmacêutica, cidade em que se instalará definitivamente. Paralelamente a essa atividade profissional, continua escrevendo poemas- e produzindo artigos de jornal. Em 1952 sai Cúmplices, seu segundo trabalho poético, todo ele dedicado a Dora, com quem se casa nesse mesmo ano. As ilustrações que acompanham os poemas desse segundo livro haviam sido feitas por Nonê, filho de Oswald de Andrade e amigo de Paes, através de quem o poeta, trava um contato pessoal com o polêmico e inovador modernista, naquele instante em baixa no cenário da literatura.brasileira. A poesia de Oswald, toda ela feita de condensados-"flashes" poéticos e vincada por um humor muito característico exerce confessada influência sobre Paes. É, aliás, sob o signo do humor, bebido também da poesia inicial de Drummond, que Paes vai produzir a sua poesia de engajamento político-social, aspecto de sua personalidade intec- tual visível já desde os tempos de militância estudantil, mas que iria encontrar formulação poética mais consistente somente agora por volta de meados dos anos 50. Novas cartas chilenas, de 1954, e Epigramas, de 1958, trabalhos que só sairiam em livro em Poemas reunidos, de 1961, compõem a faceta mais militantemente ativa do poeta, nesse instante em plena sintonia 5 com a guinada ã esquerda dada pela intelectualidade brasileira. Por essa época, Paes muda de atividade profissional, passando a trabalhar, em regime de meio-expediente, numa editora. A outra metade do.seu tempo de trabalho ele vai dedicar a traduções de livros, pagas â parte, atividade que exercerá por mais de 20 anos, até finalmente aposentar-se e passar a se dedicar a verter para o português trabalhos de sua escolha e preferência, em especial livros de poesia. Através de Cassiano Ricardo., um dos autores publicados pela editora, Paes entra em contato pessoal com os poetas concretistas. A tendência ã concisão, ã síntese, ao enxugamento expressivo, aspecto que" passa a caracterizar-cada vez mais a sua obra, revela-se bastante afim ã tendência anti-discursiva do' pro jeto - concretista. - A -influência do Concretismo,- devidamente assimilada e subordinada às. intenções crítico-satíricas de Paes, são visíveis em livros como Anatomias, de 1967, Meia palavra, de .1973, e Resíduo, de 1980, livros que compõem o instante em que Paes, confessadamente, teria atingido enfim, a sua dicção poética mais pessoalizada. Na década de 80 sairiam ainda Calendário perplexo, de 1983, Um por todos, de 1986, reunião de toda a obra do poeta publicada em livro até então, e A poesia está morta mas juro que não fui eu, de 1988, publicada na Coleção Claro Enigma, organizada por Augusto Massi, marco editorial no âmbito da poesia brasileira recente, que repôs em circulação autores significativos e apresentou poetas novos surgidos na última década. É ao longo desse período que Paes se vai destacando cada vez mais como exímio tradutor de poesia e literatura, com versões sempre elogiadas pela crítica. José Paulo Paes, portanto, além de poeta - aspecto que será abordado neste trabalho -, é também tradutor e ainda ensaísta 1 , o que delineia um perfil bastante específico de artista da palavra. Como.ensaísta - e no ensaio, entre as questões variadamente culturais, predominam as relativas ã literatura - ele é também de alguma forma um critico, portanto alguém que exerce uma atividade de reflexão e avaliação da produção literária. Paes vai se debruçar, com as armas da inteligência e da sensibilidade, sobre determinados textos de criação, para, a partir deles, organizar um texto próprio de intervenção analítico-interpretativa. Há sempre, nesse procès so, um desejo de participação polêmica nas questões da cultura a partir-de uma- operação ; centrada-no próprio. texto. Com essa faceta suar-sintoniza-se-bem também a de tradutor, a prin clpio ativo nos mais variados.campos, mas- a p a r t i r de certo momento dedicado'apenas ãs traduções literárias e, nesse âmbi to, ã dificílima tarefa de traduzir poesia. Do inglês, do alemão, do francês, do grego clássico e moderno, do latim, etc. - são. muitas as versões de importantes autores, acessíveis agora também em português. Como.no caso do ensaísta, agora subordinadas a uma intervenção igualmente criativa, sen sibilidade e inteligência são requisitos indispensáveis para o tradutor. Encontrar paralelos poéticos em língua portuguesa para textos em outras línguas mobiliza uma gama ampla de experiências. Entra aí, por exemplo, o crítico, mas também o criador literário, o artesão da palavra - o poeta, portanto. A tradução de textos poéticos exige sobremaneira uma atividade de construção verbal, muito mais do que de expressão. O tradutor opera a partir de um primeiro texto para organizar um segundo, que, se não é mais já aquele, quer-se como uma 7 espécie de sucedâneo do primeiro. Não é totalmente o texto do autor original, mas também não ë totalmente o texto do tra- dutor - ele vai se erigir justamente nessa tensão, tornando-se palavra compartilhada. Na abordagem da poesia de Paes, será interessante verificar em que medida o ensalsta-crltico e o tradutor-r-artesão, figuras que trabalham sempre a partir de um primeiro texto para estabelecer um segundo, entram como ingredientes ativos do processo criativo. Feitas estas considerações iniciais, convém destacar enfim mais incisivamente o objetivo do presente estudo, e que é o de, através de um acompanhamento, sistemático da trajetória poética de José Paulo Paes dentro do contexto amplo da poesia feita modernamente no Brasil, chegaria uma compreensão mais precisa dos traços caracterizadores da poesia- do, autor. Trata-se, portanto, de um estudo que pretende abordar a obra do poeta no seu processo de construção ao longo do tempo e na sua interação com o ambiente, literário e, em ressonância, histõrico-cultural que lhe é contemporâneo, para, nessa dupla operação, apreender melhor os seus aspectos definidores. Para dar conta do objetivo proposto, o presente trabalho deverá cumprir o seguinte percurso: Num primeiro capítulo, vai-se procurar - traçar um panorama do que neste estudo se vai chamar de "moderna poesia brasileira", ou seja, da poesia feita no país do Modernismo' ¡.da 'década de 20 até as produções recentes dos anos 80. A partir do contraste de importantes estudos de caráter historiogrãfico, serão destacados do "continuum" temporal diferentes momentos dessa poesia, nos quais determinados princípios poéticos deverão ser assinalados como dominantes. Cada momento será caracte- 8 rizado de forma sintética a partir de considerações histórico-culturais abrangentes e da análise de poemas representativos de poetas de perfil significativo no respectivo momento, e de projeção, em maior ou menor grau, no cenário da poesia brasileira como um todo. Num segundo capítulo, será feito um estudo minucioso da poesia de José Paulo Paes, livro a livro cronologicamente, desde a sua estréia em 194 7, com 0.aluno, até meados da década de 80, especificamente 1986, ano em que vem a público a reunião Um por todos, que contém todos os livros publicados pelo autor até então. Deverão ser abordados os oito livros que compõem essa reunião fundamental, deixando-se de lado poemas que tenham vindo a público esparsamente através de jornais e revistas e . que não constam da reunião, bem.como aqueles reunidos em livro posteriormente-, como é o caso dos que compõem A poesia está morta mas juro que não fui, eu, de 1988. A restrição da abordagem aos oito livros contidos em Um por todos surge a partir da necessidade de se estabelecer um "corpus" homogêneo e definido para a realização do estudo. 2 A reunião da totalidade da poesia do autor publicada em livro entre 1947 e 1986 num único volume confere a ele esse caráter de unidade indispensável que se requer de um "corpus". Como se trata de" poeta vivo e produtivo, é de se esperar que outros livros seus de poesia sejam lançados, o que inviabiliza de qualquer forma um estudo, neste momento, que pretenda abordar a totalidade da obra. Os trabalhos presentes em Um por todos são versões integrais de livros anteriormente jã publicados, excetuando-se Calendário perplexo, de 1983, publicado pela primeira vez somente nessa reunião de 1986. Os livros que serão estudados, 9 arrolados cronologicamente a partir da data referencial recebida, são os seguintes: O a l m o cartas chilenas Meia palavra (194 7) , Cúmplices (1954) , Epigramas (1973), Resíduo (1951) , Novas (1958) , Anatomias (1967) , (1980) e Calendário perplexo (1983). Cada livro do autor será abordado individualmente ao longo desse segundo capituló, no corpo de subcapltulo especifico. Vai-se procurar, para cada livro, num primeiro instante, delinear rapidamente o ambiente poético dominante no períod.o da sua elaboração e publicação, bem como destacar, de forma genérica, algumas características histõrico-culturáis relevantes então. Um contraponto sistemático com o "panorama da moderna poesia brasileira", traçado no primeiro capitulo, já estará sendo realizado-al. A seguir, ocupando o grosso do espaço reservado no subcapltulo, serão analisados poemas individuais avaliados como significativos no ¡contexto, do livro em foco, a partir do que se procurará chegar âs suas principais características formais e. temáticas. Estas, num. terceiro instante, serão então apresentadas de forma mais sintetizada, procurando-se elaborar, a partir- daí, algumas conclusões parciais a respeito do livro em questão e da sua significação no trajeto do autor. Finalmente, na conclusão, será projetado de maneira mais precisa e orgânica o estudo da poesia de Paes no quadro amplo do desenvolvimento da poesia brasileira traçado no "Panorama", a fim de que, nessa operação de aproximação e afastamento, portanto ria visualização de semelhanças e diferenças, se possa vislumbrar melhor o caráter distintivo da poesia do poeta. Os poemas escolhidos para ilustrar o "Panorama da moderna poesia brasileira" serão abordados sempre em função 10 da explicitação de aspectos poéticos do momento a que pertencem. Com relação aos que integram o estudo da poesia de Paes, muitos deverão receber abordagem relativamente bastante minuciosa; outros, abordagem mais ligeira, para ilustrar determinadd aspecto que se esteja destacandò. Para a análise e interpretação dos textos mais minuciosamente focados, será privilegiada uma perspectiva que parta da consideração dos elementos mais específicos relativos ã composição do poema até chegar a observações mais generalizantes que projetem-no num contexto poético e/ou.histõrico-cultural que o transcenda. Aspectos composicionais como construção do verso e da estrofe, ou de unidades poéticas outras (no caso de poemas mais experimentais em que aqueles se encontrem dos) ; exploração de recursos sonoros, e gráficos; aboli- seleção-lexi- cal e organização gramatical; elaboração das imagens, exploração das figuras e outros recursos de linguagem; ressonâncias intertextuais; etc. - esses aspectos composicionais deverão ser destacados logo de inicio, para a partir deles poder-se orientar uma leitura mais aprofundada dos "sentidos" mais imediatos do texto e partir para uma sua contextualização mais abrangente. Nessa operação, vai-se procurar ter em vista, de um lado, certos estudos que se pautam pelas lições da Fenomenología e do Estruturalismo, além de outros de perspectiva mais tradicional sobre metrificação e formas poéticas, bastante produtivos para uma abordagem do poema enquanto objeto de linguagem construido através de técnicas poéticas especificas. De outro lado, como se trata também de um estudo que leva em consideração o eixo da diacronia e o contexto mais amplo em que 11 os livros e poemas se encontram inseridos, estudos literarios de Orientação historiogrãfica. e pautados por reflexões abrangentes acerca da produção cultural também entram em perspectiva. Por vezes, essas duas.maneiras.de ver o fato literário têm entrado em atritos e polêmica.. .Antonio Candido, em vários de seus estudos, mas com exemplar, felicidade no seu Na sala de aula 3 , em que analisa com virtuosa minúcia alguns poemas de importantes poetas brasileiros do Arcadismo ao Modernismo, ensina-nos a ultrapassar o dilema. O autor, nesse trabalho, vai organizando a sua leitura entre o texto e o contexto, utilizando um pólo para iluminar o outro, numa operação dialética de fina inteligência e grande independência critica. Ë com o tipo de abordagem do poema presente-n:esse estudo que o presente trabalho quer buscar afinidades. Convém ressaltar ainda que, gradualmente, algumas reflexões teóricas suscitadas pela abordagem da poesia de Paes, relativas a certos conceitos da teoria literária como, por exemplo, metalinguagem, intertextualidade, paródia, pós-modernismo, etc., irão sendo desenvolvidas de maneira integrada ao corpo geral do texto de estudo da sua poesia e subordinadamente ãs intenções da análise e interpretação dos poemas. 12 NOTAS DE REFERÊNCIA cas, *Cf. obras áo de f i n a t d e s t e e s t u d o , nas P a e s e n s a í s t a e d o Paes 2 referências tradutor. bibliográfi- ~ Os p o e m a s de P a e s q u e s e r ã o t r a n s c r i t o s e a n a l i s a d o s ao l o n g o d e s t e e s t u d o d e v e r ã o s e r t o d o s r e t i r a d o s d e s s a e d i . ç i o : PAES, J o s é P a u l o . Um p o r t o d o s - p o e s i a r e u n i d a . São P a u l o : Brasi-l iense, 19 8 6 . 3 CANDIDO, A n t o n i o . Ná literária. 2.ed. São PauTõ s a l a de a u l a : Atica, 19 86 . c a d e r n o de a n a l i s e Série Fundamentos. 2 PANORAMA DA MODERNA 2.1 POESIA BRASILEIRA DUAS CONSIDERAÇÕES Duas considerações precisam ser feitas logo de inicio quando se tem em perspectiva traçar um panorama daquilo que este estudo pretende chamar de "moderna poesia brasileira". A primeira relaciona-se ao emprego do adjetivo "moderno" nessa expressão, termo de semântica elástica e flutuante. É. preciso explicitar, em primeiro lugar, o que se está-entendendo por "moderna poesia brasileira", o que implica também delimitar o período de tempo que a designação abrange. Essa implicação remete de imediato ã segunda consideração, que ê justamente a observação dos diferentes "momentos" do desenvolvimento dessa poesia, com respeito' a que nem sempre são unânimes os estudos de história da literatura. Os termos escolhidos para designar cada um dos possíveis "momentos", bem como o período de tempo que cada um deles engloba, diferem por vezes de autor para autor. A isso se deve ainda acrescentar a não consideração, em estudos de caráter panorâmico, da produção poética mais recente do pais, o que se vai intentar aqui. 2.1.1 O que se está entendendo por Moderna Poesia Brasileira A consideração do termo "moderno" é polêmica e complexa. No presente estudo, ao se falar em "moderna poesia brasileira", ] k tem-se em vista a poesia produzida no país desde o Modernismo até os dias de hoje. A utilização da expressão neste estudo é portanto afim à utilização que Affonso Romano de SANT 1 ANNA lhe dá em Música popular e moderna poesia brasileira 1 , designando com "moderna poesia brasileira" a produção poética que vai do Modernismo até as tendências contemporâneas ã elaboração do seu estudo, por volta de meados dos anos 70. No presente trabalho, ampliou-se um pouco esse arco temporal, que se estende agora até ã poesia dos anos 80. O período de tempo aí englobado é extenso e abrange tendências poéticas múltiplas e muitas vezes antagônicas. No entanto, apesar das diferenças claramente observáveis, é possível..entendê-las como partes conflitantes de uir; mesmo todo dinâmico. A partir - do-Modernismo, -a- poesia--brasileira inicia um processo de constante pesquisa formal e aprofundamento temático, sintoniza-se com os movimentos mais avançados da arte ocidental para não mais perder o passo, ao mesmo tempo em que mergulha na própria- problemática nacional e desenvolve características altamente individualizadas em relação à produção de outros países. A partir do Modernismo, cria-se uma tradição viva na poesia brasileira que se desenvolve ininterruptamente até o presente, apesar das aparentes rupturas. Ë com essa tradição que cada novo poeta vai dialogar produtivamente no.processo de elaboração da sua própria poesia. Os problemas poéticos colocados por Mário de Andrade, Oswald, Drummond, Murilo Mendes, João Cabral, pelo Concretismo, e outros nomes que se vão consagrando mais recentemente 15 - num encadeamento continuo onde se observa toda uma dialética de aceitação/rejeição de princípios -, continuam alimentando ã praxis poética dos novos autores. É esse acúmulo e permanência de conquistas relativamente recentes que se prolonga até o presente que permite entender esse período como um todo, e ã poesia que engloba chamar "moderna". Convém ressaltar assim que o termo "moderno" está sendo empregado aqui exclusivamente para designar esse período referido. Na sua utilização, tem-se em perspectiva certas sugestões semânticas nele implícitas, que sinônimos seus como "recente" ou "atual" 2 também evocam. "Moderno", neste estudo, não deve portanto ser entendido em conexão com "Modernismo"-, relativamente ao qual se utilizará >.aqui o adjetivo "modernista", ou ainda em conexão estreita" e necessária com-concei.tos-chave da reflexão cultural atual, complexos e polêmicos, como "Modernidade" e "Pós-Modernidade". 2.1.2 2.1.2.1 A Moderna Poesia Brasileira e seus Momentos Observações iniciais - A delimitação de segmentos de tempo num "continuum" temporal implica sempre a escolha de determinados critérios. No caso da historiografia literária, nem sempre são consonantes os critérios escolhidos e as conclusões a que chegam os vários estudiosos. Considerações estritamente poéticas se sobrelevam em certas abordagens, ao passo que, em outras, destacam-se também elementos mais exteriores ao fato literário. A delimitação dos princípios poéticos de um periodo determinado é sempre redutora em face da complexidade das lb manifestações literárias. A multiplicidade das poéticas individuais acaba tendo de ceder em favor do estabelecimento de uma poética geral, ou de poéticas dominantes. Certos elementos são postos em evidência; outros, secundários mas presentes, são abafados, a fim de que as contradições não perturbem a construção teórica. Autores menos facilmente enquadrãveis são empurrados para frente ou para trás no tempo, tornando-se, de acordo com a importância vislumbrada em sua obra, epígonos de um momento anterior ou prenunciadores do que está .por vir. Porém, apesar desses problemas, a visão panorâmica é necessária e não pode prescindir de certas reduções. 0 particular, deve ser posto a serviço do geral,, o menos , evidente-deve ceder espaço ao mais evidente. O olhar, para poder apreender toda a extensão do seu objeto, se afasta para um ponto distante e se torna sensível apenas aos traços mais marcantes. 2.1.2:2 Propostas destacadas - Antes de se traçar um pano- rama da aqui chamada moderna poesia brasileira, convém observar as delimitações temporais da poesia produzida no Brasil desde o Modernismo até momentos mais recentes consagradas por alguns estudos fundamentais de história literária. Em sua História concisa da literatura brasileira 3 , Alfredo BOSI, no cap. VII, intitulado "Pré-Modernismo e Modernismo", reserva a designação "Modernismo" ao período que vai de 19 22 a 19 30. Tudo o que ocorre na literatura brasileira após essa data ele vai estudar no cap. VIII, intitulado "Tendências Contemporâneas", e que se encontra 17 subdividido em dois momentos distintos: de 1930 até 1945-50, e desta data até o presente (as últimas referências no âmbito da poesia dizem respeito ã c h a m a d a poesia.Marginal dos anos 70) . Affonso Romano de SANT'ANNA, em seu Música popular e moderna poesia brasileira1* , no. cap. VI do livro, apresenta uma "Minuta Didática dos Principais Movimentos Poéticos Brasileiros do Séc. XX", onde arrola os seguintes: Modernismo (1922); Geração 45; Concretismo Tendência Processo (1957); Prãxis (1956); Neoconcretismo (1962); Violão de Rua (1967) ; Tropicalismo (1959); (1962); poema (1968) ; pós-Vanguardas e Mar- g.inália (19 73) . Além destes-dois estudos mais-abrangentes, que dão conta da produção que vai de 1922 até quase o presente, outros, restritos a momentos mais específicos, trazem delimit tações importantes. Antonio CANDIDO e. José Aderaldo CASTELLO, no terceiro volume do seu Presença da lá-teratulra brasileira 5 , dedicado ao Modernismo, reservam este. termo ao período que vai de 1922 até 1945, distinguindo duas subdivisões internas: de 1922 a 1930 - "momento mais dinâmico e agressivo" - e de 1930 a 1945 - "nova etapa de maturação". Em segmento final do estudo, intitulado "Literatura. Atual", são feitas referências ainda à Geração de 45 e ao Concretismo. No seu O modernismo 6 , Wilson MARTINS delimita o momento modernista entre os anos que vão de 1916 a 1945. Sugere, no entanto, algumas subdivisões no interior desse período, a partir de certas tendências literárias dominantes: 18 os primeiros dez anos seriam os anos de ruptura, do combate de idéias, anos predominantemente poéticos; os dez anos seguintes seriam os anos do romance social e da atuação p o l í tica; os últimos dez seriam os anos de efervescência da crítica literária. péricles Eugênio da Silva RAMOS, em seu estudo "0 Modernismo na Poesia" 7 , que integra a obra mais ampla A literatura no Brasil, organizada por Afrânio COUTINHÒ, subdivide o Modernismo em três fases: "fase de ruptura", de 1922 a 1930; "fase de extensão", de 1930 a 1945; e "fase esteticista", de 1945 em diante. Nesta última fase ele chega a incluir a Poesia Concreta e a Poesia Práxis. A cada fase, por sua vez, corresponderia uma geração: as de 22, 30. e 45, respectivamente. Em estudo importante sobre a poesia dos anos 60 e 70, Impressões de viagem - CPC, vanguarda e desbunde 8 , Heloísa Buarque de HOLLANEA.destaca, desde meados dos anos 50 e ao longo dos anos 60, duas tendências dominantes: "o engajamento cepecista", referindo-se â produção social e politicamente engajada de Violão de Rua, e "o engajamento experimentalista", referindo-se ã produção de vanguarda, em especial ao Concretismo. Na virada da década, estão o Tropicalismo e as tendências põs-tropicalistas que dele partem, e, ao longo dos anos 70, a Poesia Marginal. Como se pode observar, há sensíveis diferenças entre os autores consultados, tanto no quê diz respeito ã delimitação temporal quanto ao termo utilizado para designar o período de tempo abrangido. Entretanto, certas constantes podem ser verificadas, e é a partir delas que se vai tentar 19 estabelecer aqui uma delimitação de diferentes e específicos momentos da poesia moderna do Brasil, com base na qual o panorama deverá ser traçado a seguir. 2.1.2.3 Reconhecendo momentos da Moderna Poesia Brasilei- ra - Em pelo menos três datas a maioria dos estudos consultados estão de acordo: são elas 1922, 19 30 e 1945. O que em geral difere entre eles diz respeito ao termo utilizado para designar o período de tempo nelas englobado. Alfredo BOSI reserva o termo "Modernismo" para o período 1922-30, considerando a partir de então mais duas fases distintas, 1930-45/50 e 1945/50 em diante, que ele engloba sob a designação de "Tendências Contemporâneas"; Affonso Romano de SANT'ANNA abrange com o termo "Modernismo" os anos 1922-45, concordando com Antonio CANDIDO- e Aderaldo -CASTELDO,.. que no entanto subdividem-no em duas fases internas: 1922-30 e 19 30-45; Wilson MARTINS refere-se com ele aos anos de 1916-45; a maior extensão de tempo proposta para o termo é a de Pêricles Eugênio da Silva RAMOS: 1922 até o início dos anos 60, subdividindo o período em três fases: 1922-30, 1930-45, 1945 em diante, chamando a esta última também, de "Geração de 45". A partir daí o quadro se complica. Alguns autores falam numa Geração de 45. Silva RAMOS confunde-a com a terceira fase do Modernismo; BOSI, bem como CANDIDO e CASTEELO, utilizam o termo com certa cautela para indicar uma entre outras tendências da poesia brasileira depois do ano de 1945; SANT'ANNA utiliza o termo sem reservas, englobando com ele a poesia produzida dominantemente até pelo menos 1956, momento em que assinala o surgimento do Concretismo e 20 dos varios movimentos que o sucedem de forma marcadamente breve nas- décadas seguintes. Aqui surge um detalhe interessante: Affonso Romano de SANT'ANNA, na sua "Minuta Didática", reserva um arco temporal bastante vasto para o Modernismo enquanto momento único (1922-45), passando a partir de então a segmentar o tempo em instantes cada vez menores. Parece haver ai uma certa desproporção e uma supervalorização dos movimentos poéticos mais recentes nas suas particularidades. Subdivisão equivalente poderia ser empregada no caso do Modernismo, tratando-se separadamente movimentos particulares como Pau-Brasil, Verde-Amarelismo, Anta e Antropofagia, por exemplo, coisa que o autor não faz. No entanto, como ele mesmo sugere em outra parte, do seu estudo 9 , poderíamos falar num- "período das vanguardas", que diria respeito aos anos que vão de 56 até 68, e em "pós-vanguardas" a partir de então. Considerada esta situação na historiografia literária brasileira, o presente estudo propõe como significativa a seguinte seqüência histórica: 1. Modernismo - 1. fase (1922-30)• 2. Modernismo 3. Geração de 45 fase (1945-56); 4. Vanguardas anos 50/60 5. pós-Vanguardas (1930-45); (1956-68); e (1968 até hoje). Esta delimitação cronologicamente precisa de cinco momentos distintos da moderna poesia brasileira tem de ser compreendida, nas simplificações violentas que ela opera sobre a complexa realidade literária, enquanto um esforço de oferecer uma moldura didática para uma consideração 21 panorâmica dessa poesia. Ela surgiu, como se tentou evidenciar acima, da tentativa de conciliar delimitações temporais e designações nem sempre idênticas presentes em importantes estudos de história da literatura brasileira. Com a abordagem mais detalhada desses momentos poéticos a seguir, na qual, através de análises de textos representativos, se procurará destacar elementos caracterizadores da poesia de cada momento, a segmentação didática pela qual se está optando para a elaboração do panorama deverá ser mais incisivamente justificada. 2.2 2.2.1 MODERNISMO: 1? FASE (1922-1930) Um Momento de Renovação Para a arte brasileira do inicio do século, o Moder- nismo da década de 20 representa, antes de mais nada, um momento de renovação geral. Com o Modernismo, a arte brasileira entra definitivamente no séc. XX. Na literatura, por exemplo, o que se observava até então eram, com raríssimas exceções, manifestações epigonais de tendências que tiveram sua razão de ser no final do século anterior, como o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, mas que no novo século não acompanhavam mais as transformações materiais e espirituais que se operavam em todo o mundo e chegavam até o pals, e muito pouco de significativo haviam produzido. A sensação de um esgotamento no âmbito das artes se insinuava e a necessidade de superá-lo era tarefa que passara a captar os esforços dos espíritos mais novos. 22 A renovação modernista na arte e na cultura brasileira pode ser vista como um movimento de dupla orientação. De um lado, a Europa das duas primeiras décadas do século acenava com uma agitação cultural vigorosíssima que não poderia passar desapercebida do Brasil, pais historicamente dependente nesse aspecto. A necessidade de atualizar a produção brasileira se pautou desde muito cedo pelos movimentos revitalizadores das vanguardas européias, plenamente sintonizados com o espirito dos novos tempos, eminentemente urbano, industrial e dinâmico. Expressionismo, Futurismo, Cubismo, Dadaísmo e, mais tarde, Surrealismo, eram pontos de referência obrigatórios para a nova intelectualidade no. .momento de formação-do-Modernismo. De- outro lado, estava o impulso de-descobrir um:Brasil ainda em-grande parte-ignorado, que -a produção - cultural do pais, desde as tendências nacionalistas e regionalistas do Romantismo, passando pelo Realismo/Naturalismo, até o momento de transição marcado pelas obras significativas de Euclides da Cunha, Lima Barreto -e-- Monteiro Lobato-, vinha a. seu modo, e dentro de limites estéticos bastante precisos, tentando. Esse impulso, existente antes da deflagração da revolução modernista, em certa medida abafado no primeiro instante mais acentuadamente cosmopolita do movimento, irã encontrar um espaço cada vez maior a seguir e, através dos novos meios de expressão conquistados, tornar-se uma das dimensões mais fecundas da nova arte. Essa dupla orientação do Modernismo - num pólo a dimensão urbana e cosmopolita do movimento, em sintonia com as vanguardas que se irradiam dos grandes centros industriais 23 europeus; no outro, a preocupação em pesquisar um país marcado a fundo pelo rural e pelo primitivo, continuando, a partir de novos padrões expressionais, a vertente nacionalista e regionalista da arte brasileira anterior - encontra paralelos na própria estrutura social, econômica e cultural do pais. O Brasil do primeiro Modernismo, o Brasil da República Velha (1894-1930), ê um pais ainda em grande escala predomi- nantemente agrário, onde a cultura cafeeira e a pecuária constituem as atividades econômicas fundamentais, e a hegemonia política encontra-se nas mãos dos grandes proprietários de São Paulo e Minas Gerais. Ao lado desse Brasil, no entanto, com o inicio do processo de industrialização e com o crescimento dos: centros --urbanos-;- novos grupos de poder, ligados ã burguesia industrial, ãs profissões liberais e ao Exército, começam a se fortalecer. Além destes, nos centros urbanos, um proletariado e um subproletariado cada vez menos incipientes vão se fazendo notar. Uma sociedade de antagonismos não conciliáveis está se delineando, antagonismos que encontrarão um dos seus primeiros pontos críticos na Revolução de 19 30. Portanto, ao lado de um Brasil arcaico, agrário, rural, de valores estáticos, fechado a qualquer tipo de inovação, começa a surgir um Brasil moderno, industrial, urbano, influenciado pela dinâmica do novo século, aberto aos influxos renovadores do estrangeiro. Essas duas dimensões da realidade brasileira vão marcar a arte do período.e, mantendo-se sensivelmente presentes até hoje, configurar-se enquanto um dos grandes problemas da arte brasileira do séc. XX. 24 Os grandes autores do Modernismo de 22 serão justamente aqueles que tentarão a fusão do Brasil urbano e industrial, o Brasil da São Paulo onde vai nascer o movimento - um pals receptivo ãs novas possibilidades expressivas da arte européia - com um Brasil rural, tradicional, antigo, primitivo, Brasil em direção ao qual o Modernismo caminhará a seguir. 2.2.2 0 Modernismo de 1922 Os anos que vão de 1922 (ano da Semana de Arte Moder- na) até 19 30 (ano da Revolução de Outubro) compreendem o que comumente se tem chamado de "fase de ruptura" ou "fase heróica" do Modernismo, brasileiro. São anos de combate, durante os quais os defensores da nova arte irão pugnar por-seus princípios estéticos, em^geral' revolucionários para a-arte brasileira de então. Durante esse período, surgem na imprensa manifestos literários e artigos polêmicos e apaixonados de ataque e defesa em relação ao movimento. As primeiras produções representativas são publicadas, assim como algumas revistas de militância estética, em redor das quais diferentes grupos se aglutinam em franco confronto entre si. Como marco inicial do movimento renovador, tem sido tomada a Semana da Arte Moderna, realizada em São Paulo nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro, de 1922. Ho entanto, a Semana pode ser vista também enquanto um momento intermediário do processo de renovação modernista. Ela será uma espécie de ponto de convergência de uma série de tendências que vinham se insinuando ainda timidamente ao longo da segunda metade da década anterior, abrigadas todas então sem grandes divergências sob as bandeiras do antipassadismo, do antiacademicismo 25 e da liberdade e renovação da expressão. Posteriormente, os artistas modernistas, que num primeiro momento poderiam parecer compor um todo homogêneo, irão optar por posições indi- viduais ou de grupo divergentes entre si. Com o correr dos anos, a partir do momento deflagrador da Semana, os princí- pios modernistas ultrapassarão as fronteiras de São Paulo e Rio agitando outros centros urbanos do país. 2.2.3 A Poesia Como um movimento de renovação da arte brasileira, o Modernismo, na sua fase inicial de formação, teve de confrontar-se com uma arte comodamente estabelecida, legitimada em seus valores--pelos/principais meios de formação de opinião do período : a academia,-a e s c o l a a imprensa e a crítica. Enfrentando as previsíveis resistências que esses meios, por natureza conservadores, lhe ofereciam, o Modernismo atacou de forma corrosiva a arte que se. fazia então, tida como acadêmica e passadista, absolutamente incapaz de expressar a sensibilidade dos novos tempos. O antipassadismò e o antiacademicismo tornaram-se as bandeiras sob as quais reuniram-se os novos autores. A necessidade de dar combate aos velhos valores e de fazer com que os novos princípios fossem aceitos foi fator de união de um grupo de artistas que, posteriormente, passada a fase de polêmica com a velha guarda, iriam revelar ideais estéticos e políticos divergentes, quando não frontalmente antagônicos entre si. Na poesia, passadistas eram os poetas que insistiam em produzir uma arte dentro dos moldes do Parnasianismo e do Simbolismo, escolas surgidas no final do século passado e que 26 reinavam soberanas até então, sobretudo a primeira- 0 Parna^sianismo, baseado num classicismo de superficie e numa poética rígida e normativa, era um modelo ideal para a poesia acadêmica. 0 Simbolismo, que na França havia, produzido poetas revolucionários do porte de um Rimbaud e de um Mallarmé, poetas-chave para o entendimento da poesia moderna, no Brasil não vingara nessa sua vertente mais contundente e produtiva. O verso livre, por exemplo, conquista dos simbolistas mais inovadores, só_ seria trazido para a poesia brasileira, com atraso, pelo Modernismo. Além da poesia dessas escolas, fazia-se também um tipo de poesia sertanista, singela e bucólica, que- mesclava elementos populares e cultos, e que tinha na fig.ura. de um Catulo da Paixão. Cearense um típico representante. A poesia modernista vai reagir ãs velhas poéticas de forma contundente. O Parnasianismo, sobretudo, foi o alvo preferido de muitos dos novos autores. A clausura das suas prescrições poéticas era um ponto vulnerável extremamente atrativo para aqueles que defendiam uma liberdade absoluta de composição e expressão. Manuel BANDEIRA, em seu "Poética", expõe de forma inigualável os princípios poéticos do lirismo modernista: POÉTICA Estou farto do lirismo comedido Do lirismo bem comportado Do lirismo funcionario público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo 27 Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não e lirismo Serã contabilidade tabela de co-senos secretario do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar ãs mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos 0 lirismo dos bêbados 0 lirismo difícil e pungente dos bêbados 0 lirismo dos clowns de Shakespeare - Não.quero mais saber do lirismo que não é libertação. 10 O poema todo gira em torno do que o seu postulado final sintetiza: " - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação". "Liberdade" é a palavra-chave do poema, e o exercício dessa liberdade ê o que o poeta realiza enquanto reitera de diversas maneiras a sua profissão de- fé poética. O verso livre surge aqui como um elemento central no exercício da liberdade de compor, contrapondo-se ao verso metrificado da tradição anterior. Sua estruturação ao longo do poema é vária. Ãs vezes ele corresponde a uma unidade sintática ampla, todo um período completo e suficiente, como nos versos: "Estou farto do lirismo comedido"; "Abaixo os puristas"; "De resto não ê< lirismo". Outras vezes, o verso vai corresponder a um segmento sintático menor, eventualmente até uma única palavra, ligado a uma estrutura maior anterior, como é o caso do segundo destes versos: "Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado"; "Estou farto do lirismo namorador/ Político". Mas o que vai quebrar mais ostensivamente a conveção é um verso como o terceiro da primeira estrofe: "Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor". Fica evidente aí, pela extensão e pelo ritmo de um verso como esse, o desejo deliberado de aproximar prosa e poesia. 0 impulso ã libertação total do lirismo implica, assim, o questionamento do próprio verso enquanto estrutura indispensável ã poesia. O desejo de liberdade formal também se manifesta na utilização da pontuação. Se tivéssemos simplesmente a sua ausência total, estaríamos diante de um uso uniforme, de uma opção do poeta manifestada de forma coerente. No entanto, em "Poética", o que se observa-é uma utilização caprichosa dos pontos finais e da vírgula. Aqueles aparecem*ao final da primeira, da quarta, da quinta (neste caso-podendo ser também simplesmente o ponto de abreviação de "etc.") e do verso solto final do poema, indicando o fim de períodos longos . • Porém, em outros instantes, similares,., como na segunda, na terceira e na sexta estrofes, não há a utilização do ponto. Quanto ã vírgula, ela ê sempre omitida, mesmo tratando-se de enumerações extensas, como por exemplo na quinta, aparecendo, nessa mesma estrofe, numa única ocorrência em todo o poema, solitária mais ao final do período, logo antes de "etc.". Chama a atenção a não utilização de recursos indicadores de pausa entre os termos das enumerações mais extensas. Há uma tensão clara entre a necessidade prosódica das pausas e a sua não indicação através de um recurso qualquer pelo poeta ( recurso gráfico, espaço em branco, segmentação em versos, etc). 29 O poema todo é um grande desabafo, expansão de um lirismo que se liberta, que se desamarra, e que jorra caprichoso e necessariamente descuidado. A exaustão do poeta frente a toda uma poesia se extravasa em declarações contundentes. Ao longo da primeira, da segunda e da quarta estrofes, a repetição da expressão "estou farto do lirismo", seguida de diferentes focalizações desse lirismo, dã bem idéia da dimensão dessa exaustão. Na esfrofe terceira, em contraponto, BANDEIRA clama como um agitador literário: "Abaixo os puristas". E assim, em tons entusiasmados de manifesto, o poeta vai fazendo o repúdio de um "lirismo comedido", de um "lirismo bem comportado", de um lirismo absolutamente subordinado ao controle . racional-do poeta, lirismo artificial e artificioso, obediente aos* cânones, submisso aos-padrões das prescrições lingüísticas,-posto em função de necessidades exteriores a ele próprio. A esse lirismo ele contrapõe um outro, e aí se delineia de forma clara a sua própria postura poética. Na sua poesia, o poeta quer, sem restrições dogmáticas, "todas as palavras", "todas as construções", "todos os ritmos", e entre cada um desses elementos, respectivamente, justamente os mais execrados pelo purismo formal: "os barbarismos universais", "as sintaxes de exceção" e "os ritmos inumeráveis". (...) Quer, em suma, uma liberdade total de com- posição e expressão. E para dar forma a esse material escolhido sem restrições, o poeta vai em busca.de um novo impulso lírico, antiacadémico e antidogmático por natureza, o lirismo "dos loucos", "dos bêbados" e "dos clowns de Shakespeare". Esse apelo â essencialidade lírica de figuras 30 marginais revela muito bem a essência espiritual da sua própria poesia. A dicção de BANDEIRA neste poema aproxima-se do coloquial, da oralidade, da fala cotidiana. Não se observam aí contorções sintáticas, léxico erudito ou de circulação rara, nem explorações sonoras exageradas ao gosto simbolista. 0 que se tem são períodos inteiros, sem inversões, muito próximos da fala corrente. Há aí. uma ausência daqueles elementos mais explicitamente "poéticos" que serviam para diferenciar drasticamente o discurso da poesia do discurso da prosa. 0 poético não está mais apoiado em elementos formais evidentes, exteriores, facilmente identificáveis. O poético vincula-se a - algo mais interior, â intensidade emocional do—enunciado, que cativa o leitor.ou o~_ouvinte muito mais pelo seu apelo afetivo do que pelo seu virtuosismo-lingüístico ou pelo seu artesanato. "Poética" ê um exemplo claro de vários dos elementos da poesia modernista. Nele, a liberdade de expressão postulada é plenamente exercitada: verso livre, dicção coloquial, despojamente léxico-sintático, jorro emotivo, etc. Ao lado deste verdadeiro "manifesto poético", outros poemas significativos podem ainda reiterar estes e apresentar outros aspectos expressivos e temáticos importantes da poesia do primeiro Modernismo. Ao longo dos anos 20, observa-se um desejo crescente de aprofundamento nas realidades contraditórias do próprio Brasil. Aquele que é considerado o primeiro livro de poesia modernista, Paulicéia desvairada, de Mário de ANDRADE, publicado em 1922, ê um livro inteiramente dedicado á cidade de 31 São Paulo. Nele o universo agitado da nascente metrópole, com seus. vários grupos humanos (da aristocracia quatrocentona aos recentes imigrantes), com suas ruas e lugares típicos, com seu clima característico ("Minha Londres das neblinas finas..."), com suas primeiras indústrias e automóveis, com toda a problemática sõcio-cultural inerente aos complexos urbanos, com suas rusgas literárias, etc. , é> cantado pelo poeta, ãs vezes com ironia, ãs vezes com crítica corrosiva (como na "Ode ao burguês"),ãs vezes com simpatia e ternura. Formalmente, a poesia aí contida, carregada de preciosismo e afetação, excessivamente artificiosa, ainda se afasta um pouco da simplicidade coloquial típica da vertente mais produtiva do movimento, poesia que Mário fará em livros seguintes. "0 domador" ê um bom exemplo da poesia inicial de Mário, cheia de vitalidade experimental: 0 DOMADOR Alturas da Avenida. Bonde 3. Asfaltos. Vastos, altos repuxos de poeira Sob o arlequinal do céu ouro-rosa-verde... As sujidades implexas do urbanismo. "Filets" de manuelino. Calvicies de Pensilvãnia. Gritos de goticismo. Na frente o "tram" da irrigação, Onde um Sol bruxo se dispersa Num triunfo persa de esmeraldas, topãzios e rubis... Lánguidos boticellis a 1er Henry Bordeaux Nas clausuras sem dragões dos torreões... Mario, paga os duzentos reis. São cinco no banco: um branco, Um noite , um ouro_, Um cinzento de tísica e Mario. Solicitudes '. Solicitudes ! 32 Mas... olhai, oh meus olhos saudosos de ontens Esse espetáculo encantado da Avenida! Revivei, oh gaúchos Paulistas ancestrementeI E oh cavalos de colera sangüínea! Laranja da China, Laranja da China, Laranja da China! Abacate, cambucá e tangerina! "Guardate!" Aos aplausos do esfusiante clown, Heróico sucessor da raça heril dos bandeirantes, Passa galhardo um filho de imigrante, Louramente domando um automóvel! 11 Este poema de Mario é um poema predominantemente descritivo. Temos aí um "eu" lírico situando-se espacialmente ("Alturas da Avenida. Bonde 3.") que descreve de modo muito pessoal aquilo que seus sentidos apreendem ao seu redor. A representação dessa realidade revela-se antiobjetiva e fragmentária. 0 sujeito distorce violentamente, aquilo que percebe. A consciência poética seleciona~alguhs entre muitos dados possíveis do real e representa-os através de uma linguagem plena de circunloquios e imagens carregadamente rebuscados. Assim, a sujeira da cidade é "as sujidades implexas do urbanismo"; os ruídos de vozes-de estrangeiros, ou talvez simplesmente os rui dos-da metrópole, são- "gritos de goticismo"; pessoas lendo nos andares superiores das casas - um dos sentidos prováveis da expressão - são "Lánguidos boticellis a 1er Henry Bordeaux/Nas clausuras sem dragões dos torreões...". Se as paráfrases traem a ambigüidade do poético,, apontam, no entanto, para o artificioso dessa dicção. Ao lado desta, porém, vemos surgir, inesperadamente, uma outra dicção, mais espontânea, mais coloquial, como é o caso do verso "Mário, paga os duzentos réis", logo no início da terceira estrofe. A forma imperativa do verbo, proferida por uma voz não identificada em meio ã do próprio poeta, contrasta em muito, por exemplo, com a forma imperativa que 33 surgirá nos versos a seguir, e com o tom grandiloqüente neles presente: "Mas... olhai, oh meus olhos saudosos do ontem/(..,)". O artificioso mesclado ao prosaico, a rebuscada descrição de uma situação do cotidiano urbano, o patético fundido ao irônico revelam a intenção de pesquisa lingüística, de experitação literária, índices óbvios de uma insatisfação com os recursos poéticos ã disposição. Paulicéia desvairada tem toda o tom desse poema. Nos livros seguintes, o espaço poeticamente pesquisado, com todo o universo temático a ele ligado, irá se ampliar cada vez mais, deixando de centrar-se na cidade de São Paulo para abarcar outros pontos do Brasil. Em Clã do jaboti, por exemplo, de 1927, a ampliação geográfica, é evidente em -poemas como "Carnaval carioca" e* "Noturno de Belo Horizonte" , entre outros ' presentes no -mesmo livro. A essa ampliação geográfica vai corresponder, paralelamente, o interesse pela história nacional e pela cultura brasileira em geral, sobretudo no que ela tem de distintivo. Alguns poemas-desse mesmo livro baseiam-se, por exemplo, em motivos folclóricos e ritmos populares, material ricamente aproveitado pela literatura modernista, como se pode ver em Macunaíma, do próprio Mário, em Cobra Norato, de Raul BOPP, entre tantos outros textos. Um exemplo de aproveitamento do folclórico - portanto de algo que transcende os limites da cultura de elite, do meio urbano e industrial e. da dinâmica do tempo presente, em que se encontra circunscrito Paulicéia desvairada - é este poema de Clã do jaboti: 34 TOADA DO PAI-DO-MATO (índios Parecis) A moça Camalalô Foi no mato colher fruta. A manhã fresca de orvalho Era quase noturna. - Ah . . . Era quase noturna... Num. galho de tarumã Estava um homem cantando. A moça sai do caminho Pra escutar o canto. - Ah . . . Ela escuta o canto... Enganada pelo escuro Camalalô fala pro homem: . Ariti, me dá uma fruta Que eu estou com fome. - Ah . . . Estava com fome... 0 homem rindo secundou: - Zuimaaluti se--engana, Pensa que sou ariti? Eu sou Pai-do-Mato. Era o Pai-do-Mato. 12 O poema revela muito bem o desejo de voltar-se para as coisas de Brasil primitivo presente na obra de tantos modernistas. Mário parte,, para a sua elaboração, do aproveitamento de um material de pesquisa, cuja origem a observação entre parênteses abaixo do titulo logo esclarece. Ele recorre ao folclórico, ao mitológico, ãs tradições populares, ã dicção oralizante que as caracteriza, aproveitando temas e formas dessa tradição. 0 resultado ê um poema narrativo, muito próximo da prosa, com personagens e diálogos, todo ele construído em cima de metros populares (predominam as redondilhas maiores) . Se "0 domador" ê um típico representante da vertente cosmopolita do movimento, carregado de influências do Expressionismo 35 e do Futurismo, poema de pesquisa de uma linguagem particularxssima, diferenciada, experimental, "Toada do Pai-do-Matö" envereda por outro caminho,, volta-se para o popular, impregna-se da língua do coletivo, recupera uma tradição do fazer poético marginalizada pela alta cultura. A preocupação modernista com as coisas do Brasil vai fatalmente desaguar no nacionalismo. Este está presente nos principais grupos e vertentes literários que surgirão nos anos posteriores ã Semana de Arte Moderna de 22,. e que deixaram seus princípios registrados em manifestos e revistas. A preocupação com o nacional - e com o primitivo - encontra-se já em seus nomes: Pau-Brasil (1924), Verde-Amarelismo (1926), Anta (1927), Antropofagia-41928) . Passado o momento de-.postulação de uma-ruptura corn os passadistas, quando as divergências ideológicas em potencial contiveram-se em favor de um antagonismo.estético estrategicamente homogêneo, os modernistas enveredaram por estéticas e ideologias cada vez mais divergentes, e o combate passou a se travar entre eles mesmos. Pau-Brasil e Antropofagia, encabeçados por Oswald de Andrade, trilham o primitivismo (em grande parte de influência euro- péia) de caráter mais anárquico. Verde-Amarelismo e Anta (Plínio Salgado, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, membros típicos), por sua vez,.trilham o nacionalismo xenófobo. Ambos mergulham, ã sua maneira e com a sua poética própria, na realidade do país, voltam-se à sua formação cultural , acentuando ora o histórico, ora o mítico dessa formação. Pau-Brasil, livro de poemas de Oswald de Andrade publicado em 19 25, fornece-nos um bom exemplo desse mergulho poético. Aí vamos ter a poesia resgatando a história, a 36 geografia, as questões político-sociais, os tipos culturais, as falas, etc. de um país ainda muito pouco conhecido pela sua própria literatura. O intuito de inventariar os element tos componentes da realidade brasileira perpassa todo o livro. E tudo isso é feito de maneira radicalmente original para a poesia brasileira, de forma fragmentária, elíptica, através de poemas curtos com versos também curtos, sem requintes de estilo, sem afetação, num discurso muito próximo ao da prosa : FAZENDA ANTIGA 0 Narciso marceneiro Que sabia fazer moinhos e mesas E mais o Casimiro da cozinha Que aprendera no Rio E o Ambrósio que- atacou Seu Juca de faca E suicidou-se As dezenove.pretinhas grávidas 13 0 despojamento e a simplicidade de um poema como este são evidentes. Através do título,., o poeta nos dá '.importante indicação para a sua -compreensão, sugerindo com ele uma espê,cie de contexto,- ou cenário, do qual os vários elementos apresentados a seguir fazem parte. De . forma muito rápida, através de fragmentos predominantemente nominais, sem que uma articulação sintática usual reúna as partes, o poeta fornece um inventário de certos tipos humanos que habitam essa "fazenda antiga". Nos seis primeiros versos, três personagens masculinas são apresentadas, todas com nomes próprios e algum tipo de caracterização individual específica. A seguir, dezenove figuras femininas, todas anônimas e com caracterização sinté<tica e indiferendada (simplesmente "pretinhas grávidas") 37 espremem-se no espaço de um único verso. Com uma economia poética absoluta, o poeta sugere toda uma interpretação de ordem cultural de uma fase da formação do país (o poema encontra-se na parte do livro intitulada "Poemas da Colonização") . Poemas curtos e elípticos, carregados de sugestões, compõem todo o livro. Contrariamente ao que se verifica em relação a "0 domador", de Mário de ANDRADE, estes tendem a um maior despojamento lingüístico e objetividade. O "eu" lírico apreende o real de uma forma igualmente fragmentária, no entanto sem o mesmo tipo de distorção subjetiva. A linguagem recorta a realidade sem impregná-la com a excessiva emotividade do sujeito. Aliás, de modo significativo, este se encontra, na maior parte dos poemas, sintaticamente ausente do.enunciado. A poesia de Oswald de Andrade apresenta ainda algumas características; importantes da poesia modernista, na utili- zação que faz do humor, e da paródia como elementos de crítica. Motivo de grande irritação por parte dos' defensores de uma poesia "circunspecta", "polida", "elevada", e causador de tantas polêmicas, inclusive em momentos posteriores do desenvolvimento da poesia brasileira, trata-se de um dos veios mais. típicos do Modernismo, presente na poesia de autores significativos como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, etc., e do qual o poeta foi mestre . 38 A presença do humor e da ironia é clara na seguinte composição : 0 GRAMÁTICO Os negros discutiam Que o cavalo sipantou Mas o que mais sabia Disse que era S ipantarrou 14 Este poema revela-se um bom exemplar do que ficou conhecido como "poema-piada". A prescrição de um termo em detrimento de outro, ambos em evidente e saboroso desacordo com as normas do português padrão, é bastante sugestiva de um tipo de. mentalidade, dominante que, como o.-poeta sugere com a escolha do-meio social—("os negros") em que a discussão se dã,- acabou por se espraiar para além do-estrato, social de origem. A designação "o que mais sabia", caracterizando aquele que intervém., de forma absurdamente normativa no uso que os demais fazem da língua, ê acentuadamente irônica, como também, ê irônico o próprio título do poema, que amplia ainda mais o poder de critica de um episódio que poderia, a principio, se configurar como restritamente anedõtico. A paródia ê processo composicional básico deste outro poema : CANTO DO REGRESSO A PÃTRIA Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lã 39 Minha terra E quase que Minha terra Minha terra tem mais rosas mais amores tem mais ouro tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de 1a Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lã Não Sem Sem E o permita Deus que eu morra que volte pra São Paulo que veja a Rua 15 progresso de São Paulo 1 5 t "Canto do regresso ã pátria", retomando de forma paródica a "Canção do exílio", de Gonçalves DIAS, é também paradigma de uma operação poética que iria se generalizar a partir do Modernismo. Murilo Mendes, Drummond e José Paulo Paes, a título de exemplo., retomaram, em-posteriores -e distintos momentos-, também esse mesmo poema, eada qual de forma bastante singular. A paródia, pelo revelador confronto e distorção de sentidos que necessariamente opera a partir de um dado texto, é procedimento recorrente nos momentos em que mais- agudamente a poesia se quer crítica, seja em termos de uma crítica de natureza política, poética, ética, ou o que for. Através dos exemplos e comentários, estão delineadas algumas tendências da poesia da primeira fase do Modernismo. Mário de ANDRADE, em balanço posterior extremamente crítico do movimento, iria sintetizar em três pontos as suas principais contribuições ã literatura nacional: "o direito permanente â pesquisa estética"; "a atualização da inteligência crí- tica brasileira"; "a estabilização de uma consciência criadora nacional". 1 6 40 2.3 2.3.1 MODERNISMO - 2? FASE (1930-1945) Da Ruptura ã Consolidação De 1922 até 1930, estende-se a fase considerada de ruptura do movimento modernista. Durante esse período, como se frisou, surgem novos e importantes autores no cenário da cultura nacional, defensores radicais de uma renovação geral das artes, que vão bater-se com os representantes de um ambiente estético dominante tido como esgotado. Diante das transformações materiais e espirituais por que passam o pais e o mundo naquele inicio de século, era necessário revitalizar os recursos expressivos e ampliaria temática para que a arte pudesse, dar conta de toda^essa nova dinâmica cultural. Ao longo da década, os autores vão se reunir em grupos, vão fundar revistas, lançar manifestos e publicar os seus primeiros trabalhos. Esse instante é ainda de muita agitação, combate e polêmica no campo das preocupações estéticas, próprios de um momento de afirmação de novos valores. 19 30, ano da Revolução de Outubro, tem sido tomado como um divisor de águas do Modernismo, assinalando um momento já notadamente distinto do anterior. A Revolução, um acontecimento eminentemente político-social, acaba tendo grande repercussão em toda a cultura brasileira. A vitória dos liberais cria um clima favorável para as renovações artísticas que vinham sendo realizadas pelos primeiros modernistas, aos quais juntam-se agora novos e decisivos autores, e que, mesmo com os anos autoritários do Estado Novo (1937-1945), não serão comprometidas. A arte modernista, que em 1922 ainda era algo marginal, periférico e de combate no universo 41 da cultura brasileira, se estabelece como a melhor expressão dessa cultura. Em 19 30, o Modernismo é já um movimento vitorioso e as conseqüências disto se fazem sentir amplamente. Se os anos 20 foram anos de agitação cultural e ruptura estética, "os anos 30 foram de engajamento politico, religioso e social no campo da cultura", para citar Antonio CANDIDO no seu ensaio "A Revolução de 19 30 e a cultura". 17 João Luiz LAFETÃ coloca o problema da distinção das duas fases modernistas em termos de uma passagem do "projeto estético" senvolvido nos anos 20) ao "projeto ideológico" do nos anos 30), dois momentos de um mesmo (de- (desenvolvi- processo. 18 Wilson MARTINS diz a esse respeito que "a curva vai da gratuidade estética de 1922 ao compromisso ideológico dos anos 30; da revolução em literatura para a revolução em política". 19 Alfredo BOSI também constata a mudança de orientação a partir de 1930, ao dizer que a Revolução."vincou fundo a nossa literatura lançando-a a um estado 'adulto' e 'moderno' perto do qual as palavras de ordem de 22. parecem fogachos de adolescente". "Mas", completa a seguir o autor, "se desviarmos o foco da atenção da ruptura para as permanências, constataremos o quanto ficou da linguagem reelaborada no decênio de 20". 2 0 Todos estes autores se referem a uma mudança sentida por volta de 19 30 na arte brasileira. Resumidamente, pode-se dizer que o Modernismo de 19 2 2 lutou sobretudo por uma nova "linguagem" (entendendo-se aqui o termo em sentido bastante amplo). Conquistada essa "linguagem", o que se passou a fazer então foi utilizá-la de forma cada vez mais madura e individualizada na compreensão do homem e seus problemas, sejam 42 eles políticos, sociais, religiosos, metafísicos, estéticos, etc., elementos mais ou menos acentuados por este ou aquele autor. 2.3.2 A Poesia Manuel Bandeira, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, entre outros, renovaram radicalmente, na década de 20, os códigos poéticos vigentes no país. Deram um golpe de misericórdia na poesia acadêmica, de raiz paranasiana e simbolista. Fizeram um uso amplo das formas livres e introduziram temas poéticos anteriormente proibidos. Os poetas que surgem a partir de suas conquistas encontram uma linguagem poética plenamente estabelecidada= qual partirão para. explorar toda uma nova. temática. Péricles Eugênio da Silva RAMOS, que a esta segunda fase também reserva a designação de "fase de extensão de campos" 2 1 , contrasta, no que diz respeito especificamente â poesia, da seguinte forma a segunda com a primeira fase: a 1 f (...) f o i d e r u p t u r a com os mo 1 d e s c o n s a g r a d o s e l o g o em s e g u i d a ret r a ç ã o de a s s u n t o s ã ó r b i t a nacionalista (embora não e x c l u s i v a m e n t e ) ; a s e g u n d a , a p a r t i r de 3 0 , p a s s a a p r e o c u p a r - s e com o h o m e m , em s i ou c o m o s e r s o c i a l , p a r t i l h a d a em v á r i a s dir e t r i z e s , de q u e a o s p o u c o s se v a i e x c l u i n d o o h u m o r i s m o : s o c i a l ou p o l í tica ( C a r l o s Drummond de A n d r a d e ) , religiosa ( J o r g e de L i m a , Murilo M e n d e s ) , de i n t e r i o r i z a ç ã o (Cecília M e i r e l e s ) , e t c . A e x p r e s s ã o se f a z m a i s d e n s a d o q u e na p r i m e i r a fase, l e v a n d o a t é ao h e r m e t i s m o n a l g u n s c a s o s . 0 q u e se p r o c u r a é e x p r i m i r a v e r d a d e h u m a n a o u s o c i a l de c a d a p o e t a , n ã o se p e r d o a n d o a a u s ê n c i a de p e r s o n a l i d a d e definida.21 43 Alfredo BOSI tem opinião muitíssimo semelhante a esta no que diz respeito ã poesia. Os primeiros modernistas "haviam rompido com os códigos acadêmicos e incorporado ã nossa lírica as formas livres com exemplos tão vigorosos, e felizes que aos poetas dos anos de 30 não seria mister inventar 'ex nihilo' uma nova linguagem". Aos poetas que surgem após a fase heróica caberã a conquista de novas dimensões temáticas:. a p o l í t i c a * em D r ummon d e M u r i l o Mendes; a r e l i g i o s a , n o mesmo M u r i l o , em J o r g e de L i m a , em A u g u s t o F r e d e r i c o Schmidt, em C e c í l i a M e i r e l e s . E n i o s ó : também se i m p õ e a b u s c a d e , u m a l i n g u a g e m e s s e n c i a l , a f i m ãs e x p e r i ê n c i a s metafísicas e h e r m é t ¡ c a s d e c e r t o ve i o r i 1 k e a n o d a l í r i c a modeitrn a ( . . . ) . 2 3 Se quanto à primeira fase era..relativamente simples -constatar as- mudanças operadas, a nívei de* linguagem poética, visto serem elas gritantes em relação ã poesia anterior, agora, na passagem para este novo momento, a constatação de mudanças vai exigir um mergulho na poética individual de cada autor. já. não ê mais possível falar de forma genérica em "incorporação do verso livre" , "utilização de uma dicção coloquial", "abolição das fronteiras exteriores entre prosa e poesia", etc. para caracterizá-la distintamente em relação â poesia da década de 20. Todos esses elementos, continuando presentes, revelam-se comuns às duas etapas e não podem ser vistos como diferenciadores. Para caracterizar essa poesia abrangentemente, como sugerem. Alfredo Bosi e Pericles Eugênio da Silva Ramos,. tem-se de partir para o exame de elementos mais acentuadamente temáticos e recursos expressivos bastante individualizados, portanto não tão facilmente generalizãveis. 44 Algumas passagens de "Mundo grande", poema de Carlos Drummond de ANDRADE, do livro Sentimento do mundo, de 1940, podem dar uma boa idéia de uma das preocupações dominantes da poesia.do periodo: a de sair do indivíduo em direção aos demais homens, a de voltar-se para o mundo, para o social e para o político, enfocando as tensões existentes no confronto do indivíduo com o coletivo. Vejamos a primeira estrofe do poema, que estabelece em seu início significativo diálogo com poema anterior do mesmo autor : Não, meu coração não é maior que o mundo. £ muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto, tanto de me contar. Por isso me dispo, por isso me grito, por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias : preciso de.todos. 2 ^ Os primeiros versos dialogam com outros, do "Poema de sete faces", composição que abre o livro inaugural de Drummond-, Alguma poesia-, publicado em 1930 , trabalho ainda bastante dentro-do espírito da primeira fase do- Modernismo. Os versos famosos daquele poema ("Mundo mundo vasto mundo,/ mais vasto é meu coração..") contrastam com estes, que os estão questionando de maneira frontal: "Não, meu coração não é maior que o mundo./Ë muito menor.". Se lã o poeta via a si próprio enquanto um "gauche", um homem ä margem do mundo, distanciado de tudo e de todos através de uma visão irônica e cáustica da realidade, incapaz por isso de se comunicar, de se identificar com qualquer valor positivo, aqui neste 45 poema essa perspectiva se atenua, e o poeta vai tentar aproximar-se desse mundo. Essa aproximação encontra um dos seus meios na poesia. A partir da constatação dos primeiros versos, Drummond como que procura explicar o impulso que o leva a escrever, a se expor publicamente através dela, e assim estabelecer um contato com o mundo. Sentindo-se pequeno, sentindo seu "coração" como algo inferior ao "mundo", o poeta percebe que nele já» não cabem nem as suas próprias dores, e por isso precisa extravasá-las de alguma maneira, partilhar essas dores com esse mundo: "preciso de todos", ele diz. E a maneira de fazê-lo é. escrever: "Por isso me dispo/por isso me grito". A descoberta da grandeza do "mundo diante da pequenez do sujeito se amplia ainda na segunda estrofe: Sim, meu coração ê muito pequeno. So agora vejo que nele não cabem os homens. Os homens estão cã fora, estão na rua. A rua e enorme. Maior, muito maior do que eu esperava. Mas .também a rua não cabe todos os homens. A rua é menor que o., mundo. 0 mundo ê grande. Repare-se no tom de revelação que perpassa o texto. Mergulhado anteriormente.na própria subjetividade, sentin- do-se plenamente capaz de abarcar dentro de si, e portanto compreender ã sua maneira, tudo o que lhe era exterior, o sujeito de repente se dã conta da precariedade dessa ilusão, e com certo espanto começa a descobrir a realidade ã sua volta. Hã um crescendo nas constatações. Primeiro ele percebe a sua pequenez ("meu coração ê muito pequeno") em rela- ção ã totalidade dos outros sujeitos ( -"nele não cabem os homens"). Percebe então o espaço mais imediato, "a rua", mas 46 esse espaço ainda se lhe afigura pequeno em relação aos "homens". Descobre então, finalmente, "o mundo", espaço vasto ("O mundo ë grande."), que pode conter toda a humani- dade . Esta nova perspectiva diante dos homens e do mundo contrasta, como o diálogo com "Poema de sete faces" bem evidencia, com a que possuía o poeta anteriormente. Drummond insiste nesse aspecto e explicita: Outrora viajei países imaginários, fáceis de habitar, ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio . Meus amigos foram ãs ilhas. Ilhas perdem o homem. Seu mundo anterior era um mundo de "países imaginários" e "ilhas sem problemas" riamente convocarem (apesar de estas contradito- "ao suicídio"), um mundo de alienação, de evasão, de distanciamento, de solidão, de não-comunicação. Os versos - "Meus amigos foram ãs ilhas./Ilhas perdem o homem." - parecem sugerir que essa realidade não lhe era particular, circunscrita exclusivamente ã sua pessoa, mas algo mais amplo, relativo a toda uma geração. Esse dado ë importante para avaliar a amplitude deste poema, que escapa ao eminentemente pessoal para constatar toda uma época. As estrofes finais explicitam o instante da ruptura com essa perspectiva: Entretanto alguns se salvaram e trouxeram a notícia de que o mundo, o grande mundo esta crescendo todos os dias, entre o fogo e o amor. 47 Então, meu coração também pode crescer. Entre o amor e o fogo, entre a vida e o fogo, meu coração cresce dez metros e explode. - Ö vida futurai nos te criaremos. Alguns rompem com essa visão, escapam ao isolamento e retornam com a boa noticia. Ê ela, a constatação da grandeza do mundo, que deslumbra o poeta ao longo de todo o texto, e que lhe abre uma possibilidade de esperança e solução para a sua angústia. Na última estrofe, a possibilidade do poeta tentar se aproximar desse mundo em crescimento para poder também crescer adquire tonalidades de euforia e o leva a uma explosão de esperança na capacidade construtiva do homem: " - Õ vida futura! nós te criaremos.". Neste poema verificam-se alguns procedimentos característicos da poesia modernista, comuns aos dois momentos assinalados: o poeta faz uso do verso livre e opta por uma dicção bastante coloquial. Além disso, deixa de lado torneios sintáticos muito complicados e suas escolhas lexicais e metaforização se revelam simples e de fácil entendimento. Há, neste poema, um desejo claro de comunicação com o leitor, fato corroborado pelo caráter confessional e pelo tom discursivo e emotivo do texto. No entanto, aquele caráter agressivo e afirmativo do primeiro Modernismo, presente no manifesto de intenções que é "Poética", de Manuel Bandeira, ou ainda nas experiências precioslsticas de Mário com a linguagem poética, em Paulicéia desvairada, não se fazem notar. Não há também o humor e a ironia de Oswald, ou daqueles mesmos dois poetas em outros textos seus, elementos dos quais também Drummond faz uso 48 significativo em sua poesia inicial. 0 caráter sintético do "poema-piada" mais característico contrasta com a circunspecção de largo fôlego reflexivo deste seu "Mundo grande". O descritivismo do Modernismo inicial, afim ao desejo de inventariar as realidades brasileiras, cede espaço a um tom mais confessional e filosófico. Não são os detalhes da paisagem rural ou urbana, os aspectos anedóticos do cotidiano, os tipos sociais, as peculiaridades regionais, os dados da história - enfim, o mapeamento de um Brasil que se descobre com "novos olhos" (para usar aqui a expressão de Oswald) - o. que propriamente interessa, como no primeiro, momento, mas sim a problemática do homem projetada em termos bem mais universais. Drummond tematiza as tensões entre o sujeito e o mundo, entre os sujeitos e os demais-sujeitos, e—nesse sentido seu poema toca o filosófico. É importante acentuar que este poema diz respeito a "um" dos momentos poéticos de Drummond e a "uma" das tendências temáticas da sua vasta e importante poesia. Ele serve, aqui, para explicitar.a propensão humanística de boa parte da produção desse período, que se concretiza em termos de preocupação com os problemas do sujeito em relação ao social, ao coletivo, ao político, e que encontra no próprio Drummond um poeta capital. já em "Corte transversal do poema", de Murilo MENDES, publicado no livro Poemas, de 1930, vamos ter um tipo de poesia bastante diferente. Aqui, o onírico, o mágico e o alógico, na esteira da imagística do Surrealismo francês, ganham destaque. A busca de uma "linguagem essencial", através de uma "expressão que se faz mais densa", beirando por vezes o 49 "hermetismo", de que falam Alfredo BOSI e Silva RAMOS, encontra um bom exemplo aqui : CORTE TRANSVERSAL DO POEMA A música do espaço pára, a noite se divide em dois pedaços. Uma menina grande, morena, que andava na minha cabeça, "fica com um braço de fora. Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos. Um anjo cinzento bate as asas em torno da lâmpada. Meu pensamento desloca uma perna, o ouvido esquerdo do céu não ouve a queixa dos namorados. Eu sou o olho dum marinheiro morto na Índia, um olho andando, com duas pernas. 0 sexo da vizinha espera a noite se dilatar, a força do homem A outra metade da noite foge. do mundo, empinando os' seios. So tenho o outro lado da energia, me dissolvem no tempo que vira, não me lembro mais quem sou. 2 0 primeiro verso do poema pode nos dar alguma espécie de chave para.v o-ingresso-no seu universo de imagens-inusitadas. Temos aqui a referência a uma interrupção ("a música do espaço pára") e a uma cisão ("a noite se divide em dois pedaços") . A interrupção da ordem das coisas ("música do espaço" "harmonia do universo") e a cisão de um todo homogêneo ("noite") resultam num novo tipo de realidade, onde tudo parece se ordenar de forma absolutamente distinta. Cabe aqui tentar entender onde isto ocorre: se na realidade exterior ou na subjetividade do poeta; se no universo dinâmico e caótico do mundo moderno, que. põe de pernas para o ar todos os valores e relações, ou na percepção líricamente deformadora do sujeito. 0 enquadramento ideal dessa questão está provavelmente no movimento pendular entre esses dois pólos. A reordenação da. realidade é apresentada pelo poeta através das fantásticas imagens que vão surgindo a seguir. O sujeito parece se voltar, nas várias descrições, para coisas aparentemente 50 exteriores e que lhe chegam ã consciência sobretudo através do sentido da visão. O descritivismo do texto ë acentuado e precisa ser ressaltado pelo que pode revelar de impulso em direção ã realidade objetiva. No entanto, o caráter onírico e inconsciente dessas imagens parece insinuar que sua origem se encontra na verdade no interior da própria subjetividade lírica do poeta. Tem-se assim, na constituição dessas imagens, uma orientação em direção ao exterior objetivo e ao interior subjetivo. A fusão dos dois estatutos dã a sensação de caos*, de desorganização, de dissolução de limites. Sujei- to e objeto perdem seus contornos. Versos como - "Eu sou o olho dum marinheiro morto na índia,/dum olho andando, com duas pernas." — i n s i n u a m essa dupla orientação, essa fusão entre sujeito e objeto. O poeta projeta seu próprio ser em algo distante no tempo e no espaço, e que se encontra organizado de forma absolutamente absurda. Tempos, espaços e formas normalmente distintos e mutuamente excludentes passam a conviver simultaneamente. Outros segmentos do poema reiteram o seu modo de ser. 0 caráter onírico das imagens, por exemplo, ë referido explicitamente: "Alguém anda a construir uma escada pros meus sonhos.". A idéia de ruptura com a ordem usual das coisas, também: "Meu pensamento desloca uma perna". No último verso do poema - "me dissolvem no tempo que virá, não me lembro mais quem sou." - acentua-se a referida dissolução de limites. 0 poeta, na sua plena fusão com as coisas exteriores, se dissolve no tempo, perde a noção da sua própria individualidade . 51 Este tipo de poesia aponta para uma tendência bastante forte de certa vertente da poesia moderna: o questionamento da capacidade da linguagem de apreender o mundo de forma clara e univoca. 0 caráter referencial, denotativo, comum a toda a linguagem, se esfuma, se esvai, se dissolve. A linguagem poética já não se volta para realidades exteriores, reali- dades palpáveis do mundo. Ë ela quem vai criar suas realidades particulares, estabelecer referenciais em potencial, truncando os sentidos e pondo em xeque toda a logicidade possível. Nesse movimento, ela vai insistir na liberdade ta da absolu- criação e independência da poesia, levando o ideal do poeta demiurgo aos limites mais distantes. Como se observa,- os versos são livres, e a dicção _geral do texto, a despeito das suas imagens estranhas, tem muito de coloquial. Ë sem cerimônia, sem rebuscamento, de forma direta e num ritmo bastante prosaico que o poeta apresenta todo o seu mundo poético de absurdos oníricos. Assim, se por certos recursos de expressão ele se aproxima do Modernismo inicial - verso livre, dicção coloquial, poema sem forma fixa -, por outros - sobretudo suas imagens - ele se afasta numa direção bastante particular. Ele aprofunda questões capitais, como a da relação entre sujeito e mundo, que Drummond enquadra de forma bastante diversa, ou ainda a da própria essencialidade e liberdade da linguagem poética. Não há aqui nem humorismo ou paródia, aspectos da contestação e da critica ao passaáo literário, nem preocupação de inventariar o Brasil, através de um descritivismo por vezes pitoresco ou da incorporação do primitivo. Estã-se já num momento distinto do Modernismo inicial, de amplitude bem universal. 52 Outra vertente temática da poesia do período apontada é a da poesia de caráter religioso. 0 próprio Murilo vai enveredar por aí, publicando, em 1935, junto com Jorge de LIMA, Tempo e eternidade, üm poema deste iivro, "Distribuição da poesia, de Jorge, exemplifica muito bem o espírito dessa orientação: DISTRIBUIÇÃO DA POESIA Mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das ãguas, luz tirei do céu. Escutai, meus irmãos : poesia tirei de tudo para oferecer ao Senhor. Não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos. Estalajadeiros não me incomodeis. Bufarinheiros e banqueiros sei fabricar distâncias para vos recuar. A vida está malograda, creio nas mágicas .de Deus . Os gaios não cantam, a manhã não raiou. Vi os navios irem e voltarem. Vi os infelizes irem e voltarem. Vi homens obesos dentro do fogo. Vi ziguezagues na escuridão. Capitão-mor, onde é o Congo? Onde e a Ilha. de São Brandão? . Capitão-mor que noite escura! Uivam molossos na escuridão. Ö indesejáveis, qual o país, qual o país que desejais? Mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das ãguas, luz tirei do céu. Só tenho poesia para vos dar. Abancai-vos, meus irmãos. 26 A presença do discurso bíblico ao longo destes versos é clara. Já nos primeiros dois, alguns termos caros ã simbologia cristã encontram-se presentes: "mel silvestre", "sal", "luz". O primeiro aparece nos Evangelhos como o alimento de João Batista, juntamente aos "gafanhotos", durante suas peregrinações no deserto. Quanto aos outros dois, são termos 53 empregados pelo Cristo ao referir-se aos seus seguidores: "vós sois o sal da terra", "vois sois a luz do mundo". 2 7 Sem este "sal" e esta "luz", sem o que dá sabor ãs coisas e as ilumina, a vida não tem qualquer sentido. No poema, todos os termos parecem simbolizar a essencialidade das coisas extraída peio poeta, a sua própria poesia portanto, como bem explicitam os versos 3 e 4. Ela, que lhe serve de alimento, dã sabor ãs coisas que experimenta e o ilumina, é por ele extraída e oferecida a Deus. Esta verdade para ele essencial, o poeta a proclama aos outros homens, a quem chama de "irmãos", recorrendo a tratamento bastante comum no âmbito do discurso religioso cristão. Partindo destas afirmações positivas, Jorde de LIMA contrapõe, ao longo dos versos 5 e 10, a essa poesia que extrai da essência das coisas valores que.ele insiste em negar: a riqueza ("ouro da terra") e a exploração do homem ( "sangue de meus~ irmãos") , bem como os seus representantes no mundo ( "estalajadeiros", "bufarinheiros" e "banqueiros"), figuras ligadas ao comércio e ã especulação financeira, que ele quer afastadas de si. "A vida estã malograda", diz-nos a seguir, e por isso a única solução ë voltar-se para a fé em Deus. Os versos.de 13 a 24 trazem todos visões plenas de maús pressãgios, com dor, morte e perdição, e nas quais a "escuridão" surge como símbolo central. O mundo ao redor se apresenta em tons bastante lúgebres, reforçando assim a necessidade de buscar algo que o transcenda. A estas visões apocalípticas, segue uma repetição dos jubilosos versos iniciais, revertendo esse tom de obscuridade e desesperança. Depois das visões tenebrosas, novamente 54 o "mel silvestre", o "sal" e a "luz" são resgatados. A "poesia", que os resume a todos, ê a única coisa que o poeta tem para distribuir. Convida, portanto, para que o ouçam: " Abancai-vos, meus irmãos". 0 poema revela-se assim uma espécie de profissão de fé na poesia como elemento redentor e um convite â comunhão. E através dela que o poeta se aproxima de Deus e dos outros homens. Ë ela a sua oferta ã divindade e aos seus semelhantes. Ë por melo dela que a falta de sentido de um mundo que se afigura por vezes aterrador pode ser superada. Igualmente aos poemas anteriores, a liberdade formal deste poema de Jorge dê Lima ê bastante grande. Os versos são livres e nenhum padrão estrutural fixo-determina a composição "das™ partes ou do. todoí-A. dicção, -o ritmo do texto aproximam-se-porém .do_versículo bíblico, linguagem orientado- ra desta poesia, o que dã o tom de prédica e profecia que atravessa o poema. A temática religiosa que o anima, bem como o recurso ã linguagem bíblica dão a ele contornos de ampla universalidade, inserindo-o num tipo de literatura que trancende o local, o regional ou o nacional, perspectiva aliás presente em boa parte da obra inicial de Jorge de Lima. Os três poemas aqui comentados dão uma boa idéia das tendências temáticas e de expressão do segundo momento modernista. já não se está mais diante de um desejo de ruptura formal com o passado, quando o choque e a provocação eram elementos obrigatórios. A liberdade expressiva e composicional são moeda corrente. A experimentação radical com as formas já não ë mais algo que surge como um programa de escola, imposto por vezes dê fora para dentro. O humor e a paródia de certa vertente modernista ( a do "poema-piada") dão 55 lugar a uma poesia mais circunspecta. O humor anterior, conseguido com traços rápidos e superficiais, cede lugar a uma poesia mais densa, de maior profundidade. 0 nacionalismo que domina boa parte da poesia do Modernismo de 22, mais ou menos xenófobo, mais ou menos crítico, dá lugar a uma poesia mais universalista, preocupada muito mais com o homem e suas tensões com o mundo - que adquirem diferentemente nos vários poetas contornos de preocupação social, política, religiosa, metafísica - do que com o descritivismo paisagista e a investigação histórica, geográfica e antropológica, postos a serviço da construção de mitos da nacionalidade. 2. 4...- GERAÇÃO DE 4 5 2.4.1 Duas Versões Contraditórias Se em geral é unânime a opinião da crítica acerca da importância do Modernismo e de.autores como'Mário, Oswald, Bandeira, Drummond, Murilo Mendes e Jorge de Lima para a evolução da poesia brasileira moderna, o mesmo não ocorre com aqueles poetas que foram englobados sob a designação de "Geração de 45". A avaliação da importância da sua poesia é polêmica. Uma idéia do problema nos ë dada por Affonso Romano de SANT'ANNA no seu artigo "Geração 45: Um mal entendido faz 25 anos", publicado pela primeira vez em agosto de 1970 no "Jornal do Brasil", cujo título já é bastante sugestivo da posição do crítico frente â questão. Ele, particularmente, acusa como problema capital a falta de um programa estético e ideológico definido nessa geração. Sua razão de ser estaria, 56 muito mais do que numa poética coletiva, na natural oposição dos novos poetas, todos bastante jovens então, â poesia anterior, em especial ao Modernismo de 22. Nesse mesmo artigo, logo no seu início, a título de instigação â polêmica, o autor arrola, na forma de epígrafes, uma série de opiniões controvertidas a respeito do valor da "Geração". Entre as considerações mais acidamente detratoras contidas nessas epígrafes, encontra-se a de José Guilherme MERQUIOR, a partir da qual se pode, com os devidos descontos, retirar os contornos dessa poesia: . . . a l i n g u a g e m de kS p a r e c e t e r nasc i d o n o d i c i o n á r i o d e C â n d i d o de F i g u e i r e d o . Suas i m a g e n s são r a r a s , de r a r a a n e m i a e a b s t r a ç ã o . . Seus-.me t r o s repelem a f l e x i b i l i d a d e , p s i c o l ó g i c a d e 2 2 . A p o e s i a p ô s g r a v a t a . Uma s e r i e d a d e d i f u s a se e s p a l h o u p e l o verso. E uma c o n s t r u ç ã o d e f a l s o a r pensado; como se e s s e s p o e t a s , n ã o t e n d o c h e g a do a m e d i t a t i v o s , f i c a s s e m a p e n a s meditabundos.28 MEROUIOR, em meio aos disparos de ironia, se refere a uma oposição que serã sempre lembrada na caracterização dessa poesia: a oposição entre 45 e o Modernismo de 22. Frente â revolução dos demolidores modernistas, os poetas de 45 são sempre lembrados como bem comportados, restauradores, quando não francamente reacionários, esteticamente falando. 0 resgate das formas fixas, dos metros tradicionais, a preferência por um léxico raro e erudito, por imagens preciosas, a oposição ao humor e ao coloquialismo anteriores, a pretensão ã seriedade e ã profundidade, foram muitas vezes identificados como um retrocesso poético.' 57 1 No entanto, essas mesmas opções são justificadas de maneira muito diferente por aqueles que estavam de alguma forma ligados ao espírito da "Geração". Péricles Eugênio da Silva RAMOS, por exemplo, crítico de literatura, tradutor e poeta, justifica a importância poética da sua geração nos seguintes termos: A s u a a t i t u d e e s t é t i c a f o i de r e a ç ã o c o n t r a o c l i m a d e s l e i x a d o da p r i m e i ra f a s e m o d e r n i s t a , r e i v i n d i c a n d o uma v o l t a ã d i s c i p l i n a e ã ordem, ã r e f l e x ã o e a o r i g o r i s m o , ã b u s c a da f o r m a e do e q u i l í b r i o , ã c o m p r e e n s ã o , ao h u m a n o g e r a l e a o u n i v e r s a l i s m o , a uma v o l t a ãs r e q r a s do v e r s o , ã P o é t i c a e ã Retórica. 9 Se entendemos a evolução da arte como um movimento constante de oposição de novos cânones aos eânones-.estabelecidos (e o novo, para determinada época, não é necessariamente o absolutamente original), parecem bastante legítimas as colocações do poeta. 2.4.2 A Geração de 45 como fase da Poesia Brasileira péricles Eugênio da Silva RAMOS, no seu ensaio sobre a poesia do Modernismo de onde foi extraída a citação acima ("0 Modernismo na Poesia"), identifica a Geração : de 45 a uma terceira fase da poesia modernista, que seguiria as duas fases jã anteriormente comentadas (1922: "fase de ruptura"; 1930: "fase de extensão" - na expressão desse mesmo crítico), chamando-a de "fase. esteticista". 0 termo é problemático, pois pode dar a entender que as fases anteriores teriam dado pouca atenção ao "estético",, o que é absolutamente falso. Na verdade, o que parece estar implicado aí é um determinado 58 sentido dado ao termo. Ao chamar a poesia desse periodo de "esteticista", o poeta e critico parece estar querendo chamar a atenção para um certo tipo de artesanato verbal, para um certo rigor, informação e erudição que ele acredita haver na manipulação dos materiais, que os poetas anteriores, no seu trabalho de índole mais irracionalista, espontânea e irreverente, teriam deixado de lado. Quando se chama a essa geração de "esteticista", "formalista", "neoparnasiana", etc., parece que ë esse caráter mais "artificioso" do seu fazer poético que está sendo acentuado. Identificar aqueles autores que ficaram conhecidos como típicos representantes da Geração de 45 a um -terceiro momento do Modernismo ê na verdade muito problemático, pois a importância--destes ë pequena se comparada aos poetas anteriores ou a outros que começam a surgir por esse período, mas que teriam seus nomes ligados ás vanguardas das décadas de 50 e 60, ou vistos como não enquadrãveis, como ë o caso de João Cabral de Melo Neto. A operação tem o claro objetivo de valorizar, de ligar a uma cadeia de continuidades, um momento da poesia que nunca foi avaliado da mesma forma que o Modernismo. Em todo o caso, entre o Modernismo e o ainda polêmico e frutífero período das Vanguardas Anos 50/60, encontra-se um momento definido da evolução da poesia brasileira que não pode ser visto simplesmente como um retrocesso, um equívoco, um mal-entendido, uma vez que é reflexo de todo um ambiente cultural do país propício ao seu surgimento. 0 espírito da poesia da Geração de 45 ë algo que extrapola os limites que em geral lhe são atribuídos; não é algo exclusivo dos poetas 59 englobados sob esta designação. Tem-se destacado, por exemplo, a existência de um fazer literário afim ao da Geração de 45 em vários outros países após a Segunda Guerra Mundial. 30 Estes poetas, como os brasileiros, estariam elaborando a sua poesia sob a influência de certos autores como Valéry, T.S. Eliot, Rilke, Pessoa, Lorca, etc., poetas em certa medida ligados ao hermetismo e ã tradição da poesia simbolista inaugurada por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé. Outro dado importante a se considerar ë o retorno de muitos dos modernistas, como Drummond, Jorge de Lima e Murilo Mendes, mestres do verso livre, ãs formas da tradição, aos metros fixos, ã rima, ã erudição lexical, etc. em muitos de seus "livros: do:, período.. Da mesma forma, poetas como Augusto e. Haroldo.de Campos, Dëcio Pignatari e José Paulo Paes, que posteriormente" iriam optar pelos- caminhos da vanguarda literária, estréiam nesse período com versos por vezes muito próximos aos praticados pelos representantes típicos da Geração de 45. Parece haver uma tendência geral no período, para a qual convergem os antigos modernistas e da qual partem os vanguardistas de 50 e 60, uma espécie de momento de transição, cujos traços mais evidentes acabaram sendo identificados somente àqueles que ficaram circunscritos ao que se passou a chamar - a partir da designação criada por eles próprios Geração de 45. 2.4.3 A Poesia Algumas características gerais mais explícitas da poesia de 45 foram observadas acima. São elas: resgate da rima e dos metros fixos; retorno ãs formas da tradição da 60 poesia, como o soneto, a elegia, a ode; preferencia por urna dicção mais séria e solene, portanto menos coloquial e cheia de humor, como era corrente na produção poética modernista; utilização de um léxico raro e erudito; preferência por imagens sofisticadas, preciosas, muitas vezes sob a influência da imaglstica do Surrealismo; exploração da sonoridade dentro do gosto da tradição da poesia simbolista; metaforização intensa; pretensão ã profundidade e ã seriedade no tratamento dos temas. Obviamente, essas características gerais vão ter nos textos de cada poeta uma realização singular e problemática. A inexistência de um programa poético coletivo relativiza muito o valor de tais•generalizações e simplificações para o entendimento pleno da poesia realizada no período. Um primeiro exemplo do tipo de poesia praticada pode ser observado no seguinte poema de Lêdo Ivo: SONETO Ä doce sombra dos cancioneiros em plena juventude encontro abrigo. Estou farto do tempo, e não consigo cantar solenemente os derradeiros versos de minha vida, que os primeiros foram cantados jã, mas sem o antigo acento de pureza ou de perigo de eternos cantos, nunca passageiros. Sôbolos-, rios que cantando vão a lírica imortal do degredado que, estando em Babilônia, quer- Sião, irei, levando uma mulher comigo, e serei, mergulhado no passado, cada vez mais moderno e mais antigo. 31 61 Em termos exteriormente formais, chama a atenção logo de início o resgate de uma forma da tradição literária como o soneto, que havia sido praticamente banida da poesia brasileira, sobretudo no que diz respeito aos poetas realmente significativos, durante os anos áureos do Modernismo. Além de fazer uso do soneto, o poeta também resgata um metro identificado ãs composições de caráter mais clássico, o decassílabo, e um esquema rígido de rimas consoantes (abba/abba/cdc/ bdb) . Temáticamente, o poema traz algumas reflexões sobre a poesia do próprio poeta, e esse seu caráter meta.lingüístico pode relevar alguns dos princípios gerais da poética da Geração de 45. Seria interessante destacar alguns dos dados encontrados ao longo do texto referentes ao tipo de poesia ao qual o poeta se inclina. Abrigado inicialmente pela poesia ("ã doce sombra dos cancioneiros"), ele vai revelar a sua revolta contra o "tempo" e constatar ser incapaz de elaborar versos que transcendam esse mesmo tempo - versos que serão os "derradeiros" e que ele pretende "cantar solenemente". Há um desejo de resgate de um "antigo acento", característico de "eternos cantos, nunca passageiros", ausente de sua primeira poesia. O desejo de uma volta ao antigo,, uma vez que ela ë garantia de uma poesia ao abrigo do tempo, ë explícito. Esse impulso pode ser entendido como um impulso ao "clássico" , "àquilo que tende ã perenidade e tem na permanência exemplar e influente a garantia de sua superioridade. Toda a terceira estrofe, que inicia com o verso "Sôbolos rios que cantando vão", faz referência óbvia ao poeta da língua portuguesa clássico por excelência: Luis de Camões. E os versos da estrofe final reiteram e explicam esse impulso ã tradição como forma de superar os impasses poéticos do presente. Resgatar o "passado" ê resgatar as vertentes mais ricas e produtivas da lírica, forma vislumbrada de dar continuidade ao desenvolvimento da própria poesia: "e serei, mergulhado no passado,/ cada vez mais moderno e mais antigo.". Estes dois últimos versos do poema são um achado metalingülstico felicíssimo para explicitar o estado de espirito de toda essa geração de poetas. 0 Modernismo de 22 foi, pelo menos durante a fase de combate, um movimento pautado pelo desejo de ruptura com a tradição e destruição de valores estabelecidos, influenciado pelas vanguardas européias do inicio do século , antipassadistas- ao extremo. .-0 impulso desenfreado ao novo como único juízo de valor artístico legitimo acaba por encontrar contestação num período posterior, quando os valores das vanguardas do inicio do século insinuam um esgotamento. Para muitos dos poetas da Geração de 45, uma volta ao passado se impunha como forma de se poder continuar criando. Esta forma encontrada foi contestada posteriormente pela poesia brasileira quando a vanguarda ressurge revigorada ao longo dos anos 50 e 60. Um segundo poema, "Rosa, Floresta de Sangue", de péricles Eugênio da Silva RA.M0S, deixa ainda mais claro o tipo de dicção dominante no período: 63 ROSA, FLORESTA DE SANGUE Rosa, floresta de sangue, aurora atormentada por saber-se pura, rosa cascata de paixão! Um dia vem, um dia vai, porem tu ficas, vendaval de chamas, o rosto ensolarado, a boca sem palavras, como um fantasma erguido sobre as proprias cinzas ! Centelha silenciosa, fogo mais que argila, oferta rubra do Senhor das Flamas, tu ficas! tu não mudas! tu imperas! tu reinas para sempre, 5 cortesã da eternidade, enquanto o sol, no espaço, despetala os seus geranios de ouro! Tu ficas para sempre, nave em fuga! Ö nau sem âncora que bailas sobre um mar purpúreo, tu ficas! tu não passas! tu dominas! Porém vermelha de horizontes, ébria de intempéries,, tu ergues, rosa! teu.lamento nos ciclones, se a vaga dos abismos te arrebata! Ah! tu te queixas, barca ensangüentada! lenho funeral! enquanto esperas a onda negra: ah ! tu te queixas de teu rumo - certo - de gaivota, quando és a força do pecado e a seiva da beleza. Ah! sim, também a morte sela seu olhar, Porém tu permaneces, coração calado! Porque és a perfeição que desconhece o tempo, a forma que persiste além das pétalas que tombam... 32 Diferentemente do poema anterior, este ë todo ele constituido por versos livres, sem rimas de qualquer espécie e estrofes de tamanho variável. Ele incorpora, portanto, elementos que no Brasil foram introduzidos e tornados comuns pela poesia modernista. Porém, o tom desta poesia está muito distante do que o Modernismo produziu de mais típico. Chama a atenção já de inicio a exuberância metafórica, a excessiva discursividade (alheia a qualquer princípio de síntese), a repetição de estruturas sintáticas, o tom de evocação afetada do poema, por exemplo, só na primeira estrofe, o motivo "rosa" encontra os seguintes equivalentes metafóricos, todos eles extremamente redundantes: "floresta 64 de sangue", "aurora atormentada", "cascata de paixão", "vendaval de chamas". No inicio da segunda estrofe, três extensos apostos coordenados, todos substitutos metafóricos, antecedem o sujeito do período (novamente a mesma "rosa" implícita no pronome "tu"), que por sua vez é seguido por quatro predicados - "ficas", "não mudas", "imperas", "reinas". 0 excesso de apostos, vocativos, exclamações, adjetivações pomposas, etc. dão ao poema um tom de escassa modernidade, que o aproxima muito do espirito de certa poesia romântica. Temáticamente, o poema trata da tensão existente entre a vida e a morte í o perene e o passageiro. A "rosa", extensamente caracterizada ao longo do texto, parece ter. seu significado ampliado, deixando de ser tão somente uma flor, para se constituir enquanto símbolo de algo muito maior, um símbolo da vida, da permanência, da imutabilidade, da alma, da essência, da beleza das coisas, que resiste afinal ao tempo e â morte aparentes. A perspectiva ê, portanto, idealista, platônica em essência, o que denuncia um olhar poético pouco afeito â modernidade, onde a transitoriedade, a precariedade, a materialidade, a historicidade das coisas são os aspectos mais acentuados. Se o poema anterior apresentava uma tensão presente num determinado tipo de fazer poético que. resgatava formas e dicções passadas para fazer a poesia do presente ("serei, mergulhado no passado, cada vez mais moderno e mais antigo") , este apresenta uma mesma tensão, ao trazer para o tempo presente uma perspectiva idealista frente ã vida que contradiz frontalmente as vertentes dominantes do pensamento moderno. 65 Essa contradição formal e temática, esboçada nestes comentários aos poemas, está presenta em boa parte da poesia de 45. Os poetas cujos poemas serviram aqui para explicitar um pouco da poesia da Geração de 45 são arrolados, sem qualquer contestação, entre os seus típicos representantes. Um outro poeta, cronologicamente pertencente a essa mesma geração, mas que mantém grande independência pela sua poética particularlssima e pela influência marcante em toda a poesia brasileira posterior, ë João Cabral de MELO NETO. Alguns versos seus precisam ser aqui comentados, paira se perceber que rumos a poesia brasileira iria tomar a seguir. PSICOLOGIA DA COMPOSIÇÃO VI Não a forma encontrada como uma concha, perdida nos frouxos areais como cabelos ; não a forma obtida em lance santo ou raro, tiro nas lebres de vidro do invisível; mas a forma atingida como a ponta do novelo que a atenção, lenta, desenrola, aranha; como o mais extremo desse fio frágil, que se rompe ao peso, sempre, das mãos-' enormes.3 3 Este único fragmento de "Psicologia da composição" basta para se entender a poética proposta por João Cabral de METO NETO, e que teria desdobramentos posteriores em certas vertentes da poesia de vanguarda das décadas' seguintes, 66 sobretudo no Concretismo. Nas duas primeiras estrofes, o poeta se contrapõe a um fazer literário baseado numa certavisão de poesia, propondo nas duas seguintes o seu próprio processo criativo. Temos, inicialmente, a negação daquela visão segundo a qual a poesia é algo que se manifesta ao poeta ao sabor do acaso, de uma inspiração momentânea sem qualquer explicação racional ("em lance santo ou raro"), e que dele não exige um maior trabalho por se encontrar jã plenamente constituida no momento da sua manifestação. A esse fazer, o poeta vai contrapor a construção criteriosa, o trabalho concentrado e lento. Há aqui a defesa explícita do poeta artífice, do poeta que se debruça sobre o -papel exclusivamente com as armas da-razão e-da vontade construtora, do poeta plenamente consciente do seu labor, senhor absoluto de todo o impulso lírico. João Cabral é o poeta mais influente surgido no periodo. 0 seu artesanato verbal, o seu rigor construtivo recuperam em certa medida muito de um certo "espirito clássico" de composição, ausente na poesia brasileira (talvez a exceção seja Guilherme de Almeida) durante os anos heróicos do Modernismo. Nesse sentido, ele se afasta da vertente mais espontânea da poesia modernista, o que permitiria enquadrá-lo dentro do espirito de antagonismo frente â poesia anterior, presente em muitos dos poetas da Geração de 45. No entanto, Cabral, por esse mesmo rigor e artesanato, pelo caráter radicalmente metalingülstico da sua poesia, prenuncia jã o experimentalismo rigoroso e contido das vanguardas, distante da espontaneidade lírica e avesso aos excessos b7 verbais e ao passadismo em que tantos poetas de 45 caíram, como são os casos paradigmáticos dos dois poemas anteriormente comentados. Cabral, na excelência individual de sua poesia, fica assim como uma voz um tanto quanto dissonante em meio ã geração em que por fatalidade cronológica se encontra didaticamente compreendido. 2.5 2.5.1 VANGUARDAS ANOS 5 0/60 Uma Fase de Programas Poéticos Coletivos Affonso Romano de SANT'ANNA arrola sob a designação "vanguardas" uma série de movimentos poéticos surgidos no Brasil, entre 1956 e 1968: Concretismo (1959), Tendência (1956), Neoconcretismo (1957), Prãxis (1962), Violão de Rua (1962), Poema Processo (1967) e Tropicalismo (1968). 34 O enquadramento de todas essas tendências sob um único e polêmico termo é problemático e exige algumas observações. Quem conhece a poesia praticada por cada um desses movimentos entende logo que o termo "vanguarda" nem sempre está sendo usado para cada caso com o mesmo sentido. Se Violão de Rua é uma vanguarda, não o ê obviamente no mesmo sentido que o Concretismo. Este se enquadra sem maiores problemas no que em geral se entende por vanguarda poética: é um movimento inovador, que rompe com as poéticas anteriores, um movimento consciente de estar inaugurando um novo tipo de fazer literário, de grande originalidade em suas proposições e realizações. Jã aquele, se ele se enquadra em alguma vanguarda, não é certamente numa vanguarda "estética", mas sim "política". Sua poesia não tem maior novidade, 68 temática ou formalmente falando. Seu traço caracterizador é algo externo à poesia: o desejo de participação poética coletiva num projeto de transformação social e política do pais. Outro problema diz respeito ao enquadramento do Tropicalismo entre os movimentos poéticos de vanguarda. Na verdade, trata-se de um movimento muito mais vinculado à música popular, ao teatro e ãs artes plásticas do que ã poesia Se em geral se costuma citar os poetas Torquato Neto e Waly Salomão entre os seus representantes na literatura, quando se trata de exemplificar a produção poética tropicalista, toma-se sempre as letras de música ao invés dos poemas como exemplos mais fiéis do seu espírito. No entanto, a influência do Tropicalismo na produção literária ë significativa, e a sua aproximação de um movimento especificamente poético como o Concretismo, ou a observação da continuidade de alguns de seus princípios na Poesia Marginal dos anos 70 (ambos têm por solo comum a Contracultura) fazem dele um movimento que pode ser englobado num panorama da poesia. Levantadas estas questões, convém fazer ainda última observação. A designação "Vanguardas anos 50/60" serve na verdade muito mais para preencher uma lacuna do que para esclarecer um tipo de fazer poético aí implicado. Se hã alguma coisa obviamente em comum entre esses movimentos todos que permite abordá-los conjuntamente, além da proximidade cronológica, ê o propósito de obediência a um programa definido encontrãvel em todos eles. Em todos, o que se observa ê um desejo de subordinar as produções individuais a um projeto poético elaborado coletivamente a partir das necessidades estéticas ou políticas (ou ambas as coisas) dos 69 seus integrantes, realizado muitas vezes anteriormente ã própria poesia. Todos os autores se mostram conscientes da existência de uma poética grupai orientadora da sua produção, e revelem-na não só em seus textos poéticos, mas em manifestos, artigos críticos, declarações na imprensa, etc. Uma proximidade entre este momento e o Modernismo da década de 20, quando a militância poética e o agrupamento em torno de determinadas idéias eram bastante comuns, pode ser verificada. Aliás, a retomada de muitas das preocupações desse mesmo Modernismo com relação ã poesia e ã cultura nacional é traço bastante evidente nas proposições de cada um dos grupos. -2.5.2 Em Sintonia com o seu Tempo As vanguardas poéticas brasileiras surgidas a partir de meados dos anos 50 são uma tentativa de responder artisticamente ãs transformações ocorridas na cultura brasileira e no mundo a partir da segunda metade do século XX. A poesia da Geração de 45 era uma poesia que, na média das suas realizações, não se sintonizava com as transformações espirituais e materiais do mundo que estavam se processando depois da Segunda Guerra Mundial. Pelo contrário, ela parecia reagir a esse mundo na sua tentativa de resgate de um estado de espirito não mais possível então. Formal e ideologicamente, seu impulso era de reação. Depois da Segunda Guerra Mundial, com os impasses políticos entre os países que venceram as potências do Eixo, o mundo vai cindir-se em dois blocos antagônicos subordinados à influência de duas novas grandes potências militares:' Estados Unidos e União Soviética. A Guerra Fria, com o fantasma 70 constante de uma catástrofe nuclear, bloqueia qualquer intento de maior independência por parte das.nações, justificando, no âmbito dos dois blocos, a dominação e a repressão aos impulsos de autonomia dos povos. 0 capitalismo, de um lado, ancorado no liberalismo, e do outro o comunismo, patrocinado pelo estado totalitário, formam os eixos político-ideológicos e econômico-sociais dominantes nas décadas seguintes. As grandes transformações culturais verificadas ao longo dos anos 50 e 60 vão se processar dentro desse quadro. No Ocidente, o capitalismo e o liberalismo acenam com o paraíso material do consumo e .com a liberdade dos sujeitos . garantida pelas constituições e regimes democráticos como os sinais evidentes da sua superioridade, porém, as modern!ssi-r . mas técnicas de produção-de bens do capitalismo avançado, o desenvolvimento dos. meios de comunicação de massa, os primeiros passos em direção ã crescente informatização do planeta revelam-se na verdade expedientes sofisticados de dominação, e a propalada liberdade se dissolve em meio aos interesses econômicos predatórios dos países desenvolvidos e ã dependência a que são condenados os subdesenvolvidos. A democracia é fato em alguns países da Europa e América do Norte, ficando os restantes largados ao arbitrio de totalitarismos periódicos alternados a instantes de semi ou pseudo-democracia, com os quais as grandes democracias, desde que essa situação não contradiga seus interesses, são coniventes. O bloco comunista acena com a solução das diferenças sociais e materiais entre os homens, e com a propagação definitiva da justiça, requisitos básicos para o progresso definitivo da humanidade. No entanto, o totalitarismo de estado acaba por trair a utopia 71 socialista, fazendo naufragar pouco a pouco a única posição de firme e necessário contraponto ao capitalismo. Países como o Brasil, deslocados dos centros de poder, vivem mais de perto essas contradições ideológicas. O Brasil da segunda metade dos anos 50, o Brasil de Juscelino Kubitschek, vive a euforia da política desenvolvimentista, destinada a colocar o pais ao lado das grandes economias capitalistas ocidentais num curtíssimo prazo de tempo - relembre-se aqui a famosa expressão de Juscelino "50 anos em 5". No entanto, a abertura ao capital estrangeiro e a violenta modernização industrial não logram resolver os graves problemas sociais do país, acumulados ao longo de séculos de exploração e má política. Pelo contrário, tornam-nos ainda mais graves. A miséria e a exploração são campos férteis para a indignação e a revolta, e o que vai surgir cada vez com mais intensidade nesse momento é todo um pensamento revolucionãrio ancorado nos ideais, do socialismo e do comunismo, que fermenta nos anos 50 e surge com grande força na década de 60, pontuando os governos de Jânio Quadros e João Goulart, até que a ditadura militar, a partir de 1964, venha estancar com violência o seu impulso contestador. No final da década e ao longo dos anos 70, a ortodoxia de esquerda passa a dividir seu potencial de crítica e contestação com os movimentos ligados ao espírito da Contracultura. Um Brasil que se embala no sonho do progresso material na esteira do capitalismo internacional, Brasil dos grandes centros urbanos e dos parques industriais, Brasil das elites empresariais e políticas, Brasil das classes médias e das profissões liberais, vive lado a lado com um Brasil arcaico, 72 primitivo, rural, atravessado pela miseria social, Brasil de migrações do campo para a cidade e da formação de proletariados industriais e bolsões de miseria nos grandes centros urbanos. A arte do periodo não vai se desenvolver ao largo dessa realidade. Vai, sim, captã-la, enfocando-a de diferentes pontos de vista. O Concretismo, por exemplo, guarda muito do desejo de ver o Brasil despontar ao lado das grandes culturas do Ocidente. O desejo de "modernização" literária nele implícito, de se postar na ponta da arte ocidental produzindo uma poesia "tipo exportação", revertendo assim o trajeto usual das influências literárias, tem muito, guardadas as diferenças, do espírito desenvolvimentista dos anos 50. Os outros movimentos de vanguarda estética, alguns com maior relevo ao. político jã desde a sua formulação primeira, não fojem a esse mesmo paradigma. A arte social e politicamente engajada reflete, por sua vez, outra perspectiva, a dos agrupamentos políticos de esquerda, interessados em conscientizar, as populações da exploração e da dependência, insuflando-as ã organização e ã revolta. Procuram incorporar ã arte a linguagem dos substratos socialmente mais interiorizados, para veicular através dela mensagens politicamente orientadas. Jã o< »Tropicalismo, sobretudo no que concerne ã canção popular, atua nos meios de comunicação de massa, vive a contradição do moderno/arcaico de forma muito viva na sua própria elaboração artística. Parte para uma contestação ao sistema que jã não ê a da esquerda ortodoxa, mais sim uma contestação inspirada agora na Contracultura, de caráter bem mais comportamental. 73 A arte brasileira - e entre suas manifestações a poesia - se aproxima muito do debate em torno a uma série de questões importantes no cenário cultural do país. Ela vai ser palco de polêmicas que se processam em relação a antagonismos da realidade nacional e que se projetam nela própria. Os antagonismos entre arte politicamente engajada e arte de experimentação formal, entre arte erudita e arte popular, ou ainda entre arte erudita e arte de massa e consumo ecoam as próprias contradições de um país que se debate entre a industrialização e o subdesenvolvimento, entre o progresso material concentrado e a miséria generalizada, entre o moderno e o arcaico, entre o urbano e o. rural, entre o global e o local, entre o passado e o presente. Em cada momento (e em cada um dos movimentos do períddo) estas questões vão encontrar diferentes formulações e respostas. Em todo o caso, estarão sempre presentes, evidenciando a efervescência cultural que envolve o país e que se reflete produtivamente nas suas artes. 2.5.3 A Poesia A poesia do período pode ser estudada, portanto, a partir dos principais movimentos poéticos surgidos no país entre L956 e 1968. Esse caráter coletivo da produção dã a ela uma homogeneidade aparente, ausente das postulações poéticas de cada vertente singular. Procurou-se englobar a seguir os movimentos de consagração mais unânime, plenamente representativos dessas diferentes linhas literárias. 74 2.5.3.1 Concretismo - Oficialmente, o Concretismo tem o sen momento inaugural com a realização da I Exposição de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956. No, entanto, as idéias que iriam alimentar a sua poesia jã vinhíis sendo expostas e discutidas na publicação de ensaios dos tres nomes centrais do movimento, Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari,- desde o início da década de 50. A exposição marca o momento de amadurecimento e sistematização da poética concretista, bem como a congregação de outros nomes - poetas, artistas plásticos e músicos - em torno dos seus princípios. Alguns destes nomes, acompanhando a dissidência do poeta Ferreira Gullar no anq seguinte, iriam romper com o núcleo ortodoxo paulista- e organizarão Neoconcretismo, cuja exposição inaugural se realizará em 1959, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A poética do Concretismo foi (e tem sido) objeto de muita divulgação e polêmica desde o início do movimento. Seus principais postulados podem ser encontrados de forma dispersa numa série de artigos teóricos publicados pelos seus integrantes desde meados dos anos 50 em revistas e suplementos literários de importantes jornais. Uma idéia geral das suas concepções fundamentais é apreendida da leitura daquele texto que passaria a ser identificado como p principal manifesto do Concretismo, o "Plano-Piloto para Poesia Concreta", publicado originalmente na revista "Noigandres i:4" , em 1958, e assinado por Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. As principais linhas do movimento encontram-se teorizadas de forma altamente condensada nesse texto capital. 75 Uma das definições-chave apresentadas pelo "Plano-Pilo- to" diz o seguinte: "poesia concreta: tensão de palavras-coisas no espaço-tempo". 3 5 A exploração dos dois pólos dessa "tensão", a partir das próprias proposições do manifesto, revela muito da natureza dessa nova poesia. Vejamos primeiramente o conceito de "espaço-tempo". Logo no inicio do "Plano-Piloto", a Poesia Concreta se propõe enquanto um "produto de uma evolução crítica de formas". Ela dá por encerrado o "ciclo histórico do verso" e postula uma nova estruturação do poema, que passa a levar em consideração agora o "espaço grãfico como agente estrutural". A poesia passa a se estruturar, assim, numa dupla dimensão que engloba espaço, e. tempo, e não mais apenas, de forma linear, como ocorria com a poesia tradicional, restrita â dimensão* temporal. Este princípio, segundo o manifesto, jã estaria presente, por exemplo, na concepção de Pound e Fenollosa acerca do ideograma chinês como método de cdmposição poéti-ca "baseado na justaposição direta - analógica, não lógico-discursiva - de elementos " . 0 conceito de "palavras-coisas" pode ser entendido a partir de outra formulação do "Plano-Piloto": "o poema con- creto ë um objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/ou sensações mais ou menos subjetivas". Há nesta afirmação uma negação das funções emotiva e referencial da linguagem poética, ou seja, da poesia enquanto expressão das afeições, das emoções, das vivências interiores de um "eu" lírico, é da poesia enquanto representação de realidades exteriores ã própria linguagem. Na Poesia Concreta vai se dispensar uma atenção exclusiva ã concretude da palavra, 76 na sua dimensão material. A palavra - "som, forma visual, carga semântica", como define o manifesto, ampliando assim bastante o conceito de "concretude" na referência a esta terceira dimensão - ê' o material da Poesia Concreta. Ë com essas realidades da palavra que ela opera. A. Poesia Concreta trabalha, portanto, basicamentê com a palavra vista enquanto um "objeto" plorando-a ("palavras-coisas") , ex- (a palavra impressa) na sua dimensão espacial (a palavra disposta no espaço da página) e na sua dimensão temporal (que ë inerente â própria linguagem). A estas considerações básicas devem-se somar ainda outras. A Poesia Concreta tende sempre â síntese. A sua oposição ao discursivo e ao ..verso, preferindo em lugar deste último a palavra como unidade poética.(e até os segmentos meno- res obtidos a partir, do seu fracionamento), ê índice disso. A opção pelo método.ideogrâmico de composição, onde termos são acoplados eliminando-se os elementos intermediários que usualmente surgiriam entre eles, reitera esse princípio. Esse impulso ã síntese, faz parte de um desejo de comunicação rápida, adequado aos modernos meios de comunicação, com os quais namora por vezes o Concretismo. NO "Plano-Piloto" estão arrolados ainda aqueles auto- res da tradição da poesia (e os seus recursos poéticos) que poderiam ser vistos como precursores do novo movimento: Mallarmé e a exploração do "espaço" e de "recursos tipográficos"; Pound e seu "método ideogrâmico" de composição; Joyce e a utilização.da "palavra-ideograma" e da "interpenetração orgânica de tempo e espaço"; Cummings e a "atomização de palavras" e valorização do espaço; Apollinaire, o Futurismo e o Dadaísmo; e, no Brasil, a poesia sintética de Oswald de 77 Andrade e o rigor construtivo de João Cabral de Melo Neto. Hã aí um desejo evidente de, apesar da pretensão ã novidade absoluta e ã ruptura, situar o Concretismo dentro de uma tradição de grandes criadores. Alguns poemas concretos podem exemplificar de forma mais clara os princípios comentados, como é o caso de dois textos de 1957, o poema "eixo", de Agusto de CAMPOS, que trabalha com compostos inéditos na língua, dispostos espacialmente de forma a explorar as semelhanças sugeridas entre a organização estrutural e a semântica do poema (a reiteração de elementos gráficos comuns em todos os compostos dando a idéia de um "eixo fixo" organizador do poema), e "Coca-cola", de Décio Pignatari, que opera-a partir da desmontagem ideolo- gicamente crítica de um "slogan" propagandístico: eixoolho polofixo eixoflor pesofixo eixosolo olhofixo 36 beba , coca cola babe cola beba coca babe cola coca caco cola cloaca 3 7 Convém ressaltar que o Concretismo não se restringe apenas ao tipo de exploração gráfica acima exemplificado. Ele vai trabalhar também com cores, com tipos gráficos de formas e tamanhos variados, com o desdobramento do poema ao longo das páginas do livro, com fotomontagens, vai ultrapassar 78 os limites da bidimensionalidade da página, vai explorar os vários recursos da propaganda, os "outdoors", o video, o computador, etc., operando, em suma, com todo o tipo de recurso gráfico posto ã disposição do poeta. A Poesia Concreta, nessas explorações, se aproxima das artes plásticas, incorpora códigos não comuns ã poesia i tradicional. Esse seu caráter intersemiõtico faz dela uma arte que transcende os seus limites de origem, complicando muito sua avaliação por parte de uma critica exclusivamente literária. 0 movimento do Poema Processo - desdobramento radical dessa vertente visual do Concretismo - leva a delimitação do que ê ou não poesia ao seu limite ao expulsar do texto literário os elementos- mais propriamente verbais. 0 Concretismo não chega.a esses extremos. Seu ideal de exploração conjunta do verbal, do sonoro e do visual ( expresso na tradução de um neologismo joyceano: "verbivocovisual", muito presente nos textos teóricos do movimento) -mantêm-no centrado ainda sobremaneira na palavra. 2.5.3.2 Neoconcretismo - 0 Neoconcretismo vai partir de uma dissidência com o Concretismo. Os artistas cariocas (ou se- diados no Rio de Janeiro) que haviam se ligado ao núcleo paulista do Concretismo por uma série de afinidades estéticas, desligam-se por volta de 195 7 e lançam um manifesto de fundação do novo grupo em 1959. Como aquele, trata-se de um grupo de artistas não restrito apenas ã poesia, mas ligado também (e sobretudo) ãs artes plásticas. É a estas, aliás, que o manifesto inaugural vai dedicar maior espaço. 79 Como se lê logo no início do manifesto, a arte neoconcreta se opõe "a uma perigosa exacerbação racionalista" 3 8 que havia tomado conta da arte concreta. Parece ser esta a tomada de posição básica desses artistas frente ao Concretismo. Eles combatem o objetivismo mecanicista que identificam em seu trabalho. Na poesia, as postulações do manifesto são sobretudo de combate à consideração da palavra como um mero objeto e da exploração do espaço e do tempo como "relações exteriores entre palavras". "A poesia neoconcreta", segundo o manifesto, "(...) afirma o poema como um ser temporal. No tempo e não no espaço a palavra desdobra a sua complexa natureza significativa". Isto não significa uma desconsideração do espaço, recém-incorporado pelas-vanguardas como elemento constituinte do poema. "A página na poesia neoconcreta é a espacialização do tempo verbal; ë pausa, silêncio, tempo". Quanto ã palavra, "ao contrário do concretismo racionalista, que toma a palavra como objeto e a transforma em mero sinal ótico, a poesia neoconcreta devolve-a ã sua condição de 1 verbo" , :isto é, de modo humano de representação do real". Apesar destas formulações que se querem de antagonismo aos princípios concretistas do "Plano-Piloto", ë difícil a distinção entre os poemas concretos e os neoconcretos. Afonso Romano de SANT'ANNA, ao comentar a produção poética do grupo carioca, faz a seguinte observação nesse sentido: £ difícil a e x e m p 1 i f i c a ç ã o de p o e m a s n e o c o n c r e t o s , porque poucos textos r e a l m e n t e s u r g i r a m e , na p r i t i c a , dif í c e i s de s e r e m d i f e r e n c i a d o s dos t e x t o s c o n c r e t i s t a s , e m b o r a as teorias dos g r u p o s se d i s s e s s e m o p o s t a s . Acresce q u e v á r i o s d e s s e s p o e m a s e r a m o b j e t o s 80 (ou ' n ã o - o b j e t o s ' ) , caixas no c h i o e , p o s t e r i o r m e n t e , de z i n c o e de a c r f l i c o com letra, e m a i s no â m b i t o das t i c a s como a l g u n s t r a b a l h o s D i l l o n . Há c a s o s de p o e m a s serem manipulados.39 enterradas artefatos uma ou o u t r a artes plásde O s m a r 1i v r o s para A poesia deixa, portanto, em muitos de seus exemplos mais inovadores, o espaço da página e do livro. A título de exemplificação da produção deste movimento, veja-se um primeiro poema de Ferreira GULLAR, muitíssimo próximo dos textos concretistas: mar azul mar azul marco azul mar azul marco azul barco azul mar azul marco azul barco azul arco azul mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul"10 A exploração da visualidade num poema como este é evidente, bem como a sua economia anti-discursiva. Cinco diferentes blocos de segmentos sintáticos nominais recorrentes (substantivo + adjetivo) dispÕem-se em decrescendo da esquerda para a direita. O adjetivo dos segmentos é sempre o mesmo: "azul". Os substantivos se alteram, porém sempre a partir de um núcleo sonoro comum: "mar", "marco", "barco", "arco", "ar". Da compacta concretude do elemento líquido ã rarefação do elemento opostamente disposto, percebe-se toda uma dinâmica que a própria materialidade do poema presentifica. Nesse ínterim, elementos intermediários, e intermediários tanto em termos vocabulares (a progressão visual.e sonora "mar"/"marco"/"barco"/"arco"/"ar") quanto em termos de 81 referencialidade a realidades do mundo, fazem a ligação entre os extremos. Toda uma paisagem verbal/extra-verbal revela-se aí. Mas se este primeiro poema de GULLAR muito próximo estã das realizações do Concretismo, afinal ele e outros autores neoconcretos partiram daquele movimento para organizar o seu, um segundo poema do autor pode exemplificar alguns caminhos mais particulares que o Neoconcretismo iria tomar. Como se trata de experiência, que foje completamente â palavra impressa em livro e se aproxima do "happening", o seu relato pelo autor, feito muito posteriormente em ensaio crítico, surje como a única maneira de resgatar.aqui o que foi essa experiência: Da p a r t i c i p a ç ã o g e s t u a 1 q u e o s p o e m a s espaciais possibilitavam, passei ã p a r t i c i p a ç ã o c o r p o r a l com o " p o e m a e n t e r r a d o " , q u e p e r m i t i a ao " l e i t o r " ent r a r no p o e m a . C o n s t r u í d o n o q u i n t a l da c a s a de H é l i o O i t i c i c a , na G á v e a , o " p o e m a e n t e r r a d o " e r a uma s a l a de d o i s m e t r o s p o r d o i s c a v a d a no s u b s o l o e a q u e s e t i n h a a c e s s o p o r uma e s c a d a . Ao p e n e t r a r no p o e m a , o " l e i t o r " d e p a r a v a - s e com um c u b o vermelho s i t u a d o no c e n t r o da p e q u e n a sala; e r g u e n d o - o , d e s c o b r i a um c u b o v e r d e , que t i n h a m e t a d e das d i m e n s õ e s do prim e i r o c u b o ; sob o cubo v e r d e , estava um c u b o b r a n c o , de 12 c e n t í m e t r o s de l a d o q u e , ao c o n t r á r i o d o s d o i s outros, e r a c o m p a c t o ; d e b a i x o d e l e , e s c r i t a no p i s o do p o e m a , a p a l a v r a "rejuvenesça". 0 "poéma e n t e r r a d o " inspirou Hélio O i t i c i c a a c r i a r "os l a b i r i n t o s " , como o " p r o j e t o c ã o de c a ç a " e t c . F o i uma o b r a a n t e c i p a d o r a dos " p e n e t r á v e i s " , que s u r g i r a m na E u r o p a e nos E s t a d o s Unidos v á r i o s anos depois."41 Trata-se, como se pode ver, de uma experiência bastante radical que em muito amplia o conceito do que é poesia. A 82 referência ã influência que a obra teria exercido sobre um artista plástico importante como Hélio Oiticica deixa claro o seu caráter de experiência-limite. 2.5.3.3 Poesia Praxis - A Poesia Prãxis surge no ano de 1962 com a publicação de Lavra-lavra, do poeta Mário CHAMIE, livro que trazia como posfãcio o "Manifesto Didático" com os postulados inaugurais do movimento. Da mesma forma que o.Neoconcretismo, Prãxis surge em parte sob o signo do antagonismo ao Concretismo, cujo "formalismo mecanicista" se afigurava, na perspectiva dos integrantes desses movimentos, demasiadamente esterelizante para a poesia brasileira e, no caso de prãxis, distante das questões -político-sociais do pais. No manifesto inaugural, o-poema-prãxis é definido logo de inicio como aquele que "organiza e monta, esteticamente, uma realidade situada, segundo três condições de ação: a) o ato de compor; b) a área de levantamento da composição; c) o ato de consumir".1'2 Partindo desta definição, CHAMIE vai procurar caracterizar cada uma destas três "condições", vistas como relativas aos três níveis básicos da linguagem: o sintático, o semântico e o pragmático. 0 ato de compor - o nível sintático - pressupõe três elementos: o "espaço em preto", que é a totalidade das palarvras do poema; a "mobilidade intercomunicante das palavras", que ê a possibilidade de as palavras num poema-prãxis se intercambiaren! em diversas direções, multiplicando assim os seus sentidos de acordo com as novas combinações surgidas; e o "suporte interno dos significados", que é o "núcleo de palavras, a partir do qual o texto se expande e se perfaz na sua 83 unidade rítmica e na diversidade de interpretações que a sua linguagem articulada provoca". 4 3 A segunda condição, a "área de levantamento" - o nível semântico -, diz respeito â delimitação do segmento de realidade com o qual o poeta vai traualnar. A partir de uma determinada área da realidade escolhida, o poeta vai extrair toda uma série de elementos que a compõem - e nesse processo todo um léxico -, que passará a integrar o seu poema. Há nesse procedimento uma evidente busca de óbjetivação, jã que ë a própria realidade objetiva, depois de delimitada, que vai fornecer o material básico e bruto para a poesia. O poeta sai assim dos limites de um impulso criador subjetivo para lançar-se em direção ao real circundante, participando, nessa interação via palavra, ativamente- da realidade e de sua problemática. Vislumbra-se aqui toda uma intenção "política", que os poemas realizados pela poesia Prãxis vão evidenciar, como aqueles que tratam do homem no campo ou nos centros industriais, em livros como Lavra-lavra e Indústria. 0 "ato de consumir" - o nível pragmático -, a terceira condição, corresponde a uma mudança de atitude na recepção usual da obra por parte do leitor. Este, pela própria estrutura móvel do poema-prãxis, se torna um co-autor do texto, participando ativamente da sua construção ao manipulá-lo de forma lúdica e criativa. Novamente a questão do "político" e da participação entram aqui. 0 leitor não ë um consumidor passivo, mas sim alguém que atua sobre a própria realidade literária, e, por extensão, dada a relação muito próxima e tendente ao objetivo do texto com o universo extra-literãrio, sobre este segundo também. 84 Estas postulações certamente se tornam mais claras a partir da observação de um poema-prãxis. "Arado", segmento poético de Lavra-lavra, pode servir aqui como um bom exemplo: ARADO Ora, o início é arar o que se ara. Aspero, a lamina faz seu corte exato. Revolve e limpa o campo e seu lavrado. Na fome do seu. aço faz a fome do roçado. A pedra e o barro, a arvore e a grama, o rio e a erva, a lamina faz da terra e sua receita : outra femea pronta para a seiva. Não talho, o leve risco talha a terra e a garra vira a terra e leva o barro para a via, via de grama e pedra. Nem malho, a fina serra fende o tronco e a foice corta o tronco e mostra a polpa para o dia, dia de sol e faca. Não fundo, o raso corte•trilha o solo e o sulco sulca o solo e rompe o lodo para o rio, fio de ãgua e musgo. Nem brando, o duro aço rasga a carne e o rasgo marca a face e deixa a terra para o cio, a cio de fêmea e seiva. 4 4 Sob o titulo do poema, observa-se uma espécie de introdução ou comentário acerca ao que se vai desenvolver a seguir. O que se nota prontamente, em contraste com os poemas anteriormente exemplificados do Concretismo e do Neoconcretismo, é a permanência do segmento linear como unidade poética e a manutenção de uma estruturação sintática nos moldes da poesia pré-concreta. Naqueles movimentos, a palavra era a estrutura fundamental. Era a partir dela (muitas vezes a 85 partir do seu fracionamento) e das suas sugestões semânticas, fónicas ou gráficas que o poema se estruturava. Aqui não. O poeta faz todo um levantamento léxico de um campo da realidade por ele delimitado (no caso o meio rural e, mais especifi- camente, o ato de arar a terra), para então construir o seu poema a partir desse levantamento. Se na Poesia Concreta se valorizava em grande medida o espaço em branco da página e a disposição das palavras nesse espaço, no caso da Poesia Práxis esse espaço perde o seu valor (como na poesia discursiva tradicional) em função da valorização do "espaço em preto". Este espaço tem aqui uma função estruturante. A própria disposição cuidadamente simétrica dos segmentos lineares, e dos conjuntos por eles formados aponta para isso.-É uma disposição do "espaço - em.preto", a partir de um "suporte interno de significados", que vai possibilitar a "mobilidade intercomunicante das palavras". No poema, por exemplo, pode-se executar uma leitura trocan- do-se o segundo verso da primeira estrofe por todos os segundos versos das. estrofes seguintes. A estruturação do "espaço em preto sugere" essa possibilidade. Assim, teríamos as seguintes combinações: "Não talho, o leve risco talha/a terra" - dada por uma leitura de corte tradicional do poema; "Não talho, o leve risco talha/o tronco"; "Não talho, o leve risco talha/o solo"; "Não talho, o leve risco talha/a carne". Essas recombiríações são todas possíveis - expandindo-se o significado produzido - com muitas outras partes do poema de alguma forma simétricamente relacionadas. Essa capacidade de recombinar os elementos, não de forma qualquer, mas seguindo uma orientação implícita na 8b estrutura do poema, convida o leitor a participar de forma ativa (e lúdica) nesse processo de remontagem e multiplicação de leituras do texto. 2.5.3.4 d Poema Processo - O movimento do Poema Processo pode ^ ser visto como uma radicalizaçao de certos princípios da vanguarda concretista. É dela que os seus poetas partem, trilhando caminhos por vezes ainda mais polêmicos e experimentais. No manifesto "Poema Processo", de 196 7 (ano em que o movimento vai surgir simultaneamente em Natal e no Rio de Janeiro), assinado por dois dos membros mais importantes do grupo - Wlademir Dias-Pino e Alvaro Sã -, lê-se ao seu final, o que*, mais claramente do que toda-a complexa teorização e terminologia presentes ao longo do texto, parece revelar os propósitos do movimento: ")-(0 poema/processo é uma posição radical dentro da poesia de vanguarda. É preciso espantar pela radicalidade)". 45 É radicalizando que o movimento vai imprimir sua marca mais oirginal ã poesia brasileira. Opondo-se, como o Concretismo, ao discursivo e â utilização do versó em poesia, porém indo além ao dispensar por vezes o próprio signo lingüístico do texto literário, o Poema Processo se aprofunda na tendência visualizante da vanguarda. No entanto, não será apenas a dimensão visual a que será explorada pelos seus autores. Há um desejo de provocar a participação de todos os sentidos do leitor na apreensão da obra, para o que são criados poemas gustativos, olfativos, tãteis, etc. Com a realização de "happenings", a relação tradicional entre autor, obra e público surge renovada. Ë dentro desta tendência de.partici- 87 pação coletiva que vai se enquadrar, por exemplo, um insólito poema-passeata. As histórias em.quadrinhos, o cinema, o desenho animado também são aproveitados como linguagens à disposição do criador. O Poema Processo vai incorporar vários sistemas de signos, fundindo-os todos numa arte intersemiõtica originalíssima. 0 manifesto inaugural apresenta algumas considerações importantes para o entendimento do espírito do movimento. Como "não se busca o definitivo", já que o "provisório" e o "relativo" são condições inerentes a tudo o que é moderno, vai-se valorizar o "processo", termo capital que participa do título do próprio movimento. Algumas "definições" do termo dadas pelo manifesto são eloquentes: -"Processo: desencadeamento crítico de estruturas sempre novas."; "Processo: descoberta da realidade."; "Processo: manipulação + desencadeamento de invenções (sistemática do contra-estilo)". Acen^ tua-se nessas formulações o que ë dinâmico, o que é produtivo, a realização, o trabalho, o descobrimento, tudo sempre em função do novo e da invenção. Outra consideração a destacar ë a que opõe "poema" â "poesia" no interior do movimento: "não há poesia/processo. 0 que há é poema/processo, porque o que é produto ë o poema". Não há, portanto, algo abstrato e generalizante como o que o termo "poesia" parece implicar. 0 que há, acentuam os autores, são "poemas", particulares e concretos, produtos de um "processo" de construção original e reveladores desse "processo" . Uma outra formulação do manifesto reitera esse aspecto de inovação e desenvolvimentos constantes: "Poema/processo é aquele que, a cada nova experiência, inaugura processos informacionais" . 88 0 manifesto é todo ele perpassado por formulações sintéticas e tecnicistas, o que aliás se verifica em praticamente todos os manifestos das vanguardas, e se encontra acmi de forma exacerbada- Percebe-se, por trás do próprio hermetismo de certas formulações, o desejo de provocação e ruptura dessas tendências, o que no Poema Processo é acentuadamente programático. Relembrando: "ê preciso espantar pela radiealidade". Em 19 72, um novo manifesto viria a público, um manifesto de encerramento do movimento, intitulado: "Parada - Opção tática". No entanto, se uma participação coletiva e militante está sendo declarada como encerrada, ao final do texto lê-se que "o-.processo é conquista irreversível no campo da informação: poemas/processo continuarão a ser produzidos". Um- poema de Anchieta FERNANDES pode exemplificar de forma mais clara algumas das realizações do Poema Processo: 89 Repare-se na utilização de formas geométricas, portanto, de recursos que extrapolam o verbal, que vão sendo acrescentadas aos poucos na passagem de quadro para quadro, em crescendo e em ordem usual de leitura . - isto é, da esquerda para a direita e de cima para baixo - mas que ao final, no último quadro abaixo â esquerda, resgatam o signó lingüístico na sugestão visual da palavra "olho". Os quadrados mais exteriores que emolduram as formas geométricas interiores remetem, de maneira pouco convencional, ã linguagem dos quadrinhos. 0 aspecto intersemiótico desse poema ë bastante marcante. A linguagem verbal entra aí como um dos ingredientes possíveis, e não o exclusivo, como na poesia tradicional, ou o principal-, como nos outros movimentos de vanguarda do período. 2.5.3.5 Violão de Rua - "Violão de Rua" é o título de uma publicação editada entre 1962 e 1963 pela Editora Civilização Brasileira. Saíram ao -todo três volumes, trazendo - textos de diferentes poetas (alguns anteriormente ligados ãs vanguardas estéticas, como é o caso paradigmático de Ferreira Gullar), todos eles praticando uma poesia cujo traço comum era o engajamento político-social do poeta frente aos problemas da realidade brasileira. 0 termo "Violão de Rua" acabou identificando um fazer poético muito distinto do das vanguardas estéticas. Muitos dos intelectuais ligados a essa concepção de poesia (e, por conseguinte, a essa concepção de arte, cultura, sociedade, etc.), tornaram-se ácidos críticos da vanguarda formalista. 90 Se as primeiras vanguardas vão surgir sob o signo da modernização (industrial, tecnológica, econômica, etc.) pre- tendida pelo governo Juscelino Kubitschek na segunda metade da década de 50, os poetas de Violão de Rua se encontram jã num momento posterior do desenvolvimento político brasileiro. No início da década de 60, durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, boa parte da intelectualidade mais expressiva do país está se orientando pelos princípios da esquerda política (em grande medida de caráter marxista) . A mobilização política simultânea de diversos estratos da sociedade - operariado rural e urbano, estudandes, intelectuais, etc. - é inédita até então no país. As tensões políticas, sociais e econômicas que atordoam o Brasil deslocam a atuação cultural de muitos para esse âmbito, de preocupação. Essa inclinação "ã esquerda" vai marcar sensivelmente o caráter da produção cultural. A grande distância entre artistas e público que uma produção radical de vanguarda implicava vai ser foco de muita polêmica. Tida como alienada e elitista, incapaz de atingir uma vasta parte da população, refletir seus valores e veicular todo um plano de conscientização política, de revelação das relações de opressão num sistema social injusto, a vanguarda estética é rejeitada como opção artística por muitos intelectuais. Na poesia, os problemas impostos pela necessidade de se fazer uma arte de engajamento político vão ser resolvidos, do ponto de vista da composição, de diversas maneiras. Em. grande escala, o que se observa é uma valorização da poesia de dicção mais tradicional em relação ã experimentação de vanguarda, que tinha no verso um elemento capital. Se boa 91 parte dessa produção tem como tom principal a pregação político-social muito próxima do discurso persuasivo, o longo verso discursivo, as repetições dos metros fixos e das rimas, o aproveitamento de formas populares (como a poesia de cordel, por exemplo), a utilização de imagens e metáforas rapidamente 'decodif icãveis, etc., serão os recursos preferenciais desses poetas. Em oposição ã exploração dos aspectos visuais do Concretismo, volta-se a atenção para a oralidade do discurso poético. Temáticamente, percebe-se uma preferência por assuntos do cotidiano, por aspectos da história e da política do país, marcados sempre por um caráter de reflexão didaticamente orientada. Acreditou-se, num dado. momento, que a poesia e a arte em geral pudessem mover as massas em direção a um objetivo político definido ou contribuir para tanto juntamente a outros impulsos. Mesmo a vanguarda estética mais radical acabou, pelas pressões do momento, incorporando temporariamente essa preocupação. Ë isso o que explica o "salto participante" do Concretismo no início dos anos 60, ou a passagem de poetas ligados ao Neoconcretismo, como Ferreira Gullar e Reinaldo Jardim, ã orientação poética típica de Violão de Rua. Um movimento de vanguarda como o da Poesia Práxis, surgido em plenos anos 60, diferentemente dos seus antecessores, nasce já sob a necessidade de conciliar a experimentação formal ã participação política. Apesar das claras diferenças em termos de opção poética entre todos, há uma tendência comum que só pode ser explicada quando se tem em vista o momento de grande mobilização pelo qual passava o país. 92 A produção dentro dos moldes de Violão de Rua, porém, tornou-se a mais representativa do engajamento da arte nas questões- políticas e sociais na década de 60, sobretudo por ser esta de fato a sua tônica e o elo comum entre os vãrios e diferentes poetas que se agruparam em torno â publicação. O didatismo da maioria dos textos comprometeu em parte as virtualidades poéticas do movimento. Soam . ingênuos, pobres, fãceis e um tanto inócuos muitos dos seus poemas, que se revelaram claramente impotentes diante da realidade que pretendiam alterar. 0 seguinte poema de Félix de ATHAYDE é bom exemplo de temática de engajamento da produção de então. Ao enquadramento maniqueísta de um problema histórico e político complexíssimo, opõe-se convincentemente a exploração dos recursos composicionais, como por exemplo a utilização de uma sutil espacialização dos versos como forma de marcar a posição segunda e subordinada da América Latina em relação ã do Norte, ou então a utilização reiterada de estruturas sintáticas semelhantes, breves e nominais, muito pouco comum na poesia mais típica do movimento: ah: mérica America do Norte : America rapina. America da morte: América Latina. América do Norte : América que come. América de carga: América que paga. América do Norte : América do muito. América do povo : América do polvo. 93 América do Norte : América do tudo., América sugada: América do nada. América do Norte : América padrão. América do pobre : América sem pão. America do Norte : América patrão. América Latina : Começa a dizer NÃO. 4 7 Um pequeno fragmento (as estrofes finais) do longo poema "João Boa-Morte -cabra marcado pra morrer"/ de Ferreira GULLAR, poema inspirado nas formas populares da poesia de cordel, é exemplo bastante típico de uma poesia direcionada ãs classes populares, que faz uso de formas que lhe são próprias, mas que veicula conteúdos revolucionários "o.riundos de uma reflexão cuja origem está enraizada noutro estrato sõcio-cultural. O caráter didático e persuasivo são -aqui-óbvios. Ao longo do poema, o poeta expõe a triste e miserável saga de João Boa-Morte, sua família e seu meio humano, ãs voltas com a miséria e a exploração econômica de uma estrutura social doentemente injusta, que o leva ao desespero e deste ao suicídio como solução. O final do poema não deixa dúvidas a respeito do caráter participante desse fazer poético: E antes que Boa-Morte, Levado pela aflição, em seis peitos diferentes varasse seu coração, Chico Vaqueiro chegou: "Compadre, não faça isso, não mate quem é inocente. 0 inimigo da gente - lhe disse Chico Vaqueiro não são os nossos parentes, o inimigo da gente é o coronel fazendeiro. 94 "O inimigo da gente é o latifundiário que submete nos todos a esse cruel calvário. Pense um pouco, meu amigo, não vá seus filhos matar. É contra aquele inimigo que nós devemos lutar. Que culpa têm os seus filhos? Culpa de tanto penar? Vamos mudar o sertão pra vida deles mudar." Enquanto Chico falava, no rosto magro de João uma luz nova chegava. E jã a aurora, do chão de Sapê, se levantava. E assim se acaba uma parte da história de João. A outra parte da história vai tendo continuação não neste palco de rua mas no palco do sertão. Os personagens são muitos e muita a sua . aflição. Jã vão todos compreendendo, como compreendeu João, que o camponês vencera pela força da união. Que e entrando para as Ligas que ele derrota o patrão, que o caminho da vitoria estã na revolução.1*8 2.5.3. '6 Tropicalismo - O problema de se arrolar o Tropicalismo entre movimentos eminentemente literários já foi comentado anteriormente. Sua influência na cultura brasileira no momento em que surge ê muito significativa, e o que se pode chamar de "dimensão literária" do movimento, presente em poemas, artigos, mas com maior impacto e repercussão nas letras de música, não pode passar em branco quando se quer entender o desenvolvimento da poesia brasileira. Affonso 95 Romano de SANT'ANNA, em sua "Minuta didática dos principais movimentos poéticos brasileiros do século X X " 4 3 , engloba-o entre esses movimentos. Heloísa Buarque de HOLLANDA, no seu estudo sobre a literatura (e em especial sobre a poesia) dos anos 60 e 70 - Impressões de Viagem 5 0 - reserva importante espaço ãs considerações sobre o Tropicalismo. Os poetas concretos (os primeiros a ressaltar as qualidades literárias de muitos dos textos de música do Tropicalismo) foram entusiastas do movimento, e a aproximação por eles operada entre Concretismo e Tropicalismo foi um momento bastante fértil da literatura recente. Um compositor como Caetano Veloso está incorporado em definitivo ã história literária do país. A influência de seus textos sobre as pessoas (e, por conseguin- te, sobre a própria literatura) através de um meio de massa como a música popular é muitíssimo forte, e de uma eficácia incomparavelmente maior que a dos textos poéticos- restritos ao livro como meio de comunicação. O Tropicalismo, enquanto movimento, se desenvölveu, por volta de 196 8, em diferentes campos da arte brasileira, como o teatro (com a figura central de José Celso Martinez Correia e o Grupo Oficina), as artes plásticas (com Hélio Oiticica em destaque), a música popular (com Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, aliados a compositores eruditos como Rogério Duprat e Júlio Medaglia), a poesia Neto e Waly Salomão), o cinema (com Torquato (com o exemplar "Macunaíma", de Joaquim Pedro de Andrade) . Procurando dar resposta a uma série de impasses estéticos e ideológicos da arte brasileira no final dos 96 anos 80, o Tropicalismo vai resgatar o princípio da devoração cultural do Movimento Antropofãgico de Oswald de Andrade. Assim, as contradições existentes entre arte erudita e arte de massa, arte estrangeira e arte nacional, subdesenvolvimento e desenvolvimento, nacionalismo e cosmopolitismo, primitivo e moderno são solucionadas não através da simples opção e conseqüente exclusão de um dos elementos da dicotomía, mas através de uma síntese devoradora que incorpora os pólos antagônicos e a tensão existente. Na mitologia tropicalista, Carmem Miranda e Beatles, guitarra elétrica e escola de samba, bananeiras e chaminés, Carnaval e miséria, Poesia Concreta e Chacrinha, Brasília e Floresta Amazônica convivem de forma tensa e crítica. A carnavalização da vida-e -.da. arte, o humor e a paródia , a- incorporação do '-'k-i-tsch"-, a crítica-aos comportamentos (sobretudo o sexual) como crítica social, a valo- rização da loucura dionisíaca ao invés do equilíbrio apolíneo, a difusão sem pudores da.arte através dos meios de comunicação de massa como o rádio, o disco e a televisão são características gerais desse movimento, pioneiro da Contracultura brasileira. Um texto exemplar da poesia tropicalista é a letra da música "Tropicãlia", de Caetano Veloso. Alguns dos elementos típicos do movimento surgem aqui de forma bastante evidente. 97 TROPICÃLIA Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões Meu nariz Eu organizo o movimento Eu oriento o carnaval Eu inauguro o monumento No Planalto Central do país Viva a bossa - sa - sa Viva a palhoça - ça - ça - ça - ça 0 monumento é de papel crepom e prata Os olhos verdes da mulata A cabeleira esconde atrás da verde mata 0 luar do sertão 0 monumento não tem porta A entrada é uma rua antiga estreita e torta E no joelho uma criança sorridente feia e morta Estende a mão Viva a mata - ta - ta Viva a mulata - ta - ta - ta - ta No pátio interno há uma piscina Com água azul de Amaraliná Coqueiro, brisa e•fala nordestina E faróis Na mão direita tem uma roseira Autenticando a eterna primavera E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira Entre os girassóis Viva a Maria-ia-ia Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia No pulso esquerdo o bang-bang Em suas veias corre muito pouco- sangue Mas seu coração balança a um samba de tamborim Emite acordes dissonantes Pelos cinco mil alto-falantes Senhoras e senhores ele- põe os olhos grandes Sobre mim Viva Ipanema - ma - ma Viva Iracema - ma - ma - ma - ma Domingo é o fino da bossa Segunda-feira esta na fossa Terça-feira vai ã roça Porém 0 monumento é bem moderno Não. disse nada do modelo do meu terno Que tudo mais vã pro inferno Meu bem Viva a banda - da - da Carmem Miranda - da - da - da - da. 51 98 Todo o texto se estrutura basicamente através da justaposição de elementos antagônicos, contrastivos, divergentes, dissonantes, tirando dal os seus efeitos mais ricos. Um exemplo vigoroso encontra-se na seqüência de versos: "Eu organizo o movimento"; "Eu oriento o carnaval"; e "Eu inauguro o monumento/No planalto central do pais". Temos al a referência a um "eu", sujeito de uma série de ações díspares e incompatíveis entre si a princípio. Se trouxermos mais para perto o contexto do país no final da década de 60, cada um desses elementos se reveste de nuanças muito significativas. 0 "movimento" referido pode ser o "movimento estudantil", o "movimento operário", ..o. "movimento contra a repressão política", ou o próprio "movimento tropicalista", algo portanto que se traduz em termos de uma organização coletiva de caráter político, ou culturalmente ativo no plano estético-político. Esse caráter coletivo está presente também em "carnaval", porém com direcionamento bastante diverso. 0 sentido de tensão política presente na organização de um "movimento" em plena ditadura militar se choca com a alegria e a descontração presentes na evocação da maior festa popular. Ambos, por sua vez, defrontam-se com a última ação referida, a "inauguração de um monumento em Brasília". A clandestinidade da organização de um "movimento" e ã marginalidade e ao descompromisso político de uma festa como o "carnaval" junta-se agora a solenidade oficial do poder político.constituído que, na capital do país, "inaugura seus monumentos". A atribuição de ações tão diversas a um mesmo sujeito surge aí para revelar as contradições presentes na própria realidade nacional. 0 "eu" poético transfor- 99 ma-se num sujeito abstrato que paira sobre a realidade brasileira e unifica ações divergentes. O Brasil da alegria eufórica e dionisíaca do carnaval é também o Brasil da poli tica oficial e da repressão, que é também o Brasil da contestação política e cultural. Essas contraposições pontuam todo o texto. A referência a um verso de cantiga popular ("na mão direita tem uma roseira") convive no texto com outra de uma canção de Roberto Carlos, típica da Jovem Guarda ("que tudo mais vã pro inferno, meu bem") . A cantiga de. origem folclórica, popular, veiculada originalmente de forma tradicional, contrasta com a canção de um movimento musical influenciado pelo "rock", de grande difusão- nos meios de comunicação de massa nos anos 60. Isso se dá também em muitas outras justa posições: "bossa" (Bossa Nova, tendência da música popular de caráter urbano e moderno) e "palhoça" (que remete ao rural e ao primitivo); "Iracema" (mítica personagem indígena do Romantismo brasileiro) e "Ipanema" (termo também de origem indígena, porém nome de uma praia de um dos maiores centros urbanos do país); e assim por diante. Parece haver em todo o texto da canção o desejo de inventariar o Brasil, de descobri-lo, de entendê-lo, de revelá-lo. O Brasil que surge daí não é porém o Brasil unidimensional do discurso nacionalista mais xenófobo, nem o Brasil dicotomizado maniqueisticamente da esquerda ortodoxa e sim um Brasil multifacetado, de realidade cultural múlti) pia e cheia de contrastes. 100 2.6 PÕS-VANGUARDAS As vanguardas poéticas surgidas entre meados dos anos 50 e final dos anos 60 tinham todas em comum a formulação de » um programa poético mais ou menos definido, dependendo do movimento em questão, seguido por seus integrantes coletivamente. No Concretismo, por exemplo, é conhecida a preocupação dos poetas que o integram de a todo momento estarem refletindo acerca da sua própria produção e do significado dessa produção dentro do cenário da literatura brasileira e mundial. O número de artigos críticos, depoimentos, entrevistas, polêmicas, manifestos, etc., postos em circulação, é incrivelmente extenso. Todos os outros movimentos, com maior ou menor freqüência, também se caracterizam por esse-tipo de militância intelectual em defesa de seus ideais poéticos. A partir do início dos anos 70, e chegando-se até os dias de hoje (início dos 90), o que se percebe é uma atenuação deste tipo de atuação poética. A idéia de uma produção de "vanguarda" torna-se anacrônica e nenhuma espécie de "projeto poético" significativo, a ser seguido com rigorosa ortodoxia por todo um grupo de poetas, surge no panorama literário brasileiro. A produção que mais se aproximaria desse tipo de atuação pela formação de grupos e publicação de revistas - a Poesia Marginal - não se caracteriza por um projeto poético inequivocamente definido, mas sim por uma oposição (maior ou menor, desejada ou não) às vanguardas es- téticas - com a conseqüente reedição de muitos dos procedimentos que por elas haviam sido negados - e por um tipo específico de veiculação da sua poesia, marginal em relação ao circuito editorial brasileiro. Paralelamente ã produção dos 101 chamados marginais, e em sintonia sintomática com essas opções, a poesia brasileira vai se caracterizar pela preferência por caminhos individuais, que evidenciam, porém, muitos traços poéticos comuns, como a recusa vital das utopias estéticas e ideológicas das décadas anteriores; a recuperação do verso, do discursivo, da sonoridade, da oralidade como elementos essenciais da poesia; a preferência por uma dicção mais lírica e subjetiva. Essa rejeição de utopias coletivas encontra um paralelo interessante na própria desmobilização política da sociedade brasileira a partir de 1968, com o recrudescimento da repressão política, que iria até quase ao final da década de 70. Mesmo posteriormente,- quando- a -Ditadura Militar arrefece o policiamento ideológico e o país vai lentamente se redemocratizando, o entusiasmo relativamente a uma redenção cultural, social e política do Brasil, que povoava o imaginário de vasto setor da intelectualidade brasileira nos anos 50 e 60, não recupera o vigor. Ao longo da década-de 80,-quando o poder político volta ãs mãos das lideranças civis, todos as grandes movimentações político-sociais (movimento "Dire- tas- Já" , Assembléia Constituinte, planos econômicos, eleição direta para a Presidência da República, etc.), que insinuariam alguma espécie de mudança estrutural de maior conseqüência no país, são sempre seguidas de um abrupto esfriamento. Ceticismo, relativização radical de valores, rejeição de engajamentos, desmobilização, individualismo - surgidos devido ãs violentas frustrações que seguiram todos os movimentos de caráter coletivo no Brasil nos últimos tempos - são traços culturais que vão marcar também toda a arte mais recente do 102 país. Na poesia, por exemplo, a ausencia de qualquer movimento coletivo na década passada pode ser interpretada como uma evidência do descrédito em relação ãs utopias, sejam elas políticas ou estéticas. 2.6.1 Poesia Marginal (Anos 70) A Poesia Marginal surge no Brasil em plena sintonia com um movimento cultural de características internacionais, e com o qual o Tropicalismo havia evidenciado já toda uma série de afinidades: a Contracultura. Enquanto movimento de oposição aos valores do capitalismo hegemônico, a Contracultura vai se caracterizar por um deslocamento de perspectiva crítica em relação ã oposição tradicionalmente realizada pela-esquerda ortodoxa. A crítica nolítica deixa o espaço restrito da militância política para se enraizar no âmbito mais geral de uma crítica cultural dos comportamentos. A oposição não se dá mais apenas (ou predomi- nantemente) do ponto de vista conceituai, mas também do ponto de vista de uma ação integral a nível de opções de vida. Assim, valores aceitos sem discussão relativos a trabalho, propriedade, casamento, religião, arte, política, etc. são questionados a partir da proposição de valores alternativos, incorporados numa vivência concreta também alternativa. A vida em comunidades que rejeitam a família como base institucional; a opção por novas formas de alimentação e medicina (macrobió- tica e homeopatia, por exemplo); o uso de drogas, o misticismo e o irracionalismo como oposição ãs religiões oficiais e ao pensamento racionalista da sociedade industrial burguesa; a música "rock", a "pop art" e outras manifestações artísticas 103 de caráter popular e de massa preferencialmente à arte dita "culta", etc. são as manifestações culturais de todo um grupo que acredita estar revolucionando, ã sua maneira, a sociedade. Que tudo isto seria absorvido muito bem e lucrativamente pelo próprio sistema que pareciam recusar, só se evidenciou a seus seguidores posteriormente. No Brasil, a Contracultura vai desenvolver nuanças bastante próprias, sobretudo pela situação política do país e pelas suas características culturais e econômicas, bastante distintas da sociedade de bem-estar e franco consumo dos países onde o movimento contracultural surge de início (Estados Unidos e Europa Ocidental). Em todo o caso, o seu princípio porteador - encontrar alternativas de vida em todos os níveis possíveis em-relação-ao:-padrão de vida dominante da sociedade - revela-se aqui jã. com o Tropicalismo, explodindo a seguir no significativamente chamado "desbunde", ao longo dos anos 70. Especificamente no âmbito da. criação literária, a Poesia Marginal vai incorporar esse tipo de opção pelo alternativo/ e essa ampliação de toda a_ação a um nível mais geral em termos comportamentais. Assim, poesia e experiência de vida vão se aproximar estreitamente. Resgata-se uma relação muitas vezes preterida pelas vanguardas: a fusão entre arte e expressão das vivências pessoais. Em termos da sua veiculação, a Poesia Marginal abandona (ou se poderia também dizer: é abandonada pelo) o circuito editorial tradicional. Com a dificuldade crescente de editar seus livros, os poetas vão optar por um tipo de divulgação dos seus trabalhos inédito no país. Eles mesmos vão financiar 104 edições artesanais de seus livros e cuidar da distribuição, feita corpo a corpo em shows de música e bares, locais onde usualmente circula o público visado por essa produção. Esse caráter marginal da produção e da distribuição vai alimentar, conseqüentemente, o próprio conteúdo dessa poesia. Distante dos meios consagrados de legitimação cultural - as editoras, as livrarias, a Universidade, a crítica, os meios de comunicação de massa -, essa produção mantém-se distante também de um diálogo mais estreito com os valores desses meios, ao contrário das vanguardas, sempre preocupadas com o amplo reconhecimento da sua produção e com a garantia da sua permanência na cultura-brasileira. A Poesia Marginal não tem esse caráter, ela não se propõe a dialogar de forma consciente com o "sistema literário" nem agir determinantemente sobre ele. Ela não pretende a permanência, não propõe uma poética definida e orgânica, nem procura apreender a realidade brasileira de forma global, como ainda o Tropicalismo se propunha. A vivência do cotidiano com seus problemas e a linguagem mais imediata através da qual esses problemas são vividos é o que interessa a esses poetas. Se a sua poesia acaba por refletir um todo mais amplo, isso não se dá pelo desejo de assim proceder, mas pelo simples fato de todo o fenômeno cultural trazer microscópicamente a imagem (mais ou menos fielmente refletida) de toda a macro-estrutura. Em estudo básico para a compreensão da Poesia Marginal, Retrato de Epoca, ao mesmo tempo ensaio crítico e inventário antológica da produção, Carlos Alberto Messeder PEREIRA apresenta algumas formulações importantes sobre a poesia dos 105 chamados marginais. Referindo-se â linguagem dessa poesia, Messeder ressalta o seguinte: Em t e r m o s d o t i p o d e l i n g u a g e m atualizada n e s t e s t r a b a l h o s , a v a r i e d a d e era extremamente g r a n d e . Reuniam desde peq u e n o s t e x t o s em p r o s a , com f o r t e tom i r ô n i c o , a t é o u t r o s c o n t e n d o uma p o e s i a calcada sobre o verso, bastante discursiva e referencial - a l i á s a d é c a d a de 70 v a i a s s i s t i r a um r e v i g o r a m e n t o de uma p o e s i a m a i s d i s c u r s i v a e r e f e r e n cial (...) - em f r a n c a o p o s i ç ã o ã p r o dução p o é t i c a das v a n g u a r d a s , e onde tematiza-se questões estreitamente rel a c i o n a d a s ao c o t i d i a n o dos produtores e a c i m a de t u d o , num t o m b a s t a n t e coloq u i a l , n a da acadêmico (...).52 Ao lado desse veio dominante, Messeder ressalta no entanto, algumas manifestações.que se aproximam de alguns principios das vanguardas,-porém-mais precárias na exploração dos recursos gráficos-e-menos -rigorosas e programáticas em suas realizações. A promoção de "happenings", outro exemplo, muito difundida pelo Poema Processo, vai se repetir na forma de "shows" e lançamentos artísticos- entre os marginais. Em todo o caso, a atitude dominante é de oposição ãs vanguardas, e as eventuais incorporações deslocadas e diluidoras dos seus princípios acentuam a diferença, alimentam esse caráter alternativo e marginal. As características . dominantes apontadas podem ser verificadas em alguns poemas representativos dessa poesia. Num poema breve e coloquial de CACASO, "Na corda bamba", fica clara aquela fusão entre arte (poesia) e vida anteriormente acentuada, aproveitada aqui enquanto tema. Registre-se também o seu caráter de rápido e despretensioso apontamento poético, que tem muito da espontaneidade de certa poesia do primeiro Modernismo, sobretudo Oswald de Andrade. 106 NA CORDA BAMBA p/Chico Alvim Poes ia eu não te escrevo eu te vivo e viva nós ! 5 3 Um exemplo de registro do cotidiano numa dicção coloquial e direta, sem metáforas, próxima ao narrativo, e, portanto, ao prosaico, pode ser observado no seguinte poema de Luís Olavo FONTES. CENA FAMILIAR cumprimentei a mãe o pai com uma palavra sobre Nixon dei um beijo na avó que me deu um livro horrível disse que ia 1er, agradecido quando a mãe me pegou a falar de I Ching com os olhos vidrados Ângela jã vem está saindo do banho (adoro Ângela de toalha) na poltrona o pai postulando a ordem unida idiotiza os homens a mãe jogava moedinhas na mesa de olhos fechados eu pensando no último conto respondi a todas as perguntas enfurnado em meus personagens levei um beijo ca:rinhosõ Ângela de cabelo molhado saímos para tomar um porre depois trepar num hotel da Barra não se preocupe, minha senhora ãs duas estamos em casa 54 10 7 Ainda um último poema, agora do livro Passatempo, de Francisco ALVIM, no mesmo espírito do anterior, ainda que de caráter bem mais fragmentário: ENTREVISTA Mandei a carta sem muita esperança Não sei direito o que pedir Ela me disse que deixasse filosofia (minha vida estava toda errada) Me ofereci para fazer a limpeza do Foyer e me pegaram para organizar uma biblioteca Ê disso que venho falar Não da carta que muito me surpreende tenham lido 0 que eu queria ê mais um conselho Alguém que me ajude a sair de onde estou A viagem foi uma boa coisa me fez crescer tornou-me menos indeciso Se não for possível uma bolsa em filosofia em historia serve Se não for possível bolsa talvez uma outra ajuda Preciso voltar meus pais jã estão bastante velhos 5 5 Os poemas destacados contrastam com os poemas característicos das vanguardas estéticas. Deixam de lado a experimentação formal, o desejo programático de ruptura, o inevitável fechamento para públicos mais amplos e menos aparelhados, para resgatar a comunicação fácil, direta, despretensiosa, numa linguagem que recupera a vitalidade coloquial de certa poesia modernista. Contrastam também com a poesia de engajamento político pela ausência de uma pregação doutrinária orgânica visando um público socialmente distinto dos próprios produtores. A Poesia Marginal ë feita por jovens para um público também jovem, num momento em que as palavras de ordem da militância de esquerda e as pretensões culturais de uma arte sofisticada e de elite cedem espaço â descontração, ao 108 descompromisso, ao hedonismo - enfim ao "desbunde" - de uma geração que. cresce no sufoco da Ditadura. Aí se vislumbram os seus limites, jã que a facilidade leva â vulgarização e ã banalização nas piores realizações, mas também sua virtude, dado o seu extremado vitalismo, necessário para superar os impasses do experimentalismo e do engajamento político, excessivamente policiais, e portanto esterilizantes nos seus instantes de excessiva ortodoxia. 2.6.2 Poesia Anos 80 Se durante os anos 70 surgiu um tipo de poesia que, ape- sar da ausência de um programa poético definido, pôde ser denominado genericamente de "Poesia Marginal" - o que pressupõe a. presença de traços característicos comuns presentes na obra dos poetas -, para a poesia dos anos 80 não surgiu ainda qualquer termo que a enquadrasse dentro dos limites unificadores de um determinado movimento. Provavelmente isso se dê, além da inexistência de um necessário distanciamento histórico com relação a essa produção mais recente, pela ausência, já ~ observada como característica da produção da década de 70, de um programa poético coletivo, de uma utopia poética, e pela preferência por caminhos altamente individualizados. Durante os anos 70 não foi a Poesia Marginal, obviamente, a única novidade no âmbito da poesia. Muitos nomes novos, bem como outros surgidos anteriormente e ligados a um daqueles momentos da poesia brasileira já estudados aqui, vão produzir parte substancial da sua obra nos anos posteriores ãs últimas vanguardas. Entre eles, pode-se citar alguns bastante novos, como por exemplo, Orides Fontela, Adêlia Prado, Duda Machado, 109 Alcides Villaça, entre outros, ou ainda alguns que estrearam num momento anterior, como Hilda Hilst, Carlos Nejar, José Paulo Paes, Affonso Romano de Sant'Anna, etc., todos poetas ainda ativos durante a década de 80. A ausência de agrupamentos, de linhas poéticas claramente delimitáveis, complica a elaboração de estudos panorâmicos, nos quais as produções individuais têm de ceder espaço â consideração de poéticas que possam ser estendidas a todo um período, a toda uma fase. de produção. A ausência de estudos sistemáticos da poesia mais recente, que privilegia não autores isolados, mas linhas de força da nova poesia, faz com que apenas hipóteses possam ser levantadas acerca das características da produção do período,, carentes ainda de evidência inequívoca. É com esses problemas em vista que se vai tentar aqui considerar algumas das características da produção mais representativa dos anos 80. Na revista "Leia" n9 147, de janeiro de 1991 5 5 , foi publicada uma relação dos melhores livros de poesia brasileira postos em circulação ao longo dos anos 80. Organizada por dois jovens e representativos críticos de literatura do país, Flora Sussekind e Augusto Massi - este também poeta e organizador de uma das mais bem sucedidas coleções de poesia dos últimos tempos, a Coleção Claro Enigma, e de um importante encontro de poetas realizado no MASP de São Paulo entre os dias 15 e 19 de maio de 1990 -, a relação traz desde poetas presentes no cenário literário do país há muito tempo, como Drummond e João Cabral de Melo Neto, até nomes surgidos ao longo da última década. Esta relação, no que diz respeito aos nomes mais recentes, pode servir como um bom ponto de partida para a consideração da produção poética brasileira dos últimos anos. 110 Entre alguns dos poetas que começaram a adquirir maior significação a nível nacional na passagem dos anos 70 para os 80, podem ser citados os seguintes nomes, contidos na relação: Rubens Rodrigues Torres Filho, Regis Bonvicino, Paulo Henriques Brito, João Moura Júnior, Age de Carvalho e Paulo Leminski, este último com uma produção significativa publicada jã anteriormente, bastante elogiada pela crítica ligada ao movimento concretista. Em geral, o que se percebe na produção desses poetas ê já um crescente afastamento, em maior ou menor grau, daquele caráter mais despreocupado e despretensioso da Poesia Marginal. Percebe-se um distanciamento crescente do ar "pop", "underground", "alternativo"., que, naquela geração, pelos vínculos com todo o espírito da Gontracultura, -era um dos seus- dados-paradoxalmente mais férteis e mais-esterilizantês: férteis, pela novidade, pelo frescor, pela contestação a uma poesia de vanguarda que punha em perigo a capacidade de comunicação espontânea da palavra poética; esterilizantes.,- pelo descuido e-descaso dessa poesia para com o trabalho de criação, pela facilidade e banalização do fazer literário, pelo amaneiramento que tomou conta de boa parte da produção. O registro relaxado das vivências cotidianas pessoais vai ceder espaço a uma poesia, em média, bem mais preocupada com a elaboração i.formal rigorosa do poema. Alguns textos podem servir de exemplo para o que se está dizendo aqui. Entre os novos poetas citados pela relação da revista "Leia",, encontra-se Paulo Henriques BRITO, com seu Mínima lírica, livro que engloba sua produção entre os anos de 1982 e 1989. A seguir, o primeiro dos quatro sonetos que compõem "Mínima poética": 1 111 MÍNIMA POETICA I Poesia como forma de dizer o que de outras formas e omitido não de calar o que se vive e vê e sente por vergonha do sentido. Poesia como discurso completo,, ao mesmo tempo trama de fonemas, artesanato de éter, e projeto sobre a coisa que transborda o poema (se bem que dele próprio projetada). Palavra como lâmina só gume que pelo que recorta é recortada, cinzel de mármore, obra e tapume: a fala - esquiva, oblíqua,, angulosa do que resiste ã retidão da prosa. 57 Chama primeiramente a atenção a forma poética escolhida, um soneto, composto todo ele em versos decassílabos e com rimas, algumas- delas toantes, mas sobretudo consoantes—A-utilização de uma forma da tradição poética sem a busca.de qualquer efeito - parodístico revela já uma postura bastante distinta da dos marginais com relação ao trabalho poético e ã tradição da poesia. Ë evidente aqui o artefato, o rigor e o cuidado na composição. Hã nele, entretanto,- uma crítica semelhante.:à implícita na Poesia Marginal com relação a um fazer poético que se afasta da experiência do sujeito, corrente no período das vanguardas estéticas: "poesia como forma (....)/não de calar o que se vive e vê/e sente por vergonha do sentido". A restrição da palavra poética a uma única de suas dimensões - a que se vinj cuia a chamada "função poética" da linguagem - deixando-se de lado outras de capital importância, outra quimera vanguardista, encontra crítica muitíssimo bem formulada numa passagem como a que segue : . "Poesia como discurso completo/ao mesmo tempo trama de fonemas/ artesanato de éter, e projeto/ sobre a coisa que transborda o poema" (se bem que dele proprio projetada) ." 112 Na poética em questão, faz-se referência a uma valorização da palavra integral, ao mesmo tempo material e transcendente ("trama de fonemas") ("artesanato de éter"), voltada não exclusiva- mente sobre si mesma, mas sobre coisas que, dela mesma se projetando, a ultrapassam. Uma poesia bastante distinta desta, tendente a um maior truncamento dos sentidos, porém da mesma forma muito distante da espontaneidade coloquial dos marginais, é a de Age de CARVALHO, cujo Ror, contendo a produção que vai de 1980 a 1990, também foi destacado pela "relação" dos mais representativos da década de 80. Um poema,. "A João Cabral de Melo Neto"-,pela evidenciação das diferenças entre a poética-do. novo poeta e aquela que é uma das mais importantes e paradigmáticas da poesia brasileira. da, segunda metade do século (boa parte da vanguarda estética se pauta.por ela), pode servir aqui como boa ilustração: A JOÃO CABRAL DE MELO NETO s5 dizer o que sei e duvido saber, o sal pela mão do rio-sem resposta um luxuoso dizer, de vagar sem onda e vaga, fluvial, não aliterado; » um dizer repetido na diferença, barrento, semi-dito, em Não fechado; ou o não-dito, rios sem discurso, nome.por dizer ou dizer empedrado; dizer sim o raro e claro do poema, dizer difícil e atravessado, com margem de erro 5 8 113 Ä clareza, às regularidades e simetrias, ao equilíbrio formal de João Cabral contrapõe-se- aqui "um luxuoso dizer", "barrento", "difícil e atravessado" e "com. margem de erro". Contrariando a precisão e- limpidez da poesia de Cabral, Age de Carvalho insiste barrocamente nos parodoxos: sõ dizer/ o que sei/ e duvido saber"; "dizer sim o raro e claro do poema, / dizer difícil e atravessado, (...)". Sua dicção é complicada e preciosa, desdobrando-se luxuriosamente pelos versos de metros e ritmos vãrios deste poema. Nada da espontaneidade coloquial dos poetas marginais, nem da geometria verbal das vanguardas. Ainda um poema de cunho metalingüístico, agora de Paulo LEMINSKI, do livro Distraídos vence remos', pode- servir como um último exemplo da poesia da década de 80. Leminski, tendo-namorado com a Poesia Concreta•e- com a reconstituição da tradição da poesia por ela operada, e, ao mesmo tempo, estando muito próximo da. Contracultura, por afinidade e geração, conseguiu em sua obra uma"interessante fusão e superação dessas-vertentes. 0 título do. seu livro destacado pela "relação" - Caprichos e relaxos, de 1983 - é índice da fusão de duas perspectivas poétiticas: a do rigor formal ("caprichos") e a da despreocupação lúdica e espontânea ("relaxos"). DESENCONTRÂRIOS Mandei a palavra rimar,, ela não me obedeceu. Falou em mar, em céu, em.rosa, em grego, em silêncio, em prosa. Parecia fora de si, a sílaba silenciosa. 114 Mandei a frase sonhar, e ela se foi num labirinto. Fazer poesia, eu sinto, apenas isso. Dar ordens a um exército, para conquistar um império extinto. 5 9 Os dois primeiros versos curiosamente põem em questão o total domínio intelectual do criador sobre o seu material, prescrito pelo construtivismo da vanguarda seguindo as pegadas do mestre João Cabral: "Mandei a palavra rimar, / ela não me obedeceu." A palavra rebela-se contra o poeta, afirma a sua independência, escapa, ã sua manipulação, indo desregradamente ("Pa- recia fora de si") falar dos. mais díspares assuntos e maneiras: "Falou em mar, em céu, em rosa, / e m grego, em silêncio, em prosa". No entanto, contrariando o que no nível semântico vai sendo dito, a palavra rima sim no poema: "rimar"/"amar" (rima interna); "rosa"/"prosa"/"silenciosa", ou seja, encontra-se sob o controle do poeta-artífice. Leminski joga com esse descompasso, contradiz na forma o que explicita no plano dos conteúdos, justamente para demonstrar o caráter problemático e complexo do fazer poético como algo que está e não está totalmente sob o controle do criador. Os belos versos finais da segunda estrofe reafirmam esse caráter de desencontro (lem- bre -se o próprio título da composição "Desencontrários", num neologismo bem típico do autor - "desencontro" + "contrários"). "Dar ordens a um exército" implica em organização, ordem, disciplina, controle - e m outras palavras, naquilo tudo que se faz indispensável para um artesão da palavra. Porém todo esse aparato vai em direção a um objetivo quimérico, essencialmente contraditório e problemático: "conquistar um império extinto". 115 Os exemplos dados são poucos para se poder fazer generalizações mais amplas acerca da produção de todo um período ainda mal estudado pela crítica nas suas vertentes dominantes. De um modo geral, os livros dos poetas mais recentes que a "relação" da revista "Leia" apresenta, trazem, poemas bastante distintos da Poesia Marginal dos anos 70. Hã uma preferência por uma dicção menos leve, espontânea, cotidiana, quase prosaica, corrente na poesia dos marginais, e o resgate de um trabalho literário bem mais cuidado e culto do ponto de vista poético, plenamente. consciente de toda uma tradição da poesia que lhé ê anterior. Porém, ela também não se aproxima em demasia da poesia das ; vanguardas, estéticas, pois-é muito forte nela a idéia de uma exaustão da vanguarda, da procura do novo pelo novo,, do original e inédito a- todo-o-preço. Preferindo o verso discursivo ao desmembramento, da palavra, p-referindo o oral ao visual, o lírico subjetivo ã coisificação do verbo literário e o objetivismo, formalista,, a realização individual., ao programa coletivo,- essa poesia vai apontar outros caminhos: para os impasses poéticos do experimentalismo. Num certo sentido pode-se dizer que a poesia dos anos 80 incorpora e supera, â sua maneira, os momentos anteriores. É refinada e culta como a vanguarda estética, porém predominantemente verbal, subjetiva e discursiva como a Poesia Marginal. 116 NOTAS DE REFERÊNCIA ^ANT'ANNA, Affonso poes i a b r a s i l e i r a . 3.ed. Romano d e . Petrópoli.s Música popular V o z e s , I 9 öb . 2 da F E R R E 1 R A , A u r é l i o B u a r q u e de H o l a n d a . língua portuguesa. R i o de J a n e i r o : N o v a 3 ra. B0SI, A l f r e d o . . H i s t ó r i a . c o n c i s a 3.ed. Sao P a u l o : C u I t r i x , 19Ö5 . 4 SANT 1 ANN A . op. da e moderna Novo dicionário Fron t e i r a , 19 7 5 l i t e r a t u r a b r a s i l e i ' ' """" cit. ^ A N D I D O , A n t o n i o ; CASTELLO, A d e r a l d o . P r e s e n ç a da. 1 j t e r a t u r a b r as i 1 e i r a . Sio- P a u l o : — D i f u s ã o E u ropiTi a d o Li v r o , v. 3 . . 6 MART I N S , Cu 1 t r i x , 1 9 7 3 . Wilson. 0 mode r n i s m o . b. ed. Sio Paulo 7 R A M 0 S , P é r i c l e s E u g ê n i o da S i l v a . 0 modernismo sia. I n : CO UT IN HO, A f r â n i o . A l i t e r a t u r a no B r a s i l . R i o de J a n e i r o : J o s é O l y m p i o , 19 öb . 8 H0LLAN0A, CPC, v a n g u a r d a e 1 i en s e , 1 9 8 1 . 9 10 Janeiro Diléa SANT'ANNA. H e l o í s a Buarque de. desbunde: 1960/70. op. ^ANDRADE . 1990. p. AN D RA D E, p. 85. op. Oswald p. de. Pau-b ras i l . op. cit. p. 86. 15 op. ci t . p. 139- 16 apud B 0 S I. op. da v i d a IU Ö . inteira. cit. Rio de crítica de 1987. p. 92. 19 1 . ^ANDRADE, ANDRADE. h u p r e s s o e s de v i a g e m 27e d. Sao Pau 1 o i 5 T a s i - de. P o e s i as comp 1e t a s . E d . Belo Horizonte : Itatiaia, ci t . na p o e 3.ed. 57. B AN DE I RA, M a n u e l . . Estrela : José O l y m p i o , 19^6 . ^ANDRADE, M á r i o Zanotto Manfio. 13 cit. : 431. Sio Paulo : Globo, 117 17 CAN D I D O , A n t o n i o . A r e v o l u ç ã o de 30 e a A educação pela n o i t e e outros ensaios. AtiEI, 1 7 5 T . — p . 1H2. 18 São LAFETÂ, J o i o L u i z . P a u l o : Duas C i d a d e s , 19 MARTINS,. 20 BOS I . 21 RAM0S. 2 2 op. 2 3 B0SI , op. op. op. cit. p. op. ci t . cit. neiro ci t . neiro : p. 431 . p. 44. p. 491. Poemas 1 9 80 . L I MA, - J o r ge de . Nova F r o n t e i r a , A B l B L I A de J e r u s a l e m . cín et a l i i . 4?. impressão. 1.9 89 . 28 SANI'ANNA. op. 29 RAM0S. cit. 3 0 31 de 45. Cf. 33 Rio de 34 cit.- e Bumba-meu-poeta. pT 8 1 . Rio op. o p . c i t . Rio p. de Ja- Ja- 39-54. 195. cit. p. 50-1. p. p o é t i c a , da p~. geração 59-60 M E L 0 NETO, J o i o C a b r a l d e . A n t o 1 o g i a poé t i c a . J a n e i r o : José Olympio, I989T p~] 106 . " SANT'ANNA. de T r a d . . . Eue 1 i d e s M a r t i n s BalanSão P a u l o : E d i ç õ e s Paulinas, p. p. SANT'ANNA. CAMPOS. modernismo. N o v a r e u n i ã o - 19 livros J o s e O 1 ym p i o 7 1 9 8 7 . v.l, C A ' M P 0 S , N i l t o n de G o d o y . Antologia São P a u l o : C l u b e de P o e s T a , . 19'fab . 3 2 o P o e s i.a s..,.c o m p-1 e t a s . - 2 . e d . . 1 9ö0 . v . 1 , p~7 T8^7 . 27 op. e 125-6. Drummond d e . de J a n e i r o : MENDES, M u r i l o . : Nova F r o n t e i r a , 2 6 p. a crítica p. 13-22. 172. AN D RA DE, C a r l o s poesia. 3.ed. Rio 85-87. 25 19 3 0 : 1974 . cit. 2 4 de p. cultura. In: São P a u l o : 7.ed. 136. 35 C A M P 0 S , A u g u s t o de ; CAMPOS, H a r o 1 d o de ; P I G N A T A R I , Décio. Plano-pi loto para a poesia concreta. In: . Te o r i a da p o e s i a c o n c r e t a . 3.ed. São P a u l o : B r a s i l i e n s ! - ] T987. p. 156-8. 36 se, CAMP0S, A u g u s t o 1986. p. 99. 37 CAMP0S ; CAMPOS de. ; Viva vaia. PIGNATARI. op. São cit. Paulo p. : Brasilien- 88. 118 ^ C A S T R O , A m i l c a r de e t a l i i . Manifesto neoconcreto. I n : TELES, G i l b e r t o Mendonça. V a n g u a r d a e u r o p é i a e modernisme» brasileiro. 10.ed. R i o de J a n e i r o i R e c o r d , 19 8 7 . p. 4 O b - i T 3 9 SANT'ANNA. op. cit. p. 110 GULL A R , F e r r e i r a . Toda Olympio, 1987. p. 1637 José 144-5. poes i a . 4 ^ULLAR, Ferreira. Indagaçõesde Olympio, 1989. p. 36. José <t2 TELES. 4 3 p. CHAMIE, M á r i o . Poema op.ci t. p. 412-16. CHAM I E , Mário. praxis Poesia 4. ed. Rio de Janeiro hoje . Rio de Janeiro (manifesto práxis. In: didático). COUTINHO. In: op. cit. completa. Sio 244. Paulo ^CHAMIE, Mário. : Qufron, 1977. Objeto selvagem p~. 19 1. ' ~ 45 D I A S - P I N 0 , W l a d e m i r ; SA, A l v a r o TELES. op. c i t . p. 422-25. In: 46 DIAS-PINÖ, Wlademi-r. Petrópolis :. V o z e s . , 1971. . 47 SANT'ANNA. ^COLLAR. 4 9 50 op. op., SANT'ANNA. HOLLANIDA. cit. cit. op. op. • Proce s s o : de. Poema linguagem processo. e. c'omunJ c a ç ã o p.~157. nota cit. cit. poesia 40 . p. p. 177-87. 162-4. cf. p. 53-87. 51 A p r e s e n t e t r a n s c r i ç ã o de. " T r o p i c ã 1 i a " t e m c o m o b a s e o t e x t o c o n t i d o n o CD ( C o m p a c t d i s c ) " C a e t a n o Ve 1 os o " . R i o de Janeiro : Polygram, 1990, o r i g i n a l m e n t e l a n ç a d o em d i s c o LP (long-playing) n o anio de 1 9 6 8 . Como a v e r s ã o e s c r i t a apresenta a 1 g u m a s ' d i f e r e n ç a s em r e l a ç ã o a m ú s i c a c a n t a d a , p r o c u r o u - s e co t e j a r o t e x t o d o CD com o u t r a s t r a n s c r i ç õ e s da c a n ç ã o , c o m o as c o n t i d a s em: SANT'ANNA. op . c i t . p . 1 6 4 - 6 4 e VELOSO, Caetano. C a e t a n o Ve 1 os o - • 1 i t e r a t u r a i come n t a d a . org. Paulo Franchetti e A1 c i r P é c o r a . 2.ed. São P a u l o : N o v a C u l t u r a l , 1988. p. 60-: 5 2 poesia P E REIRA, C a r l o s A l b e r t o M e s s e d e r . . R e t r a t o de é p o c a : m a r g i n a l anos 70. R i o de J a n e i r o : FUN A RtE t 19 8 1. p. 5 3 HO LLANDA., op. 5,t op. p. ci t . cit. p. 106 . 1 08 . 55 Paulo ALVIM, Francisco. P o e s i as r e u n i d a s ( 1 9 6 8 - 1 9 8 8 ) . Sio : Duas. C i d a d e s , 1 9 8 87 Co 1 . 11 a r o En i gma . p. 191. 56 Le i a , n. 14 7 , jan. 199 1 . p. 28. 119 Sio BRITO, Paulo H e n r i q u e s . P a u l o : Duas C i d a d e s , 1989. CARVALHO, Age didades, 1990. Col. Mínima l í r i c a (1982-1989). Col. Claro Enigma. p. 90. de. Ror ( 1 9 8 0 - 1 9 9 0 ) . Claro Enigma. LEMINSKI, P a u l o . Bras i l i e n s e , 1987. j)istraídos São venceremos. Paulo Sio : Duas Paulo : Ci- 3 A POESIA 3.1 3.1.1 O ALUNO DE J O S É PAULO PAES (1947) Introdução O primeiro livro de poesia de José Paulo Paes, 0 aluno, vem... a. público no ano de 194 7, contemporáneamente, portanto, ä chamada..Geração de 45. Como se frisou em outra parte deste estudo, trata-se de um momento um tanto quanto polêmico, no que diz respeito ã sua avaliação pela crítica, do desenvolvimento da poesia brasileira. Alguns autores o vêem enquanto uma reação necessária a um certo esgotamento da poesia mais tipicamente modernista; outros, enquanto um retrocesso poético, finalmente superado pelas vanguardas das décadas seguintes, que resgatam, dentro de novo contexto, a agitação do Modernismo inicial. Muito mais do que a presença de um programa poético definido, o que parece unificar a produção dos autores mais diretamente ligados ã "Geração", como Péricles Eugênio da Silva Ramos, Lêdo Ivo, Domingos Carvalho da Silva, Afonso Félix de Sousa, entre outros, é justamente a sua atitude fundamental de oposição ao Modernismo, sobretudo ao Modernismo da década de 20, iconoclasta e experimental em essência. Os poetas da Geração de 4 5 vão optar por uma postura mais circunspecta e 121 mais reverente diante do labor literário e da tradição, resgatando formas poéticas e modos de compor que o Modernismo, no seu antipassadismo radical, havia deixado de lado. Daí o caráter tradicionalizante, poeticamente reacionário, portanto, e por vezes formalista da produção de muitos autores. A Geração de 45, em certa medida, pode ser vista como um instante de cristalização de um ambiente poético mais geral que tomava conta do Brasil no período, ao qual modernistas importantes do porte de um Drummond, de um Murilo Mendes, de um Jorge de Lima não ficaram infensos. Da mesma maneira, poetas que posteriormente iriam se destacar como importantes nomes vinculados ã-produção experimental dos anos 50/60, como Augusto e Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, ou outros que estiveram muito perto.das vanguardas, porém marcando-posição-mais independente, como Ferreira Gullar e. Mário Faustino, fazem então uma poesia de perspectiva não muito distante da dos autores ligados ã "Geração". É dentro desse ambiente, portanto, e revelando afinidades semelhantes com a poesia mais típica de então, que Paes vai estrear. 3.1.2 Análise Com o Modernismo, como foi dito, as formas tradicionais da poesia haviam sido deixadas de lado. No seu impulso de ruptura com a tradição e de afirmação de novos valores literários, os poetas do movimento.fizeram do verso polimétrico e do poema sem extensão ou.forma pré-fixados o seu meio ideal de expressão. Com raras exceções, e entre elas um Guilherme de Almeida ou uma Cecília Meireles, nenhum poeta brasileiro de real importância 122 que publicou nas décadas de 20 ou 30, escreveu,a não ser de forma bastante marginal em sua obra, poesia significativa dentro dos moldes mais tradicionais do fazer literário. Ao longo da década de 40, porém, a situação se altera sensivelmente, e novamente as formas da tradição - reabilitadas agora, passado o período mais radical da militância modernista - fazem-se presentes. Esta presença pode ser verificada não somente na produção dos poetas mais jovens que começam a publicar então, mas também na de importantes nomes do Modernismo. Assim, mestres do verso Livre como Drummond. e Jorge de Lima, por exemplo, exercitam-se, sobretudo a partir dos respectivos Claro enigma (19 51) e Livro dos sonetos (19 49), de modo superior numa forma, clássica como o soneto, exaustivamente vulgarizada por parnasianos e simbolistas, e, por esse motivo, propositalmente esquecida durante a fase mais ortodoxa do movimento renovador. Em 0 aluno, ao lado de poemas que formalmente podem ser filiados ã produção mais tipicamente modernista, encontram-se alguns poemas dentro de moldes explicitamente mais tradiconais, como é o caso de "Canção do afogado", "Balada" e "0 aluno", este último um soneto. "Canção do afogado" é o primeiro poema do livro: CANÇÃO DO AFOGADO Esta corda de ferro me aperta a cabeça, não deixa meus braços se erguerem no ar. E o mar me rodeia, afoga meus.olhos. Maninha me salve não posso chorar'. 123 Minha mão esta presa na corda de ferro e os dedos não tocam a rosa que desce, que afunda sorrindo nas ãguas do mar. Maninha me salve não posso nadar! Algas flutuam por entre os cabelos, meus lábios de sangue palpitam na sombra e a voz esmagada não pode fugir. Maninha me salve não posso falar'. E a rosa liberta, a inefável rosa, vai longe, vai longe. Um gesto ë inútil, meu grito e meu pranto inúteis também... Maninha me salve que eu vou naufragar! O termo "canção" tem servido para designar uma gama bastante ampla de composições poéticas, composições ora em indissociável ligação com a música - vinculação primordial que o próprio termo explicita -, ora de cunho mais ou exclusivamente literário; ora de origem popular, folclórica, ora de procedência erudita; ora de caráter lírico - caráter, aliás, dominante nas canções -, ora épico - de que é exemplo a canção de gesta medieval. No âmbito da tradição literária erudita e entre as várias possibilidades do lírico, a canção - diferentemente .do soneto, por exemplo, que designa uma forma lírica que obedece a um. padrão estrutural claramente identificável - não se caracteriza por uma estrutura composicional fixa, mantida sem transformações ao longo de todo o seu 124 desenvolvimento. Do ponto de vista temático, a despeito de ser o amor um dos seus temas dominantes, a canção também não tem sua abrangência restrita a campos muito específicos. A canção floreste na lírica trovadoresca - "cansó" entre os provençais, "cantiga" entre os galego-portugueses - ; encontra, posteriormente, importantes representantes em Dante e Petrarca, responsáveis pela fixação da canção ("canzone") dentro de moldes bastante precisos - a canção clássica, cultivada por exemplo por Camões -; difunde-se, por influência desses autores, por toda a lírica européia entre os séculos XV e XVIII, sobretudo na Península Ibérica e na Itália; é revitalizada mais tarde por românticos, resgatada também em suas vertentes mais primitivas, populares, folclóricas; chegando ã poesia moderna já com muitas transformações e incorporando uma liberdade formal bastante ampla. "Canção do afogado",atualiza, portanto, uma forma de longa tradição na lírica ocidental. E é com feições mais tradicionalizantes, e não porventura modernamente inovadoras, que se apresenta esta canção do primeiro Paes. Formalmente, o poema ê todo ele regularmente composto, o que já o afasta de início da irregularidade proposital das composições poéticas típicas do Modernismo: quatro estâncias maiores, todas elas com versos de cinco sílabas - excetuando-se os primeiros versos das três primeiras estâncias, de seis ou quatro sílabas -, seguidas de dístico de metro idêntico ã guisa de estribilho. Com exceção dos mesmos primeiros versos das três primeiras estâncias maiores e do segundo verso da última estância maior, todos os outros têm acentuadas as mesmas segundas e quintas sílabas. Todos os versos do poema são brancos. 125 A predominancia quase absoluta das redondilhas menores, a repetição de um mesmo padrão de acentuação do verso .(-/--/) e a presença do estribilho - a despeito da inexis- tência de rimas -, dão ao poema um tom repetitivo, circular, cíclico, que o aproxima bastante do padrão formal das canções de origem popular, onde a recorrência de formas ê pré-requisito para um casamento ideal com a música. Hã uma musicalidade implícita na repetitividade observada no poema de Paes, que o caracteriza enquanto canção, onde a música, de forma real ou então virtual, insinua sempre sua presença. A circularidade configurada pela repetição destes padrões estruturais encontra-se também em sintonia com o tom lamentoso, choroso, funéreo, angustiante que se.: apareende na voz: do, poeta. A música nesta-canção é música em tonalidade menor. Ao longo do poema, um "eu" lírico central descreve, em lento crescendo, o seu "afogamento". A ambientação sugere a princípio uma situação concreta: o poeta-encontra-se mergulhado has ãguas do mar, uma corda de ferro envolve seu corpo, prende seus movimentos, leva-o, com seu peso, em meios ãs algas, em direção ãs sombras e ao fundo. Enquanto vai se afogando, o poeta avista uma rosa que também afunda, cada vez, porém, mais longe de si. Durante a descrição deste processo, feita ao longo das estâncias maiores, o poeta, em contraponto, nos dísticos, dirige-se a uma figura feminina ("Maninha me salve") a quem pede insistentemente por socorro. A inconsistência objetiva do quadro descrito imediata» mente abre a composição para os seus segundos sentidos. Assim, todos os elementos adquirem uma dimensão simbólica. A "corda 126 de ferro" que "aperta a cabeça", não deixando os "braços se erguerem no ar", evoca a angústia (lat. "angustus" = "estreito", "apertado") que domina o sujeito poético. O seu afogamento, o seu mergulho nas sombras do mar ("meus lábios de san- ¡ gue / palpitam na sombra"), revelam a sua penetração, cada vez mais profunda, no problema.que o envolve e atormenta. Dal a sensação de paralisação, de imobilidade, de fechamento e silêncio recorrentemente evocada: "minha mão está presa", "e a voz esmagada / não pode fugir", "não posso chorar!", "não posso nadar!", "não posso falar!", etc. Daí também a sensação de proximidade da morte: "Maninha me salve / que vou naufragar!" A decodificação mais ou menos fácil destas"imagens, destes elementos metafóricos, cede espaço a uma aproximação um pouco mais ambígua de outros. A "rosa", por exemplo, é motivo um pouco mais problemático em suas sugestões semânticas do que os vistos acima. Enquanto se afoga, o "eu" poético avista diante de si uma "rosa que desce / que afunda sorrindo", cada vez mais longe, cada vez mais distante. O afundar da rosa - "rosa liberta", "inefável rosa" - tem caracterização oposta ao afundar do poeta: este se imobiliza em sua angústia, enreda-se, vai para o fundo, para as sombras, para a morte; aquela "afunda sorrindo", liberta-se. O que é, portanto, a "rosa"? Um elemento vital - um sentimento, um ideal, a própria alma - que se desprende do . "eu" lírico no seu processo de "afogamento", de angústia, de aniquilação? Ou, de forma menos fugidia e mais precisa, em ressonância com a presença da figura feminina cujo auxílio é constantemente invocado, e -não negando a interpretação anterior, o amor em 127 dissolução? A maneira como as imagens se encontram dispostas, sua caracterização, suas relações entre si, não permitem um fechamento para a questão. Também a figura feminina do poema é algo problemático, uma vez que a referência a ela é feita somente ao longo dos dísticos e de forma muito pouco precisa. O poeta chama-a "maninha" e invoca o seu auxílio, auxílio cuja natureza nunca é explicitada. 0 termo afetivo e fraterno "maninha" atenua a possibilidade de constituir ela a figura de uma possível amada, cujo amor o poeta estaria com sofrimento perdendo. Esta figura feminina acentuadamente abstrata, na verdade, parece servir mais como contraponto dramático para um extravasamento emocional do poeta. A despeito destas ambigüidades, que, ao final das contas, apontam sempre para uma mesma direção (a idéia de "afogamento" do "eu" poético, com as conotações referidas), o poema é todo ele bastante simples. A repetição das formas, dos metros, do padrão de acentuação, entra em sintonia com o tom insistente,.repetitivo, de angustiado lamento que se apreende na voz do poeta. Um'segundo poema que, por suas caracrerísticas composicionais e pela referência explícita do próprio título, se vincula a uma perspectiva poética de caráter mais tradicional é o poema "Balada": BALADA Folha enrugada, poeira nos livros. A pena se arrasta no esforço inútil de libertação. Nenhuma . vontade, nem mesmo desejo na tarde cinzenta. A árvore seca esperando seiva não tem paisagem . Na frente ë o deserto coberto de pedras. Nem sombra de oásis. Pobre árvore seca na tarde cinzenta! Se houvesse um castelo com torres e dama de loiros cabelos, talvez eu fizesse algum madrigal. Mas a dama morreu, os castelos' se. foram na tarde cinzenta! 0 caminho se alonga por entre montanhas, por campos e vales. Talvez me conduza ao roteiro perdido no fundo do mar. Mas estou tão cansado na tarde cinzenta! Não sou lobo da estepe amo a todos os homens e suporto as mulheres. Contudo não posso falar com os lábios, amar com o sexo, porque sinto a tortura da tarde cinzenta! Só me restam os livros Vou ficar com eles esperando que chegue do fundo da noite, das sombras do tempo, oh! imenso mar, vem me libertar da tarde cinzenta! 129 A "balada", em suas origens, é um tipo de composição de caráter popular, folclórico, coletivo, acompanhado de canto e dança (Baixo Latim "bailare": "dançar"), de espirito predominantemente narrativo, ao qual se mesclam, porém, elementos líricos e dramáticos. De grande difusão sobretudo entre os povos germânicos ao longo da Idade Média - seu equivalente ibérico são os chamados "romances" ou "rimances" -, a balada folclórica foi eclipsada por outras formas composicionais durante os períodos de maior influxo do classicismo entre as literaturas européias, para ser resgatada ao longo dos déculos XVIII e XIX (Pré-Romantismo e Romantismo) tanto através de compilações dos seus exemplares mais antigos quanto enquanto modelo de novas composições literárias. Na Erança, desde o see. XIV e f-ixando-se no see. XV, desenvolveu-se, no âmbito da literatura erudita, um tipo de balada - a chamada "balada francesa" - com formas rigorosamente determinadas: composições com três estrofes isométricas, oitavas ou décimas, com estrutura-rímica, respectivamente, segundo o padrão ababbcbc e ababbccdcd, finalizadas por uma meia estrofe - "envoi", em português "ofertorio" - com rimas segundo a disposição bebe (oitava) ou ccdcd (décima), sendo o último verso de cada uma das estrofes sempre o mesmo. Mais. modernamente, como costuma acontecer com as formas tradicionais,.a balada desenvolveu-se: assumiu, em muitos casos, um caráter mais evidentemente lírico e desprendeu-se do maior ou menor rigor formal em que era composta anteriormente. Segundo Amorim de CARVALHO, no seu Tratado de Versificação portuguesa, "modernamente, a designação de 'balada' ou 'balata* tem sido dada a diferentes composições líricas com um 'leitmotiv' 130 verbal e de pensamento". 1 É entre as composições aí subenten- didas que se encaixa a "Balada" de José Paulo Paes. "Balada" compõe-se de seis oitavas, com versos geralmente pentassilãbicos, cuja acentuação recai, com muito pouces exceções, nas segundas e quintas sílabas. Os versos são todos brancos, e ao final de cada estrofe um mesmo verso ë repetido, com uma pequena alteração na preposição inicial nas duas últimas estrofes ("na..."/"da tarde cinzenta"). Como em "Canção do afogado", a regularidade formal, a insistência nas redondilhas menores com um mesmo padrão de acentuação e a presença do mesmo verso final a cada estrofe dão ao poema uma cadência repeti' tiva. Mais uma vez, forma e tom do poema casam-se bem. A melancolia angustiada--que atravessa a composição, o tom de desesperança, cansaço, . exaustão que exala das- imagens e dos impulsos confessionais nela contidos~- cor o que, no final da última estrofe, o poeta ensaia romper - materlam no mesmo compasso monótono das sonoridades, dos padrões estruturais reiterativos. Na primeira estrofe, o poeta como que procura se situar naquilo que se pode chamar seu ambiente de trabalho. No entanto, não se tem aí propriamente uma descrição objetivante desse ambiente: "folha enrugada" e "poeira nos livros" funcionam mais como explicitadores de um estado exterior em sintonia com o estado de alma do "eu" poético. Algumas revelações importantes são feitas: primeiro, a da perspectiva pessimista que o poeta guarda frente ao seu próprio trabalho literário ("A pena se arrasta / no esforço inútil / de libertação."); em seguida, e em sintonia com isto, a revelação da impotência geral que o parece dominar ("Nenhuma vontade / nem mesmo desejo") . 131 Na segunda estrofe, depara-se jã com um outro contexto, um espaço exterior onde uma "árvore seca" é focada com destaque. A paisagem que circunda é estéril, inóspita ("Na frente ë o deserto / coberto de pedras."). Arvore e espaço em que esta se insere funcionam como metáforas óbvias do poeta e de sua situação. Se da primeira para a segunda estrofe tem-se um desdobramento espacial - diferentes espaços evocando um sentido poético semelhante -, a terceira.estrofe sugere ainda um outro espaço, agora projetado para um tempo passado. "Um castelo com torres e dama" é evocado - elementos caracterizadores de uma evasão com sabor convencionalmente romântico -, mas logo desfazem-se no choque com a realidade presente. A quarta estrofe resgata um contexto próximo ao da segunda, um espaço exterior em meio â natureza, sem caracterização precisa, funcionando exclusivamente numa dimensão simbólica: iam "caminho" entre "montanhas", "campos" e "vales", cujo destino ë motivo de indagação. "Talvez me conduza / ao roteiro perdido / no fundo do mar." - diz o poeta, evocando, com esta imagem - "fundo do mar" -, um destino próximo ao ' anteriormente delineado em "Canção do afogado". A quinta estrofe cede espaço ã nova confissão. Não se tem mais a construção/evocação de espaços vagos sugerindo um estado de espirito, mas a explicitação deste estado de espírito pelo sujeito poético. Assim, em período cuja coordenação de orações não deixa de ser curiosa, ele confessa: "amo a todos os homens / e suporto as mulheres". Porém, este impulso é bloqueado pela mesma dor e impotência jã referidos, sintetizados na imagem reincidente da "tarde cinzenta". Nesta quinta 132 estrofe, chama a atenção a presença de uma quebra prolongada do metro dominante. Os três primeiros versos são hexassílabos com um mesmo padrão de acentuação ( - - / - - / ) . Os três se guintes resgatam a redondilha menor com a acentuação, predominan te ( - / - - / ) . Esta quebra tão evidente (já que a interca- lação de versos tetrassilãbicos e hexassilábicos aos pentassi lábicos até então não havia.excedido a um ou, num único caso, a dois versos) se mostra significativa do ponto de vista semântico: a negação que abre o primeiro verso e as afirmações a seguir compõem uma espécie de restrição ao que vinha sendo exposto, como se o poeta estivesse procurando ressaltar algumas características suas que poderiam ser. vistas como positivas. Neste instante,-tem-se os hexassílabos. O "contudo" que abre o quarto--verso, -verso que- retoma.-o.. padrão métrico- anterior, desfaz, porém, este abreviado paréntesis, devolve ao poeta a impotência que o caracteriza. A sexta estrofe inicia com mais uma importante confissão ("Só me restam os livros.").e logo salta novamente para a evocação de imagens, espaços, ambientes abstratamente simbólicos: "fundo da noite", "sombras do tempo", "imenso mar", "tarde cinzenta". Da mesma forma que a quebra do padrão métrico e o retorno a este padrão na estrofe anterior pode ser vista como significativa, a quebra do encadeamento sintático normal no último período tem um efeito inusitado que valoriza a resolução do poema: a exclamação - "oh!" - que abre o sexto verso, ruptura, sintática do período, revela a tensão emocional que. envolve o "eu" poético no seu impulso de romper com a situação geral configurada nas estrofes anteriores. Nos três versos finais, a contraposição de "imenso 133 mar" ã "tarde cinzenta" ("ohl imenso mar / vem me liber^. tar / da tarde cinzenta") tensiona os significados. No que consistiria essa liberdade através do "mar"? No poema anteriormente analisado, o "mar" que circundava "o afogado" tinha valor negativo. A mudança de sentido aqui - o "mar" como libertação - torna esta imagem bastante problemática: uma insinuação de um desejo de. auto-aniquilação - saída possível para a situação de angústia insuportável - pode ser aqui descortinado. As seis estrofes do poema, guardando todas - em termos de uma unidade semântica - um certo grau de independência entre si, são explicitações, a partir de ângulos distintos, do mesmo-estado emocional do "eu" poético .— Glosam todas um mesmo mote ..Explicitando a união interior, entre elas, como um fio . costurando o trançado, está o verso final de cada esfrofe "na/da tarde, cinzenta". Este verso, tomado em seus sentidos segundos, resume bem toda a matéria. "Tarde" ê o período do declínio do sol no curso do dia, após- atingido o ápice. "Tarde" evoca o fechamento de um ciclo vital iniciado com a "manhã", presentifica a idéia de "envelhecimento". "Tarde" prenuncia, a "noite", imagem possível da "morte", do "aniquilamento", da "imobilidade", do "retorno a um estado de origem". 0 adjetivo "cinzenta" proposto ã "tarde" esvazia esta imagem de um possível sentido positivo, onde o fechamento do ciclo seria encarado como necessário a todo um processo de desenvolvimento e maturação. "Cinzenta" evoca também a idéia de envelhecimento (cabelos, barba grisalhos como índices da velhice no homem). Na "tarde cinzenta" - com a presença de nuvens, neblina - perde-se a perspectiva do infinito implicada na visão do céu azul; o 134 que se tem é um estreitamento dessa visão, seu amesquinhamento através da imposição de um limite. Barra-se também a presença da "luz" e do "sol", elementos visceralmente ligados â vida e ao impulso criador. As sugestões implícitas no verso, e mais largamente desenvolvidas no próprio poema, dão-nos um retrato sombrio do estado emocional do jovem poeta, muito afim ao delineado em "Canção do afogado": angústia, imobilidade, apatia, exaustão, presença da morte. Porém, além de apresentar elementos caracterizadores de um estado emocional, "Balada" traz alguns dados de caráter metalingüístico importantes para a compreensão da postura do poeta frente ã literatura. Na primeira estrofe, o-seu impulso ã produção, literária é-visto como um "esforço inútil de libertação".- O seu estado emocional geral compromete a atividade criativa no que ela ainda poderia ter de libertadora. Porém, a literatura não está toda ela comprometida por isso. Na sexta estrofe, a confissão contida no primeiro verso ("Só me restam os livros.") é muito significativa da possibilidade de uma-abertura para a questão. Na desolação geral que o rodeia, o poeta ainda consegue encontrar algum abrigo nos "livros". Os livros são o seu refúgio diante- da inevitabilidade da "tarde cinzenta ". Um terceiro poema que retoma uma forma da.tradição poética é "0 aluno", um soneto, com título idêntico ao do próprio livro: 135 O ALUNO São meus todos os versos jã cantados: A flor, a rua, as músicas da infância, 0 líquido momento e os azulados Horizontes perdidos na distância. Intacto me revejo nos mil lados De um s5 poema. Nas lâminas da estância, Circulam as memórias e a substância de palavras, de gestos isolados. São meus também os líricos sapatos De Rimbaud, e no fundo dos meus atos Canta a doçura triste de Bandeira. Drummond me empresta sempre o seu bigode. Com Neruda, meu pobre verso explode E as borboletas dançam na algibeira. 0 soneto, com origens remotas supostamente na poesia provençal, fixa-se enquanto forma- entre os., líricos italianos « em fin:s da Idade~ Média, ë cultivado - superiormente por Dante e Petrarca, a partir dos quais difunde-se pela poesia dos. vários países europeus ao longo dos séculos seguintes. Na literatura em língua portuguesa foi introduzido durante o Renascimento por Sã de Miranda, •encontrando desde então até hoje expressão entre os melhores.autores. Entre as formas poéticas de caráter clássico, ë das que mais resistiram a inovações formais. O chamado soneto italiano ou petrarquiano, o que passou para a tradição lírica luso-brasileira (há variações » do soneto em outras tradições literárias, como o "soneto inglês" ou "shakespeariano", o. "soneto spenserista", etc.) , é composto por quatorze versos •.dispostos em dois quartetos e dois tercetos. A disposição, das rimas obedece a um parâmetro relativamente rígido: nos quartetos, duas soluções rímicas, rimas cruzadas ou emparelhadas - abba ou abab, em geral 136 transpostas do primeiro ao segundo quarteto; nos tercetos, de duas a três, com várias combinações possíveis entre si ccd/ccd, cdc/dcd/, cde/cde, etc. O verso do soneto clássico era predominantemente decassilábico. Com o desenvolvimento das formas poéticas passou-se a compor também sonetos com versos brancos e metros distintos do decassílabo. Inovações ainda mais radicais tentadas modernamente - de sentido paródico ou meramente destrutivo - esbarram nos limites da própria forma: muito mais do que uma espécie de "espírito" inerente ãs possibilidades formais, como na balada, na canção, no epigrama, na ode, é a forma ( no sentido mesmo de fôrma) , dentro de limites bastante precisos, o que parece caracterizar o soneto. Mesmo o -caráter conceptual., que anima o-soneto clássico -. exposição de tese e explanação nos quartetos, exposição de uma antítese ou confirmação da tese e conclusão, nos tercetos, com apresentação de uma síntese conceituai de toda a composição de forma impactante no último verso: o "fecho de ouro" -, não é elemento indispensável, sendo minimizado em seus rigores ou simplesmente abandonado em composições fora dos períodos de hegemonia do classicismo literário. "O aluno", último poema do livro, ë um soneto dentro dos moldes do soneto italiano apresentados: tem-se aí os quatorze versos, todos decassilãbicos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos e rimas obedecendo ã estruturação abab, abba,. ccd, eed. Em seu desenvolvimento, o poema segue, mais ou menos, o desenvolvimento conceituai típico do soneto clássico, a despeito da ausência de.um "fecho de ouro" no último verso que retome sintéticamente o que foi exposto nas estâncias anteriores. 137 O primeiro verso da primeira estrofe contém uma proposição inicial básica ("são meus todos os versos já canta- dos") , proposição de teor generalizante, a qual seguem arrolados - como que a restringindo, como que especificando melhor que "versos" são esses - alguns motivos, algumas imagens bastante correntes na poesia: "a flor", "a rua", "as músicas da infância", "o liquido .momento", "os horizontes perdidos na distância". A proposição inicial, de caráter sintético, concentra-se no espaço de um. único verso. A enumeração detalhadora que a segue estende-se pelos três versos seguintes como que num crescendo: segmentos curtos, de número silãbico reduzido, como "a flor" e "a rua", são seguidos por segmentos maiores, até o último e bastante extenso, que tem no recurso formal do "erij'ambement", na passagem do terceiro para o "quarto verso, como que uma reiteração das . suas-próprias possibilidades...semânticas - o último: segmento sintático ("os azulados horizontes perdidos na distância"), transbordando os limites do verso, acentua a idéia de espraiamento-em si implicitamente contida. Na segunda estrofe, observa-se um certo deslocamento de foco: se na primeira a multiplicidade da poesia convergia .para o poeta enquanto um ponto de síntese ("são meus todos os ver- sos jã cantados"), agora, na segunda, o poeta considera um único- poema na sua dimensão múltipla.("mil lados de um só poema"). Na plurivocidade de um único poema, o poeta encontra refletida a sua imagem integral: "Intacto me revejo nos mil lados / De. um sõ poema. (...)". A poesia, nessa perspectiva, mesmo em dimensões muito restritas ("um só poema"), seria um meio propicio de resgate da identidade do sujeito que sobre ela 138 se debruça. Nas partes que compõem o poema ("nas lâminas da estância") - numa leitura possível do segundo período da estrofe -, encontram-se os fragmentos desse sujeito ("as memórias e a substância de palavras, de gestos isolados"). Nos dois tercetos finais, a proposição primeira do poema é retomada. Novamente o poeta vai restringir a sua ampla abrangência, agora citando especificamente determinados poetas, como Rimbaud, Bandeira, Drummond e Neruda, e insinuando, na incorporação a si próprio dos elementos díspares que a eles vê ligados ("líricos sapatos de Rimbaud", "doçura triste de Bandeira", "bigode" de Drummond, "pobre verso" que "explode" e "borboletas" que "dançam na algibeira", de Neruda) , serem seus também os versos desses autores. Relacionando o destaque a poetas específicos com o título do poema, muito mais do que apenas ocasional referência a figuras importantes da lírica moderna, alçam-se eles, na verdade, para o poeta iniciante, ã categoria de "mestres de poesia". Mas por que justamente estes poetas e não outros, como seria possível solicitar da própria proposição inicial do soneto ("são meus todos os versos jã cantados"), são os nomeados pelo poeta? Com relação a Drummond e a Bandeira, a sua importância na formação poética do jovem José Paulo Paes é destacada por ele mesmo com muito detalhe e reverência em depoimento sobre seu trajeto literário. A nova poesia dos dois poetas modernistas chocava-se frontalmente com o modelo de poesia adquirido por Faes no contato com a produção dos poetas anteriores ao Modernismo. Foi difícil, a princípio, entender as intenções dessa poesia, mas a descoberta veio repentinamente e de forma 139 marcante: "Em pouco mais de uma hora de sôfrega leitura, compreendi verso por verso, metáfora por metáfora, alusão por alusão, o que se escondia por detrás daquela dicção deliberadamente simplória, avessa a qualquer forma de eloqüência e que buscava, nas coisas mais simples, o significado do mundo". 2 Para além do registro autobiográfico, ê importante destacar que Drummond e Bandeira são dois dos mais cultuados mestres do Modernismo brasileiro, e o reconhecimento, pelas gerações subseqüentes, da sua importância para o desenvolvimento da própria poesia moderna do pals é quase unânime. Ao citá-los como "mestres de poesia", Paes como que se filia, na condição de "aluno", a uma das linhas de evolução mais ricas da poesia nacional. Rimbaud e Neruda, por outro lado, são, cada qual ã sua maneira, nomes importantes dentro do panorama mundial da poesia moderna. Rimbaud, na esteira de Baudelaire, e ao lado de Mallarmé, encontra-se, com a potência subversora de sua poesia, na raiz da própria modernidade poética no que ela tem de mais chocante e experimental. Neruda, aliando ã excelência formal o engajamento social e político, é paradigma de outra vertente importante da produção poética moderna. A menção destes autores estrangeiros ê índice de uma visão literária não restrita aos modelos nacionais, aberta, portanto, para o que de m e l h o r s e faz em termos universais. Curioso, no entanto, é notar que o louvor a poetas modernos seja feito através de uma forma tão tradicional como o soneto. O poema "O aluno", todo ele marcadamente metalingüístico, é revelador de algumas atitudes poéticas de Paes neste instante inicial da sua produção. Considerando serem seus 140 "todos os versos já cantados", Paes como que se confessa proprietário de uma perspectiva amorosa e ecumênica diante da poesia. Seria importante resgatar aqui aquela confissão que o poeta faz em "Balada": "só me restam os livros". O contato com a literatura, pelo que se depreende, destas expressões tão categóricas, revela-se vital para o poeta. Paralelamente a isto, autodenominando-se "aluno" e fazendo referência especí- fica a determinados nomes da poesia moderna, Paes os eleva, com muita reverência, ã categoria de "mestres de poesia", são modelos, portanto, a serem seguidos, o que implica, por parte de Paes, a assunção de uma perspectiva que o aproxima de uma postura de caráter que se pode dizer "clássico" 3 diante do labor criativo. Esta postura é traço que pode ser aproximado do próprio ambiente literário, dominado pela classicizante Geração de 45, em que Paes estreia como poeta. Para os modernistas de 22, a noção de ruptura com o passado literário, a perspectiva iconoclasta frente ao panteão dos poetas-herõis reconhecidos eram pontos de partida para a proposição de novos valores poéticos. Agora, já num momento posterior (sobretudo a partir da década de 40), esta perspectiva se altera sensivelmente. No caso específico de Paes, não se parte mais da negação da geração anterior, mas sim,.ao contrário, toma-se essa geração como um modelo literário a ser seguido. Os três poemas abordados até agora são todos poemas compostos dentro de moldes mais tradicionais do fazer poético. O poeta volta-se para algumas formas da tradição e, através delas, busca expressar-se. Este mesmo movimento repete-se nos outros poemas, já agora dentro de uma concepção formal mais próxima das postas em voga pelos autores modernistas: o poeta 141 volta-se para uma tradição mais recente da poesia - a da poesia modernista -, e, através de procedimentos e do aproveitamento de motivos e temas de alguns dos seus poetas mais importantes, busca uma forma de expressão individual. Um primeiro poema característico desta perspectiva é o curto "Muriliana": MURILIANA Corto a cidade, as máquinas e o sonho Do jornaleiro preso no crepúsculo. Guardo as amadas no bolso do casaco. Almoço bem pertinho do arco-íris, Planto violetas na face do operário. Conversando com anjos e demônios, É o meu anúncio quem dirige as nuvens.. Dos sete versos do poema, cinco são decassílabos e dois endecassílabos, dispostos com visível simetria, em sua alternância: primeiro e segundo versos - decassílabos; terceiro - endecassílabo; quarto - decassílabo; quinto - endecassílabo; sexto e sétimo - decassílabos. Dos cinco decassílabos, os quatro primeiros são heróicos (6-10) e o último, sáfico (4 - 8 - 10). Os endecassílabos têm o mesmo padrão de acentuação (4 - 7 - 11). Esquematizando visualmente estas informações, tem-se a seguinte estrutura: / / - - - - - / - - - / / / - - - / - - - - - / - - - / / / / - - / - - - / / _ / _ / 10 10 11 10 11 10 io sílabas sílabas sílabas sílabas sílabas sílabas sílabas A simetria na disposição dos versos e a reiteraçao de padrões de acentuação (a exceção é o decassílabo sáfico), que 142 dão ao poema um caráter de construção pensada e equilibrada, entram em ressonância com uma certa simetria também verificável a nível sintático. 0 primeiro e o segundo versos encerram um único e mais extenso segmento sintático. 0 sexto e o sétimo também. Os três versos intermediários, cada qual, encerram um segmento sintático mais curto. Pode-se destacar também um paralelismo sintático entre estes três versos intermediários, paralelismo que também pode ser estendido ao segmento presente nos versos um e dois. Ficaria fora deste paralelismo o segmen- to presente nos versos seis e sete, exceção aliás que coincide com a exceção do padrão de acentuação apontada referentemente ao decassílabo sáfico do sétimo verso. As exceções, portanto, coincidem, o que implica uma nova simetria. Estese-paralelismos e simetrias,. esta reiteração^ de padrões de acentuação - este equilíbrio arquitetônico,, portanto, que aponta numa direção de racionalidade composicional, entra porém em choque com a dimensão semântica do poema. Neste nível, chama a atenção o caráter desconcertante e absurdo das imagens, relacionadas de forma ilógica entre si, sem a presença de quaisquer elementos de coesão textual. Tem-se aí um arrolar de ações díspares e estranhas, de difícil interpretação . A dimensão referencial comum a toda a linguagem encontra-se aí como que suspensa, ou melhor, como que subvertida na sua orientação original. A linguagem neste poema não está a serviço de uma apreensão do mundo concreto, ou da proposição de um mundo reconhecível. Pelo contrário, a linguagem propõe um mundo, dá vida a um mundo mais ou menos autônomo, sem relação imediata ou transparente com o mundo conhecido da experiência - função, aliás, que pode ser tida como presente 14 3 sempre em algum grau em toda linguagem poética, porém levada aqui ã sua radicalidade. Um "eu" poético apresentando-se em primeira pessoa é o sujeito de uma série de ações de caráter surpreendente, absurdo, onírico. Centrando-se a atenção exclusivamente no verbo de cada período, verifica-se que seu sentido é, a princípio, plenamente aplicável, do ponto de vista da exigência de uma verossimilhança, ao homem enquanto sujeito. "Corto" (no sentido de "atravessar", "cruzar"), "guardo", "almoço", "danço" representam ações humanas claramente identificáveis. 0 que vai dar o caráter de algo inusitado são os complementos pospostos aos verbos. A título de exemplo, observem-se as ações contidas no terceiro, quarto e quinto versos: "guardo as amadas no bolso do casaco"; "almoço bem pertinho do arco-íris"; "planto violetas na face do operário". Do ponto de vista sintático, todas as três orações são orações perfeitamente bem construídas: no primeiro e no terceiro exemplos, tem-se verbos transitivos diretos, seguidos de objetos diretos e adjuntos adverbiais de lugar; no segundo exemplo, tem-se um verbo empregado intransitivamente, seguido de adjunto adverbial também de lugar. Nada de anômalo, portanto. Do ponto de vista semântico, porém, todas as orações apresentam uma determinada tensão nos significados, pela inadequação evidente - novamente aqui considerando-se a partir de uma exigência de verossimilhança - entre os termos. As imagens dão corpo a um mundo bastante estranho, que porém não deixa totalmente de guardar alguns laços com o mundo mais objetivamente reconhecível. Nos dois primeiros versos, observa-se uma graduação da ação apresentada do verossímil em 144 direção ao absurdo em evidente crescendo: "corto a cidade", "corto (...) as máquinas", "corto (...) o sonho do jornalei- ro preso no crepúsculo". O espaço da "cidade" é evocado aí a p r i n c í p i o , e alguns elementos são nele localizados: "máqui- nas", "jornaleiro", "crepúsculo", e implicitamente o próprio poeta. Este espaço, uma vez evocado, permanece enquanto cenário em que vão se encaixar as demais ações e imagens. A tensão verificada entre verossímil e absurdo nestes versos estende-se aos demais versos. Assim, guardar alguma coisa "no bolso do casaco", almoçar, plantar - violetas - proposições verossímeis -, tensionam-se em seus desdobramentos: guardar "as amadas no bolso do casado"; almoçar "bem pertinho do horizonte"; plantar "violetas na face do operário". Nos dois últimos versos, complicando o inusitado das imagens, tem-se ainda uma problemática ambigüidade: ê o poeta ou o seu "anúncio" quem está "conversando com anjos e demônios"? Um mesmo problema de determinação semântica pode ser verificado nesse enigmático "é o meu anúncio quem dirige as nuvens". "Muriliana" pretende resgatar um modo de compor que se quer característico de Murilo Mendes. 0 poema é todo ele formado por imagens estranhas, sem ligações semânticas evidentes entre si, próximas ãs da poesia surrealista, dispostas, no entanto, ao longo de versos que, pela sua coloquialidade, pela sua sem-cerimônia, pela não ruptura a nível sintático, fluem com uma naturalidade surpreendente. O "surrealismo" presente aí, na verdade, é mais de caráter imagético do que propriamente composicional: a "escrita automática", proposta por André Breton, uma das figuras máximas do Surrealismo na literatura, não está no impulso que dá gênese ao texto. A 145 sintaxe tradicional não é rompida, não há relações sintático-semânticas que violentem incisivamente os nexos entre os termos, não há neologismos, nem procedimentos de fragmentação vocabular. Um fragmento da poesia do próprio Murilo indica que a lição do "mestre" neste caso parece ter sido estudada com afinco: "A noite curva... /Seios pendurados nas janelas da terra. / Uma larga mão vermelha / me chama em alguma parte. / Mensagem do tacto dum espírito do ar, / c h e i r o das namoradas, noite curva. Outro poema em que, como "Muriliana", os procedimentos característicos de um poeta do Modernismo são retomados por Paes é o também curto "Drummondiana": DRUMMONDIANA Quando as amantes e o amigo te transformarem num trapo, faça um poema, faça um poema, Joaquim! O poema tem apenas quatro versos, um tetrassílabo e três redondilhas maiores, estas com acentos na quarta e na sétima sílabas. Do ponto de vista das sonoridades, a insistente repetição de padrões sonoros, formando como que ecos no interior do texto, chama a atenção; no primeiro verso "quando"/"amantes", "amantes"/"amigo"; no segundo verso — "te"/"transformarem"/"trapo", "transformarem"/"trapo"; do terceiro para o quarto a repetição de todo um mesmo segmento sintático - "faça um poema"/"faça um poema"; na quarta estrofe: "um"/"Joaquim"; e, ao longo de todos os versos a predominância de sonoridades nasais - "quando"/"amantes"/ "amigo"/"trans fo rmarem"/"num"/"um"/"poema"/"Joaquim". 146 Novamente aqui neste poema, percebe-se a presença da metalinguagem, da reflexão acerca da poesia e do trabalho poético. 0.impulso ã criação aparece aqui vinculado diretamente a determinados fatores circunscritos ao âmbito da experiência afetiva do indivíduo. Fazer um poema surge como uma espécie de remédio para as frustrações no amor e na amizade, portanto, como uma espécie de compensação para o sujeito. Mas estas formulações não se encontram isentas de uma certa ironia por parte do poeta, uma vez que esta perspectiva diante do labor literário parece remeter mais aos estereótipos de um certo romantismo menor do que a uma postura moderna diante da poesia. Também o emprego de certas palavras como "trapo" e como o vocativo "Joaquim" reiteram esta possibilidade.' Este, pequeno_poema atualiza alguns elementos composicionais típicos de certa poesia de Drummond. Tem-se aí um poema bastante -curto, mais ou menos dentro dos moldes do "poema-piada" de sabor irônico do Drummond modernista de Alguma poesia. O terceiro e o quarto versos repetem uma mesma estrutura - "faça um poema" -, procedimento estilístico recorrente no poeta mineiro. 0 vocativo presente., no último verso ecoa outro recurso drummondiano: tem-se aí um nome próprio bastante comum, designando uma espécie de "personagem" com quem o "eu" poético dialoga, ou a quem ele se dirige, que, na maioria das vezes, funciona como um "alter ego" do próprio poeta. "Carlos"., em "Poema de sete.faces", e "José", em poema de mesmo nome, são exemplos deste recurso. "Joaquim", aliãs, resgata inclusive sonoramente este último. Mas a presença de Drummond neste primeiro livro de José Paulo Paes não se restringe apenas a este "exercício 14 7 composicional" que leva o nome do poeta. Encontra-se também, de forma muito evidente, em poemas como "0 homem no quarto" e "0 poeta e seu mestre". Em "0 poeta e seu mestre", Paes faz referência a uma personagem já clássica da cultura moderna, aquele mesmo Carlito de "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin", poema do fundamental Rosa do povo, de Drummond. Como no poema de Drummond, Carlitos aqui ë saudado como figura positiva, artista capaz de realizações revolucionárias ("Sua bengalinha / queima ditadores, / destrõi as muralhas / Libertando os anjos"). Há um sentimento de euforia esperançosa, de possibilidade de redenção que contrasta (o soneto "0 aluno" é -também exceção) com o tom amargurado e angustiante verificado na maioria dos poemas deste primeiro livro: "Teu bigode é a ponte / que nos liga ao sonho / e ao jardim tão perto." Drummónd - não citado de maneira explícita no corpo do texto - acaba aparecendo refletido inevitavelmente neste Carlitos: o "mestre" a que se refere o título é ambiguamente Chaplin e Drummond. Alfredo BOSI jã notara,.aliás, esta proximidade entre as personagens: "Iconicamente: em ambos ressalta o detalhe do bigode, risco fino e imóvel que sombreia o riso e sublinha a careta, traço capilar de uma era que já se finava (...)". 5 Os dois poemas r - porém, a despeito dos paralelos evidentes, contrastam violentamente em certos aspectos. "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin" é um poema caudaloso, de amplo fôlego poético, em longos versos polimétricos, carregado de imagens e intenções, peça central na poética drummondiana. "0 poeta e seu mestre" é já uma composição bem mais humilde- 148 mente singela: quatro quadras, um verso isolado e um terceto, versos brancos predominantemente pentàssilábicos, sugestões poéticas bastante simples, conceitos imediatamente inteligíveis. Não hã nada aqui que ecoe a potência poética do "mestre". 0 que é de se destacar, porém, no contraste com um poeta referido como modelar, é a preferência de Paes pela simplicidade e pelas formas breves, é o controle insistente que a razão parece exercer sobre o material poético, não deixando que ele se espraie com grande efusão. Ainda outro poema em que se pode rastrear a presença evidente de Drummond ê "0 homem no quarto". Neste poema faz-se presente uma personagem a quem o poeta se dirige diretamente fazendo uso da segunda pessoa verbal, mas que não tem voz própria, não se manifesta, não responde ao seu interlocutor. Sua identidade, sua realidade apresentam-se exclusivamente através da palavra desse "eu" poético central. A circunstância, que poderia insinuar um contraponto, dramático, na verdade é dominada por um impulso lírico individualíssimo: o poeta dirige-se a um segundo, mas um segundo que é muito mais um espelho seu do que um ser independente; em outras palavras, este outro encontra-se aí na condição de."alter ego" do pró- prio poeta. Na poesia brasileira, este recurso foi muito utilizado por Drummond, como no caso paradigmático de "José", poema, aliás, que parece servir de modelo a este "0 homem no quarto", tanto no que diz respeito â utilização de certos recursos formais, quanto na própria temática e tom que alimentam o poema. Uma rápida comparação de fragmentos de cada um dos 149 textos revela imediatamente o parentesco: E agora, Jose? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência seu odio - e agora? (Drummond) Teu protesto inútil tuas flores murchas, teu violino fácil, tua vontade escassa, São frutos humildes, são folhas perdidas que um sapato esmaga nascendo da sombra. ( J.P.. Paes) Um primeiro paralelo evidente pode ser apreendido a partir da consideração do metro de cada fragmento de poema. Em Drummond, alternam-se pentassílabos e hexassílabos. Numa outra possibilidade de leitura - ditongando "sua" - vemos emergir exclusivamente os pentassílabos. Nesta leitura, verica-se um tipo predominante de acentuação silábica ( t/ - - / ) . Em Paes predominam com quase exclusividade os pentassílabos - as exceções ficam por conta dos versos dois e quatro da primeira estrofe: ditongando o pronome possessivo, o segundo verso apresenta quatro sílabas e o quarto cinco; não ditongando, aquele apresenta cinco sílabas e este seis. 0 padrão de acentuação, diferentemente de Drummond, ê mais vari ado. 150 Ainda outra aproximação possível a nível formal verifica-se no paralelismo sintático: em quase todos os versos da estrofe de Drummond observa-se a estrutura "pronome possessivo" + "substantivo(s)" com "adjetivo" ou "preposição" + "substantivo". Nos quatro versos da primeira estrofe do poema de Paes, a mesma estrutura sintática faz-se presente. 0 título "0 homem no quarto" evoca certos títulos pouco especificantes dados a composições pictóricas de caráter descritivo.. Como numa pintura figurativa, o que se poderia ter aí, a partir da sugestão imediata do título, seria a descrição, em traços objetivantes, de um homem dentro do espaço fechado de—um-quarto. Na-verdade , ao invés-da descrição objetiva, o poeta opta pelo delineamento do perfil interior desse - homem,-e que" poderia ser, na possibilidade de leitura já sugerida, o delineamento do seu próprio perfil projetado num "outro". Esse homem evocado ao longo do. poema é alguém que se encontra fechado em seu próprio isolamento, com-seus escassos valores, desejos, impulsos esmagados por uma causa cuja origem não sabe especificar, sem rumo. a dar ã sua vida ("Caminhas sem rumo / por todas as ruas"), indeciso ou mesmo indiferente a qualquer decisão ("não rasgas um livro,/ nem matas a amante") e sempre sob ameaça de uma auto-aniquilação ("pren- de a tua mão / antes que ela entorne / a copa de sangue"); é um homem absolutamente apartado daqueles que, fora, no espaço exterior-, ainda ensaiam alguma construção ("Teus irmãos constroem / (...) um berço pouco a pouco."); alguém a quem resta apenas esperar, inerte, que um gesto exterior, partindo de outros sujeitos, altere alguma coisa. Este último ponto, 151 aliás, tematizado nas estrofes finais, tem um tratamento complexo e ambíguo, numa solução interessante que tensiona os sentidos do fim do poema e o redimensiona problemáticamente. Novamente aqui a referência a poetas, livros, poesia - relembre-se aqui.o verso de "Balada": "Só me restam os livros." recorrente nos poemas, elementos positivos no universo negativo em que se encontra submerso o sujeito: Ate que outros braços redentoras asas ,. venham colocar um lírio muito branco Na página e no verso do teu melhor poeta... 0 tom dominantemente- acinzentado do.poema é.afim ao dos poemas "Canção- do afogado", e ."Balada" : há aí a sensação de um emparedamento angustiante envolvendo o sujeito, de uma inércia interior insuperável, de uma impossibilidade de encontrar as razões fundamentais da sua própria situação problemática, de-um mal-estar, que-parece ser essencial ao próprio homem e do qual não há-escapatória possível - Esta perspectiva - ressaltando aqui ainda outra vez a presença de Drummond encontra larga expressão na poesia drummondiana de raiz - pode-se dizer - "existencialista". Na linha temática relacionada com a "angústia existencial", que em Paes, a despeito de poder ser focada como pro- pensão natural do poeta, se pode avaliar também como influência de Drummond, um poema se destaca entre os jã abordados deste primeiro livro pela qualidade das soluções poéticas en- contradas: "Poema descontínuo". 152 O poema subdivide-se em quatro partes, com certa autonomia entre si, o que lhe confere um caráter acentuadamente fragmentário, caráter aliás sugerido pelo próprio titulo. Tem-se ao todo quatro momentos mais ou menos desenvolvidos, cujo liame encontra-se no tom poético comum entre as partes. Considerando os aspectos exteriormente formais, não hã nenhuma estrutura rígida comum entre elas: cada parte tem número de versos e estrofes muito variáveis, os versos são brancos e polimétricos e o ritmo segue a irregularidade global da composição. A fragmentariedade, encontrada na estrutura.global do poema, estende-se também ãs partes. Uma análise mais detalhada da primeira-parte explicita esse caráter: I A mão descobre volumes incompletos. No vidro encerrada a violeta não tem perfume. Ai, carne e sentimento .se acreditais em fútil guarda-chuva para o vosso medo! Hã uma goteira sobre minha poltrona. 0 fragmento compõe-se de onze versos ao todo, nove no corpo de uma primeira estrofe e dois no de uma segunda e última. . Na primeira, encontramos, ao longo dos versos, três períodos completos, cujas ligações semânticas entre si mostram-se problemáticas na medida em que os nexos não são explicitados de forma clara. Na segunda, estrofe, tem-se mais um outro perlo do, e a relação deste com os anteriores ë igualmente problemática. Os vários períodos encontram-se justapostos, sem que 153 nenhum elo sintático estabeleça uma ligação óbvia entre eles. Esta relação, na verdade, acaba tendo de ser buscada nas sugestões implicadas nas imagens contidas em cada período. Há um sensível grau de abertura, portanto, nessa operação, um grau de uma relativa livre manipulação de sentidos durante a le i tu ra. As imagens do primeiro e do segundo períodos (entre os cinco primeiros versos) evocam idéias afins: incompletude, falta, carência - "volumes incompletos", "a violeta não tem perfume"; isolamento, fechamento, emparedamento - "a violeta" "no vidro encerrada". Tem-se aí formulado um problema, que pode ecoar naquele "medo" contido no terceiro período. Diante da incompletude e do emparedamento ê "fútil" querer encontrar qualquer espécie de proteção, dc defesa, de reação (sugerido pelo levemente irônico "guarda-chuva" do verso oito). Estabelece-se assim um nexo possível entre as partes da estrofe, que vai agora contrapor-se ãs idéias contidas na segunda. A imagem do "guarda-chuva" como proteção liga-se com a "goteira" do primeiro verso da segunda estrofe. 0 "eu" poético, depois de insinuar-se na interjeição exclamativa e no apelo do terceiro período, manifesta a sua presença agora de maneira bastante explícita no pronome possessivo ("minha cadeira"). As idéias de emparedamento e de incompletude extraídas das imagens da primeira estrofe constituem um problema que se enconI tra circunscrito ao séu ser. A imagem - não isenta de uma certa ironia - da "goteira" dá ainda a toda a situação um caráter de insistência, incômodo e monotonia. Voltando-se, a partir destas considerações, para as demais partes do poema, percebe-se que, por trás da aparente 154 e superficial "incontinuidade", faz-se presente uma continuidade interior e profunda. Imagens evocando idéias como as de isolamento, incompletude, angústia, exaustão, nãusea, cansaço, apatia, etc., distribuem-se por toda a composição: "a lei e o trilho levaram a dança"; "um cigarro triste me brotou dos dedos"; "agora sem crença, procuro (...)"; "jardim inútil"; "órbitas vazias"; "rosas que nascem de gravatas rotas"; "a angústia do 'blues'"; "as -rosas e a música que bóiam no vômito dos adolescentes", etc. Dentro de todo este clima emocional tremendamente ne- gativo-, vem a indagação final, no curioso último fragmento, sem que qualquer resposta seja por ele.sugerida: IV Quem bate na porta? Corvo de verdade, quinta sinfonia ou apenas vento? Ainda um poema não abordado entre os poemas deste primeiro livro precisa ser comentado: "0 engenheiro". Pelo título e por um possível caráter metalingüístico - a despeito das diferenças poéticas existentes entre ambos e de o paralelo ter sido ou não intencional por parte de Paes - o poema pode ser aproximado do famoso "O engenheiro", de João Cabral de Melo Neto, publicado em livro homônimo em 1945. 155 O ENGENHEIRO O homem trabalha entre a rosa e o trânsito. Ondas contínuas no seu dorso de pedra e nuvem. Martelos. No papel intacto- hã linhas, fundamentos de aurora, estrutura de um mundo pressentido, linhas. As rosas se dividem por canteiros iguais e um pássaro pousou no arranha-céu. Quando o engenheiro terminar o sentimento e" a planta, mãos frescas como folhas virão sobre o meu corpo. 0 poema é composto por três estrofes, a primeira delas com oito versos e. as outras duas com: quatro- versosr cada uma. Não há rimas e os versos têm metros variados, de duas até nove sílabas. A primeira estrofe é a que apresenta a maior incidência de metros distintos. Acompanhando-se a seqüência dos versos, tem-se: pentassílabo, pentassílabo, octossílabo, tetrassílabo, dissílabo, heptassílabo, eneassílabo e octossílabo. As únicas repetições do número de sílabas se dão entre os versos primeiro e segundo, e terceiro e oitavo. Nas outras duas estrofes, no entanto, predominam os hexassílabos. Na segunda, três hexassílabos para um dissílabo, e, na terceira, três hexassílabos para um octossílabo. A grande irregularidade métrica observada na primeira estrofe seguida por uma maior regularidade nas estrofes seguintes pode encontrar um esboço de explicação quando se atenta para o conteúdo das estrofes. Na primeira está presente a idéia de projeto ("no papel intacto hã linhas", "fundamentos 156 de aurora", "estrutura de um mundo pressentido") e de trabalho ("o homem trabalha", "martelos") e movimento ("ondas contínuas no seu dorso") , também implícito na idéia de. trabalho. Está-se portanto, diante de algo em processo, algo que se faz, se cons trõi a partir de uma idéia de origem. A incompletude aí implicada, a idéia de uma construção ainda inacabada, está presente' na própria irregularidade métrica da estrofe. Falta ainda uma maior harmonia apreensível a partir da completude do todo, que a própria estruturação poética deixa evidente.. Também a irregularidade sintática - segmentos extensos (sexto, sétimo e oitavo verso, por exemplo) contrastando com segmentos brevíssimos (quinto verso), períodos completos com sujeito/predicado (versos um - e- dois, por exemplo) contrastando com períodos elípticos (versos três e quatro) —, aliada ãs .presenças de um "enjambement" bastante tenso como: o .do sétimo para o oitavo, verso, com a não coincidência entre pausa sintática e a pausa de fim de verso, e, em contraste, de pausas sintáticas no interior dos versos sétimo e oitavo - contribui para acentuar a irregularidade, o desequilíbrio, a desarmonia, o movimento, a incompletude presentes, como se está querendo ver, na "obra" ainda em andamento. Na segunda e terceira estrofes pode-se verificar atenuação destes contrastes formais. Um padrão métrico predo- mina - o hexassílabo -, e já não há mais contrastes sintáticos daquela qualidade. Na segunda tem-se um único período com duas orações coordenadas; na terceira, também um único perío- do, agora com orações ligadas por subordinação. A atenuação dos contrastes presentifica um maior equilíbrio, como se a 14 "obra" estivesse chegando ao seu termo. Na segunda 3 estrofe, os versos "As rosas se dividem / por canteiros iguais" ressalta esta idéia de harmonia e completude, rompida brevemente pela presença do "pássaro" (justamente no. verso que constitui exceção métrica nesta estrofe), mas retomada no quarto verso. Na terceira estrofe, a perspectiva do fim da construção ("Quando o engenheiro terminar / o sentimento e a planta") aponta para igual direção. Os três últimos versos têm um mesmo metro; os dois últimos, ainda um mesmo padrão de acentuação. O conteúdo dos versos conclusivos "mãos frescas como folhas / virão sobre o meu corpo" ressalta a idéia de.apaziguamento final, portanto, de encerramento harmonioso. Uma aproximação com o poema "0 engenheiro", de João Cabral de Melo Neto, pode ser tentada. Nesse seu famoso poema, projetando-se na figura do engenheiro, Cabral delineia o seu ideal poético: a produção de uma poesia clara, precisa, racionalmente projetada, calculada, que, em suas ressonâncias éticas, é.também expressão de um certo ideal de raiz iluminista - "0 lápis, o esquadro, o papel; / o desenho, o projeto, o número: / o engenheiro pensa o mundo justo,/mundo que nenhum véu encobre." 7 (o adjetivo "justo" pode ter aí um duplo senti- do, de. "justeza" e de "justiça") . A idéia de projeto e cálculo surge também em "0 engenheiro" de Paes: "No papel intacto há linhas, / fundamentos de aurora, estrutura / de um mundo pressentido.". E ainda: "As rosas se dividem / por canteiros iguais (...)". Porém, a figura do engenheiro, diferentemente do engenheiro de Cabral, recebe uma caracterização que revela uma certa tensão problemática: "0 homem trabalha / entre a rosa e o trânsito"." ; "Ondas contínuas 158 no seu dorso / de pedra e nuvem.". A utilização de imagens que remetem a campos semânticos em oposição — "rosa" x "trânsito", "pedra" x "nuvem" - caracterizadoras, respectivamente, do ambiente onde trabalha e do próprio engenheiro, escapa ã claridade inequívoca sempre presente nas imagens definidoras da poética de Cabral, para sugerir uma tensão entre claro e escuro, tensão de raiz mais drummondiana. Na estrofe final, insinua-se, ainda, uma dupla atividade implicada no trabalho do. engenheiro: "terminar o sentimento e a planta". O "engenheiro" de Paes t r a b a l h a como uira dimensão altamente subjetiva com "sentimento", ausente, a nível de proposição, do trabalho racional do "engenheiro" -de _-: Cab ral... No - final da execução do trabalho, uma sensação- de alívio-, satisfação-, é entrevista pelo : "eu" poético"" ( "mãos frescas como- folhas / virão sobre meu corpo") , um "eu" explicitado muito pouco cabralinamente neste poema. Ainda a irregularidade da composição - versos polimêtricos e estrofes de número de versos variáveis - acentua a distância em relação â poesia"" do mestre pernambucano. 3.1.3 Conclusão 0 Aluno, primeiro livro de poesia de José Paulo Paes, traz explicitado, jã em seu próprio título, muito do espírito que o parece animar. Ao longo de seus nove poemas, observa-se um poeta confessadamente iniciante, exercitando-se em diferentes direções da poesia, ora enveredando por algumas das formas mais tradicionais do fazer literário, ora optando pela maior liberdade formal das composições em versos livres, que o legado recente do Modernismo brasileiro havia tornado corrente. Ao longo de todo o livro, de forma mais ou menos explícita, o 159 poeta manifesta uma aguda consciência desta sua condição de "aluno" de poesia. As duas epígrafes que abrem o livro, fragmentos de Bocage e Camões, são indícios desse carãter. Em primeiro lugar, são os dois autores lusos dois clássicos insuspeitados da tradição da poesia em língua portuguesa. Recolher em sua produção versos para usá-los em epígrafe ê reverenciá-los de forma bastante óbvia. Assim, as homenagens feitas ao longo do livro restritamente a poetas importantes da modernidade literária brasileira e ocidental ampliam-se aqui. São também "mestres" de poesia para o "aluno" Paes dois nomes colhidos ao rol dos mais característicos representantes do espírito clássico da tradição literária. Em -segundo, lugar (e sobretudo) , o conteúdo das epígrafes é revelador. "Incultas produções., da mocidade / Exponho a vossos olhos, oh leitores!" (Bocage, "Soneto I")- - remete ao carãter juvenil, inicial, discente, imaturo (e aqui mais retoricamente do que de fato) do primeiro trabalho (em 1947, Paes tinha 21 anos de idade) . 0 lirismo subjetivo que perpassa os poemas do livro, o dilaceramento interior a que se encontra » subordinado o sujeito poético e que.lhe escapa ao controle ficam por conta da segunda epígrafe: "Ah, vãs memórias, onde me levais /O débil coração, que inda não posso / Domar bem este vão desejo vosso?" (Camões:, "Canção XIII") . As epígrafes seguem os poemas, e são eles que acabam orientando mais claramente os sentidos nelas latentes. No soneto "0 aluno", Paes revela uma disposição bastante amorosa de acolhimento e abertura frente a poesia como um todo, que o verso inicial do poema, aliás, deixa transparecer muito bem: "São meus todos os versos já cantados". Ainda neste 160 poema de caráter metalingiiístico, a poesia é vista como meio de resgate da identidade do sujeito: "Intacto me revejo nos mil lados de um só poema". Alguns "mestres" são reverenciados com destaque. Paes cita diretamente certos autores, entre estrangeiros e nacionais, de grande relevo dentro.da poesia moderna: Rimbaud, Bandeira, Drummond e Neruda. A referência a autores espraia-se pelos poemas dos livros . Era "Muriliana", procedimentos composicionais característicos de Murilo Mendes são utilizados. De forma semelhante, Carlos Drummond de Andrade surge atualizado em "Drummondiana". Outro poeta fundamental para a poesia brasileira moderna, João Cabral de Melo Neto, aparece inevitavelmente em perspectiva no poema de Paes intitulado "O engenheiro". Drummond,- porém-,- constitui-.-a. inf luência mais.- marcante na produção inicial de Paes. Além da referência explícita em "Drummondiana", sua poesia ecoa de forma clara em "O homem no quarto", poema em que o poeta se dirige a uma segunda pessoa que funciona como uma espécie de "alter ego" seu, como no "José", de Drummond, e em "O poeta e seu mestre", onde o mesmo Chaplin do drummondiano "Canto ao homem do povo Charlie Chaplin" é resgatado. De forma menos óbvia, Drummond está presente também em "Poema descontínuo", poema em que se percebe a presença de uma certa temática da angústica, do mal-estar, do emparedamento do sujeito, de raiz drummondiana e existencialista. Esta temática, aliás, ê muito forte entre, os poemas do livro: além deste "Poema descontínuo", "Canção do afogado", "Balada" e o já citado "O homem no quarto" enquadram-se aí. Esta insistência temática, além da destacada influência de Drummond, sintoniza-se com o ambiente espiritual dominante 161 na época em que a poesia de 0 aluno vem a público, comentado com precisão por PAES no seu depoimento: A p e s a r do o t i m i s m o d o i m e d i a t o pós-guerra, ( . . . ) uma a n g ú s t i a i n d e f i n i d a n o s r o f a p o r d e n t r o , r e f l e t i n d o - s e no que t e n t á v a m o s e s c r e v e r . Uma a n g ú s t i a hist ó r i c a que e n c o n t r o u sua e x p r e s s ã o fil o s ó f i c a no e x i s t e n c i a l i s m o , particularm e n t e o de S a r t r e , p e l o q u a l fomos todos i n f l u e n c i a d o s , (...) a p e s a r de n o s s a s t i n t a s de. m a r x i s m o e d o n o s s o c o m 8 promet i mentó politico. Esmiuçando mais detalhadamente os móveis dessa angústia, Alfredo BOSI, em ensaio sobre a poesia de José Paulo Paes - "O livro do alquimista" -, vai dizer: "José Paulo Paes entrava na poesia contemporânea pela estrada real da angústia, do mal-estar que ö escritor sensívei e-diferenciado sente e ressente ao tomar consciência da sua posição de excluído, de "inútil", de esquerdo (...)."9 0 carãter de aprendizagem do "poeta-aluno", evidente nas citações a autores e no aproveitamento de procedimentos, motivos e temas seus, também está presente nos exercícios com formas da tradição da poesia, como a canção, em "Canção do afogado", a balada, em "Balada", e o soneto, em "0 aluno". A poesia, de Jósé Paulo Paes, neste seu primeiro livro, revela-se, portanto, uma poesia em diálogo com a tradição da literatura. Não se trata, porém, tão somente daquele diálogo óbvio que todo o texto literário necessariamente mantém com textos que o. antecede ram no tempo ou que lhe são contemporâneos, mas de um diálogo que se revela consciente da sua própria natureza., e que acaba trazendo essa "consciência" para dentro do próprio texto. Se este diálogo, nas composições 162 poéticas deste primeiro livro, se traduz, muitas vezes, numa ausência de maior originalidade poética, revela, no entanto, um fazer literário que se pauta pela produção de poetas e por vertentes poéticas de densa significação para o desenvolvimento da própria poesia. Há aí, por trás da imaturidade de um autor estreante em busca de uma dicção própria em meio ãs de outros poetas, uma maturidade evidente no conhecimento da tradição literária. Por trás do jovem poeta vislumbra-se um leitor atento e, por que não, um crítico de poesia. Um verso como "Só me restam os livros", juntamente a tantas referências a poetas e ã. poesia feitas ao longo dos poemas, aponta nessa direção. Comentando este seu primeiro trabalho-no depoimento acerca-da sua trajetória de escritor,- Paes - traz .^informações sugestivas- e reveladoras— a respeito da sua recepção. 0 livro foi elogiado por Sérgio Milliet, na ocasião da sua publicação, em crítica veiculada em "0 Estado de S. Paulo". Um fragmento desta crítica de Milliet é transcrito.por Paes no depoimento: "A originalidade dessa poesia- de angústia,: de inquietação, está no contraste de sua forma muito pura, muito sóbria, que assimilou lições nacionais e estrangeiras sem perda para o poeta de uma personalidade bem distinta da de seus mestres." 10 Nesta crítica marcadamente positiva, o carãter de aprendizagem poética presente no livro não passou.desapercebido. No entanto, Paes faz referência ainda a uma carta recebida de Drummond também na ocasião, portadora de uma avaliação sensivelmente distinta: "Embora me reconhecesse algum desembaraço no manejo do verso livre," - confessa Paes - "Drummond não deixava de me censurar por eu estar me procurando através dos 163 outros, quando era dentro de mim mesmo que devia me encontrar. " 1 1 Esta procura "através dos outros", e entre todos sobretudo através do próprio Drummond - provavelmente um dos móveis da redação da carta -, ë reveladora da situação inicial do poeta. A observação insinua uma sutil acusação lançada ao estreante, que ainda precisaria, para atingir sua maturidade, descobrir dicção poética própria e original. 0 poeta estaria ainda na condição de aprendiz, excessivamente preso â influência dos mestres eleitos. As duas críticas dimensionam perspectivas distintas a partir das quais a poesia.de Paes pode ser avaliada. De um lado, pode-se perceber um poeta consciente da sua condição de "aluno", seguindo os modelos seguros de seus mestres e da tradição, da. poesia, procurando, -através do aprendizado que isto lhe possibilita, atingir uma dicção própria. Neste sentido, surge resgatado por Paes um certo ideal de imitação dos "mestres" eleitos e de reverência ã tradição, postura de caráter que se pode chamar "clássico", muito distante da iconoclastia característica, de muitos poetas modernos, e próxima da postura dos poetas da Geração de 45. Curiosamente, porém, os "mestres" encontram-se todos circunscritos aos limites da poesia moderna. De outro, tem-se, no entanto, um poeta que se mostra ainda pouco maduro no exercício de uma poesia sua, original, inovadora, e que, por.isso, na tentativa de emular com os poetas que admira,- acaba ficando aquém dos seus modelos. 164 3.2 3.2.1 CÚMPLICES (1951) Introdução 0 ambiente literário brasileiro em que vem a público Cúmplices, de 1951, segundo volume de poesias de José Paulo Paes, é basicamente o mesmo de 1947, ano em que havia sido publicado o livro de estréia O.aluno. Está-se ainda dentro do âmbito de abrangência daquele momento da poesia brasileira que ficou conhecido pela designação Geração de 45. As chamadas vanguardas literárias só iriam começar a atuar alguns anos mais tarde, mais para meados da década de 50. Por enquanto, estão valendo ainda, no que diz -respeito ã poesia brasileira vista a p a r t i r d e perspectiva generalizante, aquelas.mesmas observações- feitas introdutoriamente ã análise do livro de estréia de Paes. 3.2.2 Análise Da mesma forma que no livro de estréia O aluno, em Cúmplices encontram-se, lado a lado, poemas de corte mais tradicional, atualizando determinadas formas líricas como o soneto, o madrigal, a canção, a ode e o epigrama; poemas sem obediência a uma forma tradicional específica, porém marcados por uma dicção que se pode dizer tradicionalizante; e alguns poucos poemas em versos livres e sem forma pré-determinada, mais próximos do fazer, literário modernista. Um. soneto, dentro dos moldes do soneto clássico italiano, semelhantemente a "O aluno", poema final dò. livro anterior, 165 abre este novo livro de José Paulo Paes: SONETO QUIXOTESCO Uma espada qualquer, de qualquer aço, Um cavalo de flanco palpitante, Fortuna incerta, divagar constante, Sereno o rosto, sempre altivo o braço. No. coração, em mui secreto espaço, A figura de Dora, tão distante, Mas tão perto, contudo, e tão reinante, Que a ela se dedique o menor passo. Desfeito o agravo,, conjurado o mal, Novo caminho, que neste exercício Nenhum descanso cabe. E que afinal, Por luta valerosa ou alto feito, Eu ganhe reino e Dora, mas no peito Morem saudades do passado ofício. O soneto--encontra-se^composto dentro - dos-moldes do soneto d tali ano-tradicional:, quatroze.versos-decas silábicos , distribuídos em dois quartetos e dois tercetos. Os decassílabos são, no que diz respeito aos acentos mais evidentes, basicamente heróicos (oito ao todo) e sãficos (estes em nú- mero de cinco) , com exceção do segundo verso., do primeiro terceto, um decassílabo provençal (acentuação na quarta, sétima e décima sílabas), decassílabo menos comum na tradição do soneto em língua portuguesa: "Novo caminho, que neste exercício" ( / - - / - - / — / ) • O padrão rímico segue a estru- tura abba, abba, cdc, eed. As rimas alternam sonoridades marcadamente distintas. Seria produtivo explorar aqui um pouco mais detalhadamente as sonoridades do poema, dada a sua riqueza característica. Nos quartetos, a rima de tipo "a" ("aço"/"braço"/ "espaço"/"passo"), com tônica na vogai oral aberta seguida de consoante sibilante surda, contrasta com a vogai nasal 166 mais fechada seguida de consoante oclusiva da rima de tipo "b" ("palpitante"/"constante"/"distante"/"reinante"). Nos tercetos, novos contrastes podem ser observados: no primeiro, tem-se um ditongo oral decrescente partindo de uma vogai média aberta para uma semivogal posterior fechada - rima de tipo "c" ("mal"/"afinal") - que se contrapõe ã rima de tipo "d" ("exerclcio"/"ofleio"), com tônica na vogai oral anterior fechada, seguida por consoante sibilante surda e ditongo. oral crescente partindo de semivogal igualmente anterior fechada para uma vogai posterior fechada; no segundo terceto, esta rima de tipo "d" contrapõe-se agora à de tipo "e" ("feito"/ "peito"), com tônica no ditongo. o ral--decres.cente com. vogai anterior fechada e. semivogal. anterior-ainda, mais fechada, ditongo seguido—de consoante oclusiva-surda. Percebe-se-um mesmo contraste, portanto, que se repete nas duas primeiras estrofes e na última no que diz respeito aos sons consonantais: a sibilante surda alternando-se com a oclusiva surda. Quanto aos sons vocálicos, tem-se, nos quartetos, basicamente a alternância entre sons vocálicos mais abertos e mais fechados. Contrastes sonoros, como os observados na composição das rimas, estão presentes ao longo de todo o soneto. Atentando-se primeiramente para os sons vocálicos, percebe-se que as modulações são bastante intensas. Nos versos três e quatro da primeira estrofe, que podem ser tomados como um exemplo - um segmento relativamente curto -, observa-se uma gama bastante variada de padrões: "Fortuna incerta, divagar constante , / Sereno o rosto, sempre altivo o braço.". Tem-se aí i vogais orais - "divagar", "rosto", por exemplo - e nasais "fortuna" (por contaminação da oclusiva línguo-dental nasal 167 /n/) , "incerta", "sempre " ; vogais mais abertas - "incerta", "divagar" - e mais fechadas "sereno", "rosto"; vogais anteriores - "sereno", "altivo" -, médias - "divagar", "constante" - e posteriores - "fortuna", "braço". Na disposição dos sons vocálicos ao longo destes dois versos, observa-se uma flagrante alternância de sons, também apreensível nos demais versos. Uma transcrição fonética aproximada dos padrões vocá lieos revela melhor essa ondulação que pode ser observada: For-tun-na in-rcer-ta, di-va- gar cons-tan-te, /o/ /ü/ /ay/ /é/ /a/ /!/ /a/ /á/ /õ/ /ã/ /!/ . Se-ren-no-o ros-to, sem-pre al-ti-vo o bra-ço. /e/Vê/- /u/ /o/ /u/- /ê/ /yaw/ /i/ /u/ /ã/ /u/ Da mesma forma que os sons.vocálicos, os sons consonantais são também muito variados, e a sua alternância é também evocadora de uma mesma sensação de movimento constante. Quase todos os sons consonantais mais característicos da língua portuguesa - considerando-se, como no caso dos; .sons vocálicos, a partir de uma fonética articulatoria - encontram-se distribuídos no curto espaço deste soneto. Alguns exemplos: /p/ "espada", /b/ "braço", /m/ "mui", /t/ "fortuna", /tj/ "altivo",./d/ "Dora", /dj" "divagar", /n/ "sereno", /k/ "cora ção", /g/ /figura", /f/ "desfeito", /v/ "altivo", /s/ "desean so", /z/ "exercício", /j/ "qonjura<±>", /l/ "luta", /nhi/ "ganhe /r/ "valerosa", /R/ "reino" - exceções: /lh/ /ç/. A título de exemplo, observem-se os versos um e dois do primeiro terceto: "Desfeito o agravo, conjurado o mal, / Novo caminho, 14 3 que neste exercício / (...)". São muito os diferentes sons consonantais contidos neste breve segmento - podem-se distinguir pelo menos treze sons fundamentais diferentes -, e pouco repetidos. Num único fragmento, por exemplo, "desfeito o agravo, conjurado" observam-se uma série de alternâncias e oposições de tipo surdo x sonoro: /t/ /d/ "desfeito", /f/ /v/ "desfeito o agravo", /k/ /g/ "agravo, conjurado". Este tipo de consideração pode ser estendido a segmentos outros do mesmo poema, chegando-se a conclusões semelhantes quanto ã sua riqueza sonora. As modulações variadas e os contrastes mais ou menos marcantes imprimem ao poema uma dinâmica que chama a atenção. Esta dinâmica constatada no âmbito das sonoridades- pode - ser—aproximada - do tom- dominante: que perpassa o próprio, texto. Percebe-se na voz do poeta todo um carãter positivo e afirma^tivo, jã bastante distante daquele tom de angústia, náusea, emparedamento e desespero que marcava boa parte dos poemas de. 0 aluno. Lá, em poemas, como - "Canção do afogado" e "Balada", procurou-se aproximar o tom menor característico destes textos da lamentosa litania observada nas reiterações de padrões métricos curtos (predominantemente redondilhas menores) e de acentuação. Há aqui, porém, algo de exultante, de radiante na dinâmica dos sons que se casa bastante bem com a imagem do cavaleiro andante, belicoso e apaixonado,.evocada pelo poeta na sua autocaracterização. A figura quixotesca marchando sobre o "cavalo de flanco palpitante" em direção ã conquista do "réino e Dora" exige uma sonoridade mais festiva, de maior exaltação. A dinâmica apontada nos contrastes dos sons, na riqueza das variações, evocadora de toda uma sensação de 169 movimento, sintoniza-se bem com a dinâmica da própria cavalgada deste "Quixote" Numa análise mais detalhada do desenvolvimento interior do soneto, pode-se observar melhor a caracterização do sujeito poético aí intentada. No primeiro quarteto, através da coordenação de curtos segmentos sintáticos sem verbo, observa-se um primeiro detalhamento da figura que está sendo evocada. Alguns elementos mais objetivamente apreensíveis, em que a percepção visual tem peso dominante, porém marcados, em maior ou menor grau, por uma perspectiva acentuadamente avaliativa que ressalta os traços caracterizado res da. situação emocional do sujeito são apresentados: "uma espada-qualquer, de qualquer aço", "um cavalo-de.flaneo palpitante ",,.. "sereno o. rosto", "sempre altivo o braço". Na apresentação de outros elementos caracter rizadores, a objetividade sai de cena para dar espaço a um delineamento mais exclusivamente interior do sujeito: "fortuna incerta", "divagar constante". Algumas observações interessantes podem ser feitas a partir da consideração de certas tensões configuradas no acúmulo destes vários elementos. No primeiro verso, chama a atenção a.insistência no uso do adjetivo "qualquer", aplicado primeiramente a "espada" e depois também a "aço", o material de que é feita essa "espada". 0 que se observa aí é uma certa depreciação do valor substantivo desse objeto "espada", como se sua importância estivesse restrita ao que ele possa sugerir de ornamental ou simbólico. Na aproximação com a expressão "sempre altivo o braço", percebe-se que a valorização vai recair justamente no "braço" e não na "espada 170 qualquer", já que aquele ê por si só "altivo", independente da qualidade da "espada". Valoriza-se, portanto, o sujeito no que ele possa ter de essencial e não os aspectos mais eminentemente circunstanciais que o envolvem. Outra tensão ainda pode ser observada na aproximação de expressões como "fortuna incerta" e "divagar constante" a "sereno o rosto". A idéia de "incerteza" ligada ao destino do sujeito poderia gerar nesse mesmo sujeito uma sensação próxima àquela de angústia e sofrimento observada em muitos, dos poemas de O aluno. Aqui, porém, a esta idéia contrapõe-se a "serenidade" do sujeito. Novamente, valoriza-se o sujeito em seus.aspectos essenciais em contraponto a outros e que lhe são mais exteriores que lhe poderiam ser adversos. A caracterização desta figura: quixotesca-nesta..primeira, estrofe é, portanto,- bastante positiva. Na segunda estrofe, após esta caracterização objetiva/subjetiva do sujeito poético na condição de "cavaleiro andante", surge evocada afigura da amada - "Dora". Se o poeta aproxima sua pessoa da do Quixote, sua amada automática e inevitavelmente acaba sendo aproximada da de Dulcinéia de Toboso. A maneira como Dora surge evocada não esconde uma perspectiva que, em termos de uma apreensão lírica da figura feminina, tem muito de tradicionalizante. O liame entre ela e o poeta se dã exclusivamente via sentimentos - "coração". É no "coração", num espaço exclusivo e fechado do sujeito "em mui secreto espaço" - que ela se encontra. Dora é ainda uma figura, "tão distante", expressão que denuncia a tradicional idealização, do feminino muito comum na lírica amorosa. A restrição deste sentido insinuada a seguir pela oração 171 introduzida pela conjunção adversativa "mas" não interfere essencialmente nesta perspectiva. 0 "perto", oposto ao "distante" dos versos anteriores, não dã concreção â figura feminina. Ela estã "perto" e "reinante" por encontrar-se presente exclusivamente no sentimento do sujeito. No primeiro quarteto, o sujeito poético é apresentado como um belicoso e quixotesco cavaleiro andante. No segundo, surge a figura feminina dé Dora, amada do cavaleiro, pintada com cores que fazem dela figura próxima das amadas tradicionais. Nos dois. tercetos seguintes, este quadro inicialmente apresentado é desenvolvido. No primeiro terceto, as potencialidades guerreiras implícitas na figura-delineada no~ primeiro^ quarteto ( "sempre altivo-ò... braço " ) se realizam: "desfeito- o agravo" ,.-"conjurado o mal"v Após estes feitos, o cavaleiro toma= "novo caminho" ("novo caminho, que neste exercício nenhum descanso cabe"), seguindo, portanto, a idéia inicial da presença de uma "fortuna incerta", de um "divagar constante" a distingui-lo. No segundo terceto, cuja ligação com este primeiro acentuada pelo desenvolvimento s-intãtico iniciado ao final desta estrofe, interrompido pelo espaçamento entre as estrofes, e continuado na estrofe a seguir, surge com destaque a idéia do duplo prêmio por suas realizações ("Por luta valerosa ou alto feito / E u ganho reino e Dora, (...)"). No entanto, a este que seria o ideal característico do cavaleiro andante - bater-se com seus inimigos, em defesa de uma certa justiça, e insinuar-se, assim, através de seus feitos, a uma suposta amada acrescenta-se novo dado: ao desejo das conquistas e da obtenção do amor é necessário somar-se o desejo de ter sempre consigo 172 a memória dessas realizações: "que (...) 110 peito morem saudades do passado ofício". Valoriza-se, assim, não exclusivamente o objetivo atingido, mas todo o processo que antecede o atingimento do objetivo. Verifica-se, portanto, para além de uma perspectiva que poderia revelar-se restritamente saudosista, a valorização daquilo que, num tempo passado, constituiu um "fazer-se" - o "passado ofício". Nesta retomada de uma personagem da tradição literária, novamente se pode observar aqui aquele "poeta dos livros", de que se falou na abordagem de 0 aluno por ocasião da consideração do verso "Só me restam os livros.". É sugestivo, qua, ao procurar caracterizar-se, o- poeta o faça através de um "outro" jã conhecido, e pertencente ao rol dos arquétipos literários. Pode-se ver nisto um paralelo com a assunção da identidade do "aluno de poesia", que através., da palavra dos "mes- tres" - portando de um "outro" também - busca sua própria palavra. Ao assumir a identidade do Quixote, ou melhor — salientarído-se aqui o adjetivo "quixotesco" do título -, ao assumir a identidade de uma figura que se aproxima do Quixote, o poeta, nesta sua autocaracterização, situa-se numa posição problemática: ao resgatar, o Quixote, com toda a inevitável carga de pateticidade e melancolia que cerca este visionário predestinado ao fracasso, resgata-se a reboque também a perspectiva crítica, irônica, distanciada de Cervantes, que pode, talvez, ser lida no avesso do poema. Assim, identificando-se com o idealizado cavaleiro andante em constante pugna pelo "Reino e Dora" e, conquistados estes, saudoso da antiga luta, Paes - nos labirintos semânticos que vão surgindo aí - identifica-se com 173 perspectiva que traz consigo sua própria antítese, sua própria negação. Que retrato do poeta fica valendo afinal? Surgem aqui tensões indissolúveis que impedem uma leitura de carãter fechadamente conclusivo para o poema em foco. Um segundo poema de Cúmplices dentro dos moldes de uma forma lírica tradicional, e que pode ser visto em contraste com o "Soneto quixotesco", é "Ode pacífica": ODE PACÍFICA Levei comigo um punhal, Com mãos firmes, cautelosas, Como se leva um segredo, Como se leva' uma rosa. Assim armado, enfrentei As. emboscadas e os crimes . Nos corredores do ódio, Combati,, gritei, perdi-me. 0- punhal me dominava, Fascinava-me a revolta. (Vivemos presos ã chave Qué em sigilo nos solta). Mas um dia uma verdade Que nega todo o punhal, Pôs brisas na minha face, Furtou-me ãs vozes do mal. Agora, Dora, a teu lado, Estou sempre a recompor Essa verdade tão simples, De que me torno senhor. Simples verdade de amor. A "ode" (do grego "odes", 'canto', pelo latim "ode") tem origem remota na Grécia Antiga e originariamente designava uma espécie de composição poética destinada ao canto e acompanhamento instrumental, semelhantemente ã "canção". Ao L longo do seu desenvolvimento histórico, a ode se transforma muito no que diz respeito aos temas e formas. 0 crítico Massaud M0ISËS, em sumário quadro didático classificatório 12 , 174 faz algumas distinções entre os tipos mais característicos de odes. Quanto ã matéria tratada, podem-se arrolar: "ode heróica" ou "pindárica", cujo modelo de realização encontra-se no poeta clássico grego Píndaro, composição em que se procura louvar aqueles aspectos ligados ã vida heróica - vitórias em guerras, jogos esportivos, grandes realizações individuais e coletivas; "ode filosófica e moral" ou "sãfica", em que o poeta clássico latino H o r ã c i o s e g u i n d o as pegadas dos gregos Safo e Alceu, é representante característico; a "ode amorosa", "pastoril", "báquica" ou "anacreóntica", que encontra na poesia mais remota grega de poetas como Safo, Alceu e Anacreonte os representantes paradigmáticos; e ainda a "ode sacra", de temática religiosa-, surgida mais - recentemente a partir da Idade Média. Quando ã forma, ainda, segundo o crítico, podem-se distinguir três tipos de ode : a "ode tripartite" ou "pindárica", forma característica da "ode heróica" ou "pindárica", seguindo uma estruturação em três partes - com um encômio inicial e final ãs celebridades, e uma narração central de episódios -, com estâncias apresentando número variado de segmentos e versos; a "ode homostrõfica" ou "horaciana", composta por uma série de estâncias iguais - e entre as várias possibilidades ressaltando-se as estrofes de quatro versos, com os dois ou três primeiros versos com metro e acentuação sempre iguais e o(s) seguinte(s) com alguma espécie de variação; e "ode irregular" ou "livre", sem qualquer forma específica, como as observadas entre os poetas modernos - por exemplo, :um Fernando Pessoa da "Ode trinfal" e da "Ode marítima". Aqui, mais importante do que considerar tais. classificações apresentadas pelo crítico, é de ressaltar, de forma mais produtiva a variedade temático- 175 -formal no enquadramento de uma forma lírica como a "ode"; por trás dessa variedade, porém, surge, enquanto caracterizador do "espírito" que preenche a forma "ode" enquanto possibilidade do lírico, um talhe dominante: o "tema" e o "'tonus' elevado", a "atmosfera grave, solene, próxima do drama e da poesia épica". 13 Do ponto de vista formal, "Ode pacífica pode ser aproximada daquele tipo de ode comentada composta por estâncias iguais, especificamente por estâncias com quatro versos: a "ode homostrõfica" ou "horaciana". Pela matéria versada, uma aproximação possível pode ser tentada com a "ode filosófica" ou " m o r a l d a d o o carãter de .reflexão que a distingue, e também com a "ode - amorosa", visto encaminhar-se toda a matéria cantada em direção-a uma; louvação. final do amor. Porém, curiosa aproximação também pode ser feita quando se tem em perspectiva a "ode heróica" ou "pindárica"; a ode de Paes, a partir já do próprio título, seria uma espécie de antítese desse tipo de ode, ao negar aquilo que há de guerreiro, combativo, violento - aspectos postos em evidência na louvação dos heróis e afirmar o amor enquanto um supremo valor. "Ode pacífica" é composta de cinco estâncias de quatro versos e um verso final conclusivo. Observa-se.a presença de rimas entre os versos dois e quatro de cada estrofe, rima que se estende, na última estrofe, também ao verso final: estrofe 1 - "cautelosas"/"rosas"; estrofe 2 - "crimes"/"perdi-me"; estrofe 3 - "revolta"/"solta"; estrofe 4 - "punhal"/"mal"; estrofe 5 e verso final - "recorapor"/"senhor"/"amor". Nás t estâncias 1 e 2 as rimas são imperfeitas; o primeiro elemento do par tem um som consonantal (um "s") a mais. Ê de se destacar, 176 quanto ãs rimas, a presença bastante intensa de rimas ricas, classificadas enquanto tal de um ponto de vista gramatical e não fónico. Com exceção da estrofe 4, em todas as outras tem-se a presença de rima rica: estrofe 1 - adjetivo/substantivo; estrofe 2 - substantivo/verbo-pronome (e é de se desta- - car o achado - "crimes"/"perdi-me"); estrofe 3 - substantivo/verbo; estrofe 5 - verbo/substantivo. Este tipo de cuidado com as rimas (a preferência por rimas ricas em detrimento das mais facilmente achãveis rimas pobres) revela um apuro artesanal bastante aguçado por parte do poeta. Quanto ao metro., os versos são todos heptassilábicos com certo problema no que diz respeito ao verso quarto da terceira -estância ( "que- em sigilo nos-solta. ) " ,.. cuja escansão habitual aponta para um hexassílabo, mas que uma leitura que evite a crase entre os "e" de--"que" e "em" pode também comportar um heptassí labo.. Quanto ã acentuação, é ela bastante variada; não se observam mais de dois versos seguidos com um mesmo padrão de acentuação silábica, o que dinamiza o. movimento sonoro dos versos. Do ponto de vista da estruturação conceptual dó poema, observa-se que ele ë composto a partir de um esquema "tese" x "antítese". Nas três primeiras estâncias, o poeta procura caracterizar uma determinada situação inicial que deverá ser negada, contraditada, posta em xeque nas estâncias seguintes, a partir de uma espécie de "revelação", que só no verso conclusivo - um tipo de "fecho de ouro" dado o seu. caráter de achado e de síntese - é especificada precisamente. A situação inicial em que se encontra circunscrito o "eu" poético encontra na imagem do "punhal", presente jã no 177 primeiro verso, uma imagem-slntese. O "punhal", no desenvolvimento do poema, pouco a pouco vai deixando aquela sua dimensão mais imediata e objetiva - o punhal enquanto um objeto concreto e definido - para adquirir a dimensão de um símbolo que traduz toda uma circunstância "espiritual" (psicológica, emocional, afetiva, etc.) concernente ao sujeito. Na primeira estrofe, tem-se o "punhal" primeiramente focado enquanto um objeto concreto, singular, específico, objeto de uma ação determinada de forma precisa num dado instante do "continuum" temporal, que a utilização do pretérito perfeito ressalta: "levei comigo um punhal". Hã um detalhamento mais demorado desta ação de carregã-lo: as "mãos" que o carregam são "firmes" e "cautelosas"; e a ação em si ë objeto de duas comparações sugestivas - "como se leva um segredo" e "como se leva uma rosa". "Segredo" e "rosa", postos paralelamente a "punhal", funcionam como caracterizadores deste. Os dois paralelos estabelecem certa tensão comparativa, uma vez que os elementos relacionados entre si se aproximam e se afastam uns dos outros. 0 paralelo "segredo"/"punhal" acentua, de forma consonante, as idéias de segredo, cuidado, cautela. Pode-se, no entanto,.destacar também uma certa oposição entre os termos, na medida em que "punhal" diz respeito a um objeto concreto, em que se destacam certos traços, como rigidez, solidez, resistência, e "segredo" refere-se a matéria mais abstrata, em que idéias como fragilidade, delicadeza e preciosidade encontram-se sugeridas. O outro paralelo - "rosa"/"punhal" -, a despeito das sugestões de cuidado, cautela, que. podem ser estendidas de forma comum ãs duas ações (ã ação de levar um punhal e â ação de levar uma rosa), é também problemático, jâ que, a partir de 178 certa perspectiva, "rosa" e "punhal" podem ser encarados como elementos pertencentes a campos semânticos marcadamente anta- ,, gônicos. Há uma tensão, portanto, nestes paralelos: talvez mais do que caracterizando o termo "punhal" (ou, mais precisamente, caracterizando a ação de levã-lo), os termos para- lelos "segredo" e "rosa" como que insinuam jã, antecipadamente, a existência potencial daquela.realidade que se vai configurar de forma mais clara somente na segunda parte do poema. Na estrofe seguinte, mantém-se o mesmo tempo verbal. Após o detalhamento inicial, novas ações são evocadas. O "punhal" configura-se enquanto um "meio" (enquanto uma "arma") para ações do sujeito: "Assim armado, enfrentei / As emboscadas e os crimes.". Estas ações centrais desdobram-se; os verbos enumerados na quarta estrofe são ricos de nuanças: "combater" retoma a idéia jã exposta na ação de "enfrentar" "as emboscadas e os crimes"; "gritar" funciona como elemento de ligação entre esta idéia e a seguinte (a de "perder-se") - li- ga-se ao espírito belicoso da ação anterior de forma afirmativa ("gritar" como manifestação da energia combativa, da raiva que remete ã luta), mas também aponta para a dor e o sofrimento que levam ã ação de "perder-se"; esta última surge como resultado final de toda a circunstância armada até aí, apontando assim para as suas limitações, seus problemas, suas carências. Toda a circunstância inieial apresentada recebe avaliação negativa (e aqui a expressão "nos corredores, do ódio" precisa ser destacada) . A terceira estrofe sintetiza e complementa as anteriores, preparando jã a contraposição que serã desenvolvida a seguir. Hã uma mudança no tempo verbal: ao invés do pretérito 179 perfeito, tem-se agora o imperfeito - "O punhal me dominava, / Fascinava-me a revolta.". A presença do "punhal" para o sujeito, que nas primeiras estrofes poderia ser vista como circunstancial, circunscrita a um instante determinado no tempo, tem aqui seu sentido ampliado. O "punhal" agora aqui, de forma mais evidente que nos versos precedentes, adquire uma dimensão simbólica para o sujeito poético. Ele não é apenas uma arma, mas um símbolo da "revolta", da luta, do combate, do espírito guerreiro. Hã, por parte do sujeito, uma dupla relação de submissão ("o punhal me dominava") e fascínio ("fas- cinava-me a revolta") em relação a essas idéias. Esta submissão é ainda destacada nos versos três e quatro da. estrofe: "(Vivemos presos â chave / Que-em sigilo nos solta.)". 0 sentido destes versos em relação ao todo do poema revela-se bastante problemático. Aqui tem.o "punhal", e tudo aquilo que ele ecoa, uma avaliação positiva, na medida em que ele ë visto como "chave" que."em sigilo" liberta. Esta perspectiva entra em tensão com o desenvolvimento do poema, uma vez que a condução argumentativa tende a desvalorizar o "punhal" e aquilo que ele representa, para colocar como fundamental ura princípio que lhe é. antagônico,. É isto o que ê apresentado na estrofe quatro a seguir. A conjunção adversativa "mas" colocada logo no início da estrofe apresenta jã a idéia de uma ruptura com o que estava sendo exposto até então. Uma nova idéia vai ser aqui contraposta ao que anteriormente se desenvolveu. Ao "punhal" vai se opor "uma verdade" subitamente revelada. Esta verdade surge como negação do "punhal", e como tal configura-se enquanto um alívio para o sujeito poético ("pôs brisas na minha face"), 180 enquanto algo que o subtrai ao "mal" ("às vozes do mal") ao qual se encontrava subordinado. Ë esta aproximação do "punhal" ã idéia., de "mal" que torna problemática a anterior aproximação do "punhal" ã. idéia de libertação - versos três e quatro da terceira estrofe. A quarta estrofe cria uma expectativa que se acentua na quinta e que só vai ser resolvida no verso final conclusivo. Nesta quinta, a "verdade" a que se fez referência na estrofe anterior não é ainda explicitada, mas é jã adiantada na referência feita ã figura feminina de "Dora". Ë ao lado de Dora que o poeta vai estar "sempre a recompor essa verdade tão. simples", tornando-se . dela. "senhor" . Tornar-se "senhor" desta nova verdade ë expressão forte que precisa ser. ressaltada e contraposta com a maneira pela qual o poeta se relacionava com "punhal" e suas "verdades". Com relação a este, o sujeito poético se encontrava numa posição de submissão, de subordinação ("o punhal, me dominava") . Agora, o sujeito é senhor. Esta verdade - a "simples verdade de amor" explicitada no verso final - é meio de emancipação do sujeito. 0 "amor" é visto aqui de forma tremendamente positiva. Não se tem aqui sombra daquela perspectiva que o apresenta enquanto, motivo de dor, angustia, desespero, submissão, aniquilamento. 0 "amor" é uma "simples" verdade, descoberta e rede s coberta recorrentemente ao lado da pessoa amada, um motivo de afirmação do homem e de suas potencialidades. Da, mesma forma que no poema "Soneto quixotesco", surgem aqui nesta "Ode pacífica", lado a lado, as idéias de "luta" e de "amor". Se lá conquistar "Reino e Dora", mas sobretudo conservar a memória dos antigos feitos, eram desejos 181 centrais, aqui o "amor" sobrepuja a "luta" nas intenções do "eu" poético. Ë ele o valor supremo a ser resgatado. Outro poema ainda dentro de moldes tradicionalizantes^ que se pode abordar agora aqui de forma mais abreviada, ë "Canção sensata". Esta pequena canção tem quatro estrofes de seis versos cada, versos que são predominantemente redondilhas menores. Como nos anteriores, novamente surge aqui a figura feminina de "Dora", figura a quem o poeta se dirige no início das três primeiras estâncias ("Dora, que importa") e no verso final da última ("Dora, isso importa") . Aqui seria interessante, a nível de contraste, resgatar aquela figura feminina da canção do livro anterior, "Canção do afogado", a quem o poeta se dirigia ém demanda de auxílio" - "Maninha me salve" figu- -. ra sem realidade, sem substância, funcionando apenas como con-, traponto para o extravasamento emotivo do sujeito, diferentemente de Dora, figura que constitui um "outro" importante em relação ao poeta, em relação ao qual este intenta pautar comportamentos e sentimentos. As três primeiras estrofes encontram-se estruturadas de maneira similar. O poeta dirige-se interpelativamente a Dora, contrapondo, de maneira conflitiva, determinada visão da realidade em que sobressaem formas estereotipadamente sensatas e seguras de se relacionar com o mundo (uma perspectiva que se pode dizer "burguesa") ã visão mais atirada com que os amantes preferem se comportar. Assim, ã exemplaridade moral ("o juiz que escreve exemplos na areia"), â estabilidade material ("a herança do avô") e ã aparente segurança do recolhimento ("esse frágil muro que defende os cautos") o poeta vai contrapor outros valores, em que a liberdade, a fantasia, a 182 loucura sao a tônica. A estrofe quatro, de carãter conclusivo , deixa óbvio o pólo a que preferem tender os amantes: De maior beleza pois, nada prever E ã fina incerteza De amor ou viagem Abrir nossa porta. Dora, isso importa. 0 título "Canção sensata" adquire assim um carãter de ironia, examinado o conteúdo do poema. Sensata, para o poeta, não vai ser a maneira de se relacionar com o mundo usualmente tido como tal. Vai-se valorizar aqui uma abertura pára o mundo sem prevenções, sem armas, sem resguardos. E o amor e a disponibilidade surgem, nesse contexto, enquanto elementos fundamentais. Dois poemas, a partir de seus títulos, e tendo em comum serem poemas marcadamente curtos, fazem referência ainda a formas líricas tradicionais: "Madrigal" e "Epigrama". MADRIGAL Meu amor ê simples, Dora, Como a ãgua e o pão. Como o ciu refletido Nas pupilas de um cão. O "madrigal" surge na Itália por volta do see. XIV, estreitamente vinculado ã música, e tem seu apogeu no séc. XVI, difundindo-se pelo resto da Europa então. Por esta época, introduz-se na lírica portuguesa, onde vai encontrar expressão até fins do séc. XVIII, quando o classicismo árcade começa a perder terreno para as tendências que prenunciam o Romantismo. Durante o séc. XIX, permanece fora da circulação literária, 183 para ser retomado, jã num sentido de maior liberdade formal, por um e outro poeta moderno. No que diz respeito à forma, o madrigal, até o séc. XV, possuía forma fixa. Posteriormente, passou a ter uma estrutura mais livre quanto ao metro, ás rimas e ao número de versos. Segundo Massaud MOISÉS, "vingou, porém, a tendência para resumir-se numa única estrofe de cerca de dez versos, em que alternam o decassílabo e o hexassílabo".llf Este. caráter de brevidade no tocante ã forma ë ainda ressaltado por Wolfgang KAYSER na aproximação generalizante que faz ao madrigal: "Ë um grupo de 3 até cerca de 20 versos, sendo estes de tamanho diverso e construção diferente. Na posição da rima reina também liberdade completa; era costume incluir versos sem rima, enquanto que, no final, era usada, na maioria das-vezes.,, uma pare lha" . 15 Do ponto de vista- temá- tico, dominantes,. no madrigal, são os temas amorosos, tratados engenhosamente, de forma fina e espirituosa. O "Madrigal" de José Paulo Paes enquadra-se dentro das características, gerais a p o n t a d a s p e l a temática amorosa, pelo seu evidente caráter de concisão, a que parece tender a própria forma, e pelo caráter engenhoso e-delicado da compo- . sição, que faz dela uma espécie de vislumbre poético altamente condensado. Nestes dois últimos aspectos, pode o poema ser aproximado de outra forma tradicional de grande difusão contemporáneamente na poesia brasileira, provinda de uma tradição literária distante da tradição ocidental: o haicai japonês. "Madrigal" apresenta apenas quatro versos, dispostos em dois dísticos. No primeiro dístico, os versos têm sete e seis sílabas; no segundo, seis - metro portanto, como o poema, 184 também de pequenas proporções. Nos segundos versos de cada dístico, observa-se a presença de uma rima: "pão"/"cão", rima que, neste poema tão curto, é responsável em muito pelo efe.ii': v. poético obtido. A recorrência dos sons dá ã composição um caráter de fechamento, de acabamento, que casa muito bem com o seu tom sentencioso. Novamente aqui neste "Madrigal", surge a figura feminina de "Dora", a amada com quem o poeta vai dialogar. A ela ele vai se dirigir explicitando o caráter do seu amor: "Meu amor ê simples, Dora". A simplicidade referida é posta pelo poeta em paralelo com outros elementos; ã afirmação inicial, seguem-se, portanto, duas comparações : o amor do poeta é simples "como a água e o~pão"; é simples "como" o céu refletido nas pupilas de um cão" . 0 primeiro-paralelo não foge propriamente ãs expectativas implícitas no adjetivo "simples" com que o poeta caracteriza inicialmente o seu amor. A "água" e o "pão" são tradicionalmente elementos ligados ã simplicidade, a frugalidade alimentar, àquilo que ê básico e mínimo para o sustento do homem. 0 segundo paralelo, porém, ê já mais surpreendente, e este carãter é ressaltado pela sua disposição numa segunda estância, separado, portanto, dos enunciados anteriores. Comparar a simplicidade : do amor ã simplicidade do "céu refletido nas pupilas de um. cão" tem muito de inusitado, de original. 0 adjetivo "simples" pode ser estendido sem problemas a "céu", dado do ambiente, do espaço circundante em que se encontra inserido o homem, e cuja experiência lhe é imediata e constante; e a "cão", animal que convive com o homem, despido de qualquer exotismo ou estranhamento que poderia ser visto em relação a outros animais. O "céu" e o cão" podem ser 185 "simples". Surpreendente, porém, e como que intraduzível em termos de uma abordagem analítica, é a conjunção destes na imagem escolhida pelo poeta: "o céu refletido nas pupilas de um cão". Com seus sentidos restritos a princípio somente aos aspectos mais destacadamente físicos, do ponto de vista da sua plasticidade, portanto, a imagem é de uma beleza singular. A infinitude, a incomensurabilidade do céu é apreendida indiretamente através do seu reflexo nos olhos do cão, portanto, através de um meio infinitamente menor que o original, fisicamente restrito, plenamente comensurãvel. Esta perspectiva encaminha a leitura jã para uma dimensão mais simbólica da imagem. 0 infinitamente grande apreendido através do restritamente-pequeno, é paralelo., possível para o entendimento de certa visão do amor aí implícita. O amor do poeta tem esta capacidade de trazer para um plano mais. restrito aquilo que idealmente diz respeito a planos infinitos. Nisto estaria a sua simplicidade, na medida em que reduz ao compreensível e ao realizável, a uma medida mais imediatamente humana, o que poderia restringir-se, dada a sua grandeza ideal e potencial, a um plano supra-humano. A idéia de "simplicidade" aplicada ao amor, presente neste poema, surge também, como se viu, em "Ode pacífica", em seu verso conclusivo: "Simples verdade de amor.". 0 amor, visto enquanto coisa "simples", recebe, por parte do poeta, portanto, uma avaliação que se pode dizer positiva. Há uma aceitação do estado amoroso sem ressalvas, uma. vez que ele é visto não enquanto um problema, enquanto um tormento ou uma dor, mas enquanto algo que contribui para a própria afirmação do sujeito. Em todos os poemas abordados até agora, esta 186 avaliação positiva parece ser uma constante. "Epigrama", porém, vai ressaltar um outro aspecto do estado amoroso. EPIGRAMA Entre sonho e lucidez, as incertezas. Entre delírio e dever, as tempestades. Ai, para sempre serei teu prisioneiro Neste patíbulo amargo de saudades... 0 "epigrama" ( de "epi", 'sobre' + "gramma", 'escrito') tem origem remota entre os gregos, servindo, primeiramente, para designar as inscrições - em monumentos, obras de arte e túmulos - ce leb ra do ras e perpetuado ras do nome de determinada personagem ou de dado acontecimento. Usualmente feito em versos, o epigrama deixou então este seu sentido pragmático inicial e passou para a tradição da poesia grega enquanto uma forma lírica. Nesta, tradição, o epigrama vai encontrar num ver so como o dístico elegíaco, formado de um hexámetro e de um pentámetro, os dois com andamento dáctilo (verso de seis e de cinco pés, contendo o pé- de tipo dáctilo - uma sílaba longa e duas breves) , o metro mais importante. Segundo o próprio José Paulo Paes, em ensaio sobre o poeta Paladas de Alexandria (do século 4 d.C.) e a tradição do epigrama, este verso "como que impunha ao poeta um tipo de expressão a um só: tempo sentenciosa e econômica, afinada pois com o espírito do epigrama, que se caracteriza por sua brevidade, de par com o torneio mais ou menos.engenhoso por que nele é expresso um pensamento" Estão aí, nestas palavras, sintetizadas as principais características da forma. Afastando-se. do seu emprego primèiro, o epigrama, pouco a pouco, alarga suas possibilidades temáticas, até se tornar, ainda segundo Paes, "a modalidade mais popular 187 lírica grega" . "Passa ele a servir de versátil instrumento para o epitáfio e a dedicatoria, a lisonja aos poderosos e a censura dos costumes, a sátira e o humor, o louvor e a crítica literária, a confissão amorosa e erótica, a lição de moral e a exaltação do prazer". 1 6 Da tradição da poesia grega o epigrama passa para a literatura latina, entra em desuso durante a Idade Média, até vir a ser resgatado pelo Renascimento e pelas tendências classicizantes subseqüentes. . Moderna mente, com a brevidade, a concisão, a síntese constituindo va lores poéticos essenciais, o espírito do epigrama parece animar muito da poesia que se está a fazer. O "Epigrama" de José Paulo Paes enquadra-se bastante bem dentro do-espírito geral da tradição do epigrama. Nele vamos encontrar a expressão "sentenciosa e econômica", a "bre vidade", "o torneio mais ou menos engenhoso por que nele é expresso um pensamento", características referidas pelo próprio Paes em suas reflexões críticas acerca desta forma lírica. "Epigrama" ê um poema bastante curto: quatro versos no corpo de uma única estância. Os versos são todos endecassílabos, o metro mais extenso utilizado por Paes até aqui em poemas metrificados. Com relação ã acentuação dos endecassílabos, recai ela sobre a primeira, a terceira, a sétima e a décima primeira sílabas no primeiro verso, e sobre a primeira a quarta, a sétima e- a décima primeira nos versos seguintes. Observa-se, portanto, um padrão mais ou menos uniforme de acentuação. Nos dois versos iniciais, versos com estruturação sintática idêntica, são mencionados termos cuja semântica os 188 configura enquanto pólos em oposição: "sonho" x "lucidez", "delírio" x "dever". Entremeando essas tensões básicas em. que se encontra imerso o sujeito poético estão, na primeira, "as incertezas" e, na segunda, "as tempestades". Pelo próprio conteúdo semântico destes últimos termos, verifica-se que a oposição, longe de gerar equilíbrio (pólos opostos compondo al- guma espécie de mútua compensação), gera na verdade toda uma dinâmica de dilaceramento do "eu" poético. Daí o desabafo em tom exclamativo dos versos finais, apresentada esta situação emocional inicial: a interjeição "ai" que abre o terceiro verso é índice do caráter que o anima. 0 "eu" poético vê-se na situação de "prisioneiro" condenado a alguma espécie de "morte" (ressalte-se aqui a beleza do último verso, que sugere esta possível "morte": "Neste patíbulo amargo de saudades"), "morte" a que está sujeito pela ausência do- objeto de seus afetos - daí a presença da "saudade" enquanto tormento e não enquanto possível compensação. 0 advérbio "sempre" dá ao sentimento geral que se está aí intentando, expressar um carãter de permanência; assim, a sugerida "execução" que se verificaria sobre o "patíbulo amargo de saudades" adquire a dimensão de uma ação não mais limitada no tempo. Os poemas amorosos anteriormente abordados tinham todos em comum uma visão positiva do amor. Em todos eles a pessoa amada - Dora - ou era uma espécie de ideal a ser conquistado ("Soneto quixotesco"), ou uma figura de fato presente, a quem o poeta se dirige - e aí a presença do vocativo, em que o nome. da amada é mencionado, ê dado a se destacar c ("Madrigal", "Canção sensata", "Ode pacífica"). Neste "Epi- grama", surge jã uma outra perspectiva em relação ao amor. 189 Aqui a ausência ê o tema central e ela vai ser geradora de um certo sofrimento. Os cinco poemas analisados com maior ou menor detalhe até aqui têm em comum atualizarem todos determinadas formas imediatamente verificáveis da tradição da poesia lírica. Ao lado destes poemas, outros já fora de certos padrões de forma ou conteúdo pré-fixados pela tradição, a despeito do talhe tradicionalizante de quase todos eles, encontram-se também presentes neste segundo livro de Paes. Entre eles, seria de se destacar com maior cuidado a princípio o poema "Cúmplices", que leva o mesmo nome do livro. CÚMPLICES Quebrei minhas algemas contra o espelho E a teus olhos tracei-me nova imagem, Sem cõlera, sem armas, sem viagem. Agora sou apenas teu reflexo, Um fantasma sem brilho e sem escadas. 0 que fui pouco importa. É quase nada. Desprezei os ardis, a ironia, As mentiras de bronze, as vozes fãtuas, • 0 fascínio enganoso das estátuas. Ergo-me pobre e nu. contra o horizonte. Nenhum crepúsculo turva minha fronte. ' Sob um cipreste enterrei os meus defuntos. Atrás de mim ficou o espelho fútil. Alem de mim descubro céus inúteis. Mas que importa o caminho? Estamos juntos. Os quinze versos deste "Cúmplices", dispostos três a três ao longo de cinco estâncias, são todos decassílabos heróicos, com exceção dos versos segundo e terceiro da quarta estrofe, versos endecassilábicos com acentuação na quarta, sétima e décima primeira sílabas. Pode-se dizer, portanto, 190 que se trata de um poema metrificado, o que imediatamente o insere dentro de um espirito tradicionalizante do labor composicional. A isto, some-se ainda a presença de rimas em final de verso: nas três primeiras estâncias, rimas no segundo e terceiro versos - "imagem"/"viagem", "escadas/nada" (rima imperfeita), "fátuas"/"estátuas"; nas estâncias quatro e cinco, rimas no primeiro e segundo verso - "horizonte"/ "fronte", "fútil"/"inúteis" (rima toante) - e entre os ter- ceiros versos das duas estâncias - "defuntos"/"juntos". Novamente neste poema, depara-se com uma segunda pessoa a quem o poeta está se dirigindo, segunda pessoa independente do sujeito, diferentemente do que se percebeu em relação a- alguns poemas do livro anterior 0 aluno/ em que a segunda- pessoa, : dinimmondianamente,-—compunha uma espécie de . "alter ego" do próprio "eu" poético. Observa-se, portanto, a presença de um "outro" em relação ao sujeito, que não é ape-1 nas um contraponto dialogal para o extravasamento emocional, afetivo, deste, sujeito (conferir o que se discorreu a esse respeito em poemas como "Canção do afogado" e "0 homem no quarto", por exemplo, do livro anterior), mas -que. ê sim pre-: sença importante a determinar a própria maneira de ser, a própria essencialidade deste sujeito. Neste segundo livro Cúmplices, essa segunda pessoa, como se está vendo, é preeenchida sempre por uma figura feminina, ãs vezes denominada Dora (nome da própria esposa do homem José Paulos Paes), âs vezes sem qualquer denominação, como no próprio poema "Cúmplices". Estas considerações são importantes para uma aborda5. gem deste poema (e para a compreensão do próprio livro que leva mesmo nome) , como se percebe jã a partir da observação 191 da primeira estrofe. No primeiro verso, pöde-se encontrar algumas referências ao estado do "eu" poético anteriormente ao encontro com esta segunda pessoa. O termo "algemas" explicita a idéia de prisão e de imobilidade, situação em que se encontrava o sujeito até decidir-se a quebrar essas "algemas" "contra o espelho". A forma que o sujeito encontra para se libertar das "algemas" é justamente voltar-se contra o "espelho", responsável pelo reflexo da sua própria imagem. 0 sujeito poético volta-se, portanto, contra si mesmo nesse ato, volta-se contra o circuito fechado do auto-espelhamento, do debruçar-se exclusivo sobre si mesmo. Quebradas as "algemas", e com elas o "espelho", o "eu" poético vai espelhar-se então - em ura: "outro" em uma segunda pessoa, para at ravés . dela., recom- por sua imagem: "E a teus olhos tracei-me nova -imagem".. As _ expressões do terceiro verso - "sem cólera, sem a m a s , sem viagem" - podem ser vistas tanto como caracterizadoras deste novo ato (incidindo sobre o verbo "tracei-me"), como caracterizadoras da nova condição do sujeito (referindo-se, aqui, ã "nova imagem"). "Cólera" e "armas" - termos que se auto-alimentam - têm sentido óbvio; "viagem", porém, é já termo de sentido menos imediato no contexto. A expressão "sem viagem", numa possibilidade de leitura, pode sintonizar com as anteriores no que. diz respeito ã referência a um estado de repouso, inércia, passividade, apaziguamento - e também, já agora em sentido exclusivo, a uma situação de enraizamento, de mergulho ou fixação num espaço e tempo presentes. A primeira estrofe faz referência, portanto, a uma mudança que se opera no sujeito, mudança que pode ser aproximada ã mudança observada também em "Ode pacífica". Lá, em 192 contato com Dora e com a revelação da "simples verdade de amor", o sujeito deixa para trás um seu estado inicial, marcado por toda uma condição de beligerância e, por isso, de sofrimento e perdição, situação vista pelo próprio poeta enquanto um "mal". Aqui em "Cúmplices", no contato com a figura feminina, o sujeito também se transforma: rompe com uma sua imagem inicial, imagem em que o sentir-se preso era determinante, para refazê-la, já agora aos olhos de uma segunda" pessoa. Este movimento do sair de si mesmo em direção a um outro vai, na segunda estrofe, atingir graus de intensa radicalidade: "Agora sou apenas teu reflexo, / Um fantasma sem brilho e • sem escadas. " . Este despir-se de si mesmo, _ da imagem obtida pelo reflexo do "espelho", é levado ãs últimas conseqüências. O sujeito deixa sua própria individualidade para querer tornar-se o "outro", porém não logra ser o "outro" em sua essência, tarefa. impossível., mas apenas um "reflexo" desse "outro". Perde portanto a concretude, a carnalidade- conferida pela sua própria identidade neste movimento em direção ã segunda pessoa, para tornar-se um "fantasma". Esta nova condição, que poderia ser experimentada como acentuadamente:.negativa, não o é, no entanto, pelo sujeito, já que o estado inicial é por ele avaliado de forma muito severa: "O que fui pouco importa. Ê quase nada.". No processo de voltar-se para o "outro", outra ação encontra-se ainda implicada. Na sua explicitação, na terceira estrofe, novas.referências ã condição original do sujeito são feitas. Ao quebrar "as algemas contra o espelho" e traçar frente ao outro "nova imagem", o sujeito vai "desprezar" uma 193 série de elementos que se encontravam circunscritos ao seu universo anterior. Nesse sentido, tem-se aqui uma espécie de desenvolvimento, de explicação daquele "o que fui" "é quase nada" do final da estrofe segunda. "Ardis", "ironia", "mentiras de bronze", "vozes fátuas", "fascínio enganoso das estátuas" (e repare-se sobretudo na caracterização destas três últimas expressões, em que a idéia de falsidade é reiterada insistentemente), agora desprezados, constituíam uma condição experimentada como negativa, a que a nova condição de "fantasma" ou mero "reflexo" da outra pessoa sucede positivamente. É liberto disso tudo que o "eu" poético vai se encontrar agora. 0- desnudamento a que todo o processo o obriga tem referência explícita na-quarta estrofe : - "Ergo-me. pobre e nu contra o horizonte."-. A liberdade a que isso-o-leva é ainda reiterada: "Nenhum crepúsculo turva a minha fronte.". Ressaltem-se aqui as implicações semânticas de uma metáfora como "crepúsculo", no sentido de "ocaso", e a sua proximidade em relação ã expressão metafórica "na/da tarde cinzenta", do poema "Balada", do primeiro livro de Paes, comentada anteriormente com relativa minúcia. "Crepúsculo", no ciclo do dia, é o instante em que a luz do sol. vai cedendo espaço ã escuridão da noite, portanto ã passagem do claro ao escuro. Simbolicamente, são múltiplas as referências aí contidas: envelhecimento, morte, loucura, dor, angústia, tristeza, etc. Nada disso agora "turva" (e o verbo reitera esses sentidos negativos destacados) a "fronte" do sujeito. 0 terceiro verso da estrofe insiste ainda na idéia de libertação em relação ao passado e seus pertences: "Sob um cipreste enterrei os meus defuntos.". Ë curiosa nas expressões metafóricas desta estrofe a insistên- 19 4 cia em dados ligados ã natureza, a um espaço mais ampliado "horizonte", "crepúsculo", "cipreste". O "erguer-se contra o horizonte", imagem central aí, reitera bastante bem a idéia de libertação desenvolvida em todo o poema, de saída de um espaço mais restrito para um espaço mais vasto. A construção de metáforas com elementos da natureza acentua os sentidos poéticos desenvolvidos nessa imagem. A última estrofe resgata de forma conclusiva algumas das imagens que foram sendo semeadas nas demais estrofes do poema. Recupera-se o "espelho" da primeira ("Atrás de mim ficou o espelho fútil."), agora aqui com um adjetivo importante - "fútil" -, que ressalta bem aqueles sentidos jã expostos acerca do—"espelho"- e-do que ele - significa, em termos da situação primeira do poeta e seu caráter problemático. O "horizonte" evocado na estrofe quatro ecoa aqui no verso segundo: "Além de mim descubro céus inúteis.". Assim, o "atrás" e o "além" (com sentidos no plano espacial projetando-se sobre o temporal, e assim referindo-se também ao "passado" e ao "futuro") surgem, nos adjetivos "fútil" e "inúteis", recobertos de avaliação negativa. Em.contraposição, valori- . za-se, por exclusão, o espaço imediato e o tempo presente. Na indagação final "mas que importa o caminho?"pode-se apreender uma referência dúplice â espacialidade e ã tempo rali da de. Tempo e espaço são dimensões que se interpenetram. O "caminho" aqui (e aqui o problemático termo "viagem" da primeira estrofe pode encontrar sentidos mais claramente definidos) refere-se a todo o trajeto existencial do sujeito. CJma preocupação com os limites desse trajeto perde a importância na medida em que a outra pessoa encontra-se presente: "Mas que importa o caminho? Estamos juntos.". 195 O poema é todo ele urna especie de louvação, de exaltação do outro, um outro que, pelo que se depreende dos de- mais poemas do livro, não ê ninguém senão a pessoa amada, a "Dora" nomeada em várias ocasiões. Através desta segunda pessoa é que o "eu" poético se liberta de uma situação inicial negativa e vai recompor sua imagem. Ao fazê-lo, nada mais importa senão o fato de se enoontrar . junto a este "outro". 0 amor surge aqui não como carência, mas sim como plenitude. Nada além da pessoa amada é ainda necessário para o sujeito. Esta cumplicidade amorosa, aspecto central desta e de outras composições, ê ressaltada pelo termo "cúmplices" que dá titulo ao poema e também ao. livro. Outro poema que ,- como - Cúmplices"-, não se enquadra propriamente dent.ro.. de..alguma forma composicional típica da tradição da poesia, mas que revela uma certa maneira tradicinalizante de compor é "Pequeno Retrato". No poema, com quatro estrofes de quatro, seis, seis e três versos, observa-se a presença dominante das redondilhas menores, entremeadas de alguns poucos versos de quatro, seis e sete sílabas, e a presença de rimas em fim de verso dispostas sem qualquer padrão definido para cada uma das estrofes. Trata-se, portanto, de uma composição metrificada - e aqui é de se destacar novamente a presença de metros curtos, medida dominante na poesia inicial de Paes - e rimada. Neste poema, novamente vai surgir a figura de "Dora" como interlocutora do "eu" poético. O tema da união amorosa surge também aí como central. A ligação com a figura feminina ê motivo de uma mudança do sujeito, da assunção de um comportamento que foge aos padrões estabelecidos pelo bom senso. Assim, vai-se valorizar aqui a preocupação 196 exclusiva com o presente, momento em que a união se verifica, em detrimento de qualquer preocupação com o que está por vir - "Nunca vislumbrei / No momento exiguo, / No dia contigo/O dia contíguo.". Da mesma forma, valoriza-se a fruição e o prazer em detrimento dás cautelas e dos cuidados - "Como submeter / 0 desejo ao fado, / Se todo prazer / Ri da cautela, / R i do cuidado, / Oue o quer prender?" A estrofe final, explicitado o "pequeno retrato" do sujeito poético em situação amorosa, apela para uma resolução de tipo impactante: "Vou despreocupado, / Dora, tão despreocupado, / Que nem sei morrer.". Pode-se aproximar este poema, pela perspectiva a s s u m i — da, de "Canção sensata"-.--Ambos vão defender o-amor enquanto atitude de confronto com o que hã de mais. convencionalmente "burguês" em termos de postura frente ao mundo (valorização da segurança material, da racionalidade subordinando o sentimento, do controle sobre o prazer, da praticidade das ações e decisões, etc.) . Dois poemas-ainda- integram Cúmplices : "Carta de guia" e "Poema circense". 0 primeiro, deles é um poema de carãter mais fragmentário, composto em versos polimêtricos, o que jã de imediato o distingue da maior parte dos poemas do livro, poemas metrificados e rimados. 0 segundo ë basicamente um poema em prosa, e, por esse seu caráter, chama em muito a atenção quando lido em confronto com os demais. "Carta de guia" ë poema que, pela sua estrutura, lembra um pouco "Poema descontínuo" do livro iniciai de Paes O aluno. 0 poema, todo ele em versos livres e sem qualquer regularidade estrófica, encontra-se subdividido em cinco partes, cada parte compondo uma espécie de mosaico, uma espécie de 197 aproximação singular do tema comum a todas as partes. A temática da ligação amorosa (e novamente tem-se aí nomeada a Dora de tantos poemas) e da afirmação do par amoroso e de seus valores frente ao mundo recebe novos desenvolvimentos neste texto. 0 título ë bastante problemático. 0 dicionário dá o seguinte significado ã expressão "carta de guia": "Jur. Documento assinado pelo juiz encaminhando o reu à prisão, em cumprimento de sentença". 17 No entanto, uma vez que um tal sentido não se ajusta ao conteúdo do poema, talvez seja mais produtivo ver aqui referência a conhecido texto da tradição da literatura portuguesa, a "Carta de guia de casados", de D. Francisco Manuel de Melo, cuja primeira edição data de 1651. Trata-se de escrito de conteúdo moralizante a respeito da vida conjugal. A perspectiva assumida pelo autor pode ser depreendida de alguns comentários ao texto feitos pelos historiadores literários portugueses Antônio José 'FARAIVA e öscar LOPES: Todas as a v e n t u r a s amorosas dos jovens f i d a l g o s solteiros s i o para ele n a t u r a i s , , como q u e f a z e m p a r t e do s e u d e c o r o . I a s a m u l h e r p a s s a da tutela dos pais para a t u t e l a a i n d a mais cauta e suspicaz do m a r i d o , que pode ser b a s t a n t e mais v e l h o , para a educ a r c o m o s e g u n d o p a i ; d e v e v i v e r em reclusio completa, inclusivamente c o m ' a c a p e l a em c a s a , s e possível, sem c o n f i d e n t e s , sem c r i a d a g e m da sua c o n f i a n ç a p e s s o a l , vigiada estreitamente nas suas relações e desp e s a s , sem c u l t u r a l i t e r á r i a ou art í s t i c a , e m b o r a D. F r a n c i s c o a n ã o j u l g u e m u i t o m e n o s d o t a d a de espírit o q u e o homem ( o u a t é p o r i s s o mesmo).18 198 "Carta de guia" pode ser lida como urna, especie de contrapartida moderna ã culturalmente arcaica "Carta de guia de casados". Nela, uma postura muito diferente da ligação conjugal ë desenvolvida. Esta ligação, com o amor necessário aí implícito, ë vista como algo visceralmente ligado ã vida em constante processo: "Nossa vida / Construímos / A cada passo, / A cada minuto, / A cada esquina, / De mãos unidas." (fragmento I). Essa perspectiva de construção conjunta, da ligação conjugal como um processo de construção dos sujeitos nela envolvidos, é ressaltada ainda no fragmento V final: "Vivemos, Dora, na certeza / De sermos amanhã / O que ontem não fomos.". O confronto inevitável com o mundo, salientado em outros poemas deste--livro,- é- também repisado : "(...J Con- tra as colunas da; lei, -/ Sobre o corpo do soldado, / com o estandarte rasgado / D e qualquer revolução." (fragmento IV). 0 amor assume assim todo um sentido político, na medida em que ele deixa o âmbito da vida privada, o âmbito dos valores morais, e se espande afirmativamente pelo mundo, opondo-se ãs "colunas da lei" e passando "sobre o corpo do soldado". A expressão "qualquer -revolução", porém, vai deixar claro que esta dimensão política assumida não tem orientação definida. Destaca-se aqui a ligação amorosa enquanto algo em processo, que não busca um objetivo, um fim claramente definido fora dos limites em que se encontram unidos os sujeitos amorosos. O único fim vislumbrado ë aquele, jã referido: a certeza "de sermos amanhã o que ontem não fomos". Um último poema ainda a ser abordado, "Poema circense", é texto que foge bastante ao padrão composicional dos demais. 199 POEMA CIRCENSE Atirei meu coração ãs areias do circo como se atira ao mar uma âncora aflita. Ninguém bateu palmas. 0 trapezista sorriu, o leão farejou-me desdenhosamente, o palhaço zombou de minha sombra fatídica. So a. pequena bailarina compreendeu. Em suas mãos de opala, meu coração refletia as nuvens de outono, os jogos de infância, as vozes populares. Depois .'de muitas quedas, aprendi. Sei agora vestir, com razoável destreza, os risos da hiena, a fragil polide z dos elefantes, a elegância marinha dos corcéis. Todavia, quando as luzes se apagam, readquiro antigos poderes de vôo. Vôo para um mundo sem espelhos falsos, onde o sol devolve a cada coisa a sombra natural e onde não hã aplausos, porque tudo é justo, porque tudo é bom. Como se_pode- observar, o-poema põe em- xeque os limites formais -usualmente-identificáveis entre prosa, e poesia. Não se tem aqui.a habituai disposição em versos característica do texto poético - e na qual o próprio Paes, nestes seus dois primeiros livros, compõem, com exceção deste, a totalidade de seus poemas - nem a presença de outros elementos exteriormente identificáveis como pertencentes ã poesia, como rima, aliterações , assonãncias,. recursos de ritmo, etc. Pode-se lembrar aqui dos "poemas em prosa", de Baudelaire, ou então, voltan- do-se ã literatura brasileira, de alguns poemas de Manuel Bandeira como "Lenda brasileira", "Noturno da rua da Lapa", de Libertinagem (19 30) , ou "O desmemoriado de vigário geral" e "Tragédia brasileira", de Estrela da manhã (1936), poemas em que a crônica invade embaraçantemente a poesia. Pode-se distinguir no poema quatro estâncias - ou, pensando-se em termos de prosa, quatro parágrafos -, em todo o caso, quatro unidades maiores. No tocante â composição 200 dessas unidades maiores, não se pode falar aí em versos, jã que a segmentação ao final de cada linha se dã em função da margem estabelecida, e não em função de qualquer idéia de segmentação rítmica, ou sintática, ou ainda semântica. Neste mesmo "Poema circense", porém na edição de Poemas reunidos, publicado em 1961, livro que reúne os três primeiros livros de poesia de José Paulo Paes, a disposição das linhas não corresponde ã da presente edição. Cada uma dessas unidades maiores vai encerrar uma totalidade semântica. Na primeira, tem-se a exposição de uma situação inicial. Na segunda, faz-se uma restrição .ãs. realidades apresentadas, com a exposição de uma circunstância de exceção. Na- terceira, tem-se um salto temporal em relação ã situação inicial; esta.,, anteriormente singular," ê generalizada, e nova circunstância singular é"apresentada. - Na quarta, novamente uma restrição â realidade agora apresentada é feita, através da revelação de nova circunstância de exceção. Tem-se, portanto, do ponto de vista conceptual e internamente ao poema, um desenvolvimento de tipo dialético claramente estruturado . Ná primeira estância vai-se ter, portanto, a apresentação da circunstância inicial. Hã algo de estranho, absurdo e contundente nas imagens que surgem aí. de início: "Atirei meu coração âs areias do circo como se atira ao mar uma âncora aflita.". "Coração" é lido imediatamente em seus sentidos segundos: sentimento, afetividade, amor, alma, etc. - aquilo que ê interior ao sujeito. "Atirar o coração ãs areias do circo" pode ser visto como um processo de exposição pública (a arena do circo ressalta essa idéia de espaço público) a 201 que o "eu" poético se está sujeitando, exposição, em suma, daquilo que ë interior e essencial a esse mesmo sujeito. A comparação desta ação com o ato de atirar "ao mar uma âncora aflita" vai insistir na. necessidade interior desse ato. 0 adjetivo "aflita" que determina o substantivo "âncora", por uma questão de inadequação objetiva, acaba contaminando com seus sentidos toda a ação em si e inclusive o sujeito. Assim, esse "aflita", passando do substantivo imediato â toda ação. e desta ao paralelo comparativo, vai referir-se também ao "eu" que está a se expor. 0 "circo" evocado, que, como se inisinuou, pode funcionar como uma espécie de metáfora de um espaço público, ,vai_ adquirindo dimensões maiores no- desenvolvimento da estrofe-e do'poema. Elementos a ele ligados-são. referidos: "trapezista", leão." ,„_"palhaço" , _o público ("ninguém ba- teu palmas"). A esta auto-exposição por parte do sujeito poético não corresponde qualquer reação positiva por parte das demais "personagens" : todas respondem distanciada__e friamente ao apelo contido em sua ação. Apresentada esta circunstância inicial, vai-se fazer referência a uma exceção em relação a essa resposta negativa coletivamente dada ao ato do sujeito: "Só a pequena bailarina compreendeu". Somente a única figura feminina diretamente mencionada - o público surge como massa compacta indistinta - ê capaz de entender o impulso do "eu" poético. Se se relacionar este passo aos demais poemas do livro, em que a presença do feminino e da ligação amorosa é temática central, esta "pequena bailarina" vai assumir proporções outras a que parece estar restrita numa leitura exclusiva deste texto. É possível ver atrás dela indícios daquela mesma Dora dos outros 202 poemas. A figura feminina ë a única a dar resposta positiva. "Em suas mãos de opala, meu coração refletia as nuvens de outono, os jogos de infância, as vozes populares.". Em sua presença, portanto, aquilo que é interior ao sujeito adquire nova vida. Nä terceira estância, tem-se, abruptamente, um distan- ciamento temporal em relação ao exposto: "Depois de muitas quedas aprendi.". A expressão vai se seguir a revelação da natureza desse "aprendizado": o sujeito declara ter aprendido a identificar-se aos demais "personagens", a disfarçar-se para viver entre eles - "Sei agora vestir, com razoável destreza, os risos da hiena, a frágil polidez dos elefantes, a elegância marinha dos: corcéis . " . O sujeito- poético - encontra-se plenamente integrado ao espetáculo do "circo". A figura da "pequena bailarina"- some - de cena e, contrariamente a certas expectativas criadas a partir das idéias da segunda estância, a reação negativa das demais figuras explicitada na primeira é que vai determinar o-comportamento do poeta. No entanto, a esta nova circunstância vai se opor nova exceção. Na quarta estrofe, a possibilidade de fuga-dessa situação ë insinuada. Apagadas as luzes da arena, em pleno escuro, o sujeito vài encontrar uma possibilidade de distanciamento: "Todavia, quando as luzes se apagam, readquiro antigos poderes e vôo.". Este distanciamento vai se dar em direção a um espaço avaliado pelo sujeito como superior ao espaço em que se encontra inserido - "um mundo sem espelhos falsos, onde o sol devolve a cada coisa a sombra natural e onde não hâ aplausos, porque tudo ë justo, porque tudo ê bom.". As expressões dão a esse mundo contornos ideais, fazem desse espaço um espaço 203 utópico entrevisto apenas em sonho, ou no total isolamento do indivíduo - por isso a idéia de poder chegar a ele somente "quando as luzes se apagam". "Poema circense" pode ser visto como uma espécie de pequena alegoria da situação do sujeito no mundo. Os elementos circenses, que dão ao poema contornos de magia, fantasia, sonho, se esvaem nessa possibilidade de leitura. O mundo ë um espetáculo e nele o sujeito sente-se como que em situação de picadeiro, exposto aos olhos de todos, não compreendido em sua essência por ninguém (com exceção de uma possível figura feminina), obrigado a assumir determinados papéis para poder sobreviver. Em meio a esse mundo, apenas no isolamento ê pos,sível encontrar um espaço ideal -de abrigo-. Dos vários, poemas, do livro, apesar da presença feminina da "pequena bailarina", este é o único poema onde a temática do amor não ê a central. "Poema circense" problematiza também os limites formais entre poesia e prosa, uma vez que a linguagem aí empregada exita entre essas duas possibilidades do discurso literário. Num certo sentido, o poema vai apontar para a tenuidade, em casos extremos como o presente, destes limites, vai evidenciar que a poesia, numa perspectiva moderna do problema, não se encontra necessariamente delimitada por certas balizas formalmente exteriores e imediatamente identificáveis (como a rima, o verso, os recursos rítmicos, etc.) . Em "Poema circense", a "poesia" vai se encontrar em parte na linguagem extremamente metaforizada do texto, na qual os segundos sentidos possíveis jã de imediato se impõem enquanto sentidos dominantes; mas, sobretudo, vai se encontrar na dicção extremamente singularizante, subjetiva, que faz das personagens rapidamente 204 esboçadas, do tempo e do espaço referidos, elementos sem qualquer autonomia, elementos de explicitação de um pequeno drama interior do poeta onde nada adquire vida autônoma fora deste mesmo sujeito. 3.2.3 Conclusão Os poemas reunidos neste Cúmplices encontram-se, de forma tensa, em. relação de proximidade e afastamento daqueles contidos no livro inaugural de José Paulo Paes. Da mesma forma que em 0 aluno, em Cúmplices ë dominante a poesia de carãter subjetivo, de expressão de sentimentos e aspirações do "eu" poético. A presença de um "eu", quase sem exceção, em todos os poemas destes dois primeiros livros, ë característica da opção exclusiva do poeta pelo lirismo-subjetivo. Também a presença de poemas que remetem a determinadas formas tradicionais da poesia lírica, mesclados a poemas sem forma tradicional específica mas de dicção tradicionalizante, e alguns poemas sem. forma pré-fixada e com versos polimétricos de vertente modernista fazem destes; livros expressões de uma perspectiva poética muito próxima. No entanto, são as diferenças o que precisa ser aqui destacado, pois são elas que de fato vão apontar para a singularidade de cada um dos livros. Em Cúmplices, muito distintamente de O aluno, ë o amor, a união com a mulher amada (no- meadamente "Dora" em boa parte dos poemas) e o significado marcadamente positivo disso para o sujeito poético a temática central, muito distintamente do livro anterior, onde o lirismo amoroso não encontra qualquer espaço. Naquele, como se viu, é a própria poesia a preocupação fundamental do sujeito: confes- 205 sando "só' restarem-lhe os livros", assumindo o papel de "aluno" de poesia, reverenciando aqueles poetas que eleva ã categoria de "mestres", imitando-lhes temas, motivos, procedimentos, exercitando-se com um mesmo empenho nas formas que tanto o lirismo mais tradicional como o lirismo de veio modernista lhe punham ã disposição - Paes vai revelar o quanto a preocupação com a própria poesia, o mergulhar no seu amplo universo de possibilidades e a sua afirmação enquanto poeta dominam a sua estréia literária. A "angústia existencial" e outras questões de detalhe igualmente subjetivista, porém sem tônica semelhante àquela, que surgem aí neste primeiro livro, encontram-se na verdade subordinadas a essa preocupação fundamental^-- sobretudo quando- se- apreende o livro no se.u_"todo". Em Cúmplices é, portanto, o lirismo amoroso a questão central. A própria epígrafe do livro - "Love is not a goal; it is only a travelling." D. H. LAWRENCE, Essay on Love - jã adianta este carãter quando se vai iniciar sua leitura. O -¡. amor não ë ura objetivo a ser alcançado, um ponto vislumbrado adiante e que precisa ser atingido. O amor ë um trajeto, um percurso, um processo, e, nesse sentido, -não é algo que jã está pronto, que tem uma essência "a priori" definida, mas sim algo que se constrói ao longo do caminho, uma vez que se confunde com esse próprio caminho. A visão que o poeta tem do amor, delineada em alguns de seus contornos já na expressão emprestada de outro e que lhe serve de epígrafe ao livro, precisa ser examinada um pouco mais detalhadamente ã luz de sua própria poesia. De um modo geral, pode-se dizer que o amor ë sempre avaliado de forma positiva.pelo sujeito poético. O amor enquanto motivo 206 de dor, de sofrimento, de coita (para usar aqui um termo ca- ro ãs primeiras manifestações líricas em língua portuguesa), de desagregação do sujeito, devidos ã distância ou à ausência do objeto amado, ou a uma sua recusa de correspondência de sentimentos, tônica do lirismo amoroso desde a poesia trovadoresca medieval ã poesia romântica e com ecos na poesia moderna, estã ausente da lírica amorosa de Paes, com exceção daquele "Epigrama" jã apontado, em que a ausência da pessoa amada gera a saudade e esta é motivo de dor para o sujeito ("Ai, para sempre sèrei teu prisioneiro / Neste patíbulo amargo de saudades...") . Predominantemente, o amor, a união amorosa com a pessoa amada têm .resultado positivo sobre o sujeito, são meio de afirmação e~não de.negação do que nele hã de vital. O amor ê. sempre numa presença, algo que se realiza em plenitude. Em algumas passagens o amor é visto como coisa simples: "Meu amor ê simples, Dora" amor" ("Madrigal"); "Simples verdade de ("Ode pacífica"). Ressaltar sua simplicidade significa ressaltar a sua naturalidade enquanto dimensão própria ao humano. Deixa o amor de constituir qualquer excepcionalidade para se integrar de forma mais harmônica no universo afetivo dos sujeitos. Assim, não é ele obstáculo, mas sim peça importante no próprio processo de construção daqueles: "Nossa vi- . da / Construímos / A cada passo, / A cada minuto, / A cada esquina, / De mãos unidas." ("-Carta de guia") . Estes versos ecoam de forma bastante explicita a epígrafe tomada a D.H. Lawrence. Neste mesmo sentido afirmativo, ê preciso destacar o que o amor vai significar para o sujeito enquanto meio de 207 libertaçao, enquanto forma de se passar de um estado inicial tido como problemático para um estado em que o amor dá à in- dividualidade um novo sentido existencial. No poema "Cúmplices", o amor ( e destacando-se áqui sobretudo a ligação com a pessoa amada) é meio de ruptura do sujeito com uma sua identidade anterior, em que o centramento sobre si mesmo era dominante, e reconstrução de uma nova identidade a partir da relação com o "outro". Em "Ode pacífica", o dilaceramento interior em que se encontrava o sujeito, em constante estado de luta, de beligerancia, visto por ele próprio enquanto um mal, vai ceder ã súbita revelação do amor, descoberto e redescoberto ao lado de "Dora". Em "Soneto quixotesco", porém, a oposição. entre -amor" e-"luta", configurada de forma-como que mu- tuamente excludente naquele último poema, cede espaço a uma perspectiva em que os dois pólos se encontram lado a lado. Assim, o poeta, travestido em cavaleiro andante, tem em seu horizonte um desejo de dupla conquista: "Reino e Dora", a que deve juntar-se, porém, a lembrança do próprio caminho percorrido: "(...) mas no meu peito / Morem saudades do passado ofício. " . Em alguns destes poemas encontram-se sempre presentes as idéias de "processo", de "construção", de "transformação", em que o transcurso do tempo surge como elemento importante. Há poemas, porém, em que o que vai ser valorizado é justamente a fruição do momento presente ("Nunca vislumbrei / No mo- mento exíguo, / No dia contigo,'/ O dia contíguo." - "Pequeno retrato"), em total entrega, sem cuidados, sem recatos, sem prevenções ("De maior beleza / Ë, pois, nada prever / E ã fina 19 4 incerteza / De amor ou viagem / Abrir nossa porta" - "Canção sensata"). A respeito da postura diante da vida encontrada em tais poemas, Alfredo BOSI fala em "carpe diem". 19 Hã na ver- dade aí, neste amor que ë todo entrega ao outro e fruição descuidada do instante presente, uma visão do amor que se opõe radicalmente ao regramento, ã contenção, ã eterna busca . de estabilidade, certezas, seguranças de uma concepção "burguesa" das coisas. Vislumbra-se, portanto, um amor que, em :. sua afirmação, entra em oposição a uma visão do mundo que é dominante. Implicitamente a essa adoção de uma postura dissonante, revela-se a assunção de uma perspectiva crítica em relação a valores. - A figura feminina-es-tã- sempre presente nos poemas de Cúmplices. Em. seis dos nove poemas - ë-. nome adámente Dora quem toma--a cena e vai:servir de .ponto referencial ã expansão do "eu" poético. Apenas "Poema circense" revela constituir exceção; aqui, é a tensão do sujeito com o mundo, a necessidade do uso de "máscaras" para - viver entre os -homens, e o vislumbre, em espaços reservados do próprio "eu", de um mundo ideal o que "compõe o cerne do poema. . A figura-,feminina surge apenas na "bailarina", que, entre as várias "personagens" arroladas, ë a única que compreende o poeta. Os móveis biográficos para a presença dominante da mulher e do amor neste segundo livro de Paes. podem ser produtivamente conferidos no seu "depoimento": "Nesse mesmo ano I refere-se ao ano de 1952) , saí ra. publicada a minha segunda plaquete de poemas, "Cúmplices", todos eles inspirados por Dora, noiva, logo em seguida esposa, e desde então minha musa e muleta permanente". 20 Dora não á, portanto, um nome qualquer 209 entre outros nomes de mulher possíveis de figurar na poesia de Paes; tem um referente concreto no mundo, diz respeito a uma figura muito cara ao homem que constitui o poeta. A cumplicidade amorosa (termo sugerido pelo próprio título do li- vro) verificada entre o poeta e a mulher presentes nos poemas tem um paralelo, a alimentã-la e como que a despi-la dos excessivos artifícios que em geral permeiam toda a poesia amorosa, numa cumplicidade afetiva efetiva..A vida imiscui-se no universo da arte, e isto é dado importante a ser registrado para uma melhor compreensão da disposição poética de José Paulo Paes. 3.3.. NOVAS CARTAS CHILENAS - (1954 ) 3.3.1 Introdução 0 terceiro livro de poemas de José Paulo Paes, Novas cartas chilenas, recebe, em Poemas reunidos, de 1961, e em Um por todos, de 19 86, a indicação do ano de 195 4 como data referencial. Os poemas contidos em Novas cartas chilenas, juntamente aos do livro seguinte do poeta, Epigramas, só sairiam publicados em livro em Poemas reunidos, em 1961, portanto alguns anos após aquela data. No entanto, anteriormen- te a esta edição em livro, Novas cartas chilenas havia sido publicado num dos primeiros números da "Revista Brasiliense", sob pseudônimo, com texto de apresentação de Sérgio Buarque de Holanda. No. que se refere ã segunda data, 1961, data da publicação em livro, estã-se jã plenamente dentro do período de abrangência daquele momento da poesia brasileira moderna 210 designada no panorama introdutório como Vanguardas Anos 50/60. Já desde o inicio dos anos 50, porém de forma mais definida a partir de meados do decênio, começam a surgir no país as primeiras manifestações de movimentos literários, com enraizamentos e desdobramentos em outros campos da produção artística, postulando uma renovação radical da literatura, em especial da poesia. Ao primeiro deles, o Concretismo (19 56), o primeiro e provavelmente o mais influente dada a militância expressiva de seus integrantes, iriam se seguir rapidamente outros movimentos, de maior ou menor repercussão, como o Neoconcretismo (1959), a Poesia Prãxis (1962) e o Poema Processo (1967), todos característicamente movimentos de renovação radical e polêmica no âmbito da linguagem. Paralelamente a estas vanguardas, onde - pode-se dizer - o engajamento estético ê o dominante, uma outra espécie de militância artística se observa no mesmo período de orientação muito distinta: a poesia participante, de engajamento político-social, que iria encontrar na publicação "Violão de Rua", entre os anos de 1962 e 1963, um momento de cristalização. Percebe-se, portanto, uma polarização que iria marcar a produção cultural de então: de um lado, a opção pela vanguarda estética; de outro, a opção pela vanguarda política. As orientações, porém, nunca se mantiveram estanques: o Concretismo, a partir de 1961, fala em "salto participante"; Ferreira Gullar desloca-se do Neoconcretismo para o engajamento político explícito, numa alteração desconcertante de rumos dentro da sua poesia; a Poesia Práxis, na figura de seu principal representante e teórico, Mário Chamie, sempre pôs 211 em perspectiva o problema da atuação política; o Tropicalismo (1968), um movimento não eminentemente literário como os ante- riores, mas com desdobramentos importantes no âmbito da literatura, mescla os dados da arte de elite ã arte popular e ã de massa, fazendo das contradições e tensões que daí surgem o cerne mais vital do seu próprio discurso artístico. A consideração de dois pólos, de alguma forma legitimada pelas polêmicas travadas no período (cf. as intermináveis querelas en- tre Gullar e os concretos 2 1 ), funciona mais como expediente para uma orientação dentro da produção cultural desse momento. Além do mais, opor "estética" ã "política" é procedimento muito problemático. 2 2 0 terceiro- livro de Paes é escrito dentro de, um con-, texto de. grande efervescência- cultural no país, - de renovação e polêmicas no âmbito das artes, de questionamento do. papel do artista e do intelectual na sociedade brasileira, de cobrança constante de uma participação política mais imediata nas questões nacionais. É esse também o período em que uma nova visão do Brasil, que se está configurando já desde a década de 30, vai se impor. Antonio CANDIDO, na esteira de Mário Vieira de Melo, vai falar em surgimento de uma "consciência do subdesenvolvimento", da visão do Brasil enquanto um "país subdesenvolvido", em franca oposição ã visão anterior do país enquanto "país novo", pleno de potencialidades que necessariamente iriam conduzir, no futuro, à edificação de uma grande e importante sociedade. 2 3 A consciência do nosso atraso cultural e material, da nossa dependência e subserviência em relação âs potências estrangeiras manifesta-se de forma muito aguda nesse instante. 212 Os principais movimentos literários de então são como que tentativas de dar resposta, de maneiras distintas, ã questão do subdesenvolvimento. 0 Concretismo sobretudo (mas tal perspec-.; tiva não está ausente nos movimentos subseqüentes de perspectiva similar), na sua radicalidade experimental, procura situar-se numa posição de ponta no cenário das letras mundiais. Arroga-se herdeiro de uma tradição de grandes mestres literários da modernidade (Mallarmé, Joyce, Pound, Cummings) e pos- tulador e realizador de uma produção poética absolutamente original e nova, a ser irradiada para os demais países (dando continuidade ao projeto de Oswald de Andrade de produzir uma poesia "tipo exportação"), invertendo assim o usual trajeto das idéias do centro para-a periferia (da matriz para a colônia, dos países desenvolvidos para. os subdesenvolvidos) .• Verifica-se aí uma tentativa de, pelo menos no âmbito da arte, superar o problema do subdesenvolvimento. Os artistas que optam pelo engajamento político-social mais explícito (dentro de uma linha de esquerda) procuram resolver a questão do subdesenvolvimento instrumentalizando a arte de forma a utilizá-la como meio de acesso ãs camadas socialmente exploradas da população e como meio de conscientizã-las politicamente. Não logram, porém, ir muito além do nível das intenções. 0 momento político-cultural é fértil em debates e as respostas que a poesia vai dar ãs questões que se vão colocando então é igualmente fértil. Da poesia experimental mais radical, onde até mesmo o signo lingüístico vai se encontrar abolido, ao aproveitamento da poesia de cordel, agora impregnada de conteúdos políticos, o espectro das opções poéticas possíveis talvez nunca tenha sido tão vasto. 213 3.3.2 Análise Em Novas cartas chilenas, já a partir do próprio títu- lo escolhido, pode-se perceber a nova orientação que Paes vai dar ã sua poesia. A obra tomada como referência, as Cartas chilenas cuja autoria mais provável, depois de largo tempo de polêmicas, tem sido atribuída ao poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga (Porto, 1744 - Moçambique, 1810?), que viveu parte de sua vida em Vila Rica, Minas Gerais, envolvendo-se na Inconfidência Mineira - é um panfleto satírico contra os desmandos do Governador Luís da Cunha Pacheco e Menezes, desafeto político do poeta, que governou Minas de 1783 a 1788. Para além das desavenças meramente pessoais, é-de sç destacar o significado político das: Cartas.- Antonio CANDIDO insiste neste ponto: "0 fato, porém, ê que a sátira do bem-pensante e honrado Critilo (pseudônimo do autor das Cartas) desnudava, através da atuação de um régulo, as iniqüidades potenciais do sistema: daí o seu significado político e o valor de índice duma época". 2 4 "Sátira" e "crítica política", elementos componentes do texto do árcade setecentista, são os dois termos-chave para a compreensão da nova atitude poética de José Paulos Paes. Ë através da intenção satírica e da crítica político-social que o poeta vai revisitar agora a história do Brasil nestas Novas cartas chilenas, destacando do "continuum" temporal certos momentos tidos como importantes, do Descobrimento ao Movimento dos Tenentes, resgatados cronologicamente, e investigando o significado político-social desses momentos ã luz de 214 um engajamento que, pela crítica corrosiva a varias figuras representativas das classes dominantes e pela identificação com as lutas e revoltas dos social, econômica e politicals-t te oprimidos, revela uma postura visivelmente de esquerda c A epígrafe que abre Novas cartas chilenas de Paes é transcrita do prólogo de Cartas chilenas: "Dois são os meios por que nos instruímos: um quando vemos ações gloriosas, que nos despertam o desejo de imitação; outro, quan:do vemos ações indignas, que nos excitam o seu aborrecimento". Esses dois meios aí explicitados de se aprender com as ações humanas encontram paralelo possível nas duas atitudes fundamentais do poeta em relação aos fatos da história do Brasil em Novas cartas chilenas: de um lado, diante dos poderosos e de suas "ações indignas", é visível a intenção satirizante do poeta - o recurso ao humor, ã mordacidade, ã ironia, o uso recorrente da paródia de textos célebres como Os Lusíadas, de Camões, a "Carta" de Caminha, a oração "Pai Nosso", etc. -; de outro lado, diante dos perdedores, diante dos mártires da história, daqueles que se engajaram na luta frente ã exploração econômica e à miséria social, responsáveis, portanto, pelas referidas "ações gloriosas", a atitude do poeta é de plena simpatia e envolvimento, de absoluta identificação, e, conseqüentemente, de expressão, via poesia, de uma indignação comovente em face da derrocada de cada um desses empreendimentos plenos de um real heroísmo. Distanciamento corrosivo diante dos poderosos, e identificação emotiva em relação , aos oprimidos e aos que se revoltam são as disposições básicas do poeta diante do farto material que a história põe ã disposição de sua poesia. 215 Ä primeira atitude destacada pode ser conferida de forma exemplar no poema "Os navegantes": OS NAVEGANTES Tenham sanhas, querelas, tempestades, Os mares nunca dantes navegados. No rude mais se alimpa e mais se apura A estirpe dos barões assinalados. Cante o vento na rede das enxãrcias. A.fane-se o marujo na partida. Impe o veíame inquieto, corte a proa 0 infinito das ãguas repetidas. Ande a estrela cativa do astrolãbio. Mostre a bússola valido caminho. Nas cartas se escriture todo achado e Fama nos vira em tempo asinho. Achar ë nossa lida mais constante E lucro nosso empenho mais vezeiro: Hemos a gula vil. do- mercador Num coração febril de marinheiros. Pene- o mouro na gleba, que buscamos Não colheitas de terra, mas navais. No comércio marítimo fundamos Opulencia, destino, capitais. Almejamos Cipangos.misteriosas, Fabulosas Catais, índias lendárias. As latitudes são-nos desafio, Sendo as ondas do mar nossa alimãria. Diga o zarolho, pois, da grã porfía da Lusitana grei contra o oceano, Recorde embora o Velhò do Restelo Da fama e da ambição o ledo engano. Um dia, nos brasis, de boa aguada,. Havemos nosso ocaso de encontrar. E, algemado ã conquista, hã de morrer Aquele Império que nasceu do mar. 0 poema "Os navegantes" remete jã de imediato a um outro texto da tradição da literatura: Os Lusíadas, de Luís de Camões. Versos intèiros, a seleção lexical, recursos estilísticos, a métrica, referência direta a episódios do poema 216 épico e ao próprio autor lusitano sobejam no poema de Paes. A intenção, portanto, de estabelecer uma espécie de diálogo com o texto camoniano é óbvia. No entanto, diferentemente do que se observou com relação a certos poemas do primeiro livro de Paes, como V. Drummondiana" e " Mu ri li ana" , entre outros, a intenção do poeta não é a de, através de uma apropriação dos recursos composicionais de um outro poeta, aproximar-se de uma perspectiva ideológica similar â sua, mas sim de, através desses recursos, afastar-se de forma mais ou menos radical da sua intenção original. Conceitos importantes da teoria literária precisam ser verificados aqui: a "intertextualidade" e a oposição "paródia" x "paráfrase". 0 problema da interrelação dos enunciados lingüísticos é complexo e objeto de diferentes abordagens. Todo discurso estabelece sempre algum tipo de relação com os outros discursos possíveis. 0 russo Mikhail BAKHTIN, entre os teóricos da linguagem e da literatura, é um dos autores que insistem na natureza social e dialõgica de toda a linguagem. 25 No âmbito da literatura, essa realidade tem sido apontada como essencial â própria natureza do discurso literário. Entre os autores que sobre ela se debruçaram, Julia KRISTEVA, partindo de muitas das considerações de Bakhtin, porém in corpo ran do-as ã perspectiva da semiótica, é nome referencial: 0 significado poético remete a o u t r o s significados discursivos, de m o d o a serem l e g í v e i s , no e n u n c i a d o poético, vários outros discursos. Cria-se, assim, e m t o r n o d o s i g n i ficado poético, um e s paço textual múltiplo, cujos elementos são s u s c e t í v e i s de a p l i c a ç ã o n o texto poético concreto. Denominaremos este e s p a ç o de i n t e r t e x t u a 1 . 2 6 217 Um texto é, na verdade,.o cruzamento de vários textos: "Nesta perspectiva, claro é que o significado poético não pode ser considerado como dependente de um único código. Ele é ponto de cruzamento de vários códigos (pelo menos dois)> se encontram em relação de negação um com os outros". 2 7 que Esta última passagem recebe formulação complementar mais clara a seguir: "o texto poético é produzido no movimento complexo de uma afirmação e de uma negação simultâneas de um outro texto". 2 8 A "intertextualidade", vista assim enquanto algo que é essencial ao próprio discurso literário ;( KRISTEVA: "o espaço intertextual (...) é o lugar de nascimento da p o e s i a " 2 9 ) , por- tanto algo que é comum e necessário a qualquer texto literário, adquire também o estatuto de procedimento composicional na medida em que o diálogo ê buscado propositalmente pelo autor. Ë o caso de "Os navegantes", por exemplo, em que a referência ao texto camoniano não surge por acaso, mas sim de forma intencional. Aqui, os conceitos de "paródia" e "paráfrase" , conceitos tradicionais da retórica e da poética, porém também objetos de reflexão teórica mais recente, exigem consideração. Affonso Romano de SANT'ANNA trata destas questões em um estudo bastante suscinto e didatizado: Paródia, paráfrase e cia. Neste trabalho, o autor propõe alguns diferentes delos" envolvendo os conceitos citados, "mo- interrelacionando-os, em alguns casos, a outros conceitos como os de "estilização" e de "apropriação". Entre estes "modelos", o mais simples, aquele que opõe exclusivamente "paráfrase" a "paródia", e que o crítico vai tornando mais complexo ao longo do seu estudo 218 através da apresentação de outros modelos, é o que se afigura o mais produtivo para a presente análise literária. Segundo SANT'ANNA, "falar de paródia é falar de "intertextualidade das diferenças'"; "falar de paráfrase é falar de ' intertextualidade das semelhanças'". 30 A "paródia" parte de um determinado discurso para deformar seu sentido original, impondo assim a diferença. A "paráfrase" reforça os sentidos do discurso de partida; ressalta a semelhança. 0 crítico, não muito distante de certas noções da lingüística estrutural, vai dizer que a "paródia" e a "paráfrase" compõem dois eixos: um "eixo parafrãsico" e um eixo "parodístico". Desta forma, "a paródia, por estar do lado do novo e do diferennte, é sempre inauguradora de um novo.paradigma. De avanço em avanço, ela constrói a evolução de um discurso, de uma linguagem, sintagmáticamente". Em contraste a isto, "a paráfrase, repousando sobre o idêntico e o semelhante, pouco faz evoluir a linguagem. Ela se oculta atrás de algo jã estabelecido, de um velho paradigma". 31 Ideologicamente, as duas operações têm ressonâncias importantes: "Do lado da ideologia dominante, a paráfrase ê uma continuidade. Do lado da contra-ideologia, a paródia é uma descontinuidade". E ainda: "Na paráfrase alguém está abrindo mão de sua voz para deixar falar a voz do outro. Na verdade, essas duas vozes, por identificação, situam-se na área do 'mesmo'. Na paródia busca-se a fala recalcada do 'outro'". 32 A luz dessas noções, seria interessante investigar o tipo de diálogo in.fcertextual que o poema transcrito de Paes vai estabelecer com Camões, indagando mais detalhadamente dos sentidos possíveis dessa operação. 219 O poema "Os navegantes" tem ao todo oito estancias, sendo cada uma delas composta por quatro versos decassilábicos. Os decassílabos são todos eles heróicos (acentuação principal na sexta e na décima sílabas), com exceção do último verso do poema, um decassílabo sãfico (acentuação principal na quarta, na oitava e na décima sílabas). Quanto ãs rimas, são observadas entre Q segundo :e o quarto de cada estancia, excetuando—se a de numero cinco, com rimas também entre os versos primeiro e terceiro. Os padrões fónicos entre os pares de rimas são bastante variados, não havendo qualquer repetição entre as estâncias: estrofe 1 ("-ados"); 2 ( "tida ( s) " ) ; 3("inho"); 4 ( "-eiro ( s) " ) ; 5("-amos"), (-"ais"); 6 ("-ãria(s"); 7 ("-ano"); 8 ("-ar"). - Ouanto aos aspectos^formais mais exteriores, predomina neste -poema,--portantOr,-~_uma--regularidade - bastante evidente . ; Um-a-pr-imeira^ aproximação com a poesia de Os - Lu siadaspode ser tentada aqui neste nível. Em Camões, a regularidade formal é evidente e característica do classicismo que anima a sua poesia: todas as estâncias de seu longo poema épico são oitavas compostas por decassílabos heróicos mesclados a decassílabos sãficos. Todas as oitavas do poema .obedecem a um mesmo padrão rímico: abababcc. Este tipo de rigor composicional, esta obediência estrita a um padrão formal pré-fixado, típica de lima postura classicizante diante da poesia, é resgatada em certa medida no poema de Paes, como se apontou acima. Mas, aqui neste nível de abordagem, o uso do decassílabo, e em especial do decassílabo heróico, é que vai remeter, de forma mais explícita, o texto de Paes ao de Camões. 0 decassílabo ê metro que se introduz na poesia em língua portuguesa no Renascimento, a partir da influência italiana. Ë o metro único da poesia épica 220 de Camões, resgatada aqui referencialmente, e dos seus sonetos, alternando com o hexassilabo nas demais formas líricas italianizantes (ou classicizantes: a canção, a ode, a elegia, a écloga, etc.) cultivadas pelo poeta. Mas estes paralelos apontados seriam frãgeis demais se não houvesse elementos mais característicos manifestando o dialogo entre os textos. No emprego de certas palavras, na adoção de uma dicção poética que soa a Camões, na citação de versos, na abordagem de uma mesma temática (a da expansão ul- tramarina lusitana), na referência explicita ao poeta ("o zarolho"), verifica-se de forma clara o propósito de retomar o clássico português. üma rãpida abordagem da ...primeira estrofe ë jã bastante -reveladora. Pelo menos dois dos:: versos são-_-re tirado s de Os . Lusíadas.,, e logo da conhecidlssima proposição inicial do poema, nas primeiras estrofes do primeiro canto: Camões - "Por mares nunca dantes navegados"; Paes - "Os mares nunca dantes navegados"; Camões - "As armas e os barões assinalados"; Paes --"A estirpe dos barões assinalados". 0 curioso modo verbal, o imperativo, presente nesta primeira estância do poema de Paes ("Tenham sanhas, querelas, tempestades, / Os mares nunca dantes navegados."), mas também nas estâncias seguintes (p.ex.: "Cante o vento na rede das enxãrcias"; "Mostre a bússola válido caminho"; "Pene o mouro na gleba"; etc.) ecoa bastante próximamente os versos da terceira estrofe do mesmo primeiro canto do poema épico: "Cessem do sãbio Grego e do Troiano / As navegações grandes que fizeram; /Cale-se de Alexandro e de Trajano / A fama das vitórias que tiveram; / Que eu canto o peito ilustre Lusitano, / (...)". 221 Referência explicita ainda a Camões ë feita na estrofe sétima em pelo menos duas passagens. Primeiro: "Diga o zarolho, pois, da grã porfia / Da lusitana grei contra o oceano". "Zarolho" ê epíteto que alude ã deficiência visual do poeta portugués. A "grã porfia" diz respeito a todo o processo de conquista marítima lusitana (nomeadamente a viagem de Vasco da Gama ãs índias), matéria central da epopéia de Camões, cuja composição ("Diga o zarolho (...)") ë aqui referida diretamente. Segundo: "Recorde embora o Velho do Restelo / Da fama e da ambição o ledo engano.". A passagem evoca famoso episó- dio de Os Lusíadas, quando a armada portuguesa encontra-se em preparo e prestes a partir, e na praia, onde todo o movimento se" verifica, um " homem velho (o "Velho do Restelo") advertede forma arrebatada contra.os perigos morais da conquista ultramarina, condenando aquele que para ele é seu verdadeiro móvel, a cobiça, escondida por trãs do nobre ideal de expansão da "Fé" e do "Império". 0 episódio do Velho Restelo ë um dos momentos de contra-ideologia dentro do texto=de Camões, reservado, em sua maior parte, sem restrições, ã louvação entusiasmada dos heróis portugueses e de seus feitos. O léxico escolhido por Paes e ainda alguns detalhes de sintaxe ressaltam a intenção de resgatar o texto clássico. 0 uso do imperativo, que forja paralelo evidente, jã foi apontado. Ainda a nível de sintaxe ë de se destacar o emprego de uma figura com o hipérbato, muitíssimo comum no texto camo- niano, e que trai a intenção do autor português de se aproximar de uma dicçãó latinizante: Paes - "Da fama e da ambição o ledo engano", ao invés da ordem natural, "o ledo engano da fama e da ambição"; em Camões e na poesia de carãter clássico, 222 esse. tipo de inversão é muito comum - "E vós, ó bem nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade", ao invés de "da antiga liberdade Lusitana". A nível lexical as aproximações são muitas. A utilização de um adjetivo como "asinho" ("E fama nos virã em tempo asinho"), ou de formas verbais como "alimpa" ("No rude mais se alimpa (...)") e "hemos" ("Hemos a gula vil do mercador") apontam para uma intenção arcaizante óbvia no texto do poeta moderno. Termos relacionados ao universo da marinhagem, e aqui tipicamente da marinhagem ã vêla, são outro Índice de paralelo: "enxãrcias", "veíame", "astrolãbio"; : e ainda certas expressões verbais: "afane-se o marujo na partida", "impe o veíame inquieto". Ë ainda termos de um registro evidentemente bastante elevadoy erudito, pouco correntes, apontam para a intenção de revestir o-poema de Paes de uma-ãuiea de classicismo: "sanhas", "querelas", "lida", "vezeiro", "alimãria", "porfia", "grei", "Cipangos", por exemplo. Essas observações acabam por evidenciar o grande cuidado artesanal e apuro formal do poeta moderno ao procurar resgatar a dicção do poeta quinhentista português. .Um cuidadoso leitor da poesia clássica em língua portuguesa surge- al. Novamente pode-se falar aqui daquele Paes "poeta dos livros", autor de uma poesia que se alimenta da própria poesia. A aproximação ao texto de Camões revela-se de tal forma."amorosa" por parte de Paes que a intenção critica em relação ã perspectiva ideológica que a alimenta como que se atenua. Diferentemente de um outro poema desta mesma série, como "A cristandade", em que um texto ê retomado paródicamente com intenção satírica muitíssimo contundente (nesse caso, como se verá, a oração cristã "Pai Nosso"), e onde uma apropriação carregadamente distorcedora se verifica, 223 a apropriação aqui de Camões é bem mais delicada, como se o poeta criticasse sua valoração do ideal da expansão maritima, mas ao mesmo tempo quisesse prestar homenagem ã sua poesia. Seria produtivo mergulhar então no texto de Paes para ver de que forma a critica é exercitada. Nas ,três primeiras estrofes de "Os navegantes", a perspectiva enobrecedora que anima boa parte de Os Lusíadas é resgatada sem dissensões. Por trás desses versos evidencia-se jã um sujeito poético que não é mais imediatamente o próprio poeta, como se verificou na totalidade.dos poemas dos livros anteriores de Paes, mas sim um "outro". 0 poeta vai atribuir esses enunciados a outros, aqui no caso aos próprios navegantes. São eles q u e s u p o s t a m e n t e , em tom-exaltado e confiante, proferem de maneira imperativa - o que al se lê. Na primeira estrofe, as "sanhas", "querelas" e "tempestades" dos. mares que eles estão a singrar, longe de serem motivo de adversidade e desânimo, são maneira de mantê-los em forma, de melhor- prepará-los: "No rude mais se alimpa e mais se apura / A estirpe dos barões assinalados.". A autocaracterização "barões assinalados" (os varões que se distinguem dos demais), originalmente da pena de Camões, revela uma auto-estima apurada, uma consciência do próprio valor, um en.obrecimento e uma heroicização patentes. Repare-se nas sugestivas sonoridades da primeira estrofe, no seu revigoramento dos sentidos al embutidos. Os dois primeiros versos alternam vogais médias e anteriores nasais e orais, âs vezes um pouco menos, às vezes mais abertas. Nas sílabas tônicas, as de maior destaque, predominam os "ee" e "aa" orais e nasais: 224 (verso 1) Tenham sanhas, querelas, tempestades /ë//ã/ /ã//a/ /ê//ë//a/ /ë//ê//a//i/ (verso 2) Os mares nunca /u/ /a//i/ /ü//a/ dantes navegados. /ã//i/ /a//e//a//u/ As vogais mais abertas orais intercaladas ãs um pouco mais fechadas nasais corresponde a evocação da amplidão e do movimento do mar imenso. Compondo um certo contraste, no terceiro verso, vogais mais.-f echadas—anteriores e posteriores ("alimpa"; "rude" e "apura") predominam nas sílabas tônicas. A sonoridade de um vocábulo como "rude", colocado no inicio do verso,-ë importante : a própria idéia de "rudeza" como que está contida no forte e vibrante /R/ inicial, seguido pelo fechado e posterior /u/ e -pelo oclusivo /d/. A vibração rasgante do ar na garganta no fonema inicial, o fechamento da boca no som vocálico e a explosão do ar na oclusiva final acentuam a sensação de obstáculo, de dificuldade, de estreitamento que está sendo evocada. A conjunção de som e sentido al como que contamina todo o verso. A maior abertura dos sons vocálicos dos versos iniciais sucede um maior fechamento: "rude", "alimpa", "fip.ura". Esses sons vocálicos evocam os ângulos agudos, os afunilamentos, que tão bem ressaltam a idéia de um aprimoramento via provações, de refinamento, enfim, al referida. Em todos os versos da estrofe abundam os sons consonantais oclusivos: verso 1 - "tenham","querelas", "tempestades"; 225 verso 2 (oclusivas orais mescladas ãs nasais) - "mares", "nunca", "dantes", "navegados"; verso 3 - "rude", "alimpa", "apura"; verso 4 - "estirpe", "dos", "barões", "assinalados". A agitação dos mares tempestuosos e a provação dos navegantes têm inte- ressante correspondente sonoro na turbulência e dureza das oclusivas orais e no envolvimento volumoso das oclusivas nasais. Na segunda.e na terceira estrofe, o tom desta primeira tem continuidade. É com uma mesma predisposição imperativa que os navegantes, depois de se terem dirigido ao mar ("Tenham sanhas, querelas, tempestades / Os mares nunca dantes navega-, •. dos."), dirigem-se agora a outras realidades do universo da expansão marítima., Sintaticamente,, as estruturas , são recorrentes, o que acentua, o parentesco , entre as partes, e da a idéia de uma.unidade inicial entre estas-primeiras estrofes. No início da segunda estrofe, uma primeira atenção recai sobre o "vento": "cante o vento na rede das enxãrcias". Repare-se nos contrastes sonoros do verso: na primeira parte, a concreção do vento no som cheio dos .fonemas vocálicos nasais e no fricativo velar /v/ do próprio termo "vento"; no final, o contraste_:de novo.s._ padrões sonoros , sobretudo era- "das-enxãrcias" , onde fonemas vocálicos orais abertos ocupam as sílabas tônicas e fonemas consonantais fricativos alveolares e palatais surdos se alternam -.aqui tem-se sugerido o vento em chapa a atritar-se (ressalte-se a .importância das fricativas pa- ra essa sensação) com as redes que pendem dos mastros. Do vento, o foco passa para os marujos, destes para o veíame e daí para a proa cortando o mar. Hâ algo de cinematográfico nessa captação de detalhes em progressão de elementos e realidades da caravela, dispostos coordenadamente como numa montagem, 226 que pouco a pouco vão dando as dimensões e os sentidos do todo. Destaque-se o belo verso final da segunda estrofe: "(...) corte a proa / O infinito das ãguas repetidas", onde a imensidão do mar ë reiterada pela relativa redundância semântica ("infini- to", "ãguas repetidas"). Na estrofe terceira, o processo verificado na anterior se repete, agora jã não mais destacando-se. elementos visivelmente concretos ligados â embarcação e. ao movimento em sua superfície, mas sim exclusivamente â atividade marinheira mais interna: a preocupação com a direção - "astrolãbio" e "bússola" - e com o registro dos achados'- "Nas cartas se escriture todo o achado". 0 verso final da terceira estrofe ê como que o ponto de convergência de toda a agitação e atividade- que-_.vinham séndo mencionadas"" desde--o primeiro verso;- ë como-que um ponto de chegada , a-razão ..final de-todas, aquelas-ações Ressalte-se aqui o seu significado em termos de uma visão de mundo que se estã querendo explicitar: "E fama nos virã em.tempo asinho.". É importante destacar a natureza dessa "fama", no texto camoniano envolta obviamente de valoração positiva (não se esqueça aqui o ideal da expansão da "<F.ê" e do "Império" que alimenta a voz dominante do poema), mas que aqui vai receber um outro direcionamento por parte de Paes. A estrofe quatro representa uma espécie de viragem em termos de expectativas, tendo-se em vista, obviamente, uma leitura que acentue a consonância inicial de "Os navegantes" com o espirito que anima o poema épico luso. Aqui, a natureza da "fama" mencionada anteriormente começa a ser explicitada. Na autocaracterização dos navegantes que domina os quatro versos desta estrofe, nada remete àquele ideal cruzado e aristo-^ 227 crático de expansão da "Eê" e do "Império". Também a autocaracterização dos navegantes feita no inicio deste poema ë posta em xeque em seus sentidos mais elevados, mais ideais ("No rude mais se alimpa e mais se apura / A. estirpe dos barões assinalados."). O significado mais eminentemente material das navegações e descobertas ë acentuado: "Achar ë nossa lida mais constante / E lucro o nosso empenho mais vezeiro: / ( -. . . ) ". Surge aqui uma tensão ideológica evidente na voz que profere estas palavras, que faz desmoronar aquela atribuição de enunciados feita pelo poeta aos marinheiros. Aqui ë naturalmente o critico moderno que toma a cena e corrói por dentro, de forma nada sutil, o discurso. Paes sugere atribuir inicialmente aos navegantes um discurso independente, assentado-naqueles valores defendidos pela visão ideal do poeta de Os Lusíadas. 0 paralelo quase parafrástico com o poema épico, somado ao tom positivo e empreendedor dos navegantes e mais a referência ao refinamento da "estirpe dos barões assinalados", autocaracterização idealizante, e enobrecedora, como que autorizam essa leitura. A confissão " e lucro nosso empenho mais vezeiro" destrõi a independência do discurso, pois não são os navegantes que falam por ela, tão pouco os seus ideólogos mais idealizadores e exaltados (entre eles Camões), mas sim o poeta moderno, situado em posição deslocada, distante rio tempo, no espaço, e no universo desvalores referenciais. Instaura-se aqui, portanto, a paródia: retoma-se a palavra de um "outro" para alterar-lhe os sentidos originais. Ideologicamente, o significado desta operação jã foi apontado: a paródia está "do lado da contra-ideologia"; ela "ê uma descontinuidade", uma "deformação"; seu efeito ë de "deslocamento" em relação aos 228 sentidos originais ' (ÍBANT'ANNA) . como tal, ela opera uma critica por dentro do próprio discurso. A operação executada por Paes ê complicada por certos detalhes do texto: ele sugere destruir a imagem ideal inicial dos navegantes revelando sua suposta imagem real (de "barões assinalados" passam a mercadores empenhados exclusivamente no "lucro"). Porém os versos finais da quarta estrofe problematizam um pouco essa nova avaliação: "Hemos a gula vil do merca- dor / Num coração febril de marinheiros." 0 desnudamento, a critica contundente ficam por conta do primeiro destes versos: "Hemos a gula vil do mercador". "Gula", por si só, é jã termo de conotação negativa; acrescido do adjetivo "vil", tem redobrado este seu sentido. "Mercador" recebe secularmente avaliações muito pouco entusiasmadas: a expansão da atividade mercantil está no cerne do surgimento do mundo moderno, da economia de carãter capitalista, da visão liberal do mundo; tanto para uma cosmovisão.religiosa e aristocrática, como a medieval . (na qual ainda está muito mergulhado o Camões épico, a despeito do seu vinculo com o Renascimento e o Humanismo), quanto para uma visão moderna assentada nos ideais do socialismo, de critica política e social (a vi- são de Paes neste instante de sua poesia), o que.o "mercador" representa não tem nada de positivo. Diferentemente, o verso seguinte ("Num coração febril de marinheiros") não pode ser visto no mesmo nivel daquele. Sintaticamente, os dois versos têm muitos paralelos, acentuados ainda pela disposição visual dada pela estruturação do poema: "gula"/"coração", "vil"/"febril", "do mercador"/"de marinheiros". Porém, "coração", poeticamente a sede dos sentimentos, 229 da alma, do que ë interior e essencial ao homem, afasta-se em seus sentidos de "gula", que remete a atividade humana bem menos "nobre". Em oposição ao sempre idealizado "coração", muito bem abrigado na caixa torãxica, evoca-se aqui a atividade digestiva de estômago e intestinos, situados no mais vulnerável ventre, órgãos tão associados ã carnalidade, à materialidade imediata do humano. Também "febril" não pode ser posto no mesmo nivel de "vil". O sentido negativo deste último ë óbvio. Jã "febril" reveste-se de outras nuanças. 0 dicionário dã alguns outros termos no plano dos sentidos figurados: "exaltado", "apaixonado'-V, "febricitante". 33 A exaltação al referida encontra consonância no tom animado e vibrante geral, das estrofes. Tem muito de febril a voz que se exprime neste poema. Ä frieza e ao cálculo do comerciante (do "mercador") opõe-se aqui o ca- lor, a vibração, o entusiasmo, enfim a "febre" do "marinheiro". "Marinheiro", apesar de poder confundir-se com o "mercador", é também personagem objeto de visões mais idealizadas, pelo seu vinculo com a aventura, pelo seu contato com o novo, com o desconhecido. Constitui figura que pode se^ heroicizada, ao con- trário da outra. Resumindo: a caracterização do navegante, a despeito do desmascaramento central operado pelo poeta, resvala ainda no que sobra de uma valorização positiva. Assim, não temos o navegante trasladado maniquelstica e taxativamente do rol dos "heróis" ao rol dos "vilões", de forma excessivamente redutora, mas sim entrevisto de modo um pouco mais tenso e intrincado. Mas a realidade material do móvel da conquista ultramarina estã revelada, e ë ela que dã a tônica do poema. A estrofe número cinco ressalta esta perspectiva. No primeiro verso 230 repete-se o recurso ao imperativo, dominante nas três primeiras estrofes, e responsável pelo carãter de exaltação, de ânimo e disposição positivos verificados. Lã, porém, não havia qualquer dissonância interna ao enunciado, como ocorre aqui. A escravização do inimigo secular (o "mouro") para substituir, nos trabalhos internos na lavoura, a escassa população portuguesa, agora engajada na colonização ultramarina, ë problema de dimensões sociais ausente das primeiras estrofes: "Pene o mouro na gleba, que buscamos / Não colheitas de terra, mas navais.". Lã era a visão grandiosa do mar, a sensação de enobrecimento daqueles que se lançam aos seus trabalhos, o movimento nas embarcações como que cinematográficamente captado, a referência ao trabalho marinheiro o que ganhava a cena. Aqui, após a viragem critica apontada.na estrofe anterior, são os bastidores miseráveis da exploração marítima que vão surgindo aos olhos. A este cenário opõe-se, em evidente contraste, a exuberância dos ganhos comerciais:."No comércio marítimo fundamos / Opulência, destino, capitais.". Repare-se na sugestiva enumeração deste último verso. A certeza das conquistas materiais e do poder que isso acaba por significar ë tamanha, que uma idéia abstrata, transcendente, superior ao humano como a de "destino", surge aqui nomeada entremeadamente a "opulência" e "capitais", envolvida, cercada, subordinada, portanto, ao humano e ao material. "Fundar o próprio destino" significa negar o transcendente e afirmar as potencialidades do humano numa dimensão exclusivamente material, operação que está na gênese da modernidade. Na sexta estrofe, alguns objetivos das viagens marítimas são enumerados. A pluralização dos nomes próprios ( -"Cipangos", 231 "Catais", "índias") dá a estas referências um certo ar de indeterminaçáo geográfica, transporta-as para um plano mèio mágico, meio mítico, que a adjetivação ajuda a ressaltar: "Cipangos misteriosas", "fabulosas Catais", "índias lendárias". É mistério, fábula e lenda o que cerca essas regiões desconhecidas do homem europeu. Há um certo fascínio nestas evocações, que a sonoridade dos versos de.Paes deixa transparecer: "Almejamos Cipangos misteriosas, / Fabulosas Catais, índias lendárias.". Observe-se primeiramente.os "ss" finais de todas as palavras, e no interior de algumas delas ("Cipangos", "misteriosas") , funcionando como um liame sonoro seguró entre elas, prolongando sua extensão quando se as pronuncia - qualidade das fricativas -, reverberando, em síntese,.no interior dos versos. Repare-se nos ecos internos, ligando os segmentos sintáticos: do verbo ao primeiro objeto enumerado: "almejamos", "Cipangos" - o /ã/ nasal e fechado nas sílabas tônicas; do primeiro ao segundo, e aqui fazendo a ligação entre os versos: "mister 4 riosas", "fabulosas" - todo uma rima interna pode ser escutada ai; e do segundo ao terceiro: "Catais",, "lendárias" - o /a/ aberto e as oclusivas llnguo-dentais surda /t/ e sonora /d/ nas sílabas tônicas -, e a inversão dos ditongos: "Catais" /ay/ para "índias" /ya/ e "lendárias" /ya/. Nos versos três e quatro da estrofe resgata-se uma certa dimensão heróica da conquista, que havia sido posta em questão, como se destacou. As dificuldades das navegações são reiteradas: "As latitudes são-nos desafio". As ondas do mar recebem evocação sugestiva: "Sendo as ondas do mar nossa alimãria". Os barcos sobre o,mar são postos em paralelo com os cavaleiros sobre os seus cavalos. Implicitamente, ressoa aí.o ideal da cruzada: os navegantes 232 não são meramente comerciantes, são também heróicos cavaleiros. Novamente, vê-se oscilar aí a perspectiva ideológica dominante do poema. Esta estrofe, diferentemente das duas anteriores e em consonância com as primeiras, como que se desloca para o pólo da paráfrase. A sétima estrofe, como jã se destacou, traz referências diretas a Camões (o "zarolho") e Os Lusíadas. .A matéria central do poema épico é.destacada: a "grã porfia da Lusitana grei contra o oceano"; esta matéria, que pela voz central do poema recebe tratamento entusiasmado e positivo, é porém vista em certos segmentos do texto de forma bastante crítica, como é o caso do episódio do Velho do Restelo, aqui também resgatado: "Recorde embora, o-Velho.-do.. Res te lo-/ Da fama-e-da .ambição o ledo engano."v Assim,"nesta estrofe tem-se - referidas duas diferentes avaliações da expansão ultramarina, retiradas ambas do próprio texto camoniano: positivamente avaliada, a expansão é "a grã porfia da lusitana grei contra o oceano"; no outro pólo, ela é, porém, "o ledo engano da fama e da ambição". Pode-se dizer que a crítica paesiana via paródia aqui neste poema em muito se aproxima desta.última perspectiva. É o que vai ficar claro na última estrofe. Aqui, o fruto do ideal da conquista ultramarina (os "brasis de boa aguada") é visto como o próprio fim do impulso que lhe deu origem ("E, algemado ã conquista, hã de morrer / Aquele Impériój que nasceu do mar.") . Repare-se na pluralização do nome próprio "Brasil" e na sua grafia em letra minúscula, o que respectivamente o aproxima e o afasta de mesmo recurso usado na estrofe sexta do poema em relação a outros 233 topónimos. O termo "brasis" possui um alto grau de indeterminação, muito ao contrário de "Brasil". No plural, como que se dilui a sua identidade, uma sua possível unidade. Esta é a visão do colonizador, que não pode olhar para o Brasil.enquanto algo singular e estando num mesmo nível - dai o plural e a grafia com letra minúscula da letra inicial. Contraste-se isso com "Cipangos", "Catais", "índias": al o plural idefinidor, diluidor de uma identidade especifica, é o mesmo, porém a distância ideal em que esses nomes como que. mágicos se encontram do universo português no início do processo da conquista ( o que pode ser "lido" na maiusculização da primeira, letra) está bastante distante da subordinação futura, referida nesta.última estrofe, em que se.encontra o Brasil colônia em relação â matriz. índice desta .mesma idéia ê o. uso dos., adjetivos : â idealização de . termos como "misteriosas", "fabulosas", "lendárias", opõe-se um termo de referencial bastante concreto e pragmático como "de boa aguada" ("brasis de boa aguada"). O poema "Os navegantes" exemplifica, portanto, a primeira atitude : mencionada de Paes diante da sua matéria, a história do país. 0 recurso à. paródia deixa entrever certas intenções satíricas, de visível carãter crítico. Os "navegantes" não são vistos numa dimensão idealizante, como dominantemente em Os Lusíadas, executores daquele duplo ideal da expansão da "Fé" e do "Império", "cruzados" que após as conquistas em terra partem agora para o mar, mas sim. dentro de uma perspectiva bem menos ideal, como, aliás, jã vislumbrara o próprio Velho do Restelo camoniano.. Os móveis materiais, econômicos, da conquista é que são na verdade destacados, e ao invés de 234 "barões assinalados", tornam-se eles "mercadores" de "gula vil" é preocupados sobretudo com o "lucro". Porém, esta operação realizada por Paes tem momentos de tensões internas, como se destacou. O texto do poeta moderno, apesar da inequívoca intenção parodística, resvala ãs vezes numa perspectiva que se pode dizer parafrástica; a. voz atribuída aos navegantes está em constante combate com a voz do próprio poeta; ora são os "barões assinalados" (na visão camoniana) quem fala, ora o "mercador" de "gula vil". Essa tensão encontra-se bastante bem delineada, como já se destacou, nos versos três e quatro da quarta estrofe ("Hemos a gula vil do merca- dor / Num coração febril de marinheiros.").. Também na comentada estrofe de número.sete ; esta mesma tensão encontra-se referida nas- -mençõe-S-a-Camões (aqui enquanto configurador de um "eu" poético, que unifica uma certa._.visão positiva e "ideal da expansão) e ao Velho do Restelo ( voz que configura uma con- tra-ideologia internamente ao próprio poema camoniano). Também a tensão- referida da critica ideológica paesiana mesclada ã reverência literária frente :ao poeta Camões corrobora o que aqui se está pretendendo ver enquanto um problema. A intenção satírica se espraia ainda por vários outros poemas de Novas cartas chilenas. O recurso ã paródia, o humor, a ironia - elementos possibilitadores de um distanciamento critico diante da matéria abordada - são sempre mobilizados no sentido de desmascarar os poderosos e as visões idealizantes que se constróem ao redor deles. As vezes a corrosão crítica ê extremamente contundente, como se pode reparar no poema "A cristandade", em que se parodia a oração "Pai Nosso". 235 A primeira estrofe é jã bastante reveladora: -Padre açúcar, Que estais no céu Da monocultura, Santificado Seja o nosso lucro, Venha a nos o vosso reino De lúbricas mulatas E lídimas patacas, Seja feita A vossa vontade, Assim na casa-grande Como na senzala. A ironia aí, como se pode ver, é violenta. Em meio â principal oração católica se vão misturando as implacáveis e pouco religiosas intenções dos grandes senhores da colônia. _Criti.ca-se a estes, mas-também a religião, sempre em conluio, e . portanto complacente, com o poderle.a exploração. Porém, a sãtira-se reveste-ãs—vezes, de um humor menos virulento, como ë o caso do anedõtico "L'affaire Sardinha": L'AFFAIRE- SARDINHA 0 bispo ensinou ao bugre Que pão não ë pão, mas Deus Presente em eucaristia. E como um dia faltasse Pão ao bugre, ele comeu 0 bispo, eucaristicamente. O recurso ao diálogo intertextual crítico e revelador, como se destacou, é recorrente. A "Carta" de Caminha, surge retomada no poema "A carta". Os decretos reais, índices de um governo autoritário, centralizador, arbitrário, que concede benefícios a partir.de seus interesses exclusivos e mais imediatos e daqueles que orbitam ao redor do poder real, são parodiados em "A partilha". Os testamentos que asseguram a posse 236 da propriedade dentro do âmbito das famílias mais abastadas são também parodiados em "O testamento", agora aqui na perspectiva de uma "herança espiritual" e "material" deixada dos "altivos" bandeirantes ã sua descendência: bacharéis, latifundiários, financistas. A sátira predomina naqueles poemas que tratam da história do Brasil enfocando as figuras pertencentes ãs classes dominantes. Em quase todos esses poemas, a voz que fala ë atribuída pelo poeta a seus vários representantes (os nave- gantes, o emissário real, o rei de Portugal, os grandes proprietários colonizadores, os bandeirantes, D. João VI fugitivo de Napoleão, D. Pedro I, D. Pedro II, os republicanos, os tenentes revoltosos em 20, etc.),-porém-ê imediatamente corroída pelo discurso.crítico do:próprio poeta (via paródia, humor, ironia). Este procedimento só cede espaço a outro quando a atenção se volta para aqueles episódios históricos imbuídos de um heroísmo revolucionário esmagado em suas intenções pelas forças do poder dominante. AÍ a voz do poeta não é mais marcada por um distanciamento em relação ã sua matéria: agora o humor, a ironia, a paródia cedem lugar a uma efusão apaixonada de revolta e indignação. Representante desta segunda postura é, por exemplo, o poema "Palmares", cuja segunda parte se reproduz aqui: 237 PALMARES II Negra cidade Da liberdade Forjada na sombra Da senzala, no medo Da floresta, no sal Do tronco, no verde Cáustico da cana, nas rodas Da moenda. Sonhada no banzo, Dançada no bumba, Rezada na macumba. Negra cidade Da felicidade, Onde a chaga se cura, 0 grilhão se. parte, 0 pao se reparte E o reino de Ogun, Sango, Olorun, Instala-se na terra E o negro sem dono, 0 negro sem feitor, Semeia seu-milho, Espreme sua cana, Ensina seu filho A olhar para o céu Sem odio ou temor. Negra cidade Dos negros, obstinada Em sua força de tigre, Em seu orgulho de puma, Em sua paz de ovelha. Negra cidade Dos negros, castigada Sobre a pedra rude E elementar e amarga. Negra cidade Do velho enforcado, Da virgem violada, Do infante queimado, De Zumbi traído. Negra cidade Dos túmulos, Palmares. Os quarenta e dois versos encontram-se todos no corpo de uma única estância. Os versos têm metros predominantemen- te curtos: mesclam-se sobretudo versos de quatro, cinco e seis sílabas, a que ocorrências únicas de versos de três, sete e oito sílabas vêm se somar. Dos versos, um deles surge de forma recorrente (ao todo seis vezes) ao longo do poema: "Negra 19 4 cidade". A recorrência deste verso permite segmentar o poema, para a análise, em unidades menores, das quais ele seria o introdutor. Assim, um primeiro segmento se encontra entre os versos um e onze (de "Negra cidade" até "rezada na macumba"). Nos dois primeiros versos, observam-se certas recorrências rítmicas: "Negra cidade / Da liberdade". Ambos são versos de quatro sílabas, com acento principal na quarta. A presença de rima no final dos versos acentua esta proximidade. Ao parentesco no plano das sonoridades, vem juntar-se a ligação sintática entre os segmentos contidos nos versos: "da liberdade" é adjunto adnominal de "negra cidade". Isso tudo acentua a íntima relação semântica ..entre os-termos, como se "negra cidade" ., é ""liberdade" estivessem" ligados "necessária e indissociavelmente. Casam-se sintaticamente, pela própria estruturação da oração, mas este casamento ë ressaltado pelas formas harmoniosas no plano das sonoridades. A estës dois versos, que constituem o- sujeito de uma oração cujo predicado vai se desdobrar ao longo dos próximos, seguem-se outros que rompem com o padrão métrico e rímico aí verificado. 0 terceiro verso, por exemplo ("Forjada na sombra"), tem cinco .sílabas, com acentuação na segunda e na quinta, sem relação rímica com os anteriores. Os outros versos afastam-se ainda mais dos primeiros. Repare-se na tensão rítmica provocada pelos "enjambements" em que as pausas de fim de verso não correspondem ãs pausas sintáticas, deslocadas agora para o meio dos versos: p. ex. "(...) no medo / Da floresta, no sal / Do tronco, no verde /cáustico da cana, (...)". A irregularidade métrica dos versos que compõem o predicado 239 dessa Trimeira oração (respectivamente versos de cinco, seis, seis, cinco, oito e três sílabas), a inexistência de rimas ou outros recursos fónicos que estabeleçam qualquer tipo de consonância sonora entre as partes, a tensão rítmica dos "enjambements", a justaposição de segmentos com uma mesma função sintática (os vários adjuntos adverbiais) alongando indefinidamente a resolução do período funcionam como motivações, no nível dos recursos formais, para os conteúdos aí verificados. Os desequilíbrios, as irregularidades, as tensões - sonoros e sintáticos - ao longo dos versos que compõem o predicado da oração ressaltam justamente as possibilidades semânticas aí presentes: os locais destacados (cf. os vários adjuntos.adverbiais) pelo poeta como lugares em que o quilombo (a "negra cidade-da liberdade") vai surgindo a nível de desejo e opção de liberdade pelo.escravo negro são todos locais de dor, sofrimento, angústia, desesperação, que as formas tensas e tortuosas dos versos muito bem ressaltam. Ë a "senzala", são os trabalhos na fazenda ("verde cáustico das canas", "roda das moendas") , os castigos" ("sal do tronco") e as opções de fuga ("medo da floresta"). Os três versos seguintes, compondo um período de três orações coordenadas, cada uma delas no espaço de um verso, também referem-se a certos "espaços" em que a "negra cidade" vai se elaborando a nível de desejo. No entanto, agora são elementos exclusivamente do universo do negro e que a própria seleção de vocábulos de origem africana vai acentuar, "espaços" próprios não determinados pelo senhor branco, os que surgem aí: o "Banzo", a nostalgia mortal da África, sofrida no íntimo pelo indivíduo desenraizado, morte que implica 240 também uma libertação em relação ã situação servil presente; o "bumba", o espaço da dança e da festa; a "macumba", o espaço do contato com o sagrado, em oposição ã religião católica oficial dos senhores - elementos, em resumo, de afirmação de uma cultura, potencialmente subversivos em relação ã cultura originariamente branca.As' recorrências formais observadas nos versos - estrutura sintática idêntica; orações dentro, dos limites do verso, portanto coincidência de pausas sintáticas e pausas de fim de verso; metro e acentuação iguais entre os dois primeiros ("Sonhada no banzo / Dançada na macumba"); rima en- tre o segundo e o terceiro ("Dançada no bumba / Rezada na macumba") ; recorrência de padrões fónicos ( rimas internas em "sonhada", "dançada", "rezada" e fonemas consonantais oclusivos bilabiais o_rais e nasais e- fonemas: vocálicos- nasais em "banzo", "bumba", "macumba" ) - essas, recorrências dão ao conjunto uma harmonia ausente nos versos anteriores. Assim, aqueles espaços que são impostos pelo senhor branco áo escravo negro (a senzala, os locais de trabalho e tortura, a fuga desesperada) são caracterizados de forma bastante contrastiva em relação àqueles espaços que são exclusivos do negro: os primeiros, como se acentuou, surgem evocados através de versos tensos e tortuosos; os segundos, através de versos em que a harmonia é claramente sensível. Uma segunda unidade pode ser observada entre os versos doze ("Negra cidade") e vinte e seis ("Sem ódio ou temor") . Aqui, aquela "negra cidade" que vai surgindo potencialmente no espaço do engenho (segmento anterior) encontra sua concreta e plena realização. Um único longo período, composto por orações e vãrios segmentos sintãticos dispostos todos sobretudo coordenadamente, preenche o corpo dos versos. 241 Alguns elementos estruturais são índices de uma caracterização positiva desse espaço feita pelo poeta. A idéia de uma harmonia de conjunto encontra-se na recorrência predominante de um certo padrão métrico: dos quinze versos, onze são redondilhas menores; destes onze, oito têm um mesmo padrão de acentuação ( - / - - / ). Repare-se também na presença de ri- mas entre muitos dos versos, o que novamente sugere uma certa consonância, uma certa harmonia: "cidade"/"felicidade", "par- te"/"reparte" , "OgunV'Olorun" , "feitor"/"temor" , "milho"/"f ilho" . Entre os dois primeiros versos do segmento, recurso semelhantemente usado no início do segmento anterior pode ser observado. Como lã ("Negra cidade"/ Da liberdade"), aqui sintática e sonoramente, "negra cidade" vai ligar-se de forma bastante estreita a um termo caracterizador: "felicidade". Enquanto algo ainda não concretizado, enquanto um ideal, o quilombo surgia para o negro cativo como uma possibilidade de libertação; agora o quilombo, efetivado, é para ele a própria felicidade. Seguidamente a esta referência introdutória, o poeta caracteriza mais singularmente este novo espaço. Os contrastes com o engenho são evidentes na perspectiva assumida. Observe-se os três versos que seguem aos dois primeiros: "Onde a chaga se cura, / O grilhão se parte, / o pão se reparte". Todos eles podem ser lidos a princípio no seu sentido mais imediato, mais concreto e palpável, mas são os sentidos mais gerais que os versos propõem os mais sugestivos, os que vão melhor caracterizar o novo espaço. Assim, a "chaga" que é curada não diz respeito somente ã "chaga" causada 242 pelo trabalho exaustivo e pelas punições, mas também a todo o mal "moral" e "social" da escravidão; o "grilhão" que se parte é o "grilhão" concreto do negro acorrentado e também símbolo da escravidão como um todo, subordinação "física" e "espiritual" do homem ao homem; o "pão" que se reparte é o alimento concreto e indispensável, ato, porém, que acaba alçado ã condição de um ato ritual e simbólico, a explicitar a natureza da própria sociedade que se está a fundar, fraterna e igualitária. Se no espaço do engenho a religiosidade negra surgia de forma marginalizada, aqui ela encontra espaço central: "E' o reino de Ogun / Sangô, Olorun, / Instala-se na terra". Além de sugerir que a religião, a espiritualidade, o sagrado não são coisas^desvinculadas da vivência imediata do homem, estes versos ressaltam a caracterização positiva do quilombo enquanto realização de coisas ideais: tem-se aí a idéia do "paraíso na terra", perspectiva comum ã todo o processo de concretização do transcendente, de introjeção de elementos humanizados (valores políticos e sociais) no âmbito do divino. Como se pode ver, o quilombo é apresentado de forma bastante idealizada: espaço da liberdade, da felicidade, sociedade^ fraterna e igualitária, "paraíso na terra". 0 tipo de vida que vai se estabelecer aí tem contornos de igual idealização. 0 negro, livre de dono ou feitor, dá ao seu : trabalho um novo sentido: "Semeia seu milho, / Espreme sua cana". O pronone possessivo nos dois versos ressalta essa idéia de liberdade e construção de um universo próprio, além de apontar para uma sensível modificação da finalidade do trabalho, voltado aqui exclusivamente para o sustento do homem. O resultado 243 "moral" dessa nova sociedade ressoa em direção ao futuro: "Ensina seu filho / A olhar para o céu / Sem ódio ou temor.". A herança que o negro liberto pode deixar para o filho ë muito diversa da herança do escravo. "Olhar para o céu" é ato de sentido vãrio: olhar para cima, ou seja, não mais como escravo submisso; olhar em direção a valores que estão no "alto", portanto valores de evidente superioridade - sociais, morais, religiosos, etc. "Sem ódio ou temor" dã a esta nova atitude um carãter de superioridade evidente: nem o "temor" frente â opressão branca, nem o "ódio", sua contrapartida afirmativa, porém geradora de um processo circular sem saídas a vista (opo- sição "branco" x "negro" a gerar situação de permanente conflito) . A nova herança, o ensinamento ao filho, tem muito de um orgulho positivo, resgate de uma dignidade obscurecida pela opressão. Novo segmento pode ser apontado entre os versos que vão de "Negra cidade" (verso vinte e sete) a "Em sua paz de ovelha" (verso trinta e um). Se no segmento anterior o espaço do quilombo recebeu uma caracterização geral idealizadamente positiva em oposição ao espaço do engenho, aqui esta caracterização prossegue, através de paralelos metafóricos muito sugestivos. A "negra cidade" - realidade cuja singularidade é reafirmada aqui através da redundância "negra cidade dos negros" - ê marcada por uma obstinação cujo vigor é ressaltado pelos paralelos escolhidos pelo poeta: "obstinada" "em sua força de tigre", "em seu orgulho de puma", "em sua paz de ovelha". A caracterização e bastante matizada, indo de um extremo ("força de tigre": agressividade, violência, beligerância, prontidão para o ataque e a defesa), passando por um posto 244 intermédio ("orgulho de puma": altivez moral, auto-estima, su- ,. perioridade), chegando a outro extremo ("paz de ovelha": coletividade, fraternidade, pacificação). O quilombo não ë visto, portanto, pelo poeta de forma unívoca, apesar de não haver em suas avaliações a mínima restrição, a mínima desconfiança diante de uma organicidade tão ideal. O segmento seguinte (entre os versos trinta e dois e trinta e cinco; de "Negra cidade" atéc;"Elementar e amarga") cria uma certa expectativa no que diz. respeito ao destino do quilombo. Recupera-se a princípio a redundância: "negra cidade dos negros", como que numa insistência exasperada dessa sua realidade. Porém algo perturba agora a ordem ideal anteriormente vislumbrada. "Castigada sobre, a pedra rude. e elementar e. amarga" ë expressão de tensos sentidos¡, O- seu desdobrar-se em "enjambements" pelos versos ("(...).castigada / Sobre a pedra rude / E elementar e amarga.") somado a repetição da conjunção cooraenativa " e " e dos diferentes adjetivos para um mesmo substantivo dispostos.em gradação ressalta o tom dolorido que se apreende na voz. do poeta: os "enjanbements" tensionam o ritmo; as repetições e gradaçoes. prolongam a efu — são afetiva do sujeito que enuncia, como se, na sua incoformação com o ocorrido, ele buscasse sempre ainda um novo termo que melhor explicitasse o que ele está .a. sentir e a dizer. Mas a real dimensão do que aí se encontra, apesar do termo "castigada" deixar claro que algo de negativo acontece â comunidade negra, sõ se compreende de fato nos versos seguintes, quando a realidade do ataque branco ao quilombo e sua destruição vão se evidenciar. 245 Novo curto segmento encontra-se entre "Negra cidade" e "De Zumbi traído" (versos trinta e seis e quarenta). Após o recorrente verso "Negra cidade" observa-se uma série de quatro adjuntos adnominais dispostos cada um deles em cada um dos versos seguintes. Verso por verso, uma visão macabra começa a desenrolar-se diante dos olhos, morte e destruição daquilo que fora pintado de forma tão ideal: "velho enforcado", "virgem violada", "infante queimado", "Zumbi traído". Cada expressão dã conta de um determinado grupo de pessoas ("velho", "virgem", "infante"), até chegar a Zumbi, chefe do quilombo, e representante de todos os guerreiros. O adjetivo posposto a cada substantivo dá as dimensões da violência imposta ao quilombo, num crescendo de aviltamentos que vai culminar com o "Zumbi traído", e aqui a traição surge.alçada ã categoria do pior dos suplícios. O curto segmento final ë violentamente sintético: "Negra cidade / Dos túmulos, palmares.,". Só aqui o quilombo é nomeado, como se o seu nome devesse ficar ligado definitiva e exemplarmente ao crepúsculo doloroso que lhe foi reservado. 0 .adjunto, adnominal posposto aqui ã "negra cidade" - "dos túmulos" - precisa ser visto no lugar que ocupa na totalidade do poema. Como se destacou, o conjunto, que.não tem estrofes interiores, pode ser visto, porém, enquanto composto por diferentes segmentos menores, introduzidos cada um pelo recorrente verso "Negra cidade". Cada vez que surge este verso, observa-se uma complementação do seu sentido via acréscimo de um adjunto. Na visão da alteração que vai. sofrendo ao longo do poema, tem-se delineado o percurso do.próprio quilombo: "negra cidade da liberdade", quando o quilombo se vai forjando a nível de possibilidade ainda nos limites do engenho; 246 "negra cidade da felicidade", quando ele se encontra plenamente realizado; "negra cidade dos negros" (duas vezes), quando a ameaça ã sua organização começa a ser pressentida e sua realidade precisa ser reafirmada; "negra cidade do velho enforcado, da virgem violada, do infante queimado, de Zumbi traído", quando a destruição trágica se verifica e a fragmentação daquilo que era orgânico encontra-se.ressaltada pela enumeração dos diferentes grupos etários; e finalmente "negra cidade dos túmulos", quando o circuito se encerra. A perspectiva que o poeta assume neste, poema diante dos acontecimentos da história é bastante diversa da perspectiva vislumbrada em "Os navegantes". Aqui hã uma plena identificação emotiva do poeta com aquilo que ele apresenta. Ele toma, no tom geral,do poema, um partido claro, o dos negros, idealizando sem reservas a organização social, que eles vêm a empreender no quilombo. Vibra com suas alegrias e sofre com as suas derrotas. Não há aqui o distanciamento crítico da ironia, do humor e da paródia.-'A. crítica ã dominação exerce-se agora de forma apaixonada, a partir da adoção de uma perspectiva clara: a comunhão com os socialmente.oprimidos e com os que se revoltam.. Este procedimento repete-se na abordagem de outras passagens da história, como no caso da Incofidência Mineira. Repare-se como Tiradentes surge de forma heroicizada em versos como os seguintes, retirados da parte VII do poema "Os inconfidentes" . Mas reparai, cavalheiros Da Igreja como do Estado, Que um herói ficou de fora, Embora fosse enterrado. 24 7 Tiradentes se recusa Ao vosso fácil museu, Panteón de compromissos, Olimpo de camafeus. Prefere a praça plebéia Ao pé das bibliotecas Onde, a soldo, vosso escriba Faz da verdade peteca. Visão similar encontra-se também em "Calendário", onde revoltas e figuras históricas que se insurgem contra a opressão do poder centralizado são lembradas. Confira-se, a título de exemplo, o seguinte segmento: 1848 A areia do tempo Nada guarda. 0 vento '. Logo - apaga- o equívoco De oprimidos e opressores. Mas, Conciliadores, Lembrai-vos que os -vivos Não enterram mortos Como Pedro Ivo. Voltando-se agora por fim para a história mais recente, o episódio.da revolta dos tenentes na década de 20, ë numa perspectiva idêntica de exaltação idealizada que o então revoltoso e. posteriormente líder comunista Prestes ë evocado. A última estrofe do.poema "Os tenentes" ë bastante eloqüente: Eram tantos '. Um apenas Ficou (resgate de todos) íntegro, lúcido, humano. Sozinho vale por todos. Saudai-o, pois, sob o sol Que prestes serã de todos. A perspectiva ideológica do poeta embutida nestes poemas como que complementa a anteriormente destacada. Naquela, o distanciamento crítico corrosivo .em relação aos poderosos via ironia, paródia, humor poderia simplesmente apontar para 24 7 uma perspectiva independente, distanciada igualmente de tudo, marcada por um ceticismo vigoroso. A identificação emotiva com oprimidos e revoltosos redimensiona o distanciamento, visto reservar-se ele apenas para certos estratos do todo social. Hã ai, na postura global do poeta, um engajamento polltico-social evidente e, na opção que ele faz pelos "párias" da história, vislumbra-se de forma inconteste o intelectual de esquerda. 3.3.3 Conclusão No contraste de Novas cartas chilenas (1954) com.os li- vros anteriores de José Paulo Paes., O aluno (194 7) e Cúmplices (1951) a-despeito das-mudánças-evidentes., alguns traços co- muns permanecem, estabelecendo-j-assim-um possível—1-iame entre eles. A respeito dos-trabalhos anteriores, destacou-se jã o Paes "poeta dos livros", leitor cuidadoso de poesia, capaz de expressar-se com grande habilidade tanto nas formas mais tradicionais (soneto, canção, ode, balada, madrigal, epigrama; decassílabos e redondilnas) quanto nas formas mais livres que surgem na poesia brasileira a partir do Modernismo, resgatando muitas vezes inclusivamente a maneira de compor de outros poetas. 0 Paes "poeta dos.livros" encontra-se.neste Novas cartas chilenas também. Na ocasião da análise de poemas deste, último trabalho de.Paes, introduziram-se aqui alguns conceitos da teoria literária, como os de "intertextualidade",.e .de "paródia" e "paráfrase", modos do processo intertextual. A relação de um te.xto com outros textos, segundo KRIS TE VA, é própria da natureza do discurso literário. Um texto se faz na "negação" e na 249 "afirmação" de outros textos anteriores, ou seja, no espaço tenso das diferenças e das semelhanças. Um soneto de Paes, como o "Soneto quixotexto", de Cúmplices, por exemplo, atua- liza as próprias possibilidades da forma, "afirma", portanto, um certo modelo. Ao mesmo tempo, porém, ele "nega" as outras possibilidades do lírico, como a canção, a ode, a elegia, etc. Este mesmo soneto "nega" ainda todos os outros sonetos, de Camões aos da tradição posterior, e outros possíveis do próprio Paes, na medida em que ele se constitui enquanto peça individual. Mas a intertextualidade pode ser vista também enquanto um procedimento composicional, enquanto uma opção intencional do próprio poeta. Aqui entram em pauta conceitos como os de "paródia" e "paráfrase ",. abordados anteriormente a partir das considerações de-Affonso Romano de-SANT'ANNA. No primeiro-caso, tem-se um deslocamento em relação a um possível texto de partida, a instauração de uma diferença crítica; no segundo caso, a afirmação de um texto primeiro, a reiteração das suas possibilidades. A intertextualidade enquanto procedimento composicional é aspecto recorrente nos livros de. Paes. Se a sua consideração só entrou em perspectiva.no estudo.do presente livro, ela pode porém ser estendida aos anteriores. A expressão "poeta dos livros", retirada do sugestivo verso "Só me restam os livros", do poema "Balada", de O aluno, é índice desse carãter. Ë sobre os livros, sobre os "textos" dos outros, portanto, que Paes vai se debruçar para extrair sua poesia. Esse caráter foi muito ressaltado no que diz respeito ao espírito do primeiro livro - O aluno -, em que Paes retoma o modo de compor de outros poetas ("mestres" potenciais desse "ãluno" 250 de poesia) e também formas da tradição, para através deles exercitar-se e, no exercício, intentar atingir uma dicção mais pessoal. Estã presente, de forma mais atenuada no que diz respeito a uma intenção patente, em Cúmplices, reunião exclusiva de uma lírica amorosa, em que novamente algumas formas cristalizadas da tradição literária recebem atualizações próprias por parte do autor. Mas em Novas cartas chilenas a.intenção .intertextual expande-e em vários níveis, desde o titulo, retomada das Cartas chilenas de Tomás Antônio Gonzaga, passando pelo aproveitamento parodístico de textos bastante específicos e localizãveis, como Os Lusíadas de Camões,-..a "Carta" de ..Caminha, a oração "Pai Nosso",-chegando ao "texto" mais.geral ( somatória destes" e de vários"outros "textos")" da própria história. Que a história surge enquanto um texto em relação ao qual se estabelece Q diálogo essencial de Novas cartas chilenas, fica claro a partir de uma declaração do próprio poeta: "Nos. poemas escritos depois de 'Cúmplices 1 , aproveitei reminiscencias de leituras de história social do 'Brasil, a que me dedicara duran-, te meses, para compor um friso histórico, da carta de Vaz de Caminha ao põs-tenentismo (...)". 34 A história ë recebida via leitura, enquanto texto, portanto. Alargando ainda o vasto horizonte intertextual de Novas cartas' chilenas, a influência de obras de. Oswald de Andrade e de Murilo Mendes precisa ainda ser registrada. É o próprio Paes quem reconhece a influência, restringindo porém seu significado: "Se bem se fizesse sentir (...) algum influxo de Oswald de 'Pau-Brasil' e do Murilo Mendes de 'História do Brasil', também se fazia sentir o esforço do seu, autor. ( -. . . ) 251 no sentido de chegar a uma dicção pessoal". 35 A referência a uma '"dicção pessoal" surge somente agora, quando se inaugura o veio humorístico e de engajamento crítico do poeta (pensan- do-se aqui em termos de crítica política, social, cultural, uma vez que o crítico de literatura jã se insinua no "poeta dos livros" e no "aluno de poesia"). Aliãs, são justamente estes aspectos os que marcam a diferença entre este e os trabalhos anteriores, e que merecem ser observados agora com maior detalhe. Em 0 aluno (1947) e em Cúmplices. (1951) era o lirismo subjetivo o. que compunha a tônica da poesia paesiana; agora o raio das preocupações se amplia, extravasa os limites mais restritos do sujeito, e ë um poeta voltado para o coletivo, para o social, para a. totalidae dos sujeitos, em suma, quem vai surgir aqui revisitando a.história e fazendo dela a matéria propícia para uma crítica político-social contundente. Paes revela, assim, estar em plena sintonia com o momento cultural em que se encontra inserido. 0 engajamento político-social, como se acentuou, ë uma das. vertentes dominantes da produção artística: desses anos 50/60. Diferentemente dos livros anteriores, observa-se agora na poesia de Paes uma intenção satírica ..bastante evidente. 0 humor, a ironia, o sarcasmo, a paródia, elementos ausentes dos primeiros livros, alimentam esta intenção, recorrente em vãrios poemas de Novas cartas chilenas. A. respeito deste carãter, são reveladoras as palavras de Paes: "O certo, porém, ë que o problema da participação via poesia só se resolveria, no meu caso, sob o signo do humor.. Um típico signo oswaldiano, mas que conheci inicialmente na sua vertente drummondiana". 36 252 O humor paesiano, que se inaugura com este livro, surge motivado pela intenção de participação, de engajamento, de critica. Novas cartas chilenas e, portanto, poesia de engajamento politico-social. Os poemas al contidos - aproveitando aqui uma observação de Alfredo.BOSI - "reescrevem a história dos colonizadores, mas com os olhos postos nas vexações sofridas pelos colonizados". 37 Nesse processo, como se pro- curou evidenciar na análise dos poemas (e.sobretudo na análise mais minuciosa de "Os navegantes" e da segunda parte de "palmares"), observam-se duas orientações fundamentais: ao tratar dos colonizadores, a intenção predominante é a de sátira. corrosiva,-e-para - ela-contribuem. os-recursos por natureza críticos -da paródia,- do-humor, da—ironia-;:- quando o foco recai sobre os colonizados/: e sobretudo sobre aqueles que se insurgem contra a dominação, a intenção ê de comunhão còm a sua causa e com o seu destino. Nesse duplo movimento de distanciamento e identificação oscila a poesia de Novas cartas chilena^. Na critica impiedosa aos colonizadores (leia-se aqui também^ opressores) , no questionamento e na. rejeição da sua "palavra" (e para tanto ê fundamental o recorrente uso da paródia, que mina por dentre o discurso), e na identificação com os colonizados (os oprimidos, os "párias" da his- tória) , numa profunda empatia com a sua visão das coisas, surge al. o paradigmático intelectual de esquerda, fazendo sua opção de engajamento num momento em que todos são chamados ã participação nas questões centrais do pais. 253 3.4 3.4.1 EPIGRAFIAS (1958) Introdução Epigramas, assim como o anterior Novas cartas chilenas, foi publicado pela primeira vez em livro em poemas reunidos no ano de 1961. Nesta reunião da produção poética de Paes até então, bem como em Um por todos, reunião mais recente, publicada em 1986, Epigramas recebe a indicação, do ano de 1958 como ano referencial de composição e reunião dos ponemas nele contidos. As datas de provável composição e reunião (1958) e de publi- cação em livro (1961) são datas muito próximas e situam este trabalho de Paes dentro do mesmo ambiente.literário já consirado na introdução ã análise do livro anterior. No âmbito da poesia brasileira, o fim da década de 50 é marcado por uma polarização estético-política bastante polêmica, e que iria alimentar o debate.cultural do país durante a.década seguinte. De um lado .tem-se os primeiros movimentos de vanguarda, o Concretismo, de meados da década, e o Neoconcretismo,dissidência carioca.do núcleo paulista daquele primeiro. 0 experimentalismo radical com.a linguagem e o desejo de produzir uma poesia.de ponta em termos universais orientam a produção da vanguarda brasileira..Este desejo de modernização al. implicado encontra-se em sintonia com todo o ideal desenvolvimentista e modernizador do.próprio governo Juscelino Kubitschek, que marca ideologicamente, o país nessa segunda metade da década de 50. Em oposição a esta postura, surge no ambiente da poesia uma outra orientação, de veio nacional-popular, e que contesta a suposta alienação da vanguarda poética em relação aos problemas políticos e sõcio-cul- 254 turáis do pais. Advogando o engajamento politico-social a fim de conscientizar as massas populares, e.para tanto optando por uma linguagem de franca comunicação com o público, essa vertente irá crescer ao longo dos anos, contaminando toda a produção cultural brasileira, inclusivamente a própria vanguarda estética. As tensões durante os governos, de Jânio Quadros e João Goulart no inicio dos 60 e que se intensificam a partir do golpe de 1954 são o solo fértil em que se enraiza essa produção. É em diálogo com esse ambiente, explicitando as opções estéticas e políticas de seu autor, que vem a público a poesia de Epigramas. 3.4.2 Análise Epigramas inicia com um poema que, jã pelo próprio ti- tulo, "Poética", e pela posição estratégica que ocupa como primeira peça de um novo livro, chama a atenção pelo que pode significar em termos de uma explicitação da postura do poeta José Paulo Paes frente â sua matéria neste instante do seu trajeto de escritor: POÉTICA Mão sei palavras dúbias. Meu sermão Chama ao lobo verdugo, e ao cordeiro irmão. Com duas mãos fraternas,, cumplicio A ilha prometida ã. proa do navio. A posse é-me aventura sem sentido. Só compreendo o pão se dividido. Não brinco de juiz, não me disfarço em réu. Aceito meu inferno, mas falo do meu céu. 0 titulo dado por. Paes é muito importante para a compreensão do próprio poema e do seu significado enquanto com- 255 posição reveladora das intenções poéticas gerais do autor. 0 termo "poética", a despeito da ausência de um significado univoco ao longo da tradição da literatura e dos estudos literarios, é sempre indicador de uma preocupação com o proprio fazer literário. Aristóteles, por exemplo, chama de "Poética" aquela parte da sua produção filosófica dedicada ãs reflexões, em parte de caráter descritivo, em parte prescritivo, sobre a literatura. Na esteira de Aristóteles, outros autores clássicos, agora também poetas, como é o caso de Horãcio, Longino, Quintiliano, ou neoclãssicos, como Boileau, e no corpo de composições poéticas, fazem o mesmo tipo de reflexão; os textos deste gênero do primeiro e do último, autor, por exemplo, receberam inclusivamente o nome de-"Arte poética". A teoria literária moderna abandona a postura normativa para.assumir uma perspectiva mais exclusivamente analítico-descritiva. O termo, "poética" encontra-se aplicado tanto aqueles estudos de caráter geral sobre o fazer literário, que trabalham com conceitos abstratos, generalizantes, quanto .àqueles.que se. debruçam sobre os textos literários de determinado autor ou determinada época a fim de averiguar os princípios composicionais que norteiam a confecção desses textos. Ecoando obviamente textos como os de Horãcio, Boileau, etc.. r é também comum, modernamente, o surgimento de composições literárias, em. geral poemas, intitulados "Poética" ou "Arte poética", em que o autor procura deixar evidente a sua perspectiva diante da poesia. Um caso paradigmático é o da "Arte poética", de Verlaine, verdadeiro manifesto, do Simbolismo francês. Em nossa literatura, é famosa a "Poética", de Manuel Bandeira, peça básica para a compreensão da poesia do autor e da própria poesia modernista 256 brasileira. Porém, nem sempre a explicitação de uma "arte poética" se dá através de poemas com estes títulos tão óbvios. "Psicologia da composição" e "Antiode", entre tantos de João Cabral de Melo Neto, são poemas explicitadores da visão da poesia, do espírito composicional - d a "poética", em suma do seu autor. Ë nesta categoria de textos - a de textos literários em que o autor procura explicitar o seu credo poético, as suas intenções de artista, a sua visão do fenômeno literário - que se enquadra a "Poética" de Paes. Trata-se, portanto, no seu evidente carãter de reflexão e de crítica, de um texto em que a "metalinguagem" tem papel: preponderante. Além do carãter "metalingüístico" do texto, fica evidente também a sua intenção "intertextual". Novamente.aqui, Paes estabelece um diálogo bastante explícito e estreito com outros textos. A escolha do título remete, como se viu, .a uma série de textos muitíssimo revelantes da tradição da literatura. "Intertextualidade" e "metalinguagem" são, portanto, conceitos básicos implicados neste "Poética" de Paes. O primeiro recebeu consideração mais detalhada na abordagem do.livro anterior do autor. Cabe introduzir e aprofundar agora um pouco o segundo conceito, e para ..tanto dois teóricos da linguagem podem ser destacados pelas suas importantes considerações acerca do assunto: Hjelmslev e Roman Jakobson. Nas suas reflexões acerca do signo e da significação, HJELMSLEV distingue em todo sistema de signos ( em toda linguagem, portanto) dois planos interdependentes, o "plano do conteúdo" e o "plano da expressão", "grandezas" entre as quais se situa aquilo que ele chama de "função semiótica". Nenhum 257 desses planos tem qualquer autonomia e só podem ser entendidos como partes de um todo : "A função semiótica é, em si mesma, uma solidariedade: expressão e conteúdo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Uma expressão só ë expressão porque ê a expressão de um conteúdo, e um conteúdo só é conteúdo porque ë conteúdo de uma expressão". 38 Na medida em que em nenhum destes "planos" ("do conteú- do" e "da expressão") ë formado por. algum outro sistema de signos, tem-se configurado aquilo que HJELMSLEV chama de "semióticas denotativas", na sua definição "semióticas das quais nenhum dos planos é uma semiótica". A lingua "natural", no sentido de sistema abstrato como.a entende Saussure com o termo "langue", seria um exemplo de "semiótica denotativa". Partindo da complexificação do modelo,. HJELMSLEV distingue outras semióticas, como as "semióticas conotativas" e as "metassemiõticas": as primeiras seriam "semióticas cujo plano da expressão ë uma semiótica"; as segundas., "semióticas cujo plano do conteúdo ê uma semiótica". 39 A Literatura seria um exemplo característico de "sêmiótica conotativa". 40 O seu plano da expressão ë constituido pelos planos do conteúdo e da expressão defuma "semiótica denotativa": a própria língua natural humana. Quanto â "metassemiõtica", um exemplo característico seria o da lingüística. Nas palavras, de HJELMSLEV: "Foi a isso que se denominou metalinguagem ( diríamos nós "metassemiõtica"), isto é, uma semiótica que trata de uma semiótica; em nossa terminologia, isso deve significar uma semiótica cujo conteúdo ë uma semiótica. A própria lingüística deve ser uma metassemiõtica" . 41 Segundo HJELMSLEV, portanto, a "metalinguagem" ë uma semiótica que tem no plano do conteúdo uma outra semiótica. 25 8 Noutros termos, procurando-se fazer uma ponte a fim de se aproximar das considerações de Jakobson, a "metalinguagem" ë uma linguagem que tem como objeto uma outra linguagem. Roman JAKOBSON, ampliando o modelo triádico do processo, comunicacional apresentado por Karl Bühler ("destinador", "destinatário", "contexto") ao propor outros fatores dentro desse modelo ("referente", "emissor", "receptor", "canal", "mensagem", "código"), formulou toda uma teorização a respeito das várias funções da linguagem a partir da ênfase dada pela própria linguagem a cada um desses fatores. Assim, para cada fator do processo comunicacional uma determinada função predominante da linguagem encontra correspondência: "referente" - "função referencial"; "emissor" - "f. emotiva"; "receptor" - "f. conativa" ; '''canal" - "f. fática" ; "mensagem" - "f. poética"; "código" - "f. metalingülstica". 42 No caso do texto literário, a ênfase dada pela linguagem recai sobre a própria mensagem; a função predominante, na terminologia jakobsoniana, ê a função poética. Verifica-se assim uma espécie de circularidade, com a linguagem voltando-se sobre si mesma, ao invés de orientar-se por algum dos fatores mais exteriores do processo da comunicação. Assim, ê a própria concretude da mensagem que é enfocada nos textos onde a função poética predomina. Samira CHALHUB, na esteira das formulações de Jakobson, diz o seguinte: "Sabemos que uma das atualizações discursivas da linguagem é a sua 'configuração poética', quando o fator predominante é a 'mensagem', como um modo muito peculiar de mostrar-se.. O que primeiramente se 'mostra, p.Qdeirios dizer assim, ë a realidade da palavra no que ela tem de concreto". 4 3 Nos textos em que a função poética pre- 259 domina - os textos literários, portanto -, ë a realidade concreta e sensível da palavra o que vem à tona. JAKOBSON complementa sua conceituação da função poética com outra formulação. Diz ele: "A função poética projeta o principio de equivalencia do eixo de seleção sobre o eixo de combinação". 44 Nos termos da lingüística estrutural al evoca- dos, a linguagem poética projeta portanto o paradigma no sintagma, faz com que o princípio de seleção que rege o primeiro oriente o comportamento combinatorio do. segundo.. Mais uma vez a circularidade, a linguagem debruçando-se sobre si mesma ( aqui especificamente o eixo paradigmático sobre o sintagmático), surge como princípio essencial do poético. Circularidade, fechamento, completude, auto-suficiência são as características da linguagem poética dedutíveis'destas formulações. No entanto, nos textos literários, não é exclusivamente a função poética a.que se encontra presente. Na teorização de Jakobson, nenhum tipo discursivo se encontra sob a regência de uma única função. Outras funções, portanto., surgem sempre subordinadas à função poética nos textos literários, e ê isso o que vai evidenciar o caráter múltiplo, dos textos. Num poema lírico subjetivo, a "fünção emotiva" sobressai juntamente com a função poética, uma vez que o "emissor" tem aí papel central. Dentro da estética realista, a "função, referencial" se destaca; na ânsia de trazer a realidade em sua objetividade para dentro do texto,, o "referente" é que vai ser valorizado. Na literatura moderna, a "função metalingüística" costuma ter um papel fundamental. No esquema de Jakobson, a "função metalingüística" corresponde ao debruçar-se da linguagem sobre o próprio código, 260 principio que está por trás, por exemplo, dos estudos lingüísticos (como destaca jã Hjelmslev), dos estudos que têm a linguagem como objeto. Se para Jakobson, função poética e função metalingülstica são funções em tensão, que dificilmente coexistem, nas considerações de outros autores que partem das formulações de Jakobson, essa oposição deixa de existir, e a coexistência das funções num mesmo tipo discursivo passa a configurar uma das características básicas de.certas vertentes da literatura moderna. 45 0 papel da função metalingülstica nas pro- duções modernas recebe, por exemplo, a seguinte formulação do critico e poeta Haroldo de CAMPOS: Na p o e s i a de v a n g u a r d a , e n t ã o , o p o e t a , a l é m . de e x e r c i t a r a q u e l a , " f u n ç ã o poética" por d e f i n i ç ã o v o l t a d a para a e s t r u t u r a mesma da mensa.gem, é a i n d a m o t i v a do a p o e t a r p e l o p r ó p r i o a t o de p o e t a r , i s t o ê, m a i s do que p o r uma r e f e r e n c i a l o u o u t r a , e l e é comp 1 e men t a r me n t e m o v i do p o r uma " f u n ç ã o metalingüística": e s c r e v e poemas c r í t i c o s , poemas.sobre o p r ó p r i o poema o u . s o b r e o o f í c i o do p o e t a . 1,6 Samira CHALHUB diz ainda o seguinte a respeito do papel da metalinguagem na poesia: Uma p o e s i a q u e f a l a do a t o c r i a t i v o , da d i f i c u l d a d e de. s e u . m a t e r i a l - p a l a v r a - , do c o n f l i t o p e d r e g o s o . d i a n t e da f o l h a b r a n c a como " u m a p e d r a n o m e i o da c a m i n h o " ( D r u m m o n d ) , da d i f i c u l d a d e desconf i a d a do a t o de, p o e t a r , d a p a l a v r a q u e é u s o de t o d o s e q u e , n o p o e m a , n e c e s s i t a s e r s i n g u l a r e . e xa t a p a r a bem d i z e r - s e d i z e n d o sua n a t u r e z a : são " t e m a s m e t a l i n g ü í s t i c o s " n a ó r b i t a do c r i a dor- e m i s s o r . 4 7 A despeito das várias críticas recebidas pelas formulações teóricas de Jakobson e dos seus desdobramentos nas 261 considerações de outros autores 4 8 , a distinção de diferentes funções da linguagem, a consideração de uma função poética especifica entre outras funções, e portanto de algo que na própria natureza da linguagem determina o ser específico do discurso poético, do discurso literário, bem como a valorização do papel da metalinguagem na poesia e na literatura modernas - são considerações muito correntes da crítica e da teoria literária que não podem ser ignoradas. Voltando-se ao texto de Paes, ë pois dentro desta tendência da poesia moderna de falar da própria poesia, do ato criativo, do papel do poeta, etc. que ele vai se enquadrar. É um texto, portanto, onde a "metalinguagem" tem papel de evidente importância. Mas o que diz, afinal, o texto de Paes a respeito da poesia? Qual é a sua intenção metalingülstica? "Poética" compõe-se de quatro estrofes, cada uma delas formada por um dístico. Os versos têm entre nove (se se fizer a crase dos "ee" da palavra "compreendo" no verso sexto) e treze sílabas. A despeito dos acentos secundários internos de cada verso, hã uma acentuação predominante que recai sempre nas sextas e nas últimas sílabas dos versos; a exceção fica novamente a cargo do verso sexto, devido â sua ambígua divisão silábica - considerado um decassílabo, o verso não foge a este esquema geral. Todos os dísticos apresentam rimas de final de verso: "sermão"/"irmão"; "cumplicio"/"navio"; "sentido" /. "divididD" ; "réu"/"céu" . Cada pequena estrofe abarca uma unidade semântica com certa auto-suficiência. Em cada uma delas.observam-se declarações categóricas, afirmativas ou negativas, em todo caso declarações de contundência e despidas de dúvidas ou ambigüi- 24 7 dades. Cada estrofe apresenta um "principio" básico desta verdadeira "carta de intenções poéticas" apresentada pelo poeta. Jã no início da primeira estrofe, faz ele referência imediata ã sua própria palavra - a palavra poética: "Não sei palavras dúbias". Chama a atenção uma declaração de tal natureza, uma vez que o poético, o literário, ê justamente o espaço dos muitos sentidos, das variadas possibilidades de leitura, da plurivocidade, das ambigüidades, das tensões de significado. Ao contradizer de forma tão contundente este carãter do discurso poético, o poeta como que cria um certo mal-estar, uma certa expectativa que só será resolvida após a leitura do restante da estrofe. " (...) Meu sermão / Chama ao. lobo verdugo, e _ao-_cordeiro irmão." - diz ele-a seguir .—Se-no período anterior, a palavra, do poeta - a palavra poética -.recebia uma caracterização relativamente neutra ("palavras"), agora,-, ao caracterizã-la também como um "sermão",; a natureza da declaração anterior ("Não sei i.palavras dúbias" ) como que vai se evidenciando. Neste momento, a poesia é para ele-também um sermão: uma prédica, uma pregação, uma admoestação moralizadora, uma repreensão.. Ao utilizar tal termo, ê inevitável a alusão, a um certo discurso religioso - justamente o de natureza mais dogmática, mais fechada, voltado ao convencimento, ã conversão, discurso que exclui a contestação e acredita veicular a "Verdade". Nesse discurso não se permitem "palavras dúbias". Assim, o "lobo" é inequivocamente o "verdugo", e o "cordeiro", por sua vez, o "irmão". Não há possibilidade de uma relativização dessas caracterizações. 263 Repare-se nas metáforas utilizadas pelo poeta na estrofe. Novamente nesse aspecto a aproximação com o.discurso religioso (em especial o discurso bíblico cristão) se faz evi- dente. Se não se tem agora o "pastor" - o Deus, o Cristo, na simbologia cristã -, tem-se porém o "cordeiro", que remete ao "rebanho" (os homens de uma comunidade espiritual), e o "lobo", força que constantemente ameaça o "cordeiro". No universo simbólico cristão, tais termos têm um referencial bastante claro: o "cordeiro" ê o homem que faz parte do "povo. de Deus"; o "lobo" ê o próprio demônio, ou o homem que se encontra sob o seu influxo. Por isso, o primeiro ë o "irmão" daquele que prega, e o segundo, sempre ameaçador, ë o "verdugo". No universo simbólico do poeta,.decalcado do anterior, o referencial de "cordeiro" e "verdugo" precisa ser compreendido dentro de um novo espaço: o político. Na abordagem do livro anterior de Paes, Novas cartas chilenas, o engajamento político-social é que dava o tom a todas as composições aí incluídas. 0 poeta, assumindo uma posição de alinhamento com os historicamente, oprimidos, com os párias da história, com os revolucionários sufocados em suas tentativas de insurreição, e automaticamente assumindo uma posição de franco antagonismo em relação a todas as figuras ligadas ao poder, deixava clara a sua postura política - a do paradigmático intelectual de esquerda dos anos 50/60. Nesta definição política encontra-se a chave para a compreensão deste "Poética", como também de todo o livro Epigramas. As metáforas "cordei ro" e "lobo", e seus termos caracterizadores, "irmão", e "verdugo" , têm de ser entendidos ã luz das opções políticas vislumbradas pelo poeta. No "cordeiro" - que o poeta 24 7 vai chamar com profundo envolvimento afetivo de "irmão", o que o faz automaticamente situar-se no mesmo grupo al implicado - estão compreendidos os social e politicamente explorados, os oprimidos pela dominação secular. "Lobo" remete, por sua vez, aos poderosos, aos opressores, aos que compõem as classes dominantes - "verdugos" em relação aqueles outros. Os termos metafóricos guardam sentidos importantes que precisam ser explicitados: o "cordeiro" é pacífico, fraterno, gregario; o "lobo" é voraz, feroz, predador, solitário. O segundo ameaça a "ordem natural" a que tende o primeiro - à ordem pacífica do rebanho; o segundo é motivo de desequilíbrio num universo que prescinde da sua existência. Ao utilizar uma metaforização. dessa natureza, com paralelos evidentes com a simbologia religiosa cristã, o poeta cria um universo de proporções claramente definidas. Ao opor categoricamente ( -"Não sei palavras dúbias.") "cordeiro" e "lobo", com todas as implicações simbólicas dos termos quer no originário universo simbólico cristão, quer no imaginário político de que se serve o poeta, acaba-se por fazer uma separação igualmente categórica entre aquilo que ..remete ao que pode ser considerado como "bom" e aquilo que remete, por sua vez., ao que antagónicamente pode ser visto.como."mau". 0 poeta, ao cindir o social em "cordeiro irmão" e "lobo verdugo", sem espaço para posições intermediárias, assume uma postura política e também ética r'adical. Esta primeira estrofe, portanto, revela jã muito da orientação que a palavra poética de Paes toma neste Epigramas. Ela vai revestir-se de intenções éticas e políticas bastante precisas, marcadas por uma opção evidente: fazer a crítica aos 265 poderosos explorados (chamar ao "lobo" "verdugo") e tomar o partido dos (chamar ao "cordeiro" "irmão). Uma questão se pode colocar a esta altura: por acaso o discurso poético (ou o dis- , curso literário, de uma forma geral), em que as tensões semânticas têm papel fundamental, formado, portanto, por natureza de "palavras dübias", por acaso este discurso não se encontra comprometido no que diz respeito ã sua vitalidade quando posto a serviço do "sermão" politico e moralizante? Ou ainda: como conciliar "poesia" e "sermão"? De alguma forma estes problemas estão latentes neste "Poética". 0 próprio titulo do poema é bastante claro: não se trata apenas do credo politico de Paes, mas da própria atitude sua diante da poesia. Ao invés da.louvação da palavra pela palavra (e aqui convém lembrar que as vanguardas formalis- tas, valorizadoras da poesia pura, da poesia pela poesia, estavam em pleno auge no ano de 195 8), Paes vai falar de política justamente no espaço reservado às reflexões sobre o poético justamente no espaço de um poema significativamente intitulado "Pôêtica". Isto de alguma forma dã algum tipo de resposta ãs questões colocadas: "poesia" e "sermão", na visão do próprio poeta neste instante, não se opõem, não se contradizem frontalmente, a despeito dás tensões provenientes desta difícil convivência. A tarefa que ele coloca à sua "poesia" neste momento é justamente a de incorporar o "sermão"; ê a de fundir a palavra poética à palavra política e. eticamente engajada. Uma tal proposição não ê opção exclusiva da poesia paesiana do final dos anos 50 e inicio dos anos 60. Ë, como jã se comentou nas observações acerca do ambiente poético do período, posicionamente de amplo setor de intelectualidade brasileira. 266 A primeira estrofe do poema, apesar dos seus escassos dois versos, contêm, como se está a ver, farto material de base para o entendimento da "poética" do poeta nesse instante. As demais estrofes complementam esta compreensão. A segunda estrofe é formada por um único período. Na anteposição do adjunto adverbial ao predicado, dá-se um certo destaque àquele segmento sintático ( ^'com duas mãos fraternas"). As sugestões implícitas nos vocábulos "cordeiro" e sobretudo "irmão", da primeira estância, são resgatadas neste "duas mãos fraternas". Na seqüência do período, o verbo espacial e rítmicamente separado do restante do predicado em virtude do "enjambement", encontra-se sob certa tensão, a que vem colaborar o seu uso em contexto semântico pouco comum. "Cumpliciar", que o dicionário apresenta como verbo transitivo direto e tendo o significado de "tornar cúmplice" 49 , exigiria, a princípio, de um ponto de vista semântico, um objeto direto animado, preferencialmente uma pessoa. Não é o caso: o que o sujeito poético "cumplida" (portanto, "torna cúmplice") ë a "ilha prometida". Este emprego gera um certo estranhamento, com a conseqüente vitalização do segmento em questão, que acaba revelando uma relativa elasticidade quanto â sua irradiação semântica. "Cumpliciar" , nesse emprego estranho, acaba envolvendo com seus sentidos possíveis também o sujeito da oração (o sujeito poético), além, naturalmente, do objeto. 0 poeta encontra-se também en- : volvido nessa "cumplicidade" que está al sendo referida, "cumplicidade" afim â própria idéia de "fraternidade" contida no segmento inicial do verso ( -'com mãos fraternas") . Mas ë o segundo verso, carregado de intenções ricas, que vai "resolver" melhor metafó- o. sentido de toda a estância. 267 "A ilha prometida à proa do navio" é verso que deve ser lido imediatamente em seus segundos sentidos. A expressão "ilha prometida" resgata novamente um certo referencial bíblico: a "Terra Prometida" - o ponto de chegada dos judeus após a fuga do Egito e da longa peregrinação pelo deserto, espaço portanto concreto, real; mas também o Paraíso, o Céu onde se encontra o próprio Deus, espaço transcendente, portanto. Os conteúdos sote- riológicos que impregnam a expressão bíblica insinuam-se também na expressão utilizada pelo poeta. No imaginário político da esquerda, a luta política tem entre seus objetivos resgatar a maioria dos homens da situação de miséria moral e material em que se encontram mergulhados. Hã, por trás.do seu ideário, um semelhante princípio de "salvação" a nortear os. movimentos daqueles que o professam. "A ilha prometida" refere-se a esse espaço simbólico da redenção social; o ponto de chegada da revolução popular, para os radicais, ou das mais graduais e menos sangrentas transformações de estrutura, .para os menos; a Cuba utópica — pode-se dizer - de tantos intelectuais ao longo dos anos 60 e 70. Encontrar-se situada "ã proa do navio" nada mais quer significar do que estar-se jã na rota que fatalmente deverá conduzir a esse objetivo. A terceira estância compõe-se.de dois períodos, cada um deles no corpo de um verso do dístico. São novamente colocações diretas, declarações de intenção, que acompanham o tom geral do poema. Cada uma delas complementa o significado da outra. No primeiro verso, acentuam-se aspectos jã intuídos, a partir das estrofes anteriores, acerca da visão ética e política do sujeito poético: o poeta nega a "posse", portanto a luta pela propriedade, a intenção de segmentar aquilo que diz respeito 268 ao coletivo incorporando-o ao individual. A "posse" - e aqui convém ressaltar o emprego do termo sem qualquer complementação, como se tratasse de uma espécie de principio abstrato potencialmente realizável em qualquer direção - material, moral, etc. - a "posse" é vista como "aventura sem sentido", ação vazia de significados, inútil, portanto, ao humano. 0 verso seguinte da estância reitera a afirmação: sõ faz sentido, só é pleno de significado, aquilo que ë dividido - e aqui o objeto da divisão referido ê justamente o que simbolicamente remete ao que hã de mais básico e primordial para o homem: o "pão". Mais uma vez o poeta traz do discurso bíblico, do registro religioso, elementos para sua profissão de fé política e moral. A idéia da divisão do pão, que resgata a "fraternidade" pisada e repisada no poema (meu sermão ( ) chama ao cordeiro irmão"; "com duas mãos fraternas"), é tema evangélico dos mais básicos. No entanto, como ocorreu anteriormente, o poeta esvazia o "conceito bíblico" dos seus significados transcendentes, tendentes ao divino, limitando-o estritamente ao que diz respeito ao humano. Se o pão no Evangelho é o "Corpo de Cristo", aqui o pão remete ao pão concreto mesmo, metáfora geral do alimento material do homem. Na quarta e última estrofe, o poeta vai encerrar a explicitação do seu ideário. Aqui.ele vai trabalhar com conceitos, ou idéias, a princípio situados em pólos em oposição. No primeiro verso: "juiz" x "réu"; no segundo: "inferno" x "céu". Se na primeira estância, como se observou, a oposição "cordeiro" x "lobo" era categórica, como se uma linha delimitando claramente os dois campos se insinuasse no fundo da visão ideo- lógica do poeta, aqui a visão é relativamente diferente. Se lá 269 o poeta lançava um olhar para o exterior, para os "outros", sentindo a necessidade urgente de tomar uma posição clara frente ãs questões político-sociais - dal a radicalidade da disposição de chamar sem senões relativizantes ao "lobo" "verdugo" e ao "cordeiro" "irmão" -, aqui o que se vai ter é jã uma referência a si próprio, e nessa avaliação de si próprio realiza-se uma certa diluição das oposições categóricas. Numa certa possibilidade de leitura do verso, o poeta rejeita para si as condições tanto.de "juiz" como de "réu": "Não brinco de juiz, não me disfarço eim réu" . Nem a posição daquele que julga, portanto daquele que teria condição de discernir com certa clareza os condicionamentos de dada questão, nem tampouco a posição daquele que é julgado são por ele assumidas. Esta declaração entra em relativa rota de, colisão com a primeira estância. La,,-através do seu "sermão" ( e aquele que prega a principio considera-se capaz de fazê-lo com o "discernimento" necessário a fim de bem julgar entre aquilo que é melhor ou pior para os seus destinatários), o poeta propõe-se uma espécie de julgamento: hã um juízo de valor inequívoco a operar por trás da cisão "lobo" x "cordeiro" e da caracterização destes, respectivamente "vprdugo" e "irmão". Porém lã, como jã se disse , tratava-se de tomar um partido claro diante de uma realidade problemática que pede respostas. A postura radical do poeta quanto aos âmbitos do ético e do político justifica-se por isso. Aqui, o poeta procura situar-se, e por isso a rejeição de posições estanques surge como opção. No entanto, o verso destacado não ê tão unívoco assim em seus sentidos, e uma outra orientação de leitura pode ser sugerida também. Ao dizer "não brinco de juiz", o poeta pode 270 estar querendo dizer "assumo seriamente o papel de juiz". Da mesma forma, ao declarar "não me disfarço em réu", pode estar querendo significar com isso "sei que sou réu". Ao invés de rejeitar esses papéis, ele na verdade os estaria assumindo convictamente. Quer a primeira leitura se mostre mais sedutora, quer a segunda, em todo o caso, recusando assumir os papéis de "juiz" e "réu", ou assumindo-os ambos ao mesmo tempo, o poeta acaba por situar-se numa posição intermediária entre os pólos, caràcterizando-se em ambas as possibilidades de forma tensa e problemática.. No último verso ( -'Aceito meu inferno, mas falo de meu céu."), ainda mais uma vez o poeta vai buscar termos muito correntes no universo cristão ( e religioso de um modo geral) para referir-se a um contexto diverso: "inferno" x "céu". "Inferno" surge como caracterizador da realidade concreta presente. 0 que no universo religioso diz respeito ao "reino do mal" é vivenciado pelo poeta como o mundo real imediato. .. Esse "mal" essencial e transcendente que anima o "inferno" religioso transforma-se noutra categoria de "mal" no universo, humano: é o "mal" social, político, moral, que envolve, o sujeito. Se ele o aceita como realidade inconteste, no entanto evita a resignação ao vislumbrar no horizonte do possível uma outra ordem de coisas, chamando-a, inclusivamente, para o imediato através da sua própria palavra, da sua poesia. Ë este o conteúdo do segmento final "mas falo de meu céu". "Céu", como "ilha prometida", revela muito de uma certa perspectiva ideológica desse instante, da qual Paes comunga firmemente. A transformação político-social da sociedade (mergulhada no "inferno" presente), finalidade da militância política a serviço da qual Paes engaja também a 271 sua própria palavra poética, é condição para o surgimento, de um novo homem. Esta humanidade futura surge alçada ã condição de '^paraíso" ( sentido implícito no termo "cêu')_ , o que trai o muito da utopia e da idealização que alimentam esta visão. "Poética", como se estã a ver, ê um poema de sentidos transparentes. A metaforização a que recorre o poeta - que resgata muito do discurso religioso ( e não é ã toa que o poeta diz "o meu sermão"), deslocando-o, porém, para uma outra chave - é bastante simples e facilmente decodificãcel. "Lobo", "cordeiro", "ilha prometida", "pão", "céu", "inferno", entre os termos metafóricos aí presentes, remetem a realidades.rapidamente compreendidas pelo leitor uma vez percebidos os posicionamentos ético-políticos do autor. Essa transparência de significados revela o desejo do poeta de se fazer compreender, de comunicar-se com certa facilidade. A afirmação "não sei palavras dúbias" pode ser vista, nesta linha de consideração,, como afirmação desse desejo de comunicação. Esse desejo central de comunicar-se com o leitor pode ser visto como decisivo para a convencionalidade do discurso poético de Paes neste poema. Nada aí parece lembrar o experimentalismo literário que toma conta de boa parte da poesia brasileira mais importante a partir de meados dos anos 50. Pelo contrário, parece haver aliás a intenção explícita do poeta de se afastar dessa poesia no que ela tem de radical a nível de experimentação com a linguagem e, conseqüentemente, de difícil para a compreensão mediana. Daí se compreende melhor as opções do poeta a nível de procedimentos composicionais. De mãos dadas com a simplicidade- e univocidade no plano semântico, encontram-se os outros níveis de linguagem desse poema: ausência de expio- 272 rações sonoras mais arrojadas; ausência de exploração de recursos visuais, tão valorizados pela vanguarda; ausência de complexidades léxicas ou sintáticas, ou de utilizações inusitadas destes aspectos; esquematização global do poema bastante simples: quatro dísticos de metro muito próximo, com paralelismos rímicos. Esta opção pela simplicidade (a que a relativa conven- cionalidade poética se encontra ligada - relativa por só fazer sentido quando surpreendida a partir de uma postura que valorize o experimentalismo e a busca a todo custo do,novo como juízos exclusivos ou precipuos de valorização estética) está de acordo com os posicionamentos ideológicos que se percebe no interior do próprio poema em questão • "Poética" apresenta - pelo que diz, mas talvez sobretudo pelo. que não diz - a visão que o poeta tem da própria poesia nesse instante do seu trajeto poéti-i co. No interior de um poema em que,pelo. seu título, se esperaria uma discussão mais exclusiva do labor literário e da palavra poética, Paes apresenta também o seu ideário, de homem ética e politicamente situado e preocupado com uma atuação orientada a partir dos valores assumidos ( distinção entre opressores/oprimidos, questionamento da injustiça social, crença na possibilidade de se revolver o quadro presente, etc.). Para ele, na verdade, a palavra poética e a palavra ética e policamente engajada fundem-se numa coisa só. Falar de uma ê falar automaticamente da outra. Daí a opção pela comunicação com o leitor, requisito básico do engajamento do criador em níveis., mais amplos. A partir da consideração de "Poética" pode-se distinguir, numa esquematização didatica para a abordagem de outros poemas, duas linhas que se entrecruzam constantemente ao longo 273 do livro: de um lado a presença constante da "metalinguagem" e da "intertextualidade", nas referências contínuas a outros poetas, ã poesia e ao papel do poeta e da poesia no interior do corpo social; de outro, as críticas corrosivas de caráter político, moral, social - cultural de um.modo geral - ãs instituições e grupos sociais. A oposição entre o "lobo" e o "cordeiro", traçada paradigmáticamente em "Poética" ( "meu sermão chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão"), ë retomada em alguns poemas nas mesmas metáforas aí presentes, e atualizada em suas possibilidades de formas diversas em muitas outras composições do livro. Por exemplo, quanto ã reiteração das metáforas: em "II poverello" - "o lobo comeu a ovelha" ; em "Cena legislativa" - "o rio dos lobos corre para cima"; em "Ode" - "onde o lobo jã não uive", fazendo-re referência aqui a um espaço ideal onde a "paz" predomine . Esta oposição delimita claramente dois grupos sociais em constante e radical contradição. A compreensão desta cisão do social é fundamental para a compreensão da. própria crítica social paesíana. O poema "Ressalva" explicita de forma inêquívoca os pólos desse antagonismo: RESSALVA Fácil riqueza de poucos. A luva antes do crime, 0 pão sem mérito algum, 0 rosto, mármore falso, Os pés no barro comum. Árdua pobreza'de muitos. 274 A injustiça da cruz, A pressa das alegrias, A demora dos augurios, As penas da rebeldia'. Mas um diamante - o orgulho. A oposição básica aqui se fundamenta toda ela numa oposição de ordem econômica e, conseqüentemente, também social. Esta cisão do mundo entre ricos e pobres ("fãcil riqueza de poucos" x "ãrdua pobreza de muitos") ë estrategicamente inevitável na perspectiva política assumida pelo poeta. A relativização do problema, neste momento, significa diluir o poder de ataque da critica. Daí este esboço simplificador das contradições sociais. Na caracterização das elites econômicas, ao longo da estância que segue o verso "Fãcil riqueza de poucos.",, a crítica do poeta ê bastante dura, e nada perdoa. A expressão "fácil riqueza" jã denuncia a origem dos. privilégios, sobretudo quando contraposta à expressão "ãrdua pobreza". A exploração do trabalho de muitos por alguns poucos ë o que estã na gênese do problema. A atividade desses "poucos" ë caracterizada como um "crime" que não deixa vestígios ( -'a luva antes do crime") . 0 seu "pão", metáfora de "alimento", mas.que aqui pode ser estendida também . aos bens materiais em geral, não tem "mérito", pois não advêm do trabalho, do esforço, mas sim da exploração do trabalho e do esforço de outros. A oposição nos versos três e quatro da estância entre "rosto" e "pés" e respectivamente "mármore falso" e "barro comum" dá bem a medida desse grupo. "Mármore" ë material nobre, distinto das demais pedras; opõe-se, por sua beleza, consistência e raridade, ao "barro comum". Porém esta oposição no contexto em questão ê aparente, pois o 2 75 "mármore" é "falso" e caracteriza um ser que em essência não se distingue dos demais: está igualmente ligado ao "barro comum" . Em oposição ã "fãcil riqueza" das elites encontra-se a "ãrdua pobreza" da grande massa da população. A ela está ligada a "injustiça da cruz", e "cruz" aqui não tem evidentemen- te o carãter positivo que recebe no âmbito do universo cristão - sofrimento, provação necessários para a salvação final. Num universo sem transcendência, a "cruz" ê símbolo de uma dor vivida em vão. As "alegrias" são fugazes, os "augurios" (suben- tendendo-se aqui tratar-se de bons "augurios") demoram a cumprir-se. A "rebeldia", contestação possível, ë devidamente castigada. Porém o poeta vislumbra aqui algo que permanece como jóia intocada, pedra incorruptível: "Mas um diamante - o orgulho". Repare-se aqui na oposição proposital entre o "imãrmote falso", ligado ao "barro comum", das elites, e este "diamante" puro que compõem, apesar da dor e da privação, o cerne deste segundo grupo. O "orgulho", "um diamante", na sugestiva metáfora do poeta, é força positiva que resiste em meio â miséria da exploração do homem pelo homem, força.a ser acionada no movimento geral das transformações. A sociedade encontra-se cindida entre ricos e pobres, exploradores e explorados, poderosos e oprimidos, ou, nas metáforas fundamentais do livro, "lobos" e "cordeiros". Em muitos dos poemas de Epigramas o que Paes vai fazer ê esmiuçar melhor esta cisão, abordando subgrupos específicos dentro desses grupos maiores. Em "Bucólica", por exemplo, o poeta detém-se um pouco na consideração de um grupo social específico, o trabalhador rural: 2 76 BUCOLICA O camponês sem terra Detern a charrúa E pensa em colheitas Que nunca serão suas. jã no titulo encontra-se embutida a critica social. 0 termo "bucólica", na tradição da literatura, remete a todo um tipo de poesia largamente produzido na Antigüidade Clássica greco-latina e, posteriormente, nas retomadas classicizantes dessa Antigüidade durante o Renascismento e o Neoclassicismo setecentista. A poesia bucólica gravita toda. ela ao redor de temas campestres e pastoris, apresentados de forma, altamente idealizada. Os poetas e suas amadas encontram-se travestidos em amorosos pastores, gozando as alegrias festivas de uma cândida vida campestre, sem turbulências, a.não ser as. amorosas, geralmente passageiras,.e sem privações materiais. Lembre-se o bucolismo presente na bela poesia de um ãrcade luso-brasileiro como Tomãs Antônio Gonzaga e o que ele tem de distanciamento em relação ã realidade concreta e presente. Gonzaga, vivendo em meio a uma sociedade que explora impiedosamente o trabalho negro no campo, não pode deixar de render-se absolutamente ãs convenções do classicismo a que se encontra espiritualmente ligado. Apesar da visão imediata de uma vida rural miserável, sua poesia ë quase totalmente cega a essa realidade, e plana leve numa atmosfera luminosa de idealizações e estilizações. Quando Paes dã o titulo "Bucólica" a um poema que justamente focaliza o trabalhador rural dentro de um quadro so- cial problemático, ele estã estabelecendo um diálogo intertextual critico em relação à própria literatura e sua vinculação com a realidade dos homens. A ironia é evidente. A condição de 277 vida do homem do campo não tem nada dos componentes usuais do bucolismo tradicional que o classicismo convencional idealiza. 0 "camponês" do poema de Paes não é' o pastor abstrato da convenção literária. Ê ( a despeito de um outro tipo de idealização possível, a das convenções do ideário da esquerda - e "camponês" não ê termo neutro como "lavrador", ou "trabalhador rural", mas termo corrente no discurso socialmente engajado de então) um homem concreto, social e historicamente localizado, privado de propriedade ("o camponês sem terra") e privado do fruto do próprio trabalho ("colheitas que nunca serão suas"). 0 poeta, aliãs, no quadro que pinta, fazr questão de apreendê-lo justamente no momento do trabalho, atrelado â charrua, como a indicar sua condição fundamental. A breve pausa e rãpido vislumbre da sua própria -condição-e de sua imutabilidade ( "pensa em colheitas que nunca serão suas") dão os contornos cinzas e amargos desta incisiva miniatura poética. A exploração violenta do trabalho é tratada ainda em "Baladilha". Neste poema, a condição do homem escravizado pelo trabalho numa sociedade de profundas injustiças' ê posta paralelamente à condição de certos animais, como o "boi", o "cão" e o "pássaro", e ao carãter da função de cada um desses na sua submissão ao homem: a paciência do trabalho bovino, a fidelidade do cão, o embalar do canto.do pássaro prisioneiro - recompensados todos com a morte ou a indiferença. O poema contém uma exortação final, em forma de "envoy", comum na forma poética a que o título faz menção, a "balada", aqui em uso diminutivo ( aliãs, como no poema anterior, repare-se neste novo diálogo intertextual crítico como uma das formas da tradição): 278 Envoy Homem, não sejas Pássaro nostálgico, Cão ou boi servil. Levanta o fuzil Contra o outro homem Que te quer escravo. Só depois disso, morre . A incitação, neste poema, a uma revolta que faça uso da violência ë Índice evidente do posicionamento politico do poeta. Não ë apenas o homem de esquerda progressista que fala aqui, engajado num processo de mudança, mas sim o revolucionário radical, que prega o recurso ao "fuzil" como salda possível ã inércia geral. Há um apelo patético na voz do poeta, que trai uma indignação das mais vivas. Se ao tratar -das classes- oprimidas- pela exploração social ë visível a rsimpatia do poeta- e a intenção- de engajar-se a si próprio e ã sua poesia numa causa que vise a mudança desse quadro, na focalização de outros estratos sociais a antipatia ë evidente e o tratamento crítico implacável. Em "Ivan Ilitch, 1958" (cujo título remete a conhecida narrativa de Tolstoi, A morte de Ivan Ilitch, que.descreve a vida de um funcionário bem sucedido que., após sofrer, um acidente incurável, começa, confinado em sua cama, a pôr em xeque sua vida anterior e os valores sobre os quais ela se assentava) o poeta exercita uma critica ampla de comportamentos, atingindo aqui sobretudo a classe mëdia em seus automatismos. A primeira estrofe exemplifica bem os recursos formais utilizados e o quanto têm de significativos: 279 Trrrim, bocejo, Roupão, chinelos, Gilete, escova, Água, sabão, Café com pão, Chapéu, gravata, Beijo, automóvel, Adeus, adeus. 0 poema é todo ele um grande inventário dos elementos componentes do dia-a-dia rotineiro do homem mediano. Cada estrofe dã conta de uma segmentação desse dia: na primeira, transcrita acima, do despartar matutino ã ida para o trabalho; na segunda, o dia no escritório; na terceira, o lazer no clube no final do expediente; na quarta, o retorno â casa e a noite com a família; na quinta, a intimidade do. casal; e na ultima estrofe, a ampliação do- quadro, projetando-se a rotina- do dia num esquema mais amplo que envolve, toda a. vida. do homem até o momento de sua morte, como que' reduzindo-a toda, portanto, â banalidade geral do dia comum. 0 recurso de linguagem utilizado pelo poeta é muito revelador. Não hã orações e não se observa o emprego de um único verbo, a não ser no último verso da última estrofe, uma tentativa vã de romper com o esquema geral apresentado, através de uma indagação metafísica que se desfaz, porém, num trocadilho que mais acentua a banalização geral a que >se encontra reduzida a vida: "Hã Deus? adeus.". No mais, somente substantivos, que vão sendo coordenados exaustivamente.. Na nominalização da linguagem, explicita-se a coisificação geral do mundo, a transformação da dinâmica da vida em objetos apropriãveis. Todas as ações humanas transformam-se em rituais vazios de sentidos, congelados e banalizados em nomes sem cor específica.. Não hã qualquer individualização no quadro todo ; tudo estã reduzido a 280 um grande esquema geral, uma estrutura arquetlpica que tudo aprisiona e da qual não se sai. Se aqui a crítica dirige-se ao comportamento geral do homem de extração social média, em outros poemas o alvo é bastante específico, como ë o caso da classe política em "A uns políticos": A UNS POLÍTICOS Depois de nós, o dilúvio. Entrementes, de Javé Poupada,.fulge Sodoma, Capital da nossa fé. Mas se.a chuva acontecer (Ha tempo de sobra até), Adeus, que somos marujos Da equipagem de Noé. Paes utiliza aqui um recurso que se verifica com certa freqúência-em--vários—poemas do -livro anterior Novas cartas chilenas r apontado com maior detalhe na análise do poema "Os na- vegantes" , daquele livro. 0 poeta atribui uma fala específica a determinada personagem ou grupo de pessoas, fala esta que, verossimilmente, jamais poderia ser proferida pelos sujeitos em questão, dado o carãter de autocrítica, de auto-exposição, de auto-ironia explícita nela contido. Esse discurso atribuído encontra-se sobrecarregado do.prõrio discurso crítico do autor. Observa-se, portanto, uma tensão no interior desse discurso, responsável pelo distanciamento que se verifica entre ) aquele que supostamente estaria falando e aquilo que se fala. Aqui, neste caso, a fala ê atribuída "a uns políticos", que estariam atrás desse "nós" aí presente. Mas o que é dito por eles contradiz sumariamente o habitual discurso político, conciliador, diplomático, muito pouco revelador das reais iinten- 281 ções de seus sujeitos, antes, na verdade, camuflador de realidades. Aqui, numa fala impregnada de irrisão, os políticos estão a expor-se. Os referenciais bíblicos acentuam esse carãter. Uma possível autoridade patriarcal,:profética, visionária, que o discurso embebido desses referenciais poderia significar, vem abaixo de imediato. "Sodoma", a cidade do Antigo Testamento destruída juntamente com Gomorra pelas suas violentas transgressões das prescrições divinas, é. declarada a "capital" da "fé" dos "políticos". Se o presente ë marcado pela corrupção, pela degeneração dos costumes("Sodoma, capital, da nossa fé"), o futuro, que na purificação via dilúvio poderia configurar-se de nova maneira, estã jã comprometido: "somos marujos da equipagem de Noé" - dizem esses mesmos políticos, anunciando sua Intima relação com aquilo que poderia significar a mudança; anunciando, portanto, sua permanência apôs as possíveis convulsões. A critica aos políticos - ou melhor, "a uns políticos", na expressão que dã titulo ao poema e que evita a generalização sumária - é, como se pode ver, violenta. O "dilúvio", que na perspectiva bíblica é responsável pela. morte de uma humanidade perdida e pelo nascimento de uma nova humanidade, con- servada pela salvação de uns poucos que se mantiveram ainda puros, perde seu efeito na medida em que essa humanidade ante-rior conserva os germes da sua corrupção durante o processo de morte/renascimento. Como jã se destacou anteriormente no poema "Poética", a utilização de termos oriundos do.discurso bíblico pelo poeta abriga uma sua atualização dentro de uma perspectiva agora ético-política. "Dilúvio", enquanto metáfora, pode estar no lugar de qualquer processo de mudança radical 282 - uma revolução social, por exemplo -, entrevista, aliãs, de forma apocalíptica pelos próprios políticos. A certeza da ineficiência do processo em termos de mudança bem como a certeza de permanência contidas na fala destes revela muito da sua descrença com as possibilidades de renovação, defendidas e vislumbradas pelo poeta. Se a classe política ë drasticamente visada pela ãcida crítica paesiana (e além deste "A uns. políticos" , o poema "Cena legislativa" trata de questões muito próximas), da mesma forma aqueles grupos que de tempos em tempos arrogam-se uma função saneadora, salvadora no âmbito do politico-social também não são perdoados. Em "Volta ã legalidade", o problema das revoltas, dos golpes-militares encontra-se tematizado. Como em "A uns políticos", o poeta atribui neste "Volta à legalidade" uma determinada fala a.um grupo de sujeitos, agora aos comandados co-responsáveis por um golpe militar cujas circunstâncias históricas ou geográficas não são referidas com precisão. A n ã o contextualização da>situação.permite entendê-la como acontecimento arquetípico, potencialmente presente nas repúblicas semi ou pseudo-democrãticas da América Latina (ou mesmo de outros países do chamado Terceiro Mundo) na época em. que o poeta escreve estes versos. A história iria provar que a insinuação de Paes não dizia respeito a um.tempo jã passado: os golpes militares em países latino-americanos de certa estatura como o Brasil, o Chile, o Uruguai e a Argentina, ao longo dos anos 60 e 70, ou mesmo a revolução popular cubana em fins da década de 50, que acabou resvalando para o autoritarismo de um único grupo agarrado ao poder, são significativos das premo- 283 nições do poeta - lembre-se aqui que o poema, assim como o livro, data de 19 58. Diferentemente do poema anterior, não hã neste "Volta ã legalidade" um mesmo tom irônico ou satírico perpassando o texto. 0 dramático e o sombrio, aliãs, ê que predominam, como se pode ver jã na primeira estrofe: Decretamos silêncio, mas alguns Murmuravam ainda. Decepamos A língua obstinada. O poema vai assim, desde a sua primeira estância, arrolando as várias medidas violentas tomadas pelos opressores para impor a nova ordem â sociedade, que por sua vez., em meio ao silêncio e ao terror, resiste. A-violência acumula-se em visível crescendo:. .."decepamos a língua obstinada" ; "trespassamos o olho indagador" ^"inauguramos a. fase dos reféns"-;.-"então usamos a parede e o fuzil". Porém, tudo mostra-se em vão. Uma ameaça crescente, não explicitada exatamente, assola a tropa, e o tom de contido desespero na fala do soldado que está a. relatar os acontecimentos ao superior denuncia o fracasso- da em- preitada: Eis a última mensagem,: Comandante : A ordem foi mantida.. • Agora ê tarde. Deus nos guarde. O título "Volta â legalidade" tem duplo sentido de leitura. Pode significar o retorno â legalidade democrática que surge a» cada fim de golpe, mas pode:, era contraposição, significar - ironicamente, ê claro - a normalidade desses golpes; a "legalidade" seria portanto o regime de exceção, cuja freqüência e rotina exceção. fazem da ideal "legalidade" a verdadeira 284 Mas os políticos que chafurdam na corrupção do poder e os militares que saem periodicamente das casernas para substituí-los em igual tarefa não são os únicos visados pela crítica político-social de Paes. Também o alheamento da religião em relação ãs questões medulares da sociedade ë visada pela palavra do poeta. A passividade da religião ë atacada em alguns poemas, dentre os quais se pode destacar "Primeiro tema bíblico". Esse carãter se evidencia ja a partir do quadro sugerido pela primeira estrofe: Dorme o profeta De mãos cruzadas Sob a folhagem Grave das barbas. A venerãvel. figura do "profeta" religioso, ë sutilmente posta em xeque nesta estância. A despeito dos dois belos versos três e quatro ("Sob a folhagem / Grave das. barbas"), que retêm muito dessa aura de figura venerãvel - a "barba" é índice do ancião respeitável e experiente; sua aproximação plástica com a "folhagem grave" acentua este aspecto, em. primeiro lugar pelo próprio sentido do adjetivo "grave", em segundo pela sugerida metamorfose do homem em ser vegetal, enraizado ao chão, ligado a uma vitalidade e a uma sacralidade telúricas que lhe revigoram a santidade da própria função (lembre-se aqui o "carvalho" como árvore sagrada e.a sua aproximação com a própria imagem do sacerdote ou do profeta ancião) - a despeito desses versos, há algo aí que não condiz com a figura usual do profeta. A verticalidade do homem que pela palavra prenunciadora e vigorosa encontra-se em constante estado de ação e combate, admoestando os contemporâneos e sendo por eles admoestado (admoestação que 285 tantas vezes chega ao martírio e â morte), destoa da horizontalidade passiva e um tanto singela do homem dormindo. Some-se a isto a imagem das "mãos cruzadas" , que inevitavelmente ecoa a passividade e a indiferença dos "braços cruzados". O profeta iracundo, de voz tenebrosa,.de lances entre insanos e visionários, se dilui neste quase simpático velhinho embalado por Morfeu. Esta perspectiva acaba contaminando toda a estância, e a imagem que aproxima o.homem do ser vegetal acaba em verdade frisando bem a estaticidade, o congelamento geral do quadro. O profeta é figura representativa do homem religioso. As cores do quadro estendem-se também â própria vida religiosa. Ao longo das estâncias seguintes, a figura passiva do profeta - a expressão "dorme o profeta" repete-se nos primeiros versos de cinco das seis estrofes da composição - vai sendo contraposta ãs duras realidades sociais do mundo. Enquanto ele dorme, "a lei irmana vítima e carrasco", "um rato devora a colheita", "um inseto corrompe o vinho", "um verdugo enumera as forcas". Atente-se para os amargos e desoladores sentidos de destruição e morte contidos em todas estas expressões metafóricas: do trabalho ao próprio homem, tudo encontra-se sob o constante perigo de uma predação aniquiladora. Diante do quadro terrível, a imagem do profeta em sono absoluto, em total alienação, não se modifica: Dorme o profeta, dorme E não acorda, nuvem Perdida no-sopro Dos clarins celestes. 0 tema da alienação da religião diante dos problemas do mundo ê recorrente em "Epigramas". No poema "Segundo t e m a b í blico" ele aparece novamente. Aqui o quadro da paixão e crucifi- 286 cação de Jesus Cristo é apresentado a partir da fala de alguns dos personagens que o integram, como Maria e o próprio Cristo. O sofrimento da mãe e do filho, a entrega passiva aos algozes como fundamento de um ritual sacrificai, é resgatado na sua integridade pelo discurso das próprias personagens. A tensão crítica só vai ser introduzida pelo poeta em breve estância entre parênteses colocada ao final de todo o poema, restrição geral ao sentido místico-religioso do episódio bíblico - portanto, incompreensão fundamental e rejeição, de um princípio basilar do Cristianismo: "(Embora o cordeiro / Seja uma iguaria / Grata ao inimigo.)". A passividade religiosa, o voltar-se somente para as questões do espírito, para o~"outro mundo", essenciais no Cristianismo, e- que deixa campo aberto para o exercício da injustiça dos poderosos, - constitui o objeto- básico das. censuras do poeta. O engajamento ético-político a que ele.submete a sua palavra de criador, o.desejo de, através da ação, transformar a ordem injusta do mundo (e o mundo aqui ë o mundo real, concreto, presente, humano, único mundo no seu horizonte ideológico) , são incompatíveis com essa passividade. No poema "Il poverello", numa possível referência ao despojadissimo S. Francisco ou a algum ermitão do gênero,, vivendo em inocência e em perfeita comunhão com a natureza, essa perspectiva encontra formulação' similar ãs anteriores aqui destacadas. Após a descrição paradisíaca do religioso em harmonia com o meio natural, a última estância da composição apresenta violenta restrição ao quadro : Mas a floresta esqueceu, no outro dia, 0 bíblico sermão.e, novamente, 0 lobo comeu a ovelha, a ãguia comeu a pomba, Como se nunca houvera santos nem sermões. 287 O poeta chama constantemente a atenção para uma realidade que corre paralelamente aos ideais religiosos, uma realidade que ignora o sono do profeta, o sacrifício do Cristo ou a inocência do asceta, uma realidade onde, apesar dessas pretensas "suspensões" da ordem do mundo, o antagonismo fundamental entre "lobos" e "cordeiros", entre opressores e oprimidos, dã a verdadeira e dura cor da humanidade. Na crítica geral que faz ã sociedade nas suas clas- ses, grupos e instituições, também a figura do poeta ( e do artista, implicitamente) e o seu papel social são questionados por Paes. Aliãs, jã em "Poética", o poeta toca nessa questão, ao expor o seu ideário simultaneamente poético, ético e político,- e ao pretender, engajar-se no processo de transformação da sociedade comprometendo..nisso sua própria poesia. São vários os outros poemas de Epigrama^ que abordam diretamente a criação literária e o seu papel na sociedade. Esses poemas compõem aquele veio metalingülstico, apontado como central no livro em questão. São índices também da intertextualidade como procedimento poético a que Paes recorre com maestria. As referências intertextuais. a nomes da.literatura e textos literários são recorrentes em Epigramas. Por exemplo, três poemas são dedicados no próprio título a autores: "A Arthur Rimbaud" (com epígrafe de Aragon), "A Edgar Allan Poe", "A Nazin Hikmet". A epígrafe que abre o livro é tirada de Ronsard. "Nova ode ao burguês" dialoga com a "Ode ao burguês", de Mário de Andrade. "Novo soneto quixotesco" dialoga com "Soneto quixotesco", do próprio Paes, além, obviamente, de referir-se ã clássica personagem de Cervantes. "Ivan Ilitch 1958" remete a texto de Tolstoi. "Primeiro tema bíblico" e "Segundo tema bí- 25 8 blico" (este dedicado a Oswald de Andrade Filho, mencionando, mesmo que indiretamente, o famoso modernista) dialogam com outro texto fundamental: a Bíblia, documento não somente religioso ou histórico, mas também literário,fundamental para a literatura ocidental. "Gottschalk revisitado" é uma paródia do "Hino nacional do Brasil". "Bucólica" e "Baladilna", além de outras formas tradicionais, como "Ode" e "Novo soneto quixotesco", atualizam formas clássicas numa temática moderna e critica, como já se destacou. Paes costura sua poesia, portanto, bem próximamente a textos, formas e autores importantes da literatura geral. Nessa profusão de poemas de carãter metalingüistico e intertextual, dois merecem um maior detalhamento aqui pelo que apresentam" de revelador a respeito da visão, que - Paes tem do poeta no amplo plano da sociedade neste livro: "Do mecenato" e "A pequena revolução de Jacques Prêvert". "Do mecenato" ë um poema em versos livres que inicia com uma comparação curiosa: "Ele vive / C o m o um leão de circo". A partir desta chave, o poeta estabelece um paralelo entre a vida de um leão de circo e a vida do artista, que vai sendo exposto ao longo das estrofes seguintes. O artista, apesar da ferocidade que a comparação sugere, vive submisso a um domador implacável que o alimenta e o mantêm sob, o controle do chicote. Sob o seu comando, o artista/leão expõe-se ao público. Seus rugidos, Índices de sua independência e realeza, são aparentes. O domador detém o controle absoluto do espetáculo. Em meio a esse quadro, hã um espaço de idealização e consolo para o leão/artista, projetado na ampla tela de sua imaginação: "(...) / Nesse instante, ele pensa /( Breve espaço 289 sem grades) / Um mundo mais justo, / Onde o pão não custe / Essa cabeça baixa, (...)". A justiça e a independência material surgem a nivel de desejo, porém desejo que não se realiza. No final, um único consolo: 1 De noite, ele volta A rua de sempre, A lua de sempre, Ao sono de sempre Sob cobertores E dorme, no consolo De que, neste mundo, Apesar de tudo, Ha sempre mais leões Do que domadores. A visão final da submissão do artista àqueles que o mantêm materialmente ë bastante amarga. O consolo apresentado é um tanto suspeito, jã que a superioridade do número de leões/artistas diante do número de domadores/mecenas é incapaz de reverter o quadro. Um domador tem o controle total sobre um bom número de animais. Diante desta realidade, qual a possibilidade efetiva da arte e. do artista contestarem o poder em seu espectro vãrio? Como podem eles enga.jar-se num projeto amplo de transformação social? Como conseguir "um mundo mais justo onde o pão não custe essa cabeça baixa"? A despeito do quadro um tanto pessimista de "Do mecenato", Paes dã respostas positivas a essa questão, "poética", por exemplo, não admite a passividade e a resignação. Em "Baladilha" jã se destacou a voz que exorta o escravo a lançar mão do "fuzil" para reverter o quadro social. "A pequena revolução de Jacques Prévert" (cujo titulo faz referência ao poeta, francês Jacques Prévert, autor influenciado pelo movimento surrealista no uso de imagens e situações insólitas, associadas porém a uma linguagem irreverente e de fun- 290 do popular) é outra resposta de orientação positiva a esta questão fundamental da participação do artista. Este longo poema de sessenta e três versos encontra-se todo ele no corpo de uma única e compacta estrofe e compõe uma pequena narrativa de intenção alegórica. Os dois primeiros versos fazem jã de início menção a um poeta e ã situação singular em que se encontra: "Hã um poeta imóvel / No. meio da rua.". Estar, no meio da rua e não confinado em algum espaço fechado qualquer ( um quarto, um escritório, uma biblioteca, uma "torre de marfim", ou uma "jaula", como o leão/artista de "Do mecenato") ë muito significativo. A "rua" diz respeito a um espaço público, coletivo, espaço da agitação popular, das convulsões sociais, das revoluções políticas. Estar "no meio da rua" ê estar num espaço propício ao engajamento. Estar "imóvel", como. diz o primeiro verso, poderia ser índice de uma situação de passividade, de estaticidade. O desenvolvimento do poema desfaz, no entanto, esta possibilidade. Era. meio â agitação da cidade, o poeta permanece imóvel em seu lugar. Algumas figuras sociais representativas das vãrias faixas do poder opõem-se ao poeta imóvel, cada qual com seus instrumentos discursivos e de pressão característicos. Por exemplo: Diz um padre : - "É pecador. Blasfemou, praticou Fornicação, assalto. Por castigo ficou Atado ao asfalto." Seguindo o padre, "um rico" o acusa de "anarquista", "um soldado" vê nele perigoso "agente de potência estrangeira", 291 e "um doutor" acredita tratar-se de alguma "vitima de mal perigoso". O poder religioso, o poder financeiro, o poder político-militar, o poder cientifico, todos têm seus argumentos próprios para acusar o poeta imóvel no meio da rua. Sua presença, independentemente de qualquer ação efetiva, significa uma ameaça ao podêr, ameaça contraditória e um tanto fugidia, porém bastante concreta para os que têm sempre algo a temer do inusitado. Com a presença'do poeta imóvel no meio da rua e ãs reações a ele, a estabilidade do poder ê posta em xeque: Ante notícias Tão contraditórias, Hã queda'na Bolsa,. Pânico na Sé, Cai o Ministério, E foge o doutor, 0 padre, o soldado, 0 rico, o ministro, 0 governador. 0 poder ê abalado pelo imóvel poeta, e com o abalo todas as figuras representativas a ele ligadas debandam. 0 resultado da fuga ë curioso: Sem donos, o povo Livra-se de•impostos ; Sem padres, o povo Livra-se da missa; Sem doutores, o•povo Livra-se da. morte. As ruas se animam De vozes, de cores, De passos, pregões, Abraços, canções. Com a fuga dos poderosos, a festa geral de um povo liberto da opressão e feliz toma conta das. ruas. O .poeta, enfim, cumpriu sua missão: "E, no meio da rua, / ( . . . ) / o poeta sorri, /Completo, / Feliz.". 292 Esta insólita narrativa em forma de poesia é muito eloqüente. O poeta surge aí como figura central da revolução social. Ë ele o responsável direto pelo abalo do poder e pela redenção popular-. A sua simples e obstinada presença em meio ao coletivo ë responsável pelo desconcerto do poder e pelo pânico que o abate mortalmente. Hã aí uma fé inequívoca no potencial revolucionário da arte. Não hã menção a ações efetivas por parte do poeta, nem ao caráter da sua poesia; aliás, nem se fala explicitamente na poesia desse poeta-herõi. Tudo se passa como se a arte (na figura mesma do homem que a produz) , e qualquer arte em verdade, ao ocupar um espaço público, tivesse esse poder essencial de revolver as coisas. Implicitamente, toda. a arte seria revolucionária, desde que exposta a- espaços-mais amplos, e. radicada numa . imperturbabiliidade vigorosa com respeito ao seu valor no. âmbito, dos valores- humanos. 3.4.3 Conclusão O. título do livro de Paes, Epigramas, remete a uma forma poética da tradição literária. 49 Segundo o próprio Paes, em formulações acerca do "epigrama", este se caracteriza pela sua "expressão a um só tempo sentenciosa e econômica", pela sua "brevidade, de par com o torneio mais ou menos engenhoso por que nele ë expresso um pensamento". Ainda segundo o poeta, o "epigrama" serve como "versátil instrumento para o epitãfio e a dedicatória, a lisonja aos poderosos e a censura dos costumes, a sátira e o humor, o louvor e a.crítica literária, a confissão amorosa e erótica, a lição de moral e a exaltação do prazer". 50 A concisão e a brevidade, ou pelo menos a ten- dência a elas, estão presentes em vários dos poemas de Epigra- 24 7 mas. Muitas das possibilidades de intenção arroladas acima também se fazem notar. "Sátira", "humor", "critica literária", "dedicatória", "lição moral", "censura dos costumes" são alguns dos elementos apontados facilmente encontrãveis no livro do poeta. José Paulo Paes havia enveredado pelo terreno da critica política e social jã no trabalho' anterior, Novas cartas chilenas, de 1954, que só seria publicado em livro juntamente a Epigramas, de 1958, em Poemas reunidos em 1961. Se naquele trabalho, o poeta se debruçava sobre o farto texto da história nacional para exercitar a sua crítica de sarcasmo agudo aos poderosos, através da ironia, do humor e. da paródia de textos conhecidos, bem como alinhar-se solidário ao lado dos oprimidos em poemas por sua vez de tom de indignação, sofrimento e revolta, agora em Epigramas a perspectiva. critica.permanece, jã não mais voltada para as figuras representativas da história, mas para os diferentes grupos sociais, e instituições do presente. A contundência da crítica,aos poderosos é a mesma, como também é a mesma a sua identificação com os que sofrem sob o jugo desses. A epígrafe que abre o livro, tirada de Les Hymnes, do poeta quinhentista clássico francês Ronsard,introduz o leitor, como acontece nos livros anteriores, no espírito geral do livro: "Ainsi pleurait Justice, et d'une robe blanche / Se voilant tout le chef jusqu'au bas de la hanche, / Avec ses autres soeurs, quittant ce val mondain, / Au ciel s'en retourna d'un vol prompt et soudain". A figura alegórica da Justiça chorando, cobrindo-se toda com uma.toga branca, e deixando este vale mundano, junto ã.suas irmãs, num vôo pronto e súbito 294 em direção ao céu, dã bem a dimensão da realidade social brasileira com a qual o poeta se depara. É diante dessa desolação, que faz a Justiça chorar e fugir, que o poeta se vê inclinado a agir, e sua ação vai se dar da forma que se lhe afigura a mais produtiva na sua coiidição de escritor: através do engajamento da sua palavra poética. "Poética", como se viu, tematiza . justamente esse engajamento: a palavra poética funde-se. â palavra ética e politicamente engajada. A poesia torna-se espaço fértil.para a crítica política, social, ou cultural de um modo geral. A classe política ("A uns políticos", "Cena legislativa"), a religião meiro" e "Segundo Tema Bíblico", "II ("Pri- Poverello"), os milita- res ("Volta â legalidade"), os poderosos do capital ("Ressal- va"), a classe média C!'Ivan Ilitch, 1958"),, todos são alvo da palavra corrosiva de Paes. A miséria social é apontada, como são apontados os que ganham e os que.perdem com ela. Na oposição metafórica fundamental do livro, "lobos" e "cordeiros" encontram-se em constante confronto. 0 poeta, não se exime de dar a eles seus verdadeiros nomes: opressores e oprimidos cindem o corpo social na visão política do autor, e a solução viãvel é a supressão dos-primeiros ( "Baladilha": "Homem (...) / Levanta o fuzil / Contra o outro homem / Que te.quer escravo"). Nessa luta, o poeta, e por extensão toda a classe artística, tem papel importante. Se em "Do mecenato" a visão da subordinação do artista àquele que o mantém tem muito.de amargo quanto ã avaliação da sua efetiva capacidade de ação e transformação do quadro social geral, em "A pequena revolução de Jacques Prêvert" surge categórico o otimismo do poeta frente às potencialidades do homem das artes. O poeta encarna, em sua ingenuidade, 295 toda a utopia de uma época: o artista no meio da rua funcionando como a mola mestra da queda dos poderosos e da final e festiva redenção da sociedade. O questionamento da posição social do artista, as reflexões acerca da poesia, as referencias a outros poetas e a outros textos, compõem um tópico igualmente fundamental de. Epigramas. "Metalinguagem" e "intertextualidade" são dois conceitos-chave para se entender o espirito da poesia paesiana contida aí. O diãlogo critico com outros textos, aliãs, verifica-se jã desde O aluno e Cúmplices, na utilização de formas tradicionais e formas características de outros poetas, pas- sando por Novas cartas chilenas, no diálogo vivo com os vários textos da historia, .até desembocar neste Epigramas. Em Epigramas, a "intertextualidade" e a "metalinguagem" estão presentes jã.no primeiro poema, "Poética", texto básico para a compreensão das intenções poético-pollticas de Paes. Esta orientação se espraia por vários, outros poemas. Poe e Rimbaud, poetas importantes para o desenvolvimento da poesia moderna (o primeiro pela defesa do absoluto controle da razão no processo de elaboração poética (cf.. "Filosofia da composi- ção") , desbancando assim a figura iluminada e possessa do poeta romântico, inaugurando, a linha de tradição Poe - Baudelaire Simbolistas franceses - Poesia moderna; o segundo pela explosão genial e iluminada de sua poesia, paradigma da independência e auto-suficiência crescentes do signo poético em relação â realidade referencial) recebem poemas dedicados especialmente a eles por Paes. Outros ainda, modernos,.recebem igual homenagem, como o poeta turco Nazim Hikmet, ligado ã esquerda marxista, e o surrealista francês Jacques Prevért. A intertextuali- 296 dade e a critica metalingülstica estão ainda presentes nas referências â ;Bíblia e â linguagem bíblica (cf. a metaforiza-— cão de extração.cristã de tantas passagens de crítica de valo- res nos poemas de Paes), bem como a personagens do Cristianismo: Jesus, Maria, S. Francisco de Assis). Estão presentes no aproveitamento crítico de formas poéticas clássicas, de que são exemplo poemas como "Baladinha" é "Bucólica"; e na referência a outros textos literários, como. a "Nova ode ao burguês", que faz menção ã "Ode ao burguês", de Mário de Andrade, e o "Novo soneto quixotesco", que por sua vez faz menção ao "Soneto quixotesco" do próprio Paes. Em suma, encontram-se nas referências mais ou menos explicitas, a exigir maior ou menor erudição, que se vão acumulando nos meandros dessa poesia. Por um lado, portanto, a poesia de Paes em Epigramas aproxima-se da vertente que opta pelo engajamento político-social mais explícito, a vertente nacional-popular cepecista. São reveladoras, por exemplo, as palavras de Alfredo BOSI: (...) e s t e l i v r o t ã o s e c o na sua dicçio c o i n c i d e com um d o s m o m e n t o s de m a i s a f i a d a g a r r a p o l í t i c a do n o s s o p o e t a . E o p e r í o d o , d e c i s i v o p a r a t a n t o s de n ó s , q u e se a d e n s o u e n t r e o s f i n s d o s a n o s 50 e o c o m e ç o d o s 6 0 . T e m p o da s é r i e " V i o l ã o de R u a " p a r a a q u a l J o s é P a u l o P a e s c o l a b o r o u c o m uma. f á b u l a ardida, " C e n a Leg i s 1 a t i v a " . 5 1 Na medida em que o faz, afasta-se da vanguarda estética , o outro pólo da polarização ideológica que cinde o ambiente literário de então. Nessa perspectiva, compreende-se as opções poéticas do autor, a utilização que ele faz de uma linguagem de fãcil comunicação com o leitor, a relativa convencionalidade de sua poesia em confronto com a produção da van- 24 7 guarda: a manutenção do verso como unidade poética fundamenral; a metaforização carregada, posto que de fãcil decodificação; a utilização de rima e outros esquemas tradicionais, como formas clãssicas cristalizadas opção (soneto, balada, ode)• a por uma linguagem que, mesmo revelando uma certa con- cisão, ê ainda muito discursiva, fazendo uso predominante das unidades gramaticais superiores ã palavra; o não recurso a neologismos e ã cisão de vocábulos; e a não utilização do espaço da página como elemento composicional - estes últimos itens, componentes fundamentais .da poética concretista. No entanto, por outro lado, a poesia de Paes, na sua aparente simplicidade, na sua intenção, "metalingülstica" e na utilização da "intertextualidade" como procedimento composicional, estã em . sintonia com um dos veios fundamentais da poesia moderna, que faz desses elementos dados centrais da sua produção. O poeta que deixa transparecerão perfil evidente do intelectual de esquerda engajado nas.questões fundamentais do seu pais., que busca uma linguagem de fácil comunicação com o leitor, convive sem atritos com o poeta refinado que, na profusão de referências que semeia em seu texto, revela passear tranqüilo pela multiplicidade dos textos que compõem a tradição literária. Novamente o Paes "poeta dos livros", "aluno" e, a cada novo trabalho, cada vez mais "mestre de poesia", se vai revelarído. 25 8 3.5 ANATOMIAS 3.5.1 (1967) Introdução 0 quinto trabalho poético de Paes, Anatomias, foi pu- blicado em 196 7, num instante politico-cultural critico e de grande efervescência no pais. 0 golpe militar de 1964, com a deposição de João Goulart, havia posto fim ãs aspirações verdadeiramente democráticas do Brasil. Diante da instabilidade e agitação políticas e do agravamento do quadro econômico ao longo dos conturbados governos de Jânio Quadros e Goulart no início dos anos 60, o medo da rebelião popular e do comunismo tomou conta de amplos setores da classe : média e da elite brasileiras.A propanda anti-comunista e a pressão norte-americana eram intensas então, sobretudo com o acirramento da Guerra Fria apôs a Revolução Cubana e os progressivos desentendimentos estratégico-militares entre. .. Estados Unidos e Cuba, esta com o apoio da aliada União Soviética. As organizações políticas de intensa militância, como os partidos políticos, os sindicatos e as organizações estudantis, que se opuseram francamente ao golpe, sofreram violenta perseguição e censura. No entanto, a produção cultural continuou se movimentando dentro de um espaço ainda relativamente livre, organizando nesse espaço o que ainda era possível em termos de uma resistência â ditadura militar. Em dezembro de 1-96 8, portanto quatro anos apôs o levante inicial, com a edição do AI-5, a repressão recrudesceu, censurando jornais, músicas, peças de teatro, livros, filmes, perseguindo, torturando, banindo-do país, calando a melhor,, parte de seus intelectuais e artistas. 299 Nos quatro anos que formam esse breve intervalo que vai do golpe de 64 ã edição do AI-5 em 1968 e o recrudescimento da repressão, o "golpe dentro.do golpe", a produção cultural brasileira dã continuidade ãs tendências que haviam surgido ao longo da segunda metade da década de 50 e inicio dos 60, radicalizando, no entanto, no seu evidente impulso de reação ao golpe, no sentido da contestação política e, posteriormente, também comportamental. Na literatura, e em especial na poesia, os movimentos de vanguarda haviam incendiado o cenário com a radicalidade de suas propostas a partir de meados aos anos 50. Movimentos radicais são seguidos e contestados por dissidências de radicalidade similar, como ocorre por. exemplo.com o Concretismo e o Neoconcretismo. As carências estéticas e políticas de um movimento são questionadas com o surgimento de outros grupos. A Poesia Práxis (1962) contesta as limitações políticas do Concretismo, sem abrir mão da pesquisa formal radical. 0 Poema Processo (1967) acaba por levar certas tendências do Concretismo ãs suas últimas conseqüências. Outras tendências rejeitam a vanguarda estética como opção. Aproximam-se do nacional e do popular, advogam uma poesia vincada pelo engajamento político-social mais explícito, uma poesia em que a comunicação com as clasees populares visando sua conscientização revolucionária surge como elemento norteador das opções estéticas. As publicações de poesia (bem como outros eventos culturais) organizadas- pelos CPCs ( Centros Populares de Cultura) da UNE são exemplos característicos dessa vertente. Estas polarizações de natureza estética, e no fundo também política, e as tentativas de superá-las espraiam-se por 300 outros setores da produção cultural. A música popular, cujo impacto sobre a sociedade em muito ultrapassa o de qualquer o u t E a produção, está cheia de tensões e contradições. A Bossa Nova surge no final da década de 50 mais ou menos dentro do mesmo espirito modernizador, guardadas obviamente as grandes diferenças, que estã por trás dos movimentos poéticos de vanguarda. Restrita' ã.principio, nos temas das. letras de música que louvam a paisagem e o amor, aos referenciais poéticos dos garotos de classe média da Zona Sul carioca, pouco a pouco, na pessoa de alguns de seus membros, vai se orientando em direção ao engajmento político, aproximando-se da perspectiva cultural cepecista, engrossando o veio ..da música de protesto que iria--tomar; conta da música popular brasileira ao longo dos anos 60. Paralelamente--a esses movimentos-, outra-corrente da música popular, a'"Jovem Guarda,, toma conta do cenário, agora sob a influência do rock, com suas letras pueris e sem a sofisticação musical..da. Bossa Nova ou a consciência política da música de protesto. Mais ao fim da década,, o Tropicalismo surge como forma de ultrapassar os impasses políticos e estéticos da poesia engajada, e da música de protesto, lançando num mesmo caldeirão as mais tensas informações, do veio modernizador original da Bossa Nova a outros terrenos menos assépticos e refinados da música popular e de massa, namorando com o Modernismo brasileiro em sua vertente oswáldiana, „com as figuras centrais do Concretismo e outras da arte de elite, ao mesmo tempo em que bebe na Contracultura o que hã al de vitalismo, irracionalidade e contestação em termos de comportamento, buscando apreender assim o país no amplo quadro de suas contradições . 301 Nos outros meios artísticos a efervescencia se repete. No cinema, o Cinema Novo de Glauber Rocha e tantos outros cria o filme de autor e surge como alternativa altamente intelectualizada â insipiencia critica das chanchadas cinematográficas. Nas artes plásticas, da Vanguarda anos 50 á nova antropofagia do Tropicalismo, as opções seguem muito de perto o próprio desenvolvimento da arte literária. No teatro, os grupos ligados ao Teatro de Arena e ao Teatro Oficina percorrem as possibilidades do teatro politicamente engajado de orientação nacional-popular â critica de comportamentos de raiz irracionalista, sob a influencia da Contracultura, jã na boca dos anos 70. Até a ressaca cultural que- vai gradualmente tomando conta dos anos 70 ,-fruto do recrudescimento- da. repressão do Regime Militar e do massacre cultural crescente dos meios de massa, sobretudo da televisão, frente aos outros meios de divulgação cultural, o pals vive um dos seus..momento s político-culturáis mais vibrantes da história recente. Ë com esse ambiente que está, de forma mais ou menos explicita, dialogando a poesia de Paes de então, acompanhando muito de perto todas as suas tensões e transformações. 3.5.2 Análise 0 titulo do livro anterior de Paes., Epigramas, faz menção a uma determinada forma poética, a um determinado tipo de poesia, em que a. brevidade, a concisão, a contençãç das formas são os meios para a expressão de.um pensamento engenhoso, agudo, sintético e tantas vezes critico e ferino. 24 7 A poesia paesi.ana, já desde o primeiro livro, prefere optar, mesmo nos momentos de maior angústia do sujeito, ou de intensa efusão de lirismo amoroso, ou ainda nos momentos de violenta irrisão diante dos poderosos ou indignação com as injustiças sociais e os sofrimentos dos oprimidos, por uma certa contenção. Não hã longos versos derramados, acúmulos de metáforas difíceis, de adjetivos enxundiosos ou de interjeições e reticências nos poemas de Paes. Hã poemas extensos, como em Novas cartas chilenas, onde aliãs uma dicção de sabor, pode-se dizer, épico, jã pela própria matéria.tratada, invade tantas composições, mas a regra são poemas de poucas estrofes, de versos curtos, e expressão, enxuta. Hã. inclusive poemas muito curtos., como" "Drummondiana" ( O aluno) , "Epigrama" e "Madrigal"- (Cúmplices)"", "L-1affaire" Sardinha" (Novas cartas chile- nas) e "Bucólica" ( Epigramas) , entre outros.. A opção do poeta pelo humor, pela tirada espirituosa, pela ironia, ou mesmo pelo franco sarcasmo- a. forma encontrada, segundo o próprio poeta, de resolver "o.problema da participação via poesia" 5 3 , presente sobretudo em Novas cartas chilenas, mas latente tambán en Epigramas, livros em .que o. problema do engajamento político-social surge como central para o autor - casa-se bem com o veio epigramático que se vai evidenciando em sua produção. Essa tendência ã brevidade, ã contenção formal, a opção pelo artefato engenhoso e pelo humor, como exercício de crítica surgem ã consciência do próprio poeta a ponto de ele denominar Epigramas todo um conjunto de poemas seus. O poeta parece manifestar assim uma aguda consciência literária em relação ã sua produção e aos caminhos que ela vai tomando, de 303 forma até visionaria, pois essas características, na passagem para este novo livro, tornam-se ainda mais presentes. O veio epigramático vislumbrado em 1958, ainda.um tanto tímido no próprio Epigramas, vai se manifestar de. forma radical e convicta agora em 196 7 neste Anatomias. Um primeiro exemplo em que a contenção e o rigor formal, aliados ã mais intensa expressividade, podem ser experimentados ë este brilhante "Epitalâmio": EPITALAMIO uvá pensa da concha oclusa entre.coxas abruptas teu vinho sabe ã tinta espessa de polvos noturnos (falo da noite primeva nas águas do amor da morte) Alguns aspectos formais chamam a atenção logo de inicio. Em primeiro lugar, a disposição visual do poema: três blocos, cada qual formado por quatro linhas, dispostas num crescendo, em termos de extensão, da primeira â última, centradas numa espécie de eixo interno ao invés ; dé partirem todas de uma mesma margem ã esquerda, cujo resultado visual é a formação de três triângulos semelhantes. Hã um aproveitamento, portanto, do espaço como: elemento constituinte do próprio poema. Este recurso ê novo na poesia de Paes, que até o livro anterior preferia manter-se dentro dos padrões convencionais de utilização e disposição dos versos, alinhados sempre a partir da margem 304 esquerda e sera intenção de extrair do contraste branco/preto das palavras em relação ã página qualquer significado. Em segundo lugar, observa-se a ausênciavde pontuação (excetuando-se os parênteses do último bloco) e de letras maiúsculas. Estas características são também novas na poesia de Paes, até então atenta ao maior rigor normativo no uso da pontuação, não .dispensando nunca, no inicio das frases, o uso das maiúsculas, que, aliãs, com exceção de alguns poemas de O aluno, podem ser observadas também a cada todo novo inicio de verso. A abolição da pontuação convencional tem como resultado um maior.relaxamento da própria sintaxe e do movimento expressivo do fluxo poético. As palavras ganham uma maior autonomia com i s s o t e n d e n d o assim a tornarem-se as "unidades - gramaticais básicas dos-poemas. ..A ausência de maiúsculas contribui para tanto, jã que as maiúsculas marcam sempre com bastante evidência cada novo inicio de segmentação sintãtica. As „.maiúsculas, deixando. de . ser compulsórias, tornam-se expressivas quando delas por acaso.se faz uso. É mais ou menos o que ocorre com o uso dos parênteses no terceiro bloco, que o destaca dos demais pela presença desse recurso gráfico. Essas características formais observadas neste "Epitalamio", novas no âmbito da poesia paesiana, não são caracte- rísticas meramente exteriores, de presença mais ou menos gratuita, que por acaso poderiam ser dispensadas sem que isso afetasse em muito as potencialidades expressivas do poema. A valorização do espaço e as opções gráficas precisam, ser vistas em tensão com os demais aspectos do texto, para daí se poder aferir melhor o seu significado composicional. 305 O termo "epitalamio" - do grego "epithalámion"• "epi", sobre, "thálamos", câmara nupcial 5 4 - designa um tipo de poe- ma ou canto de conteúdo laudatorio dedicado àqueles que contraem núpcias. Trata-se, portanto, de uma celebração da união conjugal entre homem e mulher. Com a chave semântica que o titulo propicia, pode-se partir para a consideração do primeiro bloco. Do ponto de vista da sintaxe, observa-se que não.hã ai.propriamente uma oração. O que se tem ê basicamente um segmento sintático nominal de certa extensão, formado por substantivos e adjetivos pospostos ( "'uva pensa", "concha oclusa" , "coxas abruptas"), ligados entre si por preposições (.-"da" , "entre"), que se expande pelas quatro linhas do-bloco. Esse estilo nominalizante sintoniza-se bem com o objeto que o olhar poético está focando, procurando captã-lo em toda a sua plasticidade e estaticidade. Chama a atenção a linguagem carregadamende figurada al presente e o que ela tem de enigmático numa.primeira leitura. "Uva" e "concha" são certamente metáforas. "Coxas" está empregado em seu sentido literal, pelo menos um elemento concreto e explícito pode ser deparado aí, referência importante para o entendimento das metáforas. Mas as tensões semânticas convidam aos vôos da imaginação interpretativa. "Uva" remete imediatamente a idéia de "fruta", algo que pelo seu sabor, pelo. seu frescor, pela sua doçura atrai muito o paladar do homem; algo bom de ser. provado, bom de ser saboreado. "Uva", enquanto uma "fruta", pode ser vista como um objeto caro ao prazer humano., portanto algo que surge enquanto um objeto do desejo do homem. No.contexto do poema 306 - afinal trata-se de um "epitalamio", um canto de celebração da união homem/mulher - esse desejo pela "uva pensa" reveste-se de contornos de evidente erotismo. Saborear a "uva" ë saborear os prazeres do corpo e da sexualidade humana. Nessa linha de leitura, outros elementos sugestivos depreendidos do termo "uva", sobretudo pela sua plasticidade,.tornam-se muito significativos. A coloração avermelhada da "uva", bem como a sua própria umidade e textura, podem evocar a coloração e materialidade do sexo feminino. Pela sua cor e pela forma, um cacho de uvas lembra muito bem o formato e. a coloração ensombrecida de um púbis. A própria forma triangular dos blocos na espacialização do poema na. página remetem ao cacho, de uvas e ao púbis da mulher. "Concha" é metáfora que pode ser lida nessa mesma direção. A "concha oclusa" guarda inevitavelmente, um mistério interior, algo que estã. fechado para o mundo, algo que se abriga dessa visão que vem de fora e que ameaça profanã-la. A "noiva" se guarda de. forma similar para o "noivo", quer se olhe pela perspectiva dos afetos, quer se carregue nas cores da sexualidade. Nesta segunda direção,.obviamente estreita- mente ligada ã outra., convém lembrar que o termo "concha" ë sinônimo no dicionário para "vulva". 55 Visualmente, os dois objetos podem ser postos em estreito paralelo. Também a forma triangular de certas conchas encontra realização gráfica na sugestiva construção visual do poema. Lembre-se aqui,, num curioso paréntesis comparativo, de uma das estrofes do belíssimo "Ãgua-forte" 56 , de Manuel Bandeira, onde "concha" surge em contexto muito similar ao do poema de Paes, com nítida intenção de acentuar os aspectos 307 plásticos do corpo e sexo femininos (intenção aliãs presente no próprio titulo "Ãgua-forte"): "Em meio do pente, / A concha bivalve / Num mar de escarlata. / Concha, rosa ou támara?" Repare-se nos vários paralelos possíveis: "pente"/cacho de "uva" - púbis; "conha bivalve"/"concha oclusa" - vulva; "mar de escarlata"/cor da "uva" - coloração do sexo feminino; "rosa"/"uva" - nova sugestão de cor; "támara"/"uva" - a.fruta como metáfora. Finalmente o termo "coxas" desfaz qualquer interpretação que se poderia julgar fantasiosa no tocante aos demais. O corpo feminino é aqui diretamente nomeado. "Coxas" é o pano de fundo para "concha" e "uva". E as "coxas" são "abruptas", adjetivação" inusitada è expressiva.,, que confere ao substantivo nuanças curiosas,., como se o corpo feminimo, até.então.um tanto quanto velado,. escondido por'.-detrás das " metáforas" anteriores, surgisse revelado aqui. sem qualquer pudor ou encobrimento, numa espécie de susto palpitante, e súbito. A visão do sexo feminino na sua materialidade vibra, nas fortes imagens do poema. Juntamente ao plástico, as metáforas evocam outros sentidos, mais afetivos, como se procurou mostrar. As sonoridades al presentes são também muito sugestivas. Repare-se no "u" que ecoa através de alguns vocábulos: "uva", "oclusa", "abruptas". 0 arredondamento dos lábios para a formação dessa vogai fechada posterior remete ã circularidade do bago da "uva"; o "fechamento" necessário para a formação do som, com a língua restringindo a caixa de ressoa nância formada na. boca, evoca também a "concha oclusa"; e ainda, acentuando ainda mais o erotismo latente no poema, esse mesmo formato da boca para a produção do som pode ser 308 posto em paralelo com o sexo feminino. Outras reiterações sonoras, responsáveis por aliterações salientes, chamam também a atenção: a fricativa palatal - "concha", "coxas"; a oclusiva velar - "concha", "oclusa", "coxas"; os sons vocálicos nasais que dominara os. inicios de verso - "pensa" , "concha", "entre". E repare-se ainda na sugestiva sonoridade do. adjetivo "abruptas": a própria semântica do termo parece estar sintetizada em certos encontros consonantais, como /br/, mas sobretudo /pt/; os bloqueios postos â passagem do... ar para a formação do som e a sua transposição aparentemente difícil e cheia de tropeços dão a sensação de algo que se revela ao final de forma repentina e "abrupta". O segundo bloco difere sintaticamente do. anterior pela presença de uma oração~completa : que se desdobra---ao~ longo das linhas. A linguagem aí presente, como no trecho anterior, ë carregadamente figurada. 0 sujeito da oração "teu vinho" traz outros elementos importantes para a interpretação., 0 possessivo "teu" presentifica uma espécie de interlocutor, potencial, do sujeito poético. No contexto do poema, o sujeito ë certamente, o "noivo" e a interlocutora. potencial a "noiva"., "Vinho" estabelece uma relação semântica imediata com a "uva" do primeiro bloco. Se lã o apelo sexual da "noiva" tomava a.forma de um fruto que se oferece para o desfrute do "noivo", aqui essa "uva" fermenta, e a doçura e o frescor originais tomam, outro sentido ao se potencializarem na embriagues do "vinho". Percebe-se um crescendo na passagem do primeiro para o segundo bloco: de uma certa doçura presente ainda na "uva", passa-se para um ambiente de quase luxuria presentifiçado no "vinho". 309 "Sabe" ë forma conjugada do verbo "saber" no sentido de "saber a", ou seja, "ter o sabor de". Se no primeiro bloco o quadro tinha muito de estático, como se o sujeito poético simplesmente visualizasse.de certa distância o seu objeto, destacando assim os seus contornos plásticos, aqui a relação entre os dois se dinamiza. 0 "noivo" efetivamente "prova" da "noiva", ou seja, o ato se realiza. E o sabor desse "vinho" ë curios!ssimo: ele "sabe ã tinta espessa de polvos noturnos". 0 movimento sinestësico de todo o bloco é precioso. Do paladar passa-se ã. visão,.através de um movimento interior de sutillssimas ligações: "vinho" relaciona-se ã "tinta" pela co loração - há também ecos possíveis da expressão "vinho tinto" como ' se ela tivesse sido- aqui desmembrada-; "tinta- espessa" liga-se a "polvos", animal que, quando em perigo solta uma -tintura de coloração .escura, para se..proteger; a "tinta espessa", de coloração escura como o "vinho", secretada pelo animal, reverbera no adjetivo "notuamos", posposto a "polvos". Repare-se, portanto, na ligação engenhosa dos vários elementos, extraídos de universos tão dispares. Repare-se também nas possibilidades de sentido ai presentes. 0 "noivo" prova, do "vinho" da "noiva"; assim, aquele belo e estático quadro inicial se rompe, e o que se tem agora ë a dinâmica dos amantes em conjunção amorosa. O "vinho" remete â embriagués do ato, ao envolvimento inebriante dos sentidos. O "vinho" é escuro como "tinta", como, escura ë a noite, escuro é o ambiente do quarto, e escuro o mergulho do casal no envolvimento,total dos corpos. A "tinta" ë a "tinta espessa de polvos noturnos", pense-se aqui no movimento convulso dos varios membros do "polvo" e o que há nisso de 310 raimético em relação ao movimento emuriagado dos membros dos corpos dos amantes. Pense-se também na forma como o animal ataca suas vitimas, literalmente sugando-as através dos vários orifícios espalhados pelos seus membros, e o paralelo que a partir dal se pode estabelecer com as caricias mais ou menos violentas do par amoroso. A imagem de "polvos" se enrodilhando em meio ãs suas secreções escuras como "tinta espessa" sugere muito bera.a imagem noturna (referência explici- tamente presente em "polvos noturnos") da união amorosa dos "noivos". Aqui também.alguns aspectos relativos ã sonoridade podem ser destacados. Alguns ecos sonoros internos amalgamam muito bem as palavras num todo fónicamente-necessário-e coeso: oclusivas llnguo-dentais - "teu", "tinta"v" "noturnos"; oclusivas bilabiais - "sabe",, "espessa", "polvos"; fricativas alveolares - "sabe", "espessa"; vogais posteriores fechadas, em forte recorrência na expressão. - "polvos noturnos". O terceiro bloco ë também, como o segundo, composto por uma oração completa, se se interpreta o termo inicial "falo" como forma conjugada do verbo "falar"..É também possível entendê-lo enquanto substantivo, no sentido de órgão sexual masculino, apesar desta leitura soar um pouco mais forçada; a seqüência semântico-sintática não a desabona, no entanto. Neste segundo caso, não se teria propriamente uma oração, mas sim um segmento., sintático nominal como ocorre no primeiro bloco do poema. Orientando a leitura para a consideração do primeiro termo como forma conjugada do verbo "falar" ( se bem que a outra possibilidade conduz a conclusões similares ãs que se 311 vai chegar), novamente ressalta-se a presença do sujeito poético, que assume explicitamente, por trás da primeira pessoa do verbo, as enunciações al presentes. Após o desenvolvimento dos blocos anteriores, o sujeito surge agora como se fosse necessário uma espécie de intervenção a fim de "explicar" o sentido das enunciações precedentes, de "corrigir" o seu sentido de leitura, de redirecioná-lo para extrair delas um sentido de simbolismo muito mais amplo. A presença dos parênteses no inicio e no fim do bloco ressalta essa perspectiva, insiste em que se trata ai de um segmento que recebe uma marca distinta dos demais, que portanto tem um peso diferente e como tal tem de ser lido. No primeiro bloco, .um, olhar poético exterior procura captar a plasticidade estática de um determinado objeto. 0 sujeito poético, "o"r"noivo" do"^"epitalamio", centra a sua -atenção no corpo da "noiva", nomeadamente no sexo desta,descrevendo-o com uma linguagem intensamente. figurada. No segundo, a distância inicial entre sujeito e objeto, intermediada pelo olhar descritivo do primeiro, é quebrada. O que poeticamente se descreve de forma muito sugestiva agora ê a união carnal dos dois na franca realização do ato. No terceiro, este desenvolvimento como que se expande de forma violenta. O sujeito intervém, como se estivesse fazendo reparos e quisesse extrair da conjunção amorosa outros sentidos. 0 ato jã não vale mais enquanto ato individual, particular, localizado no tempo e no espaço, ato simplesmente carnal, mas enquanto uma comunhão de vasto significado simbólico. Como entre o primeiro e o segundo, são várias as pontes possíveis entre o segundo e o terceiro blocos. "Noite" 312 liga-se ã "tinta espessa" e "polvos noturnos". "Ãguas" ecoa em "polvos", visto ser este o seu "habitat". A expressão "ãguas do amor da morte" estabelece ainda várias relações com "polvos". Jã se destacou que o entrelaçamento amoroso do casal pode lembrar a imagem de "polvos" entrelaçados. Mas o polvo ê animal predador, e o seu "abraço" . significa também a "morte" daquele que ele abraça. No terceiro bloco do poema, a primeira noite do casal assume dimensões de simbolismo arquetlpico. "Noite primeva" não ë simplesmente a "primeira, noite",.mas uma noite que remonta a algo de primitivo e primordial. A noite amorosa singular vivida pelos amantes atualiza.um ritual fundamental de união experimentado desde a origem, da. humanidade. O termo "ãguas", contexto.simbólico, em_que a "noite" é experimentada, ressalta esse sentido. As. "ãguas" estão ligadas à própria origem dos seres e ã sua manutenção, são fonte de vida, de purificação e de regeneração. Mas as águas são também símbolo de destruição, de aniquilação, de morte. 5 2 "Ãguas do amor da morte" reitera esse simbolismo jã contido em "águas". A união amorosa aponta para a permanência da vida, mas ao mesmo tempo para a fragilidade da própria vida e. a sua condenção ã inevitável aniquilação final. O próprio prazer do ato traz embutida essa dupla orientação. É vivenciado enquanto "amor" durante a realização, mas também enquanto uma espécie de "morte" quando atingido o fim. A expressão, final "do amor da morte" é muito sugestiva, e merece maior detalhamento descritivo. A ausência de pontuação, por exemplo de uma vírgula, que acaso distinguisse dois segmentos "do amor"/"da morte", acentua a estreita rela- 313 ção entre eles, como se fizessem parte de um todo, sentido aliãs jã presente no termo "ãguas" enquanto meio comum a ambos. Somando-se à ausência de pontuação, estão também as similaridades sonoras entre "amor" e "morte". Ambos tem uma sílaba similar "mor" , a despeito da vogai, ser mais fechada num caso e mais aberta no outro. Curiosamente, em "amor" observa-se uma sílaba anterior, ao passo que em "morte" o que se tem é uma posterior. Hã.uma espécie de simetria nisso: a partir da sílaba comum, num caso hã um prolongamento em.direção a uma anterioridade ("amor" enquanto algo que estã na "origem" das coisas) e no outro um prolongamento em direção a uma posterioridade ("morte" enquanto algo que estã no "fim" de tudo). Aspectos sutis que não deixam de chamar a atenção e ser muito significativos •poeticamente. Como.se pode ver, o poema " E p i t a l a m i o n a sua conten- ção de linguagem, na sua expressão altamente.condensada, dã margem a muitas considerações. A forma ë sintética, mas as potencialidades que ela abriga são muito vastas. Os três blocos estruturam-se num crescendo, que vai da apreensão da materialidade do corpo feminino, passa.pela realização singular do ato dos amantes e chega a experimentação do ato. em seus sentidos simbólicos mais vitais, nas suas relações com os princípios fundamentais do "amor" e da "morte". A espacialização dos blocos pode ser vista assim em novos sentidos. Se anteriormente chamou-se a atenção para as similitudes entre o triângulo, forma assumida pelo contraste '•preto das palavras" / "branco da página", e o formato de um cacho de uvas, de uma concha e de um púbis feminino, a espacialização pode ser vista também de forma menos óbvia 314 nas suas intenções miméticas. Assim, o triângulo, da forma como está disposto, partindo de um ponto situado ao topo até a base mais ampla situada abaixo, representa o próprio movimento em crescendo dos sentidos presentes nos blocos. No primeiro, da "uva" inicial ao contexto concreto mais amplo em que ela se localiza: "coxas". No segundo, do "teu" referindo-se a um dos amantes exclusivamente a. principio, aliás àquele que recebe, destaque na primeira estrofe, até a conjunção amorosa do casal, sentido possível relativamente a "polvos noturnos". No terceiro, finalmente, do verbo inicial "falo", que abarca o que foi dito até então, até a expressão final que amplia vastamente o sentido da relação amorosa,, projetando-a no amplo painel da própria vida.enquantoJ"princlpio" e "fim", "amor" e "morte"... Esse. movimento, que vai de algo menor em direção a algo maior (do vértice do triângulo â sua base) pode ser" visto também em:relação â totalidade do poema: da visão do corpo feminino, passando pela conjunção amorosa, até o amplo sentido simbólico e .vital disso. 0 movimento é ternario, como são também três.os blocos, em sintonia com os três lados dos triângulos. Este belo poema de Paes prima, portanto, pela rica concentração expressiva que apresenta. As. linhas que formam os blocos são muito breves, formadas, até por uma única palavra, como é o caso das primeiras de cada bloco ; estes são construídos com concisão geométrica; a utilização do espaço em branco da página ê muito.sugestiva, e ecoa o próprio movimento poético do todo; a concatenação dos elementos metafóricos ê belíssima e densa de sentidos; o desenvolvimento do poema num crescendo em três tempos ë preciso. 315 A concentração verbal rigorosa al presente pode ser conferida em outros poemas do. livro.. A concisão vai se revelando uma palavra-chave para o entendimento da poética paesiana. Extrair de um mínimo de elementos a máxima densidade poética possível ê, afinal, a arte do poeta epigramático. Alguns poemas têm forma muito concisa, como ë o caso da seguinte composição: A MODA DA CASA feijoada marmelada, goleada quartelada 0 poema compõem-se de somente quatro palavras, cada uma delas- no corpo de uma- linha. Diferentemente de.. "Epitalamio " , em que predominam unidades sintáticas superiores ã palavra, aqui são elas o centro de todo o poema. Todas as quatro palavras aí presentes têm em comum.determinadas características sonoras e morfológicas. Todos os termos são substantivos com um mesmo tipo de sufixação. Todos são paroxítonos e têm quatro sílabas ao todo. 0 sufixo comum "-ada" estabelece airida uma espécie de rima, um paralelismo sonoro marcante entre eles. 0 título "Ã moda da casa" ê fundamental para o entendimento do todo, pois ê ele que estabelece um contexto semântico comum para as várias palavras, orientando assim a própria leitura do poema. "A moda da casa" é expressão extraída do universo da gastronomia. Um prato "â moda da casa" é um prato elaborado de forma especial por um determinado estabelecimento gastronômico, de receita exclusiva, em geral não 316 encontrável em outros lugares nas suas particularidades. No contexto do poema, esse conceito extrapola os limites da culinária e "ã moda da casa" passa a referir-se. a determinados elementos, a determinadas realidades típicas da sociedade e da cultura brasileira, que constituiriam assim as suas "especialidades" . 0 primeiro substantivo que segue o titulo, "feijoada", diz respeito a esse universo gastronômico de onde a expressão "ã moda da casa" foi retirada. Trata-se de um prato típico da culinária brasileira, originário, segundo o senso comum, da alimentação dos escravos negros> que acabou conquistando a casa-grande. Portanto, num certo sentido,. para além. da referência a um prato típico, e-popular, . pode ser. visto também como um emblema da nossa própria formação cultural. 0 substantivo seguinte, "marmelada", no sentido primeiro de "doce de marmelo", ë termo que remete também ao universo da culinária. No entanto, este não ê seu único sentido. "Marmelada", segundo o dicionário, tem também outros significados, aliás até mais fortes que o primeiro: "negócio desonesto, mamata"; "conluio entre os participantes de um jogo ou competição, a fim de que o resultado seja favorável ãquele a quem convém sair vencedor". 58 Assim, "ã moda da casa" não seria somente o doce, mas, e sobretudo, a tendência ã trapaça, à picaretagem, ã desonestidade, ã malandragem, o desejo de passar os outros para trás através de expedientes escusos. No contexto do poema, estaria se referindo também a um traço marcante do homem brasileiro, ou de "certos" homens brasileiros. 0 terceiro substantivo na seqüência, "goleada", diferentemente dos anteriores, não tem qualquer relação com o 317 universo culinario do qual se extraiu o título do poema. "Goleada" remete a um contexto característico da cultura brasileira, o futebol. Liga-se, por este caminho, à.\"feijoada" , no que tem de típico, emblemático e positivo, por volta de 196 7, quando vem a público Anatomias, o Brasil já era bicampeão mundial e estava a caminho do tricampeonato rio Méxcio. 0 futebol era um orgulho nacional, e a "goleada" assinalava a superioridade característica do nosso futebol, forma compensatória de marcar, pelo menos am alguma via, a superioridade do homem e da cultura brasileiros frente aos outros países. "Quartelada", o último termo, porém, descamba para um pólo oposto a este. Liga-se de alguma forma ã. "marmelada" , no que este termo tem de negativo. 0- sentido é~ pejorativo e diz .respeito, genericamente, ãs rebeliões intentadas por militares a fim de tomar o.poder. No caso concreto do contexto político de então, a referência aponta para o golpe militar de 1964. Chamar a "gloriosa" revolução de "quartelada" revela a postura de sátira e sarcasmo tomada pelo poeta frente à questão. Situã-la neste rol de coisas características do país retira dela toda a sua singularidade, toda a aura postitiva que pudesse encobrir o seu real sentido político. Como."marmelada", situa-se apenas como mais um dos "vícios" da realidade brasileira. A intenção satírica do poema ê evidente. Na dialética de aspectos supostamente positivos "versus" aspectos certamente negativos ("feijoada" x "marmelada" x "goleada" x "quarte- lada") projeta-se um quadro corrosivo e crítico da realidade nacional." Os aspectos supostamente positivos recobrem áreas como alimentação ("feijoada") e esporte ("goleada"), ficando os negativos como caracterizadores dos aspectos morais ("marme- 318 lada") e políticos ("quartelada"). 0 peso dos segundos na formação do perfil cultural de um povo ê muito mais decisivo do que o dos primeiros. Por isso, no cómputo geral, o que se tem na verdade ê um quadro do país agudamente crítico e negativo. As supostas virtudes ( ^"feijoada" e "goleada") acentuam, por contraste, ainda mais os nossos vícios (:"marmelada" e "quartelada") . "Ä moda da casa" é um exemplo muito feliz de concisão e contundência satírica. Com pouquíssimos elementos o poeta, consegue traçar todo um quadro crítico da realidade nacional. Com quatro substantivos com estreitas relações morfológicas e sonoras entre si, o que do ponto de vista formal estabelece um alto. grau de. coesão— entre as partes, numa.seqüência inteligentemente pro jetada,--dentro : de _.um_. contexto . semântico cuja unidade ë garantida pelo título, o poeta compõe iam poema incisivo e muito eloqüente. Igualmente incisivo e eloqüente ë outro poema muito breve e satírico de Paes, "Epitãfio para um banqueiro": EPITÃFIO PARA UM BANQUEIRO negócio ego ócio cio 0 0 termo "epitãfio" (grego "epitãphion", "epi", sobre, "tãphos", túmulo) 59 . designa, originariamente, um certo tipo de inscrição colocada sobre as lápides tumulares. Esta prática acabou, porém, por desenvolver-se com certa autonomia atë adquirir estatuto de poesia. 0 termo passou a< designar uma forma poética circunstancial, de intenção oscilante entre o 319 laudatorio e circunspecto e o jocoso ou ainda o satírico. Ë na qualidade de composição satírica que se realiza o presente "Epitãfio" de Paes. Como no poema anterior, o poeta atém-se à palavra como elemento básico sobre o qual se dá o trabalho poético. Aqui, porém, ao invés da seqüência de diferentes palavras a partir de um mesmo modelo paradigmático, o poeta trabalha com um vocábulo básico, "negócio", fragmentando-o e extraindo do seu interior novos vocábulos significativos: "ego", "ócio", "cio" e um algarismo: "0", este obtido a partir de sua semelhança com a letra "o". Da própria forma.da palavra - sobretudo das próprias letras, mas por extensão também dos sons que a compõem -, o poeta extrai outros vocábulos, sem que para...tanto.. se-ja-.necessãrio embaralhar sílabas, ou redistribuir as letras. Tudo se dã como se estas outras palavras fossem extraídas "naturalmente" de dentro da palavra-matriz, sem maiores artifícios, sem truques. A própria disposição dos vocábulos no poema acentua este aspecto. Todos têm suas letras ligadas a um mesmo eixo. Em certa palavra algumas letras se atualizam, se realizam, e outras não,.como se permanecessem encobertas. Noutra palavra, a concretização é diferente. Douimesmo modo como as palavras, do ponto de vista da forma, encontram-se potencialmente n!o interior, da palavra-matriz, também o.significado destas pode ser visto como presente na composição do significado do termo maior. É esta correspondência, aliás, entre forma e sentido o que mais chama a atenção no poema. "Negócio" ê a atividade básica do "banqueiro".."Ego", termo latino que significa "eu", remete a certo aspecto dessa 320 atividade, que visa o beneficio precipuo quando não explicitamente único do próprio banqueiro, portanto do "eu", do "sujeito" que estã por trãs dela. O termo "ócio", por sua vez, é outro termo que remete a determinado.aspecto do "negócio", da atividade do "banqueiro". O acúmulo e a manipulação do capital podem ser vistos como atividades."ociosas" em relação ao trabalho produtivo, por exèmplo, de operários e lavradores. "Cio", segundo o dicionário, "período de desejo sexual intenso dos animais", e, por extensão, "o apetite sexual das pessoas" 60 , pode ser estendido, na expressão satírica do poeta, ao "desejo", "apetite financeiro" intenso do banqueiro, sempre pronto para "multiplicar" seu capital, da mesma forma como os animais, -quando no "cio"; encontram-se. inclinados a multiplicar a própria espécie. O algarismo .final "0" pode- dizer respeito- ao resultado -final" do "negócio" do "banqueiro" ;em-termos sociais ou morais, por sua natureza egoísta (.-"ego"), improdutiva ("ócio") e predadora ("cio"). Pode dizer respeito também ao próprio destino do "banqueiro", que, como todos os outros seres, apesar das pretensões, estã condenado ã aniquilação. Este segundo sentido reverbera também o título do poema, "Epitãfio para um banqueiro". Como no poema anterior, estã-se diante de um poeta que faz de sua expressão violentamente incisiva uma arma de crítica em relação ã sociedade, seja em seus aspectos mais globais, como em "Ã moda da casa", seja ela orientada para determinado grupo ou instituição social, como neste "Epitãfio para um banqueiro". Esta.crítica recai também sobre a civilização como um todo, como neste curioso "Cronologia": 321 CRONOLOGIA A.C. D.C-. W . C. Se nos poemas anteriores ë a palavra o elemento básico com o qual o poeta trabalha, aqui ele. escolhe elementos ainda menores: as abreviaturas. Dispostas assim em seqüência, as abreviaturas sugerem, em sintonia com o titulo, uma curiosa cronologia. "A.C.", antes de Cristo , e "D.C.", depois de Cristo, são abreviaturas de expressões que se referem a períodos de tempo que tomam como base o nascimento de Cristo. Trata-se de uma convenção na segmentação do tempo consagrada no mundo ocidental, que acabou-^, pela-própria expansão política e econômica de alguns- paises que-dele—-fazem .parte , se estendendo ao mundo como um todo. "W.C. " e abreviatura da. expressão inglesa "water closet", que significa simplesmente "banheiro". Formalmente, "W.C." segue o paradigma proposto pelas abreviaturas anteriores'; tem, como elas, duas letras maiúsculas seguidas de ponto, sendo a segunda aquele mesmo "c" que nas anteriores ë o termo comum "Cristo". No entanto, estabelece um estranhamento bãsico, jã que o seu sentido original nada tem a ver com divisões cronológicas.- No contexto do poema, satí- ricamente, impregna-se deste novo sentido, passando a refer- . rir-se a um tempo fantasiosamente posterior ao anterior "D.C.", um tempo presente ou ainda .futuro, em. que o mundo, dado o seu ... desenvolvimento predatório em relação ao meio ambiente, dados os incríveis índices de poluição da. civilização industrial, assemelha-se. a um "banheiro". O poeta trabalha com determinadas expressões comuns e correntes no universo da linguagem, no caso em suas formas 322 abreviadas, extraindo delas relações e sentidos ainda não obtidos de visível intenção crítica. Em outro poema, "Anatomia do monólogo", o poeta novamente vai recorrer a uma expressão corrente e conhecida, para a partir dela obter, resultados poéticos e críticos imprevistos: ANATOMIA DO MONÓLOGO ser ou não ser? er ou não er? r ou não r? ou não? . onã? O poeta resgata a princípio parte.de uma dás mais conhecidas expressões do Hamlet, de- Shakespeare., na igualmente conhecida-versão em português "ser ou não ser" ("Ser ou não ser, eis a questão'!") 5 1 , expressão 'retirada alias justamente de famoso monólogo da personagem no início do.terceiro ato da peça. No contexto em questão, o príncipe Hamlet, atormentado pela dúvida acerca do assassinato de seu.pai e da identidade do assassino, desenvolve um relativamente extenso. monólogo a respeito da morte e das dilacerações do-indivíduo, frente ãs opções de enfrentar bravamente a fortuna, submetendo-a, ou sucumbir aos seus desígnios. O trecho todo ê bastante patético,e revela muito bem o emaranhamento do indivíduo na.dúvida e na especulação, que intensificam a sua hesitação e insegurança, impedindo-o de agir de forma decidida e precisa. No poema, a partir do segmento "ser ou não ser", disposto na primeira linha, Paes opera sucessivos cortes de letras, ã sua direita e.ã sua esquerda, ao longo das linhas dois, três e quatro. Nas linhas dois. e três, o que sobra da expressão original não tem propriamente sentido; na quarta, tem-se uma 323 expressão com significado possível, "ou não?", a partir da qual é formada a linha seguinte, "onã?", sonoramente próxima â anterior. Da indagação maior â palavra única, tudo se passa como se o monólogo fosse encolhendo., tornando-se cada vez menor, despido de sentidos, nas linhas dois e três, ou marcado pela negatividade, na linha quatro. Como resultado dessa intensificação, dessa exasperação do monólogo, cada vez mais reduzido em sua abrangência, cada vez mais centrado no próprio sujeito, restaria ao final apenas a auto-satisfação estéril do próprio monologante. "Onã", o, termo final., diz respeito a uma personagem bíblica, cujo pecado, devidamente punido por Deus, deu origem a expressão "onanismo"., sinônimo de "mastürbação". O monólogo, no seu limite, nada mais seria.do que uma "mastürbação" do sujeito, que prescinde do. outro para a_comunicação, da mesma forma que o sujeito que se masturba prescinde do parceiro para a: satisfação sexual. Como resultado, tem-se um ato estéril, improdutivo, não fecundante, carente de frutos. No contexto literário de onde a expressão é retirada, Hamlet, a despeito de toda a sua angústia, como que se satisfaz com a sua própria palavra, ao fazer dela, nesse instante, um sucedâneo impotente da ação. Hamlet, assim, "masturba-se" (expressão sugerida pelo poema) ao emaranhar-se em. seu próprio discurso, ao voltar-se cada vez mais sobre si mesmo no movimento incessantemente indagador e paralisante da sua consciência. Os segmentos finais do monólogo são eloqüentes: "Assim a consciência faz cobardes de nós todos, e assim o primeiro impulso da resolução esfuma-se no. pensamento, e as tentativas de força e energia, perante este iaciocinio, mudam o seu curso e perdem © nome de ação..." 62 324 Novamente o veio satírico de Paes se manifesta corn, contundência. Novamente a perfeita integração forma/conteúdo pode ser aqui verificada. É da própria manipulação do material verbal que Paes extrai os seus sentidos. "Onã?" encontra-se sonora e visualmente no interior de "ser ou não ser?", da mesma forma que o seu sentido critico pode ser encontrado no interior da expressão. Tudo se dã como se o poeta simplesmente revelasse, através de certos procedimentos, as virtualidades poéticas e satíricas de certas palavras e expressões. Convém assinalar aqui novamente o trabalho intertextual do poeta na referência a texto e autor da tradição literária. Também o veio metalingülstico de Paes encontra-se presente no poema-com a critica, feita ao "monólogo" enquanto possibilida- . de do discurso. Outro poema que se constrói a partir de uma expressão consagrada no universo da: cultura, que.... faz portanto recurso â intertextualidade como procedimento composicional, é "O suicida ou Descartes ãs avessas": 0 SUICIDA OU DESCARTES AS AVESSAS, cogito ergo pum'. A expressão de partida ê a famosa "penso, logo existo", de Descartes, aqui na sua versão original latina "cogito ergo sum". Expressão síntese do racionalismo filosófico, neste poema de Paes ela ê retomada paródicamente. Primeiramente, o autor recontextualiza. a expressão a partir de um titulo bastante 325 sugestivo, que faz referencia explicita ao suicídio ( ^'o suicida") e a Descartes ("Descartes äs avessas"), o que jã sugere inclusive a própria natureza do novo texto: o que ê a paródia senão uma inversão do sentido de um texto anterior? Além disso, o autor altera uma de suas palavras: ao invés da original forma conjugada "sum", tem-se a sonoramente semelhante "pum", onomatopéia que imitia o disparo de uma arma de fogo. E finalmente, ele dispõe visualmente a expressão sobre o branco da página, obtendo um desenvolvimento espãcio-temporal em ritmo ternãrio que acentua o movimento conceituai interno da expressão. Como resultado, tem-se uma nova. frase que, num movimento semelhante, acaba por expressar, satíricamente, justamente o contrário da anterior. Se aquela era uma afirmação vigorosa e~ positiva da_ existência a. partir, da constatação da capacidade humana de pensar, de "cogitar", esta ê justamente o contrário, pois aqui o "cogitar" ê que surge como um problema para o sujeito, algo que se lhe afigura absurdo e que o leva ao impulso ao suicídio. Ao invés da afirmação positiva da vida, tem-se o desejo da aniquilação. Assim, ao.invés do "cogito ergo sum", tem-se um "cogito ergo non sum" ou simplesmente "pumi" na expressão cômica mas também amarga do poeta. Este recurso ã espacialização do poema na página, que passa a ser um dos elementos novos :com que Paes começa a trabalhar neste Anatomias, encontra expressão radical no curiosíssimo "Anatomia da musa": 326 ANATOMIA DA MUSA capitis diminutio: area non aedificandi abusus non tollit usum: ad u s u m delphini m u l t u m in parvo: in hoc s i g n o v i n c e s mutatis mutandis: m o d u s in rebus! all rights reserved Neste "Anatomia da musa", o poeta não estã mais trabalhando somente com o signo verbal, como ocorria nos poemas anteriores. Hã aqui o uso da palavra, nas várias citações latinas e na expressão em inglês "all rigths reserved", mas o código verbal é posto lado a lado com um outro código: o das 327 artes visuais. Um desenho de um corpo feminino que lembra muito a forma de um manequim, porém sem membros superiores e com uma espécie de cabeça de tamanho muito desproporcional ao corpo, faz as vezes de uma "musa", como o titulo sugere, porém acentuadamente insólita, marcada pelo sarcasmo e a irrisão mais penetrantes. Acentuando estes aspectos do desenho, encontram-se as citações latinas, frases feitas combinadas entre si e recontextualizadas, postas em ligação, pela disposição visual, com determinada parte da "anatomia da musa". A titulo de exemplo, convém conferir uma das combinações. As frases sobrepostas â "cabeça" da. musa - "capitis diminutio: / area non aedificandi" - são ambas expressões dicionarizadas. "A primeira delas.é expressão jurídica, originária do direito romano, -e significa- "diminuição-ou perda de autoridade, em geral humilhante ou vexatória". 63 Resgatando-se seu sentido mais literal., significa "diminuição da capacidade" ou ainda "diminuição da cabeça" (lat. "caput", "capitis": "cabeça") . A segunda expressão é também uma expressão feita e significa "espaço onde não é permitido construir" . 6 ** Justa- posta ã anterior e confrontada com o desenho, reveste-se de todo um sentido bastante satírico. 0 poeta joga com os sentidos das frases e com o desenho. Neste, a cabeça da insólita "musa" é de fato reduzida, e muito, em relação ãs proporções do corpo. A "cabeça", convém ressaltar, é a sede da razão,, e as suas reduzidas proporções remetem, por conseguinte, a uma limitação da inteligência, da racionalidade. Nesse sentido, a poesia - simbolizada pela "musa" - estaria sendo acusada de possuir uma inteligência um tanto quanto parca em relação ao tamanho do seu 328 corpo, de formas proeminentes, razão, portanto, de uma possível "diminuição" ou "perda" da sua "autoridade". Nessas condições, nessa "ãrea" - aproveitando-se aqui a segunda citação não se pode "edificar" nada. Hã ai uma critica, por parte de Paes, ã poesia que abre mão da razão como elemento fundamental do ato criativo. Uma poesia assim destaca-se pelo excesso, pelas formas proeminentes e enxudiosas, responsáveis por um desequilíbrio, por uma desproporção um tanto quanto grotesca das partes, como bem o traduz o corpo da "musa" e a desproporção das formas aí existentes. A poesia de Paes afasta-se dessa poesia e assume uma postura francamente crítica em relação a ela. O poeta epigramático prima pela engenhosi-dade e pela concisão, portanto., por um impulso poético que passa inevitavelmente pelo filtro da razão. 0 poeta epigramático encontra-se ligado, por esse motivo, a uma das linhas fundamentais da poesia, moderna, justamente aquela que passa por Poe, pelo Simbolismo francês, sobretudo na figura de Mallarmé, e deságua, nas vertentes mais rigorosas da poesia do séc. XX, de que João Cabral, de Melo Neto e o Concretismo, por exemplo, são expressões capitais na poesia brasileira. Poesia inteligente, de construção precisa e rigorosa, de emoção sempre subordinada ã razão, poesia crítica e sempre muito consciente do ato criativo. As demais combinações, nesse mesmo poema, de expressões latinas espacializadas na página de forma a sugerir sempre uma ligação a determinada parte do corpo da "musa" revelam carãter e orientação semelhante: misturam ironia e "nonsense" numa química de muito sacarsmo e iconoclastia. O resultado ë um dos poemas mais irreverentes e curiosos de todo o livro. 329 No poema "Anatomia da musa", observa-se uma radicalização do recurso ã visualidade como elemento composicional, recurso que aliãs se depreende, em menor ou maior grau, de outros poemas deste mesmo Anatomias, como jã se evidenciou. A tendência geral de extrapolar os limites tradicionais da linguagem verbal incorporando recursos de um outro código, como o das artes visuais, ë uma tendência nova na poesia de Paes e chama a atenção pela insistência em que aparece. Importante destacar que a distribuição visual do poema na página não ê ato gratuito, desprovido de um sentido.que se encontre ligado ao próprio sentido global do poema. Pelo contrário, as opções visuais do poeta para cada poema, revelam a existência de uma motivação que parte.das outras potencialidades estruturais e semânticas da composição. . . - Seria- interessante introduzir- aqui alguns -conceitos e formulações da Semiótica no âmbito da criação literaria, até para entender melhor estas opções poéticas de Paes, uma vez que elas jã não se restringem somente ao código verbal. A Semiótica, enquanto teoria geral dos signos, portanto enquanto perspectiva que- não se limita a somente um determinado sistema de signos, pode fornecer algumas, reflexões importantes acerca de uma poesia que se movimenta, agora num espaço explicitamente intersemiótico. Décio Pignatari, um dos três principais nomes da Poesia Concreta, propositor, inclusive, jã nos desdobramentos do movimento, de uma "poesia semiótica", ê um dos pioneiros na divulgação da Semiótica no Brasil e um dos seus principais teorizadores no âmbito da literatura. Suas considerações, que partem fundamentalmente das idéias de Peirce, o pai da matéria, mas 330 que se mesclam a certas reflexões üãsicas do estruturalismo de Saussure e seguidores, bem como a certas concepções de Roman Jakobson, tomam caminhos muitas vezes próprios e polêmicos, porém sempre bastante produtivos para o entendimento da linguagem poética. A partir da sua apresentação da Semiótica, visto o seu foco privilegiar o universo literário, algumas reflexões podem ser desenvolvidas. peirce não era lingüista mas sim um filósofo e sobretudo um lõgico-matemãtico. Portanto, a abordagem da linguagem que ele desenvolve na sua Semiótica não se encontra dentro dos moldes tradicionais da lingüística mas sim da lógica. Sua lógica, além do mais, segue a lógica dialética de Hegel e não a lógica formal de Aristóteles. 0 carãter ternãrio da lógica de Hegel é fundamental nas suas formulações^ estando presente naquilo que se pode chamar de visão "pragmática" do. mundo em Peirce - e "pragmatismo" é expressão por ele cunhada. Segundo Peirce, todas as coisas enquadram-se em três categorias: "Primeiro", "Segundo" e "Terceiro". PIGNATARI sintetiza bem esses conceitos: "A "primeiridade" implica as noções de. possibilidade e de qualidade; a "secundidade", as noções de choque e reação, de aqui^e-agora, de incompletude; a "terceiridade" as noções de generalização, norma e lei". 6 5 Essa tripartição fundamental, ligada ao próprio" carãter ternãrio da lógica hegeliana, atravessa todo o pensamento semiõtico de Peirce. Por exemplo, o "signo" para Peirce, superando a oposi- ção "significante" x "significado" presente na visão do "signo" em Saussure, tem de ser entendido numa tripolarização: "signo" ou "representame" /"objeto" ou. "referente" / "interpretante". Nas palavras do próprio PEIRCE: ""Signo" ou "Representame" é 331 um Primeiro que está em tal genuína relação com um Segundo, chamado seu "Objeto", de forma a ser capaz de determinar que um Terceiro, chamado seu "Interpretante", assuma a mesma relação triãdica (com o Objeto) que ele, signo, mantém em relação ao mesmo Objeto". 56 Segundo PIGNATARI, "Peirce cria um tercei- ro vértice, chamado interpretante, que é o signo de um signo, (...) cujo Objeto não ë o mesmo do signo primeiro, pois que engloba não somente Objeto e Signo, como a. ele próprio, num contínuo jogo de espelhos". Assim, "o significado de um signo é sempre outro signo (...) ; portanto, o significado ë um pro- cesso significante que se desenvolve por relações triãdicas - e o Interpretante ë o signo-resultádo contínuo que resulta desse processo". 67 De acordo com cada um dos. vértices do signo, Peirce distingue diferentes tricotomías. Convém destacar aqui a que diz respeito ao "vértice-do-objeto", ou melhor, aquela relativa ã ligação signo/objeto: "ícone", "índice" e "símbolo". PIGNATARI tem a seguinte formulação sintética para o entendimento dessa nova tripartição: o "Ícone" 1 (primeiridade) "mantêm uma relação de.analogia com seu-objeto desenho, um som)"; o "índice" ção direta com seu objeto (um. objeto, um (secundidade) "mantêm uma rela- (pegadas na areia, perfuração de bala)"; e o "símbolo" (terceiridade), "uma relação convencional com o objeto ou referente (as palavras em geral)". 68 Obvia- mente, a tripartição ê instrumental; trata-se de sobrepor categorias ao que. ê, na realidade, um "continuum" , a fim de melhor compreendê-lo. Nessa relação do signo com o seu referente, com o seu objeto, o que se tem ê um crescendo que vai de um pólo em que o signo mantém estreitas relações de analogia, 332 portanto de semelhança com o seu objeto ("Indice"), até um pólo oposto, em que as relações signo/objeto são meramente convencionais ("símbolo"). A partir desses conceitos, Pignatari desenvolve algumas reflexões interessantes, opondo com certa sistematicidade "ícone" e "símbolo", e reiacionando-os a certos conceitos tirados da lingüística estrutural. Segundo PIGNATARI,"(... ) os ícones se organizam por similaridade e por coordenação, enquanto os signos se organizam por contigüidade (proximidade) e subordinação, funcionando os índices como pontes. 0 ícone ë o signo da arte; o símbolo, o signo da ciência e da lógica (,..)". 59 Nessa mesma linha de consideração, relacionando o signo com as articulações sintáticas próprias,-da organização verbal, o "ícone" =.tende ãs estruturações por coordena- ção ( paratãticas), ao passo que o "símbolo" tende às estruturações por subordinação (hipotãticas). Assim, "do lado do íco- ne e da parataxe ficam também o paradigma,..os processos analógicos em geral, a sincronia e a simultaneidade - o que aproxima essa estrutura da estrutura das línguas isolantes, parti- cularmente na sua expressão escrita - o ideograma". Do.outro lado, "do lado do símbolo e da parataxe, ficam o sintagma, a hierarquização dos componentes frásicos, os processos digitais em geral, a diacronia e a linearidade - características das línguas não isolantes, vale dizer, da lógica inerente às línguas ocidentais". 70 Resgatando aqui a definição jakobsoniana da "função poética" da linguagem - a projeção do eixo paradigmático sobre o sintagmático -, seria possível, segundo PIGNATARI, a partir dos paralelos traçados, concluir-se que a "função poética" 333 "implica (...) a iconização do símbolo, a analogização do digital, a neutralização da hipotaxe pela parataxe, a sincronização da diacronia, a simultaneização da linearidade - enfim, a qualitatização da quantidade e a "primeirização" da terceridade". 71 Na poesia, e esta ê talvez a conclusão mais produ- tiva que se pode tirar dessas considerações, o signo quer ser "Ícone", ou seja, a linguagem quer se aproximar do seu objeto, criar relações de analogia, de semelhança com ele. A linguagem humana encontra-se englobada naquilo que Peirce chama de"símbolo", dada a relação fundamentalmente convencional que se observa entre o signo lingüístico e o seu referente. A poesia surge, enquanto um esforço de. abolir a convencionalidade dessa relação, portanto de se aproximar do referente , -estabelecendo algum tipo de relação de semelhança, de analogia com ele. Ela tende, na terminologia peirceana, ao "Ícone". Quando Paes extrapola em sua poesia os limites da linguagem verbal para incorporar recursos de um outro código, ë nesse sentido de "iconização do símbolo" que se orienta a sua produção. No poema "Epitalâmio", a forma triangular tomada pelas estrofes na espacialização do poema na pãgina é sintoma explicito dessa "iconização". Ao tomar a forma de um triângulo, os blocos sugerem uma aproximação com certos referentes potenciais do poema: o cacho de uvas, a concha, o púbis, ou, numa perspectiva mais sutil e menos , figurativa, o desenvolvimento ternãrio e em crescendo do próprio .texto. Num poema como "Anatomia do monólogo", a espacialização do texto ha pãgina, com os seguidos cortes â direita e à esquerda da expressão da primeira linha até reduzi-la a uma única e 334 sugestiva palavra, segue a própria intenção básica do poema de revelar a essência do "monólogo", monólogo que, no seu limite, transforma a questão fundamental contida na expressão shakespereana "ser ou não ser?" num ato de "masturbação" '.do sujeito, sintetizado na expressão final "onã?". No poema "Epitãfio para um banqueiro", ao desentranhar da palavra "negócio" outras palavras como "ego", "ócio", "cio" e o algarismo "0", destacando essa operação a partir da própria disposição visual dos termos, Paes sugere que as realidades, que. esses termos evocam encontram-se inseridas, da mesma forma que eles próprios materialmente (grafica e sonoramente) na.palavra-matriz, no universo do "negócio". De forma semelhante, a espacialização dos versos nos outros"poemas, como se destacou quando da sua análise, revela sempre uma: mesma exploração significativa desses. recursos visuais," e sempre no "sentido de. uma aproximação em termos de analogia ou similaridade com a matéria central do poema. 0 poeta busca recorrentemente. alguma espécie de correspondência entre o verbal e o não-verbal; e, paralelamente, entre a matéria, o assunto dos poemas e.os recursos formais que estão â sua disposição. A abordagem de alguns dos poemas que compõem. Anatomias revela, portanto, que Paes não se manteve infenso à influência da vanguarda literária, sobretudo do Movimento Concretista. Pelo contrário, incorporou muitos de seus recursos formais, utilizando-os com grande maestria. A abolição da pontuação e das letras maiúsculas ou o -seu uso não-automãtico e expressivo; a palavra enquanto unidade poética básica, aLçada ã condição de paradigma produtivo a orientar toda a elaboração do poema; os trocadilhos, os jogos com palavras e frases feitas; 335 a insistência na intertextualidade e na metalinguagem; a expressão concentrada, sintética; a valorização do espaço em branco da pãgina e a exploração das potencialidades visuais da distribuição do poema nesse espaço - recursos utilizados por Paes nos poemas abordados, remetem, inequivocamente ao Concretismo e ãs suas contribuições formais à poesia brasileira. Ainda, com relação ã utilização do espaço como elemento da composição, convém acentuar que a aproximação de Paes com o Concretismo se dã justamente muito mais pelo aproveitamento do espaço em termos de uma "sintaxe espacial", como querem os concretos, do que pelas suas virtualidades figurativas. Ou seja, num poema como "Epitalamio", por exemplo, a forma triangular que os blocos-adquirem no espaço da pãgina é valorizada, na perspectiva de uma poética concretista, muito mais-pela sugestão do próprio movimento: ternãrio- do poema, do que'" pela sua representação de um cacho de uvas, ..de uma concha ou de um púbis. 0 figurativismo na poesia visual foi condenado com certa sistematicidade pelos concretos pelas suas limitações formais, dada a pobreza e obviedade dos procedimentos, responsáveis por uma evidente redundância dos sentidos poéticos. Essa dívida de Paes para com a Poesia Concreta se traduz, em Anatomias, num poema em que- os. poetas concretos são homenageados explicitamente: "Os lanceiros". OS LANCEIROS para augusto haroldo décio em malarmado lance o dado caiu'no poço do espaço em branco 336 azar: que ponto marcava? acaso um alto ponto? um desaponto? eis logo em campo dois espeleólogos vão ver e desce o 'tertio' três demoram voltam participando : A THING OF.BEAUTY IS A JOYCE FOREVER A homenagem inicia-se jã na dedicatoria do poema: Augusto de Campos, Haroldo.de Campos e Décio Pignatari são os três nomes principais do Movimento, da Poesia Concreta. O titulo "Os laneeiros". pode -referir-se . â, idéia de. "lançar os dados", contida na primeira estrofe, que.por sua vez remete a um poema- de-.-Mailarmé .muito, citado, pelos concretos pela sua importância para a poesia, moderna, "Un coup de dés" (literalmen- te "um lance de dados"), mas pode também fazer referência a certa característica da poesia Concreta, em parte fundamental para a sua divulgação e afirmação no cenário .das-letras brasileiras e universais: o carãter militante dos seus participantes, que, como "lanceiros", agora aqui no sentido de soldado armado de lança, combatem firmemente, para impor suas idéias e sua poesia. O texto de Paes dialoga o tempo todo com outros textos e referenciais poéticos. O "Un coup de dés", de Mallarmé, surge como texto referencial central. Trata-se de um texto radical de um poeta fundamental para a poesia moderna, poeta que compõe, juntamente a.outros escritores como Joyce, pound e Cummings, aquilo que os concretos, na esteira de pound, chamam de "paideuma" do seu movimento. O "Un coup de dés", 337 reconhecidamente, adianta jã alguns recursos da Poesia Concreta: emprego de diferentes caracteres tipográficos; disposição inovadora das linhas; utilização do espaço em branco da pãgina como elemento da composição. 0 motivo principal do poema de Mallarmé, "un coup de dés jamais n'abolira le hasard" (lit.: "um lance de dados jamais abolirá o acaso"), ë o ponto de partida para o poema de Paes. Em "Os lanceiros", hã menção explicita a essa expressão (verso dois da primeira estrofe: "lance o dado"; verso dois da segurída estrofe: "acaso") , bem como, de forma jocosa e ambigua, ao próprio autor ("malarmado"). Paes homenageia, brincando, o poema de Mallarmé. No jogo de acasos próprio do desenvolvimento da poesia, o "dado" -lançado por Mallarmé no seu. original "Un coup de dés" "caiu no^ poço do espaço em branco". Mallarmé apontou para as virtualidades do espaço enquanto dimensão a ser explorada pela poesia, virtualidades que teriam permanecido no entanto encobertas, escondidas no "poço" da própria radicalidade do "lance", por isso a indagação da segunda estrofe a respeito do resultado desse "lance"'genial: é ele de fato "Um alto ponto?" ou apenas um"desaponto?" (repare-se o jogo com o termo "ponto": "ponto" do dado, "alto ponto" e "desaponto"). Para sé saber ë necessário que alguém desça pelo "poço".e resgate o "dado", e esse alguém são os "espeleólogos" (aqueles que se dedicam ao estudo e exploração das cavidades naturais do solo) da poesia Concreta,: Augusto e Haroldo de Campos ("em campo dois espe- leólogos" - subl.inhe-se aqui o jogo com a palavra "campo") e Décio Pignatari ("e desce o 'tertio' três" - o nome próprio "Décio" encontra-se sonoramente no cruzamente das palavras 338 "desce" e "tertio") . Os três exploradores descera o "poço" da radicalidade do "lance" de Mallarmé, "demoram" e "voltam" com o "dado" resgatado, "participando" a descoberta. Os últimos versos, jogando com o nome de Joyce e com um verso famoso do romântico inglês Keats ("a thing of. beauty is a joy forever"), poeta traduzido e citado com certa freqüência pelos concretos ("Joyce"/"joy"), compõem o achado: "A THING OF BEAUTY / IS A JOYCE FOREVER" (no jogo de palavras: "uma coisa bela ê um Joyce/uma alegria para sempre"). No ludismo intenso que caracteriza o poema (os vários jogos de palavras e referências intertextuais ao longo das estrofes), retira-se muito da seriedade âs.vezes um tanto quanto rançosa que costuma estar presente em poemas de sabor laudatorio muito evidente.-Ê com,graça e leveza que Paes homenageia os concretos, num exercício bem-humorado e inspirado de intertextualidade e metalinguagem, elementos estes tão recorrentes em sua poesia. Mas se a vanguarda literária recebe aqui reverência inconteste, em outro poema de perspectiva metalingülstica, "Trova do poeta de vanguarda ou the medium is the massage", as intenções do poeta são um pouco mais ambiguas: TROVA DO POETA DE VANGUARDA . OU THE MEDIUM IS THE MASSAGE se me dêcifrarem recifro se me desrecifrarem rerrecifro se me desrrerrecifrarem então meus correrrerrecifradores s erão 339 O veio satírico e crítico de Paes está presente novamente aí. A primeira parte do título apresenta algumas questões interessantes. O termo "trova", num de seus sentidos possíveis, designa certas pequenas composições líricas de sabor popular - as quadras ou quadrinhas -, de caráter lúdico e muito despretensioso. A poesia de vanguarda, por definição, encontra-se muito distante.de uma tal poesia, que ê popular, tradicional e muito simples. Nesse sentido, conjugar numa expressão os termos "trova", e "poeta de vanguarda" ê pôr em confronto duas perspectivas poéticas antagônicas e.irreconciliáveis. Mas "trova" remete também a um tipo de poesia muito engenhosa e refinada realizada, no. final: da Idade Média, a poesia dos trovadores provençais, sobretudo de "certos" trovadores, dentre os quais destaca-se.o sofisticado Arnaut Daniel, por exemplo, reverenciado por Dante e mais modernamente por pound e pela poesia Concreta, esta responsável por brilhantes traduções do poeta para o português. A segunda parte do título do poema ë retirada do título de um livro do polêmico teórico da comunicação americano Marshall McLuhan, apologista excessivamente entusiasmado das transformações, tecnológicas e do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. No limite das suas previsões, McLuhan anteviu a "extinção" do livro como meio de comunicação., suplantado por outros modernamente mais eficazes. 0 poema joga basicamente'com a palavra/raiz "cifra", de onde vem o verbo "cifrar", empregado no texto sempre com a anteposição de um ou mais prefixos. Dois dos sentidos que o dicionário apresenta para o termo encontram-se formulados da seguinte maneira: "explicação ou chave duma escrita enigmática 340 ou secreta; essa escrita". 7 2 "Cifrar", portanto, é escrever em "cifras", escrever numa linguagem: secreta, enigmática. O "poeta de vanguarda", pela radicalidade da sua experimentação poética, opera nesse nivel - produz "cifras" que são difíceis enigmas para os que não têm a chave do seu entendimento. Na sátira de Paes, o "poeta de vanguarda" surge como alguém que parece responder sempre à atividade de um leitor, procurando estar um passo ã frente dele num processo crescentemente complexo de "cifragem"/"decifragem". A radicalidade da experimentação, e o seu resultado - uma poesia difícil, enigmática, inacessível, - surgem como um desejo do "poeta de vanguarda" de provocar.o seu possível leitor. Essa provocação parece oscilar entre o desejo um tanto- narcísico e deliberado do "poêta de vanguarda" de afirmar a. sua superioridade e inacessibilidade frente ao leitor (daí a sua teimosia, patente no poema pela reiteração das orações condicionais na primeira estrofe) e as exigências da própria poesia de manter-se viva e instigante. Hã, em ambos os casos, um convite ao jogo, com o poeta propondo enigmas crescentemente difíceis para um leitor crescentemente arguto no processo de. desveridã-los. Esse ludismo remete a. um dos sentidos próprios do. termo "trova". Da forma como Paes estrutura o poema, tudo se dá de uma maneira cómicamente automática, a que a criação de neologismos através da reiteração, da saturação, do acúmulo de prefixos vem colaborar: "se me decifrarem / recifro / se me desrecifrarem / rerrecifro". O prefixo "de-"/"des-" apresenta o sentido de "ação contrária", "negação" 73 ; por sua.vez; "re-" tem o sentido .de "repetição" . 7 ** Repare-se como a dialética do processo encontra-se toda ela no próprio acúmulo dos prefixos nas palavras. 341 Porém o processo tem um limite: "se me desrrerrecifrarem / então / meus correrrerrecifradores / serão". O prefixo "co-", presente por exemplo em "cooperar", "colaborar", "coautor", tem o sentido de "contigüidade", "companhia". 75 A certa altura da medição de forças entre poeta e leitor, o primeiro acaba por reconhecer no outro ura companheiro definitivo de jogo, alguém que estã a sua altura. Se o reconhecimento poderia significar uma vitória do leitor, afinal ele se dã após um deslocamento do pêndulo para o.pólo da decifragem, o grau ' de complexidade a que o jogo poético chegou na verdade acentua as intenções originais do poeta. Ao tornar-se um "correrrerrecifrador" o leitor jã não é mais o leitor original ; ele amadureceu e passou para.o lado em que se encontra o próprio "poeta de vanguarda". As intenções definitivas do. poema são um tanto ambíguas. Se por ura lado pode-se vislumbrar, na sátira evidente, um posicionamente crítico do poeta frente á poesia de vanguarda no que ela poderia ter de excessivamente automático na assunção de uma complexidade, de um hermetismo tantas vezes intransponível para o leitor, por outro, o poeta poderia estar aplaudindo o jogo proposto pelo "poeta de vanguarda" no que este jogo tem de instigante e. até pedagógico para a sofisticação da criação e sua fruição. Independentemente das intenções que se possa valorativamente acentuar, o.que se tem aí é uma tentativa, com algumas pinceladas de. humor, de expor o mecanismo que estã por trás da dialética autor x leitor em certos veios da poesia de experimentação mais radical. Aliãs, a Poesia Concreta, homenageada, no poema anterior e na própria absorção por parte de Paes de muitos de seus recursos neste 342 Anatomias, é exemplo dos mais característicos da poesia de que se está 3.5.3 falando aqui. Conclusão Anatomias dã continuidade ã poesia contida em Epigramas no que ela tem de critica incisiva, aos valores sociais, políticos, culturais da sociedade brasileira. No entanto, Anatomias radicaliza a vertente epigramática dos poemas do livro anterior, vislumbrada pelo próprio poeta já na escolha do título daquele trabalho. Os poemas de Anatomias são ainda mais concisos, contundentes, enxutos e francamente satíricos. 0 patético e o emotivo deixam espaço aqui para o franco distanciamento do poeta em relação a tudo e.a todos, jã não hã mais de—forma explícita e .como que dominante aquela fé na futura redenção social do país, utopia comum de toda uma intelectualidade de esquerda que se havia engajado apaixonadamente nas lutas políticas e sociais. . As simpatias declaradas traduzem-se agora nas homenagens, nos louvores endereçados a alguns poucos poetas - os poetas concretos em "Os lanceiros", Maiacõvski em "A Maiacõvski". Excetuando-se, juntamente com estes, o belo "Epitalâmio", tudo o mais é sátira, sarcasmo, irrisão. Nada escapa ao verbo cáustico, do poeta. A epígrafe que abre o livro, uma citação de. Roland BARTHES, explicita essa . intenção : "je réclame de vivre..pleinement la contradiction de mon temps, qui peut faire d'un sarcasme la condition.de la. vérité". O sarcasmo como condição da verdade, contradição destes tempos,, surge como recurso vital para um poeta crítico e participante que não abre mão de buscar a verdade, ou alguma possibilidade de verdade, no exercício de sua poesia. 343 O caráter incisivo da poesia de Paes neste Anatomias ë evocado pelo próprio titulo do livro. O termo "anatomia" vem do gre:go "anatomé", que significa originariamente "incisão", "dissecação". Ë como uma espécie de poeta-cirurgião que Paes se debruça sobre certas realidades do corpo da sociedade e da cultura, fazendo da palavra um instrumento afiadlsssimo e preciso de corte. O termo surge ainda em dois poemas do livro, "Anatomia do monólogo" e "Anatomia da musa". Para esse exercício de "incisão", de "dissecação", em muito contribuem as opções formais de Paes neste livro. Tudo aqui revela-se o avesso da verborragia da .metaforização gordu- rosa, das interjeições e reticências excessivas do estilo efusivo, do -lirismo exarcebado, ou ainda da retórica participante. 0 poeta ë contido e conciso e prefere trabalhar com-elementos poéticos mínimos. Os versos são sempre muito.curtos. Percebe-se muitas vezes a recorrência de unidades sintáticas pequenas, com modulações mínimas no desenvolvimento do poema. A sintaxe encolhe, até chegar em algumas composições ã palavra (cf. "Epitãfio para um banqueiro", "Exercício ortográfico", "Ã moda da casa", entre outros) ou ainda até ã abreviatura ("Cronologia"). O recurso ao ludismo verbal ("Exercício orto- gráfico" , p. ex.) , ã paródia ("Anatomia do monólogo, "De-scartes ãs avessas") , aos neologismos, vocabulares ("Trova do poeta de vanguarda"), ã disposição espacial dos versos ( p. ex. "Epitalamio", entre tantos outros) ou ainda a outros códigos, como o das artes gráficas ("Anatomia da musa"), pululam. São índices também da disposição do poeta de procurar estar atento ãs inovações poéticas que estão no ar nesse instante de sua poesia, 344 pois muitos desses recursos formais são dividas reconhecidas pelo próprio poeta à vanguarda literária. Se no livro anterior havia um distanciamento bastante marcado entre a poesia de Paes e o experimentalismo de vanguarda - lembre-se que Paes se aproxima muito da produção nacional-popular cepecista naquele livro, um.pólo antagônico em relação ã vanguarda experimental -, agora um franco e produtivo diálogo vai se estabelecer entre Paes e a vanguarda concreta, aproximação não apenas poética, como fica evidente em Anatomias, mas também pessoal, como confessa o próprio Paes: "Quando eu ainda trabalhava na editora, um dos.seus editados, Cassiano Ricardo, me aproximou do grupo dos fundadores da poesia concreta, Augusto e Haroldo. de Campos e Décio Pignatari. Trocamos livros e logo se patentearam afinidádes". 76 Apesar de não ter enveredado pelo experimentalismo, a poesia de Paes havia optado por uma contenção formal muito próxima de certas postulações dos concretos. É ainda o próprio. Paes quem deixa claras essas afinidades: "A preocupação anti-retórica dos concretos, sua ênfase na medula ideogrâmica das palavras vinha ao encontro da concisão epigramática que eu cultivava". Concisão esta, segundo o próprio Paes, que era uma reação consciente "a certo metaforismo ornamental em voga entre os da minha geração e seus continuadores; nessa reação não tive medo de ir até o poema-piada de 22, tão abominado por eles". 0 humor, a paródia, a sátira são expedientes fortes.da iconoclastia do primeiro Modernismo, sobretudo de Oswald.de Andrade, outro elo entre Paes e o Concretismo. Porém Paes mantém relativa distância em relação ã ortodoxia concretista: 345 N i o c h e g u e i a s e r um p o e t a c o n c r e t o em sentido e s t r i t o ; faltavam-me raízes p o u n d i an a s o u ma 1 1 a r m a i c a s . Outrossim, m a i s do que o p r o j e t o t e ó r i c o , interessou-me s o b r e t u d o a p r á t i c a p o é t i c a dos c o n c r e t o s . U t i 1 i z e i - 1 he s a l g u n s dos p r o c e d i m e n t o s n i o p o r amor do e x p e r i m e n t o v e r b a l em s i , mas n a m e d i d a em que pudessem r a d i c a l i z a r o v i é s epig r a m á t i c o da m i n h a , d i c ç i o . Nap há portanto uma adesão total por parte de Paes ao Concretismo. O que lhe interessa nesse, movimento, obviamente não enquanto apreciador de poesia, mas sim enquanto realizador, ë aquilo que pode contribuir para radicalizar a sua própria dicção, que, como Paes acentua, estã imersa na intenção epigramática, termo que, como se pode ver,, vai se tornando preferencial por parte do poeta na caracterização da sua própria- produção poética. O experimentalismo, e, a...teorização não lhe dizem respeito. Como em Epigramas, é ainda muito forte em Anatomias a intenção de Paes de se comunicar com facilidade com o leitor, o que o experimentalismo ou a subordinação da produção poética aos princípios de uma.tëoria como que esotêria poderia impedir. A aproximação e as afinidaldes de Paes com os concretos são reconhecidas também por um de seus principais nomes, Augusto de CAMPOS, autor do texto de apresentação que preenche as orelhas da primeira edição de Anatomias. Augusto ressalta o veio epigramático da poesia paesiana, coloca-o em paralelo com a poesia de Oswald de.Andrade, também marcada pela concisão e o humor, e.sublinha da seguinte maneira as afinidades de Paes com o Concretismo: A poesia concreta, particularmente a da f a s e do " s a l t o p a r t i c i p a n t e " - a 356 q u e de m a i s de p e r t o i n t e r e s s o u a J o s é Paulo - , r e s t a b e l e c e n d o em t e r m o s drást i c o s o d i á l o g o com 22 e r e p u d i a n d o a retórica liriferanté' em v o g a , a b r i u o caminho p a r a que o p o e t a p u d e s s e , liv r e de p r e s s õ e s a r c a i z a n t e s , desenvolv e r sem pe i a s a s u a p o e s i a - mi n u t o , proj e t a n d o - a n o m u n d o d a v i s u a l i d a d e moderna. 0 e p i g r a m a e o i d e o g r a m a se d e r a m as m i o s . E v i e r a m o s p o e m a s de A n a t o m i a s , v á r i o s dos q u a i s d i v u l g a d o s p e l a prim e i r a vez nas p á g i n a s da r e v i s t a Inv e n ç ã o . Sem e s t a r p r e s o ã o r t o d o x i a c o n c r e t a , José Paulo p r o d u z i u nessa fase poemas que podem s e r considerados, p e l o seu r a d i c a l i s m o , c o n c r e t o s , e d i v e r s o s d e l e s , como t a i s , t ê m figurado em p u b l i c a ç õ e s e e x p o s i ç õ e s estrangeiras. 7 7 As observações de Augusto estão muito próximas das de Paes a respeito da ligação deste com os concretos, excetuando-se talvez uma certa filiação ao movimento que o primeiro quer acentuar. Paes encontra-se em sintonia com dois dos prin cipais movimentos poéticos da poesia brasileira moderna, o Mo dernismo, agora sobretudo na sua vertente oswaldiana, e o Con eretismo de Décio, Augusto e Haroldo, mantendo, no entanto, •>. uma independência importante, que o impede, de ser confundido com esses movimentos. Paes, em Anatomias t como se pode ressaltar, estã atento ã realidade do pais nas suas varias dimensões. Sua poesia ê participante, na medida, em que critica os valores políticos e morais de uma sociedade socialmente problemática que se encontra sob o tacão da ditadura, e na medida em que se comunica sem emperramentos com o leitor, sem perder, porém, o refinamento formal., a. erudição, o jogo intertextual inteligente e a lucidez critica, de que o peculiar diálogo com o Concretismo ê índice bastante evidente. 347 3.6 3.6.1 MEIA PALAVRA (1973) Introdução Meia palavra vem a público em 19 73, num instante de grande tensão no pais. A produção cultural mais critica encontra-se sob a mira da repressão e da censura. Os meios de comunicação de massa, em especial a televisão, cooptados e patrocinados pelo poder, tornam-se culturalmente hegemônicos e muito influentes. 0 Brasil, ingressa na era do consumo a todo o custo; estã-se no auge do "milagre econômico". Na poesia, vive-se um instante de esgotamento das postulações da vanguarda e do engajemtno político de ecos cepecistas. Além das vozes jã consagradas da poesia brasileira e de outras independentes que vão se afirmando, de significativo em termos geracionais começa a surgir nesse instante a chamada Poesia Marginal. Sem a erudição das vanguardas, sem o compromisso da poesia política, a Poesia Marginal., na. sua espontaneidade, na sua despretensão, na sua independência em relação aos meios tradicionais de produção e circulação do produto cultural, e de mãos dadas com a Contracultura e.o "Dêsbunde", torna-se uma expressão típica de uma geração de jovens que não se orienta mais pelos referenciais das gerações anteriores. Em muitos dos seus autores, não hã vínculos.evidentes com a tradição literária, nem proposição. de ruptura. Obser-, va^-se simplesmente o desejo.de registrar a vivência do cotidiano, numa' linguagem coloquial, direta, . franca, muito próxima ã própria fala corrente. A poesia sai da academia, da universidade, dos círculos mais restritos de uma certa elite cultural e vai definitivamente para á rua, para o bar, para 348 o show de música. Ë nesses novos espaços que ela se movimenta, -espaços que imprimem o seu caráter afinal "alternativo" e "marginal" . Paes encontra-se um tanto afastado dessa produção, afinal trata-se de um poeta que estréia no ambiente da Geração de 45, passa pelo engajamento político-social de um dos veios dominantes da poesia dos anos 50 e 60, dialoga com a vanguarda , sobretudo o Concretismo, mantendo, no entanto, sempre uma visível independência em relação a todos esses momentos da poesua brasileira. Em 19 73, Paes é um poeta maduro, que conquistou uma voz própria. Sua poesia, depois de tantas buscas e experiências, depois de manter um estreito diálogo com várias vertentes que lhe são contemporâneas e ao mesmo tempo com a própria" tradição da poesia, chega-a um momento, de estabilização. A erudição latente em sua produção, a consciência crítica aguçada em relação ã tradição literária, o refinamento formal a que sua expressão chegou não se casam muito bem com a espontaneidade juvenil da nova poesia, a despeito do humor e da paródia, da tendência ã brevidade, do resgate de uma certa dicção do Modernismo, sobretudo o s w a l d i a n o s e r e m elementos que possam ser avaliados como possíveis elos de ligação. 3.8.2 Análise Meia palavra tem um subtítulo que pode orientar o agru- pamento temático dos poemas do livro: "cívicas, eróticas e metafísicas". É nessa ordem, ainda, que as composições vão surgindo ã léitura: em primeiro lugar, aquelas de visível crítica política - as "cívicas"; a. seguir, as composições de te- mática amorosa - as "eróticas"; e, finalmente, aquelas que 349 tratam das questões existenciais que afligem o ser - as "metafísicas" . 0 primeiro poema do livro, "Sick transit", que faz uso de recuros visuais, é um primeiro exemplo do grupo temático das "cívicas": Uma foto de uma placa de trânsito ocupa.quase todo o corpo da página. No alto da placa, lêem-se, uma embaixo da outra, as palavras LIBERDADE INTERDITADA. A seguir, no meio da 350 placa, vê-se uma seta apontada para a direita, sob a qual está escrita a palavra DETRAN, em caracteres menores. Na parte inferior, novas palavras são lidas, também uma embaixo da outra e do mesmo tamanho das primeiras: PARAÍSO V.MARIANA. Uma primeira leitura, que ressalte os sentidos mais imediatos aí presentes, pode ser tentada. As palavras da placa referem-se a alguns bairros da cidade de São Paulo: Liberdade, Paraíso e Vila Mariana. A passagem para o primeiro bairro estã interditada. A seta que aponta para a direita indica o caminho a seguir para se chegar aos outros dois.. O termo DETRAN sob a placa ê a sigla de "Departamento, de Trânsito", órgão responsável pela organização do trânsito da.cidade. A palavra - "trânsito", aliãs, remete de alguma forma ao título - do. poema, "Sick transit". Essa leitura mais ingênua.cede imediatamente âs intenções de crítica do poeta. Estã-se em 19 73, num período de intensa repressão política, no país. Após a promulgação do AI-5, em dezembro de 196 8, a perseguição âs manifestações de crítica e de oposição ao regime autoritário,. sejam elas explícitas ou estejam embutidas na produção cultural, recrudesce. Censura, prisão, tortura, exílio, desaparecimento são realidades que passam a compor o cotidiano de terror vivido em todo o Brasil, camuflado, porém, para vastos setores da população, pelo relativo e temporário êxito do "milagre econômico" e pelo otimismo ufanista propagado pelos órgãos oficiais e pelos meios de comunicação de ampla difusão, como a televisão, o rádio e mesmo vasto setor da imprensa escrita.. Esta situação perdura até depois de meados da década, quando o regime militar, diante do crescente fracasso econômico que segue a crise mundial 351 do petróleo de 1973 e pressionado pelas crescentes tensões político-sociais, inicia o lento processo de "abertura", cujo ápice, em meados da década seguinte, inaugura nova fase política no pals, com crescente liberdade democrática, a despeito do acirramento dos problemas econômicos e sociais. Ë em confronto com o problemático quadro político de então que o poe- ma precisa ser lido. Com esse quadro em vista, os elementos que compõem o poema têm seus sentidos transformados.. A expressão LIBERDADE INTERDITADA passa a referir-se ã situação de exceção vivida então quando a liberdade de expressão se encontra sob a. mira da censura e envolta no medo geral da perseguição, da tortura e da morte. A sete apontada para a direita indica a orientação política dos que então detêm o poder e o caminho imposto ao pais. O regime ditatorial é, afinal, um regime de "direita", para usar uma terminologia nesse instante dominante e ainda hoje muito presente no discurso, político. O carãter autoritário e conservador, marcadamente antidemocrático, apro- xima-o de regimes tipicamente direitistas, como o de alguns países europeus - Itália e Alemanha entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, Portugal e Espanha desde então até mais recentemente -, a despeito das grandes diferenças em termos de enraizamento social e objetivos entre esses' regimes e os que surgem na América Latina. A seta aponta para a direita, indicando o caminho que conduz ao PARAÍSO e à V.MARIANA. Ë obviamente irônico o sentido do primeiro termo quando não tomado como nome próprio. Para o discurso oficial, as opções poli-. ticas estariam indicando para o país o caminho de um possível "paraíso" econômico e social; a expressão "milagre econômico" 352 remete, aliãs, a esse contexto 4 No entanto, esse "paraíso" acabou por se revelar na verdade um grande "inferno", seja ele político e cultural, vivenciado jã nesse instante, seja ele econômico e social, como o demonstra a crise que assolou o Brasil nos anos seguintes e que permanece irredutível e crescentemente perigosa até os dias de hoje. A intenção satírica do poeta é, portanto,, evidente, a que também se soma o próprio título da composição. Este, "Sick transit", estabelece um jogo verbal entre a expressão latina "sic transit gloria mundi", que significa "assim passa a glória do mundo", referência ã transitoriedade das coisas que compõem este mundo, e um possível composto adjetivo-substantivo em língua inglesa, que, traduzido., significa "trânsito doente", apesar do termo inglês "transit" não corresponder propriamente ao termo português no contexto em questão ( tráfego, trânsito de veículos). O trocadilho se faz pela identidade sonora entre "sic" (lat. 'assim'\.) e "sick" (ingl. 'doente.'). Interditar as vias que levam â LIBERDADE é estabelecer, um circuito "doente"; a repressão e a censura do regime autoritário são afinal doentias. Mas compõem realidades passageiras, "glórias transitórias", como alude ironicamente a referência ao ditado latino. Formalmente, observem-se alguns aspectos bastante inte- ressantes nessa composição. De início, um leve paradoxo chama a atenção. Paes lança mão de uma fotografia para compor o seu poema, o que a princípio poderia constituir recurso a um código não-verbal por excelência. No entanto, trata-se da fotografia de uma placa de trânsito, onde o signo verbal ocupa lugar privilegiado. Apesar do ensaio experimental intersemiótico, a "palavra" ainda compõe o cerne deste poema de Paes. Em segundo 353 lugar, o•que transforma essa simples foto, num poema não são propriamente (ou somente) os elementos intrínsecos que a cons- tituem, sejam eles verbais ou visuais. O que faz da foto um poema é a sua contextualização num livro de poesia, o que imediatamente transforma e amplia seus sentidos; a atribuição de um titulo especifico, em tensão com o qual ela passa a ser lida; e os sentidos poéticos críticos ( via sátira, via paródia, via ironia) que dela se extraem a partir do confronto com o contexto político do momento em que o livro é publicado e do confronto com Os recorrentes posicionamentos críticos do próprio poeta em relação a esse contexto. Temáticamente, "Sick transit" enquadra-se, de forma irônica como ainda outras, entre as composições "cívicas" de Meia palavra. Paes permanece, de trabalho para trabalho, um crítico ferrenho do "sistema". Ë nessa mesma perspectiva que se pode 1er ainda outros textos, como por exemplo "Olímpica": OLÍMPICA • ufa por ufa ufa ufa no ufa ufa ufa ís ufa ufa que ufa ufa ufa do ufa ufa ufa ufa ufa ufa me ufa ufa ufa meu ufa uff ufa ufa ufa ufa ufa ufa ufa ufa pa fff Num primeiro e rápido olhar globalizante, o que se tem pela frente ë um.bloco compacto de caracteres gráficos, compondo forma retangular. Dez linhas.horizontais e quatro colunas verticais podem ser distinguidas no corpo desse bloco. Em 354 cada linha lêem-se quatro palavras ou fragmentos de palavra (ou sílabas), formados por apenas duas ou, sobretudo, três letras. Tomando-se as colunas em perspectiva, o número de palavras ou fragmentos no corpo de cada uma delas ê dez. pode-se falar aqui também em exploração do espaço, na medida em que hã uma preocupação deliberada na formação de um bloco retangular com lados e ângulos em plena simetria, porém exploração que se dã através de recursos muito diferentes dos do poema anterior. No entanto, é a partir de uma. leitura linear, que parta do primeiro termo da margem esquerda da primeira linha e vã até o último da margem direita da última linha, como se faz numa leitura convencional de textos, e não de uma leitura instantânea e globalizante, que os sentidos do poema se revelam. Uma palavra básica encontra-se presente ao longo de todo o poema, a interjeição "ufa", que cede, porém, aqui e ali, espaço para outras palavras ou sílabas, em intervalos nem sempre muito regulares. Essas.outras palavras pu fragmentos de palavras que surgem intercaladamente vão aglutinando-se para compor, até o final do poema, um segmento sintático, maior, a expressão "por que me ufano.de meu país". Na última linha, a interjeição básica dã espaço ainda a duas outras, também de origem onomatopaica como aquela: "uff",. "fff".. É novamente no registro da sãtita e da crítica que o poema deve ser lido. Um primeiro confronto com o seu próprio título, "Olímpica", faz-se necessário. A.partir dele, pode-se extrair um contexto inicial: o dos "jogos", das "competições", dos "esportes olímpicos". Com esse contexto em vista, a reiteração das interjeições reveste-se de um sentido especifico. Na 355 repetição dos termos nas linhas e de linha para linha, pode-se perceber o próprio movimento compassado de um atleta olímpico, possivelmente um corredor que a cada passo, no esforço extenuante da competição, inspira e expira o ar, produzindo um som similar ao que é expresso pela interjeição "ufa" , interjeição de sabor onomatopaico, que aliãs, entre outras possibilidades semânticas dicionarizadas, é expressão de "cansaço" 78 , sentido este plenamente em sintonia com o quadro geral. Pontuando o movimento dos passos e da respiração do "atleta olímpico", palavras e fragmentos de palavras vão. sendo semeados, como se, lentamente, a expressão maior que eles articulam fosse surgindo â consciência do "corredor" durante a corrida. Um recurso paronomãstico faz a ponte entre a repetida interjeição e a expressão "por que me ufano de meu país", que se lê na aglutinação dos fragmentos. A palavra "ufano" tem no seu interior a interjeição básica do poema "ufa" .. No corpo do próprio texto, essa relação faz-se mais evidente, uma vez que a palavra "ufano" surge fragmentada nas suas sílabas "ufa" e "no", o que faz com que a primeira sílaba e a interjeição se confundam quando da leitura (cf. linhas .5 e 6) . Com a expressão "por que me ufano de. meu país" em vista, o contexto primeiro de "esporte", "jogo", "competição" se amplia, toma novos sentidos. Pode-se.imaginar o atleta olímpico, na dor do cansaço da competição, no limite do seu esforço, questionando, o papel de representante do seu país ali no contexto de uma Olimpíada, porém essa expressão específica que fragmentariamente lhe vem à boca é por demais marcada na cultura brasileira para que um sentido assim neutro se sustente. É óbvio que não se trata mais aí da descrição de um "corredor 356 esportivo" qualquer. 0 "corredor" e a sua "olimpiada" precisam ser lidos na sua condição de metáforas. Convém lembrar que a expressão "por que me ufano de meu pals" ë título de um livro de. teor patriótico de Afonso Celso, intelectual e poeta do final do séc. XIX, ligado.ãs vertentes pós-românticas da poesia brasileira e de expressão participante que se puseram contra a monarquia e em defesa dos ideais republicanos. 79 A expressão que dã título ao livro tornou-se famosa e passou a ser empregada, âs vezes de forma paródica, em outros contextos. Alfredo BOSI, por exemplo, referindo-se a certa produção de carãter fartamente patriótico do poeta parnasiano brasileiro Olavo Bilac, faz uso.do neologismo "meufanismo" 80 para caracterizá-la. Resgatando agora, o contexto político da época em que Meia palavra vem a publico e confrontando com o contexto em que o termo surge originalmente, esses aspectos que estão por trás da expressão e da sua autoria ..saltam aos olhos. A Proclamação da República, com maior ou menor amparo social, foi em essência um levante militar contra a Casa Real. Foram militares, alojados no topo. de uma ditadura temporária, os primeiros presidentes republicanos brasileiros. Na retórica ideológica de então, o nacionalismo era ingrediente muito presente. percebem-se paralelos evidentes entre esse instante e o contexto brasileiro põs-6 4 e sobretudo pós-68. Vive-se igualmente um momento de ditadura militar e de intensa propaganda nacionalista, o momento do "ame-o ou'deixe-o" (com os prono- mes referindo-sé ao Brasil, mas, por extensão, também ao regime) , que faz com que qualquer crítica ao governo militar seja interpretada como crítica ao próprio país. É, portanto, 357 um momento de "meufanismo" compulsório, estabelecido com o violento patrocínio dos militares. A intenção paródica do poema de Paes-é patente, jã que ele resgata a expressão de Afonso Celso, invertendo a sua intenção original a partir de uma sarcástica recontextualiza- ção. O "atleta".exausto, a correr pela pista, em "Olímpica", pode ser visto como uma representação.^ do homem brasileiro, e a prova que ele enfrenta, a própria situação política e social em que se encontra. Enquanto corre, enquanto sofre a.sua realidade, ele se questiona a respeito da sua. relação com o próprio país, e é nesse momento que. a expressão ê -resgatada. 0 humor, advindo do contexto insolito e da fala fragmentada, corroi com. violência o seu sentido original. As interjeiçóes finais do poema, "uff" e "fff", construidas a partir da matriz "ufa", revelam o limite do cansaço -a que-chegou o "corredor"/" homem brasileiro". "Fff" presentifica a expiração total do ar por alguém que estã absolutamente extenuado. Ressaltem-se aqui ainda dois aspectos interessantes. Em primeiro lugar, o esporte, sobretudo da forma violenta e mecânica como é praticado, é atividade cara â ideologia militar. Requer treino, disciplina, condicionamento, físico, subordinação total â voz de comando. As Olimpíadas (a que o título faz referência) privilegiam essa visão do esporte, são uma espécie de coroamento absoluto.desse tipo de condicionamento físico. São ainda um momento, !da mesma forma que a Copa do Mundo, em que o nacionalismo, o patriotismo, o "meufanismo" menos críticos tomam conta das pessoas de forma como que inconsciente. Todos, ou quase todos, capitulam frente aos apelos como que xenófobos desses eventos. 0 país deixa de ser visto em seus 358 seríssimos problemas, em suas contradições, na sua miséria geral, para ser louvado com euforia. Novamente, como no caso de "Sick transit", o poema "Olímpica" sõ revela seus sentidos de crítica política quando compreendido dentro de um contexto global que extrapola os limites mais imediatos do próprio poema. Ë no confronto com uma realidade extraliterãria independente que a sátira se potencializa. Sem essa operação, ë impossível passar-se dos primeiros e óbvios sentidos aos sentidos críticos de fato pretendidos pelo poeta.. Um outro poema, "Canção do exílio facilitada", pode ser ainda arrolado entre as "cívicas". Aqui, novamente o jogo inter/textual vivo e inteligente se faz presente. Novamente o poeta opta pela paródia de textos da tradição literária, agora especificamente a tão retomada ."Canção,do. exílio", de Gonçalves Dias, para o seu exercício de crítica de ideologias. CANÇÃO DO EXÍLIO FACILITADA lã? ah i sabiá... papá... maná... sofá... s inhã... cã? bah! A "Canção do exílio", do poeta romântico Gonçalves Dias, tornou-se, na literatura brasileira, um paradigma da expressão da saudade e do amor ã. terra.natal pelo homem exilado em pais distante. O poeta, na Europa 8 1 , suspira de saudades pela terra, num impulso aliãs bem romântico, marcado pela 359 sentimentalidade e por rastros de nacionalismo. No confronto das coisas de seu pais com as do pals estrangeiro, tudo neste se lhe afigura inferior, tudo desperta as saudades da terra de origem. 0 mesmo poema foi resgatado posteriormente por vários poetas modernos, como por exemplo Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Drummond, ãs vezes de forma paródica, como em Oswald e em Murilo, ãs vezes numa alteração mais sensível de sentidos como em Drummond, quando o exílio é visto muito mais como condição existencial do homem, e não mera circunstância geográfi- ca ou imposição política. Em Paes, a retomada da "Canção do exílio" é curiosa. 0 derramamento típico da expressão romântica é enxugado de for ma intensa aqui. As cinco estrofes do poema original, as três primeiras com quatro e as duas últimas com seis versos cada, dão lugar a três estrofes, a primeira e a terceira com dois versos e a segunda com cinco. Os versos, que em Gonçalves Dias são heptassilãbicos, têm no poema de Paes entre uma e três sílabas. A expressão paesiana tipicamente epigramática manifesta-se aqui com bastante evidência. Alguns dos termos do poema de Paes são retirados do texto de Gonçalves Dias. Os advérbios "cá" e "lã", que estabelecem uma tensão que perpassa todo o texto do romântico e estã presente também no do autor moderno, são termos comuns aos dois textos. O substantivo "sabiá", por sua vez, também se en- contra nos dois. No rol das coisas que na terra natal são superiores ou inexistentes na terra.estrangeira, "sabiá" é um dos termos de ¡.ligação mais evidente entre os textos. Todos os outros escolhidos por Paes para compor o seu poema, a partir 360 da ponte possibilitada pelo primeiro, instauram o movimento paródico pretendido pelo poeta. Repare-se na rapidez como o poema se desenvolve. A primeira estrofe e a última têm estrutura idêntica. Na primeira, um advérbio seguido de ponto de interrogação instaura a dúvida evocativa: "Lã?". Considerando que, como no poema de Gonçalves Dias, o sujeito poético, no contexto sugerido, se encontra no exilio, a referência diz respeito ao pals de. origem, ao Brasil.no caso. A essa interrogação segue-se a expressão de saudades do sujeito, condensada na interjeição seguida de ponto de exclamação: "ahí". Na estrofe seguinte, a partir da chave dada na primeira, o "eu" poético passa a arrolar uma série de.realidades que estabelecem um elo afetivo entre ele e o seu país, ressaltado formalmente no poema pelas reticências que seguem cada termo, e que suspendem numa pausa emotiva muito significativa a enunciação dessas realidades.,0 primeiro elemento, jã destacado, ê "sabiã", pássaro de canto muito bonito e bastante comum na paisagem brasileira, uma das evocações centrais da "Canção do exílio" original: "Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiã". 82 A partir de " sabiã",.. tudo é humor, tudo ressalta a intenção paródica de Paes. "Papã", segundo o dicionário, significa "papai,, na linguagem das criancinhas que principiam a falar". 83 Mas pode remeter também ao termo "papar", que significa "comer" 84 - "papã", na grafia de uma pronúncia infantil, ou popular do verbo, ou ainda jã uma.possível forma substantivada desse mesmo verbo. Quer se ressalte o primeiro, quer o segundo sentido, a irrisão ai é evidente. No primeiro caso, a falta do pai ê assinalada 361 a partir de uma perspectiva infantilizante, que acentua a fragilidade dos afetos do sujeito e o expõe a um certo ridículo. No segundo, a terra natal ë lembrada a partir de uma motivação bastante pragmática, a carência do alimento. Ressalte-se que nenhuma dessas referências, nem possíveis paralelos, se encontram ho poema de Gonçalves Dias. Lã, tudo ou quase tudo ë exaltação das virtudes da natureza da pãtria. "Manã" tem sentidos que precisam ser comentados: no Antigo Testamento, é o alimento mandado por Deus, em forma de chuva, ao povo de Israel durante.a sua peregrinação no deserto, entre a saída do Egito e a conquista de.Canaã, a Terra Prometida. Pode corresponder, em termos concretos, a uma espécie de "liquen" "ainda hoje comum na mesma região, e que, transportado pelo vento, cai ã maneira de "chuva" e ë usado como alimento". 8 5 0 dicionário registra ainda outras significações derivadas dal, e que seria conveniente registrar: "alimento delicioso; ambro- sia"; "coisa excelente, vantajosa, deliciosa". Refere-se, portanto, enquanto alimento ou enquanto realidade genericamente experimentada como. muito boa, a algo positivo de que <se carece no ambiente estrangeiro. Acentue-se novamente o vínculo bastante concreto aí predominante, a orientar , o sentimento do sujeito em relação ã terra. "Sofã" não traz qualquer problema de significação. No contexto do,poema, remete ã idéia de descanso, ócio, inatividade. Mais outro elemento, que ressalta, a idéia de prazer e gozo como vínculos do sujeito com relação ao seu país. 0 último elemento, "sinhã", permite algumas considerações interessantes. " S i n h ã " f o r m a d o a partir de "sinhõ", al- teração de "senhor" - era termo utilizado no "tratamento dado 362 pelos escravos a sua senhora" 8 6 cravidão vigorou no Brasil. A durante o período em que a es- referência a tal realidade, a despeito da comicidade da evocação, ê reveladora de uma realidade social problemática, com a qual o sujeito poético parece ser conivente na sua inusitada, expressão de saudade. "Sinhã" é provavelmente a figura feminina correspondente ao sujeito em exílio, por sua vez um "sinhô", alguém que se encontra numa situação de privilégio, portanto. Os vínculos com o seu país, anteriormente destacados, são índices dessa condição social. O ócio, a inatividade presentes em "sofã"; a fruição de coisas boas, de boa comida em "manã"; a carência do pai, do meio patriarcal, em "papã"; a visão idealizada, romantizada da natureza em "sabiã" - tudo contribui para compor o perfil do "sinhô", ou do "sinhozinho" que se esconde por trãs do "eu" poético . romântico ironizado. Na última estrofe, resgata-se em paralelo a primeira. Novamente um advérbio seguido de ponto de interrogação, agora em referência questionadora ao local em que se encontra o sujeito, "cã?", é seguido por interjeição e ponto de exclamação, "bahl", agora a expressar, também lacónicamente, a repulsa pelo país, pela terra em que se encontra, após a evocação das "virtudes" natais. Repare-se que para a concisão e concentração do texto, muito contribuem certos recursos de sonoridade. A vogai oral aberta /a/ estã presente em todas as sílabas tônicas das palavras, compõe uma espécie de eixo sonoro que atravessa o poema de cima abaixo, ressaltando aliãs a própria verticalidade da disposição dos termos na pãgina. Contribui também para o efeito cômico pretendido. Percebe-se novamente neste poema o recurso â paródia de textos de tradição literária, portanto do jogo intertextual 363 proposital. O título da composição, "Canção do exílio facilitada", poderia sugerir tratar-se de uma paráfrase do poema de Gonçalves Dias, uma tradução, em termos modernos, do poema romântico. No entanto, Paes enxerta intenções não presentes naquele texto, problematiza, com humor, a identidade social do sujeito poético, e, por extensão, a identidade social do poeta romântico brasileiro. A saudade, o amor â pãtria não são vistos aqui nos seus ingredientes de nativismo, de exaltação da paisagem e da natureza, de evocação de realidades afetivas mais ou menos indefinlveis como no poeta romântico, mas a partir de elementos bastante concretos, prosaicos até (nada "poéticos", numa acepção "romântica" do termo) e socialmente significativos e reveladores . Como os poemas anteriores, este também pode ser projetado sobre o quadro político-social do país.na época da publicação do livro. Como se salientou, vive-se um momento de ufanismo oficial, insuflado pela ideologia militar dominante, e propagado pelas instituições ligadas ao poder e pelos veículos de massa. 0 romantismo de Gonçalves Dias,.no seu louvor das virtudes natais, a despeito do carãter muito mais subjetivamente afetivo da sua expressão do que propriamente patriõtico-militante, casa-se bem com a ideologia do "ame-o ou deixe-o". No entanto, e aqui entra o virtuosismo satírico de Paes, aqueles que tiveram de.buscar o exílio para fugir ao massacre político e cultural do regime não poderiam jamais assumir a perspectiva ideológica que estã por detrás da voz do sujeito poético do poema de Gonçalves Dias ou da sua versão paesiana "facilitada". Surge aqui uma tensão entre a voz. poética do pões ma - a do "exilado" que na saudade é todo louvor para o seu 364 país - e a realidade exterior - a realidade opressiva vivida em sua terra e que. o impeliu ao exílio. Nesse intervalo, a ironia vem ã tona e com ela todo o seu potencial critico e contestatorio. Os três poemas abordados são bons exemplos de um dos veios temáticos dominante em Meia palavra, veios que encontram expressão no subtítulo "cívicas, eróticas e metafísicas". Os três podem ser englobados entre as composições "cívicas", onde o carãter de crítica política se faz evidente. Vive-se um momento politicamente problemático com o recrudescimento da repressão e a constatação de que o regime militar não seria golpe passageiro, rapidamente superado a partir da organização de uma resistência e de um contra-golpe político. Paes, que desde" meados dos anos cinqüenta vinha-.deixando . largo espaço em sua poesia para o engajamento político-social, não poderia ausentar-se nesse instante. Sob o.signo do humor, da sátira, da ironia, do sarcasmo, Paes organiza uma "resistência poética" muito pessoal ãs realidades políticas vividas. Faz uso da única arma própria e efetiva do poeta, a despeito das suas limitações objetivas: a sua palavra. Um segundo grupo temático que se pode distinguir em Meia palavra a partir do subtítulo.do.livro, é o das "eróti- cas", dos poemas em que o amor e a ligação amorosa entre os sexos é matéria para a palavra crítica e corrosiva do poeta. Como um primeiro exemplo desse segundo grupo, pode ser abordada outra composição de experimentação visual, um curiossímo "Epitalamio": 3 5 Uma foto em negativo deixa ver duas escovas de dentes enfiadas num copo, diagonalmente.dispostas, a menor delas com a parte superior apoiada na boca do copo, com as cerdas, voltadas para cima, e a maior sobre a menor, em disposição paralela, porém com as cerdas voltadas para.aquela, o que faz com que se toquem e se interpenetrem. 366 O poema precisa ser lido a partir das sugestões do título. "Epitalamio", como jã se observou anteriormente, designa uma especie de composição poética dedicada àqueles que contraem nupcias. Trata-se, portanto, de um canto de louva-, ção da união entre um casal de noivos. Com esta chave, não fica difícil desvendar as sugestões observáveis na foto. As escovas, metonimica e metaforicamente, presentificam o casal de noivos. A maior remete ao homem, e a menor ã mulher. Ambas estão entrelaçadas, em evidente abraço. A maior estã sobre a menor, sugerindo a posição bãsica e convencional do ato amoroso humano. 0 quadro ë metonímico, na medida em que as escovas podem ser vistas como um prolongamento dos sujeitos a que pertencem. E metafórico, na medida em que reproduzem iconicamente o ato sexual, substituindo o par. Mas ë claro que a foto não ë uma representação neutra da conjunção corporal dos noivos. Hã uma "despoetização" evidente da união amorosa na representação de Paes. As escovas de dentes remetem ao universo da higiene íntima cotidiana, a um ato realizado todos os dias, vãrias vezes ao dia, aliãs. As escovas dentro do copo, no seu devido lugar no banheiro, deixam transparecer a organização e a rotinização da vida doméstica do casal. A união dos noivos ë projetada assim numa ordem que não ê aquela dos recém-casados em suas mútuas e intempestivas descobertas f1sico-afetivas, mas sim numa ordem futura, que os aguarda quando o intervalo meio mãgico dos primeiros conhecimentos passar e a vida conjugai mergulhar na rotina e na normalização. As escovas reproduzindo uma posição sexual emblemática, sem poderem sair dos limites circulares do copo, 36 7 apesar da transparência que permite vislumbrar espaços mais vastos, compõem a imagem-síntese de uma vida conjugai devidamente regularizada, posta dentro de conformes sociais claramente delimitados. Pode-se comparar este segundo com o primeiro "Epitalamio " , o do livro anterior Anatomias. Lã, numa linguagem poética carregadamente metafórica, num encadeamento muito bonito de imagens, Paes projeta a comunhão fxsico-afetiva do casal num quadro de sentidos muito mais amplos. Partindo da descrição do corpo feminino, passando pela evocação.do ato amoroso singular do casal e resgatando esse ato no que tem de primordial e arquetlpico, Paes reveste a união amorosa de valores que não se encontram neste segundo "Epitalamio ".. Neste sentido, este po- de ser visto como uma verdadeira antítese daquele. Em primeiro lugar, pela própria linguagem utilizada pelo poeta, linguagem que dispensa o verbal, excetuando-se no que concerne ao titulo, tão importante para uma orientação da leitura. Em segundo, pela visão da união amorosa, reduzida aqui, na imagem do poema, à sua realidade material mais imediata e concreta,.e, nas ressonâncias da imagem,: a uma normalização, . a uma estabilização dentro de limites socialmente bem definidos., o amor torna-se minúsculo, mero ato cotidiano como o de escovar os dentes todos os dias e impreterivelmente após cada refeição. Outro poema em que o amor e a união amorosa são problematizados é "Camassutra", poema que também explora recursos visuais, porém sem expulsar o verbal para fora dos seus limites: 368 CAMASSUTRA ele ela ele ela ela ele ele ela Bp ap _rt JU ele ela elela 1 O titulo "Camassutra" faz referência a um tratado tradicional hindu sobre o amor. Diversas posições para o ato amoroso encontram-se nele fartamente ilustradas e comentadas. Ë a partir, portanto, destes dados do titulo, que remetem ao universo de uma mútua e múltipla exploração amorosa por parte do casal, que o poema precisa ser lido. Pode-se distinguir no texto, de cima até embaixo, diferentes "segmentos", ao todo sete, formados por uma ou mais 369 linhas, que correspondem ao desenvolvimento em etapas da própria composição. Não cabe muito bem aqui falar em versos ou estrofes, tratando-se de um poema que explora a visualidade e faz da palavra e sua fragmentação o núcleo da expressão, portanto o termo "segmento" surge como alternativa para a designação das unidades menores. Num primeiro segmento do poema, encontram-se os dois elementos básicos - os pronomes "ele" e "ela" - a partir dos quais se desenvolve toda a composição. Repare-se no que hã de esquemático e impessoal na escolha desses elementos. Dois pronomes, que por definição remetem a outros referentes, porém não nomeados anterior ou posteriormente no contexto do poema, encontram-se al, quase despidos de sentidos, não fosse o seu sentido -morfológico mínimo, a evocar as idéias de. "masculino" e "feminino" , e, por~extensão, as de "homem" e "mulher" . No segundo segmento, a partir de uma leitura vertical, a mais produtiva, "ele" e "ela", mais ã esquerda, e "ela" e "ele", mais ã direita, encontram-se um sobre o outro. A troca de lugares não implica a princípio qualquer alteração de substância. "Ele" e "ela" são elementos intercambiãveis, um pode assumir a posição do outro sem que disso decorra qualquer modificação essencial. Esta realidade, a:liãs, repete-se ao longo do poema. Nesse sentido, a despeito da oposição "masculino" x "feminino", são elementos como que idênticos. Na seqüência dos segmentos, ao isolamento em que os pronomes se encontram no primeiro, segue-se aqui um primeiro contato entre eles, um primeiro "conhecimento". "Ele" estã sobre "ela" e, mais ao 3 70 lado, "ela" está sobre "ele", como a sugerir algumas primeiras "posições" entre as possivelmente arroladas no "Camassutra". No terceiro, o poeta inverte; gráficamente na pãgina os pronomes da segunda linha do segmento. Mais ã esquerda tem-se, portanto, "ele" em disposição gráfica convencional e "ela", logo abaixo, em disposição invertida. Mais ã direita as posições são trocadas: "ela" fica em disposição normal, agora em cima, e "ele" invertidamente. A sugestão al é. óbvia: ambos estão frontalmente voltados um para o outro, um sobre o outro, em franco abraço amoroso. No quarto segmento, hã nova modificação da disposição das palavras. Mais ã esquerda, tem-se o termo "ele" disposto na horizontal, e a sílaba "la", do segundo termo "ela", disposta -na vertical-,-- logo—acima- da primeira sílaba do primeiro termo, como que aproveitando essa primeira sílaba como complementação da sílaba que ali falta. Mais ã.esquerda, segundo a regra geral, inverte-se a disposição dos termos : "ela" encontra-se na horizontal e "le" na vertical. A está nova disposição visual dos pronomes corresponde nova posição sexual do par amoroso. No segmento cinco, diferentemente, do que se vinha observando nos anteriores, abandona-se a polarização da disposição dos termos dois a dois ã esquerda e,..de forma invertida, à direita,, e, numa disposição mais centralizada, observa-se uma verdadeira fusão.dos pronomes, originando o termo composto "elela". Pode-se ter aí a sugestão de mais uma nova posição do ato amoroso, na seqüência das anteriores. No entanto, dada a visível diferença deste segmento em relação àqueles, uma outra realidade pode estar sendo presentifiçada. Depois da 371 troca constante, da reiterada experimentação entre as várias possibilidades, o casal finalmente chega a um ponto ideal. Na interpenetração dos pronomes estã representada a interpenetração dos corpos dos.amantes, finalmente unidos numa só carne. Se contrastarmos este segmento com o primeiro, fica visível o trajeto percorrido pelo par, saindo do isolamento inicial, passando pela procura constante, e chegando ã desejada fusão corporal. No penúltimo segmento, apenas uma única letra faz-se visível, a letra "1", tão rica em sugestões. Aqui, a fusão do par amoroso chega ao seu momento, de maior intensidade. Não hã diferença qualquer entre eles, pois a diferença, presentificada pelas vogais finais dos pronomes, não se deixa mais ver. SÓ o que se tem é o "1" central dos termos, elemento comum entre eles. Reforça-se agora a fusão do par numa unidade total, que a semelhança da letra com o, algarismo "1" acentua ainda mais. No movimento geral do poema, estã-se no momento de gozo do ato amoroso, concentrado na verticalidade da letra, elemento fãlico evidente, apontado, para o .alto, como que remetendo ã explosão ascensional do clímax. No segmento final, a unidade se desfaz, e o que se tem agora são dois "1" caídos, cada um para um lado, horizontais, exaustos, esvaídos. Estã-se no momento posterior ao clímax. Os elementos estão novamente separados, como de início, porém de maneira diferente. Estão menores, mais vazios, pois só o "1" central dos pronomes permanece.. Além disso, e por esse motivo, não se distinguem mais em suas diferenças,, pois a oposição bãsica "masculino" x "feminino", evidente na oposição das letras e vogais "o" x "a", não se deixa mais ver. 3 72 i Apesar do humor e da intenção satirica presentes na composição, não ë tão simples e óbvio assim apreender as intenções definitivas do poeta em "Camassutra". Pode tratar-se de um simples brinquedo, de um jogo inteligente e sugestivo com as formas, de uma experimentação formal na linha da poesia de vanguarda. A esse respeito, acentue-se mais uma vez, porém, que no Concretismo, tendência com a qual Paes conscientemente dialoga desde o livro anterior Anatomias, esse tipo de exploração figurativa utilizada aqui por Paes,com a expressão verbal concretizando visual e mimeticamente uma realidade exterior, ë por vezes condenada. Porém, pode tratar-se também, lembrando-se ser este um poema, de um poeta sempre tão crítico em relação ã sociedade e aos seus valores, como o ë Paes, de algo mais que um jogo, ou.melhor, de um. jogo que na aparente facilidade, no aparente descompromisso, fere agudamente, enquanto se concentra em riso, algum aspecto da realidade. Orientando-se por esta segunda possibilidade, pode-se chegar a uma perspectiva bastante critica em relação ao tema tratado. Subtraído ao universo moral e religioso de que faz parte, o livro "Camassutra" torna-se, para.um ocidental moderno, unit mero rol de inúmeras posições para o ato amoroso, devidamente detalhadas e comentadas. Ë essa busca de diferentes posições para o prazer e o que ela pode ter de automático e vazio o que pode estar na mira da palavra critica de Paes. Assim, a escolha dos pronomes "ele" e "ela", muito mais do que uma opção pela rapidez da expressão, pela brevidade, pela síntese, ê forma de marcar a redução dos seres concretos, plenos de cor, distinção e afetos, a meros esquemas, como que incógnitas de 373 uma expressão algébrica, de uma fórmula matemática, a serem preenchidas por quaisquer outros elementos. "Ele" e "ela" são índices de uma masculinidade e de uma feminilidade abstratas, peças num jogo que, a despeito de uma possível singularidade dos sujeitos, remete ãs mesmas possibilidades de movimento, aos mesmos esquemas de solução. A disposição visual dos pronomes ao longo do texto, numa procura desajeitada de um perfeito encaixe, reveste-se de um humor francamente melancólico. Quan^ do finalmente se chega a uma fusão, com os dois elementos a princípio separados fundindo-se numa unidade, esse instante revela-se fugaz e o que resta ê nova separação, porém com marcas distintas da separação original dos amantes. Os dois "1" caldos,, cada qual. para um lado, são índices de uma perda evidente. Após o ato, os sujeitos estão ainda mais vazios e esquemáticos do que no inicio,.quando ainda guardavam uma mínima diferença entre si. Ainda um poema deste segundo grupo temático, o das "eróticas" , agora evidenciando mais uma vez o recurso ã intertextualidade e acentuando1 os pendores epigramáticos de Paes, é esta brevíssima "Minicantiga d'amigo": MINICANTIGA D'AMIGO coyta coyto As "cantigas de amigo" datam, de fins da Idade Wédia e estão entre as formas líricas mais antigas e primitivas da literatura em língua portuguesa. Diferentemente das suas con- temporâneas "cantigas de amor", estas sob a influência da 374 poesia lírica provençal, mais aristocrática e refinada, as "cantigas de amigo" são peças líricas de expressão muito simples, restritas a esquemas formais básicos, como o paralelismo e a presença de refrão, e a um universo léxico bastante restrito. Nas "cantigas de amigo", o poeta, assumindo a perspectiva feminina, canta as saudades pela ausência do namorado ou a alegria do encontro entre os amantes, através de confidências feitas pela mulher ã mãe ou ãs amigas. Palavra-chave para o entendimento do -sentimento central dessas canções é "coita", termo arcaico que significa "pena, dor, aflição, desgraça; necessidade, precisão". 8 7 A "coita" é sentimento vivido pela mulher na ausência do seu namorado, sentimento de nuanças afetivas que facilmente sugerem outras, de teor. mais físico, mais corporal. É esse intervalo semântico, o que pode- estar escondido por trás da carência afetiva, o que se explora jocosamente na "Minicantiga". Paes brinca, com um certo sarcasmo, com essa "dor", com essa "precisão" da mulher que lamenta a ausência do "amigo". Sugere tratar-se, sob a máscara da sentimentalidade, de uma "precisão" sexual, que o termo "coito",, sem pudores ou melindres, contundentemente explicita. Com uma grafia arcaizante, ele põe paralelamente os termos "coyta" e "coyto", o que poeticamente os torna termos complementares. Repare-se que a vogai final do primeiro termo remete â desinência própria do feminino "a", ao passo que a do segundo remete ã do masculino "o". A "coyta", a partir dessa sugestão, seria um sentimento eminentemente feminino., a que corresponderia o "coyto", para o qual o homem surge como elemento ativo e indispensável. 375 A expressão em "Minicantiga d'amigo" ë extremamente sintética, prima por uma brevidade-limite, que lembra a de um outro poema, o poema "amor", de Oswald de Andrade, a cujo título segue unicamente o termo "humor". Trata-se de um dos poemas mais curtos da língua, num certo sentido uma verdadeira poética da poesia oswaldiana, a que Paes é confessadamente devedor. Em "Minicantiga d'amigo", seguindo o exemplo do "mestre", Paes leva a poética da brevidade, ingrediente básico do poeta epigramático, a níveis bastante radicais. Nos três poemas comentados., o amor e a ligação amorosa são objetos de jogo verbal, crítica e humor.. 0 poeta deixa de lado a perspectiva sentimental e melancólica, subjetiva e lírica, através da qual tantas vezes o tema é abordado poeticamente, e prefere tratá-lo de forma mais seca e ferina, expondo-o a uma maior ou menor irrisão. Hã, nos dois primeiros poe- mas, além da jocosidade evidente, uma possível crítica ideológica de valores: em "Epitalâmio", pelo carãter previsível, regularizado, cotidianizado, banalizado do amor, com cada membro do par assumindo seu devido lugar na posição emblemática do ato amoroso; em "Camassutra", pelo erotismo esquemático e automático, numa busca frenética de diferentes posições, como se o contorcionismo virtuosistico do par fosse o requisito básico para a qualidade e plenitude do amor. No terceiro poema, no brinquedo intertextual, o poeta, como que despretensiosamente, revela os expedientes de que a expressão poética lança mão para velar certos impulsos inconfessos do desejo amoroso. O terceiro núcleo temático do livro é o das "metafísicas", a que Paes dedica igualmente diversos poemas. Entre eles, pode-se destacar a princípio "Saldo": 3 76 SALDO a torneira seca (mas pior: a falta de sede) a luz apagada (mas pior: o. gosto do escuro) a porta fechada (mas pior: a chave por dentro) A estrutura de todo o poema obedece a um paralelismo rigoroso: três estrofes, cada, uma com três versos, os dois primeiros de cada estrofe pentassilãbicos e o terceiro dissilábico ; um primeiro verso formado por um segmento sintático com artigo + substantivo + adjetivo, sem qualquer pontuação ou sinal gráfico distintivo; um segundo.verso com abertura de parênteses, uma expressão que se repete nas três estâncias, "mas pior", seguida de dois.pontos e de outro segmento sintático .'(artigo + substantivo) , interrompido e , continuado no verso seguinte, num "enjanbement"; e terceiro verso, com a complementação do segmento anterior (preposição + substanti- vo/advérbio na terceira estrofe) e o fechamento dos parênteses. Do ponto de vista semântico, o paralelismo se repete. A uma realidade enunciada no primeiro verso, realidade marcada sempre por uma negatividade, corresponde, nos versos seguintes, uma observação entre parênteses de.caráter a principio restritivo, que acentua, porém,,na aparente restrição, essa negatividade, na medida em que apresenta uma realidade mais radical, que parece prescindir da realidade anterior e tornar sem efeito as suas conseqüências possíveis. Tem-se assim 377 um mergulho agudo numa situação problemática, uma vez que aquilo que poderia se afigurar a principio como tal, não o é tão intensamente, jã que a raiz do problema encontra-se em ponto ainda mais-profundo. Em "Saldo", observa-se uma alteração evidente de tom. Não hã propriamente crítica a uma realidade social, política ou cultural exterior, mergulhada em sãtira, humor, ironia. 0 sujeito poético fala de si próprio agora, projeta o olhar para dentro de si próprio, explicitando o seu estado de espírito, a sua condição - pode-se dizer - existencial. No balanço de sua existência, ele avalia o que lhe resta, apresenta o "saldo" da sua vida, e revela que, se as condições exteriores tantas vezes se afiguram extremamente problemáticas, na verdade isso ainda não é o pior, pois é dentro, do-próprio sujeito que toda uma problemática muito mais complexa está radicalmente fundada. Repare-se na negatividade presente nas condições exteriores ao sujeito, concentradas em três expressões metafóricas - "a torneira seca", "a luz apagada", "a porta fechada". Tudo aponta para uma falta, para uma carência, para uma limitação, para um "não", enfim. A "torneira", por onde a ãgua poderia correr a fim de matar a sede do sujeito, está "seca". A "luz", que lhe poderia permitir uma visão mais clara e nítida da realidade .circunstante, estã "apagada". A "porta", limite entre ele e o mundo, possibilidade de passagem e contato com o exterior, estã "fechada". As três realidades remetem a um condicionamento que parece surgir a despeito da vontade do sujeito, um condicionamento que lhe ê imposto de fora, contra o qual, para não sofrê-lo, ele precisaria reagir. 3 78 E aqui surge a radicalização do problema e o mergulho na própria negatividade..Não hã disposição de reação, e a cada um dos problemas o su jeito ..responde com um novo, agora vislumbrado em seu próprio interior. "A.torneira seca", "a luz apagada", "a porta fechada" chocam-se com uma amarga revelação. No contexto metafórico do poema: de que. adiantaria a ãgua, se o que marca o sujeito ë "a falta de sede"; ou a luz, se o que lhe apraz é "o gosto do escuro"• ou a possibilidade de abrir e passar pela porta, se na verdade estã "a chave por dentro"? Assim, as três circunstâncias iniciais esvaziam-se enquanto problemas, tornam-se falsos ou aparentes problemas, jã que hã algo mais fundo no. próprio sujeito e independente da realidade exterior que se lhe evidencia como problemático. A expressão de ligação "mas pior:" faz a ponte entre essas realidades exteriores e interiores, hierarquizando-as, enfim. 0 "saldo" computado pelo sujeito poético deste poema ê bastante negativo. Kã amargura, porém não. uma amargura angustiada que se debate numa procura de possíveis soluções. Por trãs de todo o sentimento aí apreensível, hã aceitação e resignação. De forma semelhante, o "saldo" final no cómputo dos próprios "bens" por um outro sujeito poético, agora o do poema "Declaração de bens", não tem teor muito diverso, a despeito da diferença entre os textos, evidente na intenção mais satírica deste segundo: 379 DECLARAÇÃO DE BENS meu deus; minha pátria minha família minha casa meu clube meu carro minha mulher minha escova de dentes meus calos minha vida meu câncer meus vermes Neste poema, novamente se observa uma estruturação de carãter paralelístico: quatro estrofes, cada uma delas com três versos, cada verso.com estrutura idêntica - pronome possessivo de primeira pessoa, seguido de substantivo. Importante porém é perceber a seqüência das expressões na estrofe e entre as estrofes, do início do poema até o fim, jã que está aí o segredo do poder de crítica, da violência amarga e negativa deste poema, violência que se esconde, reiteradamente, por trás do humor que surge dos contrastes do texto. Na primeira estrofe, o "eu" poético arrola os três primeiros elementos da sua "declaração de bens": "meu deus", "minha pátria", "minha família". Percebe-se uma hierarquização na apresentação dessas realidades. Em primeiro lugar, faz-se menção a aJ_go que a princípio diz respeito â religiosidade, â espiritualidade, ao sagrado, â transcendência. "Deus" - na perspectiva do sujeito - é o "bem" maior que um homem pode possuir, estã acima de tudo, estã acima de todos os valores, e por esse motivo é o primeiro "bem" que deve ser citado. 380 A seguir vem "pátria", um bem que já não diz mais respeito ã dimensão do sagrado e do transcendente, a despeito da coloração de tal teor de que por vezes o termo se encontra reves- tido. "Pátria" delimita já um espaço especifico na dimensão do humano, espaço de uma coletividade, porém de uma coletividade que se individualiza na medida em que se opõem a outras. Repare-se que o teaomo "pátria" ë termo carregado de sentidos afetivos ideologicamente muito marcados. Remete a uma geografia afetiva bastante problemática. A preferência neste poema por um termo assim, ao invés, por exemplo, de "país" ou "nação", termos mais "neutros", é significativa e precisa ainda ser comentada. Finalmente, "família" diz respeiro a um recorte menor do espaço afetivo implicado no termo anterior, delimitando um núcleo.básico e mínimo, do qual o sujeito poético revela-se elemento central. Trata-se de um núcleo organizacional, de uma instituição básica dentro do universo social, abaixo da qual.jã se chega ao espaço da individualidade, ao espaço do sujeito, mínimo denominador desse complexo. É preciso ressaltar a intenção crítica evidente jã perceptível no espaço dessa primeira estrofe. Em primeiro lugar, arrolar essas três realidadés sob a designação "declaração de bens" é bastante problemático. A expressão remete a um contexto juridico-financeiro bastante preciso, diz respeito a arrolagem de bens móveis e imóveis de determinada pessoa física ou jurídica a fim de se determinar o pagamento devido de impostos ao Estado. "Deus", "pátria" e "família", apesar da maior concretude dos dois últimos, e sobretudo do terceiro, não dizem respeito a .realidades materiais e econômicas que se encontrem sob a posse de determinado sujeito e que possam ser 381 financeiramente avaliadas. Surge assim uma dissonância entre a expressão do título do poema e os primeiros "bens" arrolados, que acaba incidindo criticamente sobre o sujeito e a perspectiva ideológica que o anima, denunciando a apropriação e a "coisificação" dessas realidades por ele realizadas. A idéia de "posse" surge ai com vigor, fazendo com que tudo, para ser entendido como pertencente a alguém, tenha que passar por esse crivo. Porém, a expressão "declaração de bens" pode ser entendida em sentido mais amplo, como dizendo respeito aos "bens" gerais do sujeito, sejam eles materiais, sejam de. outra natureza, como os que são arrolados na primeira estância. Aqui, uma segunda observação precisa ser feita. A despeito dos valores positivos implicados nos termos "deus", "pátria" e "família" , na verdade são os seus sentidos mais negativos e problemáticos os que vêm a primeiro plano, sobretudo num texto de poeta tão agudamente crítico quanto Paes. Os três "bens" em questão remetem a um discurso ideológico marcadamente reacionário. São três bandeiras perigosas levantadas pelo pensa« mente de direita recorrentemente nos seus momentos de afirmação e de combate. São as palavras de ordem do Fascismo, quer nas suas versões mais cruentas na.Europa, dos anos trinta e quarenta - Alemanha e Itália -, quer nos seus ecos no Brasil, como no Integralismo. São as bandeiras que bom setor da classe média brasileira levantou na eminência do golpe de ."6 4 e que lhe deu sustentação. E aqui cabe ressaltar os contornos implícitos no termo "pátria", tão marcado no quadro da ditadura militar. Teria sido pela "pátria" que os militares cometeram sua aventura política, para salvá-la do caos social e da ameaça 382 comunista, ameaça potente, na fantasmagoría de então, a essa realidade tão cara, e a outras afins, como "deus" e "familia". Na estância segunda, mais três elementos são arrolados, agora de abrangência mais reduzida, realidades circunscritas mais próximamente ao sujeito: "minha casa", "meu clube", "meu carro". A primeira e a terceira são realidades materiais evi- dentes. . A segunda também remete a uma certa materialidade, jã que fazer parte de um "clube", mesmo considerando a realidade mais abstrata que se encontra sob esta designação, ë também poder usufruir dos bens materiais que ele põe a disposição dos associados. Os três elementos são ainda símbolos do "status" social do sujeito, apontam para o lugar que ele ocupa na hierarquia social, lugar de relativo destaque quando se considerada a totalidade do corpo da- sociedade brasileira. 0 sujeito ë proprietário de uma "casa", o que, numa sociedade onde a propriedade é valor básico e a maior parte dos indivíduos se encontra privada dessa realidade, é.traço de evidente distinção. 0 sujeito não se encontra na situação subalterna de lo- catário de um imóvel.,, .a depender do aval de outros proprietários para poder alugar um espaço para si, afirmando ainda mais o princípio da propriedade ao colocar sua carência em benefício econômico de quem jã tem. O indivíduo ê também proprietário de um "carro", portanto pode prescindir do transporte coletivo, que nos grandes centros urbanos.ë realidade.massacrante e niveladora; portanto subtrai-se ao contato com a massa, distingue-se dela por poder deslocar-se no trânsito de forma independente, dentro de um espaço só seu. O sujeito pertence a um "clube", faz parte de uma coletividade bastante restrita e selecionada, outro traço a distingui-lo da maioria, condenada a usufruir dos precários espaços públicos de lazer. 383 Na terceira estrofe, mais três "bens" do sujeito são arrolados, criando agora, de forma contundente, um primeiro maior estranhamento no texto: "minha mulher", "minha escova de dentes", "meus calos". Se nas duas estrofes anteriores, os elementos arrolados em cada uma delas diziam respeito a um universo relativamente homogêneo - na primeira, o universo de bens afetivos, religiosos, morais, políticos; na segunda, de bens materiais, sociais -, chama a atenção agora a heterogeneidade dos elementos, que, no entanto, na perspectiva do sujeito poético, acaba sendo reduzida a. uma homogeneidade problemática. "Minha escova de dentes" e "meus.calos" remetem ao cotidiano mais mesquinho do sujeito. "Minha mulher", primeiro elemento citado na estância, acaba sendo tragado por esse contexto. É como se a."mulher" fosse relegada a esse universo das picuinhas cotidianas, osciliando.entre a "escova de dentes", ritual diário da higiene íntima,e os "calos", o sofrimento inflingido ã carne pela opressão dos sapatos. A "mulher" transforma-se assim num misto de hábito diário.de higiene e incômodo carnal para o sujeito. Além disso, repare-se que na hierarquização dos elementos ao longo do poema, a-'."mulher" fica abaixo da "casa", do "clube" e do "carro", portanto ê propriedade de menor valor entre os "bens" do homem. Há.um sarcasmo evidente na construção poética pela qual o poeta optou aqui. Na estância final, os três últimos "bers " são apresentados: "minha vida", "meu câncer", "meus vermes". "Minha vida" comporta de alguma, forma tudo o que foi citado anteriormente, todos os "bens" do s u j e i t o - afinal são eles; elementos basilares para a "vida" desse sujeito -, incluindo-o também finalmente, enquanto ser vivente, enquanto sujeito específico, entre esses "bens". Porém, a isso que poderia ser uma afirma- 384 ção da vitalidade do ser, segue ura elemento antagônico, "meu câncer", como que neutralizando essa afirmação positiva. 0 "câncer" rói a vida por dentro, mina as bases biológicas vitais do sujeito, projetando-o lenta e agonizantemente no espaço da morte. E aqui entra o último elemento, "meus vermes", forma cheia de sarcasmo e amargura de se referir à própria mor te. O ultimo bem são os "vermes", os operários intra-tumulares que finalmente se encarregarão de "limpar" o que resta da "vida" desse sujeito. A partir da luz que a última estrofe projeta sobre as demais, tudo o que ali surge mencionado, se na sua convenciona lidade e estreiteza poderia ter algum carãter de afirmação positiva da vida, perde seu efeito, tudo se torna um .inútil ; prólogo da doença e da morte. A visão final.ë amarga. Do-"deus inicialmente citado, passando-se por uma arrolagem marcadamente problemática, cheia de convencionalidades ( primeira e segun da estrofe) e distorções ( terceira), chega-se ao último "bem", ao oposto definitivo do primeiro, "bem" final q.aie subordina todos os outros â sua realidade absorvente. 0 poeta exercita aqui uma contundente crítica ideológica. Denuncia a perspectiva do homem que arrola as realidades mais díspares da vida como elementos de sua. propriedade particular, que não consegue lidar com os valores mais diversificados, com os seres semelhantes e com os objetos concretos de forma diferenciada, tudo absorvendo.através do crivo da posse, tão evidente, no texto, na reiteração cansativa dos pronomes possessivos. Denuncia o que hã de convencional, reacionário ebanal no credo ético, politico e religioso desse homem. Denuncia os estereótipos da sociedade burguesa e de consumo, os 385 seus fetiches, a sua busca de distinção, de "status" social. Denuncia a distorção de valores dessa sociedade, que subordina o ser humano aos objetos materiais, e que vê a mulher dentro de um espaço de realidades cotidianas das mais mesquinhas. Enfim, destaca a nulidade de tudo isso, observando esse complexo a partir do prisma da precariedade da vida e da sua inevitável condenação ã morte. Não é a utopia de uma outra ordem social o que põe em xeque a ordem presente. Ë a própria perspectiva da morte, problema "metafísico" por excelência, o que o faz. 3.6.3 Conclusão Logo no início de.Meia palavra, lê-se uma formulação de Dèmõcrito, trazida como epígrafe por Paes: "a palavra so(m)bra da ação". No postulado teórico de Dèmõcrito.a respeito da natureza da linguagem, vista como natureza segunda e residual de uma realidade primeira, a da "ação", ecoa a possibilidade de uma redenção dessa realidade. Num momento político em que a "ação" encontra-se restrita em seus movimentos pela repressão do regime autoritário, a "palavra", na sua condição de "sombra", portanto de algo que não pode ser interceptado pelo gesto violento e aprisionador, ê o que "sobra" como espaço e resgate possível dessa mesma "ação". Por esse motivo, o engajamento crítico do poeta, através da."palavra", não pode ser minimizado, tido como infrutífero, sem conseqüência. A "palavra" movimenta-se num espaço em que a "xação" , reprimida, não pode se movimentar. Ela surge como um sucedâneo necessário, que presentifica a "ação" no momento da sua provisória impossibilidade . 386 É ainda a partir do problemático contexto político da época em que vem a público Meia palavra, que se pode buscar orientação para uma primeira interpretação do título do livro. "Para bom entendedor, meia palavra basta", diz um ditado corrente. Num momento em que a palavra franca, direta, explícita se encontra interdita, sugerir,insinuar, contornar via metáfo- ras e alegorias torna-se expediente comum da arte produzida no período mais violento da censura e da repressão. Se a "palavra" se encontra sob o foco da censura, é com "meia palavra" que o poeta vai trabalhar, procurando escapar assim ã interdição, contando com o despreparo da censura para lidar com os registros mais sutis da linguagem, como é afinal o registro poético. Também o público receptor desse, instante, consciente da censura, está preparado para 1er nas entrelinhas de todo o-discurso artístico, por vezes radicalmente elíptico, os. sentidos críticos que ele possa estar querendo veicular. Para esses "bons entendedores" , "meia palavra basta"'. Mas a expressão "meia palavra" pode trascender essa explicação politicamente determinada, passando a referir-se, sim, ã própria poética paesiana no seu momento de maior maturidade. O poeta epigramático, na sua.busca de uma expressão cada vez mais enxuta, de uma poesia cada vez mais concisa e concentrada, porém com forte poder de comunicação, de impacto, de contundência,, de informação,, opta por trabalhar com elementos cada vez mais mínimos da linguagem. Se a "palavra" é a matéria comum de todo o poeta, "meia palavra" é a matéria suficiente para um epigramático radical como Paes. Meia palavra dá continuidade aos livros anteriores de Paes no que têm de. crítica incisiva às realidades políticas, 387 sociais e culturais do país. Para tanto, a paródia, a sátira, a ironia continuam os dados fundamentais dessa poesia de Índole contestadora. Em relação a Anatomias, o livro anterior de 1?67, Meia palavra insiste na incorporação de certos recursos tornados correntes pela vanguarda poética, filtrados no entanto pela necessidade de crítica e comunicação do poeta. Paes aproveita da vanguarda aquilo que se coaduna com as tendências de contenção e incisão que a sua poesia vinha manifestando já anteriormente. A experimentação visual numa linha de continuidade em relação aos experimentos . concretistas e da vanguarda em geral, acentuadamente do Poema Processo, e também em relação ao próprio Paes de Anatomias, quando este procedimento se inaugura em sua poesia, está -fortemente., presente em Meia.palavra; . O recurso ã fotografia, onde a tensão código visual x G Õ d i g o ver- bal (através do título ou de palavras no espaço do visual) ê dado muito importante, encontra-se em três poemas: nos abordados "Sick transit" r e "Epitalâmio" e ainda em "0 espaço é curvo", poema em que o poeta lança mão da fotografia de placas de trânsito para compor o texto, como no primeiro destes exemplos. A exploração visual estã presente ainda em "pascal prêt-ã-porter e/ou le tombeau de mallarmë", em que citações em francês se encontram ao pé de uma.pãgina e de seu verso, sendo a primeira totalmente preta e a segunda branca, com os caracteres de cada citação nas cores respectivamente contrastantes. Em.poemas como o abordado "Camassutra",a exploração visual se dã através.do jogo na disposição das letras na pãgina. 388 Também se observa com muita evidência a reiteradamente constatada intenção intertextual e paródica de Paes. Exemplo evidente disso é a "Canção do exílio facilitada",a que se pode somar também "Olímpica" e "Minicantiga d'amigo". No espaço da intertextualidade e da paródia evidencia-se também o veio metalingüístico do poeta, poeta consciente do seu labor e que a todo o momento, de forma mais ou menos evidente, constrói todo um discurso de crítica literária em seus textos. Os poemas citados são também exemplo de exercício de crítica, a que se pode juntar um outro, "Metasson.eto ou o computador irritado", em que Paes faz um soneto somente com as letras normalmente utilizadas para explicitar o esquema rímico de uma composição. 0 jogo com frases feitas, com ditados, com citações latinas, disseminado em vários poemas, é também meio de crítica e re-: curso à intertextualidade. A concisão encontra realização radical em um poema como "Minicantiga d'amigo", ou ainda em "0 .vagido da sociedade de consumo", a cujo título segue somente a expressão "consummatum estj". Fica explicitada também em "Canção do exílio facilitada", sobretudo quando se compara, este com o poema d© partida de Gonçalves Dias. Ã expressão mais derramada do poema român- tico original sucede aqui a contenção do poema moderno, que traduz paródicamente o primeiro através de advérbios, interjeições e substantivos, todos muito curtos, sem articular nenhum período e sem fazer uso de adjetivos, expediente estranho ã poesia romântica. Mas o verso e a expressão, mais carregadamente metafórica estão presentes também em Meia palavra. O estudado "Saldo" é um primeiro exemplo disso, a que se somam também poemas como 389 "Post prandium", "Entropia", "Extemporânea", entre outros. Se o poeta chega a uma certa radicalidade ao trabalhar com a palavra e sua fragmentação em muitos poemas, ou só com abreviaturas, como em "Cronologia", do livro anterior, ou ainda de aboli-la ou quase fazê-lo em outros de experimentação visual, esses expedientes não põem em desuso automático o verso e a expressão mais metafórica e simbólica tão caros â poesia e à sua tradição, como a vanguarda, num momento afirmativo e iconoclasta, chegou a postular. As unidades mais extensas, a despeito da sua evidente contenção na poesia paesiana deste momento, encontram franca expressão nestes poemas de.Meia palavra. Temáticamente, Meia palavra ë somatória de várias tendências evidenciadas.em livros anteriores. A critica política e social, exercitada,em todos os-livros de Paes desde Novas cartas chilenas, tem aqui largo-espaço. A poesia amorosa, tão líricamente presente em Cúmplice s, retorna, aqui, após um ou outro poema em livros anteriores, como o belo "Epitalâmio" de Anatomias, agora porém sob a mira ferina.e sarcástica da palavra crítica do poeta. Não é o amor como plenitude e realização, como naquele livro, o que é cantado aqui, mas sim o amor em suas distorções, no seu esquematismo, no seu ridículo, inevitáveis numa sociedade alienante como a que o poeta se propõe a combater. A expressão angustiada e-amarga.do sujeito, presente em alguns dos primeiros trabalhos de Paes, como os de 0 aluno, e de forma dispersa nos livros seguintes, retorna aqui.com toda a força. "Saldo" ë exemplo evidente dessa intenção, e outros poemas enfeixádos nas "metafísicas" corroboram a visão aí presente. Em.i-.meio ao riso que a crítica satírica põe em curso em boa parte das composições, surge aqui e ali expressões mais tensas e amarguradas dos becos sem saída em 390 que se encontra por vezes o sujeito. Mas, lado a lado com esses veios temáticos, o poeta que gosta de falar de poesia, remetendo com freqüência a este ou àquele autor através de citações, paródias, alusões - o poeta conhecedor da tradição de literatura -, permeia todo o livro. Meia palavra é um trabalho em que estão presentes todas as conquistas formais e temáticas que.se vinham delineando nos livros anteriores de Paes. Ë um momento de estabilização poética, em que o poeta atinge uma.dicção própria e madura. Ê o próprio Paes quem reconhece isto quando se refere a este livro e aos imediatamente anterior e posterior: Sem ¡ m o d é s t i a , a c r e d i t o t e r conseguido nos l i v r o s dessa f a s e "Anatomias", de 1 9 6 7 , "Me i a . P a i a v r a " , ,de- 19 73 , e " R e s í d u o " , de 1 9 8 0 - a p e s s o a l i d a d e q ue b u s - c a v a ao c o m b i n a r o i n t u i t o de s á t i r a e paródia i d e o l o g i c a m e n t e o r i e n t a d o com r e c u r s o s de e x p r e s s ã o q u e i a m do t r o c a d i l h o ã a l u s i o , da m o n t a g e m v i s u a l ã p a l a v r a em 1 i b e r d a d e . , da f r a t u r a semânt i c a ã f a l s a e t i m o l o g i a . T u d o i s s o em p r o l de uma c r í t i c a ã f ú r i a de p o s s e d a s o c i e d a d e de c o n s u m o na s u a pervertida v e r s ã o b r a s i 1 e i r a p ó s - 6 4 . E com as ilações c í v i c a s , e r ó t i c a s e m e t a f í s i c a s que dos seus r i d í c u l o s s e . p u d e s s e m tirar, c o n f o r m e p r o p u n h a o s u b t í t u l o de " M e i a Palavra".89 Interessante destacar aqui como. Paes, nestas suas palavras, acaba por pôr as suas conquistas formais, o seu amadurec cimento poético, em função de uma crítica â sociedade e seus valores. 0 engajamento crítico do., poeta através da sua palavras encontra-se aqui reafirmado..Se em alguns livros ele via se manifestado, de forma mais dogmática, dentro- ide um hacor- po político-ideológico. definido,. como nos textos publicados em fins dos anos 50 e começo dos anos 60, e talvez por esse 391 motivo mais facilmente passível de contestação e envelhecimento, agora, na postura francamente independente do poeta, jã sem o pano de fundo de.uma utopia político-social orientadora, o engajamento critico adquire outros contornos, orienta-se em muitas direções, jã não ë simplesmente uma critica aos "poderosos" em defesa dos "oprimidos", mas uma critica ã "sociedade de consumo" de um modo geral, e, por extensão, a todos os que afirmam ativa ou passivamente os valores dessa sociedade. 3.7 3.7.1 RESÍDUO (1980) Introdução Resíduo foi publicado em 1980,. ano derradeiro de uma década marcada pelo autoritarismo, pela perseguição política e pela censura à produção cultural. Nesse, instante, o país estã atravessando um momento de. transição, com a lenta abertura política promovida no final do governo Geisel e ao longo do governo Figueiredo., tendo como conseqüência, uma suavização da censura e a anistia aos' exilados políticos, que retornam então ao país. Todavia a "Abertura" não é dãdiva do governo militar, mas sim ;sinal do., seu esgotamento e. das pressões da sociedade. Some-se a isso o fracasso dos projetos econômicos, com o endividamento absoluto do pals e a radicalização dos problemas sociais que se vinham avolumando, hã tanto tempo. Na poesia brasileira, o quadro geral não se apresenta muito distinto do instante em que o livro anterior de Paes, Meia palavra, 1973, havia sido publicado. Além de nomes jã 392 consagrados anteriormente, e de outros independentes que vão surgindo, não se vislumbra nenhuma tendência coletiva nova na poesia brasileira, com exceção da Poesia Marginal, que vai se configurando em meados da década, e nesse instante apresenta sinais de esgotamento quanto ao potencial anteriormente apresentado de renovação significativa. Os agrupamentos poéticos, uma das marcas do Modernismo inicial, presentes também num instante de difícil avaliação, como a Geração de 45, resgatados com vigor pelas vanguardas estéticas e políticas dos anos 50/60, e bastante evidente ainda na Poesia Marginal, deixam de marcar presença a partir de agora. Os projetos poéticos coletivos cedem espaço ãs poéticas individuais. Nenhum termo conceituai globalizante se definiu ainda caracterizando o período. Pode-se supor que uma possível falta de distanciamento impeça a visão que dissolva os traços particulares de cada poeta num todo donde se extraiam traços epocais característicos. No entanto, talvez a impossibilidade esteja simplesmente no fato de as poéticas de ruptura, ou mais amplamente de contestação de tendências precedentes, responsáveis pela polarização estética e pela conseqüente definição de grupos, se terem esgotado. Cada novo poeta se vê diante de uma gama muito vasta de possibilidades de expressão. Não hã uma linha hegemônica na poesia, e portanto a necessidade de se enquadrar ou de se rebelar. Curioso notar que com esse instante em que as poéticas individuais predominam sobre as coletivas coincide justamente o momento em que Paes atinge uma grande pessoalidade em sua poesia. Se antes o diálogo com as tendências contemporâneas de livro para livro era muito intenso, resultando''daí uma sempre 393 visível impregnação dessas tendêmcias em sua própria produção, agora isso se atenua. Após o contato com o Concretismo, devidamente absorvido e subordinado ao veio central da sua poesia, Paes limita-se agora a repisar afirmativamente as suas conquistas . 3.7.2 Análise Em Resíduo, temas e procedimentos formais dos livros imediatamente anteriores de Paes encontram-se novamente presentes. Não há propriamente aqui algum dado novo e, por conseguinte, contrastante que o destaque de modo evidente dos anteriores. Como jã se acentuou em termos parcialmente conclusivos a respeito do trabalho precedente Meia palavra, o poeta parece ter-chegado a uma..fase .de amadurecimento criativo e, portanto, de estabilização em sua poesia. 0 humor, a sátira, a ironia, com o distanciamento crítico que permitem; a crítica incisiva voltada ao social, ao político, ao cultural; as reflexões por vezes amargas sobre o ser e a existência; a opção pela contenção, pela brevidade, pelo epigrama; o jogo com as formas, a partir de palavras e frases feitas; a intertextualidade e a metalinguagem como exercícios de crítica no interior da própria poesia; o recurso ã experimentação visual, posto que neste trabalho ele se limite a dois únicos poemas - são aspectos fortemente presentes em Anatomias e Meia palavra, anunciados jã em livros ainda anteriores, e què se encontram reiterados neste breve Resíduo. 0 ludismo verbal cheio de humor e crítica está presente em diversos poemas. "Lembrete cívico", que abre o livro, pode ser um primeiro exemplo: 394 LEMBRETE CÍVICO homem público mulher publica "Lembrete" ë um apontamento bastante rápido, que se faz numa folha ou pedaço de papel, para que uma observação, um recado, um dado qualquer que ocorra ã mente não se perca nas limitações da memória. A brevidade, a rapidez, a despretensão do registro são elementos próprios do "lembrete". O adjetivo "cívico", posposto ao termo no título do poema, tem ressonâncias irônicas, uma vez contrastado.- ao texto que segue. Remete ainda ã tripartição temática contida no subtítulo de Meia palavra, "cívicas, eróticas e metafísicas". 0 poema é bastante simples. 0 poeta lança mão de duas expressões .correntes, com. sentidos, a princípio bastante precisos e distintos: "homem público" é o homem que.se dedica ã vida pública, o político portanto; "mulher pública", por sua vez, é a prostituta. Porém, essas diferenças de sentido das expressões chamam a atenção, sobretudo quando, a partir de uma leitura vertical do poema de Paes, percebe-se que-os termos em confronto "homem"/"mulher" e "público"/"pública", assim isolados, são termos masculinos e femininos equivalentes do ponto de vista gramatical. Essa "neutralidade" primeira, essa equivalência dos termos se perde nas expressões. No uso corrente, uma não corresponde ã outra, uma não ë a contrapartida da outra em termos semânticos como o paralelismo gramatical poderia fazer supor. 395 Postas em confronto, como ocorre no poema, as duas expressões entram em tensão. Os seus sentidos são mutuamente questionados, as nuanças semânticas de uma contaminam, pela proximidade, a outra. A partir da disposição contrastiva das expressões realizada pelo poeta, duas operações podem ser destacadas. Em primeiro lugar, um questionamento dessas diferenças. Em segundo, uma tentativa de resgatar, satíricamente, possíveis equivalencias entre as expressões. As diferenças de sentido entre as expressões revelam muito da própria condição sõcio-cultural do homem e da mulher no Brasil, ou pelo menos do que foi essa condição ao longo do tempo em que as expressões se foram cunhando. O "homem público" e a "mulher pública" são ambos aqueles que deixam o espaço privado para ingressar ativamente, no espaço do que é público. A oposição "casa" x "rua" pode ser aqui utilizada para caracterizar o antagonismo desses espaços sõcio-culturais. 0 homem que sai de "casa" para ocupar o espaço da "rua" é o cidadão, o homem civicamente ativo, que no limite transforma-se no "homem público", no político. A expressão, a princípio, não tem qualquer sentido negativo, ao contrário do que ocorre com a outra. A mulher que deixa o espaço da "casa" para lançar-se â "rua" é, ao contrário, a mulher de vida fácil, a prostituta, a "mulher pública" enfim, e não a cidadão ativa, ou a política. A não equivalência das expressões no nível' da linguagem, mesmo que meramente casual, traduz bastante bem a não equivalência das condições entre homens e mulheres. Nos valores que as expressões carregam consigo transparece sem dúvida um certo ideal cultural, que destina ao homem o espaço da "rua" e ã mulher o espaço da "casa". Quando se subverte essa relação, a 36 7 própria linguagem trata de marcar negativamente, de estigmatizar a subversão. Se num primeiro instante a proximidade das expressões "homem público"/"mulher pública", pela não equivalência semân tica, torna patente a diferença sõcio-cultural dos sexos, pode-se vislumbrar aí também um intuito de sátira por parte do poeta, jã que a proximidade implica também em semelhanças, para além, obviamente, dos paralelos morfológicos entre os termos. Aceitando-se o caráter negativo da segunda.expressão, esse caráter acaba por contaminar também a primeira. Tem-se assim uma ridicularização que também ê um questionamento do "homem público". Como a prostituta, que vende seu corpo, seu único bem, no violento mercado da sexualidade mais predadora, o "homem público", o político, também se vende. Vende aquilo que tem, a função que lhe foi delegada por uma certa coletividade a fim de representá-la e defender seus interesses, no mercado mesquinho dos interesses próprios. A expressão "prostituir-se", a despeito de toda a compreensão que se possa ter pela condição da prostituta, ê termo muito negativo, que se aplica extensivamente quando se quer referir ao indivíduo que trai seus ideais ou função em troca de uma recompensa qualquer em conflito direto com esses ideais ou função. 0 que poderia parecer ã primeira vista um mero jogo com expressões correntes acaba por ecoar uma série de considerações. O lúdico e o satírico em Paes revestem-se reiteradamente de uma função crítica de gume muito aguçado. Outros exemplos de jogo com as palavras e síntese expressiva são ainda "0 libertador" e "A evolução dos estilos": 397 O LIBERTADOR frei id freiid freud A EVOLUÇÃO DOS ESTILOS .barroco barrococo rococo Verifica-se nestes dois poemas um semelhante processo de composição. O poema nasce de um jogo de descoberta com as possibilidades da palavra. O poeta explora as virtualidades de dado vocãbulo para extrair dele o próprio texto. O poema está contido no próprio vocábulo e ao poeta cabe revelá-lo. Assim, sopesando com cuidado as palavras, remoendo os seus sons e os seus sentidos, fragmentando sílabas, recombinando-as, buscando associações possíveis, ele vai revelando a poesia que nelas está latente. Em "0 libertador", parte-se das palavras "frei", que em alemão quer dizer "livre", e do termo "id", que na psicanálise freudiana designa "a parte mais profunda..da psique, receptáculo dos impulsos instintivos, dominados pelo princípio 8 9 do prazer e pelo desejo impulsivo" , para se chegar ao nome pro- prio "freud". 0 poeta aproxima inicialmente os dois primeiros vçcãbulos ("frei id"), funde-os a seguir numa única e estranha palavra ("freiid"), e, convertendo os dois "ii" em "u" a partir de uma possível semelhança visual entre as duas primeiras vogais lado a lado e a segunda, ou ainda simplesmente a partir da possível oposição fonológica entre os termos, chega ao termo final "freud". No interior, portanto, do nome do pai da psica- 398 nãlise, o poeta descobre referências à sua própria teoria (o vocábulo "id" diz respeito a conceito capital na psicanálise freudiana) e ao significado dela para o homem contemporâneo, afinal Freud, estudando profundamente o comportamento humano a partir de novas, polêmicas e inusitadas bases, acabou por contribuir para uma melhor compreensão de aspectos profundos da mente humana, relegados anteriormente para segundos planos, para espaços marginais, compreensão esta que afinal implica também numa libertação do próprio homem (retome-se aqui o ter- mo alemão "frei" e o título do próprio poema). No segundo poema, "A evolução dos estilos"> o poeta par- te do termo "barroco", duplica a seguir a última sílaba do vocábulo ("barrococo") , compondo novamente uma palavra interme- diária estranha e inexistente no universo* :corrrente da linguagem, para eliminar ao final a sílaba inicial do vocábulo e chegar a novo termo - "rococó". "Barroco" e "Rococó" são ambos vocábulos que designam estilos de época definidos da história da arte. 0 primeiro compreende certa tendência da arte da Europa Ocidental e colônias'ultramarinas durante o séc. XVII e, em alguns países, até a primeira metade do séc. XVIII. 0 "Rococó" é estilo posterior, originado no início do séc. XVIII, situado entre o Barroco e o Neoclassicismo, comungando de certa forma de ambos os estilos. 0 Barroco é caracterizado pelo exagero, pela exuberância das formas, pelas violentas contraposições. No limite da saturação do estilo, o. "barroco", na expressão do poema, transforma-se num "barrococo", em algo que excede limites, que incha, que engorda, o que estã t presentifiçado na própria duplicação da sílaba, excedendo os limites originais da palavra, comprometendo o seu sentido original. 399 Daí para o "rococó", ponte para o equilíbrio e contenção próprios do Neoclassicismo, verifica-se uma certa suavização das tensões, uma contenção dos excessos. No poema de Paes, isso se concretiza através do corte da sílaba inicial de "barrococo", enxugamento necessário paira o delineamento de novo estilo. Na simplicidade aparente dos poemas, descobre-se o artesão das palavras, que sabe extrair poesia de um material lingüístico mínimo, com inteligência fina, humor e graça. Uma poesia muito despretensiosa se deixa ver aí, que beira a gratuidade lúdica. Mas nem tudo é brevidade e síntese radical em Resíduo. Poemas mais extensos, de versos relativamente mais longos, também encontram-se presentes. "Do novíssimo testamento" é um primeiro exemplo de poema que extrapola os limites da palavra e projeta-se para adiante do jogo verbal mais restrito dos dois poemas acima: DO NOVÍSSIMO TESTAMENTO e levaram-no maniatado e despindo-o o cobriram com uma capa de escarlata e tecendo uma cora d'espinhos puseram-lha na cabeça e em sua mão direita uma cana e ajoelhando diante dele o escarneciam e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe com ela na cabeça e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe a capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram a crucificar o secretario da'segurança admitiu os excessos dos policiais e afirmou que jã mandara abrir inquérito para punir os responsáveis 400 O poema compõe-se de seis estrofes, cada uma delas com um número diferente de versos, variando entre um, dois e três. O ritmo dos versos, dada a ausencia de metrificação, de paralelos rímicos, de um padrão definido de acentuação, aproxima-se muito .do ritmo da prosa. A presença de seguidos "enjambements", cindindo os versos em diferentes pontos da estrutura sintática dos períodos, acentua esse aspecto. Os segmentos são cortados na margem direita para continuarem na linha seguinte a partir da margem esquerda mais ou menos como na prosa. O criI tério da cisão parece ser simplesmente a ausência de espaço para continuar o verso ã direita sem que o vocábulo seja fragmentado. Do ponto de vista da sintaxe, chama a atenção o caráter paratático da construção do todo. Cada uma das estrofes, com exceção da última, que instaura dessa.forma uma ruptura em relação ãs anteriores, inicia-se - com a conjunção coordenativa "e", o que confere acentuada unidade ao texto. Cada estrofe abriga no seu corpo um único período; o fim de um período e início de outro implica a formação de uma nova estrofe. Em cada uma das estrofes, as partes menores de uma narrativa maior vão sendo apresentadas, pouco a pouco, evocando um quadro muitíssimo conhecido, mas que, no final, com a brusca quebra instaurada pela estrofe última, tem seus sentidos transformados . O título do poema faz menção imediata ao universo da Bíblia, porém com um dado que gera estranhamento: o adjetivo "novíssimo", anteposto ao substantivo. "Velho" e "Novo Testamento" são as duas partes básicas em que se encontra subdividida a Bíblia cristã. No "Velho Testamento" arrolam-se os diversos livros da tradição hebraica, desde os que compõem o 401 "Pentateuco", que tratam da origem mítica da humanidade, da origem nômade do povo hebreu, das primeiras alianças com Deus, da revelação da Lei; passando pelos "Livros Históricos", que tratam da conquista de Canaã por Israel, da fixação do povo nessa nova terra, e da sua constituição em Estado em constante confronto com impérios vizinhos; pelos "Livros Poéticos e Sapienciais"; até os "Livros Proféticos", textos de combate e admoestação, de carãter interligadamente. moral, político e teológico, em muitos dos quais se prenuncia a vinda futura de um Messias redentor. No "Novo Testamento" estão o, livros que compõem o cerne da doutrina cristã, escritos a partir da vinda de Cristo: os quatro "Evangelhos" sobre a sua vida e seus ensinamentos; os "Atos dos Apóstolos", sobre a atividade apostólica dos seus discípulos; as "Epístolas" de Paulo e outros difundindo a doutrina; até o "Apocalipse" de João, a grande profecia acerca do fim dos tempos. Não hã, na Bíblia, um "Novíssimo Testamento". O" sentido do título, .fazendo-lhe referência, extrapola porém o contexto bíblico. Se o título faz uma primeira alusão ã Bíblia, a leitura do texto revela que a alusão não se restringe ao título. O conteúdo de cada uma das primeiras cinco estrofes vai compondo lentamente um quadro que evoca o conhecidissimo quadro da paixão de Cristo.. À seleção lexical e a sintaxe evocam imedia- tamente o léxico e a sintaxe do texto bíblico, predominantemente paratãtica. O ritmo solene com que se desenvolve inicial- mente o texto lembra muito a circunspecção solene do texto religioso. No confronto direto do poema com este, as semelhanças são tantas que se pode falar numa apropriação, por parte do poeta, de segmentos do texto bíblico com- os quais ele organiza 402 o seu. A tradução de que dispunha Paes não é conhecida, porém o confronto com pelo menos duas pe.Matos (a tradução da "Vulgata" pelo Soares e a tradução da Biblia de Jerusalém 9 6 ) é es- clarecedor. Os "Evangelhos Segundo Mateus" e "Segundo Marcos" são os que maiores coincidências apresentam. Em passagem do depoimento acerca de sua poesia, em que comenta exatamente este poema, Paes refere-se ao primeiro como texto de partida, e é com esse que se vai cotejar o texto do poeta aqui. Primeira estrofe: "E maniatado o levaram e entregaram ao governador pôncio pilatos." (Mt 27,2 - trad. "Vulgata") Segunda estrofe: "(...) e, despindo-o lançaram sobre ele um manto carmesim." (Mt 27, 28 - trad. "Vulgata") - "Des- piram-no e puseram-lhe uma capa, escaríate." (Mt 27, 28 - trad. "Biblia de Jerusalém"). Terceira estrofe: "Depois, tecendo uma cora de espinhos, puseram-lha sobre a cabeça, e na mão direita uma. cana. E, dobrando o joelho diante dele, o.escarneciam, dizendo: Salve, õ rei dos judeus." (Mt 27, 29 - trad. "Vulgata") Quarta estrofe: "E, cuspindo-lhe tomavam a cana, e batiam-lhe na cabeça." (Mt 27, 30 - t r a d . "Vulgata"). Quinta estrofe: "Depois que o escarneceram, tiraram-lhe o manto, revestiram-no com os seus vestidos e levaram-no para o crucificarem." (Mt 27, 3 1 - trad. "Vulgata") - "Depois de caçoarem dele, despiram-lhe a capa escaríate e tornaram a vesti-lo com as suas próprias vestes, e levaram-no para crucificar." ( Mt 21, 31 - trad. "Bíblia de Jerusalém") Como se pode ver, Paes se apropria do texto do "Evangelho", retira em alguns casos alguns dos elementos dos versículos, no caso da primeira e da terceira estrofe, e, no 403 caso ainda da primeira estrofe em relação ãs seguintes, põe o texto de um versículo anterior justa- (Mt 27, 2) a versículos posteriores; as. estrofes dois, três, quatro e cinco compõem-se de quatro versículos seguidos (Mt 27, 28 - 31). Evoca assim, rapidamente, os elementos capitais do quadro do martirio de Cristo pelos soldados romanos antes do seu envio ã crucificação. Porém, esse quadro inicial modifica-se de repente com a súbita mudança de registro verificada na última estrofe. O texto bíblico cede espaço então ao texto jornalístico, ao texto informativo, que introduz subitamente termos, referenciais, situações, personagens a princípio aparentemente estranhos aos do universo bíblico. Expressões como "secretário da segurança", "excessos dos policiais", "abrir inquérito", "punir... os responsáveis" evocam o contexto moderno dos meios policial è judicial. Tõ.do o segmento faz referência a uma situação típica do atroz ambiente policial brasileiro, com suas violências praticadas contra presos, quer sejam presos políticos, como nos tempos da Ditadura, quer sejam presos comuns sem.recursos ou influência, em todos os tempos. Refere-se também ao característico discurso, burocrático dos homens dos altos escalões da hierarquia policial e jurídica, prometendo apurar fatos e punir responsáveis, sem que ao discurso siga uma prática efetiva. Postos os dois contextos lado a lado, uma dupla operação se verifica. O.quadro bíblico se atuáliza,.o martítio e a morte de Cristo encontram paralelo moderno no martírio e morte de homens igualmente marginalizados como ele e seus seguidores, oriundos de:estratos sociais inferiores e/ou responsáveis por uma pregação de carãter subversivo em relação à ordem dominante. 36 7 Essa passagem da vida de Cristo despe-se assim dos seus sentidos religiosos, para ter seus sentidos sociais e políticos acentuados. Cristo humaniza-se e a sua experiência projeta-se no quadro diário da experiência concreta de tantos outros homens. Por outro lado, o quadro moderno ê alçado a uma condição de paradigma, perde seus contornos imediatos para presentificar uma situação de violência e.injustiça que se repete milenarmente. Projetado em direção ao contexto bíblico, o contexto moderno acaba comungando de. muitos dos sentidos simbólicos ali presentes. O homem comum que padece a tortura e até a morte nos cárceres policiais reveste-se dos contornos de heroísmo e de divinização do próprio Cristo. Como ele, torna-se um mártir, um símbolo de uma causa reprimida, causa porém que tende, a partir de sua imolação exemplar,, a, tomar força e se expandir. O sentido do título,"Do Novíssimo Testamento", esclarece-se plenamente então. A respeito deste texto, o próprio poeta faz considerações revelantes no seu depoimento, e que complementam a análise do poema: N e l e (em " D o N o v í s s i m o T e s t a m e n t o " ) , a a t u a l i d a d e de uma p a s s a g e m . d o Evange1 i sta Fateus acerca das preliminares d a c r u c i f i x ã o :é p o s t a em r e l e v o pela contiguidade d e uma n o t í c i a d e jornal em t o r n o d o s e x c e s s o s d a r e p r e s s ã o policial. A contaminação de.sentidos típ i c a da c o l a g e m f a z o v e r s í c u l o virar n o t í c i a de j o r n a l e essa virar versículo.91 O poeta fala aqui. em colagem, termo corrente no universo das artes plásticas, que designa o processo composicional que combina, numa mesma obra, materiais heterogêneos, de diferentes origens, apropriados pelo artista. A citação, a 405 referência intertextual, a paródia chegam assim a seu limite. O artista exercita seu poder de criação na simples seleção e combinação de um.material preexistente, no caso do poema de Paes, de fragmentos do texto bíblico e da notícia de jornal. Na poesia brasileira, cabe mencionar, a "Poesia Pau-Brasil", de Oswald de Andrade, poeta de reconhecida influência sobre Paes, pelo que hã nela de inaugural nas letras brasileiras nesse aspecto. No segmento do livro intitulado "História do Brasil", Oswald aproveita fragmentos de textos dos principais cronistas da época do descobrimento e primeiros instantes da colonização do país para montar seus poemas. Jã se acentuou anteriormente quando se tratava do livro Epigramas, de 1958, da utilização em muitos poemas de termos do universo ¡Lingüístico bíblico reorientados porém para uma critica de intenção política e social. Lembre-se por exemplo de "Poética" e suas referências a "lobo" e "cordeiro" como elementos de uma.polarização ética, política e social ("(...) Meu sermão / Chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão"); da sua referência nesse poema ã. fraternidade ternas (...)") e ã divisão do pão ("Com duas mãos fra- ("Só compreendo o pão se di- vidido."), conceitos capitais .da ética cristã; da perspectiva de uma "ilha prometida", um Paraíso terrestre na utopia socialista, contrapartida do paraíso divino da Bíblia ("A ilha pro- metida â proa do navio"); da tensão entre "inferno" e "céu" como dados da condição humana ("Aceito meu inferno, mas falo de meu céu."); do poeta assumindo a identidade do pregador na fusão da palavra poética com a palavra ética e politicamente engajada ("Meu sermão (...)"). Aqui esse paralelo como que se repete. No entanto, o recurso composicional de Paes em "Do 406 Novíssimo testamento" possibilita um certo distanciamento do poeta em relação ã matéria, tratada, distanciamento presente com vigor nessa fase da sua poesia que vem desde Anatomias (a despeito da sua presença menos compacta em instantes anteriores) , em que o humor, a paródia e a ironia são signos centrais, diferentemente do envolvimento mais emocional dos poemas políticos de Epigramas^ Como se pode verificar pelos poemas abordados, uma certa temática e um modo de compor recorrentes desde; livros anteriores fazem-se presentes.também neste Resíduo. "Lembrete cívico", "O Libertador" e "A evolução dos estilos" são graciosos brinquedos, onde a propensão característica do poeta ao epigrama se deixa ver num instante de radicalidade. Ludismo, engenhosidade, síntese, humor, sátira,. crítica de costumes, referência a personagens e realidades do universo da poesia e da cultura são os ingredientes básicos desses textos a princípio tão simples na sua realização. "Do.Novíssimo Testamento" reitera a intenção de crítica política e social, do poeta, agora com recurso ao processo da colagem, que leva o jogo intertextual a seus extremos. Fechando esse círculo temático e composicional, ainda um poema pode ser comentado, "Grafito", peça de implicações paródicas, em que o veio.de: reflexão existencial com contornos.amargos característico de certas composi- ções de Paes surge mesclado a um tom de sarcasmo e irrisão geral: 407 GRAFITO neste lugar solitario o homem toda a manhã tem o porte estatuario de um pensador de rodin neste lugar solitário extravasa sem sursis como num confessionário o mais íntimo de si neste lugar solitário arúspice desentranha o aflito vocabulário de suas proprias entranhas neste lugar solitário faz a conta mais doída: em lançamentos, diarios a soma de sua vida Chamam.a atenção logo de início certos aspectos exteriormente formais deste poema que o aproximam de um tipo de poesia composta dentro dos moldes da metrificação tradicional: quatro estrofes, cada uma delas com quatro versos heptassilãbicos, com rimas consoantes.e cruzadas em fim.de verso - "quadrinhas" , portanto, ..com características redondilhas maiores e rimas regulares, com alguns achados rímicos porém inusitados, como as rimas entre palavras de língua portuguesa e de origem estrangeira ("manhã"/"rodin", "sursis"/"de s i " ) . Ã regularidade formal e â estrutura paralelística.do todo soma-se ainda a presença de um verso recorrente no início, de cada uma das estrofes - "neste lugar solitário" -, que.faz com que o paralelismo incida também sobre o próprio conteúdo do poema. No entanto, as consonâncias possíveis com uma poesia de sabor mais tradicional aí presentes abrem-se na verdade para uma dissonância paródica mais ampla. Paes, em "Grafito", está parodiando um tipo de texto corrente em certos espaços não consagrados enquanto espaços de 408 veiculação do texto literãtio - espaços "marginais", portanto. "Grafito", modernamente, designa o texto escrito em paredes, portas, muros., ou outros espaços de exposição pública privilegiados, de caráter muitas vezes lúdico, ou crítico-contestatõrio, ou francamente escatolõgico e pornográfico, ou ainda ingenuamente sentimental. Cabe lembrar aqui que ao longo dos anos 70 desenvolve-se no Brasil a chamada Poesia Marginal, reportando-se a designação justamente ao diferenciado circuito literário percorrido pelas obras, no qual o "grafito", ou ainda "grafite", a que faz referência o título do poema, tem papel de destaque. O texto de Paes remete a ura. contexto específico, äs inscrições escatolõgico-satíricas das portas e paredes dos banheiros públicos. 0 verso primeiro de cada uma das estrofes ê retirado literalmente desse contexto e transposto para o contexto de uma poesia mais sofisticada, que no aparentemente despretensioso jogo paródico, veicula sentidos de problemática existencial contundente. As "quadrinhas", os batidíssimos heptassílab.os e as rimas, ingredientes convencionais do que o senso comum admite como poesia, dão o caráter gracioso e popularesco do texto, fazendo, assim a ponte.entre a forma banal e corrente e o conteúdo violento e distinto da visão de mundo paesiana disseminado através dela. 0 primeiro verso.do poema, que se repete a cada novo início de estrofe, constrói um espaço específico: o "lugar solitário" a. que ele se refere é o "banheiro". Além do espaço, o poeta informa-nos também do tempo em que se realiza a ação paradigmática que ele está a descrever: "toda manhã". Na primeira estrofe, a "clássica" posição do homem sentado no vaso 409 sanitário é evocada por uma comparação carregada de irrisão: a imaginação vai buscar na figura não menos "clássica" do "pensador" esculpido por Rodin, sentado nu com o queixo apoiado nos dedos da mão fechada e o cotovelo do mesmo braço sobre a coxa, numa expressão circunspecta e reflexiva, o paralelo para o homem no banheiro. Apesar das semelhanças plásticas entre as duas situações, há um lapso radical entre o prosaísmo meio grotesco de uma e a sublimidade estética da outra, que a aproximação tende a suprimir, o que dã o choque lapso satíri- co do paralelo. Ao quadro estático evocado na primeira estrofe, segue uma primeira movimentação nesta segunda. Pelo menos dois termos dão margem a uma acentuada dissonância nos novos paralelos estabelecidos agora. "Sursis" ë termo do vocabulário que significa "suspensão: condicional da pena". 9 2 jurídico "Confessioná- rio" remete a um espaço e, por conseguinte, a um sacramento (o da confissão) característicos do universo religioso. "Direi- to" e "religião", realidades envoltas em respeito e sacralidade, são, a partir da evocação de alguns termos do seu universo, trazidas para um novo contexto que acaba por minar essa circunstância original. O homem no banheiro, "condenado" pela sua própria condição biológica, sem direito a uma suspensão dessa "pena", "extravasa" "o mais intimo de si". E ele o faz como se estivesse num "confessionário", retirando do íntimo uma culpa que precisa ser revelada. 0 paralelo com a situação da confissão ë violento: "o mais íntimo de si" que ë posto para fora não remete a qualquer natureza psicológica, espiritual ou metafísica desse homem; "o mais íntimo de si" são os excrementos que ele lança no vaso como se confessasse um pecado. 410 Os indices mais evidentes da sua materialidade e da sua precariedade são o conteúdo interior mais íntimo desse homem. 0 gro tesco escatolõgico da circunstância, para além do sarcasmo evidente, revela uma visão bastante crua da condição humana. A terceira estrofe acentua os sentidos da segunda. Se na anterior o homem assume a condição de um condenado sem "sursis", de um pecador a se confessar, agora ele ê um. "arüspice", um sacerdote a prever o futuro, porém não a partir do exame das entranhas de alguma vítima qualquer como na tradição mas das suas próprias. Resgata-se novo contexto religioso, impregnado de paganismo, para repisar a condição básica desse homem. Se as entranhas de um .animal são o meio material perecível que o sacerdote utiliza para. buscar o entendimento de realidades que transcendem-em muito a-ordem material dos fenômenos, no poema, "o aflito vocabulário de suas próprias entranhas" fala de uma realidade que não. se inscreve numa ordem outra, transcendente ou superior. As "entranhas" que o homem examina revelam a sua condição.não-transcendente, a sua natureza material e provisória. O futuro que elas deixam 1er é a natureza da própria desagregação material do homem que elas presentificam - portanto, a da sua própria morte. E a quarta estrofe põe em evidência este aspecto. Os excrementos lançados no vaso, conteúdo das entranhas que o "arúspice" examina, são "a soma de sua vida". A expressão reveste-se de sentidos que se desdobram. A materialidade, a precariedade, a desagregação do todo contida na separação "homem"/"excrementos" , ritual matinal diário, chamam atenção para a condição básica desse homem. Compõem "a soma de sua vida" na medida, em que são reveladoras da materialidade, da preca- 411 riedade, da desagregação física do homem. Mas hã al implícito um outro sentido quase perverso. Dizer que os excrementos extravasados matinalmente compõem "a soma de sua vida" é também reduzir a sua vida â realidade desses excrementos. Uma expressão corrente bastante crua poderia ser lembrada aqui. Através da irrisão e do sarcasmo, uma visão pouco piedosa da condição do homem surge revelada. Ao invés de restringir-se ao bestiãrio escatolõgico típico dos textos que ilustram portas e paredes das dependências sanitárias públicas, Paes parte dessa escatologia (aqui entendida enquanto, na ex- pressão do dicionário, "tratado acerca dos excrementos") para orientar seu texto em direção a uma outra escatologia afinal (agora enquanto, também pelo dicionário, "tratado sobre os fins últimos do homem"). 9 3 Os poemas abordados dão uma idéia geral da poesia contida em Resíduos. Seria importante registrar que a experimentação visual encontra aqui ainda um exemplo. Trata-se do poema "projeto de mausoléu civilista e/ou foetus intelectualis brasiliensis", foto sem qualquer conteúdo verbal, em que uma pequena reprodução de Rui Barbosa sentado numa poltrona com um livro aberto no colo se encontra dentro de um recipiente de vidro. O veio irônico é violento. A este poema segue ainda "Epitãfio para Rui", que diz: "... e tenho dito / bravosj / (mas o que foi mesmo que ele disse?)". Rui Barbosa, na sua sabida empolação bacharelesca, na gordura do seu discurso tipicamente acadêmico, situa-se num pólo expressivo antagônico em relação a Paes. Na crítica a esse paradigma de certa tendência intelectual brasileira, Paes marca a sua diferença, repisa, por subtração, a sua própria poética. 412 3.7.3 Conclusão Residuo, de 1980, não foge ao padrão temático e compo- sicional de livros anteriores como Anatomias, de 196 7, e Meia palavra, de 1973, padrão ligado â conquista de uma dicção madura e própria. Estrutura-se dentro de uma mesma poética, que faz da brevidade e do ludismo - características do epigrama -, da sátira e do humor, do jogo intertextual nas suas diferentes possibilidades, da experimentação com as formas sem o comprometimento da clareza da comunicação os meios ideais para uma poesia de encorpada critica política, social, cultural, a partir de uma perspectiva de distanciamento garantida pelos próprios recursos utilizados pelo poeta. O próprio Paes admite a unidade que liga estes livros e o significado deles no seu desenvolvimento poético. Repita-se_ aqui passagem.-jã. transcrita: "Sem imodéstia, acredito ter conseguido nos livros dessa fase - "Anatomias", de 1967, "Meia Palavra", de 1973, e "Resíduo", de 1980 , a pessoaiidade que buscava (...) ." 94 Os livros anteriores são ainda uma busca constante disso que ele mesmo chama de "pessoalidade", busca evidente nas.visíveis mudanças, de trabalho para trabalho, das preocupações temáticas e dás realizações expressivas alcançadas. Como já se acentuou, estes três últimos livros significam uma fase de- maior estabi-' lização em sua poesia, uma. vez alcançada essa "pessoalidade" poética buscada. Noutros termos, o poeta conquistou uma dicção própria que o. distingue dos demais poetas. A constatação da unidade destas três últimas obras ressoa de alguma-forma no próprio título do último livro, a partir de pelo menos duas leituras. "Resíduo", tomando-se um dos sentidos possíveis do termo, seria uma espécie de "resto", 413 de "sobra" dos anteriores, dado o seu carãter de repetição de procedimentos e tendências temáticas, dada também a sua brevíssima extensão. Porém, tal interpretação, que poderia ter ecos pejorativos - se bem que não se pode esquecer que a critica aguda do poeta pode manifestar-se sem pejo também enquanto auto-crltica, auto-ironia -, esbarra noutra interpretação do termo "resíduo", a partir do seu sentido figurado estabelecido pelo dicionário- "o fundo, o âmago, a raiz". 9 5 Nesta linha interpretativa, o termo reitera a intenção paesiana de, através de uma expressão enxutíssima, chegar a uma poesia essencial. Compare-se esse sentido com os títulos, jã comentados, de Anatomias (gr. "anabomé", 'incisão', 'dissecação') e de Meia palavra ("para bom entendedor meia palavra basta"). Reite- tera também as considerações a respeito da posição do livro juntamente aos anteriores no desenvolvimento do poeta, que teria atingido então a "pessoalidade" poética .- portanto, o "fundo", o "âmago", a "raiz" do seu. potencial de criador. Cabe ainda mencionar e comentar rapidamente a epígrafe inscrita no início do livro, retirada de O castelo, de Franz KAFKA: "contra piadas não hã argumentos" .. A piada, nas suas virtualidades criticas, não se deixa enquadrar por esquemas inquiridores muito restritos. Na violência que.lhe ê própria, ela revela abruptamente os tabus, os preconceitos, aquilo que se esconde nas dobras de uma expressão atenuadora e que por vezes beira o silêncio, os podres moral e social. No mãximo, a resistência ã piada é o não-riso, portanto a não-participação no espaço do jogo por ela instaurado. Por isso o humor é arma forte em momentos-limite, como os de repressão política, ou dissolução moral e social. Rir de uma realidade problemática, 414 pelo próprio distanciamento da operação, pelo não envolvimento emocional do sujeito - na medida em que o sujeito pode isolar-se assim dessa realidade, possibilidade nem sempre presente - , preserva a sua lucidez e a sua saúde critica. A opção de Paes pelo humor encontra-se ligada a essa relativa liberdade garantida ao sujeito para pensar criticamente a sua realidade. O humorista tem uma independência que o militante ortodoxo, que o partidário, atados a uma perspectiva ideológica por demais esquemática ou às designações de todo um grupo ou de suas lideranças, não. tem. Isso lhe garante uma respeitabilidade, uma insenção, que o.tornam uma das vozes mais críticas e lúcidas das causas, das lutas.libertadoras do seu tempo. E é como uma tal voz referencial que Paes, através da sua poesia, pode ser compreendido afinal. 3.8 3.8.1 CALENDÁRIO PERPLEXO (1983) Introdução Calendário perplexo ê trabalho.de 198 3 mas que só se-~ ria publicado em. 1986, em Um por todos, reunião das obras do poeta editadas em livro até então. Ambas as datas, a data referencial, de composição dos poemas e a data da sua publicação efetiva, delimitam um momento político de grande transformação no país. Com as pressões econômicas, políticas e sociais, o regime militar se dissolve. O movimento.das "Diretas-Jã" sacode o país e, mesmo sem conseguir o seu objetivo principal, o da realização de eleições diretas para a presidência da República naquele 415 instante, influencia na escolha do novo presidente, que mesmo sem assumir, colhido pela morte como foi, projetou no seu substituto muito dos compromissos assumidos. 0 pais retornou ã ordem democrática e, a despeito das agruras econômicas pe- las quais passou nesse periodo e que vieram desembocar no trágico momento presente, ela foi e vem sendo garantida. 0 ambiente ë de ampla liberdade, condição básica para a produção cultural, livre agora da censura e do terror político das décadas anteriores. Na poesia o momento ë bastante adverso aos agrupamentos, ãs orientações poéticas dogmáticas e coletivas. A Poesia Marginal foi a última tendência grupai classificada pela critica enquanto tal. Nos anos 80 predominam as posturas poéticas independentes, afastadas igualmente do.experimentalismo de vanguarda, do engajamento político-social, da dicção relaxada e pouco culta dos marginais. Um poeta como Paulo Leminski, por exemplo, surgido.anteriormente mas que alcançou projeção nacional na década de 80, faz nesse período uma poesia bastante própria, em parte centrada na palavra, em parte centrada nas experiências do sujeito, a partir de heranças bastante dispares, como a da experimentação concretista e a da produção marginal banhada em Contracultura. Adélia Prado, que surge na década de 70 e que.ganha destaque a seguir, ê outro nome importante e independente. A partir de certa poesia drummondiana, ela vai elaborar uma produção também muito própria, centrada numa experiência de vida feminina com a linguagem, com o homem e o amor, com o cotidiano familiar, com a memória, com a religião, etc., de grande refinamento e impacto comunicacional, longe das correntes dominantes da poesia brasileira, sobretudo 416 das vanguardas. Igualmente, o que se tem em varios poetas ë um abandono do experimentalismo radical, um retorno ao verso e a um certo subjetivismo lírico, mantendo porém um nível de realização muito mais sofisticado e "culto" do que o da produção marginal, também refrataria ã ortodoxia das vanguardas. A poesia de Paes, poeta independente, sintoniza-se bem com essa tendência geral. Em Calendário perplexo não se encontram mais as experimentações verbais e visuais de livros anteriores. 0 verso - e não a.palavra ou o segmento sintático de reduzidas proporções - ê agora, a despeito da brevidade que ainda o caracteriza, novamente elemento importante. O poeta realiza uma poesia impregnada de humor e crítica, de grande poder de comunicação, mas ao mesmo tempo refinada e.culta. Está longe agora da experimentação, mas sem abrir mão de certa sofisticação formal, o que a distancia também das produções marginais e de seus desdobramentos. 3.8.2 Análise Calendário perplexo é livro de.acentuada unidade estru- tural. Cada um dos poemas nele. presentes remete temáticamente a uma determinada data. do ano. Entre duas balizas temporais, 19 de janeiro e 25 de dezembro, vão se situando, em progressão cronológica, várias outras datas de.significação variada. Algumas dizem respeito a datas comemorativas tradicionais, como o Ano Novo e o.Natal - o s . dois limites temporais do livro -, o dia do trabalho (19 de:maio), o dia das mães, o dia dos namora- dos . (-12 de junho), o dia de São João (24 de junho), o dia dos pais, finados (2 de novembro). Outras dizem respeito a acontecimentos históricos, como 31 de março/19 de abril (Revolução 417 de 64), 13 de maio (Libertação dos Escravos), 15 de novembro (Proclamação da República). Outras ainda, de significado mui- ¡ to mais restrito, homenageiam certos segmentos sociais, como 19 de abril (dia do Índio), 20 de abril 20 de outubro (dia do diplomata), (dia do poeta), 21 de outubro (dia do contato). E outras dizem respeito ao próprio poeta, como 16 de abril (dia de bodas) e 22 de julho ( aniversário) , ou ainda a datas históricas ou celebrações ligadas estritamente ã poesia, e portanto também vinculadas imediatamente ã sua teresses, como o 14 de março órbita de in- (dia da poesia), 6 de julho te de Castro Alves) , 13 de outubro (mor- (morte de Manuel Bandeira) . Como se pode perceber, as datas lembradas, vão das mais tradicional e/ou nacionalmente significativas, como o Natal, por exemplo, âs mais obscuras e restritas, como o dia do diplomata, e ainda àquelas que só ao poeta, e ao seu circulo afetivo interessam, como a do seu próprio aniversário. A dispa- ridade das datas que compõem este "calendário" provoca uma evidente perplexidade, como sugere o título do trabalho. Na seleção de marcos temporais tão heterogêneos, atualizados sempre muito criticamente pelos poemas ao longo do livro (como se ve- rá) , a intenção satírica característica da poesia madura de Paes mais uma vez se manifesta. Percebe-se jã.na própria es- truturação do todo uma crítica evidente ã maneira como segmentamos o tempo e atribuímos sentidos a certas datas. A análise de poemas relativos a algumas delas só vai reiterar essa impressão. 0 primeiro poema do livro, "Brinde", diz respeito ãs comemorações de Ano Novo: 418 1? de janeiro BRINDE ano novo: vida nova dívidas novas dúvidas novas ab ovo outra vez : do revês ao talvez (ou ao tanto faz como fez) hora zero: soma do velho? idade do novo? o nada: um ovo salve(-se) o ano novo! 0 brinde tradicionalmente amigos na passagem feito em família ou entre do velho para o novo ano encontra-se usual- mente envolvido por uma atmosfera.de alegria e esperança, por vezes verdadeira, por vezes meramente convencional. Celebra-se um instante simbólico, impregnado de.consciência temporal. O tempo passado surge, ã mente como um bloco mais ou menos coeso do qual se tenta extrair algum sentido definido. Seus sucessos e reveses, suas dores e alegrias são,pesados nesse instante e projetados em direção ao tempo futuro. Celebra-se o ano que virá como a vitória ideal do pólo positivo dessas tensões sobre a sua contrapartida negativa.. O brinde reveste-se de princípios como que mágicos - a capacidade de orientar o sentido do tempo, dominar a irracionalidade do acaso, fazer os desejos e os projetos pessoais se concretizarem. Há muita euforia e necessidade de consolo nisso tudo. O "Brinde" de Paes despe-se dessa alegria euforizante, dessa esperança fácil. Ao contrário dos habituais votos de sucesso, felicidade, de "muito dinheiro no bolso", e "saúde 419 pra dar e vender" ocasião)> (nos termos da canção tão repetida nessa o que emerge do texto ê uma visão bem mais distan- ciada, ë uma consciência temporal cheia de dúvidas, que se recusa a mergulhar totalmente na ilusão cativante e anestésica da festa. O poema inicia, em sua primeira estância, com a r e c u p e ração de uma expressão feita, bastante banalizada pelo uso recorrente: "ano novo: vida nova". 0 poeta dispõe a expressão nos dois primeiros versos de forma propositalmente desequili- brada: ao invés de fazer cada um dos segmentos que a compõem, ocupar um verso especlfico (ano novo: / vida nova) , ou ainda fazê-los ambos ocupar um único ver so ' (ano. novo : . vida nova), o poeta prefere cindir a expressão no meio de ura dos seus segmentos formadores (vida / nova) , lançando* o. vocábulo, final para o verso seguinte em explícito "enjambement". O que se tem como resultado, é um desequilíbrio rítmico e também- visual (agora que as lições do Concretismo nos.forçam a ver qualquer poema nesta dimensão também) que questiona de imediato a expressão-matriz:. A equivalência semântica (ano novo = vida no- va) e formal'(paralelismo morfo-sintãtico, equivalência do padrão de acentuação silábica) das partes ê formalmente problematizada pelo "enjambement". Nesse simples recurso, o poeta marca jã uma clara distância em relação ao uso corrente da expressão. Os versos seguintes da estância são extraídos do material sonoro dos primeiros versos: a palavra "dívidas" encontra-se potencialmente presente na palavra "vida"; "dúvidas" forma-se obviamente a partir da sua oposição fonológica com "dívidas"; "novas" reitera o emprego masculino e feminino 420 anterior do mesmo adjetivo, bem como ecoa a combinação de fonemas dos dois substantivos ("ano", "vida"). O trocadilho res- ponsável pelo paralelismo dos versos três e quatro tem algo de singelo na sua constituição, porém os sentidos presentes nas expressões questionam agudamente a frase feita. As afirmações esperançosas de um ano melhor contidas na troca de votos são postas em xeque: ao invés de. certezas de melhora, o que se tem são "dúvidas novas"; ao invés de "muito dinheiro no bolso", como reza a canção, "dividas novas" é o que se entrevê. O poeta inverte o sentido positivo sempre presente nas.expressões ligadas ao Ano Novo, joga água fria na idealização do porvir, vê o tempo futuro como reiteração do.tempo pretérito e não um salto em direção ao absolutamente novo. As."dúvidas" e as "dívidas" do passado - problemas intelectuais e.materiais do sujeito -, se renovam, e a consciência desse fato não se oblitera com a euforia das festas. No início da segunda estância, o "novo" - quatro vezes reiterado em diferentes atualizações morfológicas na.primeira - ecoa no "ovo" da expressão.latina "ab ovo", literalmente "desde o ovo", que o.dicionário ainda traduz como "desde o começo; retornando ã origem". 9 6 A consciência da repetição, do caráter cíclico do tempo está aí presente: "ab ovo outra vez" - diz o poeta, anulando a seguir, no entanto, o que de excessivamente.positivo, poderia se encontrar nesse nesse "renascimento": "do revés ao talvez "recomeço", (ou ao tanto faz como fez)". Pela força com que se mostram presentes, é necessário destacar a reiteração dos "enjambements" nessa estrofe bem como as recorrências sonoras que ressoam de palavra para palavra. 421 Os primeiros estão presentes, nessa segunda estância, em todas as passagens de fim de verso para inicio de verso seguinte, sem descanso, deslocando acentos, cindindo o que comporia um todo, torcendo conseqüentmente o ritmo, a fluencia de leitura do texto. Pode-se atribuir um sentido a esse uso excessivo, justamente o de concretizar no ritmo as tensões do conteúdo. A visão positiva de um recomeço, como se ele por si só bastasse para eliminar o que hã de negativo no passado, está ausente da visão do poeta em relação a esse processo. O passado, visto como "revés", portanto como algo negativo, não se projeta em .direção a um correspondente pólo positivo. 0 que se tem é mais uma vez a perspectiva da "dúvida", do "talvez", que oscila entre os pólos. O futuro encontra-se aqui em aberto, sem.um sentido definido, ao contrário do que se preferiria desejar. Aliás, pelo que se encontra expresso entre os parênteses dos versos três e quatro, percebe-se uma marcada indiferença do sujeito com relação a esse sentido. 0 que virá "tanto faz", assim como o que foi "tanto fez". Por trás da resignação e da passividade pode estar uma visão distanciada que transcende a visão humana e teleolõgica ligada ao tempo, apreendendo-o justamente na sua imcompreensibilidade. Mas se os "enjambements" tensionam o ritmo de forma, a nele concretizar as tensões dos conteúdos, as recorrências sonoras reequilibram o todo da segunda estância. Sons semelhantes ecoam nas sílabas de diferentes vocábulos. Um som é matriz para outros, e o que se tem afinal é um todo bem amalgamado. Repare-se em algumas recorrências: a fricativa labioden- tal da expressão latina "ab ovo", na sua forma surda ou sonora, ë recuperada numa série progressiva de vocábulos: "vez"/ 422 "revés 1 , /"talvez"/"faz"/ n fez" ; destaque-se ainda a rima interna "vez"/"talvez", a que se pode somar a forma surda "fez"; e, noutros padrões de sonoridade, as aliterações "ao"/"aó", "ovo"/"outra", "talvez"/"tanto". Em suma, a segunda estância acen- tua a insistência nas sonoridades jã reparada na. estância an- terior. A partir de certos sons da frase feita - a exclamação da primeira ou a locução latina da segunda estância -, o poeta vai extraindo outros vocábulos, num evidente ludismo sonoro. Na terceira estância, esse ludismo também se faz presente. Ressalte-se a título de exemplo: a vibrante /r/ em "hora"/"zero"; a fricativa labiodental em alveolar "velho"/"no- vo"/"ovo", recuperando padrão dominante na estância anterior; a oclusiva linguodental oral sonora "d" em "do"/"idade"/"do"/ "nada"; a oclusiva linguodental nasal ./n/ em "novo"/"nada"; os ecos vocálicos em palavras em posição de equivalência "velho", "idade"/"nada", "zero"/ "soma"/"novo"/"ovo"; e ainda a rima final "novo"/"ovo", que ressurge em relação ao vocábulo do verso seguinte "novo" final. Na estância terceira, chama a atenção ainda, permeando e reforçando os sentidos, a presença de uma imagem bem carac- terística, atualizada em diferentes níveis: a ovalidade ou a circularidade, verso sugerida na estância já a partir do primeiro ("hora zero" - hora simbólica do "brinde") através da visualidade do algarismo "0", e reafirmada pelo verso final da estância ("o nada: um ovo"), onde "nada" remete semántica- mente ao mesmo "zero", e. "ovo" ã mesma concretização visual. Repare-se também nas sugestões icônicas da letra "o", visualização possível do "ovo" e do "zero", e de que forma ela se repete exaustivamente nos vocábulos do poema. Encontra-se, por 423 exemplo, na locução que abre e fecha a composição, "ano novo", e ainda na própria palavra "ovo", aliás significativamente de- sentranhada da anterior. Tem-se assim um motivo visual e sonoro (pelas recorrências da vogai /o/ e da consoante /v/) cen- tral, condensado na palavra "ovo", que perpassa todo o texto. O "ano novo" ê como um 'tovò", que remete ao "zero", portanto início e fim, ponto de partida e de chegada, síntese afinal das indagações do poeta presentes nesta estância ("soma do velho?", "idade do novo?"), imagem que presentifica a própria circularidade do tempo e a sua falta de sentido - o "nada" que ele parece implicar. E o último verso, após os volteios poético-filosofantes das estâncias anteriores, . contêm afinal a fórmula lingüística que acompanha o "brinde", anunciado no título, que a despeito de tudo é pronunciado.- Porém não é sem ironia e distanciamento que o poeta o faz. 0 pronome entre parênteses mina por dentro a obviedade da expressão, problematiza o chavão, e o apelo - "salve(-se) o ano novo" - não soa sem certíssima irrisão. Por este primeiro poema de Paes, jã se pode perceber um tipo de operação que ele realiza ao abordar certas datas comemorativas. Ao invés de compartilhar da visão ou do espírito geral que acompanha usualmente cada data.específica, ele prefere se postar criticamente em relação ao senso comum, acentuando as dissonâncias ora amargas, ora sarcásticas, ora irônicas, ora tudo misturadamente, da sua própria visão de mundo. Nem uma data como a do seu próprio uma dessas intenções: aniversário foge a 424 2 2 de julho 'ANIVERSÁRIO amigos abraços velas acesas velas apagadas obrigado adeus : ensaio de outra festa (próxima? distante?) também com amigos com velas com adeuses sobretudo adeuses A primeira estrofe, em rapidíssimas pinceladas, descre- ve toda uma cena. Com simples substantivos, alguns acompanhados de adjetivos, tem-se.concretizada - acentue-se que de for- ma bastante esquemática - toda a ação ritual de uma festa de aniversário: a chegada dos amigos e as correspondentes saudações, no primeiro verso;, o núcleo simbólico da festa, com toda a encenação que o envolve, nos versos dois e três; os agradecimentos e despedidas, no verso quatro. Repare-se ainda no desenvolvimento em onda do acontecimento: a chegada dos amigos com a alegria que isso implica culmina nas velas acesas sobre o bolo - tem-se al uma linha ascendente em direção a um clímax; depois de apagadas as velas, caminha-se para as despedidas, para as separações - após o climax, o sentido da onda torna-se descendente. Os dois pontos situados ao final da primeira estrofe ligam-na de forma especial ã segunda. Após a sintética e rapidíssima descrição anterior da festa, marcada por uma relativa objetividade, tem lugar agora a glosa reflexiva do sujeito poético, que procura extrair sentidos abrangentes do acontecimento e projetá-los adiante. Assim, a festa descrita surge para ele como um "ensaio de outra festa", uma preparação para 425 algo mais definitivo que está por vir. O "aniversário", com a presença de pessoas queridas, o ritual das velas acesas e apagadas (com a sua dialética simbólica de vida e morte) • e as posteriores despedidas encenam a "festa derradeira", a da própria morte, cujo tempo de realização surge envolto em dúvidas - "(próxima? distante?)". Corn a primeira, tem a segunda em comum diversos de seus ingredientes: "também com amigos / com velas com adeuses". No entanto, como acentua o verso final do poema, um dos elementos predomina, justamente aquele que marca o ponto descendente do circuito: "sobretudo adeuses". O "aniversário" não é visto por Paes como uma festa de celebração da vida, da permanência teimosa do sujeito através do tempo e contra o tempo,, mas como um anúncio, uma preparação, ou nas palavras do. próprio texto, um "ensaio" para a morte. Paes desloca o sentido da festa para um outro pólo, presente no próprio simbolismo das velas.acesas que se apagam (a chama da vida extinta pelo sopro do tempo), porém recalcado pela celebração festiva. Ao invés da celebração significar uma soma - justamente a soma dos anos vividos pelo sujeito, como se isso pudesse representar um acúmulo, um ganho -, ela passa a ser percebida enquanto subtração. 0 sujeito percebe que os anós vividos lhe vão sendo subtraídos da cota total que lhe diz respeito. Nesse sentido, "Aniversário" se aproxima bastante de "Brinde". Em ambas as festas - uma de dimensões particulares, a outra de dimensões, mais amplas, em todo o caso ambas enraizadas na maneira tradicional de se segmentar e atribuir sentido ao tempo - o poeta distancia-se do sentido comum a elas usualmente vinculado para desentranhar os seus avessos. Por 426 trás do acento amargo, vislumbra-se uma lucidez que não se permite embalar por consolações fáceis e ilusórias. Os dois poemas comentados dizem respeito a uma problemática que se pode dizer "metafísica", no sentido que este termo tem por exemplo na expressão "cívicas, eróticas e metafísicas", subtítulo de Meia palavra, isto é, enquanto veio temático que abarca certas preocupações do poeta, como. o tempo, a morte, o sujeito no mundo, a angústia da existência, etc. Outros poemas enveredam pelo politico-social, aumentando o leque temático do livro, e reiterando certa propensão critico-participativa do poeta, presente desde cedo em sua oüra. Um primeiro exemplo, enveredando.pelo humor, ë o brevíssimo "Dúvida revolucionária"': 31 de março/19 de abril DÜVIDA REVOLUCIONÁRIA ontem foi hoje? ou hoje ê que ê ontem? Para a cronologia oficial, o. golpe militar de 1964 foi deflagrado no dia 31 de março daquele ano. Porém, anedõtica e extra-oficialmente, pairam dúvidas acerca da. precisão desta data, e o dia seguinte surge também como o dia em que os acontecimentos se definiram e atingiram de fato o país como um todo. Esta "dúvida", ë prato cheio para o escárnio, já que o primeiro dia de abril não é data neutra e sim tido como o dia da mentira. São comuns as brincadeiras, os trotes feitos nessa ocasião, espalhados e logo em seguida desmentidos. O golpe de 64 surge envolto nessa circunstância anedõtica, e ë disso que Paes tira partido neste poema. Além disso, a "dúvida revolucio- 427 nãria", que surge formulada em relação ã oscilação "31 de março/19 de abril", projeta-se também noutra perspectiva tempo- . ral. 0 "ontem" pode dizer respeito ao passado, quando a ditadura militar instalou-se no pals, e o "hoje" ao momento presente - no casó por volta de 1983, data de confecção do livro -, quando o governo Figueiredo acenava com. a possibilidade de uma lenta redemocratização do pais, deixando para trãs o terror politico do fim dos anos 60 e 70. A "dúvida", nessa circunstância, ao pôr em questão a realidade, do lapso temporal, estaria pondo em xeque a realidade dessa redemocratização, acentuando a permanência de um mesmo tipo de regime, por tras de todo o discurso amenizador em.contrário. Na formulação da dúvida, o "ontem" se iguala ao "hoje", e assim, ao anular-se o lapso temporal, anulam-se também as mudanças. "Dúvida revolucionária" aproxima-se. da anedota. Formulação satírica de evidente simplicidade e despretensão, renova a disposição de Paes.de cutucar o "status quo".politico. Assim, não ë â toa que, no seu "calendário", uma data que nos calen- dários oficiais de então era superestimada como instante de ruptura política e renovação surja comentada de forma tão ridicularizadora e no espaço de um poema tão despido de virtudes poéticas. Nessa mesma linha de crítica político-social, o dia do trabalho não poderia deixar de ser celebrado como momento importante, como o faz "Etimologia", poema dedicado â data. Se a data anterior encontra-se envolta em escárnio, o tom que celebra esta outra ê bastante distinto, jã aí pode-se aferir o posicionamento ideológico do autor. 428 19 de maio ETIMOLOGIA no suor do rosto o gosto do nosso pão diãrio sal: salãrio Etimológicamente, a palavra "salãrio" (do lat. 'salariu', soldo) deriva da palavra "sal". Segundo Antenor NASCENTES/'primitivamente era a quantidade de sal que se dava como pagamento; depois ficou sendo o soldo dado ãs tropas para comprar o sal". Ao invés desta etimologia historicamente situada, Paes contrapõe uma outra, fictícia, de acentos poéticos e políticos mui- to evidenciados. O poema ê novamente bastante breve:, três versos curtos no corpo de uma estrofe e um verso isolado final igualmente curto. Ao longo da estrofe, em rápido desenvolvimento, delineiam-se os aspectos que vão informar a nova etimologia. 0 "suor do rosto" remete ã idéia de trabalho,. central no poema. "No suor do rosto", no trabalho, encontra-se o "gosto" do "pão diãrio", a recompensa final pelo esforço, dispendido. No verso final - "sal: salãrio" -, explicitação da relação etimológica entre os termos, ecoa o desenvolvimento anterior. Repare-se nas ressonâncias rímicas, que paralelamente ao desenvolvimento semântico do texto, encaminham o poema para o seu termo: "rosto"/"gosto", "diãrio"/salãrio". O "suor do rosto" - o "gosto" do pão - é o "sal"; o "pão diãrio", o "salãrio" recebido. Dessa forma, "sal" encontra-se duplamente na origem de "salãrio": enquanto raiz etimológica presente na própria concreção dos vocábulos ("sal"/"sal-ãrio") e, poeticamente, pela 429 relação entre o trabalho - nas imagens do poema "suor do rosto" e "sal" - e esse mesmo "salário". Repare-se que o "sal" deixa de ser aqui o meio monetário intermediário entre o trabalho e o seu produto, como na etimologia real, para ser o próprio trabalho em si. 0 "suor do rosto" do trabalhador é. o "sal" que impregna o seu ganho, o seu "pão diário" - em suma, o "salário". Mas é também, na bela sugestão poética implícita no texto, o tempero desse mesmo pão o que lhe dá o "gosto" afinal. Repare-se ainda que o poeta sugere incluir-se entre os trabalhadores na formulação do possessivo na primeira pessoa do plural - "nosso pão diário". Há um sujeito poético múltiplo que fala aí, a classe trabalhadora ou os assalariados, que,, ao manifestar-se, assume uma iden tidade coletiva. O último verso,^equação final do poema, pode ser visto também como o ponto de partida, para a sua elaboração. O recurso paesiano de extrair poesia das próprias potencialidades da palavra surge aí bastante claramente. Há muito de artesanato verbal nesse jogo com os termos., de luaismo explícito, porém, acentue-se que esse ludismo em Paes raramente é ingenuamente gratuito ou restritamente experimental. Como no poema, o ludismo vocabular encontra-se impregnado de nuanças ideológicas assumidamente críticas em relação.a problemas, a questões da realidade. Nessa linha de jogo com as palavras, um poema em especial precisa ser estudado, ainda pelo que hã nele de metalingüístico, outro veio dominante em Paes: "Dicionário de rimas", homenagem ao dia da poesia, dia 14 de março. 430 O poema tem ao todo vinte e três estâncias, cada uma delas obedecendo a uma mesma estrutura. A transcrição da primeira estância exemplifica melhor como se apresenta essa estruturação: A de amar : no lar como no lupanar Cada estância compõe-se de três versos, obedientes a um mesmo padrão rlmico e alinhados em relação a uma margem â direita, ao contrário do. alinhamento a partir de margem ã esquerda, mais usual em poesia e predominante em Paes. Esse recurso, com a sobreposição.dos segmentos, finais ,de cada verso, destaca os paralelos rimicos, o que sintoniza bem com a intenção embutida no titulo do poema: "Dicionário de rimas". O primeiro verso da estância tem estrutura que se repete nas seguintes: letra do alfabeto + preposição "de" + palavra que se inicia com igual letra + dois pontos. De estrofe para estrofe, vão se substituindo as diversas letras do alfabeto, obedecendo ã ordenação tradicional: A, B,. C, D, etc. até Z. Os dois versos seguintes, formados cada um predominantemente por um único termo, ligado ou não por preposição, ou ainda, mais raramente, por expressão concentrada, procuram, de forma sintética, apresentar uma definição, uma conceituação do termo central do primeiro verso. Paes, como se pode ver, estã a pard.diar os dicionários de rimas que se encontram comumente por al. Ao lembrar o dia da poesia com a elaboração de um tal dicionário, fica evidente a sãtira do poeta a uma certa concepção, tradicional, corrente e leiga, que vê a poesia meramente enquanto texto rimado. 431 A posse de certos chavões rimicos, de que um dicionário de rimas ë exemplo dos mais completos, seria, segundo essa concepção que associa, automaticamente "poesia"/"rima", um pré-requisito básico para lançar-se ao trabalho poético. Paes mergulha nesse ponto de vista e o critica por dentro. Ele elabora um dicionário diferenciado, em que, partindo do recurso ingênuo de arrolar palavras com idêntica terminação, acaba, através do humor, da ironia, do distanciamento, do ludismo verbal, do achado inusitado e expressivo, formulando conceitos interessantemente críticos e sintéticamente precisos para diversos vocábulos, alguns deles aliás bastante batidos. Na primeira estância, "amar", vocábulo usado â exaustão em poesia, rima igualmente com termos, que se referem a universos sociais-em certo sentido opostos:"lar" x "lupanar". Há duas visões do amor problematizadas e postas em confronto aí. Em primeiro lugar, o amor ligado â esfera doméstica, familiar, o amor regularizado e socialmente aceito sem estigmas. Em segundo lugar, o amor ligado ã esfera do espaço público, o amor proibido, restrito ã sexualidade, marcado negativamente. O poeta investe nessa tensão, afirma o amor como algo pertencente igualmente a essas duas esferas., e nesse sentido, põe em xeque as delimitações. "Amar" está, semântica e formalmente, igualmente em "lar" e em "lupanar". Da mesma forma, obedecendo ã mesma sugestão, "lar" e "lupanar" se inteirpenetram, interpenetração ressaltada pela mesma.rima e por outras reiterações sonoras: "l-ar"/"l-upana-ar". O aparentemente singelo brinquedo reveste-se, como se vê, de outras intenções. Se a primeira estância envereda pela critica de.cos- tumes, a segunda, no inusitado da aproximação dos termos, compõe 432 uma bela definição poética para uma questão de ordem estética. Da primeira para a segunda estância, o lapso temático revela-se bastante acentuado, aspecto recorrente no poema: B de beleza: frieza acesa O paradoxo dos versos dois e três tem algo de artificio poético maneirista ou ainda barroco (frio x calor, som- bra x luz, estaticidade x dinamicidade), porém o resultado final talvez seja o da apreensão.de uma "beleza" mais puramente clássica. Ao contrário do desequilíbrio dinâmico que o oxímoro poderia suscitar, tem-se aí um delineamento bem equilibrado e contido. Não é a "beleza" violenta.das tensões insoluveis a que se apresenta aí, mas uma "beleza" precisa que absorve e dissolve no seu bojo as tensões. Em todo o caso, independentemente das sugestões que a estância possa fazer reverberar numa sensibilidade singular, fica evidente o carãter de "achado poético" de contornos indefinidos, e a abertura interpretativa que isso tende a provocar. Menos intrincados em seus sentidos revelam-se os enquadramentos de outras estrofes. As esperanças políticas vibram em reticências nos ecos rímicos da estância a seguir: L de liberdade : hã-de hã-de 0 humor se acentua ainda em outras, como no trocadilho intercalado ã frase feita: M de mulher: a que der e vier 433 Ou ainda na insólita imagem desta outra estância: S de sorte : um pouco de esporte antes da morte A identidade do poeta é também tematizada em estância especifica, em termos de dúvida, com a apresentação de dois pólos antagônicos entre os quais oscila o pêndulo da resposta: P de poeta: profeta? pateta? Entre uma avaliação extremamente positiva, que vê o "poeta" enquanto um "vate", designação tradicional que moder-namente pode-encontran-tradução na expressão poundiana "antena da raça", e a avaliação depreciativa, que minimiza ridicularizadoramente a sua tantas vezes arrogada importância, indefine-se a visão do próprio Paes. A equação não se resolve e o "poeta" estã livre para tocar alternadamente ambos os pólos. E ainda na esfera da criação, agora no âmbito da tradução poética, confira-se a bela e engenhosa réplica que Paes, ele mesmo conceituado tradutor, dã ao famoso ditado italiano "tradutore, traditore" (tradutor, traidor), repetidamente lem- brado quando se quer tecer ressalvas â dificuldade ou mesmo â impossibilidade do trabalho de tradução: T de tradutor: traidor por amor 434 Finalizando, ainda duas estâncias que revelam muito acerca do. próprio posicionamento ideológico de Paes. A estância a seguir explicita-se em defesa das posições independentes: H de heresia: não â miopia da ortodoxia Os versos têm ares de franco protesto. A defesa das posições que põem em xeque a estreiteza das ortodoxias liga-se ao próprio trajeto intelectual de Paes, que sempre preferiu manter-se criticamente distanciado das diversas ortodoxias literárias ou políticas que marcaram o panorama cultural brasileiro nos últimos decênios. Estreando literariamente no âmbito da Geração de 45, enveredando pela poesia política de. contornos cepecistas nos anos 50 e inicio dos 60, dialogando muito próximamente com a vanguarda poética, radicalizando o veio oswaldiano do humor, da paródia e da brevidade, como o fizeram, em direções muito próprias,.certos tropicalistas e marginais, porém nem sempre com o mesmo requinte de erudição e sofisticação, Paes preservou sempre uma grande, autonomia em relação ao núcleo diretivo dessas tendências Marcou .,. portanto , uma posi- ção "herética", em certo sentido., O mesmo se observa no campo mais geral das idéias políticas. Envolto a princípio pelo clima sartreanamente existencialista que marcou o pós-guerra, passando pelo engajamento político-social mais explícito e em direto contato com o pensamento de esquerda, Paes acabou assumindo posição mais distanciada a seguir, optando por uma irreverência e ieonoclastia radicais e, portanto, um tanto avessas âs definições ideológicas excessivamente precisas e aos arrebanhamentos partidários. 435 Indice ainda dessa sua posição "descentrada" e da consciência dessa posição encontra-se no pequeno texto "sobre o autor" que preenche uma das orelhas da edição original de Resíduo, livro de 1980. Paes faz questão de mostrar-se muito distanciado das vãrias versões típicas de intelectual presentes na sociedade brasileira: "Não cursou universidade. Nunca ensinou literatura. Não pertence a nenhuma academia de letras. Jamais recebeu um prêmio literário.. Não.possui quaisquer títulos honoríficos, medalhas, crachas, lãuieas. Nunca viajou ao estrangeiro em missão cultural, com despesas pagas". 9 8 Hã muita ironia por trãs desse breve avesso de nota biográfica. E a última estrofe, finalmente, dã- bem a medida de certa visão da existência pelo poeta: Z de zero: o número mais fero e mais vero A letra final do alfabeto ê um Z de zero, número fero, que atemoriza o sujeito, mas que constitui afinal., segundo o poeta, a sua maior verdade. Ecoam aqui versos do primeiro poema abordado, "Brinde", com sua referência ao Ano Novo: "hora zero: soma / do velho? / idade do novo? / o nada: um ovo". Origem e fim, "alfa" e "ômega", igualam-se assim na sua mesma radicação na nulidade. Antes de encerrar este tópico, convém introduzir e comentar ainda um conceito teórico.bastante presente nas reflexões literárias que se vão desenvolvendo atualmente, conceito não exclusivamente relativo aos estudos literários, mas ligado ã toda uma reflexão mais ampla acerca da produção cultural. Ao longo da década de 1980, começam a chegar ao Brasil, com cada vez mais intensidade, os ecos das discussões feitas 436 acirradamente no estrangeiro com respeito ã noção de "põs-modernismo" como novo conceito de periodização da cultura. A polêmica em torno do assunto tem sido cerrada, com defensores e detratores entusiasmados. As produtivas discussões entre dois dos filósofos mais importantes da atualidade, o alemão Jürgen Habermas e o francês Jean-François. Lyotard, são um par radigma vivo e significativo dessa polêmica. A existência de algo que se possa chamar de pós-modernismo predominando no cenário cultural atual, a sua delimitação,.o seu caráter de ruptura ou de continuidade em relação ao Modernismo, as suas características básicas, o seu enraizamento na esfera econômica, política e social, o seu caráter ideológico reacionário ou progressista, etc. , são questões em aberto e que têm tado diferentes respostas. Em todo o caso, susci- independentemente do partido que se possa tomar, a polêmica existe, e a sua existência garante jã de imediato importância cultural a essa nova i>oção. Com isso em perspectiva, não se poderia deixar de perguntar, a esta altura do estudo da poesia de José Paulo Paes, se a sua obra não se encontraria dentro do âmbito daquilo que se poderia compreender como "pós-modernismo" em literatura. Uma. resposta precisa e um pouco mais, definitiva a essa questão demandaria um estudo aprofundado e bastante especifico, o que não ê o que se pretende aqui. Em todo o caso, à.luz de certas características genéricas que vêm sendo arroladas como definidoras de uma literatura põs-moderna, algumas, conclusões podem ser tiradas. Linda HUTCHEON, em relativamente recente e bastante im- portante estudo acerca do assunto - Poética do pós-modernismo 9 9 -, 437 originalmente publicado em 1987, aborda com detalhe a questão no âmbito da História,, da Teoria e da Ficção. No caso da literatura, e especificamente do romance, gênero de eleição do Pós-modemismo literário, utiliza.ela a expressão "metaficção historiográfica" para caracterizar uma série.de obras surgidas ultimamente, como por exemplo 0 nome da rosa, de Umberto Eco, Ragtime, de Doctorow, Os filhos da meia-noite, de Salman Rushdie, entre outros, muitas delas obras de valor literário que obtiveram grande sucesso no mercado editorial, índice inicial das contradições características do pós-moderno. Diferentemente das produções mais representativas do. Modernismo - elitistas, herméticas, alheias aos meios de massa -, as produções pós-modernas circulam por esses meios, atingem um-público mais vasto através da retomada de certas .convenções literárias que permi- : . tem uma franca comunicação c o m o público, sem no entanto perderem - acentua a autora - em termos de. crítica, garantida fundamentalmente pelo recurso ã paródia. A mencionada designação "metaficção historiográfica" aplica-se, por um lado, a romances em que o fazer literário vai sendo explicitado ao longo do texto : o autor situa a si próprio e ao leitor no espaço da escritura; acentua o caráter ficcional do seu trabalho e. as convenções que estão por trás dele; aceita as convenções dos gêneros e das formas, num primeiro instante, para logo em seguida frustrá-las..Trata-se, em suma, da utilização, em proporções bastante acentuadas, do que na teoria literária se designa por "procedimentos, metalingüísticos". Por outro lado, são obras que, diferentemente dos textos modernistas, onde esses procedimentos também estão tantas vezes presentes, contestam o fechamento da obra enquanto objeto 438 autônomo, abrem-se crítica e problemáticamente para a realidade e para a história - em direção ao "extra-literãrio", portanto. A autora insiste no paradoxo da expressão, jã que "metaficção" implica na linguagem debruçando-se sobre a linguagem, no ficcional voltando-se para o próprio ficcional, em claro fechamento e circularidade intra-textual, e "historiogrãfica" implica num projetar-se para fora do espaço e do tempo da obra, em direção â realidade exterior. Porém, como essa realidadé exterior só existe "textualizada" para o homem, essa projeção converte-se em "intertextualidade". Ao abordar o tempo passado, essas obras vão .dialogar com os: textos que presentificam esse passado, os textos da história, e não com os acontecimentos em. si, inalcançãveis agora fora desses textos. No entanto, esse diálogo intertextuál, não é ingênuo ou inocente, mas sim crítico, problematizante, autoconsciente, descentrado em relação ãs formulações totalizantes, ãs compreensões unívocas da realidade. E aqui a "paródia" como procedimento- intertextual tem papel de relevo, por permitir, como acentua a autora,.uma "indicação irônica da diferença ño próprio âmago da semelhança". 100 Não é de forma acrítica que os textos , da história e as formas textuais do passado são retomadas, mas sim a partir de. uma perspectiva problematizante, garantida pela paródia. "Metalinguagem", "intertextualidade", "paródia" são, portanto, conceitos básicos que ecoam aí e estão presentes na caracterização do."põs-moderno" literário. Domício PROENCA FILHO, em pôs-modernismo e literatura. - estudo bastante sumário sobre o problema, que tem, no entanto, a virtude de enfocar a literatura brasileira no âmbito do Pós-modernismo internacio- 439 nal -, ao resumir as idéias de estudiosos como Charles Altieri, lhab Hassan, John Barth, Craig Owens, Andreas Huyssen, Robert Alter, e dos brasileiros Sérgio Paulo Rouanet e Carlos Guilherme Merquior acerca do.assunto, reitera, em certa medida, as reflexões .de Linda Hutcheon. Algumas das características da literatura pós-moderna por ele apresentadas recebem a seguinte formulação sintética: "intensificação do ludismo na criação literária"; "tendência â utilização deliberada da intertextualidade ";"ecletismo estilístico"; "exercício da metalinguagem"; "figuração alegórica de tipo hier-real e metonimico"; "fragmentarismo textual". 1 0 1 Além desses seis..tópicos, que ele mesmo condensa na forma acima transcrita, o crítico apresenta ainda outros dois, em que arrola características específicas da narrativa e da poesia. No caso da narrativa, repetem-se basicamente os aspectos jã observados acima, somados, a alguns aspectos de carãter polêmico, como, por exemplo, destacar o que seria.a "pouca popularidade da narrativa pós-moderna fora dos. círculos intelectuais ou dos programas universitários" 1 0 2 , afirmação em franca contradição com o sucesso de público de um romance como 0 nome da rosa e tantos outros, e com: as observações de Linda Hutcheon sobre a recuperação da comunicação com um público mais amplo que o Modernismo havia perdido. Com relação ã poesia, baseia-se ele nas observações de Charles Altieri eselusivamente sobre a poesia norte-americana, levantando aspectos um tanto quanto problemáticos e contraditórios se aplicados sem observação ã poesia brasileira. Diz ele a. respeito: Na p o e s i a , ã l u z fundamentalmente das i n d i c a ç õ e s de C h a r l e s A l t i e r i , q u e a s d e p r e e n d e b a s i c a m e n t e de m a n i f e s t a ç õ e s 440 da l i t e r a t u r a a m e r i c a n a , a s s i na 1 a m - s e , entre outros traços: três posicionam e n t o s q u e se s u p e r p õ e m : uma p o e s i a confessional altamente personalizada, uma p o e s i a b a s e a d a .em c o m p o n e n t e s objet i v o s e uma p o e s i a d a i m a g e m p r o f u n d a , q u e u t i l i z a de m a n e i r a c o n t r o l a d a uma poética surrealista; uma p r e f e r ê n c i a de e l e m e n t o s de c a r á t e r p e s s o a l , s o c i a l e a n t i f o r m a l , em o p o s i ç ã o imediat a a o M o d e r n i s m o , n o q u e e s t e t e m de ê n f a s e ao c o m p l e x o , a o p a r a d o x a l , ao f o r m a l i s mo, ã t r a d i ç ã o l i t e r á r i a e ao h i s t o r i c i s mo ; f i n a l m e n t e , efetiva-se uma t e n t a t i v a de o r a l i z a ç ã o do p o e m a , com f o r t e p r e o c u p a ç ã o com a c o m u n i c a ção ã c o m u n i d a d e . Convém destacar que. Domicio Proença Filho, na periodização de um possível Pós-modernismo literário no Brasil, engloba no seu arco de abrangência a literatura brasileira surgida a partir dos anos 50 , acentuando tratar-se de. "um pós-modernismo peculiar, que só • em certa medida concretiza dimensões próprias do Pós-modernismo caracterizado nos Estados Unidos da América e na Europa".101* Só assim as características apresentadas com relação â poesia podem, fazer algum sentido na literatura brasileira, já que as vanguardas .estéticas radicais dos anos 50/60, por.exemplo, dificilmente poderiam se reconhecer nessa formulação. Com base nesses dados, pode-se tentar uma aproximação da poesia de Paes ao. põs-modernismo na literatura. De fato, a poesia paesiana parece.enquadrar-se bastante bem em alguns desses tópicos. "Metalinguagem","intertextualidade", "paró- dia", "ludismo verbal", um certo "ecletismo estilístico", aspectos tão salientados, atravessam o estudo aqui. feito sobre a sua poesia. Ao contrário da perspectiva de.ruptura com o passado tipicamente modernista - sobretudo do Modernismo inicial -, há em Paes um desejo de revisitar o passado. Daí as 441 retomadas de formas poéticas tradicionais, a principio parafrásticas, como nos dois primeiros livros do autor, a partir de certo ponto porém predominantemente paródicas. Daí a reverencia a certos "mestres de poesia" ou a irreverência diante de outros autores. Dal o constante diálogo intertextual com textos de autores brasileiros e estrangeiros, modernos ou antigos, textos restritamente literários ou não. No entanto, essas características, apontadas como pós-modernas, pelo menos em termos de literatura brasileira revelam-se um tanto problemáticas. "Metalinguagem", "intertextua- lidade", "paródia", "ludismo verbal" são aspectos.presentes na poesia de modernistas brasileiros paradigmáticos, como Mário de Andrade e sobretudo Oswald. Poesia pau-brasil ë texto radical do segundo, em que todos esses aspectos encontram realizações de grande importâncià, subvalorizadas pela poesia imediatamente posterior, mas que iriam impregnar a poesia brasileira a partir dos anos 50, tornando-se denominador comum de tendências tão diversas como o Concretismo, o Tropicalismo, a Poesia Marginal, e outras tendências poéticas independentes, como a do próprio Paes. São aspectos presentes na obra de grandes poetas, como Drummond e Manuel Bandeira, que vão do verso livre modernista e do exercício com formas novas as formas mais tradicionais, retomadas em sentido parafrãsico ou paródico, portanto em termos de imitação de tipo classicizante (bem menos comum) ou distanciamento crítico tipicamente moderno. A poesia de Paes parece filiar-se, portanto, ao que de melhor o Modernismo brasileiro produziu, e é daí que ela re- tira muito da sua vitalidade criadora. As suas formas sintéticas e criticas, cheias de sátira, humor, ironia, estão em 442 Oswald e Drummond. A habilidade artesanal com as formas poéticas da tradição a braços dados com o experimentalismo, com a inovação, estão em Drummond e Bandeira. Paes radicaliza essas potencialidades, enxuga mais a forma, investe na sãrira como meio de crítica cultural'ampla, sem deixar de dialogar com as tendências que lhe são contemporâneas, absorvendo e subordinando as conquistas dessas tendências ã sua própria expressão. Assim, o que.em Paes poderia se afigurar como temperamento poético tipicamente põs-moderno é mais propriamente herança modernista levada adiante. Somente se se considerar o põs-modernismo como uma continuidade de certas tendências- do Modernismo, talvez até em direção ã exacerbação.- muito mais do que uma ruptura inovadora, a instauração de um novo paradigma criativo -, ê que faz sentido aproximar Paes e outros, autores brasileiros do que.vem sendo tomado como expressão característica do Pós-modernismo literário no estrangeiro. 3.8.3 Conclusão A epígrafe latina que antecede os poemas de Calendário perplexo, cuja autoria é atribuída ao Arquipoeta de Colônia (sêx. XII), resgata, na sua referência ao tempo,, matéria central deste livro de Paes, traços dominantes da poética paesiana: "Omnia tempus habent, et ego breve postulo tempus, ut possim paucos praesens tibi, reddere versus". O poeta diz que todas as coisas têm o seu tempo, e que precisa de um tempo breve para, presente, poder recitar alguns poucos versos (no caso es- pecificamente ao interlocutor, como quer o vocábulo lat. "tibi", "a ti"). O adjetivo "praesens", além. do. sentido temporal "presente", pode significar também "denodado", "resoluto", "decidido". 443 Estão aqui presentes referências â poética da brevidade, da concisão, ã poesia incisiva, ferina de Paes. Calendário perplexo tem como temática o tempo, pondo-o em foco através da problematização da sua segmentação em datas referenciais que. celebram acontecimentos, pessoas, realidades, tentativa característicamente humana de domar esse tempo, atribuir-lhe sentidos, aprisionã-lo numa circularidade, num ciclo de recorrências que minimize a angústia do homem diante do acaso, do desconhecido, do imprevisível. Paes põe em xeque os sentimentos comuns, as perspectivas usuais ligados a certas datas, subvertendo o.reconhecimento fãcil, expondo os avessos das celebrações. Ao invés de compartilhar da celebração eufórica e esperançosa do Ano Anovo, prefere manter-se distanciado e questionador-. A alegria do aniversário é-minimizada pela consciência da aproximação'da morte. As comemorações oficiais são vistas com certa irrisão, como é o caso do 31 de março, data simbólica para: o regime militar. Jã as comemorações ligadas às classes "subalternas", como.o 1? de maio, dia do trabalho,merecem especial carinho e consideração.. E assim se dá com tantas outras datas. Além disso, olhando-se agora .para a estrutura maior de Calendário perplexo, o poeta traz para o corpo de um mesmo livro datas tradicionais como o Natal, Finados, o dia do trabalho, ao lado de outras como o dia do contato, o dia do diplomata, de importância bem mais restrita, e nessa justaposição estranha de elementos de importância heterogênea percebe-se a intenção proposital de relativizar as importâncias e questionar as convenções.. As preocupações temáticas mescladas ao tema maior.são basicamente as mesmas observadas em trabalhos anteriores. Os 444 problemas políticos e sociais - presentes em poemas como "Dúvida revolucionaria", "Etimologia", estudados anteriormente, e ainda, por exemplo, "Dia do indio"-e "Almas brancas", abordando respectivamente a questão do índio e do negro - encontram-se lado a lado com poemas de caráter "metafísico", no sentido jã comentado anteriormente, como os.também já abordados "Brinde" e "Aniversário". A preocupação de falar da própria poesia, referindo-se a autores, parodiando.textos - a intenção metalingüística e intertextual fundamental na poesia moderna e fundamentei em Paes - revela-se em poemas como "Dicionário de rimas", também estudado, "Recado tardio" Alves), "Epitãfio" (referência a Castro (referência e reverência a Manuel Bandeira) ou ainda "Metamorfose dois", sobre o dia dos pais (chamando ã cena o famoso texto de Kafka). Da mesma forma, os recursos expressionais são fundamentalmente os mesmos de livros anteriores, acentuando^-se porém aqui uma volta definitiva ao verso e a ausência de experimentação visual, presente ainda no trabalho imediatamente anterior. 0 caráter epigramático da poesia paesiana permanece. Brevidade, contenção formai, mergulho nos cernes da palavra poética, ludismo vocabular e intertextual, humor, ironia, etc. estão novamente, aqui com toda a sua força expressiva. Paes parece levar ao.limite os recursos de que se tornou um verdadeiro mestre ao longo do seu trajeto de poeta. 445 NOTAS DE REFERÊNCIA CARVALHO, Amorim de. T r a t a d o de v e r s i f î c a ç i o 2.ed. Lisboa : PortugalUT^ 1965- p • I I Ö-9 . sa. Z PAES, José P a u l o . Depoimento. L e t r a s . 29 de s e t e m b r o de 1 9 . 9 0 . derno Fo1 h a d e S i o pT 4 - 5 . ^ portugue- Paulo. ~ Ca- 3 V Í t o r M a n u e l de A g u i a r e S i I v a d e s e n v o l v e importantes r e f l e x õ e s a c e r c a d o " c l as s i c i s m o " e d a p o s t u r a " c l á s s i c a " diant e da l i t e r a t u r a , a b o r d a n d o e s t e s t e r m o s em s e u s v á r i o s sentid o s , bem c o m o o i d e a l c l á s s i c o d a " i m i t a ç ã o d o s m e s t r e s " . Cf. AGUIAR E S I L V A , V í t o r M a n u e l d e . T e o r i a da l i t e r a t u r a . 3.ed. Coimbra. : A l m e d i n a , 1973. p . 433-60"": 4 neiro : MENDES, M u r i l o . Nova F r o n t e i r a , Poemas T 9 tf tf . 5 sé Rio Rio B0SI , Alfredo. 0 Paulo. Um p o r t o d o s . AN D RA DE ; C a r l o s D r u m m o n d d e . J a n e i r o : José O l y m p i o , 1987. 7 M E L 0 NETO, J o ã o C a b r a l d e . J a n e i r o : José O l y m p i o , 19 de de 0 PAES . op. cit. 9 BOS 1 . op. cit. 10 PAES . op. cit. 1 1 op. ci t op. 11 o p . 15 rária . 16 Fo1 h a de Ja- n o ta Nova r e u n i ã o . v . T^ p~ TÕ2 . A n t o l o g i a poé t i c a . p~! 1 9 5 - 6 . 3.ed. 7.ed. 2. • M 0 I S É S , Mas s a ud Paulo : C u l t r i x , 19 13 Rio l i v r o do a l q u i m i s t a . I n : PAES, J o São P a u l o : B r a s i l i e n s e , 1986. p . 13 6 12 São e Bumba - m e u - p o e t a . p"! 7 1 . D i c i o n á r i o , de p. 372-5. termos l i t e r i r i os . cit. cit. KAYSER, 6.ed. PAES, de S i o p. 317 Wolfgang. São P a u l o : Análise e interpretação Ma r t i n s F o n t e s , 19 7 6 . José Paulo. Paladas e Paulo. Caderno L e t r a s . a da o b r a pT 9 4 . lite- t r a d i ç ã o do - e p i g r a m a - . 25 de m a i o de 1 9 9 1 . p. 4-5 4 4 6 17 — F E R R E I R A , A u r é l i o B u a r q u e de H o l a n d a . Novo dicionário da l í n g u a p o r t u g u e s a . R i o de J a n e i r o : N o v a F r o n t e i r a , 19 7 5 . 18 ' S A R A I V A , A n t o n i o J o s é ; LOPES. O s c a r . Historiada l'teratura portuguesa. 12.ed. P o r t o : P o r t o Ed i t o r a , I 9 02. p . 4 0ÏÏ. 19 80S I . 2 0 2 op . c i t . p. . PAE S. 1 5. nota op.cit. - 2. 1 ~ — P a r a uma m e l h o r c o m p r e e n s ã o d o s d o i s p o l o s d e s s a polemic a , c f . , p. e x . , GULLAR, F e r r e i r a . C u l t u r a p o s t a em q u e s t i o . R i o de J a n e i r o : C i v i l i z a ç ã o B r a s i l e i r a , 19 6 5 ; : . Van g u a r d a e s u b d e s e n v o l v i men t o . R i o de J a n e i r o : C i v i l i z a ç ã o Bras i 1e i r a , 1 9 6 9 ; ë CAMPOS , A u g u s t o d e . Poes i a , a t i p o e s i a e a n - _ tropofagia. São P a u l o : C o r t e z . e M o r a i s ^ 1978. 2 2 ~ H e l o í s a B u a r q u e de H O L L A N D A , em s e u I m p r e s s o e s o p . c i t . f a l a em . " e n g a j a m e n t o e x p e r i menta 1 i s t a " x " e n g a j a m e n t o de v i a g e m cepecista". 2 3 C f . CAN D I DO , AntonJ o . L i t e r a t u r a e s u b d e s e n v o l v i m e n t o . In: . A educação pela n o i t e e outros ensaios. São P a u lo : Atica,. Iy Ö / . p~. HfZ i " A c o n s c i e n c i a d o s u b d e s e n v o l v i m e n t o é p o s t e r i o r ä S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l e se m a n i f e s t o u clar a m e n t e a p a r t i r d o s a n o s de 1950". Zli Belo CANDIDO, A n t o n i o . F o r m a ç ã o da l i t e r a t u r a Horizonte : I t a t i a i a , " 1981. v . 1 , fT T51T brasileira. 2 5 C f . p. e x . , BAKHTIN, M i k h a i l (Vo1 o c h í n o v ) . f i l o s o f i a da l i n g u a g e m . T r a d . M i c h e l Lahud e Yara Vi e i r a . 2,ed. Sao P a u l o : H U C I T E C , 1981. 2s cia KRISTEVA, J u l i a . I n t r o d u ç ã o à s.emañ : á I r i s e . Helena França F e r r a z . Sao P a u l o i Pe r s p e c t i v a , 2 7 op . cit. p. 174. 2 8 op . cit. p. 176. 2 9 op . cit. p. 175. 3 0 São SANT ' A N N A , A f f o n s o Paulo : A t i c a , 1985. 31 op. cit. p. 27-8. 32 op. cit. p. 28-9. 3 3 FERRE I RA. 3 4- PAES. 35 op. 3 6 3 7 op. op. cit. p. 28 p. cit. cit. op. Cit. B 0SI . op. cit. p. 17. 6 20 . Ma r x i smo e Frates chi Trad. 1974. Lup. 174. 447 38 HJEL MSLEV, L o u i s . P r o l e g ó m e n o s a uma t e o r i a d a lingua^ Trad. J. T e i x e i r a Coelho Neto. Sao Paulo i Pe r s pe c t . ñ v a 7 p. 5*t. gem. 1975. 39 op. cit. p. 121. 4 ° C f . BARTHES, R o l a n d . E l e m e n t o s de s e m i o l o g í a . Trad. Izidoro Blikstein. S i o P a u l o ~ ~ i Cu 1 t r i x , 19 7 1 . p^ 91T e s s . B a r t h e s , n a c o n s i d e r a ç ã o d a s i d é i a s de H j e l m s l e v , aponta a Lit e r a t u r a como e x e m p l o c a r a c t e r í s t i c o d e , na s u a terminologia, "sistema conotado". 4 1 HJELMSLEV. op. cit. p. 126. 4 2 Para detalhes acerca destas formulações, consultar JAKOBSON, Roman. Lingüística e poética. In: . Lingüíst i c a e comunicação. Trad. Izidoro Blikstein e Jose Paulo Paes. S ã o P a u l o i Cu 1 t r i x , 1969. C f . t a m b é m : CHALUB, S a m i r a . Fun ç õ e s da l i n g u a g e m . São P a u l o : A t i c a , 1987. 4 3 CHALUB. op. ^ 4 JAKOBSON. c i t. op. p . cit. 32 . p. 130. 45 A r e s p e i t o das f o r m u l a ç õ e s c o n t i d a s n e s t e p a r á g r a f o e no anterior, cf. CAMPOS, H a r o l d o d e . A p o é t i c a da v a n g u a r d a . In: A a r t e no h o r i z o n t e do p r o v á v e l . São P a u l o : P e r s p e c - - t i va, 19 7 7 - C f . t a m b é m CHA LH ÜB . o p . c i t . , em e s p e c i a l o c a p í t u lo s é t i m o , s o b r e a f u n ç ã o meta 1i n g ü í s t i ca. 4 6 4 7 CAMP O S . op. cit. p. I52-3. CHALUB. op. cit. p. 49. l f 8 C f . AGUIAR e S I L V A . op. c i t . p . 63 e e n c o n t r a s u b c a p í t u l o ( i n t i t u l a d o " R e f u t a ç ã o da na da f u n ç ã o p o é t i c a da linguagem". 4 9 FE RREI RA. p ! i c i a r " n a p . 3'35 0 Cf. dedicadas, ces . neiro op. cit. p. 410. Cf. a palavra "acum- a b o r d a g e m m a i s d e t a l h a d a do " e p i g r a m a " n a s páginas n o p r e s e n t e e s t u d o , a o s e g u n d o l i v r o de Paes, C ú m p l i - 5 1 PAES. op . cit. nota l6. 5 2 BOS 1 . op . cit. p. 5 3 PAES . op . ci t . 5 4 MO 1 S E S • op. 18. nota 2. cit. p. 19^-5. 5 5 F E R R E I RA . 5 6 BANDE 1 RA, M a n u e l . E s t r e l a da José Olympio, 1966~ 162. : também s s . , em q u e s e teoria jakobsonia- op. ci t . p. 359. vida inteira. " ~ Rio de Ja- 448 5 7 C H E VA L I E R , J e a n ; GHE ERB R A N T , A l a i n . bolos. T r a d . V e r a da C o s t a e S i l v a e t a l i i . Jose Olymp i o, 1977. p. 15-22. 5 8 FE RREI RA. 5 9 MO I S £ S . 5 0 FE RREI R A . 6 1 SHAKESPEARE, W i l l i a m . Hamlet. : Ve r b o , 1972. p. 91. Lisboa 6 2 op. 6 3 op. op. cit. op. p. p. cit. cit. p. p. PEIRCE 67 PIGNATAR I . apud op. cit. p• 11. 6 9 op. cit. p• 11. 7 0 op . cit. p• 7 1 op . cit. p• 7 2 FERREIRA. 7 3 op. ci t . 71+ op. ci t . p. 120 1 . 7 5 op. cit. p. 338. 7 5 PAES. CAMP0S, ma. I n : PAES, 1967. Orelhas 7 8 Alberti. op. p. cit. p. 2. e d. t r e v i s p. 11. 27. 2?. 00 I^J op . 77 Semiótica e Literatura. 1 Co r t e z e Mo r a e s , 19 79 . cit. 6 8 op. op. Ricardo 277. PiGNATARI. p. Trad. 129. P I GN A T A R I , D ê c i o . ampliada. São P a u l o 66 329. 00 e 194. p. 6 5 ta 898. 92. op. cit. p. cit. op. FE RREI RA. Bh cit. j ) i c i o n i r.i o de s f m R i o de J a n e i r o : cit. 423 e 326. 438. cit. Augusto de. José Paulo. do livro. FERREI RA. op. B0 S I . op. cit. BOS I . op. ci t . ci t . Anatomias: An a t o m i a s . p. do e p i g r a m a a o ideograSão P a u l o : Cultirx, 1436. 7 9 8 0 81 p. p. 244 e FERREIRA, op. cit. p. 1436. 256. DIAS, Gonçalves. Poesia. ö r g . Manuel B a n d e i r a . Rio de J a n e i r o : A g i r , 1965. Co 1 . N o s s o s . C l á s s i c o s . p. 1 1 - 2 . Cf., ao f i n a l do t e x t o , r e f e r ê n c i a a l o c a l e d a t a da r e d a ç ã o do poema . 449 2 op . 8 3 FE R R E I R A . 1+ op . 5 6 7 8 c ¡ t op. cit. c it. 10 3 7 . op . c it. p• 880 . op. c i t. p• 1316. op . c it. p- 344 . op. c i t . "FERREIRA. op. PAES p. nota cit. 1 0 36 . 2 p. 7^3 . 9 0 C f . " E v a n g é l h o s e g u n d o S. M a t e u s " . In: Jesuralëm. 4? i m p r e s s ã o . São P a u l o : E d i ç õ e s e BÍBLIA Sagrada. 32. ed. revista. São P a u l o linas, 1 9 7^ 91 PAES.. op. cit. 92 FERREIRA. op. 9 3 op. cit. p. PAES. 9 5 FE RE I RA. op. 9 6 op. p. ci t . p. cit. cit. 123^- 10 . 97 NASCENTES, A n t e n o r . portuguesa. R-ro de J a n e i r o 98 Orelhas PAES, José do livro. 99 HUTCHE0N, Cruz. Rio cardo 1 0 0 op. cit. Paulo. Dicionário 1 Livraria Res í d u o . p. 1 0 2 op. cit. p. 42 . 10 3 op. cit. p. 42 . cit. p. op. Paulo : Cultrix, Trad. 1980. Ri- 42-59. P ROEN ÇA F I L H O , D o m í c i o . Paul o : At i c a , 1988. 10k São e t i m o l ó g i c o da língu^ Acadêmica, 1955. v~! 1 . Linda. P o é t i c a do p ó s - m o d e r n i s m o . de J a n e i T o i I m a g o , 1991. 1 0 1 São 1352. 556. 94 op. cit. A B Í B L I A de Paulinas, 1989 : Edições Pau- 44-45- Pós-modernismo e literatura. 4 CONCLUSÃO Quando se acompanha o trajeto individual do poeta José Paulo Paes, percebe-se que esse trajeto se desenvolve muito próximamente ao da poesia brasileira que lhe é contemporânea. . Desde o seu livro de estréia no final da década de 40, a obra do poeta estabelece um estreito diálogo com as principais tendências poéticas que vão surgindo no país ao longo da segunda metade do século. O poeta não. ,' se mostra alheio ã produção a sua volta, pelo contrário, absorve muitos de seus aspectos do-• minantes, incorporan do-os, de forma ãs vezes mais' ãs vezes menos individualizada, ã sua poesia. Essa constante tensão com as poéticas suas contemporâneas, e,.ressalte-se, com as anteriores que ainda as impregnam de alguma maneira, como é o caso fundamental do Modernismo, perpassa todo o percurso de Paes. A sua voz individual vai se construindo de livro para livro numa dialética muito produtiva, de aproximação e afastamento em relação ã poesia dominante em cada momento do trajeto. A estréia literária de José Paulo Paes em livro se dá no ano de 194 7, num instante em que está surgindo no país uma geração de novos poetas - a chamada Geração de 45 - que, programáticamente, qüer postar-se de forma polêmica frente ao Modernismo brasileiro, sobretudo na sua vertente primeira, irreverente e revolucionária. 451 O Modernismo inicial dos anos 20 havia rompido com grande estardalhaço, sob o estimulo das vanguardas européias do começo do século, com o passado literario brasileiro imediatamente anterior, tido então como estagnado e preso a valores que não correspondiam mais ãs transformações que se estavam operando em todo o mundo e no Brasil. Sob as bandeiras do antipassadismo e da liberdade incondicional de expressão, o Modernismo da Semana de 2 2 saiu a campo para renovar a arte nacional. No seu famoso balanço de 1942, Mário de ANDRADE sintetizou bastante bem as conquistas do movimento: "o direito permanente ã pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional". Na poesia, a renovação traduziu-se, em traços gerais, na superação das formas poéticas pré-fixadas; na incorporação definitiva do verso livre, na libertação da lingua- gem em relação ã camisa de força da estruturação sintática tradicional, na utilização de uma dicção mais coloquial, mais aproximada da fala cotidiana; no uso de um léxico sem restrições que, no limite, vai ã invenção de neologismos; na consagração do "poema-piada", com seu recurso ao humor e ã paródia, como exercício de crítica e modo de minar o conceito tradicional do que é poesia; na ampliação do espectro temático, sobretudo através do mapeamento das várias realidades históricas, geográficas, culturais que compõem o país, dos centros urbano-indus triais, cada vez mais vincados pelo moderno, dinâmicos' e cosmopolitas em essência, ao meio rural mais afastado, marcado pelo arcaico, pelo primitivo. Os desdobramentos do movimento nas décadas de 30 e 40 iriam significar um amadurecimento das conquistas esboçadas, 452 e o que havia de mais superficialmente panfletário e agitador no instante de afirmação inicial vai cedendo espaço a um maior aprofundamento em termos ideológicos e artísticos. O descritivismo excessivo e pitoresco a que o mapeamento do Brasil por vezes chegou, o nacionalismo e a mitificação do homem, da paisagem, do passado brasileiros por alguns grupos de criadores, com o seu muito de retrógrado e xenófobo, cedem espaço a uma preocupação mais. unlversalizante com o que é humano. Problemas mais amplamente sociais, políticos, existenciais, religiosos passam a fazer parte da temática dos herdeiros imediatos do movimento inicial. As conquistas formais são levadas adiante, agora numa perspectiva menos coletivamente programática e mais individualizada. A busca de uma linguagem própria e essencial substitui a experimentação polêmica. É sobretudo com o rosto agitador, anárquico e histriônico do Modernismo que a Geração de 45 vai polemizar. Numa certa perspectiva, trata-se de um movimento esteticamente retró- grado, desejoso de resgatar o tom de circunspecção elevada, tradicionalmente atribuído ao poético, que o movimento de 20 havia corroído. O "poema-piada", instrumento por excelência dessa corrosão, torna-se o alvo central da abominação dos novos poetas. 0 coloquialismo, aspecto central da linguagem anti-tradicional modernista, passa a ser evitado. Em oposição, prega-se o retorno a uma dicção mais culta e séria e, em muitos autores, âs formas e metros da tradição da poesia. O nacionalismo literário e a preocupação político-social cedem espaço a um centramento maior no sujeito, que se extravasa preferencialmente através de uma expressão carregadamente figurada, ou ainda na própria linguagem, de que o formalismo 3 70 e o rebuscamento de tantos textos são marcas evidentes. Há muito de neo-romântico, neo-parnasiano e neo-simbolista na poesia que se faz então, multiplicidade e contradição aparentes quando.se percebe o traço comum - o anti-modernismo - que caracteriza essa poesia. Estes alguns dos traços de uma geração que procurou., se definir muito mais pela postura de oposição a um instante literário anterior do que pelo investimento em programas poéticos claramente delineãveis. O momento da Geração de 4 5 precisa também ser visto enquanto um momento de transição que transcende a produção 'dos poetas que a ele mais exclusivamente ficaram circunscritos. Poetas surgidos no momento modernista e poetas que virão a se destacar nas décadas de 50 e 60 pela sua atuação nas vanguardas estéticas e políticas realizam uma poesia que por vezes sê identifica bastante com a produção mais típica desse instante. Parece haver al todo um ambiente poético, aliás comum â arte ocidental do pós-Guerra, que unifica a poesia desses anos, cristalizando-se porém na poesia dos nomes que ficaram definitivamente ligados â "Geração". É nesse contexto, portanto, que vem a público o primeiro livro de José Paulo Paes, O aluno, de 1947. A poesia aí contida, toda ela de contornos lírico-subjetivos, oscila entre a herança recente do Modernismo e o apego a um labor poético de caráter tradicionalizante. poemas metrificados fazem par com outtos em versos polimétricos ; formas tradicionais, como a canção, a ba- lada, o soneto, dividem espaço com composições, de estruturação mais livre. Permeando tudo, a influência - aliás confessada de importantes modernistas. O poeta estreante, nesse breve trabalho inicial, parece experimentar com as possibilidades 454 que a tradição até então ; acumulada - incluindo nela o próprio Modernismo - lhe põe ã disposição. E este é provavelmente o ponto de entrada para a compreensão do "espírito" geral deste primeiro livro de Paes. 0 poeta assume a identidade de um "aluno" de poesia e, como tal, põe-se a exercitar nas possibilidades poéticas que se encontram ao seu alcance. Nessa condição, ele elege alguns "mestres" cuja lição pretende seguir mais próximamente. São vãrios os poetas explicitamente citados nos poemas e que podem potencialmente preencher esse papel: Rimbaud, Neruda, Bandeira, Murilo, Drummond. Murilo Mendes e Drummond, aliãs, são homenageados com especial atenção em poemas feitos à sua "maneira". Mas vem de Drummond a influência central sobre o novo poeta, e ë ele quem vai ser alçado ã posição de "mestre" maior. Ecos da sua poesia podem ser. ouvidos na maior parte dos poemas - o desejo de diálogo, com o grande poeta é inconteste. Até o tom de amargura, de negatividade, de. angústia existencial que perpassa boa parte das composições, se de um lado é característica do momento cultural, comum a tantos autores, por outro compõe dívida a um certo modo. drummondiano de sentir. Hã traços de uma.postura que se pode dizer "classicizante" atravessando o livro de estréia de Paes. É claro nele o intuito de. "imitação" de modelos, o que imediatamente remete a certos postulados da poética clássica, modelos no entanto curiosamente buscados entre alguns mestres do Modernismo brasileiro e da poesia moderna ocidental. Some-se a isso a inexistência, por parte do poeta, do desejo de romper com o passaído ou experimentar com formas absolutamente novas, como aliãs o fizeram em certa medida alguns desses autores. 0 arrojo expe- 455 rimental, a irreverência, a iconoclastia deles não são resgatados pelo "aluno". Assim, este acaba mantendo uma posição um tanto ambígua frente aos "mestres". No final dos anos 40, o Modernismo é jã matéria da tradição da poesia brasileira, como o são as formas poéticas do passado que o poeta utiliza em algumas composições. Por este aspecto., apesar da ausência de um anti-modernismo de superfície em sua poesia, percebido em tantos nomes desse momento, Paes encontra-se.bastante vinculado ao espírito da geração em que estréia. A partir do entendimento dessa condição de "aluno" de poesia assumida pelo próprio Paes, pode-se chegar a um outro aspecto importante da poesia do primeiro livro e que vai ecoar como aspecto determinante da poética paesiana ao longo do seu trajeto de escritor. Enquanto "aluno", Paes é sobretudo um "poeta dos livros". Lembre-se aqui do verso " s ó m e restam os livros", de um dos poemas de angústia do autor, que nos sugere a expressão. O caráter propositadamente intertextual do primeiro livro é muito forte, a que se deve somar a intenção metalingüística de.um poeta que desde cedo se põe .a refletir sobre o fazer literário. Paes dialoga intensivamente com textos e autores: cita nomes, retoma motivos seus, refere-se a poemas específicos, parafraseia modos de compor. E nesse diálogo entrevê-se, inevitável, também o crítico de poesia. A consciência do labor.literário vem.para primeiro plano, ladeando com o lirismo subjetivo patente dos textos. Não se trata exclusivamente de uma poesia de expressão de sentimentos, centrada fundamentalmente no sujeito. Essa perspectiva partilha espaço com um centramento na própria poesia enquanto problema de poesia. Ou ainda, conciliando os aspectos: um centramento num sujeito 3 56 poético que quer afirmar-se enquanto autor entre autores. Se há extravasamento emocional nos poemas de angústia de 0 aluno, há também desejo de afirmação poética de um poeta que se debruça sobre os livros dos "mestres" para buscar, no exercício árduo da poesia, os.caminhos de uma dicção mais pessoal e madura . 0 segundo livro, Cúmplices, de 1951, enquadra-se igualmente dentro do ambiente poético da Geração de 45, aliãs de forma até mais integrada que o livro anterior. Nele os poemas de corte tradicional predominam. Metrificação, padrões rimicos recorrentes, formas poéticas tradicionais (soneto, madrigal, canção, ode, epigrama), metaforização, imagens e outros aspectos de composição informam um tom geral que se pode dizer tradicionalizante., e que se sobrepõem aos modos mais livres de compor herdados.ao. Modernismo. A presença marcante da poesia e de poetas modernistas em 0 aluno, que dava ao primeiro livro um carãter de. maior tensão em relação ã poética dominante do período, atenua-se aqui. A preocupação obsedante. do estreante em pautar a sua produção por modelos eleitos deixa.de ser o aspecto temático central. 0 lirismo subjetivo permanece., porém, desloca sua direção. Não é mais um "eu" poético que, no contraponto amoroso com vozes poéticas consagradas, busca construir a sua voz individualizada o que vinca o livro, mas sim um "eu" em diferente estado amoroso, que se volta agora para a figura da mulher a fim de, neste novo contraponto, afirmar outro aspecto de sua personalidade. A cumplicidade não se estabelece mais entre o poeta e seus autores queridos, entre o "aluno" e seus "mestres", mas 457 sim entre o "homem" e a "mulher", entre o poeta e Dora. Dora é a figura feminina que atravessa, nomeada ou não, quase todos os poemas na condição de uma segunda pessoa com quem dialoga o sujeito. É também, o que a distancia de Natércias, Lidias, Clões e outras mulheres da convenção do lirismo amoroso, mulher concreta, real, de carne e osso, noiva e depois esposa do homem José Paulo Paes. Esse amor por Dora, um amor positivo, afirmativo, todo ele construção e libertação, ë a matéria central de Cúmplices. Se a intertextualidade enquanto procedimento poético e a intenção metalingülstica vão estar um tanto quanto eclipsadas neste segundo trabalho, estes aspectos voltam com toda a carga em Novas cartas chilenas, de.1954. No terceiro livro de Paes, quase tudo ë desejo de diálogo com outros textos. O próprio título remete jã de início a texto de referência, as Cartas chilenas, atribuído hoje com certa segurança ao ãrcade mineiro Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de um poema de intenção satírica.em que o poeta ataca desafetos seus através de um ponto de vista moralizante, que não deixa de ecoar também toda uma problemática de ordem política. Deste texto, Paes resgata justamente o intuito satírico, acentuando sobremaneira a crítica, política conseqüente, de ampla, abrangência, somando a ela também a. perspectiva social. Com a arma afiada dessa crítica satírica, Paes volta-se para o painel da história pátria, apreendido na sua condição de grande texto. A crítica político-social permitida pela sátira vai se estabelecer fundamentalmente na tensão, dos poemas que compõem o livro de Paes com textos como Os Lusíadas, a oração "pai Nosso", a "Carta" de Caminha, as "crônicas" do descobrimento 458 e da colonização, os vários outros relatos da história nacional. Ë na problematização da visão ideológica desses textos, feita em muitos casos via paródia explícita, carregada de humor, ironia, sarcasmo, irrisão, que Paes vai tecendo a sua cri tica, toda ela voltada contra os poderosos que presidem a história e a sua textualização e em defesa dos que secularmente sofrem,, neste país, sob o tacão daqueles, sem espaço para fazer ecoar a sua voz. Cada poema vai, cronologicamente, dando conta de determinado instante dessa história, do descobrimento ao movimento dos tenentes na década de 30, enfocando a opressão, a miséria moral, social e material, o sufocamento das insurreições, a arrogância dos que estão e permanecem no poder fazendo falar aquilo que não foi dito. Nesse trajeto, Paes vai deixando clara a sua posição de homem politicamente crítico situado, em relação ao. passado, portanto crítico em relação a um presente que não revela configuração social e política muito distinta. Ë a partir de Novas cartas chilenas que Paes começa a usar uma arma.de que se tornará mestre em próximos trabalhos: o humor. Ë sob o signo do humor, como revela o próprio autor no seu depoimento, que ele envereda pela crítica política e social, crítica que futuramente receberá contornos mais amplos voltando-se para os aspectos mais gerais da cultura. Num certo sentido, Paes é discípulo dos mais habilidosos de Oswald e Drummond e também de certo Murilo Mendes inicial, que no momento modernista deixaram vários exemplos incisivos daquilo que se chamou "poema-piada". Em meio aos finos exercícios paródicos do terceiro livro, o humor surge com muito impacto critico, misturando-se â ironia e ao sarcasmo mais aberto. 459 Porém nem tudo ë absolutamente impregnado de humor em Novas cartas chilenas. Este serve para ridicularizar os poderosos e seus expedientes, mas não constitui modo ideal de abordar a dor dos que são condenados.a serem simples objetos da história de injustiça e exploração que ê afinal a nossa própria. Hã um tom de amargura dolorosa e revolta em muitos poemas, compondo curioso contraponto em relação àquele outro tom. As Novas cartas chilenas. refazem, num certo sentido, o caminho percorrido por textos poéticos modernistas de certo fôlego como Pau Brasil, de Oswald de Andrade, e História do Brasil, de Murilo Mendes. Como neles, hã no texto de Paes um desejo de abarcar a história nacional através da poesia, inventariar de alguma forma o passado do país, transformando-o em matéria literária. No entanto, a consciência política e social de Paes é mais aguçada, sua visão, por trás do humor e da paródia, ë bastante mais corrosiva diante do problema da opressão. Oswald e Murilo estão circunscritos ainda a um instante de valorização - o que não quer.dizer que não sejam críticos diante das questões do país, pelo contrário - do nacional e do primitivo. Em Paes parece estar mais presente aquela "consciência do subdesenvolvimento". de que fala Antonio CANDIDO, referindo-se ã mudança operada na intelectualidade brasileira diante da realidade nacional a partir de meados do século. Novas cartas chilenas marca o ingresso do poeta na poesia de engajamento político que vai marcar a produção de boa parte da arte brasileira nas próximas décadas. Significa, por-^ tanto, um grande afastamento diante da poesia da chamada Geração de 45, com a qual Paes, aliás, apesar da cronologia, sempre esteve em relativa tensão. O poeta lírico dos livros iniciais, 460 reverente ä tradição, cede espaço ao poeta satírico e paródico, preocupado em sair do âmbito mais restrito do sujeito em direção ao coletivo. Os anos 50/60 são anos permeados por uma certa polarização artística feita em termos da oposição entre arte social e politicamente engajada e arte de experimentação formal. Neste instante, Paes, que irá fundir ambas as possibilidades em obras futuras de reconhecida maturidade, parece pender para o primeiro pólo, a despeito da sua vinculação com.certa herança do Modernismo, experimental ã. sua maneira. A poesia de Novas cartas chilenas estã muito longe da poesia de experimentação formal que Mário Faustino, Ferreira Gullar.e os poetas que depois teriam seus nomes definitivamente ligados, ao Concretismo, Haroldo e Augusto de Campos e Décio pignatari, estão ensaiando desde o início da década. O primeiro movimento de vanguarda, o Concretismo, vai estourar enquanto tal pouco tempo depois, no ano de 1956, abrindo caminho a outros:que irão povoar a arte nacional nos anos seguintes, como o Neoconcretismo, a Poesia praxis, o poema Processo. Mas os seus reflexos concretos na arte paesiana só .se farão sentir bem posteriormente. É a perspectiva de participação política, na linha da que foi reunida depois no início dos 60 na publicação "Violão de Rua" e herdou seu nome, a que atrai o autor agora, e que vincará profundamente também o livro seguinte. Epigramas, de 1958, vem a público, somente em 1961, incorporado ao livro poemas reunidos. Trata-se um livro de assíduo engajamento político-social, no qual o poeta vai deixar ainda mais clara as suas opções ideológicas. Se no trabalho anterior o problema da opressão e da injustiça eram vistos na sua permanência ao longo da história, 461 agora é para o presente que o autor vai se voltar. A sociedade, nas metáforas centrais dos poemas.de engajamento, encon:-tra-se dividida entre "lobos" e "cordeiros", entre opressores e oprimidos, em outras palavras. O poeta.toma, obviamente, o partido dos segundos, como jã o fizera explicitamente em Novas cartas chilenas, atacando agora todos os representantes possíveis do poder: políticos, militares, grandes capitalistas, a religião, a pequena-burguesia, etc. Ele transforma a sua palavra poética em palavra política, faz do poema um modo de pregação ideologicamente orientada - u m "sermão", nos termos de um dos textos do livro. O intelectual de esquerda, que em momentos limites chega inclusive a pregar a luta armada como modo revolucionário, vem para o primeiro plano agora, comungando de uma postura que ë comum a tantos intelectuais de importância nesse momento da história brasileira. A passagem dos anos 50 para os 60 é instante de acirramento das lutas políticas e sociais no pais. Até antes do golpe de 64 tinha-se como muito provável, em muitos segmentos da inteligência brasileira, uma revolução social de amplo fôlego no Brasil. Depois de 64 a luta seria mais de resistência, mas agora urgia conscientizar as classes populares, buscar um modo de comunicar a elas contéúdos politicamente orientados, e a arte surgia para muitos como um instrumento possível para esse fim. Os Centros Populares de Cultura com a colaboração (os CPCs) da. UNE contaram de importantes nomes nesse intuito de ins- trumentalizar a arte. José Paulo Paes estã entre eles nesse instante:. O espirito de engajamento que perpassa todo este Epigramas precisa ser entendido no confronto com esse pano de fundo. 0 humor e a paródia, instrumentos centrais da critica de Novas cartas chilenas, abrandam-se aqui. 0 tom dominante agora 462 é de circunspecção, como se a miseria social e a luta política fossem questões tão presentes e dolorosas na consciência do artista que o riso se revelaria um expediente como que escuso e indigno da causa em questão. Estes aspectos da poética paesiana, que voltarão com grande ímpeto nos livros futuros, limitam-se a poucos dos poemas de Epigramas. No entanto, a preocupação com o fazer literãrio e o jogo com outros textos - aspectos que vão se revelando centrais na poesia de Paes - permanecem. Ha um questionamento constante, neste momento de luta, do papel do poeta e da poesia (e por extensão do artista e da arte) na mudança da sociedade. Äs vezes a visão cerca-se de pouco otimismo, como se o artista estivesse subordinado aos poderes que mantêm o "status quo". No en.— tanto, o que predomina, pela própria orientação do poeta e seu desejo de empenho,.,ê a crença no papel reformador da arte no. processo amplo das reformas sociais. A intertextualidade permeia vãrios textos, sendo que em alguns deles o engajamento- politico-social deixa de ser a tônica para que a própria poesia surja como tema. Poe, Baudelaire, Nazim Hikmet, Jacques Prevért, Tolstoi, entre outros, são nomes que recebem referência. 0 mesmo acontece com a Biblia, aliãs, rica fonte de metáforas e outros recursos de linguagem, que o poeta porém desloca do teológico para o plano político. O "poeta dos livros" faz-se presente também num instante onde a tônica poderia recair exclusiva sobre o intuito de participação. A poesia e a literatura são sempre matéria de poesia em Paes. Os procedimennos literários encontrados em Epigramas são os mais diversos, porém longe estão dos caminhos da experimenta- 463 ção formal que outros estão preferindo trilhar nesse instante do desenvolvimento da poesia brasileira. O verso, livre ou metrificado, é unidade poética central da poesia de Paes. Como nos livros anteriores, Paes é artesão nas formas e metros tradicionais (soneto, balada, ode; redondilhas, decassílabos; padrões estróficos e rimicos) e nas possibilidades mais livres da poesia.que o Modernismo e desdobramentos difundiram. No con^ traste com as opções da vanguarda estética, hã muito de convencional, retórico e de discursivo em Epigramas - talvez típicos de uma arte que busca comunicar conteúdos claros a fim de conscientizar -, sem que no entanto a expressão se espraie necessariamente flãcida e excessiva. O poeta visceralmente epigramático de livros futuros - atente-se porém ao título do livro presente - ensaia alguns passos jã aqui. Porém é em Anatomias, de 1967, que o veio epigramático de Paes vai se manifestar com maior vigor. Síntese, enxugamento das formas, experimentação devidamente dosada e fundida ao intuito de crítica e comunicação clara com o leitor - portanto distância do experimentalismo mais hermético -, humor, paródia, ironia, jogo verbal são elementos que compõem este livro, passo definitivo em direção a uma dicção madura e muito pessoal que deverá alimentar também os livros posteriores do autor. Hã muito de artesanato e despojamento nessa poesia, a serviço de uma crítica demolidora, voltada com igual vigor para a política, para a sociedade, para a cultura - em suma, para o homem e seus problemas. O entusiasmo mais apaixonado e por vezes ingênuo do poeta engajado, nas simplificações dos problemas que estrategicamente opera, cede lugar a uma perspectiva mais distanciada e menos afetivamente envolvida, sem que o caráter de par- 464 ticipação se perca, pelo contrário, conseguindo inclusive que ele se potencialize. A influência do Concretismo (que. poema dedicado aos poetas concretos somente confirma), devidamente absorvida e subordinada ãs intenções de Paes, é aspecto central nesse novo livro, e que sõ acentua a dimensão dialõgica do seu trabalho: experimentações visuais; centiramento na palavra como elemento poético fundamental; ludismo verbal que se manifesta nos trocadilhos e jogos com frases feitas, na fragmentação de vocábulos, na criação de neologismos; intertextualidade e metalinguagem insistentes. Se o verso encontra-se presente ainda em alguns poemas, trata-se de um verso muito pouco enxuto ao máximo. Tudo é síntese, condénsação economia de meios em discursivo, expressiva, Anatomias. O humor e a paródia retornam com.muito vigor. O enxugamento formal ê todo ele dirigido para a contundência critica via riso. 0 "poema-piada" modernista, que Paes recuperara jã em poemas de Novas cartas chilenas, tem em Anatomias exemplos dos mais felizes. Oswald de Andrade surge aqui como referência básica, curiosamente também apontada pela Poesia Concreta. Assinale-se ainda que igualmente para o Tropicalismo desse final de década e para tantos poetas da chamada Poesia Marginal que irá surgir mais para a frente, ê Oswald recuperado, de diferentes maneiras, como criador paradigmático. Com o "poema-piada" reciclado através dos novos meios expressivos conquistados pela vanguarda estética, Paes têm em suas mãos um instrumento ideal para o exercício de uma critica participativa incisiva. Relembre-se: "anatomê" significa originariamente fim grego "incisão", "dissecação". Portanto, ê como um "dissecador" que tem em mãos o gume de um verbo afia- 465 dissimo que o poeta se debruça sobre o corpo da sociedade e da cultura, da arte e da existencia, fazendd ver, com golpes "incisivos", a materia interna de que são feitos. Os caminhos abertos em Anatomias.recebem continuação em Meia palavra,.de. .1973. A síntese ideal entre poesia de experimentação e participativa encontrada no trabalho anterior revigora-se aqui. Preocupações temáticas e recursos expressivos evidentès naquele livro reiteram-se de forma madura neste. 0 titulo do trabalho é igualmente significativo em termos das perspectivas poéticas assumidas pelo autor, sobretudo num momento em que a repressão política e a censura ã impren- sa e ãs artes, apôs a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968, o chamado golpe dentro do golpe, são devastadoras. Neste con- texto político-cultural, "meia palavra" basta para os bons entendédores, e ë "meia palavra" o que o poeta vai dar, tanto no plano da expressão, econômica, sintética, como no dos conteúdos. 0 subtítulo do livro, "cívicas, eróticas e metafísicas", aponta para os veios temáticos centrais do trabalho: os problemas políticos e sociais, que preocupam o autor desde Novas cartas chilenas, a partir de meados dos anos 50; o amor, não mais nas cores positivas do lirismo amoroso do . segundo livro Cúmplices; e as questões existenciais, presentes jã na poesia inicial de O aluno, e de forma difusa ao longo dos outros trabalhos, como a morte, o tempo, as angústias do homem, etc. E, entremeando os poemas assim temáticamente tripartidos, a poesia enquanto tema, que não deixa de ir pontuandó: sempre tudo. Os recursos expressivos são similares aos de Anatomias. Todas as possibilidades lã presentes encontram-se aqui também, acentüando-se porém jã um retorno a procedimentos e modos ante- 466 riormente presentes na poesia do autor: da experimentação visual e do trabalho centrado na palavra ao poema em versos, estrofes.e com rimas; do humor rasgado, da paródia intertextual e da ironia aos poemas de„sabor mais circunspecto e amargo. Unificando tudo, a expressão enxuta, epigramática - enfim, a "media palavra" . Resíduo, de 1980, nada acrescenta em termos de novidade aos dois trabalhos anteriores. O poeta, naqueles livros, parece ter chegado a um patamar definido, atingido, portanto,, a sua dicção poética mais própria e madura. Resíduo ë mais uma peça desse ciclo. O titulo,•aliãs, parece insistir nisso. Num dos sentidos dicionarizados, "resíduo" ë o "fundo", o "âmago", a "raiz"; o modo expressivo mais essencial ao poeta foi enfim atingido. Mas "resíduo" é também "sobra", "resto", como se na..oficina que produzira Anatomias e Meia palavra ainda restasse algo que agora enfim viesse a público. 0 termo define bem esse carãter do livro, que reitera por um lado as conquistas temáticas e formais da maturidade poética do autor, mas por outro nada parece acrescentar ao que jã fez naqueles livros. Percebe-se uma estabilização no trajeto do poeta, com o que ela significa de positivo ao apontar para uma maturidade atingida e para conquistas que se cristalizam, e de mènes .positivo, pela definição de uma "maneira" que em desdobramentos menos vigorosos pode-se tornar "amaneiramento". A Resíduo segue Calendário perplexo, de 1983, livro em que todos os poemas se encontram subordinados a um núcleo temático central, no caso, ã questão do tempo segmentado em datas significativas. A várias das datas do calendário, datas 467 de significado mais ou menos ; restrito em termos pessoais ou coletivos, o autor dedica um poema, poemas que vão compondo verdadeiras dissonâncias em relação ao espirito que convenciot nalmente cerca as datas a que se referem. Calendário perplexo significa uma volta ao verso como unidade poética central, que nunca esteve ausente dos trabalhos anteriores, mesmo no momento mais radical de Anatomias, e um afastamento da exploração de recursos visuais. Tudo aquilo que nos livros anteriores poderia significar uma' divida clara aos recursos concretistas,, mesmo que devidamente absorvidos pelo poeta epigramático, está ausente neste trabalho. A expressão poética, depois dos exercícios com recursos não verbais e com outros que reduziam o verbal ãs suas formas mínimas, resgata o verso mais dicur.sivo sem abrir mão do enxugamento e da contenção. Np mais, a perspectiva é a mesma daqueles trabalhos: humor, ironia, artesanato verbal, ludismo, intertextualidade, metalinguagem. Tudo sob medida para os contornos precisos de uma palavra poética sempre muito critica e comunicativa. Os anos 70 e 80 compõem, na poesia brasileira, um momento que diluição e termo das utopias políticas e estéticas que dominaram a produção literária das duas décadas anteriores. Se aqueles vários movimentos que pipocaram ao longo dos anos 50 e 60 - tão diferentes entre si, sublinhe-se - tinham em comum afinal a crença numa produção poética de abrangência coletiva, militantemente^agressiva e polêmica, esse tipo de atuação cultural, que em certo instante dos 70 airida fervilha a seu modo na Poesia Marginal, sõ que jã sem o caráter programático e orientado das décadas anteriores, perde o fôlego de vez, pas- 468 sando a poesia a manifestar-se novamente agora sobretudo em termos de poéticas individuais, mais abertas ãs influências acumuladas, sem a necessidade de inovar a todo o custo e experimentar, e tão pouco de subordinar a criação a uma instrumentalização política por vezes castrante e excessiva. A produção mais madura de José Paulo Paes sintoniza-se bem com esse ambiente poético. Tendo absorvido, â sua maneira, os problemas colocados pelas tendências de experimentação formal e de engajamento político-social, e dando respostas poéticas bastante próprias a eles, ela vai afirmar-se justamente na sua independência-em relação aos núcleos mais dogmáticos dessas tendências. Define, portanto, um caminho pessoal e cada vez mais distante de possíveis ortodoxias. As conclüsões apresentadas até o momento permitem perceber a trajetória-poética de Paes integradamente ao desenvolvimento da aqui chamada moderna poesia brasileira. Como se foi observando, trata-se de uma obra que se constrói ao longo do tempo, conquistando pouco a.pouco, a partir de aproximações e afastamentos sucessivos em relação ãs tendências dominantes em cada instante do percurso, a sua expressão mais individualizada. Seria agora a ocasião de procurar apreender esta poesia em alguns de seus traços dominantes, de seus aspectos mais essenciais, procurando-se manter uma maior distância frente ao enfoque mais estritamente, cronológico, que preserva as características próprias de cada um dos livros. . A poesia de Paes é fundamentalmente uma poesia que se faz num processo de constante diálogo com a própria poesia. Esse diãlogo, como se acentuou sobremaneira ao longo de todo este estudo, se estabelece em relação ãs tendências modernamente 469 dominantes da produção poética brasileira. Mas se define também a partir de outros ângulos que o próprio espaço intertextual estabelecido continuamente pela palavra de Paes permite vislumbrar. Paes ê, como se formulou anteriormente, .um "poeta dos livros". Basta conferior a quantidade de referências a textos, a autores, a procedimentos, a formas poéticas - e não só de fontes brasileiras - para se constatar a .afirmação. Paes é um finíssimo leitor, e traz para dentro do seu texto, de forma explicita, o produto da sua leitura. A poesia, a literatura, a própria textualização da realidade em suas vãrias possibilidades, como é o caso do texto, da história, da crônica político-social, etc. , são sempre matéria de poesia em Paes. Situando-se de modo agudamente consciente em relação a esses aspectos, refletindo sobre o labor composicional, sobre o papel do poeta e da literatura (e, por extensão, do artista e da arte), explicitando os processos de construção.do próprio autor, suas opções poéticas, seus posicionamentos ideológicos, sua poesia revela ainda o carãter marcadamente metalingüístico que a impregna. Metalinguagem e intertextualidade.são palavras-chave, portanto, para o enquadramento da produção poética de Paes. Se são insuficientes para defini-la distintamente em relação ã produção de outros autores, jã que boa parte da melhor poesia moderna se faz pautando-se de forma programática por essas preocupações e intenções, fazem de Paes um poeta em franca sintonia com algumas . propensões fundamentais da poesia do seu tempo. Mas esse diálogo apontado de Paes com textos e autores precisa ser visto nos modos que ele vai assumir - e ai o carácter mais próprio da sua obra pode ser melhor conferido. No 3 70 instante inicial da sua produção literária, o diálogo desloca-se para o eixo das semelhanças. 0 Paes inicial assume-se enquanto um "aluno" de poesia que vai procurar a sua expressão a partir da imitação de alguns "mestres" eleitos e do resgate de formas e procedimentos da tradição. 0 "aluno" começa a deixar essa sua condição primeira, a definir-se gradualmente cada vez mais um "mestre", somente quando essa orientação começa a se alterar: do eixo das semelhanças, o pêndulo desloca-se para o das diferenças. E a diferença, em Paes, vai dimensionar os aspectos mais vitais da sua dicção da madureza - a dissonância, o distanciamento, a critica ai entranhados, manifestados através do humor, do sarcasmo, da ironia, da intenção satírica e paródica, dos lances mais cinzentos de amargura circunspecta e por vezes quase .niilista, e expressos através de formas extre mámente enxutas e concisas. Ë somente quando se liberta do lirismo-subjetivo inicial, realizado â sombra de outros autores e da tradição, e do engajamento apaixonado e otimista de certos instantes da sua poesia política, com o seu muito de retórico e discursivo, que Paes.vai definir a sua produção mais vigorosa Os aspectos apontados concementemente ao poeta parecem ca sar-se bem com as outras facetas da sua personalidade literá- ria. 0 desejo de diálogo com outros autores e textos, estabelecido de forma distanciadamente critica, é comum também ao ensaísta e ao tradutor. Ambos aproximam-se de textos alheios para, a partir deles, através do filtro duplo da razão e da sensibilidade, estabelecerem novo texto. Finalmente, se fôssemos situar Paes em relação â poetas e tendências da poesia brasileira - se fôssemos definir o lugar de Paes na poesia do pais -, teríamos de vê-lo como um 471 autor q u e se e n c o n t r a n u m p o n t o de c o n f l u ê n c i a d e a l g u m a s d a s perspectivas mais . significativas dessa poesia. Num certo sentido, Paes é herdeiro d i r e t o do Modernismo combativo, polêmico, irreverente, agitador, experimentador O s w a l d de A n d r a d e e d o D r u m m o n d i n i c i a l . A s f e l i z e s de atualiza- ç õ e s que e l e faz do " p o e m a - p i a d a " m o d e r n i s t a , c o m o o seu m u i t o de humor, p a r o d i a , distanciamento c r i t i c o , forma.de que os dois a u t o r e s f o r a m p o e t a s e x i m i o s , é um p r i m e i r o í n d i c e d i s t o . Some-se ainda a esse aspecto a tendência ã consião, ã síntese, ao c o n d e n s a m e n t o da e x p r e s s ã o , t ã o f o r t e s , n a p o e s i a de P a e s , e q u e t i v e r a m em O s w a l d um a u t o r p a r a d i g m á t i c o e i n a u g u r a l n a s l e t r a s b r a s i l e i r a s . O s w a l d é um m e s t r e no u s o de f o r m a s e m e t r o s c u r t o s , ideais p a r a o s seus i l u m i n a d o s i n s t a n t â n e o s p o é t i c o s . D r u m m o n d , i g u a l m e n t e , se e x p r e s s a a p r i n c i p i o p o r m e i o de formas m a i s b r e v e s . . O s d o i s a u t o r e s são a i n d a m e s t r e s do despoj a m e n t o v e r b a l e da i n c o r p o r a ç ã o d o c o l o q u i a l , q u e em P a e s tom a f o r m a s m u i t o p r ó p r i a s . D r u m m o n d e n t r a a i n d a com a a t i t u d e " g a u c h e " , d i s t a n c i a d a e i r ô n i c a , q u e n o l i m i t e se t i n g e de c o r e s m a i s a m a r g a s de a n g ú s t i a , c e t i c i s m o , n e g a t i v i d a d e . tem m u i t o d e s s a a t i t u d e n o s e u m o m e n t o m a i s v i g o r o s o Paes como criador. Num certo sentido herdeiro de Oswald e Drummond quanto â c o n c i s ã o , ao d i s t a n c i a m e n t o i r ô n i c o e a o d e s p o j a m e n t o poéti- c o , P a e s , n o e n t a n t o , v a i a t u a l i z a r e s s e s a s p e c t o s e m nova c h a v e . A s s o l i c i t a ç õ e s d e e n g a j a m e n t o c r í t i c o de seu t e m p o , a que o p o e t a se r e v e l a m u i t í s s i m o sensível, vão orientar esses e l e m e n t o s em d i r e ç ã o a u m a a t u a ç ã o s a t í r i c a s i s t e m á t i c a , cond e n s a d a m e n t e v i o l e n t a em a l g u m a s d e suas f o r m u l a ç õ e s . E o m e lhor d e s s a e x p r e s s ã o v a i se o r g a n i z a r m a i s distanciadamente 4 72 do "pathos" r e v o l u c i o n a r i o q u e c a r a c t e r i z a c e r t a f a i x a da p o e sia b r a s i l e i r a d o s a n o s 50 e 6 0 , c o m o seu t o m excessivamente retórico e i m p u l s i v o . A t e n d ê n c i a à c o n c i s ã o e p i g r a m á t i c a e a postura i r ô n i c a v ã o m o d u l a r o d e s e j o de c r i t i c a e engajamento, dando a e l e o r i e n t a ç õ e s m a i s a m p l a s e f o r m u l a ç õ e s poeticamente mais c o n s i s t e n t e s . A a p r o x i m a ç ã o da v a n g u a r d a c o n c r e t i s t a em certo m o m e n t o v a i r e v e l a r a P a e s i n s t r u m e n t o s i m p o r t a n t e s para o a g u ç a m e n t o d o s e u v e i o e p i g r a m á t i c o o r i g i n a l . L u d i s m o e experimentação v e r b a i s , deslocados do enfoque m a i s hermético do pela v a n g u a r d a p u r a , p o t e n c i a l i z a m - n o da- sobremaneira. A poesia de P a e s , h e r d e i r a d e u m d o s v e i o s m a i s v i t a i s d a p o e s i a m o d e r / n i s t a , d e f i n e - s e t a m b é m c o m o p o n t o de c o n t a t o e t e n t a t i v a de s u p e r a ç ã o d i a l é t i c a de t e n d ê n c i a s q u e , em d a d o i n s t a n t e , se confrontaram bastante acirradamente. Estas considerações, somadas a todo o estudo mais minucioso da p o e s i a de P a e s , p e r m i t e m v ê - l o , c r e m o s , c o m o um p o e t a consistente e r e l e v a n t e da p o e s i a b r a s i l e i r a r e c e n t e , a r t i s t a que, p a u t a n d o - s e p o r v e r t e n t e s i m p o r t a n t e s da p o e s i a n a c i o n a l , p l e namente e n g a j a d o n a s q u e s t õ e s d o ..seu t e m p o , i m p ô s - s e , te'/ como v o z d i s t i n t a e p e s s o a l . finalmen- REFERENCIAS OBRAS DE JOSÉ PAULO BIBLIOGRAFICAS PAES Poesia O A l u n o , E d i ç õ e s O L i v r o , C u r i t i b a , 194 7 . Cúmplices, Edições Alarico, SP, 1951. Poemas Reunidos, Cultrix, SP, Anatomias, Cultrix, SP, 1961. 1967. Meia Palavra, Cultrix, SP, 1973. Resíduo, Cultrix, SP, 1980. Um por Todos (Poesia R e u n i d a ) , B r a s i l i e n s e , S P , 1986. A Poesia está Morta mas Juro que não fui e u , Duas SP, 1988. 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